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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC-SP
PROGRAMA EM COMUNICAO E SEMITICA
ANA CRISTINA ECHEVENGU TEIXEIRA
A MIDIATIZAO DAS COMPANHIAS OFICIAIS DE DANA NO BRASIL: ECOS
DE COMUNICAO ENTRE PBLICO E PRIVADO
DOUTORADO EM COMUNICAO E SEMITICA
SO PAULO
2012
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC-SP
PROGRAMA EM COMUNICAO E SEMITICA
ANA CRISTINA ECHEVENGU TEIXEIRA
A MIDIATIZAO DAS COMPANHIAS OFICIAIS DE DANA NO BRASIL: ECOS
DE COMUNICAO ENTRE PBLICO E PRIVADO
DOUTORADO EM COMUNICAO E SEMITICA
Tese apresentada Banca Examinadora como
exigncia parcial para obteno do ttulo de
Doutor em Comunicao e Semitica pela
Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo,
sob a orientao da Profa. Doutora Helena
Tnia Katz.
SO PAULO
2012
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC-SP
PROGRAMA EM COMUNICAO E SEMITICA
ANA CRISTINA ECHEVENGU TEIXEIRA
A MIDIATIZAO DAS COMPANHIAS OFICIAIS DE DANA NO BRASIL: ECOS
DE COMUNICAO ENTRE PBLICO E PRIVADO
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Prof. (Orientador)
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Prof.
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Prof.
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Prof.
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Prof.
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A Osmar Zampieri, meu amor junto junto!!!!
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AGRADECIMENTOS
Tomar a deciso de fazer um doutorado uma tarefa difcil. Uma jornada de quatro
anos, intensa, repleta de altos e baixos. uma mistura de medos, receios, desnimos, desejo
de desistir, momentos de se achar incompetente, de descobertas, de encontros, de trocas no
caf e vontade de seguir em frente acreditando na produo e na transformao que o
conhecimento possibilita. De partida, parece impossvel entrar em contato com distintas
teorias acerca do mundo, dos fenmenos que neles esto interagindo, a partir da fala de cada
professor e das leituras que propem. Sim complexo, mas tive a sorte de encontrar pessoas
maravilhosas que, com extrema competncia, guiaram o meu caminho. Meus mestres, os
colegas de labuta acadmica, os familiares, os amigos caros, e at mesmo desconhecidos,
fizeram parte deste percurso. Saudades o sentimento que terei, e que tenho, ao findar essa
etapa, sabendo que muitas outras viro, portanto no posso deixar de agradecer imensamente
queles que estiveram comigo nesta empreitada, pessoas maravilhosas para as quais fao uma
humilde reverncia, pois, sem a presena de cada uma delas, seria complicado me lanar e
segurar, como se diz na minha terra gacha, pelo cabresto tal iniciativa!
Antes de elencar todos que me ajudaram, preciso dizer e grifar que me joguei nesse
labirinto sem fim impulsionada por um encontro caloroso com a minha maior mestra, a Profa.
Dra. Helena Katz, no Centro de Estudos em Dana (CED), um complexo engenhoso que
contm toda a produo dessa grande terica da dana brasileira, os seus mais de 30 anos de
estudos sobre o corpo. H uma extensa bibliografia abarcando distintas disciplinas e uma
enormidade de documentos importantes, cuidadosamente organizados. Situado em Caieiras
(SP), esse centro foi idealizado e criado por ela e seu grande e precioso companheiro, Tomas
Fischer, e o acervo est disponvel a todos que o queiram estudar. Katz sussurrou que eu devia
fazer um doutorado, nessa conversa, e aps ter sido parte da banca de meu mestrado, tambm
na PUC-SP, e no mesmo programa, com orientao da Profa. Dra. Ceclia Salles, a quem
aproveito para agradecer, pois, sem ela, creio que no estaria nesse programa e discutindo tal
objeto. Nessa conversa, muitos assuntos danaram de um lado para outro, mas o importante
que havia um desejo de fazer uma composio, de fato, de criar uma coreografia acadmica.
A minha experincia como artista da dana em instituies pblicas, bem como minhas
andanas por esse mundo, seriam a base da discusso que proponho nesta tese. Ento eu disse
sim, vamos l!. Depois desse dia, me empenhei para preparar o projeto e consegui entrar no
doutorado. Estudar neste pas muito caro. Quando entrei, em novembro de 2008, a
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mensalidade era algo em torno de R$ 1.800,00 mensais. Como pagar esse valor? Se no fosse
o CNPq, eu no teria como continuar. Esse o primeiro agradecimento que fao. Muito
obrigada ao CNPq, pois sem esse apoio seria drstico dar incio minha pesquisa, que quero
terminar o mais rpido possvel para dar a chance a outro pesquisador que, como eu, no
tenha condies de pagar tal quantia para estudar. Toro para que muitos CNPq existam,
contribuindo para a pesquisa acadmica de nosso pas.
Agradeo tambm CAPES, que possibilitou a minha ida para Paris (FR), onde tive
o privilgio de estudar e cumprir a bolsa sanduche na Sorbonne Nouvelle Paris 3, realizando
pesquisas na Bibliothque National de France (BNF).
A partir de agora irei agradecendo como se estivesse no lombo de um cavalo e
aqueles que tiverem curiosidade sobre essa expresso podem pesquisar o que ela significa.
Vamos l, segurem as rdeas!
Meus agradecimentos: Cida, profissional decisiva no programa de Comunicao e
Semitica, que me apoiou e ajudou em todos os trmites acadmicos e a ter confiana na
pesquisa; Profa. Dra. Lucrcia Ferrara, por seus comentrios na apresentao do meu
projeto inicial; ao Prof. Dr. Amlio Pinheiro e ao Prof. Dr. Jorge Albuquerque, que
contriburam para esta tese, cada qual com uma sapincia pontual; queridssima Chris
Greiner, uma professora espetacular com quem aprendi e aprendo muito; Rosa Hrcoles, por
sua confiana e muitas conversas; Tia Armelle, por estar sempre presente na minha vida; ao
Pierre E. e aos meus irmos franceses Lili L. e Franois L.; Profa. Dra. Fabiana Britto, por
suas pontuais consideraes no exame de qualificao; aos meus colegas da academia, para l
de queridos: Dorinha, Banana, Andria N., Ivana B., Ins C., Oriana, Digenes P., Eliana S.,
Marcinha M., Paula P., Diogo F., Amanda Q., Sheila R., Joubert A., Leila, Nina, Vagner,
Luiza e muitos outros colegas de conversas nos corredores.
Sandra Gasques, revisora sempre solcita e atenciosa nas leituras destas pginas.
Ao querido professor e revisor da lngua francesa Dominique Normand.
Silvia Machado, que, com sua arte, fez a capa desta tese.
Aos diretores e aos agentes administrativos das companhias que se disponibilizaram
a contribuir com seus depoimentos nas entrevistas.
minha famlia, uma beleza de companheirismo, amor e comprometimento: o meu
bravo pai Srgio, a minha linda me Lda, as amadas irms D, Ldi e D, o meu irmo
querido Bado, e todos os meus preciosos sobrinhos: Carolina, Sofia, Jlia, Maria Teresa e
Rafael, sem falar, claro, no meu grande cunhado Fernando, um crnio!!!!
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Companheiras de carreira artstica fazem parte desta lista: a querida parceira Lilia
Shaw, bailarina estupenda e grande amiga; Mnica Mion, uma fora arrebatadora como artista
de companhia pblica. Elas ajudaram a compreender o contexto da dana pblica. Para vocs,
eu bato palmas!
Agradecer Keysinha, ao Zetta e Cilosinha imprescindvel: amigos sempre!
No CED, agradeo Cida (com seus deliciosos almoos), ao Al, Quel, ao
Guilherme e Ccera, pela parceria, e s preciosas crianas que me ajudaram a aliviar o peso
do compromisso, ou seja, me deram a possibilidade de brincar.
Suely, que sempre tem uma palavra generosa a dizer, cuidando com carinho de
mim, do Osmar e da Lola.
No reino animal, no posso deixar de expressar minha imensa alegria por ter um
cachorro a Lola tudo de bom!!! Mas h outros, os que moram na fazenda (CED), meu
segundo lar: a Bolita, a Flopsy, o Tsintsin (in memoriam), o Merce, o Barboso, a Julie, o
Fumaa, a Juju e o Pipoca, que estiveram comigo sem falar nada, pois eram cachorros e s
percebiam o meu estado!!!
Agradeo ao querido amigo Tomas Fischer, um ser humano admirvel, incansvel
quando o assunto o outro, sempre presente e vibrando a cada conquista. Sou muito grata a
voc, obrigada por tudo!
minha queridssima orientadora e amiga, eu s tenho a agradecer tamanha
disponibilidade, carinho, ateno e amor. Quantos ensinamentos valiosos, to cuidadosamente
transmitidos. Sem palavras escritas para agradecer tudo o que vivo com voc. MUITO
OBRIGADA POR TUDO SEMPRE, PROFESSORA QUERIDA!!!
Para finalizar, preciso dizer que esta tese s foi possvel porque sou casada com
algum muito especial, Osmar Zampieri, um artista que me ensina a viver.
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A MIDIATIZAO DAS COMPANHIAS OFICIAIS DE DANA NO BRASIL: ECOS DE
COMUNICAO ENTRE PBLICO E PRIVADO
RESUMO
No Brasil, quando se fala sobre companhias oficiais de dana, o que primeiro aparece a
negligncia do jornalismo cultural no que diz respeito complexidade do que elas envolvem.
O que se sabe sobre seu funcionamento se as mdias silenciam, sem informar sobre os
comprometimentos advindos da sua forma de financiamento ser atrelada a leis e decretos que
ignoram a sua natureza artstica? Se o jornalismo cultural no explora os meandros da relao
de poder entre arte e Estado, que se manifesta na forma de existncia artstica dessas
companhias, o que, de fato, se torna pblico a seu respeito? Esta tese parte da hiptese de que
o sucesso que o modelo francs de companhia oficial, de razes ligadas a Lus XIV, teve no
Brasil encontrou, na presena colonial portuguesa, nos espetculos que aqui foram
apresentados e nos crticos das pocas a que cada um desses fenmenos se refere, aliados
potentes para o ativamento dessa construo vitoriosa. Com a Teoria Corpomdia (KATZ;
GREINER, 2001, 2003, 2005, 2006), foi possvel alavancar a hiptese de que as companhias
oficiais atuam comunicando a sua ideologia colonial (as monarquias centro-europeias dos
sculos XVII, XVIII e XIX) e as condies polticas de sua fundao nos locais onde se
estabelecem. Essa dupla vinculao encontra-se encarnada na sua prpria estrutura de
funcionamento. Essa hiptese pode ser construda quando se entende o corpo em
codependncia com os ambientes, em um processo permanente de transformaes de ambos,
como prope o conceito de corpomdia. Articulando a reflexo ps-colonial de Agamben
(2004), Bhabha (2007), Buarque de Holanda (1995, 2010), Elias (1990, 1993, 2001), entre
outros tericos dedicados imbricao da comunicao com a cultura, tornou-se possvel
pesquisar a situao das 15 companhias brasileiras oficiais de dana por meio da relao entre
mdia e poder. A pesquisa teve como objetivo evidenciar que para modificar a situao atual
torna-se necessrio dar visibilidade miditica para a relao dana-Estado, levando em conta a
comunicao precria hoje existente. Foram realizadas entrevistas com os diretores dessas
companhias, bem como uma reviso bibliogrfica que agregou aos autores citados o
vasculhamento de Dirios Oficiais e documentos histricos preciosos encontrados nos acervos
da Bibliothque Nationale de France (BNF), sobretudo na Bibliothque-Muse de LOpra, graas uma bolsa-sanduche de quatro meses concedida pela CAPES.
