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SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Ana Rosa Gonçalves de Paula Guimarães
O duplo no Romantismo: o exemplo de E. T. A. Hoffmann
UBERLÂNDIA
2017 Universidade Federal de Uberlândia - Avenida Maranhão, s/nº, Bairro Jardim Umuarama - 38.408-144 - Uberlândia – MG
+55 – 34 – 3218-2701 [email protected] http://www.pgpsi.ufu.br
SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Ana Rosa Gonçalves de Paula Guimarães
O duplo no Romantismo: o exemplo de E. T. A. Hoffmann
Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Psicologia – Mestrado, do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, como requisito parcial à obtenção do Título de Mestre em Psicologia.
Área de Concentração: Psicanálise e Cultura
Orientador: Dr. Caio César Souza Camargo Próchno
UBERLÂNDIA 2017
Universidade Federal de Uberlândia - Avenida Maranhão, s/nº, Bairro Jardim Umuarama - 38.408-144 - Uberlândia – MG
+55 – 34 – 3218-2701 [email protected] http://www.pgpsi.ufu.br
SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Sistema de Bibliotecas da UFU, MG, Brasil. _______________________________________________________ G963d Guimarães, Ana Rosa Gonçalves de Paula, 1985 2017 O duplo no romantismo: o exemplo de E.T.A.
Hoffmann / Ana Rosa Gonçalves de Paula Guimarães. - 2017. 187 p.
Orientador: Caio César Camargo Souza Próchno. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de
Uberlândia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Inclui bibliografia.
1. Psicologia - Teses. 2. Romantismo - Alemanha -
Teses. 3. Inconsciente (Psicologia) - Teses. 4. Sujeito (Filosofia) - Aspectos psicológicos - Teses. I. Próchno, Caio César Camargo Souza. II. Universidade Federal de Uberlândia. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. III. Título.
_____________________________________________CDU: 159.9
SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Ana Rosa Gonçalves de Paula Guimarães
O duplo no Romantismo: o exemplo de E. T. A. Hoffmann
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia – Mestrado, do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, como requisito parcial à obtenção do Título de Mestre em Psicologia.
Área de Concentração: Psicanálise e Cultura
Orientador: Dr. Caio César Souza Camargo Próchno
Banca Examinadora
Uberlândia, 01 de Junho de 2017.
Prof. Dr. Caio César Souza Camargo Próchno (Orientador)
Universidade Federal de Uberlândia – Uberlândia, MG
Prof. Dr. Carlos Augusto de Melo (Examinador)
Universidade Federal de Uberlândia – Uberlândia, MG
Prof. Dr. Pedro Heliodoro de Moraes Branco Tavares (Examinador)
Universidade de São Paulo – São Paulo, SP
Prof. Dr. Luiz Carlos da Silva Avelino (Examinador Suplente)
Universidade Federal de Uberlândia – Uberlândia, MG
Universidade Federal de Uberlândia - Avenida Maranhão, s/nº, Bairro Jardim Umuarama - 38.408-144 - Uberlândia – MG
+55 – 34 – 3218-2701 [email protected] http://www.pgpsi.ufu.br
SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Prof. Dr. Sérgio Kodako (Examinador Suplente)
Universidade de São Paulo – Ribeirão Preto - SP
UBERLÂNDIA
2017
Universidade Federal de Uberlândia - Avenida Maranhão, s/nº, Bairro Jardim Umuarama - 38.408-144 - Uberlândia – MG
+55 – 34 – 3218-2701 [email protected] http://www.pgpsi.ufu.br
AGRADECIMENTOS
À minha família: minha mãe, Rosângela, meu pai, Darci, minha avó, Maria Rosa e
minha tia, Rosita por todo o apoio emocional e financeiro.
Ao Prof. Dr. Caio César Souza Camargo Próchno por ter me aceito como orientanda e
por todos os ensinamentos durante o trajeto da pesquisa.
Aos Profs. Dr. Carlos Augusto de Melo e Dr. Luiz Carlos da Silva Avelino pelas
valiosas contribuições no exame de qualificação e por aceitarem o convite para participarem
da banca de defesa.
Aos Profs. Dr. Pedro Heliodoro de Moraes Branco Tavares e Dr. Sérgio Kodako
agradeço pela receptividade e prontidão com que se dispuseram à leitura deste texto.
Aos meus amigos e professores de Franca, agradeço por todo o incentivo, carinho e
generosidade de sempre.
Aos meus novos amigos, colegas e professores de Uberlândia.
Aos meus supervisores, amigos e pacientes da ONG GHIV.
Muito obrigada!
Em todas as criaturas com quem deparamos, percebemos em primeiro lugar que elas guardam uma relação consigo mesmas. Soa estranho, naturalmente, exprimir algo que é autoevidente; porém, só podemos progredir com as outras pessoas na busca do desconhecido depois de termos compreendido de maneira cabal aquilo que sozinho já conhecemos (Goethe, 2014, p. 54).
O que é o Romantismo? Qualquer arte ou filosofia podem ser consideradas como remédios da vida, auxiliares do crescimento ou bálsamos dos combates que postulam sempre sofrimento e sofredores. Porém, estes últimos pertencem a duas espécies: para uns o sofrimento provém de uma superabundância de vida; reclamam uma arte dionisíaca, e querem, concreta ou abstrata, uma visão trágica da vida; os outros sofrem, ao contrário, de um empobrecimento dessa vida, pedem à arte e ao conhecimento o repouso, o silêncio, o mar calmo, o esquecimento de si ou, no outro pólo, a embriaguez, os frenesis, o abalo e a loucura. À dupla necessidade destes últimos, responde qualquer Romantismo nas artes e no conhecimento (Nietzsche 2006, p. 210).
RESUMO
O duplo no Romantismo: o exemplo de E.T. A. Hoffmann Este trabalho tem por objetivo apontar causas e modos pelos quais o fenômeno do duplo se torna um dos símbolosdo Romantismo Alemão. Para tanto, o contexto histórico-social entre o final do século XVIII e meados do século XIX foi revisitado a fim de discorrer sobre as particularidades do panorama em que o sujeito estava permeado. Assim, foi possível notar que a eclosão da crise social também repercutiu para a existência conflituosa do sujeito com os seus “eus”, isto é, com as suas fragmentações e com as suas divisões. As principais características desse movimento artístico permitiram compreender o que buscava e sentia o homem romântico. Sendo assim, algumas das interfaces realizadas do Romantismo com a psicanálise visaram considerar os antagonismos psíquicos, bem como a apreensão das manifestações do lado noturno da alma humana, os aspectos do inconsciente e da fragmentação do sujeito, tornando-o um “divíduo”: uma parte de seu ser é consciente e a outra parte, inconsciente, preocupações estas que anteciparam a psicanálise. As manifestações do duplo na literatura do Romantismo Alemão tiveram como destaque o escritor E. T. A. Hoffmann e, por meio da leitura interpretativa de seus contos, A imagem perdida, O Doutor Trabacchio e Os Duplos foram percorridas as naturezas para as manifestações de tal fenômeno, que oscilou tanto para o não reconhecimento de si, como para a necessidade utópica de reencontro do sujeito romântico consigo mesmo. As manifestações do duplo evidenciam, portanto, a necessidade romântica de percebê-lo como pertinente ao “Eu real e verdadeiro”, enquanto ambição pelo princípio do absoluto. Contudo, Hoffmann desenvolve em sua ficção que o sujeito é um ser em si e de si mesmo fragmentado – um “divíduo”, que faz de sua existência o perpétuo conflito do ser, que almeja pela busca de compreensão de uma unidade atrelada perante aos lutos referentes quanto a sua origem e quanto a sua essência. A partir disso, existe a possibilidade do encontro com o duplo, como o “outro de si” ou como os “outros eus”, a fim de haver a permanente construção do sujeito e a eterna busca por seus fragmentos sociais e psíquicos. Mesmo com a possibilidade de observação de uma “forma particular de unidade”, esta se divide em si mesma. Simbolicamente, a vida pode ser uma criação literária, que oferece ao homem, mesmo ele sendo um “divíduo”, a oportunidade de que ele seja um escritor de si.
Palavras-chave: romantismo; duplo; Hoffmann; sujeito; inconsciente.
ABSTRACT
The double in Romanticism: the example of E.T. A. Hoffmann This study aims to point out causes and ways in which the phenomenon of double becomes one of the symbols of German Romanticism. In order to do so, the historical-social context between the end of the eighteenth century and the mid-nineteenth century was revisited in order to discuss the particularities of the panorama in which the subject was permeated, and it is possible to notice that the outbreak of social crisis also reverberated for the conflicting existence of the subject with his "selves", that is, with its fragmentations and divisions. The main characteristics of this artistic movement allowed to understand what the romantic man sought and felt. Thus, some of the interfaces of Romanticism with psychoanalysis aimed to consider the psychic antagonisms as well as the apprehension of the manifestations of the nocturnal side of the human soul, the aspects of the unconscious and the fragmentation of the subject, making it a "divided": a part of his being is conscious and the other part, conscious, preoccupations that anticipated psychoanalysis. The manifestations of the double in the literature of the German Romanticism had as a highlight the writer E. T. A. Hoffmann. And through the interpretative reading of his tales: The lost image, Doctor Trabacchio and The Doubles, have been traversed the natures for the manifestations of such phenomenon, which oscillated both for the non-recognition of self, and for the utopian necessity of the romantic subject's reunion with himself. The manifestations of the double thus evidence the romantic need to perceive it as pertinent to the "real and true self", as ambition for the principle of the absolute. Hoffmann, however, develops in his fiction that the subject is a self in itself and fragmented in itself - "divided" which makes of its existence the perpetual conflict of being, which seeks the understanding of a unity tied to the concerning its origin and its essence. From this, there is the possibility of the encounter with the double, as the "other self" or as the "other selves", in order to have the permanent construction of the subject and the eternal search for its social and psychic fragments. Even with the possibility of observing a "particular form of unity," it divides itself. Symbolically, life can be a literary creation, which offers man, even though he is "divided" the opportunity for him to be a writer of himself.
Key-words: romanticism; double; Hoffmann; subject; unconscious.
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS ............................................................................................................. 5
RESUMO .................................................................................................................................. 7
ABSTRACT .............................................................................................................................. 8
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 10
1.1 A Psicanálise e a Literatura: algumas questões teóricas e metodológicas ......................... 12
2 O ROMANTISMO ALEMÃO ........................................................................................... 18
2.1 O Contexto Histórico-social ............................................................................................... 18
2.2 As Principais Características .............................................................................................. 31
2.3 O Romantismo e a Psicanálise: algumas interfaces ........................................................... 44
3 O FENÔMENO DO DUPLO ............................................................................................. 59
3.1 O Duplo .............................................................................................................................. 59
3.2 Ernst Theodor Amadeus Hoffmann ................................................................................... 95
4 A LEITURA INTERPRETATIVA DOS CONTOS ...................................................... 112
4.1 A Imagem Perdida ........................................................................................................... 112
4.2 O Doutor Trabacchio ....................................................................................................... 135
4.3 Os Duplos ......................................................................................................................... 155
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 176
6 REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 180
10
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho propõe percorrer as manifestações do fenômeno do duplo enquanto
marca pertinente ao Romantismo, ocorrido entre o final do século XVIII e meados do século
XIX, mais precisamente o cenário desse movimento artístico na Alemanha. O destaque aqui
conferido ao escritor E. T. A. Hoffmann deve-se ao fato de sua grandiosidade enquanto
romancista e destacado escritor da literatura romântica. Recorrendo constantemente aos
desdobramentos do Eu em suas obras, revela a necessidade de que o angustiado homem
romântico, cindido e fragmentado, por meio dos mecanismos da duplicidade pudesse
encontrar consigo mesmo.
O sujeito, portanto, inserido nesse contexto histórico representa o saber enquanto uma
entidade transitória e em crise. A euforia na crença de um progresso, mediante o ecoar de um
novo mundo, prometido pelos avanços tecnológicos e pela Revolução Industrial e pela
Francesa, transforma-se em frustração e desencanto, visto os paradigmas sociais ainda
estarem presos à lógica do dinheiro e da matéria, tornando a vida quantificada, isto é, a
dominação do valor de troca foi sobreposto ao conjunto do tecido social. Dessa forma, a crise
embutida ao momento histórico também se expande a uma tensão convergida dentro do
próprio Eu.
O Romantismo, em sua práxis, pode ser considerado como um movimento que buscou
a unidade perdida. Por meio dos choques entre os opostos, do rebaixamento ao universo das
emoções e do olhar às camadas inconscientes da mente, ansiava por uma síntese, a qual
originou o direcionamento rumo à subjetividade e ao cultivo da interioridade, tendo por
desenrolar a necessidade do encontro do homem romântico com o seu Eu.
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Contudo, diante de um contexto desolador e dilacerador das imagens fragmentadas e
multiplicadas do Eu, o sujeito romântico, ao esconder-se de si, cede território às duplicações.
Portanto, diante do “espírito do tempo” e da afirmação de sua própria subjetividade, o sujeito
vislumbra-se com “um outro”, um estrangeiro de si. O duplo enquanto parte do Eu, ou como
composição dos vários “Eus” embutidos em um mesmo ser, aspira a uma possível
integralização, esta que, no entanto, tem seus caracteres ilusórios e idealizados. No
Romantismo, a princípio, busca-se por uma unidade perdida.