Palavras-chave: jornalismo cultural, corpomdia, companhias oficiais de dana,
colonialismo, relao arte-Estado, Lus XIV.
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MEDIATIZATION OF OFFICIAL DANCE COMPANIES IN BRAZIL:
COMMUNICATION ECHOES BETWEEN THE PUBLIC AND THE PRIVATE
ABSTRACT
In Brazil, when one refers to official dance companies, what first comes up is the cultural
journalism ignorance regarding the complexity they imply. What can be known about their
operation if the media is silent, without informing the commitments arising from the fact their
funding form is linked to laws and rulings that ignore their artistic nature? If the cultural
journalism fails to explore the particular aspects of the power relationship between art and
State manifested in the artistic existence of these companies, what does actually become
public about them? This paper is based on the hypothesis of how successful the French model
of official company, whose roots are connected to Louis XIV, was in Brazil, before the
Portuguese colony, in the shows that took place here and before the critics at the times each
one of these phenomena refers to, important allies to activate such victorious building. With
Corpomdia Theory (KATZ; GREINER, 2001, 2003, 2005, 2006) it was possible to leverage
the hypothesis that official companies operate by communicating their colonial ideology (the
monarchies of Central Europe in the XVII, XVIII and XIX centuries), and the political terms
of their foundation at the places where they are established. This double connection is found
in its very own operation structure. This hypothesis can be built when one understands the
body in codependence with the environments, in an ongoing process of changes of both
environments, as the corpomdia concept suggests. By articulating the post-colonial reflection
made by Agamben (2004), Bhabha (2007), Buarque de Holanda (1995, 2010), Elias (1990,
1993, 2001), among other researchers devoted to the embeddedness of communication with
culture, it was possible to research the situation of the 15 Brazilian official dance companies
through the relationship between media and power. The purpose of the research was to show
that, in order to change the current situation, it is necessary to provide media visibility to the
dance-State relationship, taking into account the weak communication of these days.
Interviews with the directors of these companies were carried out, as well as bibliographic
review that added to the authors mentioned the research of Brazilian Federal Registers, and
valuable historical documents found in the collection of Bibliothque Nationale de France
(BNF), mainly at Bibliothque-Muse de LOpra, thanks to a four-month scholarship granted by CAPES.
Keywords: cultural journalism, corpomdia, official dance companies, colonialism, art and
State relationship, Louis XIV.
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SUMRIO
INTRODUO.............................................................................................................
Na primeira pessoa..........
CAPTULO 1
1.1 Nos domnios da corte portuguesa......................................................................
1.2 Iniciando a burocratizao no Brasil...................................................................
CAPTULO 2
2.1 Oficializa-se a dana ....
2.2 A relao dos textos impressos (leis, decretos e portarias) com o perfil das
companhias oficiais que deles resultam .........................................................................
CAPTULO 3
3.1 Modelo institucionalizante ...................................................................................
3.2 O que diz cada decreto .........................................................................................
3.3 A replicao do modelo: a diferena entre pblico e oficial ...............................
CAPTULO 4
4.1 O bailarino Artista vinculado administrao pblica......
REFERNCIAS ...........................................................................................................
ANEXOS
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35
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76
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84
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INTRODUO
Na primeira pessoa
Inicio a introduo desta tese com esse subttulo com o objetivo de sublinhar que
somente na introduo deste trabalho escrevo na primeira pessoa do singular, como se fosse
um testemunho. A proposta aqui a de buscar a aproximao direta com a questo que estou
trazendo para a discusso, a relao das companhias oficiais de dana brasileiras com o
Estado. Nessas instituies, dificilmente se fala na primeira pessoa do singular, pois o dilogo
com o Estado se d via memorandos, que so uma forma de comunicao interna com escrita
impessoal. O funcionrio que redige um memorando escreve sucinta e diretamente sobre
determinado assunto, utilizando-se da terceira pessoa do singular ou do plural. Aqui me refiro
comunicao relacionada ao funcionamento dirio de uma companhia, no sentido estrito,
por exemplo, contrataes e dispensas dos artistas, solicitaes de materiais de escritrio, de
equipe de limpeza ou de gua, ou seja, toda a demanda de qualquer natureza feita via
memorando. Falar na primeira pessoa comum somente queles que dirigem esses
estabelecimentos diretores, secretrios, prefeitos e todos que, de alguma forma, esto em
lugar que lhe proporcione um determinado tipo de poder.
Durante 13 anos trabalhei em companhias pblicas. Como bailarina, integrei o
elenco do Bal da Cidade de So Paulo (BCSP), de 1996 a 1999, e tambm o Staatstheater de
Kassel, na Alemanha, de 2002 a 2003. Como diretora-artstica assistente, atuei no BCSP, de
2003 a 2009. essa experincia que me impulsionou a lanar minha hiptese de que na
relao entre arte e Estado no h dilogo, o convvio entre essas duas instncias baseado
em regras ultrapassadas, distantes do fazer artstico e, portanto, a dana produzida nesse
contexto no consegue se desvencilhar dessa cilada. Essas companhias so espaos
comprometidos com a falta de autonomia e se mantm no tempo porque so parte da
engrenagem e invisveis para a administrao pblica. Elas so um pequeno ponto, quase
transparente, e, apesar de serem criadas para referendarem a dana de um municpio ou de um
Estado, j que so estes que as subvencionam, nada mais so do que um conjunto de
incoerncias burocrticas e administrativas.
Apresento a tese em quatro captulos, sendo o captulo 4 a concluso. Neles crio uma
rede de conversas tericas, bem como um apanhado histrico profundo sobre a
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institucionalizao da dana na Europa, mais especificamente em Paris no sculo XVII e no
Brasil colonial, buscando abarcar a complexidade dessas instituies que dizem promover a
arte da dana de suas localidades. No primeiro captulo, ainda sem apresentar o que uma
companhia pblica, detenho-me na chegada da famlia real ao Brasil, com o enfoque dado s
artes nesse perodo e o entendimento de companhia de dana que nos inculcado. Buarque de
Holanda (1995, 2010), Elias (1990, 1993, 2001), Freire (2000), Gomes (2007), Gouvea (s.d.),
Norton (2008), Priori (2000), Priori e Amantino (2011), Schwartz (2011), Sucena (1989) e
outras importantes fontes tericas auxiliam-me na construo da anlise crtica da dana
institucional promovida no perodo colonial.
No segundo captulo, exponho o momento inaugural da institucionalizao da dana
capitaneado por Lus XIV, rei da Frana no sculo XVII. Documentos importantes dessa fase
determinam e esclarecem o vnculo existente, at os nossos dias, entre a administrao
pblica e as companhias. Como referencial terico, alm de autores do incio do sculo XIX,
contribuem para a fundamentao desta discusso Burke (2009), Guest (2001), Monteiro
(1998), Franko (2005) e Warnkes (2001). nesse captulo tambm que h um
aprofundamento de todas as questes pertinentes s companhias pblicas brasileiras a partir
de suas fundaes, trazendo tona suas matrizes jurdicas. A importncia dessa investigao
legal crucial para a discusso, pois uma companhia de dana s pblica quando constituda
por lei. Para me auxiliar nessa tarefa, trabalho com Di Pietro (2010), Vieira (2006, 2008),
Agamben (2009) e Pinker (2008).
A replicao do modelo de companhia oficial, no Brasil, identificada nos captulos
anteriores, analisada no terceiro captulo, no qual Dawkins (2010) e Pinker (2008) que
colaboram para a sustentao dos argumentos.
Para finalizar, o quarto captulo diz respeito aos artistas que integram essas
companhias. Nessa questo, trago a teoria corpomdia de Katz e Greiner (2001, 2003, 2005)
para embasar a ideia de que o artista que trabalha nessas instituies do poder atravessado
por essas foras, que determinam sua atuao no ambiente artstico, bem como seu
entendimento de dana.
A proposta de estabelecer um dilogo com diferentes tericos amplia a discusso,
tendo em vista que no possvel tratar dessas instituies sem se valer de uma conversa mais
ampla, que no quer dizer geral, pois so muitas as interrogaes que se cruzam no seio da
oficialidade. Fazer uma sntese que acomode uma resposta conclusiva sobre a relao entre a
dana e o Estado seria, no mnimo, uma atitude irresponsvel, pois no se trata de encontrar
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respostas, mas, sim, de iluminar essa relao que permanece escondida nos corredores dessas
instituies. Dar visibilidade a essa relao, mostrando como ela acontece e os prejuzos
causados pela sua indeterminao, o mote central desta tese.
Nos quatro captulos, lano mo de vrias informaes retiradas de endereos
eletrnicos, pois no h bibliografia expressiva que trate das companhias pblicas. Vasculhei
DOs (Dirios Oficiais) de vrios estados e matrias de jornais em busca de maiores dados,
com pouco sucesso. O que se encontra como fonte de esclarecimento sobre essas companhias,
em seus sites oficiais, no pode ser levado em conta, tendo em vista que so dados
exclusivamente baseados em adjetivos que enaltecem suas existncias. Se eu no conhecesse
o contexto dessas estruturas, poderia me contaminar por tais informaes e, quem sabe,
escrever outra tese, em que discorreria sobre a importncia da dana pblica, negligenciando
todos os aspectos que impossibilitam seu fazer artstico.