Entretanto, a unidade, a totalidade e o centro ambicionados pelo encontro com o “real”
e “verdadeiro” Eu são impossíveis, sendo que este é um caminho constante e eterno: a
superação dos opostos é a dialética da existência. Em Hoffmann, o Eu é desmembrado em
vários “Eus”, ou seja, o Eu sofre fragmentações e divisões. O sujeito é em si e de si um
“divíduo”, isto é, ele é composto por seu ser consciente, como também pelo seu ser
inconsciente. A possibilidade encontrada tendo em vista as contribuições de Hoffmann, para a
literatura romântica e, como temas ensejados ao posterior desenvolvimento da psicanálise são
as de que: no Romantismo, existe o almejo por uma “forma particular de unidade”, que pode
vir a diferenciar cada ser dos demais, contudo, até mesmo a “unidade particular” desmembra-
se e fragmenta-se, porque o sujeito é em si cindido. A observância de que há vários “Eus”
contidos no mesmo sujeito foram contribuições já apontadas e antecipadas pela ficção de
Hoffmann.
A particularidade notável ao duplo corresponde ao fato de que o único duplicado não é
apenas o objeto ou acontecimento, mas sim o próprio Eu. O fenômeno do duplo no
Romantismo Alemão, especialmente em Hoffmann, representa a dependência a símbolos
paradoxais e alternativos do cenário fantástico, contrapondo as descobertas científicas e os
racionalismos propostos pelo Iluminismo precedente. Sendo assim, o duplo assume seu
12
próprio conjunto de leis únicas, que intui expressar um Eu dividido, que se revela de forma
enigmática nos contos: A imagem perdida, O Doutor Trabacchio e Os Duplos.
Em suma, os objetivos dessa dissertação buscam, portanto, problematizar por quais
motivos o fenômeno do duplo ocorre, assim como a tentativa do homem romântico de
encontrar a sua singularidade, levantando como hipótese que a crise do cenário romântico é
também a crise do Eu. A partir disso, o trabalho também conduz à observância às formas com
que o Romantismo pode antecipar o conhecimento psicanalítico fundado por Freud no que diz
respeito às atividades mentais inconscientes, à importância da experiência emocional, à
singularidade subjetiva, aos dualismos da realidade psíquica e ao método de trabalho
psicanalítico, que busca o movimento de tolerância dos paradoxos.
1.1 A Psicanálise e a Literatura: algumas questões teóricas e metodológicas
O trabalho presente fundamenta-se em uma pesquisa qualitativa de caráter de
referência bibliográfica acerca do tema – o Romantismo e o duplo, sobretudo, exemplificados
nos três contos do escritor E. T. A. Hoffmann: A imagem perdida, O Doutor Trabacchio e Os
Duplos. Contempla-se ainda o método psicanalítico de pesquisa, o qual interpreta,
primeiramente, as impressões advindas da leitura dos textos referidos, para, em um segundo
plano, elaborar a escrita onde as sensações acerca dos contos tomarão marcas e efeito de
sentido. Para tanto, a investigação prioriza a intertextualidade, relacionando os enigmas ou
questões advindas com a literatura e a psicanálise, buscando significar as passagens
percorridas e o conhecimento da construção e constituição do fenômeno do duplo.
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A clínica psicanalítica é em si mesma uma modalidade essencial de pesquisa, assim
como os estudos dos fenômenos culturais. Hermann (1997) destaca a capacidade de o
conhecimento psicanalítico produzir saber sobre todo e qualquer fenômeno humano, em que,
as possibilidades interpretativas são fundamentais para sua práxis, independentemente do
lugar onde se efetiva. O psicanalista ainda propõe o termo Clínica Extensa para esclarecer a
aplicação do método psicanalítico em todos os contextos humanos, abarcando, com isso,
também, as correlações entre a literatura e as artes em geral, pertinentes às ciências e,
fundamentalmente, à própria psicanálise. Sendo assim, a interdisciplinaridade manifesta-se
em valor.
O modelo interpretativo não busca em si a construção de uma verdade, mas um
método que interroga todo o saber sobre o enunciado, implicando, com isso, de que um
conhecimento de si seja um eterno “requestionamento”. Por consequência, há o saber que
interroga – a teoria e o saber da interrogação – o método, e, portanto, a modernidade que
inaugura o desdobramento da consciência sobre si mesma, faz de si mesma, objeto de
conhecimento (Herrmann, 1997; Frayze-Perreira, 2002).
Portanto, primeiramente, far-se-á a contextualização histórico-social, a qual levará ao
levantamento das principais características do movimento romântico alemão, com o intuito de
explicitar as manifestações do fenômeno do duplo, sobretudo em Hoffmann. Nesse caso, para
se realizar o escopo teórico-literário serão utilizados os seguintes autores: Carpeaux (1985;
2012; 2013), Safranski (2010), Lukács (2015), entre outros, a fim de que se compreenda a
natureza de tal fenômeno no Romantismo. Serão percorridas algumas interfaces entre o
Romantismo e a psicanálise, a fim de observar os dualismos pertinentes à natureza humana e
ao conceito de indivíduo, no qual, o Romantismo antecipou para o conhecimento psicanalítico
e ensejou para as futuras correntes literárias.
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As teorias psicanalíticas vêm, por sua vez, fornecer ferramentas de apoio tanto para se
pensar os objetos em questão, quanto para o estudo de suas relações. Dessa forma, durante o
trabalho, as contribuições psicanalíticas formuladas por Green (1994); a psicanálise fundada
por Freud (1996; 2010); o desenvolvimento da interface entre a psicanálise e a literatura
desenvolvida por Kon (1996; 2003; 2011); a psicanálise referente quanto ao estudo do duplo
de Rank (2013), entre outros serão essenciais à elucidação da compreensão do fenômeno do
duplo.
De acordo com Kon (2013), a compreensão do pensamento freudiano e o modelo de
homem condizente com uma teoria da alma humana mostram que a psicanálise possui
ressonâncias e confluências próprias à literatura fantástica do final do século XIX. A literatura
se firma em um lugar de transição, onde campos duais (como por exemplo, a realidade e a
fantasia, o real e o irreal) eclodem à sobreposição de noções inconciliáveis, devido à busca
pelo mistério do inexplicável e pela presença da estranheza, que conduz a uma necessidade
reflexiva e/ou explicativa acerca destes mistérios, milagres ou enigmas. Nesse sentido, o
“homem-psicanalítico” seria dotado de uma interioridade, que também, abrigaria a
exterioridade do maravilhoso; teria uma subjetividade valorizada e particularizada. Assim, o
inconsciente freudiano é um universo psíquico que acolhe o mistério, o irreal, a
atemporalidade e os enigmas, os quais podem ser decifráveis.
A chamada grande literatura é de importância fundamental também para a psicanálise,
porque a narração ficcional de fatos novos integra acontecimentos reais ou verossímeis, nos
quais se misturam tempo e espaço, despertando no leitor horizontes inéditos e o envolvendo
em situações emocionais novas ou recordadas. Dessa forma, ambas as práticas atrelam-se,
fazendo despertar no outro a reflexão, a identificação, o estranhamento, o que revela a
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condição humana e as originais possibilidades de posicionamento ou pensamento frente ao
mundo e às circunstâncias.
As práticas em questão, tanto a literária quanto a psicanalítica, portanto, resultam do
mesmo homem preocupado com seu passado, a tradição, a cultura e o futuro. Todavia, a
literatura, por ser ligada à criação, abre horizontes ilimitados de sentido, que ultrapassam o
próprio autor e continua sendo sempre uma fonte inesgotável de conhecimento,
autoconhecimento e reflexão. É, portanto, marcada por sua atemporalidade.
Como destaca Kon (2011), a psicanálise é uma arte interpretativa, que traz, do poder
fertilizador das manifestações artísticas, o fazer engenhoso e inventivo, ao assumir o objetivo
de evidenciar e repelir uma perspectiva cientificista e tecnicista, as quais ainda saturam o
campo psicanalítico e que propõe para si uma atividade revestida de uma suposta
neutralidade, que apenas desvelaria as experiências traumáticas, as fantasias e os desejos
submergidos por meio do recalque. Nazar (2009) observa que a articulação da psicanálise e da
arte através do recorte com a literatura encontra-se justamente na linguagem inconsciente,
situada a partir da descoberta freudiana de que o artista escreve com seu inconsciente e
antecipa o analista, visto que, a palavra no contexto psicanalítico, assim como no literário
proporciona o encantamento, a ação mágica, o poder metafórico, nomeia e, estes são
“espaços” onde a linguagem e a vida constituem-se como uma unidade.
A linguagem, portanto, se apresenta com toda a sua potência criadora de uma nova
subjetividade: a linguagem que é palavra poética e não apenas condução de comunicação de
ideias de transmissão de um conhecimento já dado. Tal palavra não é mais descritiva e
acessória. Ela é literatura, o espaço de criação de sentidos e de realidades. Para Kon (2011), é
vinculada ao psicanalista, assim como ao escritor, a criação, o processo de inventividade e de
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desvelamento, sendo que, a linguagem poética, quando se oferece plena, pode reescrever a
experiência de cada história particular.
No entanto, Rosenfeld (1996) adverte ao uso indiscriminado da “psicologia profunda”
nas obras de arte, isto é, discuti-las como uma espécie de dados clínicos, a fim de investigar as
anomalias psíquicas de seus autores. Aponta também, que, alguns psicanalistas reduzem
problemas gerais a casos particulares, contendo certas psicopatologias e, a partir disso, negam
as respectivas obras, a universalidade configurada em Aristóteles, sobre a Arte Poética.
Contudo, em Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen, Freud (1907 [1906]/1996)
salienta a importância dos escritores ao conhecimento psicanalítico, em especial, aos estudos
fundamentalmente do inconsciente, que ultrapassam os elementos de análise da psiquiatria,
pois, se expande a uma visão de que a arte é uma fonte para a psicanálise, visto que antecipa e
aponta situações da condição humana. Assim como, por exemplo, em um texto literário, em
que a linguagem é plurissignificativa, determinados fatos buscados pela compreensão
psicanalítica podem ter muitas possibilidades interpretativas, porque a existência e o trabalho
psicanalítico estão em contínuo devir:
E os escritores criativos são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser
levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o
céu e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não deixou sonhar. Estão bem
adiante de nós, gente comum, no conhecimento da mente, já que se nutrem em fontes
que ainda não tornamos acessíveis à ciência (Freud, 1907 [1906]/1996, p. 20).
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Desse modo, Kon (2011) apresenta que muitos autores que exploram a região de
fronteira entre a psicanálise e o fazer poéticos e agruparam, primordialmente, sob duas
orientações gerais. De um lado, aqueles que utilizam o pensamento psicanalítico como
bússola teórica em sua tentativa de elucidar um suposto sentido oculto no impulso criador do
artista e/ou na obra por ele criada; e, de outro, há autores que procuram trazer para o interior
do pensamento e do fazer psicanalíticos a potência da fantasia criadora de realidades, força
intrínseca à criação artística.
A arte, ou nesse caso mais especificamente a literatura, assume na psicanálise o papel
de solo a ser explorado para que se legitime o alcance universal das hipóteses clínicas,
permitindo que se ultrapasse o interesse psicopatológico e terapêutico das formulações
freudianas para a criação de uma verdadeira teoria sobre o homem.
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2 O ROMANTISMO ALEMÃO
2.1 O Contexto Histórico-social
[...] A Justiça! O que os homens todos amam
E reclamam, desejam, não dispensam,
A ele toca assegurá-lo ao povo.
Mas ai!, que vale à mente humana engenho,
Bondade ao coração, à mão presteza,
Quando furor febril consome o Estado
E de um só mal inúmeros se geram?
(Chanceler – Goethe, 2013, p. 211).
Quem é que neste mundo não tem faltas?
Um quer isto, outro aquilo; nós... dinheiro.
(Mefistófeles – Goethe, 2013, p. 214).
A partir do tempo e espaço que compõem determinada época, pode-se tentar entender
as posturas e comportamentos de seus indivíduos. Dessa forma, o movimento romântico tem
por alicerces a Revolução Francesa e a Industrial, bem como os seus ideais propostos. O
sujeito, neste período, encontra-se submerso em novos inventos e tecnologias, a partir de
padrões científicos e racionais estabelecidos. Entretanto, suas emoções e inconformismo
sufocados se tornam o cerne de suas mobilizações e tentativas de escape. A rápida expansão
das concepções científicas, por outro lado, possibilitou novos rumos aos diversos níveis de
investigação.
O Romantismo, como ressalta Guinsburg (1985), é antecedido pelos Séculos das
Luzes, o qual abandonou a visão teocêntrica e teológica judaico-cristã, que concebia a
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História como um ciclo de revelação do poder divino através de seus atos de vontade, cuja
primeira manifestação seria a Gênese, ponto de partida para uma sucessão de intervenções
providenciais e miraculosas ao nível do humano e terreno, cujo termo seria o Juízo Final e a
instalação do reino beatífico dos justos e dos santos.
Carpeaux (1985) ressalta que o Romantismo foi o movimento que nasceu na
Alemanha por volta de 1800 e logo conquistou a Inglaterra e, a partir de 1820, a França e, por
conseguinte, instalou-se entre todas as literaturas europeias e americanas, acabando-se nas
tempestades das revoluções de 1848.
O acontecimento permeado pela Revolução Francesa despertou em toda a Europa e no
continente americano uma profunda emoção, exprimindo-se em uma literatura de tipo
emocional, que deu a si mesma o nome de “Romantismo” (Carpeaux, 2012). A história desse
movimento artístico, que além da literatura, abarca a pintura, a música e a arquitetura, pode
ser relacionado em termos de histórias das revoluções: foi produzido pela Revolução de 1789
e 1793 e foi desviado pelo acontecimento contrarrevolucionário da queda de Napoleão, em
1815. Reencontrou, porém, o impulso pela Revolução de 1830 e se encerrou com a Revolução
de 1848. Apenas durante as Guerras Napoleônicas que as classes dominantes conseguiram
atrair os românticos para o lado da reação.