Realizei entrevistas, gravadas em vdeo, com diretores e profissionais ligados
administrao das companhias. Essas entrevistas foram reunidas no DVD que acompanha este
volume, no qual consta um dilogo que promovi entre os diretores, sobre questes funcionais
comuns a todos eles, que dirigem essas instituies. No utilizei as entrevistas no texto da
tese, pois entendo que os depoimentos so muito potentes na fala de cada entrevistado, e no
como citaes. Portanto, de suma importncia que o leitor dispense um tempo para conhecer
o que cada profissional fala do seu fazer. Alm dele, existe tambm um CD, contendo
arquivos de vrios documentos importantes do sculo XVII. Alguns desses documentos
pertencem biblioteca digital da Biblioteca Nacional da Frana, Gallica, no podendo ser
utilizados para fins comerciais, de acordo com a Lei n 78.753, de 17 julho de 1978, desse
pas. Portanto, os textos so acompanhados do termo de compromisso de utilizao referente
a essa instituio. Entre eles esto:
a carta de inaugurao da Academia Real de Dana (1661), por Lus
XIV (verso em francs e traduo em portugus);
a carta de inaugurao da Academia Real de Msica (1669), por Lus
XIV (verso em francs e traduo em portugus);
a carta de 1672, por Lus XIV, modificando a estrutura da Academia de
Msica (verso em francs).
O acesso aos documentos do sculo XVII, mais precisamente do perodo de reinado
de Lus XIV, s foi possvel graas bolsa sanduche concedida pela CAPES. Durante quatro
meses, pesquisei nos acervos da Bibliothque Nationale de France (BNF), focalizando-me na
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Bibliothque-Muse de LOpra. Includos nesse CD esto, tambm, alguns dos tratados
sobre a dana do sculo XV, criados por artistas italianos e, documentos legais sobre as
companhias brasileiras. Dessa forma, alm de evitar um dispndio de papel, a organizao em
pastas digitais facilita a busca dos documentos.
Ressalta-se que a deciso de iniciar com o primeiro captulo dando nfase chegada
da famlia real portuguesa sustenta a hiptese de que as companhias pblicas brasileiras
replicam o modelo francs em dois pontos importantes: o papel de proeminncia que a cultura
francesa tinha na corte portuguesa e a relao colonial que a presena fsica da corte no Brasil
instaura um ponto se imbricando no outro.
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CAPTULO 1
1.1 Nos domnios da corte portuguesa
Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa
humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar
perfeio o tipo de civilizao que representamos: o
certo que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa
preguia parece participar de um sistema de evoluo
prprio de outro clima, de outra paisagem. (BUARQUE
DE HOLANDA, 1995, p. 31)
O vnculo com a colonizao da corte portuguesa, liderada pelo prncipe-regente D.
Joo VI (1767-1826)1 nas terras do pau-brasil
2, permite compreender porque, nos redutos da
oficialidade dos sculos XX e XXI, a instaurao de uma companhia de dana inspirada nos
modelos do centro europeu no causa estranheza.
No processo colonizador-colonizado, vai-se domesticando as relaes sociais,
intelectuais, culturais e burocrticas. Nos domnios do gosto e do jugo portugus, a aquisio
de um olhar interessado pelo que vem de fora ganha primazia. Trazendo de pases distantes
nossas formas de convvio, nossas instituies, nossas ideias, e timbrando em manter tudo
isso em ambiente muitas vezes desfavorvel e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em
nossas terras, nos explica Srgio Buarque de Holanda (1995, p. 31).
A corte desembarca no cais carioca3, aps uma escala na Bahia, em 7 de maro de
1808, trazendo consigo, alm de muitos portugueses convidados pela famlia real, seus
hbitos e costumes:
A Corte que chegou de Portugal, contudo, no primava pela elegncia e
luxo. Atolada em dvidas e abatida por uma viagem martima exaustiva e
1 De 1792 a 1799, D. Joo VI assina vrios documentos no lugar de sua me, a rainha de Portugal D. Maria I
(1734-1816), que, considerada demente, foi impossibilitada pelos mdicos de continuar seu reinado. D. Joo
assume como prncipe-regente at a sua morte e, em 1818, coroado rei de Portugal, permanecendo at 1826.
No Brasil, lidera a corte de 1808 a 1821. 2 Caesalpinia brasiliensis ou echinata, segundo a taxinomia botnica atual, ou simplesmente ibirapitanga, em
tupi, o pau-brasil teve importncia extraordinria na histria do Brasil. [] o comrcio do pau-brasil foi sem dvida a principal atividade econmica desenvolvida pelos portugueses nas terras descobertas por Cabral at
cerca de 1530 (VAINFAS, 2001, p. 471-472). 3 No intuito desta tese discorrer sobre a histria do Brasil colnia, e sim sublinhar os acontecimentos que
marcam o processo cultural dessa fase, em especial a investigao da relao dana-governo nela produzida.
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difcil, a famlia real e seu squito no eram to glamurosos como
idealizavam os colonos. [] Carlota Joaquina e as princesas portuguesas j chegaram lanando moda, se
bem que sem nenhuma inteno. Para fugir de uma epidemia de piolhos que
assolou o navio, as damas rasparam seus cabelos ou os cortaram bem curtos
e amarraram turbantes nas cabeas. A mulherada local, vida por novidades
e eufricas com a presena das altezas, no teve dvida e tosou seus longos cabelos, segundo os cronistas da poca. (PRIORE; AMANTINO,
2011, p. 210)
A presena da famlia real promoveu uma revoluo no Rio de Janeiro. A
pesquisadora do Arquivo Nacional carioca, Renata William Santos do Vale (s.d.), em seu
texto Construindo a Corte: o Rio de Janeiro e a nova ordem urbana, esclarece:
A transferncia da famlia real e da Corte portuguesa, com todo seu aparato
burocrtico e seus hbitos europeus, para a cidade do Rio de Janeiro em
princpios do sculo XIX, foi um projeto e um acontecimento de grandes
propores, sem precedentes na histria do Brasil, que deixou, certamente,
marcas profundas nas feies e nos hbitos da cidade e seus moradores, e na
colnia como um todo. O Rio de Janeiro viveu um verdadeiro surto de urbanizao, com grandes obras de reformas e melhoramentos que
transformaram a cidade na nova Corte, adequada a seu novo papel como
sede do imprio portugus. Porm, essas reformas implicaram mais do que
mudanas fsicas e geogrficas no espao urbano; criou-se mesmo uma nova
ordem urbana, na qual a cidade, seus habitantes e seus costumes foram
disciplinados moda europeia, emitindo um ar civilizado necessrio nova
Corte.4
Sem embargo, todo o movimento de mudana vai alm dos novos modos de
estruturao do governo, e as artes ganham um papel de destaque nesse labor. A exaltao das
artes francesas inserida na sociedade, com o objetivo principal de criar uma academia5 de
artes e cincias, tema sobre o qual Viviane Gouvea (s.d.), tambm pesquisadora do Arquivo
Nacional (RJ), no artigo Vida artstica no perodo joanino, escreve:
Em 1816, o decreto de d. Joo VI datado de 12 de agosto, atualmente sob a
guarda do Arquivo Nacional no fundo Tesouro Nacional, cria, ao menos no
papel, a Escola Real de Cincias, Artes e Ofcios, institucionalizando a
4Disponvel em:
.
Acesso em: 12 dez. 2011. 5 Os artistas tinham como tarefa o ensino da arte no estilo neoclssico e pedaggico francs, substituindo o
padro barroco portugus. Problemas financeiros provocaram atraso na inaugurao da escola, ocorrida em
1820 []. De outubro a novembro, a escola recebeu o nome de Real Academia de Desenho, Escultura e Arquitetura Civil; entre novembro de 1820 e 1824, chamar-se-ia Academia de Belas-Artes; e dali at 1891seria
Academia Imperial de Belas-Artes. (VAINFAS, 2008, p. 22)
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educao artstica de forma sistematizada. O decreto lanado alguns meses
depois da chegada de um grupo de artistas franceses, que viria a se tornar
conhecido por Misso Artstica Francesa.6
Dizia o decreto, cujo ttulo era Escola Real de Cincias, Artes e Ofcios:
Atendendo ao bem comum, que provem aos meus fiis vassalos de se
estabelecer no Brasil uma Escola Real de Cincias, Artes e Ofcios em que
se promova, e difunda a instruo, e conhecimentos indispensveis aos
homens destinados no s aos empregos pblicos da administrao do
estado, mas tambm ao progresso da agricultura, mineralogia, indstria e
comrcio de que resulta a subsistncia, comodidade e civilizao dos povos,
maiormente neste continente, cuja extenso no tendo ainda o devido, e
correspondente nmero de braos indispensveis ao tamanho e
aproveitamento do terreno precisa dos grandes socorros da esttica para
aproveitar os produtos, cujo valor e preciosidade podem vir a formar do
Brasil o mais rico, e opulento dos reinos conhecidos: Fazendo-se por tanto
necessrio aos habitantes o estudo das belas artes com aplicao e
preferncia aos ofcios mecnicos cuja prtica, perfeio e utilidade depende
dos conhecimentos tericos daquelas artes e difusivas luzes das cincias
naturais, fsicas e exatas: E querendo para to teis fins aproveitar desde j a
capacidade, habilidade e cincia de alguns dos estrangeiros, que tem buscado
a minha real e graciosa proteo para serem empregados no ensino e
instruo pblica daquelas artes; hei por bem e mesmo em quanto as aulas
daqueles conhecimentos, artes e ofcios no formam a parte integrante da
dita Escola Real das Cincias, Artes e Ofcios, que eu houver de mandar
estabelecer, se pague anualmente por quartis a cada uma das pessoas
declaradas na relao inserta, neste meu real decreto, e assinada pelo meu
ministro e secretrio de Estado dos Negcios Estrangeiros e da Guerra a
soma de oito contos e trinta e dois mil reis, em que importam as penses de
que por um efeito da minha real magnificncia e paternal zelo, pelo bem
pblico deste reino, lhes fao merc para sua subsistncia, pagas pelo Real
Errio, cumprindo desde logo cada um dos ditos pensionrios com as
obrigaes, encargos e estipulaes, que devem fazer base do contrato, que
ao menos pelo tempo de seis anos ho de assinar, obrigando-se a cumprir
quanto for tendente ao fim da proposta instruo nacional das belas artes
aplicadas a indstria, melhoramento e progresso das outras artes, e ofcios
mecnicos. O marqus de Aguiar do conselho de Estado ministro assistente
ao despacho do gabinete e presidente do meu Real Errio, o tenha assim
entendido, e o faa executar com os despachos necessrios, sem embargo de
quaisquer leis, ordens, ou disposies em contrrio. Palcio do Rio de
Janeiro em doze de Agosto de mil oitocentos e dezesseis = com a rubrica de
sua majestade = cumpra-se e registre-se. Rio de Janeiro vinte e dois de
Outubro de mil oitocentos = com a rubrica do excelentssimo marqus de
Aguiar, presidente do Real Errio.7
6 Disponvel em:
.