A França foi a grande codificadora do Romantismo, pelo fato de que, no final do
século XVIII, o país apresentava um panorama propenso à explosão, pois, de um lado, havia
uma sociedade fechada, na qual a mobilidade social praticamente inexistia, e, de outro, as
massas estavam entregues à miséria e à opressão. As classes dominantes, formadas por uma
aliança entre a nobreza e o clero, articulavam mecanismos de comando sobre o resto da
sociedade: ordem terrena e ordem espiritual se ligaram, a fim de manter intactos seus
privilégios. No entanto, essa aliança foi desgastada, uma vez que passou a perder a capacidade
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de controlar a insatisfação popular, já que a discriminação política, o uso da força e a
sobretaxação dos impostos ajudaram a precipitar os indícios de revolta que culminou com a
Revolução de 1789. O desespero e a miséria das classes populares, o descontentamento
político das classes médias, o desejo da burguesia de traduzir o seu predomínio econômico em
superioridade política fizeram com que esses grupos se unissem e programassem a revolta.
Em 14 de julho, cai a Bastilha, símbolo do velho regime feudal e expressão máxima do poder
monárquico.
Esse quadro referencial se conecta à questão romântica, de acordo com Citelli (1993),
pois o ideário iluminista, base da doutrina ideológica da Revolução Francesa, insistia na
materialização dos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade. Ou seja, desse modo,
lutava-se por uma sociedade mais harmônica e que respeitasse os direitos individuais. Fato
esse que, nos primeiros atos da Assembleia Nacional, incitou a forte pressão dos camponeses
insurgentes que exigiam a distribuição de terras, ameaçando, portanto, o conceito de
propriedade.
A tendência inicial artística do Romantismo foi a de saudar tais ideias e as propagar,
colocando-se em uma espécie de porta-voz. O ecoar de um novo mundo, os originais valores,
a possibilidade de se concretizar a justiça social, a possibilidade de uma sociedade mais justa
e igualitária e o rompimento das barreiras decorrentes ao modo de produção feudal
contaminaram o universo dos românticos.
O Novo Estado, no lugar de exercer uma função repressora e discriminatória, poderia
agora, como almejava Rousseau, propiciar felicidade e garantir as liberdades individuais.
Sendo assim, os românticos são levados a identificar o Novo Estado à nação. Diante disso,
nos países em que se culminavam as lutas pela libertação nacional, eram relacionados quase
que mecanicamente ao Estado Novo, responsável para com as terras, para com a nação e para
21
com seus cidadãos. O país recém-liberto poderia vir a funcionar, dentro desse raciocínio,
como um agradável local para uma nova forma de satisfazer a vida. Contudo, tais promessas
acabaram em pura idealização.
A ideia de revolução, a absorção de pontos de vista recolhidos junto ao Iluminismo e
ao Liberalismo, a crença na possibilidade de alcançar a felicidade humana, motivaram toda
uma geração romântica, situando-a na rota das grandes transformações sociais e históricas que
poderiam redefinir positivamente os caminhos da humanidade. Essa visão foi, no entanto,
logo embaraçada pela própria dinâmica que haveria de marcar a ascensão da burguesia. As
novas formas de dominação e a aplicação dos princípios de liberdade, igualdade e
fraternidade, segundo os interesses da nova classe, formaram um movimento oscilante dentro
do Romantismo. A crença no progresso tendeu a se transformar na frustração do presente,
pois o mundo novo, tão prometido pela revolução, recheou-se de negatividade, dor e
desencanto. Também, o sentimento de descrença pode ter vinculações com a própria
consciência da inexorabilidade das transformações urbanas, como advento de um tempo que
ultrapassou a tradição agrária e com a vitória de um mundo inflexivelmente racionalista e
preso à lógica da matéria e do dinheiro.
A Revolução Francesa não aboliu a desigualdade entre os homens. A liberdade sem a
igualdade foi considerada insatisfatória, o que se propunha, já naquela ocasião, que se
reduzisse a distância entre pobres e ricos, ou entre os possuidores e os que nada tinham a
perder. Na França e na Alemanha, o espírito romântico foi marcado por uma profunda
concepção e tendência ao coletivismo, porque a vida seria contornada por uma espécie de
“aliança filosofante”, onde, escrevendo, criticando e discutindo as ações, encontrar-se-ia o
significado essencial da mesma vida, do amor e da amizade. O trabalho em conjunto na
22
comunidade, mesmo sendo um impulso simbólico, poderia ser significativo como o reverso
do individualismo e uma compensação para solidão e para a ausência de raízes.
A peculiaridade essencial do anticapitalismo romântico é uma crítica à moderna
civilização industrial burguesa, que inclui os processos de produção e de trabalho em nome de
certos valores sociais e culturais pré-capitalistas. De acordo com Löwy (1990), esse passado
pré-capitalista, na visão romântica, encontra-se combinado em uma série de virtudes, sendo
elas reais ou imaginárias, como, por exemplo, a predominância dos valores qualitativos
(valores de uso ou valores éticos, estéticos e religiosos), a comunidade orgânica entre os
indivíduos, ou ainda, o papel essencial das ligações efetivas e dos sentimentos. Esse passado
entra em contraposição com a civilização capitalista moderna, fundada na quantidade e no
preço; na mercadoria, no cálculo racional e frio do lucro, e no egoísmo dos indivíduos.
Quando essa nostalgia se torna o eixo central que estrutura o conjunto da Weltanschauung
[visão de mundo], encontra-se com o pensamento romântico stricto sensu, como, por
exemplo, na Alemanha, no início do século XIX. Ao se tratar de um elemento dentre outros,
em um conjunto político-cultural mais complexo, poder-se-ia falar de uma dimensão
romântica.
A característica central da civilização industrial burguesa, a qual o Romantismo critica
não é a exploração dos trabalhadores ou a desigualdade social de fato, mas concretiza-se pela
quantificação da vida, ou seja, a total dominação do valor de troca acima do conjunto do
tecido social. Todas as outras características negativas da sociedade moderna são
intuitivamente sentidas pela maior parte dos anticapitalistas românticos, como que fluindo da
nascente corrupção, como por exemplo, na religião, ao acúmulo monetário, ao declínio de
todos os valores qualitativos, a dissolução de todos os vínculos humanos qualitativos, a morte
23
da imaginação e do romance, a uniformização monótona da vida e a relação puramente
utilitária.
Na verdade, a recusa à adequação na sociedade burguesa pragmática está toda calcada
na tradição romântica antiliberal e antidisciplinar. É nitidamente romântica a aspiração a uma
forma de identidade absolutamente singular e única, radicalmente diferenciada de todas as
demais. No lugar de impulsos, há o tédio mortal e a impotência; no espaço da espontaneidade,
existe a estilização minuciosa; no lugar da restauração, há a resignação a um estado de
independência absoluto (Figueiredo, 2002).
Para Safranski, (2010), no diálogo com a vida dividida pelo trabalho, o espírito
criativo atrofia-se e, essa experiência passa a subsidiar a fantasia romântica da libertação,
onde os artistas tendem ao retrocesso e à fragmentação da vida: primeiro em si mesmos e no
círculo de amigos, depois, então, por exemplo, na vida em sociedade.
Foi Jean-Jacques Rousseau, considerado como o grande precursor do Romantismo, o
qual, no trecho dos seus Devaneios de um caminhante solitário, de 1777, introduziu, na língua
francesa, o vocábulo romântico, que até então significava “como nos antigos romances” e se
aproximava de tudo aquilo que poderia ser contornado como pitoresco, romanesco e fabuloso.
No entanto, os sentidos semânticos do termo romântico eram vistos também como
desordenados, confusos e opostos à disciplina, à regra, à classificação, enfim, oposto ao rigor
do clássico (Saliba, 1991).
Etimologicamente, o termo “romântico”, de fato, contém referência ao passado, à
literatura de língua romana da Idade Média, porque, estender o conceito de nostalgia
romântica é retomar ao Romantismo Alemão “clássico”, ao “paraíso perdido”, que foi a
sociedade feudal. Todavia, a referência à época medieval é ambígua na medida em que esta
sociedade continha muitas estruturas sociais diferentes: de um lado, as instituições
24
hierárquicas, como a cavalaria, as ordens religiosas, e, por outro lado, apresentava o
remanescente da comunidade rural gentílica (a Marche Germânica), igualitária e coletivista.
O tempo presente percebido como incerto e o sujeito margeado por instituições
opressoras, desencadeou em um retorno ao passado - ao mundo medieval, que tinha suas
contradições sociais, econômicas e políticas, mas que estaria repleto de lendas e mistérios, nos
quais poderia ser o ponto de encontro e refúgio dos artistas, haja vista que o adjetivo
romântico é derivado do substantivo romaunt (roman ou romant), o qual designa romances
medievais e de cavalaria. Entretanto, segundo Löwy (1990), a busca referencial a um passado
real ou imaginário não significou necessariamente a orientação reacionária ou regressiva:
poderia ser reacionária tanto quanto conservadora.
O Romantismo, como destaca Rosenfeld (1993), teve seus primórdios nos últimos
anos do século XVIII, o qual assimilou tendências do Pré-romantismo, onde é ao mesmo
tempo tributário do Classicismo e do grande arrebatamento filosófico idealista. Conscientes
das antinomias da moderna civilização industrial, os românticos sentem-se fascinados pelos
sonhos clássicos da unidade e reconciliação. Tal anseio se manifesta na Filosofia da
Identidade (Schelling), em um idealismo que se revela na Natureza, constituída como a
própria substância espiritual do homem, como uma força misteriosa, cujo efeito de contato
com a mesma seria concentrado na identificação com o divino, pela busca do
autoconhecimento e pela aspiração e inspiração ao infinito. O homem teria vocação ao
sublime e teria características divinas, por constituição; logo, a identificação com as forças da
Natureza revelaria uma das formas de retorno à unidade primitiva.
Segundo os apontamentos de Lukács (2015), na Alemanha, os jovens começaram a se
reunir com o objetivo de criar, a partir do caos, uma nova cultura, sendo ela, universal e
harmoniosa. Visto que o progresso externo era algo inconcebível, o entusiasmo voltava-se
25
para dentro e, com isso, o “país dos poetas e dos pensadores” superaria todos os demais em
profundidade, sutileza e força espiritual.
Com isso, Safranski (2010) aponta que a literatura alemã torna-se inteiramente
burguesa, mas, o seu protesto contra os abusos do despotismo e o entusiasmo exaltado à
liberdade eram autênticos quanto sua atitude antirracionalista. O espírito do movimento Sturm
und Drang [Tempestade e ímpeto] deu o princípio e lucidez ao genial, que estava adormecido.
O Romantismo é uma época áurea do espírito alemão, com grande irradiação
para outras culturas nacionais. Acabou enquanto época, mas o romântico permaneceu
com outra postura. Este quase sempre está em jogo quando um mal-estar diante do real
e do usual busca por saídas, mudanças e possibilidades de transcendência. O
romântico é fantástico, criativo, metafísico, imaginário, tentador, transbordante,
profundo. Não tem obrigação de consenso, não precisa ser útil à sociedade, sim, nem
mesmo à vida. Pode estar apaixonado pela morte. O romântico busca a intensidade até
o sofrimento e a tragicidade. [...] O romântico ama os extremos; uma política sensata,
por sua vez, ama o compromisso (Safranski, 2010, p. 355).
O Sturm und Drang foi um movimento literário romântico alemão - o Pré-romantismo
situado no período entre 1760 a 1780. Entre seus representantes, destacam-se Herder,
Hamann, Goethe e Schiller (Safranski, 2010). Os franceses, de acordo com as pesquisas de
Carpeaux (1985), consideravam Goethe como romântico, entretanto, para os alemães, Goethe
é o maior classicista. As duas partes apresentam igualmente argumentos para defender suas
respectivas teses: o subjetivismo de Goethe é romântico, mas sua forma de expressão é
indubitavelmente clássica.
26
Contudo, os componentes do Romantismo Alemão do final do século XVIII e começo
do século XIX propuseram diferentes círculos: houve o círculo de Berlim, com E. T. A.
Hoffmann e Ludwig Tieck; o círculo de Heidelberg, com Achim von Amin e Clemens
Brentano; os círculos de Dresden e de Munique, que se inspiravam no círculo de Heidelberg
e, finalmente, o círculo de Iena e dos irmãos Schlegel e Novalis.
A “Escola Romântica”, na Alemanha, agrupada pelos irmãos Schlegel, por volta de
1880, adquiriu voz na controversa revista Athenäum, de modo autoconfiante e, embora, por
vezes, doutrinário. O livre espírito filosófico de Fitche e Schelling propôs o encanto pela
saudade do passado e uma tendência para a noite e para o misticismo poético, como, por
exemplo, em Novalis. Para Safranski (2010), esse sentimento particular era o de um novo
começo, de um espírito livre de uma geração jovem, que se apresentava ao mesmo tempo
como severa e libertária para carregar o impulso da Revolução ao mundo do espírito e da
poesia.
A valorização da literatura e seu significado para a vida aumentam sensivelmente: lê-
se e se escreve mais do que anteriormente. O surgimento do Romantismo, portanto, está
marcado pela era de leitores e escritores obstinados. No entanto, todo o tumulto, as
metamorfoses políticas, a heterogeneidade profunda, não são, em realidade, senão as
diferentes vias de desenvolvimento possíveis a partir da matriz comum, que define o
Romantismo enquanto tal: a nostalgia das sociedades pré-capitalistas. A filosofia de vida ou a
concepção de mundo, no cenário do romântico, valoriza o romance, pois descreve a história
de um sujeito que não é mais uma entidade artificial, e sim, um ser de “carne e osso”,
constituído orgânica e historicamente.
O movimento entusiasmava-se por uma reação ao racionalismo que o Iluminismo do
século XVIII propunha. Os precursores do Romantismo valorizavam o efeito da emoção,
27
imediato e poderoso, em contraposição à razão. Os stürmer eram contra a literatura e a
sociedade do Antigo Regime. Deixando de lado a rígida métrica da poesia francesa divulgada
em grande parte por Herder, voltou-se para a poesia clássica de Homero, para a Bíblia
luterana, para os contos e histórias do folclore nacional nórdico. A paixão pela linguagem
cifrada e os hieróglifos tornava a língua mais próxima da inocência primeva. A linguagem
perfeita estaria no retorno e resgate dos mitos e daqueles mitos de raiz gnósticos – os contos
de fadas, os quais as ideias e pensamentos não são racionais, mas metafóricos e, nos quais, o
exprimível se tornava inexprimível.