Acesso em: 24 set. 2011. 7Disponvel em:
< http://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=827&sid=101&tpl =
printerview>. Acesso em: 15 out. 2011.
-
18
Com as despesas pagas pelo monarca D. Joo VI, a Misso Francesa chega em abril
de 1816, estando sua frente o secretrio da seo de belas-artes do Instituto da Frana, o
francs Joaquim Lebreton (1760-1819). Fazendo parte de sua equipe estavam:
[] Jean Baptiste Debret, pintor histrico, Nicola Taunay, pintor; Augusto Taunay, escultor; Augusto Henry Grandjean Montigny, arquiteto; Simon
Pladier, gravador de medalhas; Franois Ovide, especialista em mecnica;
Lavasseur e Meunier, auxiliaries de arquiteto; Franois Bonrepos, escultor
ajudante. Para os ofcios mecnicos: Nicolas Enout, mestre de serralheiro;
Jean Level, mestre em construo naval e ferreiro; Louis e Hippolyte Roy,
carpinteiros; Fabre e Piliti, surradores de pelo. (GOUVEA, s.d.)8
Esse grupo de artistas deveria permanecer pelo menos seis anos no Brasil para
educar o povo mas, na viso de Gomes (2007), parece no ter cumprindo esse fim:
Em vez disso, o que os franceses fizeram mesmo foi paparicar o rei e a corte
que garantiam seu sustento nos trpicos. Coube a eles organizar e
ornamentar as grandes celebraes que a monarquia faria no Brasil nos
quatro anos que antecederam a volta para Portugal e que incluiriam o
casamento de D. Pedro e a princesa Leopoldina, o aniversrio, a aclamao e
a coroao de D. Joo VI. Para essas ocasies, os franceses ergueram arcos
monumentais nas ruas do Rio de Janeiro, organizaram peas e concertos e
pintaram cenas que se tornaram clebres. A misso foi, portanto, til
enquanto serviu a esse propsito. Passado o perodo de celebraes, ela se
desarticulou. Foi tambm duramente afetada pela morte, em 1817, do seu
principal inspirador e protetor, Antnio de Arajo e Azevedo, o conde da
Barca. Lebreton caiu no ostracismo e retirou-se para uma casa na praia do
Flamengo, onde morreu em 1819. Os artistas tiveram as maiores desiluses, observou o historiador Tobias Monteiro. Com exceo da msica, a corte no se interessava pelas belas-artes. Nem os fidalgos nem a
gente rica possua quadros. (p. 220-221)
Nessa poca, o termo academia bastante expressivo para reforar o posto de um
monarca. na academia que esto os letrados9, os quais sero aqui entendidos como aqueles
capacitados a promover uma forma de arte que se distinga da ordinria, j que so
capacitados de um dom superior, quer dizer, so mais indicados a pertecerem a uma
instituio que pretenda defender os desejos da monarquia com a arte. No captulo 2 ser dada
8Disponvel em:
.
Acesso em: 25 set . 2011. 9 Termo que, no mundo luso-brasileiro, designava comumente os detentores de um saber especfico, ligado ao
uso da escrita, que os tornava aptos ao exerccio das chamadas profisses nobres, distintas do ofcio de
mecnico. (VAINFAS, 2001, p. 343)
-
19
nfase maior expresso academia, tendo em vista a importncia dela na Frana do sculo
XVII e nesta tese.
importante assinalar que, no perodo colonial brasileiro a expresso arte vai alm
do campo artstico, sendo empregada tambm para designar outras atividades:
[] a concepo de arte em vigor no Brasil colonial abrangia um campo extremamente vasto onde tambm, por vezes, a fronteira entre belas artes e
artes mecnicas no pode ser traada com muita nitidez. Ofcios sem relao
com a atividade artstica como hoje concebemos poderiam receber a
definio de arte: artes mdicas, artes militares, estendendo a referida confuso entre os campos artstico e mecnico a outros campos, inclusive
cientfico.10
J primeira vista, constata-se que o Brasil entra em contato com a arte europeia via
o entendimento de arte da coroa portuguesa. importante sublinhar esse aspecto, pois que, de
certa forma, ele produz um tipo de compreenso do contexto artstico estrangeirizado, esse
que se impe e cujos efeitos ainda hoje se fazem sentir.
Hbitos e rituais importados pela corte logo produziriam um efeito no
comportamento dos seus moradores, e as feies europeias comeariam a modificar seus
padres num mbito maior. O porto carioca recebe embarcaes de diferentes procedncias
que trazem alimentos, perfumes, roupas, tecidos, jias, bebidas, utilidades domsticas, livros,
entre outras mercadorias que vo sendo substitudas pelas que existem. tambm Gomes
(2007) que descreve as mercadorias que eram da moda nesse tempo:
A influncia francesa marcante. As lojas do Rio de Janeiro estavam
repletas de novidades que chegavam de Paris. Pela edio de 26 de junho de
1817 da Gazeta, o comerciante Carlos Durante avisava a seus clientes que
havia se mudado da Rua do Ouvidor, nmero 28, para a Rua Direita, nmero
9, primeiro andar, onde oferecia os seguintes produtos: Cheiros, gua de Cologne, pomadas, diversas essncias e vinagres para toucador e para mesa,
luvas, suspensrios, sabo, leques de toda a sorte, escovas e pentes de todas
as qualidades, sapatos, chinelas para homens e para senhoras, vestes de seda
e de marroquim, todas de Paris, caixas de tabaco de toda espcie, necessrio
para homem, caixas de costura para senhoras, velas, azeite para luzes
clarificado. Chapus de palha e de castor para homens e para meninos;
chapus de palha para senhora, guarnecidos e no guarnecidos; chapus de
seda, penachos, fitas, fils bordados de ouro e prata, flores artificiais,
casimiras, luvas, garas, vus, retrs, seda crua etc.; mesas, espelhos de
10
Disponvel em:
.
Acesso em: 25 set. 2011.
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20
toucador, espelhos de todo o tamanho com molduras, e sem elas; estampas,
painis preciosos; bijuteria verdadeira e falsa, como colares, brincos, anis e
enfeites; pndulas, relgios de repetio e de msica para homens e para
senhoras; vinho de Champagne a 480 a garrafa; um moinho porttil para
gro, (que) um s negro pode moer; um sortimento de livros franceses, e
muitas outras mercadorias a preos cmodos. (p. 225)
A famlia real fornece, assim, os princpios norteadores da sua gesto na colnia, em
que a importao est no primeiro setor da administrao. Buarque de Holanda (1995), ao se
referir tradio portuguesa, afirma: Podemos dizer que de l nos veio a forma atual de
nossa cultura; o resto foi material que se sujeitou mal ou bem a essa forma (p. 40).
H outros traos que devem ser sublinhados sobre a incluso da arte europeia que
antecede esse perodo. O ndio11
era praticante de rituais, sendo a dana e o canto muito
presentes na sua arte. A caa, a colheita, a vida e a morte eram celebrados por meio de
cerimnias que incluam, alm dos ornamentos no corpo, as danas e canes para cada
situao. Com a chegada no Brasil, em 1549, dos jesutas12
(padres da Igreja Catlica) que
faziam parte da Companhia de Jesus, fundada, em 1534, por Incio de Loiola (1491-1556), a
situao se modifica. Vindos com a expedio do primeiro governador-geral13
do Brasil,
Tom de Souza (1503-1579), os jesutas iniciam o processo de catequizao indgena. A
proposta desses religiosos era de converter os ndios ao cristianismo e aos valores europeus,
ensinando-lhes a lngua portuguesa, bem como outras disciplinas, e usando o ritual presente
na cultura indgena como forma de catequizao. Priore e Amantino (2011) afirmam que:
Ao longo de todo o processo de colonizao, os ndios que no aceitaram o
controle foram considerados passveis de extermnio e/ou de escravizao,
ao que os mecanismos da guerra justa foram essenciais. Ela era
desencadeada sempre que houvesse a denncia de que ndios hostis estavam
atacando fazendas, vilas e povoados, no aceitavam a catequizao e eram
antropofgicos. Originalmente, s o rei poderia decret-la, mas em alguns
momentos, alegando urgncia, os governadores a autorizavam. (p. 23)
Em Sucena (1989), h uma passagem significativa sobre a catequizao por meio da
11
A palavra ndio como designativa dos povos da Amrica resultou, antes de tudo, do equvoco de Colombo,
que julgou ter chegado s ndias, e no a um novo continente, em 1492. Mas a palavra prosperou no
imaginrio ocidental. No Brasil colonial, ndio era termo empregado para designar as mais diversas etnias,
grupos e culturas nativas. (VAINFAS, 2001, p. 304). At hoje, essa situao no se modificou. 12
Destacam-se os seguintes jesutas que vieram ao Brasil no sculo XVI: Padre Manoel da Nbrega (1517-
1570), Padre Jos de Anchieta (1534-1597) e Padre Antnio Vieira (1608-1697). 13
Forma de governo instituda por D. Joo III, em 1548, com o objetivo de centralizar, ainda mais, o controle
portugus na colnia.
-
21
arte: [] Os jesutas criaram o teatro14, no como uma expresso de arte ou sentimento
esttico, mas como um recurso de catequese, onde as figuras representativas buscavam um
ardil eficaz, impressionando a imaginao dos catecumenos (p. 26). Buarque de Holanda
(2010, p. 59) traz a carta do portugus Pero Vaz de Caminha (1450?-1500), que data de 1500,
endereada a el rei D. Manuel I (1469-1521) para anunciar a descoberta de novas terras,
intitulada Carta do achamento do Brasil, apontando algumas das impresses de Caminha
sobre os ndios: essa gente boa, escreve, boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-
ligeiramente neles qualquer cunho que lhe queiram dar. Tambm nessa pgina o autor narra:
O Padre Manuel da Nbrega (1517-1570), cinquenta anos mais tarde, dir a mesma coisa em
outras palavras, comparando os ndios ao papel branco, onde tudo se pode escrever.
No processo de catequizao por meio do teatro, as danas portuguesas foram sendo
includas, como se pode ler nesta colocao:
O Auto pastorial, representado em 2 de julho de 1583, foi escrito pelo Padre
Ferno Cardim: outros saram com uma dana de escudos portuguesa, fazendo muitos trocados e danando ao som da viola, pandeiro, tamborim e
flauta e juntamente representavam um breve dilogo, cantando algumas
cantigas pastoris. (SUCENA, 1989, p. 27)
Na carta de Caminha, o ndio apresentado tambm como um bom imitador na
tentativa de se comunicar ao descrever a segunda missa no Brasil: E quando veio ao
Evangelho, que erguemos todos em p, com as mos levantadas, eles se levantaram conosco e
alaram as mos, ficando assim at acabado; e ento tornaram a assentar como ns
(BUARQUE DE HOLANDA, 2010, p. 59).