A incompatibilidade, porém, ao mesmo tempo o desejo de compreensão e
reaproximação entre sujeito e sociedade é o tema típico do Sturm und Drang e, de muitas
correntes do Romantismo posteriores, tornando-se um dos motivos fundamentais do
Weltschmerz [dor do mundo], tão característico da época romântica.
A razão, conforme destaca Schiller (2011a), é fundamental à Ilustração e evidencia
juntamente com o irracional, o germe do Romantismo. O racionalismo e o irracionalismo,
entretanto, deveriam encontrar seu princípio por meio de uma atitude rumo ao ativo e
necessário sentimento de integração, a fim de que razão encontre força e apresente um
impulso para o sucesso, encontrado por meio do entendimento, que está presente no coração -
no plano emotivo, na subjetividade. O primeiro desses impulsos é a sensibilidade, em virtude
da emancipação e do sentir genuínos, a qual submete o homem às limitações do tempo,
tornando-o matéria. A matéria que não significa modificação da realidade, mas
transformações do conteúdo do tempo. O tempo preenchido é chamado de sensação, que se
manifesta através da existência física. Assim sendo, a razão deveria submeter-se a uma dupla
tarefa permeada por forças antagônicas, que, por sua vez não conviveriam de forma
harmônica, necessitando sobrepor-se à realidade interna e à realidade externa.
28
Nessa época dominada pela literatura romântica, a luz do Iluminismo perdeu o brilho.
A Era das Luzes não havia chegado às camadas mais simples, e nos círculos aristocráticos
brincava-se com a razão, como que com ela praticando uma espécie de oráculo. No final do
século, o estranho, o autossuficiente podia de novo aparecer como o fantástico. Safranski
(2010) pontua que os curandeiros, que antes haviam sido presos na workhouses, reaparecem.
As pessoas se juntam nas sociedades secretas; vão para as cidades para ouvir os profetas que
falam sobre o fim do mundo ou da volta do Messias. O clima geral se transforma. As pessoas
voltam a gostar do misterioso, a crença na transparência e possibilidade de prever o mundo
diminuíra. Lukács (2015) pontua, nesse sentido, haver a exacerbação do sentimento do Eu em
um sentimento místico de totalidade.
Como possíveis tentativas para se tentar definir o movimento romântico, ele pode se
expandir enquanto uma forma, um estado de espírito, um forte fenômeno histórico e, também,
como uma escola de pensamento. O termo romântico, entretanto encanta e humilha, uma vez
que pode se referir a uma atitude positiva, a um gesto condenável, um sonho, ou a um
alimento para o pleno exercício do imaginário humano. Amor e glória, sedução e prazer, ou
simplesmente irresponsabilidade e frustração, representam, muitas das antinomias imaginadas
ao ser empregar tal palavra.
Todavia, Citelli (1993) ressalta que, enquanto movimento, o Romantismo foi mais que
um intento de ação de um grupo de poetas, romancistas, filósofos ou músicos. Tratou-se de
um vasto movimento onde se asilaram o conservadorismo e o desejo libertário, a inovação
formal e a repetição de fórmulas consagradas, o desejo com o poder e a revolta radical. Berlin
(2015) enfatiza em sua “tese”, que o movimento romântico foi uma transformação tão
gigantesca e radical que depois dele nada mais no mundo permaneceu o mesmo.
29
Habitualmente o Romantismo, de acordo com Loureiro (2002), qualifica-se como um
modo de pensar no qual se empregam e exploram os conflitos, as contradições e os choques
entre os opostos, embora todas estas polaridades tendessem a ser resolvidas em uma síntese,
sobre a qual, o pano de fundo é uma unidade fundamental. A melhor definição de romântico,
para Safranski (2010, p. 17), vem de Novalis: “Ao dar um sentido elevado ao comum, ao dar
ao usual uma aparência misteriosa, ao conhecido a nobreza do desconhecido, ao fugaz uma
aparência de eterno, assim é que os romantizo”.
O estilo romântico para Loureiro (2002) pode ser definido por um sentimento de
ruptura, o qual foi vivido como perda, ou ainda, para Andrade (2011), o movimento buscou a
unidade perdida. Já Kiefer (1985) destaca o Romantismo como o rebaixamento corajoso ao
universo das emoções e Vizziolli (1985) revela que o movimento liberou as camadas
inconscientes da mente. O “programa” romântico, segundo Suzuki (1998), almeja pelo
reencontro do sentido originário por meio da potencialização qualitativa da vida, ou seja, por
exemplo, oferecer ao finito um brilho infinito, o que fez com que adquirisse uma expressão
corriqueira – a filosofia romântica. A partir disso, percebe-se a multiplicidade dos tipos
românticos, de modo a ser mais pertinente falar em “Romantismos”, no plural, do que em
“Romantismo”.
O Romantismo, portanto, é a expressão máxima do antagonismo posto entre a
individualidade e a universalidade, entre a ação e a contemplação, entre o sujeito e o objeto,
entre o Eu e o mundo, e, visa restituir a uma experiência de plenitude e de absoluto, por meio
da superação dos dualismos. Caracteriza-se, também, pelo movimento reflexivo do Eu em
torno de si mesmo, ao defender a agilidade da fantasia entre o espírito científico e o sentido
artístico.
30
A oposição entre o clássico e o romântico, para Loureiro (2002), constitui-se o cerne
da história do Romantismo, ou, ainda, nasce do contraste com o Classicismo e dos vários
polos opostos que são entrelaçados neste jogo: o antigo e o moderno, o ingênuo e o
sentimental. A crítica romântica, a partir disso, é motivada por meio da experiência de perda,
devido ao fato de que algo de precioso foi perdido, tanto ao nível do individuo, como da
humanidade. E, assim, a visão romântica se caracteriza pela dolorosa melancolia advinda do
presente, o qual carece de certos valores humanos essenciais, que foram vencidos, causando
também o sentimento de exílio, de nostalgia e de desenraizamento.
Diante do cenário desolador do mundo moderno, as críticas românticas caem sobre o
desencantamento do mundo e a tentativa de reverter este processo, por meio do interesse pela
magia e pelo esoterismo; pelo universo da noite, que inclui os sonhos e o fantástico; pelos
recursos da ironia e dos mitos. As quantificações do mundo sintetizado nos cálculos racionais
e no utilitarismo do mundo, a mecanização e a dissolução dos vínculos sociais contribuem
para as críticas dos poetas românticos, pois do isolamento e da solidão em sociedade.
Anterior à reviravolta romântica, o que predomina é a aceitação de que o máximo a
que o homem pode aspirar é reproduzir, pela imitação, os modelos antigos, fixando no
passado o ideal a ser atingido. Os clássicos, quando muito, buscavam a semelhança e não a
diferença. Moisés (2007) destaca que foi no Romantismo que começa a ser escrita uma nova
História, desconhecida dos antigos. A alma romântica anseia pelo novo, pelo gesto original,
pelo traço distinto, pela diferença, em síntese, de modo que o ideal a ser atingido não se
localiza mais no passado, mas no porvir. O novo rumo apronta para o futuro em permanente
construção.
Os românticos propuseram um novo contrato de inserção do homem no mundo, ao
formular uma crítica radical do projeto Iluminista e é exatamente isso que justifica as variadas
31
expressões do Romantismo: moral, política, social, antropológica, estética. Uma vez que o
universo romântico incorpora a noção de projetos, de configurações totalizantes, a
antropologia negativa romântica, para Maroni (2008), é permeada pela diferença e pela
multiplicidade, abertas para o infinito e visando a uma expansão sem fim. Apesar disso, os
românticos são paradoxais, pois ao mesmo tempo em que anseiam por um saber total
científico-religioso-artístico-filosófico, recusam a noção de sistema acabado e fechado.
2.2 As Principais Características
Não se perdem de vista a ambiguidade da natureza humana e o fracassado esforço em reunir o divino e o físico no Homem, e, como a fábula deve caminhar para o forte e bruto, então não se permanecerá no assunto, mas através dele se poderá ser conduzido a ideias (Carta de Goethe a Schiller - Goethe & Schiller, 2010, p. 139).
O que é uma síntese superior, senão um ser vivo? E por que temos de atormentar-nos com a anatomia, a fisiologia e a psicologia, senão para formar de alguma maneira um conceito da complexa unidade que se produz continuamente, por mais que a tenhamos decomposto em tantas partes? (Goethe, 2012, p. 115).
O romântico, por sua vez, não se contenta em “ser romântico”, mas faz do
Romantismo um ideal e uma política para sua vivência. A “romantização” significa,
sobretudo, simplificar e unificar a vida, isto é, libertá-la da dialética do ser histórico, que a
excluía de todas as contradições indissolúveis, oposição que oferece a todos os desejos
expressos em sonhos e fantasias de natureza romântica.
A liberdade de expressão refletida a partir do Romantismo expressou a maneira pela
qual o homem pode ultrapassar os limites do improvável e do estabelecido, como meios para
atingir suas aspirações frente a um mundo liberto de paradigmas. De acordo com Bornheim
32
(1985), o movimento romântico organizou-se a partir de rebeliões decorrentes do
inconformismo quanto aos valores propostos pelo cenário histórico e social e, com isso,
buscou uma inédita categoria de valores derivados do irracional, do inconsciente ou do
popular e histórico.
O Romantismo levado às últimas consequências representou a força que nutria a
condição de marginalidade destinada em uma sociedade, que se pensava a partir de conceitos
liberais. Para Figueiredo (2002), a música, a poesia e a pintura românticas mantinham com o
público uma relação contraditória, pois nelas estavam presentes tanto o escândalo e a
agressão, quanto a reverência e mesmo a admiração às grandes personalidades criativas, as
quais foram os gênios românticos.
Como o homem é parte indissociável da natureza, ele é visto como complexo,
conflitivo e ambivalente, glorificando-se tanto o sujeito como a natureza. O homem
pertence a um todo maior, cósmico, do qual ele só é uma parte insignificante. Porém,
essa visão não impede o interesse dos sentimentos e das paixões, em contraposição ao
mundo racional. O homem romântico não é moderado como o clássico, mas, pelo
contrário, capaz das ações excessivas, que revelariam os conflitos e as paixões abissais
que perturbam a alma romântica. É um homem imaginativo e criativo, cujo modelo
ideal seria o artista ou o poeta, que se aproxima intuitivamente do infinito e do
absolutismo com suas criações. Ferrater Mora considera que o romantismo
corresponde à alma fáustica e dionisíaca, em contraposição às manifestações da alma
apolínea (Lejarraga, 2002, p. 21).
33
Entre o final do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX, Moisés (2007)
conclui que o isolamento do poeta passa a ser experiência efetivamente vivida pelo homem
comum que, sentindo-se “excluído”, pode vir a se identificar com o poeta, desde que veja nos
devaneios e estranhezas da nova poesia confessional, o retrato de suas ansiedades pessoais,
incertezas e de autoafirmação. Partindo desse ponto, Safranski (2010) destaca que o poeta
assumiria, no Romantismo, o papel desempenhado pelo sacerdote na sociedade tradicional.
Entretanto, o poeta é acessível e permite que outros mergulhem no divino, isto é, seria
mediador do conhecimento e sua missão era a de transmitir ideias. A poesia reflete os grandes
acontecimentos espelhados pelas ideias, passando às coisas, como também acena aos séculos,
aos povos e aos impérios. Ainda, acerca da participação dos poetas, como enviados de Deus,
Safranski (2010) ressalta:
A união com Deus – ou melhor: a participação na divindade – não é algo da
vida eterna depois da morte. Tampouco pressupõe a existência de um legislador
celestial. Ela é muito mais a participação na vida eterna aqui e agora. A imortalidade,
explica nada mais é do que, “no meio do finito, torna-se uno e com o infinito e ser
eterno num momento”. Esta é a experiência do eterno no finito, que também Fitche
descreverá nos seus Conselhos para uma vida beata [Anweisung zum seligen Leben],
escritos pouco tempo depois. O eu, diz ele, que está absolutamente decidido, abre-se
com isso para o incondicional. Mas diferentemente de Fitche, para quem a ação se
transforma em êxtase, em Schleiermacher domina uma passividade infantil. Menos um
agir do que um receber: uma tomada de consciência prazerosa do “desaparecimento
sem ruído de toda a nossa existência no infinito”. Uma experiência que Freud,
34
seguindo Romain Rolland, chamará mais tarde do “sentimento oceânico” (Safranski,
2010, p. 133-134).
A obra de arte, sendo assim, alcança no Eu a intuição de si mesmo com o Absoluto. A
arte, como produto do entendimento, solveria as contradições entre o subjetivo e o objetivo, o
consciente e o inconsciente, o real e o ideal, a liberdade e a necessidade que o artista genial
supera e recebe a cada produção. O núcleo da estética romântica reside no rompimento com a
mímesis da estética clássica. Ela agora se torna poiésis, isto é, a ênfase recai na ideia de
produção e criação, no poder de conformação que é atribuído ao artista.
Ainda sobre a arte romântica, Benjamin (2011) pontua que sua teoria provém do
caráter representativo. Porém, nem todos os primeiros românticos concordaram com tal
afirmação, ou simplesmente a levaram em conta. O espírito romântico se embebedou pelo
fantasiar agradavelmente sobre si mesmo, pela reflexão propiciada pelas produções artísticas,
pela particularidade do conteúdo e por um meio privilegiado em que o pensamento se
desdobrou: um médium-de e da-reflexão [Reflexionsmedium].