Outras festas e comemoraes foram realizadas no sculo XVI, mas no sero aqui
apontadas, pois esse no o objetivo aqui, mas vale enfatizar que essas festas tinham por
funo exaltar a figura do rei e de seus representantes:
A Igreja e o Estado recorriam s festas para estreitar os laos entre
colonizadores e instituies, coloniais e metropolitanas, e todos os
segmentos da sociedade colonial eram convocados para as festas. A recusa
14
O Auto de Santiago considerado a primeira pea apresentada no Brasil, em 1564, na Bahia. Desde o incio, o teatro representou mais do que arte e entretenimento, revelando-se um importante instrumento de auxlio na
converso dos infiis, adquirindo um vis mais pedaggico ao ensinar aos pagos algumas noes como, por
exemplo, pecado e arrependimento. Dessa forma, atuou como veculo de pregao e convencimento. (O Arquivo Nacional e a Histria Luso-Brasileira. Festas coloniais. Disponvel em:
.
Acesso em: 15 out. 2011)
-
22
em participar poderia sugerir heresia ou subverso, de modo que os
membros da comunidade deveriam contribuir para o sucesso do evento.
(VAINFAS, 2001, p. 223)
Tambm so encontrados relatos que conferem ao sculo XVII e XVIII uma
atividade cultural constante na vida brasileira. J no princpio do sculo XIX, o Brasil
apresenta uma diviso mais ampliada. Sucena (1989, p. 28) menciona: O pas era dividido
em vinte provncias, possuindo quase todas sua casa de espetculos, visitadas por elencos que
se exibiam na corte ou grupos locais de amadores. A vida teatral da corte inicia-se, segundo
Gouvea (s.d.):
Em fins do sculo XVIII, um teatro um teatrinho, na verdade conhecido como Casa da pera do padre Ventura e localizado na antiga rua
do Fogo, atual rua dos Andradas, abrigou algumas apresentaes teatrais,
mas poucos registros deixou, alm de encenaes de obras do dramaturgo
portugus Antnio Jos.15
A pesquisadora segue numa explicao mais extensa sobre essa fase, em que sinaliza
a criao dos prdios teatrais, aps a destruio da Casa da pera causada por um incndio:
Pouco depois, em 1776, o pera Nova, de Manuel Lus, foi aberto nas
cercanias da praa do Carmo, de frente para o Pao. Seus espetculos eram
anunciados por timbaleiros (tocadores de tmpanos) e muitas vezes
terminavam em tumultos que se estendiam at o largo do Pao: o fundo
Polcia da Corte, do Arquivo Nacional, contm alguns exemplos da
preocupao da Intendncia de Polcia com o fato, como o alerta para a
necessidade de se inspecionar o teatro e aumentar a vigilncia para que tais
desordens e tumultos fossem evitados. O teatro junto ao Pao como era referido o pera Nova de Manuel Lus foi fechado pouco tempo depois da chegada da famlia real ao Rio de Janeiro para alojar empregados do Pao.
Contudo, logo a nova Corte ganharia um outro estabelecimento teatral, dessa
vez de propores bem mais avantajadas, j que deveria atender a uma
populao recm-chegada, em boa parte habituada a uma vida cultural mais
intensa do que a disponvel na colnia. O Teatro de So Joo teve sua
construo autorizada em 1810, e em 1811 so institudas loterias para
levantar fundos visando construo e manuteno do estabelecimento. O
teatro seria uma sociedade por aes e teria, teoricamente, exclusividade nos
espetculos por um perodo de dez anos. O empreendimento foi levado a
cabo por Fernando Jos de Almeida, e o prdio foi erguido no Largo do
Rossio, atual praa Tiradentes. Seu traado, em estilo neoclssico,
apresentava partido semelhante ao do Teatro de So Carlos de Lisboa, e
atribudo ao engenheiro e marechal de campo Joo Manoel da Silva. A
15
Disponvel em:
.
Acesso em: 25 set. 2011.
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23
inaugurao contou com a presena da famlia real e deu-se em 12 de
outubro de 1813 com um espetculo intitulado O juramento dos Numes,
texto de Gasto Fausto da Cmera e msica de Marcos Portugal; seguiu-se a
este drama lrico uma outra pea, O combate de Vimeiro.
Dentre os teatros16
construdos nessa fase, destacam-se: Real Teatro So Joo
(Bahia/1812), Teatro So Lus (Maranho/1815), Teatro Santa Isabel (Recife/1850), Teatro
So Pedro (Porto Alegre/1858), Teatro da Paz (Belm do Par/1878), Teatro Amazonas
(Manaus/1896). Vale ressaltar que foi no Teatro Rgio, antigo pera Nova ou Casa de pera
ou Teatro de Manuel Luiz, que a cidade do Rio de Janeiro preparou a chegada da corte em
1808, conforme se observa abaixo:
Tudo comea no Largo do Pao, no Rio de Janeiro, onde funcionava, em
1808, uma casa conhecida popularmente como Teatro de Manuel Luiz. Ex-tocador de fagote, danarino e cmico portugus, Manuel Luiz havia
construdo uma das primeiras casas de pera da cidade. Seu teatro era um
grande sucesso, mas comeava a ficar pequeno para as pretenses dos
artistas que se instalavam na cidade.
Com a vinda da famlia real em 1808, uma nova classe poltica e intelectual,
quase toda formada por membros das famlias nobres portuguesas, chegava
ao Rio, trazendo msicos, atores, compositores.
Esse conjunto de artistas de primeira ordem, muito estimados em Portugal,
pretendia encenar aqui os grandes musicais e espetculos de gala
apresentados em Lisboa. (MONTEIRO, 2008)
Nesse mesmo teatro se apresenta o coregrafo nascido na Espanha e filho de
franceses, Joseph Antoine Louis Lacombe (1786-1833). Com o nome de Real Teatro de So
Joo, essa casa reinaugurada em 1813, e Lacombe ser o responsvel pelas danas de O
juramento dos Numes, um drama-lrico de D. Gasto Fausto da Cmara Coutinho (1772-
1852), que chegou no Brasil com a famlia real:
[] sofrendo a presso dos artistas que embarcaram junto com a Corte, o prncipe D. Joo bateu o martelo e determinou a construo de um novo
teatro no Largo do Rocio, atual Praa Tiradentes. O Real Teatro de So Joo,
como foi chamado, se transformaria em pouco tempo no centro nervoso da
vida social carioca, onde tambm eram realizados importantes eventos
polticos. (MONTEIRO, 2008)
16
Ao longo do sculo XIX, o universo do teatro, sobretudo o Rio de Janeiro, ganhou dimenses at ento
desconhecidas. Novos e mais apropriados locais para os espetculos foram inaugurados. Variados gneros
importados da Europa estrelaram nos palcos (alm de triunfantes peras, tragdias neoclssicas, dramas e
comdias romnticas, teatro realista, teatro ligeiro, operetas, revistas. (VAINFAS, 2008, p. 691)
-
24
Esse espetculo recebeu uma crtica acirrada no jornal recm-criado por D. Joo VI,
que havia determinado, em 13 de maio de 1808, a criao da Imprensa Rgia17: A oficina
foi constituda, originalmente, por um pesado material tipogrfico, destinado Secretaria de
Estrangeiros e da Guerra, recm-chegado da Inglaterra, junto com Antnio de Arajo e
Azevedo, titular da mesma Secretaria e futuro conde da Barca, em cuja residncia, na Rua do
Passeio, foi instalada de incio (BETTAMIO, 2010). Nela, publicou-se um peridico
intitulado O Patriota: Jornal literrio Poltico e Mercantil, este que foi o primeiro peridico
brasileiro a publicar artigos literrios, polticos e mercantis (BETTAMIO, 2010).
justamente nesse espao que Manuel Ferreira de Arajo Guimares (1777-1838) teceu seu
comentrio: Este trabalho vem mesmo a ser intil! (MONTEIRO, 2008).
esse teatro que movimenta o circuito artstico, cultural, social e poltico da Corte.
Muito frequentado pela realeza, as apresentaes cumpriam uma agenda diversa, e os
espetculos eram os seguintes:
A variedade de estilos presente nas apresentaes no palco do So Joo
inclua dramas lricos apresentao dramtica com interveno de canto e msica; comdias; e uma forma arcaica de dilogos encenados, de carter
burlesco encerrados com um nmero musical, originado na Idade Mdia,
chamado entremez, que se transformou em uma pequena pea prpria para
ser representada entre os atos de uma pea mais longa. (GOUVEA, s.d.)
Num depoimento da poca, de Theodor von Leithold (1771-1826), capito de
cavalaria da Prssia, que visitou o Rio de Janeiro em 1819, encontra-se: So quatro ou cinco
apresentaes semanais, que variam entre comdias, dramas e tragdias em portugus e
peras italianas acompanhadas de bailados (GOMES, 2007, p. 222).
Afora o fato do pblico admirar as peas encenadas, esse teatro tambm serviu de
palco para debates polticos acalorados: O tipo de espetculo apresentado no Teatro de So
Joo voltava-se para as elites (GOUVEA, s.d.). J Freire (apud Gouvea, s.d.) acrescenta: a
pera um espetculo ligado ao poder: sublinha, simboliza, representa, valida o poder18.
17
A Impresso Rgia, nica tipografia existente no Rio de Janeiro at a independncia, alm de imprimir a legislao produzida, fabricar livros em branco para escriturao, encadernar impressos e prover todas as
necessidades do ofcio de livreiro, tambm editava livros. Era administrada por uma junta diretora, qual
competia, alm de gerenciar, examinar o contedo de todos os textos para publicao, vetando temas que
atentassem contra a religio, o governo e os costumes da poca. Os livros impressos por ordem de sua alteza
real eram distribudos gratuitamente e os que no tinham a chancela da Coroa recorriam subscrio para
enfrentar os custos. BETTAMIO, Rafaella. Imprensa no perodo joanino. Biblioteca Nacional Digital (BND), 2010. Disponvel em: . Acesso em: 9 jul. 2012.
-
25
Duas companhias ocuparam o Real Teatro: de canto (sob a direo de
Ruscolli) e de baile (dirigida por Lacombe). O Real Teatro acabou por se
tornar um elemento fundamental no s na vida artstica e cultural da Corte,
mas tambm social e poltica. Assiduamente frequentado pela famlia real,
foi palco no apenas de peas, peras e danas incluindo a primeira apresentao de bal clssico no Brasil, em 1813
19 , mas de reunies entre
importantes figuras polticas e manifestaes que marcariam o processo de
independncia do Brasil.20
dentro deste contexto que se situa Louis Lacombe, o primeiro coregrafo que
chegou ao Brasil, em 1811, segundo Sucena (1989). Para iniciar a transmisso da dana neste
pas, Lacombe comea a lecionar21
. Seu primeiro espetculo tem o ttulo de I Due Rivali e
estreia no ano de sua chegada. Ele assume, em 1816, o cargo de compositor de danas do
Real Teatro de So Joo, onde permance por vrios anos, fazendo parte de suas atribuies:
obrigado a compor todos os bailes, cmicos, srios e de meio carter, que
lhes forem determinados, ensai-los, met-los em cena, distribuir gneros e
qualidade de danados, que devem entrar no entrecho das danas, e seus
finais; marcar as horas de ensaio; ensinar os figurantes; dar a relao dos
aprestos, que lhe so necessrios para cada uma composio, e finalmente
fazer da sua parte quanto puder para melhor servio pblico e bem da
empresa, representando os Diretores quando julgar oportuno e conformando-
se com suas resolues. (SUCENA, 1989, p. 34)
O final da citao evidencia, desde ento, os fundamentos da relao da dana com o
poder pblico no caso, o poder real: e finalmente fazer da sua parte quanto puder para
melhor servio pblico e bem da empresa, representando os Diretores quando julgar
oportuno e conformando-se com suas resolues (grifo nosso).
Lacombe torna-se o responsvel pela criao das danas nas festividades organizadas
pela corte e, em 1825, recebe o ttulo de mestre de danas da Casa Real, sendo substitudo,
aps sua morte, pelo seu irmo, Loureno Lacombe (1785-1839), que, na poca, era o mestre
de dana da senhora Dona Maria II (1819-1853), rainha de Portugal.
18
Disponvel em:
.
Acesso em: 25 set. 2011. 19
A autora refere-se ao espetculo j mencionado na pgina 28. 20
Disponvel em:
.
Acesso em: 25 set. 2011. 21
A dana no Brasil, no incio do sculo XIX, se destinava a qualificar as moas de boa famlia a viverem em
sociedade (adquirindo gestos refinados, postura elegante, silhueta esguia), mas no a profissionaliz-las. No
perodo de Lus XIV, a dana era a disciplina para qualificar um nobre para a vida na corte, como visto no
captulo 2.
-
26
No primeiro sculo da colonizao, as festividades seguiam os rituais
religiosos do calendrio cristo e movimentavam toda a populao,
caracterizando-se por uma europeizao dos costumes nas terras americanas.
Uma das razes possveis para a realizao dos festejos era a necessidade de
conter os impulsos pagos em terras brbaras, como se dizia poca. No sculo XVII, as camadas mais baixas da sociedade, antes meros
espectadores, foram gradativamente sendo integradas s solenidades
religiosas, as quais assumiram uma nova feio atravs da dramatizao de
situaes bblicas. Aos poucos, as festividades foram abrindo espaos para o
ldico e o profano, seduzindo cada vez mais a populao e tornando-se um
dos poucos eventos coloniais que congregavam as diferentes camadas
sociais em um mesmo espao fsico. Entre as principais manifestaes
estavam as festas do calendrio religioso (abarcando cerca de um tero do
ano), as congadas negras e as cavalhadas dos brancos luso-brasileiros
(representao da rivalidade entre portugueses e holandeses).22
Outros artistas estrangeiros por aqui desembarcaram, como a famlia francesa
Toussaint. O patriarca Auguste Toussaint (?) e sua esposa eram bailarinos, e com eles vieram
outros trs, sendo todos contratados para trabalhar no Real Teatro So Pedro, em 1815. Nessa
fase, Toussaint, alm de bailarino, tambm coreografava ao lado de Louis Lacombe, criando
os bals para o teatro.
Tendo em vista o incndio ocorrido no Real Teatro So Pedro, em 25 de maro de
1824, outro teatro, denominado Theatrinho Constitucional e inaugurado em 1 de dezembro
de 1824, abre suas portas para festejar a coroao e a sagrao de D. Pedro I (1798-1834)
como imperador do Brasil. Esse teatro reinaugurado em 1826, sendo chamado de Imperial
Theatro de So Pedro de Alcntara. Um dado bastante peculiar dessa inaugurao, que
merece destaque pelo tipo de entendimento que carrega, e que se faz presente at hoje, que o
seu diretor convida Toussaint para contratar um corpo de baile na Europa. Dessa feita, em
1826, a Companhia Francesa de Ballet realiza a sua estreia em palcos brasileiros. Nessa
contratao j est explcito o atestado de inferioridade colonial que contaminar o
desenvolvimento da dana no Brasil.
Pelo que foi exposto, pode-se identificar que os artistas que aqui produziam dana
no a faziam falar em portugus do Brasil. Buarque de Holanda (1995, p. 31) expe, com
clareza, esse anseio em importar ideias europeias:
22
O Arquivo Nacional e a Histria Luso-Brasileira. Festas coloniais O nascimento da princesa. Disponvel em: .
Acesso em: 15 out. 2011.
-
27
A tentativa de implementao da cultura europeia em extenso territrio,
dotado de condies naturais, se no adversas, largamente estranhas sua
tradio milenar, nas origens da sociedade brasileira o fato dominante e
mais rico em consequncias.
Sucena (1989, p. 41) confere Estela Sezefreda (1810-1874), sem muita certeza,
[] ter sido uma das primeiras bailarinas brasileiras a se dedicar dana teatral. Outros
tantos artistas estrangeiros foram responsveis pela invaso de estilos de danas que se
incorporaram ao iderio artstico brasileiro at final dos anos 1890. Cit-los seria uma tarefa
rdua sem que equvocos pudessem emergir, assim sero listados somente alguns desses
artistas23
, que desembarcaram no cais do Rio de Janeiro: os italianos Carlo Palagi (?), Luigi
Montani (178?-185?), Carla Ricciolini (?), Eugene Finart (?), Ana Trabattoni (?) e Marieta
Baderna (1828-1870), os portugueses Francisco York (?), Giuseppe de Vecchy (?), Miguel
Vaccani Junior (?) e Ricardina Soares (?), as francesas Marie Petit (?), Anita Monroy (?) e
Elise Prevost (?), entre muitos outros.
No fluxo dos artistas chegando da Europa, outros saindo do Brasil para aprender com
os europeus, por exemplo, filhos de famlias abonadas que partiam para estudar msica e
pintura, nesse cruzar do oceano, habituava-se o corpo e o gosto pelo movimento alheio. E que
fique claro que ser tambm um trao presente na dana que vir a ser produzida no contexto
da administrao pblica no diretamente vinculada ao poder real, bem mais adiante, no
incio do sculo XX. O ato de ir para fora ou trazer para dentro da colnia sublinha o
interesse pelos costumes, tradies e danas que eram praticados no alm-mar da gesto
portuguesa local. Os filhos das famlias abastadas portuguesas eram os que faziam esse
translado artstico. A populao dos habitantes com menos recursos, ficava margem e
mantinha suas tradies em famlia.
O abrasileiramento dos ncleos coloniais no impediu que muitas colnias
mantivessem, na medida do possvel, sua lngua, religio e escolaridade, de
modo que se tornou preocupao de vrios polticos o fato de descendentes
de imigrantes, j brasileiros, no conhecerem nem mesmo o portugus,
fechados nas suas comunidades. (VAINFAS, 2008, p. 154)
23
Para maior aprofundamento sobre esse assunto, ver A dana teatral no Brasil (1989), de Eduardo Sucena, A
dana no Brasil e seus construtores (1988), de Antnio Jos Faro, e A formao do bal brasileiro, de Roberto
Pereira (2003).
-
28
A descrio da vida na cidade carioca aqui apresentada tem a inteno de mostrar o
ambiente que vai gestar o surgimento da primeira companhia pblica de dana no Brasil, mais
adiante, em 1936, o Ballet doTheatro Municipal do Rio de Janeiro, assunto tratado nos
captulos 2 e 3 desta tese.
No incio de 1900, desembacaro no Brasil, com maior assiduidade, companhias
russas e francesas, bem como vrios artistas, que se tornaro o modelo artstico que servir de
base para as companhias pblicas que sero aqui criadas. Das que se apresentaram na cidade
carioca, listamos: Ballets Russes de Serge Diaghilev (1872-1928), em 1913; a bailarina
americana Isadora Duncan (1878-1927), em 1916; a companhia da bailarina russa Anna
Pavlova (1881-1931), em 1918; a bailarina italiana Cia Fornarolli (1888-1954)24
, em 1915 e
1920, acompanhada do bailarino russo Ricardo Nemanoff (?); a companhia do russo Leonide
Massine (1895-1979) e Vera Savina (1893-1964), em 1921, tendo no elenco a bailarina russa
Maria Olenewa (1896-1965) e o bailarino russo Pierre Michailowsky (1888?-1970)25
; o Ballet
Russe de Monte Carlo, em 1940; o Original Ballet Russe, em 1942, entre outros artistas e
companhias. No captulo 2, essa fase em que o apogeu o da tcnica russa, e que ser
emblemtica no currculo da primeira escola pblica de dana brasileira, ser tratada com
mais aprofundamento.
Chega-se aqui ao ponto crucial da discusso: embora somente alinhavando esse
importante percurso histrico, sinaliza-se a atmosfera em que a dana se institucionaliza em
solo brasileiro. A partir dessa constatao, cabem as seguintes perguntas: o que, de fato, se
torna estrangeiro nesse caso, quando a arte indgena, que predominava no pas antes da
chegada dos portugueses, dizimada e se torna a arte do outro, aquela que no se conhece?
Com a chegada da famlia real, oficializa-se aqui a lngua portuguesa que os jesutas
ensinavam, come-se a sua comida importada, veste-se com as suas roupas, dana-se conforme
24
Segundo o Dicionrio Oxford de Dana, a bailarina italiana Cia Fornarolli tambm era professora. Estudou na
Escola de Ballet La Scala de Milo com Cecchetti (1850-1928). Foi primeira-bailarina no Metropolitan Opera
de Nova York Ballet (1910-1914). Entre 1914 e 1916 danou em Barcelona, Madrid e Buenos Aires, no Teatro
Coln. Integrou a companhia do Teatro Costanzi, em Roma (1916-1920). Recebeu a nomeao de primeira-
bailarina absoluta no La Scala, de Milo (1921-1933). Tambm danou em vrios teatros europeus e com a
companhia de Pavlova, bem como apareceu em filmes italianos mudos. Em 1929, sucedeu Cecchetti, tornando-
se a diretora da Escola de Ballet La Scala, e em 1933 comeou a criar seus prprios bals. Por causa dos
ataques fascistas ao seu marido, partiu da Itlia para Nova York, onde inaugurou sua prpria escola (1944-
1966). Depois de sua morte, seu marido entregou sua coleo de memrias de dana para a coleo de Dana
da Biblioteca Pblica de Nova York. Disponvel em: < http://www.answers.com/topic/cia-fornaroli >. Acesso
em: 18 set. 2012. 25
Pierre Michailowsky escreveu A Dana e a Escola de Ballet em 1956, o primeiro livro sobre histria da dana
publicado no Brasil pelo Ministrio da Educao e Cultura.