A expansão do pensamento romântico foi uma crítica ao Iluminismo, ao liberalismo e
ao individualismo da ilustração. Enquanto o Iluminismo ressalta a igualdade dos indivíduos
entre si, o Romantismo acentua a singularidade única do sujeito. O próprio termo
individualismo nasceu na França como consequência de uma reação negativa ao pensamento
conservador de ideias e realizações da Revolução Francesa e, com este sentido pejorativo, a
expressão invadiu outros ares culturais.
35
Os românticos criariam, eles também, uma noção de individualidade, melhor
dizendo, de personalidade, não mais definido pelo isolamento e pela privacidade, nem
pela identidade social, mas pela capacidade de se autopropulsionar, autodesenvolver,
de criar e, na própria criação, transcender-se e integrar-se às coletividades e tradições.
Estas, por sua vez, também eram concebidas sob a forma da personalidade: espírito
novo, o espírito da língua, o espírito da religião etc. que são menos um conjunto de
traços identificatórios do que matrizes de experiências, representações, sentimentos e
possibilidades existenciais (Figueiredo, 2002, p. 141).
Desse modo, por meio do Romantismo, a noção de liberdade negativa – a liberdade
exercida no terreno da não-interferência do poder do Estado acerca das ações individuais –
passa a uma versão moderna na liberdade positiva, como a autonomia, cujos processos
implicam tanto na transformação dos sujeitos, naquilo que eles são de fato (a personalidade
singularizada), como na permanente perda de suas identidades convencionais: o tornar-se o
que verdadeiramente se é, contrapondo-se ao conservar os papéis e às máscaras socialmente
convencionais.
Destaca ainda Figueiredo (2002), que o espaço psicológico seja exatamente o que
abriga as forças alienantes do Eu, os elementos da identidade-estilo, as relações entre eles e os
processos de subjetivação/des-subjetivação, que o promovem incessantemente. Para Lejarraga
(2002), esse individualismo qualitativo, que celebra a singularidade do indivíduo, remete-o a
seu mundo interior, o que é de fato um dos valores básicos do movimento romântico.
O Romantismo desenvolveu, portanto, uma tendência fortemente individualista: o
centro do mundo é o Eu. Tudo tende a se organizar em torno do sujeito, caracterizando o que,
ao nível das funções da linguagem, se chama de função emotiva ou expressiva. O
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Romantismo levou seu individualismo a extremos, como um meio de compensação ao
materialismo do mundo e como uma proteção contra a hostilidade às coisas do espírito. Por
meio do momento místico ocasionado pela consciência do contato da alma com o divino,
Andrade (2000) sugere que as categorias de tempo e espaço são abolidas. O mesmo ocorreria
com a exaltação do Eu, cujos desdobramentos são conduzidos pela proposição Ich bin [Eu
sou].
Mais que meros clichês, os românticos sustentam grande interesse pelas temáticas
ligadas à morte, à doença, ao noturno e ao subterrâneo, pois, buscam com isso, a possibilidade
de plenitude harmônica que lhes é negada no cotidiano. Estas “saídas” são pintadas com as
tintas do maravilhoso, como, também, são exaltadas em seu caráter inexprimível e inefável. O
evacionismo romanesco é permanentemente a expansão geográfica, pois, ao se conquistar um
país após outro, via-se uma forma de transformação da utopia estética. Para Carpeaux (2012),
a poesia musical e filosófica reproduzia as esferas harmônicas das leis do Romantismo de
evasão. O imaginário utópico, de acordo com Saliba (1991), funcionou como um exercício
para conceber o transcendente em um esforço mental, para imaginar outras possibilidades e
saídas, ainda que envoltas pela atmosfera do sonho e da alucinação. Contudo, Lukács (2015)
considera que os românticos partiram de um voo heroico e frívolo aos céus e se esqueceram
da terra, não conseguindo superar a tensão existente nem mesmo entre a poesia e a vida.
A característica psicológica do Romantismo é o sentimento como objeto da ação
interior do sujeito, o qual excede a condição de simples estado afetivo, porque transcende a
intimidade, a espiritualidade e a aspiração ao infinito. A sensibilidade romântica, dirigida
rumo e pelo amor da irresolução e da ambivalência, separa e une estados opostos, sendo eles:
do entusiasmo à melancolia, da nostalgia ao fervor, da exaltação confiante ao desespero.
Contém também, o elemento reflexivo do ilimitado, do infinito, de inquietação e de
37
insatisfação permanentes de toda experiência conflitiva aguda, que tende a reproduzir-se
indefinidamente à custa dos antagonismos insolúveis que a produziram. Assim, o
sentimentalismo do século XVIII foi substituído por uma sensibilidade exacerbada, um maior
impacto no núcleo da alma. Kundera (1990), em seu livro A Imortalidade, faz a seguinte
observação:
A civilização europeia é supostamente fundamentada na razão. Mas também
poderíamos dizer que a Europa é uma civilização do sentimento; ela deu origem ao
tipo humano que eu gostaria de chamar o homem sentimental: homo sentimentalis [...]
É preciso definir o homem sentimental não como uma pessoa que experimenta
sentimentos [...] mas como uma pessoa que os valorizou. Desde que o sentimento seja
considerado valor, todo mundo quer experimentá-lo; e como todos nós temos orgulho
de nossos valores, é grande a tentação de exibir nossos sentimentos. [...] Do momento
que queremos experimentá-lo [...] o sentimento não é mais sentimento, mas imitação
de sentimento, sua exibição. Aquilo que geralmente chamamos histeria. É por isso que
o homo sentimentalis (em outras palavras, aquele que instituiu o sentimento como
valor) é na realidade idêntico ao homo hystericus (Kundera, 1990, p. 108-110).
A valorização dos sentimentos conduz, como afirma Kundera (1990), à imitação do
sentimento, que se torna, no processo da sua valorização, um disfarce de si mesmo, pois o
homo sentimentalis se transforma no homo hystericus. Tal fenômeno acontece em virtude da
impossibilidade de externalização da interioridade, pois, se pode falar sobre sentimentos, mas
não se consegue fazer com que o outro sinta o que um “Eu” sente. Valorizar os sentimentos,
38
no entanto, significa também perceber falhas e impossibilidades decorrentes nesta
comunicação; isto é, tornar-se um homo sentimentalis incompreendido pelo homo faber.
Ao penetrar no âmago da realidade, a imaginação penetra nos espaços mais intensos
do “Eu”, rompendo barreiras, ou mais precisamente, uma floresta selvagem – o
“inconsciente”. Os românticos, portanto, se sentem atraídos por esta região profunda do ser,
porque as dissociações, associações e fragmentações, que se cindem ou desintegram, fazem
domínio da expressão poética e de um reino encantando, no qual não há a racionalidade e nem
as leis cotidianas.
Como o vasto e integrado conglomerado geocultural, a nação era vista, sobretudo,
como manifestação inconsciente e espontânea do “gênio” ou “espírito popular”, em que todas
as manifestações históricas seriam, assim, portadoras privilegiadas de destinos misteriosos e
vastos objetivos. Este tom quase messiânico, raramente materializava-se em um único homem
ou herói, cuja missão seria redentora ou purificadora. Trata-se da nação, espécie de “messias-
plural”, que, de acordo com Saliba (1991), realizaria um ideal coletivo, primitivo, encoberto
por forças obscuras e insondáveis na história. Como tentativas de resgatar a unicidade
perdida, o homem, Deus e o Universo consistiriam um Todo, no qual a divindade estaria no
meio e entre todos. A indistinção entre sujeito e objeto seria fundida no homem por meio da
Natureza, na qual, inexistiria a distinção.
As recordações de uma terra, na qual se nasceu, é onde operam os grandes fenômenos
de sensibilidade. Nesta autêntica idolatria do tempo e da história, de acordo com Saliba
(1991), que é regida sob uma forma retrospectiva de idealização do passado, tendo-o como
refúgio quase sagrado, escondia-se um olhar aristocrático que fazia da tradição um imperativo
da história. Mas, por outro lado, esta ótica também envolvia um propósito progressista ou,
pelo menos, prospectivo, que ansiava igualmente em recorrer ao passado, mas como um
39
diálogo cruzado entre este e o presente, isto é, como uma autêntica evocação do pretérito. A
dialética entre o passado e o futuro transcorre frequentemente por uma negação radical,
apaixonada e irreconciliável com o presente, ou seja, com o capitalismo e com a sociedade
burguesa industrial.
A nostalgia pode ser vista, em alguns momentos, no Romantismo, como uma
formação reativa, uma defesa contra o poder dissolvente da melancolia. Esta, por sua vez,
pode ser vista como um momento de superação da nostalgia. Enquanto o exílio é sentido
como uma condição individual, a solução nostálgica domina a melancolia e essa se deixa
reduzir à nostalgia, ou mesmo se confunde com ela. Porém, quando sob o efeito de
afastamento, a pátria equivale, em estranhamento ao país estrangeiro e o exílio passa a ser
reconhecido como condição geral da existência, em que, se observa o progressivo triunfo da
melancolia. Andrade (2011) refere-se à importância e significados da nostalgia no cenário
romântico:
Jean Starobinski dedicou um estudo sobre a nostalgia. A nostalgia: teorias
médicas e expressão literária, o autor cita como sendo a origem desta palavra uma
tese, defendida em 1668 por um médico suíço, intitulada: Dissertatio Medica de
Nostalgia oder Heimweh. Esta última palavra também significa nostalgia, mas remete,
especificamente, a uma falta geográfica. Neste tratado, especificamente, Heimweh,
refere-se à patologia provocada pelo desejo de retornar à terra-mãe, que acometia os
soldados suíços a soldo soberanos estrangeiros. Em português, seria análoga ao banzo,
doença que acometia os escravos africanos; muitos deles sucumbiram vítimas desta
melancolia da terra natal. Se a Heimweh remete á falta geográfica, a Sehnsucht remete
à falta ontológica, que com os românticos – como o mito andrógino o evidencia – esta
40
nostalgia ontológica será acrescentada uma conotação erótica e epistemológica
(Andrade, 2011, p. 62-63).
O sonho de recuperação integral do tempo pretérito ultrapassava os valores políticos
restauradores da antiga ordem, ou acerca do controle da história, na medida em que a
ideologia acabou marcando o processo de edificar a nação-contrato dos doutrinadores liberais.
Tudo encaminhava à busca da essência de algo novo, prestes a desabrochar e até a redimir o
tempo perdido. No entanto, dominados pela mercadoria, este é o universo por excelência da
repetição, do “sempre-o-mesmo” [Immergleichen], disfarçado em novidade, do mito
angustiante do eterno retorno.
Os medos noturnos do não-ser, da ausência e da falta de sentido são evidentes no
Romantismo e, conquanto de onde a grande transformação decorre, pois, é durante a noite que
se visualiza a origem e o momento no qual o ser irrompe. O mundo, como destaca Safranski
(2010), não é um sonho, porém, pode se tornar, ao transfigurar a realidade e ao se assumir os
abismos noturnos da alma, onde se encontram o inconsciente e a poesia. Talvez, assim, no
universo dos sonhos, seja possibilitada uma nova sensibilidade diante das recusas oferecidas
durante o dia. O universo do Romantismo é percebido como clarões no meio da noite, onde o
romântico privilegia o nebuloso – o amanhecer, o entardecer, limiares entre a segurança do
dia e a incerteza da noite. Nesses limiares, lugar de origem da desconfiança, as fronteiras dos
objetos se perdem, a ambiguidade toma lugar, através do incerto e do contraditório. A atração
pelo lado noturno ou subterrâneo da vida subordina-se ao desejo de ampliação da consciência.
O gosto pela noite traduz o mistério, o sombrio e remete a um momento em que os
acontecimentos sobrenaturais, acoplados à imaginação, são associados. Também, o prazer
desencadeado pela “noite da alma” desvenda o modo de ser do melancólico ou lutuoso, cuja
41
dominação ocorre através das forças incontroláveis, inconscientes. Portanto, na noite, a
imaginação romântica desdobra-se em um mundo que provoca por meio da transmutação de
uma nova maneira de ver e conceber, tanto o mundo exterior, quanto o interno. Para
Rosenfeld & Guinsburg (1985), o elemento noturno avalia alguma expressão selvagem e
também patológica, refletindo, através disso, a inclinação mórbida.
Coligado com a perspectiva do mistério e do insondável, o Romantismo dedicou-se
determinantemente à valorização do Eu e da morte. Citelli (1993) ressalta que, a fim de se
afastar de um mundo incompleto e desajustado, o romântico opta pela morte, como forma
gloriosa, gesto definitivo e radical, que revela uma profunda indisposição com a sociedade. A
morte tornou-se um tema comum em quase todo o período romântico, revestindo-se de maior
ou menor dose de lirismo: ora remetendo a uma visão mais ingênua ora a uma crueldade
quase demoníaca.
Embora sob as fatalidades circunscritas na sociedade em que se vive o romântico,
muita das vezes o mesmo tende a mergulhar na melancolia e na aceitação de sua infelicidade,
exprimindo-se em um lirismo terno e, também, por vezes, mórbido e sombrio. Assim sendo,
veem-se ao mesmo tempo despontar o gênio da melancolia e da meditação. O gênio
romântico não teria pressentimentos, ou seja, seus sentimentos excederiam seus poderes de
observação, uma vez que ele não apenas observa, mas vê e sente.
Contudo, para Carpeaux (2012), nesse período, o pessimismo não é uma filosofia, e
sim uma Stimmung [temperamento]: a insatisfação de sujeitos insaciáveis por sensações e que
pertenciam ao ambiente passivo da Restauração, ou ainda, o desespero de sujeitos abúlicos,
incapazes de agir.
O homem, portanto, estaria destinado à insatisfação e à infelicidade, visto que o
caráter trágico do sofrimento, da dor e até da própria destruição implicam por si mesmos a sua
42
natureza e a condição humana. Nesse caso, o sofrimento e a dor são a condição própria do
humano, enquanto o prazer e a felicidade consistem em aliviar a dor ou em satisfazer
temporariamente um desejo.