-
29
a msica internacional. A rabeca26
, como era chamado o violino, que acompanhava as aulas
de Lacombe, substituda por pianos, e nesse vai e vem, outras culturas se misturam na arte
da dana, cujos ecos persistem no sculo XXI. Portugueses, franceses, italianos, holandeses,
ingleses e espanhis deixaram aqui os seus brases. Lega-se a essa trajetria o conformismo
com as regras dos modelos europeizantes, pois estes fazem parte do percurso colonizador. A
aceitabilidade dos ditames oficiais figura como marca registrada da colonizao e
circunscreve a existncia do pas. O enlace da dana com o poder, que se consolida com a
presena da corte portuguesa no Brasil, ser recorrente na existncia das companhias pblicas
que surgiro, e as consequncias dessa reproduo sero explicadas nos captulos que se
seguem.
Na mescla de lnguas, hbitos e culturas, a dana vai galgando seu espao na pauta
da sociedade, mesmo que ligada ao estrangeiro. No possvel negar que o processo
civilizatrio imperou nos desgnos artsticos brasileiros. preciso entender que, quando se
traz a expresso processo civilizatrio, est se pensando a partir de Nobert Elias (1990-
1993). O socilogo se refere, em seus estudos, ao ocidente27
, e o que se prope aqui pensar,
no que diz respeito ao Brasil, que, desde a sua descoberta, o que se instaura a violncia da
catequese. Portanto, se associa, dessa forma, catequese e processo civilizatrio. Nas palavras
de Elias (1990, p. 23), o conceito de civilizao:
[] expressa a conscincia que o Ocidente tem de si mesmo. Poderamos at dizer: a conscincia nacional. Ele resume tudo em que a sociedade
ocidental dos ltimos dois ou trs sculos se julga superior a sociedades mais
antigas ou a sociedades contemporneas mais primitivas. Com essa palavra, a sociedade ocidental procura descrever em que constitui seu carter
especial e aquilo de que se orgulha: o nvel de sua tecnologia, a natureza de
suas maneiras (costumes), o desenvolvimento de sua cultura cientfica ou
viso de mundo, e muito mais.
O autor, ao se aprofundar ainda mais na questo do processo civilizatrio, mostra
que nesse movimento o controle social poderoso e salienta:
Com grande frequncia, parece s pessoas que os cdigos que lhes regulam a
conduta em relao aos outros e, assim, tambm os medos que as motivam,
26
Instrumento de cordas que remonta Idade Mdia. Alguns pesquisadores consideram que a rabeca originria
do norte da frica e outros pesquisadores consideram que ela advm da cultura rabe. 27
O ocidente ao qual Norbert Elias se refere diz respeito ao ocidente dos pases que se tornaram colonizadores, uma vez que no se refere ao que acontecia em todos os pases situados no ocidente geogrfico.
Cabem nesse ocidente os pases que formavam o mundo civilizado, que iria retirar da barbrie aquela outra
parte do mundo, com culturas distintas. Trata-se de um ocidente colonial.
-
30
so alguma coisa de fora da esfera humana. Quanto mais profundamente
imergimos nos processos histricos, no curso dos quais as proibies, bem
como os medos e ansiedades foram criados e transformados, mais aumenta
uma introviso que tem sua importncia para nossos atos, bem como para
nossa compreenso de ns mesmos: damo-nos conta do grau em que os
medos e ansiedades que motivam as pessoas so obra do homem. (ELIAS,
1993, p. 269)
E ainda acrescenta:
As tenses entre Estados, criadas pela dinmica irresistvel de suas lutas pela
supremacia sobre domnios cada vez maiores, encontram expresso na
constituio psicolgica da pessoa, em frustraes e restries especficas.
Impem a esses indivduos uma presso de trabalho e uma insegurana
profunda que nunca cessam. (ELIAS, 1993, p. 270)
nessa perspectiva do processo civilizatrio que ser tambm possvel
compreender as dinmicas burocrticas produzidas no Brasil colnia, conforme ser visto no
subttulo abaixo. Vainfas (2009) afirma que:
No resta dvida de que a corrupo endmica que marca o Estado brasileiro
deita razes em nosso passado colonial. Mas naquele tempo, o que hoje
chamamos de peculato apropriao de dinheiro pblico em proveito prprio no chegava a ser uma irregularidade. Pelo contrrio, era coisa institucionalizada e derivava do que o historiador e cientista poltico
Raymundo Faoro (1925-2003) chamou de Estado patrimonial, no qual as
esferas pblica e privada se confundem.28
1.2 Iniciando a burocratizao no Brasil
impossvel dissociar a discusso das companhias pblicas criadas no Brasil dos
aspectos administrativos que vigoravam neste pas quando este era ainda colnia de Portugal,
para entender os caminhos que a adminstrao vai percorrendo at chegar no sculo XXI.
Para iniciar essa discusso, na citao abaixo percebe-se um fenmeno da relao
entre a sociedade e o poder; em outras palavras, mantm-se uma relao estreita, nos dias de
hoje, com o pensamento produzido no Brasil colnia quando se refere importao de
modelos artsticos no contexto da dana oficial:
28
Disponvel em: < http://revistadehistoria.com.br/secao/capa/bandalha-liberada >. Acesso em: 9 jul. 2012.
-
31
Os brasileiros queixavam-se com frequncia de abusos burocrticos, mas
raramente criticavam a natureza do governo ou o fato de que funcionrios
acumulavam fortunas e criavam laos com a sociedade. Em vez disso, o que
os brasileiros queriam era conseguir um lugar para os seus filhos no servio
real. Essas oportunidades talvez tenham sido mais efmeras do que reais,
mas, desde que a burocracia permanecesse teoricamente aberta aos colonos e
pudesse ser abrasileirada, a elite brasileira aceitava como se fosse sua. (SCHWARTZ, 2011, p. 294)
Para Schwartz (2011), no havia, at os primeiros 30 anos, uma investida de Portugal
para criar uma legislao, e o autor explica o porqu: Terra de pau-brasil, de ndios nus e
papagaios, havia pouco mais no Brasil capaz de preocupar o rei ou de atrair muitos colonos
portugueses nos trinta anos que se seguiram da descoberta da colnia, em 1530 (p. 41). No
entanto, tratava-se de um grande pedao de terra que estava, como ponto de partida, sobre a
tutela de um rei:
[] a noo ampla de que a monarquia portuguesa se constitua como um corpo social, do qual o rei era a cabea que harmonizava as diversas partes desse imenso organismo por ser ele uma espcie de pai, chefe supremo, representante de Deus na terra, regulador nato dos sditos e vassalos. (VAINFAS, 2001, p. 336)
No tardou para as leis reais serem promulgadas. Sendo a margem das guas
brasileiras o cais para a chegada das embarcaes europeias, os estrangeiros que aqui
desembarcavam faziam as suas prprias leis: Para os poucos que permaneciam por algum
perodo nessa costa inspita, a justia era do tipo de fronteiras, dispensada pessoalmente, por
estocada de espada ou tiro de mosquete (SCHWARTZ, 2011, p. 41). Comeou a haver,
nesse momento, uma preocupao da corte portuguesa, pois, como a fronteira brasileira
passou a funcionar como um espao de comrcio martimo e essas atividades estimularam as
embarcaes de diferentes pases, pricipalmente inglesas e francesas, estava na hora de agir e
fincar a bandeira imperial nesse territrio. Quem capitaneia esse controle D. Joo III (1502-
1557), estabelecendo o governo central, entre 1533 e 1535, e dividindo o Brasil em capitanias
hereditrias:
Constituram a forma de administrao inicial dos domnios atlnticos
portugueses, primeiro nas ilhas atlnticas e depois no Brasil e em Angola. O
sistema tinha como modelo o antigo senhorio portugus de fins da Idade
Mdia, ento ajustado ao modelo ultramarino. Consistia na concesso real de
largos domnios, proventos e privilgios a particulares, incluindo atributos de
soberania, como o direito de fundar povoaes, nomear funcionrios, cobrar
impostos e administrar a justia. O sistema oferecia a vantagem de promover
-
32
a explorao das colnias sem nus para o Estado. VAINFAS, 2001, p. 92)
De incio, as doaes de terras ou sesmarias foram feitas a 12 fidalgos portugueses,
portanto 12 pedaos de terra em diferentes posies do mapa: As concesses eram feitas por
intermdio de dois instrumentos, a carta de doao, que delineava os poderes e privilgios do
receptor, e o foral, que declarava as obrigaes dos donatrios para com a Coroa e os
habitantes do territrio (SCHWARTZ, 2011, p. 43).
Passam a vigorar, nas distintas categorias de estruturao do sistema de jurisdio
civil e criminal que so implementadas, ocupaes diversas de cargos por funcionrios,
maneira essa que a Coroa encontrou de impor as tradies portuguesas que exigiam uma
organizao judiciria. Magistrado superior (ouvidor), tabelies e meirinhos executam
funes para julgar casos ocorridos, como morte: [] blasfmia, heresia, sodomia e
falsificao [] (SCHWARTZ, 2011, p. 43).
Essa iniciativa no foi efetiva, assim D. Joo III decide dar o poder do governo do
Brasil figura do governador-geral, na pessoa de Tom de Souza, como foi visto
anteriormente, que tinha por funo colonizar e centralizar o governo na colnia. Em relao
expedio de Tom de Souza, Schwartz (2011, p. 47-48) declara: Deve-se ter em mente
que as leis portuguesas no Brasil se aplicavam quase exclusivamente aos europeus. A
populao indgena permanecia, geralmente, fora do alcance do governo civil e
consequentemente no tinha acesso aos canais judicirios. As punies aos ndios eram
severas, mesmo com a proteo dos jesutas: caso um ndio cometesse alguma violao dos
cdigos, ele era queimado, enforcado, cortado em pedaos, entre muitas outras atrocidades; se
um ndio tentasse buscar a proteo de um funcionrio, era a palavra do portugus a deciso
final; assim, o ndio no tinha como recorrer, a no ser lutar e temer.