Com o desejo insatisfeito e indefinido, o homem romântico enverga-se ao satanismo,
como forma de conhecimento, desviando-se das causas de conflitos dramáticos e teológicos,
com os quais, pactua de sua vontade própria e contra quem se debate. Lúcifer, anjo caído de
Deus, instiga a sede do poder e pelo conhecimento. Adversário e aliado, antagonista
necessário que transfigura a árvore do Bem e do Mal na árvore da vida, ao desencorajar o
homem a infringir as interdições de Deus-Pai, defronta-se com seu destino e com a morte: o
trágico embate do destino humano. Conforme salienta Nunes (1985), a ascensão e o decesso,
a subida e a queda vertiginosas tipificam, na lírica e no romance, a conduta espiritual dos
românticos que acompanharam a “turbulência fáustica” em que se forjou o “escudo de
sublimação ou do ideal do Eu”.
Através do processo de sublimação, o comportamento prende-se à Natureza, pois os
temas como amor e poder, por sua vez, são condensados em erotismo e satanismo. Quanto ao
satanismo, o homem, então, não seria o único agente responsável pela sua condição no
universo: sofreria interferências de Deus, quando assim obtivesse êxito em suas metas e, caso
transcorresse alguma adversidade, estaria subjugado por Lúcifer.
A concepção do “anjo caído” possuía admirável capacidade de atração para o
desiludido mundo do Romantismo, que se batia por uma nova fé. Haveria um sentimento
geral de culpa, decorrido pelo afastamento de Deus, porém, ao mesmo tempo, um desejo de
transformar-se em Lúcifer. Segundo Hauser (1998), até mesmo os poetas seráficos, como
Lamartine e Vigny, terminaram ao lado dos satânicos e se tornaram seguidores de Hoffmann,
43
Byron, Musset e Heine. Esse satanismo originava-se na ambivalência da atitude romântica em
face à vida e decorria de uma insatisfação religiosa.
Os românticos também tinham obsessão pelo lócus horrendus, o lugar horrível, feio e
sóbrio, que provocariam o medo e o espanto. Os cenários para as histórias envolviam,
geralmente, cemitérios, catacumbas, casarões/mansões/castelos assombrados, abandonados ou
em ruínas e florestas escuras. Há a presença de uma fauna característica, que contém animais
asquerosos, tais como: sapos, vermes, ratos, lagartixas; de animais peçonhentos, como cobras,
corvos, mochos, escorpiões, aranhas, lacraias e animais de mau-agouro, como corujas, urubus,
gatos-pretos, morcegos e sapos.
A ambivalência romântica fez-se através do confronto dramático do sujeito com o
mundo, possibilitada pelo “assujeitamento” humano, que, conduzido à vivência com a
Natureza - objeto de contemplação ou lugar de refúgio para o indivíduo solitário – provocou
tonalidades afetivas díspares, que vão do reconhecimento religioso à volúpia da
autoafirmação, da melancólica sensação de desamparo ao entusiasmo. Do mesmo modo, o
sujeito oscilou entre um sentimento de proximidade, de união desejável e prometida, de
compenetração a realizar-se um sentimento de distância, de afastamento irrecuperável ou de
separação inevitavelmente consumada.
Nesse sentido, o Romantismo abriu caminhos para que se percebesse que o divino e o
demoníaco – ainda que, o demoníaco, por exemplo, advinha do objeto externo, ou ainda, uma
personagem, a qual seria ainda neste momento plana – teriam apenas características positivas
ou negativas. Somente estes dois polos estavam em processo de percepção como dotados em
uma única interioridade, a qual seria o inconsciente, dotado do divino e do demoníaco,
estudado pelo fundador da psicanálise, Freud. Todavia, Lukács (2015) adverte para a vontade
romântica de unidade, contudo, ela sempre e necessariamente foi fragmentária.
44
2.3 O Romantismo e a Psicanálise: Algumas Interfaces
Contudo, por mais valioso que seja um experimento considerado individualmente, ele só adquire seu valor pela união e conexão com outros. Porém, justamente unificar e combinar dois experimentos que tenham alguma semelhança entre si exige, mas não na medida em que acreditamos. Dois fenômenos podem parecer consecutivos um ao outro, embora entre eles devesse haver uma grande cadeia intermediária para levá-los a uma conexão verdadeiramente natural (Goethe, 2012, p. 59).
[...] o inconsciente freudiano é dependente da literatura e da arte, cujos segredos ele pretende desvendar. Trata-se, antes de mais nada, de assinalar as relações de cumplicidade e de conflito que se estabelecem entre o inconsciente estético e o inconsciente freudiano (Rancière, 2009, p. 43).
A partir do século XVIII, foi possível observar uma redefinição das relações entre
sujeito/objeto, tanto no plano da ação, quanto no plano do reconhecimento. A razão
contemplativa, orientada para a verdade e concebida de modo receptivo de uma apreensão
empírica ou racional acerca da essência das coisas, cede espaço, progressivamente, à razão e à
ação instrumental.
De acordo com Figueiredo (2014), o sujeito empírico pode ser visto como um
importante fator de erro e de ilusão, uma vez que a produção e a validação do conhecimento
requerem o incremento do domínio técnico sobre a natureza, pressupondo, a partir disso, o
autocontrole, a fiscalização e a autocorreção do sujeito, os quais se tornam o foco das
preocupações epistemológicas e metodológicas, características de um projeto de psicologia
como ciência natural do sujeito. Contudo, tal projeto envolve contradições: de um lado, sua
natureza interna é útil à disciplina, devido ao método científico; porém, de outro lado, o
objetivo deveria submeter-se às práticas da pesquisa – ao controle, o qual se desenvolve na
interação com a natureza externa – seu caráter. O sujeito é atravessado, portanto, por diversas
rupturas, sendo de primeiro estado sua sensibilidade, afetividade e intuição, que conflitam
45
com a razão instrumental. Em uma segunda esfera, a própria razão se abre às pretensões de
um discurso racional, disfarçado de subjetividade.
A perspectiva instrumental da administração racionalizada, dessa forma, apresenta-se
como um projeto de ciência contra o sujeito, pelo fato de que há necessidade de se conhecer
para fiscalizar, controlar, prever e corrigir os elementos irracionais. Todavia, um conceito, por
exemplo, sobre o “bem” é individual e único, independente e irracional, sendo, portanto,
inacessível às leis científicas e sociais. Desta perspectiva, a psicologia, para tanto, seria
inviável, pois a ilusão transitória acerca do sujeito e do objeto não a justificaria enquanto uma
ciência independente. Figueiredo (2014) refere-se ao projeto científico da psicologia como
contendo as cisões pertinentes do indivíduo para si, do indivíduo para com o outro, assim
como um suporte de papéis sociais predefinidos.
As ideologias científicas do pensamento psicológico afirmam que o sujeito é um
objeto em que se legitima o poder e a dominação. Já as ideologias românticas complementam
que, além das questões acerca da dominação e do poder, a liberdade humana é indestrutível,
em que o sujeito é livre e a própria escravidão seria uma opção do sujeito. Tais ideologias
legitimam o isolamento do sujeito sobre si mesmo em um orgulho inconsequente de sua
própria subjetividade. No entanto, todas as características que foram excluídas pelas matrizes
cientificistas foram abarcadas na perspectiva intelectual chamada de vitalismo naturalista, em
que o qualitativo, o indeterminado, o criativo e o espiritual trocam-se em sinais. Contudo,
ainda permanece a divisão entre a razão e a “vida”.
As pesquisas de Figueiredo (2002) demonstram que o Romantismo pertence aos
valores da espontaneidade impulsiva e, na medida em que a identidade é delimitada, as forças
da natureza são transpostas. A potência dessas forças promove uma restauração do contato do
homem com as origens pré-pessoais, pré-racionais e pré-civilizadas do “Eu”, um contato com
46
os elementos da animalidade e da infância. Essa Restauração propulsiona uma espécie de
autodesenvolvimento, que, no entanto, é marcado por crises, experiências de desagregação,
adoecimento, loucura e até mesmo de morte.
Figueiredo (2014) ainda destaca que Goethe percebeu a identificação entre sujeito e
objeto e que, com o advento do Romantismo, houve um enfoque epistemológico mais
adequado às possibilidades das ciências naturais. Nestas disciplinas, garante-se a supremacia
da identidade entre sujeito e objeto e, simultaneamente, se instala o problema da comunicação
e da interpretação.
Dessa forma, o Romantismo é antes de tudo uma filosofia da expressão, da
representação simbólica, em que o resultado da intuição constitui-se pela superação da
distância entre sujeito e objeto. Mais que uma relação sujeito/objeto: é o fruir da estética.
O século XIX não foi “romântico” apenas em sua primeira metade; ao longo de
todos os seus decênios o seu orgulho cientificista, de aspecto sombrio e duro, pouco
alegre e afável, salvo alguma trivialidade monística, foi compensado e mesmo
superado pelo seu pessimismo, pela sua comunhão musical coma noite e com a morte,
em virtude dos quais nós o amamos e o defendemos contra o desprezo com que o trata
um presente de bem menor envergadura (Mann, 2015, p. 23).
O movimento estético em questão enuncia uma teoria do conhecimento, cujo Eu do
sentimento como método subjetivo de interpretação do mundo prevalece sobre o Eu da
consciência da razão metafísica. A consciência romântica vem resistente também ao “eu” da
cientificidade iluminista, que buscou reduzir o sujeito a um materialismo reducionista e a uma
47
causalidade fenomenal. Nesse caso, a ciência não pode ser um modelo de verdade aplicado ao
domínio humano. Lejarraga (2002) pontua que o Romantismo pode ser narrado como o
primeiro grande protesto contra o mundo moderno, contra o materialismo e o cientificismo,
ressaltando o predomínio do sentimento sobre o pensamento, do dinâmico sobre o estático e
do orgânico sobre o mecânico.
Porém, quando Descartes focaliza a interferência da singularidade de um
sujeito e de suas particularidades nas produções da racionalidade, seu gesto só faz
ressaltar a importância mesma da subjetividade. Essa focalização da subjetividade
como o que não se costuma à razão, ou como o que a confunda, abriu os canais para o
movimento oposto ao da valorização da razão cartesiana: a ênfase na emoção, uma
série de questões que causaram turbulência nas verdades e nos modos de viver
estabelecidos, prenuncia a própria modernidade, com tudo que trouxe de novidade e
subversão, e não apenas para os padrões tradicionais da Academia de Belas-Artes
(Maurano, 2003, p. 19-20).
Os românticos almejaram reconhecer todas as dimensões do ser, sendo ele constituído
pelo sentimento, pela intuição, pela emoção e pelo afeto. Com isso, ansiavam pela exploração
do domínio da interioridade humana em sua singularidade. No lugar de sofrer passivamente a
lei da ordem física e moral instituída pelos administradores do território humano, a
individualidade romântica é reconhecida como o ponto de origem de uma verdade. Cada
homem, pela dotação originária que constitui sua personalidade, é chamado a desempenhar
uma vida singular. O conhecimento de si, para os românticos, implica em uma passagem
48
obrigatória pelos componentes da cultura. E é por meio dessa passagem que será possível
diferenciar as aquisições da época e as exigências próprias do sujeito.
Um princípio vital inclui a probabilidade de multiplicação das mais simples origens
dos fenômenos por meio do crescimento rumo ao infinito e às mais extremas diversificações.
Um fenômeno em si e por si não é o suficiente. Ele necessita separar-se para assim poder se
manifestar. Para Goethe (2012), todas as coisas existentes sofrem atuação da vida e podem ser
pensadas através do dualismo. Destacam-se: “nós” e o objeto; a luz e a escuridão, o corpo e
alma; duas almas; espírito e matéria; pensamento e expansão; sensibilidade e razão; fantasia e
intelecto; ideal e real, ser e anseio. Em uma de suas cartas, Schiller ressalta, justamente, a
questão dos dualismos analisados por Goethe:
O senhor deve ter tido uma certa fase, e não muito breve, que eu gostaria de
denominar período analítico, quando, através da divisão e separação, o senhor
ambicionou um todo, quando a sua natureza havia como que rompido consigo mesma
e procurava restabelecer-se através da arte e da ciência (Goethe & Schiller, 2010, p.
52).
Há diversos dualismos na natureza humana, que foram inclusive evidenciados pelos
românticos, porém, enquanto grande característica e aspiração do Romantismo, a polaridade
universal que permite a natureza restabelecer ordem deriva de um equilíbrio, em virtude de
um desequilíbrio permanente, no qual tal mecanismo encontra-se na base de todo o existente.
A ambição romântica quanto ao postulado do absoluto, no entanto, propõe a recusa de todo
dualismo e afirma haver um monismo ontológico e epistemológico.
49
Os românticos, entretanto, incapazes de se disciplinar em uma viagem sem fim, de
acordo com Loureiro (2000), deixam grande parte das obras inacabadas, significando, com
isso, fragmentos nostálgicos do infinito, o que se transformará em uma das próprias marcas do
gênero romântico. A eterna inquietude, a busca infindável do Todo se torna, por isso, uma
manifestação do próprio sintoma da Sehnsuchtangst romântica, que se aproxima do objeto
originário, objeto de angústia; a marca da própria falta, que pode impulsionar a pulsão do
saber e o desenvolvimento do pensamento em direção à gênese de uma obra.
Da obra científico-poética de Goethe, os românticos herdaram, no plano ontológico, a
noção de forma e a ideia da natureza como uma potência criadora e transformadora, dotada de
uma temporalidade imanente. Os românticos resgataram e enfatizaram, portanto, o conceito
de conflito entre as forças antagônicas como substrato dos fenômenos naturais. No plano
epistemológico herdam, ainda, a identidade do sujeito com o seu objeto, que não deve ser
desfeita pelos métodos objetivos das ciências naturais iluministas. Já no plano metodológico
será o antielementarismo da apreensão globalizante das formas, o antimecanicismo das
explicações dinâmicas da criação e das metamorfoses dos seres vivos e a evidência na
experiência imediata, enquanto práticas científicas ocuparão o centro das teorias românticas
(Figueiredo, 2014).
Além de contribuir para a produção dos artistas românticos, Goethe não foi apenas o
ideal cultural de Freud, mas foi o ideal para toda a cultura alemã, visto ser poeta, cientista,
escrever sobre as cores e interessar-se pela paleontologia nascente. A influência da literatura
na obra freudiana não se desenha de forma linear, pois se realiza em vias de mão dupla, isto,
pois a referência às obras literárias são uma constante nos seus estudos, servindo
eventualmente como fonte de conhecimento privilegiado do inconsciente ao lado daquele que
lhe é fornecido pela clínica com seu pacientes.
50
Freud (1930/1996) ao escrever uma carta em agradecimento por ter conquistado o
Prêmio Goethe, relata que Goethe não teria rejeitado a psicanálise como tantos de seus
contemporâneos fizeram, porque, ainda segundo o psicanalista, o escritor alemão estaria
familiarizado com alguns dos pontos em comum do conhecimento psicanalítico, bem
próximos de conceitos e propostas da literatura e o poeta ainda nutriria aceitação pela força
dos primeiros laços afetivos das criaturas humanas. Freud, além do mais, ressalta que Goethe
sempre teve Eros em alta consideração, que acompanhou as expressões primitivas do poeta,
manifestações estas de modo não menos decisivos do que Platão o fez no passado remoto.
A temática entre a articulação da psicanálise fundada por Freud e do Romantismo
Alemão tem sido objeto de interesse desde o período em que o referido psicanalista era vivo.
As discussões sobre as possíveis afinidades entre as duas correntes de pensamento tiveram
como “patrono” Thomas Mann, cujo qual não hesitava em inserir a psicanálise freudiana na
linhagem dos pensadores românticos. As possibilidades desencadeadas por tais inter-
relacionamentos adviriam do interesse de Freud por temáticas que marcam a alma romântica,
como, por exemplo, o sonho, a loucura, a morte. Entretanto, o próprio Freud e alguns outros
estudiosos sobre o assunto não são unânimes quanto a tais aproximações.
Loureiro (2002) destaca a tentativa romântica de restituir uma experiência de plenitude
e de absoluto, contudo, para o conhecimento científico, Freud apontava os limites deste, a
precariedade de seus alcances, a parcialidade e efemeridade de seus resultados, isto é, haveria
a impossibilidade de um conhecimento totalizador. A autora (2002), em sua tese de
doutorado, analisa algumas possíveis aproximações e afastamentos entre o Romantismo
Alemão e a psicanálise. Contudo, conclui que o chamado “estilo romântico” na obra freudiana
não partilha de uma nostalgia da plenitude perdida, nem intui pelo reencantamento do mundo.
51
Freud critica a sociedade que lhe é contemporânea, acreditando que o homem possa ser um
pouco menos infeliz e, em linhas gerais, sua teoria é cética e desilusionadora.
Apesar disso, ainda, segundo Loureiro (2002), a psicanálise pode ser qualificada de
anti-racionalista, já que sua busca dirige-se ao noturno, ao sonho, ao instinto, ao pré-racional,
e a noção de inconsciente se inscreve em seus princípios. A obra freudiana contém referências
a diversos autores românticos, como Hoffmann, Goethe, Schubert, Schelling e vários textos
evidenciam o interesse do psicanalista por temas ligados também às tradições do ocultismo e
do misticismo românticos, tais como: o duplo, a possessão demoníaca, a feitiçaria e a
telepatia.
Anterior ao século XIX, o estudo sobre os sonhos atraiu a atenção de estudiosos,
místicos e poetas. Porém, a abordagem dos sonhos era mais literária e metafísica do que
experimental e científica. O escritor romântico alemão, Jean Paul fez experiências tentando
reter a consciência e impor a vontade para controlá-los e, com isso, pode ter precipitado o
interesse de Freud pela temática e aos possíveis significados latentes presentes no universo
onírico.
Explorador das profundezas da alma e psicólogo das pulsões, Freud se inscreve
na linhagem de escritores do século XIX e XX que – historiadores, filósofos, críticos
ou arqueólogos – opõem-se ao racionalismo, ao intelectualismo, ao classicismo, em
uma palavra, à fé no espírito do século XVIII e talvez mesmo um pouco do século
XIX. Ele sublinhava o lado noturno da natureza e da alma, veem aí o fator
verdadeiramente determinante e criador da vida, eles o cultivam e esclarecem-no por
um viés científico; eles defendem, por meios revolucionários, a primazia de tudo o que
52
é ctônico, anterior ao espírito, “vontade”, paixão do desconhecido ou, como diz
Nietzsche, o “sentimento” primado sobre a “razão” (Mann, 2015, p. 19).
O inconsciente, para Mann (2015), poderia ser considerado, algum dia, como o efeito
curativo que esses dois campos de conhecimento (a psicanálise e o Romantismo) têm para a
humanidade, o qual corresponde a uma região da alma. Nela, a exploração e iluminação
trouxeram enquanto conquista a missão do próprio espírito investigativo. Loureiro (2002)
enfatiza que a psicanálise visa conduzir o desconhecido, o místico e o infinito às suas origens
pulsionais, traduzindo-os em linguagem metapsicológica.
Como formações do inconsciente, os sonhos, atos falhos, fantasias, sintomas e chistes
não obedecem às leis da racionalidade consciente, a qual exige coerência e clareza. O modo
de funcionamento do inconsciente demonstra que o psiquismo é muito mais amplo do que o
acessível à consciência. Além do mais, Maurano (2003) observa que a psicanálise ressalta que
o Eu não é uma fachada do sujeito, todavia, constitui-se do que realmente escapa às suas
possibilidades de apreensão.
O psíquico e o consciente eram pensados como instâncias que caminhavam juntas,
pois, anterior às descobertas freudianas, os fenômenos da consciência eram conteúdos da alma
e o psíquico inconsciente era algo inconcebível. Mann (2015) enfatiza a demonstração de
Freud quanto ao psíquico, que é em si inconsciente e a consciência pode ser acrescentada ao
ato psíquico, contudo nada modifica nele se deixada de ocorrer. A psicologia profunda e as
descobertas de Freud sobre o inconsciente investem-se nos aspectos obscuros da natureza
humana, as quais pertencem à história do espírito e ao conjunto de antagonismos das
tendências mecanicistas e materialistas do século passado. Sendo assim, determinado
53
fenômeno é interessante por ele mesmo, onde quer ele exista. No entanto, parte-se de um
fundamento que ele exista enquanto uma finalidade.
Ora, o psicólogo do inconsciente, Freud, é um filho autêntico do século dos
Schopenhauers e dos Ibsens, em cuja metade ele nasceu. Como sua revolução está
próxima da de Schopenhauer, pelos conteúdos, mas também pelo seu caráter moral.
Sua descoberta do enorme papel que o inconsciente, o “isso”, o “id”, desempenha na
vida psíquica do homem foi e é tão escandalosa para a psicologia clássica, segundo a
qual consciência e vida psíquica são uma e mesma coisa, quanto a doutrina da vontade
de Schopenhauer foi para toda crença filosófica na razão e no espírito (Mann, 2015, p.
60).
A grande iluminação trazida pelos românticos, de acordo com Sandler (2000a), foi a
percepção do inconsciente. Também a noção de mundo interno e objeto internalizado foram
elaborados entre o fim do século XVII e a metade do XVIII, época em que tais termos foram
apresentados pela primeira vez, todavia, em um desenvolvimento posterior da mesma
natureza de problemas – com o conhecimento psicanalítico cunhou-se os termos projeção e
introjeção. Nesse contexto, foi introduzida a refutação da distinção entre um mundo interno e
externo. Portanto, o cultivo de si e da interioridade, o autoconhecimento e a autonomia são
características evidentes buscadas tanto em relação às propostas da psicanálise como pelo
desejo romântico.
O Romantismo, contudo, confundiu emoções com sentimentos, pois os hipervalorizou
violentamente. Na infância do movimento romântico, como na infância humana, a distinção
entre realidade e ficção, verdade e alucinação tornou-se infactível. A busca do conhecimento
54
encontrava um obstáculo talvez mais insuperável do que qualquer outro que já havia se
deparado. O obstáculo, paradoxalmente, era também seu maior aliado: a emoção e a paixão. O
Romantismo, para Sandler (2000a), tocou em um problema de limites tênues: o limite entre a
alucinação e a realidade. Talvez se possa dizer este é o marco inicial na história do
Romantismo: o exagero e a polarização.
Esta seria a mente humana para o romântico: admiração incontida e
incondicional por paixões fortes, sem pensar em conseqüências de ódio e
ressentimento. As histórias eram de amores aparentemente apaixonados, porém
odiosamente destruídos; a dedicação total do outro, a uma causa (social-ista),
implicava a própria morte e, portanto a falta absoluta; traições inexplicáveis,
vinganças completas, ciúmes, remorso esmagador, desespero profundo e
incontornável, falta de alternativas a não ser o orgulho ferido e a fúria frente à injustiça
e à opressão; glorificação do militarismo; desprezo superior ante falhas humanas,
como inveja, escravidão e covardia. (Sandler, 2000a, p. 73).
Na vida psíquica existe a ilusão de que cada ser é único e original, representando, com
isso, o seu caráter mítico. Para Mann (2015), o interesse mítico é natural à psicanálise, assim
como o interesse psicológico é habitual ao trabalho literário. O recuo à infância da alma
individual é ao mesmo tempo também o recuo à infância do ser humano, isto é, ao primitivo e
ao mítico.
Por um lado, se o Romantismo tudo prevê, não há escapatória: até Freud, quem
diria, acaba realizando em alguma medida os propósitos românticos. Por outro lado,
55
porém, e aqui reside toda a diferença (se é que alguma diferença consegue resistir...),
não esqueçamos que o estilo romântico é norteado pela ambição do absoluto. Todos os
seus paradoxos e contradições, toda essa impressionante capacidade de fagocitar o que
quer se lhe apresente, enfim, tudo isso é orientado pelo desejo último de síntese e de
totalidade (Loureiro, 2002, p. 354).
Há vários dualismos na teoria de Freud, como, por exemplo, no nível da
representação, percebe-se o dualismo de princípios (princípio de prazer e princípio de
realidade); o dualismo tópico (inconsciente e pré-consciente/consciente, processos primários e
processos secundários) e, há ainda um dualismo energético (energia livre e energia ligada).
No nível das pulsões, ocorre o dualismo entre as pulsões de vida e a pulsão de morte, em que
se estabelece o dualismo entre as pulsões e as representações, ou seja, em linguagem mais
precisa, entre o corpo e a alma.
Sandler (2001) afirma que Freud conseguiu perceber os dualismos do funcionamento
psíquico tanto na possibilidade prática da realidade psíquica quanto na formação da própria
realidade psíquica, tornando o método de trabalho psicanalítico um movimento contínuo de
tolerância de paradoxos. Há muitas manifestações de paradoxos observadas e vivenciadas
pelo conhecimento psicanalítico: matéria energia; sentimento pensamento; pensar
fazer; teoria prática; racionalismo irracionalismo; análise síntese; forma
conteúdo; consciente inconsciente; isso supereu; vida morte; realidade fantasia.
Os dualismos, com isso, fazem parte da metapsicologia freudiana. Tavares (2007),
contudo, assinala que eles não seriam propriamente uma dialética, mas estariam
caracterizados pelo próprio termo da “análise”, isto é, são fundamentados com a quebra, a
separação de elementos a fim de estabelecerem os conceitos enunciados.
56
Contudo, Figueiredo (2014) observa o totalitarismo do determinismo funcional da
psicanálise freudiana, o qual atribui à decifração de sentido e uma identificação de
intencionalidade dos conteúdos inconscientes. Todos os fenômenos psíquicos estão inter-
relacionados. O sujeito é um todo cujas partes estão indissociáveis e as relações estabelecem
um conjunto que tem função, estrutura e desenvolvimento. Como nada acontece ao acaso,
“Freud explica”, torna-se o retrato caricatural do determinismo absoluto de Freud. Entretanto,
o determinismo absoluto freudiano não é determinista mecanicista, mas determinista
funcional, porque a psicanálise freudiana acredita em uma explicação acerca da função de um
sentido aos fenômenos psíquicos.
Em certo aspecto, no entanto, a psicanálise afasta-se das manifestações típicas do
funcionalismo, em virtude de que exista a ênfase sobre a existência de um conflito. Por
exemplo, a elucidação psicanalítica dos atos falhos evidencia que o homem é movido por
tendências contraditórias muito mais frequentes do que se poderia supor. O conflito entre
forças pulsionais antagônicas, o embate entre as forças biológicas, as barreiras físicas, sociais
e sua plena e imediata satisfação constituem e enfatizam um organismo funcionalista, em que
a harmonia e a complementaridade entre as partes apresentam-se por meio de um sistema
adaptativo. Com isso, as leituras puramente funcionalistas da psicanálise são apontadas como
tendenciosas, pois eliminam o conflito como determinação essencial da vida psíquica.
A psicanálise visa conquistar, esclarecer e iluminar, isto é, tornar as “profundezas” e
as “trevas” menos obscuras. Maurano (2003) refere-se ao conhecimento psicanalítico como
tendo fundamentos à percepção da vida e do mundo, através de uma beleza que se movimenta
e não se aquieta.
Assim sendo, Lejarraga (2002), em seus estudos, observa que Freud orientou-se pelo
positivismo rumo à busca por causas fundantes, objetivas e universais. Entretanto, se tornou
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cada vez mais “romântico”, principalmente na medida em que se abriu à inesgotabilidade das
singularidades subjetiva: ao conceito de sujeito.