Vrias transformaes, com o passar dos anos, foram ocorrendo no mbito jurdico e
administrativo da colnia, at a chegada da famlia real. No perodo que vai de 1808 a 1822,
ser o rei D. Joo VI quem definir e designar o manejamento do governo: A Coroa
estabeleceu sua autoridade no Brasil sobre a base da identificao filosfica com a soberania
da lei e administrou a aplicao da lei por um governo de magistrados (SCHWARTZ, 2011,
p. 294).
Vainfas (2001, p. 337) chama ateno para o fato de que a lei no estava
desvinculada da tutela da justia, afirmando que:
-
33
[] Era a justia, portanto, a primeira e mais importante atribuio do rei, constituindo-se no mecanismo fundamental da relao entre sdito e
soberano. A aplicao da justia acabava por se confundir com a prpria
manuteno da ordem social e poltica do reino, da derivando o sentido de
justia enquanto aplicao da lei.
Os magistrados eram enviados de Portugal ao Brasil com o objetivo de controlar a
colnia. Por falta de definio de seus papis, muitos validavam suas tarefas somente como a
oportunidade de galgar uma promoo na carreira governamental. Utilizando seus poderes
para adquirir benefcios de vnculos com a elite, eles estabeleciam relaes que transitavam
no mbito da pessoalidade. Nas postulaes de Schwartz (2011, p. 292): O prestgio e o
poder da magistratura estimulava a elite colonial a fazer alianas com ela, e os magistrados,
por sua vez, no tardavam a usar sua posio em proveito prprio ou da famlia. Conforme
salienta Buarque de Holanda (1995, p. 146), no que diz respeito a esse tipo de vnculo no
sitema administrativo brasileiro, l-se: [] ao longo de nossa histria, o predomnio
constante das vontades particulares que encontram seu ambiente prprio em crculos fechados
e pouco acessveis a uma ordenao impessoal.
Schwartz (2011, p. 292) refora dizendo:
A Coroa usava as promoes, as honrarias, os privilgios e amplos
estipndios para elevar os magistrados acima dos interesses egostas ou da
influncia de outros. A formao de funcionrios que possam desempenhar
suas tarefas e tomar decises sine ira et studio um objetivo clssico do
governo burocrtico.
A administrao pblica colonial gesta, dessa forma, uma complexa e contraditria
estrutura, por meio da qual a sociedade se constitui:
Juzos de valor parte, a historiografia mais atualizada tem conseguido
analisar o modo como solues efetivas foram forjadas pelos agentes
administrativos no enfrentamento de inmeros problemas, considerada a
precariedade dos recursos e a indissociao estrutural entre interesses
privados e o exerccio do poder. (VAINFAS, 2001, p. 19)
As prticas burocrticas do perodo colonial se perpetuam no momento presente, na
perspectiva de que no se colocam em sintonia com as necessidades do que rege, no caso aqui
em questo, o mbito artstico: J se disse que as deficincias do governo portugus no
Brasil resultaram do transplante de formas de governo e instituies europeias, com quase
nenhuma adaptao para as realidades do Mundo Novo (SCHWARTZ, 2011, p. 294).
-
34
Os captulos 2 e 3 retornam a esse assunto, na medida em que esse o eixo central
do que aqui se discute, pois: [] o corpo est sempre simultaneamente (mesmo que de modo
conflituoso) inscrito tanto na economia do prazer e do desejo como na economia do discurso,
da dominao e do poder (BHABHA, 2007 p. 107). Essa passagem bastante significativa,
tendo em vista que o autor est explorando a questo da construo de uma teoria do discurso
colonial e sinalizando que [] a fora da ambivalncia que d ao esteretipo colonial sua
validade: ele garante sua repetibilidade em conjunturas histricas e discursivas mutantes []
(p. 105-106) e que: O objetivo do discurso colonial apresentar o colonizado como uma
populao de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a conquista e
estabelecer sistemas de administrao e instruo (p. 111). Nesse desejo de dominao do
colonizador, as evidncias ficam marcadas nas discriminaes e nas diferenas que
impregnam o seu discurso:
um aparato que se apoia no reconhecimento e repdio de diferenas
raciais/culturais/histricas. Sua funo estratgica predominante a crio
de um espao para povos sujeitos atravs da produo de conhecimentos em termos dos quais se exerce vigilncia e se estimula uma forma complexa
de prazer/desprazer. (BHABHA, 2007 p. 111)
-
35
CAPTULO 2
2.1 Oficializa-se a dana
A experincia e a tradio ensinam que toda cultura s
absorve, assimila e elabora em geral os traos de outras
culturas, quando estes encontram uma possibilidade de
ajuste aos seus quadros de vida. (BUARQUE DE
HOLANDA, 1995, p. 40)
No Brasil, quando se fala sobre companhias oficiais29
de dana, o que vem mente?
O que se sabe sobre elas? Como funcionam? Sob uma multiplicidade de denominaes como
corpos de baile, companhias pblicas, companhias estveis, corpos estveis, corpos artsticos
e equipamentos artsticos ou culturais30
, de modo geral, so companhias sustentadas pelo
dinheiro pblico. A verba pode vir diretamente do oramento ou por meio de benefcios
fiscais via leis de incentivo31
. Por fazerem parte dos equipamentos gerenciados pelo poder
pblico, essas companhias obedecem ao que o Estado regulamenta para a sua estrutura de
funcionamento. Mas o que de fato pblico, estvel, artstico e cultural nessas companhias?
Comear o captulo 2 com uma interrogao est associado inteno de propor uma
reflexo que se balizar pela dvida. A dvida entendida na possibilidade de, a partir desse
campo, estimular um aprofundamento no desenvolvimento das questes que cercam essas
instituies. Descartes (1973, p. 93), quando prope, na primeira Meditao, princpios e
argumentos para criar algo slido e constante nas cincias, tem na dvida seu alicerce.
Desfazendo-se das opinies s quais se creditava a validao de algo, ele diz: A primeira
Meditao tem como peculiaridade o fato de no se tratar a de estabelecer verdade alguma,
29
O termo oficial significa: executado pelo governo ou por uma autoridade administrativa reconhecida. (HOUAISS, 2009, p. 1379)
30 Essas duas ltimas denominaes so mais recorrentes no mbito do discurso da administrao pblica.
31 Oramento oficial: a verba que sai dos cofres pblicos derivada dos impostos pagos pelos contribuintes da
sociedade civil. O mecanismo de incentivos fiscais da Lei n 8.313/1991 (Lei Rouanet) uma forma de
estimular o apoio da iniciativa privada ao setor cultural. O proponente apresenta uma proposta cultural ao
Ministrio da Cultura (MinC) e, caso seja aprovada, autorizado a captar recursos de pessoas fsicas pagadoras
de imposto de renda (IR) ou empresas tributadas com base no lucro real, visando execuo do projeto que
aprovou. Os incentivadores que apoiarem podero ter o total ou parte do valor desembolsado deduzido do
imposto devido, nos percentuais permitidos pela legislao tributria: para empresas, at 4% do imposto
devido; para pessoas fsicas, at 6% do imposto devido. A deduo concorre com outros incentivos fiscais
federais, sem, contudo, estabelecer limites especficos, o que poder ser aplicado em sua totalidade no
incentivo cultura. A opo do contribuinte. (Ministrio da Cultura. Projetos culturais via renncia fiscal.
Disponvel em: . Acesso
em: 4 mar. 2012.)
-
36
mas apenas de me desfazer desses antigos prejuzos. Ele afirmava ainda que, para alcanar
esse desgnio de destruir as antigas opinies, era necessrio dedicar-se inicialmente aos
princpios sobre os quais todas as minhas antigas opinies estavam apoiadas. Para provocar
um ir alm, um debruar-se esmiuando o modo de construo do entendimento de
oficializao da dana no Brasil, as argumentaes privilegiaro uma viagem ao sculo XVII.
H um certo pseudoconhecimento, que provoca recusa no s da classe artstica, mas
principalmente dos rgos pblicos, em compreender de que outra forma essas instituies
podem ser pensadas. Para desfazer esses antigos prejuzos, elaborar a paisagem na qual as
companhias esto inseridas ser a proposta desse captulo.
Os estudos histricos sobre a construo do vnculo da dana com a administrao
pblica necessitam, alm da compreenso da nossa relao colonial com a corte portuguesa,
tambm do contato com documentos que so pouco conhecidos e explorados, que sero aqui
postos em circulao para colaborar com o diagnstico desse assunto, ainda pouco
investigado entre ns. Para tanto, importante conhecer a carta oficial32
que estabelece, na
Frana, em 1661, a Academia Real de Dana (LAcadmie Royale de Danse), cunhada pelo
rei Lus XIV, marcando o comeo do enlace oficial da dana no tecido institucional. Louis
XIV (seu nome francs) nasceu em Saint-Germain-en-Laye no dia 5 de setembro de 1638.
Conhecido como Rei Sol, foi o maior monarca absolutista da Frana, reinando de
1643 a 1715. Faleceu em 1 de setembro de 1715, em Versalhes. Por absolutismo entende-se:
Regime poltico que caracterizou as monarquias da chamada poca
Moderna, entre os sculos XVI e XVII. Nessa nova forma de organizao
institucional e jurdica, o rei foi colocado no centro da arena poltica,
concentrando poderes amplos, a partir de um longo processo que levou
derrocada do feudalismo e diminuio do poder do papado e do Santo
Imprio Romano-germnico, de origem medieval, na Europa crist.
(VAINFAS, 2001, p. 12)
Antes de apresentar este importante documento, a carta oficial, cabe relatar alguns
fatos que o antecedem e colaboram para contextualizar o propsito da monarquia no ato de
instaurar uma Academia33 voltada s artes, mais precisamente, fundadas com a proteo de
Lus XIII34
e Lus XIV.
32
Documento arquivado na Bibliothque-Muse de LOpra (Bibliothque Nationale de France BNF). Ser respeitada a grafia da carta.
33 As academias surgem na crise dos ideais renascentistas, expressando uma mudana na posio do artista, que
deixava de ser um arteso das guildas e passava a ser um intelectual, um terico. A primeira foi a Academia de
Desenho de Florena, instituda pelo pintor e arquiteto Giorgio Vasari (1511-1574), em 1562. Por
possibilitarem uma formao humanstica e cientfica, rompem com a associao da arte ao artesanato e com o
-
37
Para exemplificar a utilizao do ttulo Academia, Plissier (1909, p. 14) diz que
se encontram, desde 1570, cartas patentes de Charles IX35
acordando com o poeta italiano
Jean Antoine de Baf (1532-1589) o privilgio de criar uma Academia de Msica (Acadmie
de Musique). Esse ttulo, Academia (do italiano Accademia: concerto) foi solicitado por Baf
para marcar o incio exato