Os principais “transmissores” da tradição romântica – os autores chegam a
empregar o termo “inoculação” – seriam os românticos tardios Fechner, Lipps e Fliess.
Do primeiro, Freud teria recebido a topografia da mente, a idéia de uma cena do
sonho, o princípio do prazer-desprazer, o da constância e a noção de repetição; de
Theodor Lipps, extraiu elementos para sua teoria dos sonhos, do chiste e do
inconsciente. Por fim, em Fliess estariam presentes alguns dos princípios básicos da
biologia romântica. (Loureiro, 2002, p. 48).
Os românticos também escolheram a noite como ambiente preferido de representação,
o lugar de fusões, o ponto intermediário de sínteses, onde a vida retorna à unidade original.
Para Andrade (2010), essa escolha se opõe à estética iluminada da Aufklärung: a luz do dia
que separa, dissocia e torna o julgamento crítico possível. A escolha da noite, sobretudo, os
Nachstüke [noturnos ou literalmente pedaços da noite] literários que são identificados nos
contos fantásticos de Hoffmann. Através da leitura do conto, Der Sandman [O homem de
Areia], narrativa que levou Freud a escrever seu artigo: O inquietante (1919/2010), esse
sentimento descrito pelo psicanalista é, portanto, o produto fundamental de análise do conto
acerca do fenômeno do duplo e das manifestações derivadas do inconsciente.
Nesse sentido, as particularidades apontadas por Sandler (2000a) quanto à fronteira
existente entre a psicanálise e a arte romântica apontam para o fato de que a humanidade foi
introduzida na ciência por meio da medicina e esta foi inserida na arte pelos iluministas e
românticos. Estas duas humanidades proveriam a ser apenas uma, vindo a se chamar
58
“psicanálise”. O movimento romântico, portanto, trouxe a consciência da necessidade de
respeito e consideração para com a experiência emocional, visto que o idealismo alemão
acabaria alastrando a ideia de que a mente humana tem uma capacidade sintética em si e por
si mesma autonomamente.
Sendo assim, a consequência proporcionada por meio de tal movimento foi a
psicanálise em si, proveniente da medicina e da ciência, a qual considerou a mente como seu
instrumento, método e objeto de estudo.
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3 O FENÔMENO DO DUPLO
3.1 O Duplo
O que está separado busca a si mesmo novamente e pode se reencontrar e se reunificar – no sentido inferior, na medida em que se mescla apenas com seu oposto, associando- se com ele, caso em que o fenômeno se torna nulo ou pelo menos indiferente. A unificação pode, contudo, ocorrer também em sentido superior, na medida em que o separado primeiramente se intensifica e, mediante a conexão das partes intensificadas, produz um terceiro elemento, novo, superior, inesperado (Goethe, 2012, p. 78).
O inconsciente não se conhece diretamente, deduz-se. Estado dentro do Estado possui uma força compulsional que encontra o meio de expressar seus conteúdos. É intratável pela consciência. Tem suas leis, sua economia, sua racionalidade próprias (Green, 1994, p. 130).
O termo “duplo” foi empregado pela primeira vez, na psicanálise, por Rank (2013), o
qual conceitua que, este fenômeno se organiza como forma de negação contra o sepultamento
do self, diante da existência da pulsão de morte. No entanto, o psicanalista avança em suas
observações, afirmando que o duplo possa ser representado por espelhos, sombras, crença na
existência da alma e no medo da morte, ou seja, algo estranho a si mesmo. Há um termo
alemão específico: Der Doppelgänger, que é utilizado para se referir ao duplo, almas gêmeas
ou mesmo projeções fantasmagóricas não vistas por ninguém além de seu portador e, foi
introduzido no vocabulário da crítica no final do século XVIII.
Der Doppelgänger foi o ponto de partida de Rank, reconhecido como o precursor nos
estudos sobre do duplo, ainda que, outros autores, posteriormente a ele, tenham se dedicado
ao tema, ao longo do século XX, tais como Michel Guiomar (1961), Clément Rosset (1976),
Juan Bargalló (1994), Yves Pélicier (1995) e Massimo Fusillo (1998).
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A partir da análise de obras dos autores como, por exemplo, E. T. A. Hoffmann, Edgar
Allan Poe, Fiódor Dostoiévski, Oscar Wilde, entre outros, o psicanalista Rank,
contemporâneo de Freud, percorreu os caminhos acerca dos fenômenos da duplicidade do Eu
na literatura, a fim de problematizar a questão.
Como mais representativas obras literárias acerca do fenômeno do duplo destacam-se:
o romance gótico de terror Frankenstein ou o Moderno Prometeu, de autoria de Mary Shelley,
escritora britânica, que teve sua terceira edição revisada e definitiva, em 1831; os diversos
contos do autor americano, Edgar Allan Poe, como, por exemplo, William Wilson (1839) e O
gato preto (1843); o romance O Duplo, do escritor russo Fiódor Dostoiévski (1846); a clássica
história de horror e de mistério O médico e o monstro, de autoria do escocês Robert Louis
Stevenson (1886); O Retrato de Dorian Gray, que é um romance filosófico do escritor e
dramaturgo Oscar Wilde (1890); as poesias dos heterônimos de Fernando Pessoa (1888-
1935), que foram personalidades do próprio escritor português modernista; sendo invenções
de personagens completos, que tiveram uma biografia própria, estilos literários diferenciados
e que produziram uma obra paralela a do seu criador; o escritor brasileiro, Machado de Assis
(1963), em seu conto O espelho: um esboço de uma nova teoria humana, entre outros autores
e obras.
As manifestações do duplo podem corresponder às personas ou máscaras, as quais o
sujeito utiliza para desempenhar os diversos papéis sociais que lhe são requisitados, passando
por representações de algum aspecto interior do sujeito, até os casos em que o duplo não é
uma extensão, uma sombra ou um fantasma do sujeito, mas outro ser, que por algum processo
de identificação anímica é pelo sujeito percebido como seu desdobramento. Segundo França
(2009), as manifestações do fenômeno do duplo assumem outros artifícios simbólicos, como
espelhos e retratos, como também pela figura de gêmeos. Os efeitos cômicos gerados por
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gêmeos, por sósias, por identidades duplicadas, pela semelhança física entre os personagens
ou pela usurpação da identidade fazem-se presentes em Aristófanes, Plauto, Shakespeare,
Lope de Vega, Molière.
De modo geral, França (2009) ressalta que o duplo possa ser qualquer desdobramento
do ser. Embora, apesar de ser uma extensão do sujeito, mesmo quando com ele se identifica
positivamente e plenamente, o duplo não abandona sua condição de simulacro, de mera
sombra, uma vez que não tem valor em si mesmo, mas apenas naquele que seu modelo lhe
fornece. A condição ontológica do duplo tem sua origem em um indivíduo, do qual é uma
espécie de mímesis, porém não possui o mesmo estatuto, pois, quando é gerado, o duplo já
não pode mais ser confundido com o “Eu” original, visto possuir uma essência própria e se
assume necessariamente como “outro”.
O fenômeno do duplo assume combinações envolvendo dois extremos: o da
semelhança e o da diferença. De um lado há os duplos homogêneos, cuja semelhança torna
quase ou mesmo impossível a diferenciação; já, do outro lado, estão os heterogêneos, em que
a relação de complementaridade os fabrica de forma indissociável. Portanto, a ideia de
duplicidade se refere à contraposição de forças antagônicas e ao equilíbrio ativo da mesma.
Green (1994) observa que o homem duplo se expressa por meio de um homem dilacerado. A
dualidade, fenômeno através do qual o dualismo se manifesta, opõe-se ao princípio lógico de
não-contradição, que postula que algo não pode simultaneamente ser e não-ser.
Os duplos são metáforas um do outro e da própria identidade. As semelhanças entre os
duplos ultrapassam a dimensão de mera coincidência ou eventualidade, porque estabelecem o
diálogo de complementaridade, manifestando identidade ao atualizar as maneiras diferentes
ou desdobramentos de um pensamento criativo.
62
A ideia de duplicação, segundo Gonçalves Neto (2011), diz respeito ao sistema
binário, à dualidade, à contraposição e ao equilíbrio ativo de forças. O dualismo é algo
estranho, mas, ao mesmo tempo familiar; é uma estranheza que aterroriza, e ao mesmo tempo
é conhecida. Giora (2015) aponta para o fato de que o “estranho” seria algo como o retorno de
um mesmo, que nasce do que é interno e desconhecido; do que é verdadeiro, mas, que, não foi
dito e atravessam gerações, linhagens familiares, subvertendo o tempo e sacrificando o futuro,
tornando-se locatária dele. O acontecimento cede espaço a um “outro acontecimento”,
ocasionado pelo engano que a vítima acredita que há; “alguma coisa” da qual a realização do
novo evento teria tomado forma. É então a sensação de estar enganado que é enganadora. A
realização do episódio não fez outra coisa senão se realizar. Ele não tomou o lugar de um
“outro acontecimento”.
A particularidade notável ao duplo corresponde ao fato de que o único duplicado não é
apenas o objeto ou acontecimento, mas, o próprio Eu. Este caso particular da duplicação do
único, que constituiu o conjunto dos fenômenos chamados de desdobramento da
personalidade, originou inúmeras obras literárias, como também debates de ordem filosófica e
psicológica. O duplo, enquanto desdobramento da personalidade é enfatizado por Rosset
(1998) como não exclusivo às manifestações literárias, mas, também, estaria presente na
pintura, da qual constitui um tema essencial e decisivo, do ponto de vista psicológico, visto
que, todo pintor tem como meta fundamental ter êxito ou fracassar em seu próprio
autorretrato. A propensão patológica e distúrbios psicológicos, segundo Rank (2013), causam
a cisão da personalidade e a maior acentuação do Eu-complexo diante do próprio sujeito.
O tema do duplo, com isso, segundo Rosset (1998), em geral, está associado aos
fenômenos de desdobramento de personalidade (esquizofrênica ou paranoide). No entanto, o
duplo está contido em um espaço cultural infinitamente mais vasto, isto é, no campo de toda
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ilusão, já presente, por exemplo, na ilusão oracular ligada à tragédia grega e aos seus
derivados (duplicação do acontecimento), ou na ilusão metafísica inerente às filosofias de
inspiração idealista e a duplicação do real em geral: o “outro mundo”.
Nas narrativas míticas, em síntese, o duplo ocorre devido à união entre dois contrários,
ou ainda, entre dois iguais. Nas lendas oraculares, há algo aparentemente concreto, podendo
ser chamado de destino, que designa o caráter do imprescindível. O destino existe enquanto
elemento real, determinado de maneira independente de qualquer previsibilidade, embora,
talvez, o oráculo possa anunciar seu modo de ação. No entanto, a profundidade e a verdade da
palavra oracular estão aquém de predizer o futuro, mas a de exprimir a necessidade opressora
do presente, o caráter inelutável do que acontece no agora. A predição antecipada tem um
valor simbólico, projetando no tempo aquilo que aguarda o homem a cada instante de sua vida
presente: o reconhecimento – efetivação de “um outro acontecimento”, esperado, que, talvez,
nem se tenha pensado e imaginado, mas, que, apesar disso, o acontecimento real apagou e, ao
ser realizado, move a estrutura do fundamento ao duplo.
Nada distingue, na realidade, este outro acontecimento do acontecimento do
real, exceto esta concepção confusa segundo a qual ele seria, ao mesmo tempo, o
mesmo e um outro, o que é a exata definição de duplo. Descobre-se, assim, uma
relação muito profunda entre o pensamento oracular e o fantasma da duplicação, que
explica a enigmática surpresa associada ao espetáculo do oráculo realizado (Rosset,
1998, p. 39).
A paralisação, acarretada diante da impossibilidade de se prever a ação do destino e os
possíveis desencadeamentos trágicos, remete ao parentesco com a maldição, pois, ela é
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cultural e rompe com uma força contida e silenciosa do passado. Giora (2015) aponta, nesse
sentido, que os mitos têm a função de representar o absurdo, o inexplicável. São relatos de um
passado distante, que, ainda marcam uma trama permanente ligada ao presente, a qual irá
determinar o futuro, como em Édipo.
A estrutura metafísica do duplo tende a depreciar o real, privando-o de outras
realidades e esvaziando o presente de todos os fatos passados, como, também, em todas as
possibilidades futuras. Todavia, o tema da duplicação não está necessariamente ligado a uma
estrutura de pensamento metafísico. Pode-se imaginar também estruturas não metafísicas da
duplicação, que, ao contrário, enriquecem o presente com todas as potencialidades, tanto
futuras quanto passadas.
O aparecimento do duplo também pode estar relacionado com o despertar da
autoconsciência do sujeito, visto que o desdobramento tem, muitas vezes, um benéfico poder
revelador para o indivíduo, que reconhece e identifica, na semelhança do duplo, aspectos até
então desconhecidos de seu próprio caráter. Outras vezes, contudo, o processo revela um mal,
uma doença ou até mesmo a finitude da existência humana, suscitando dessa forma o espanto
e o horror. Os desdobramentos das imagens do Eu, as autoduplicações da consciência podem,
portanto, revelar tanto a semelhança quanto a diferença. Contudo, a aversão ao “outro”,
produzida pelo duplo antagônico, possui uma força ainda mais terrível: o mal, não
identificado como o que é radicalmente diferente, mas sim com algo que mantém, com o
sujeito, uma estranha familiaridade.
O paradoxo do duplo estabelece o conceito de permanência na mudança, porém, não
se realiza a fim de duplicar a realidade em novas categorias e novos conhecimentos. A
conservação da essência originária do duplo não caracteriza a solicitação do pensamento real.
“Podemos, agora, notar que a dobra se desdobra em muitas dobras. Esse desdobramento no
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tempo da memória origina- como diá-noia e diá-logo a travessia de cada um, uma travessia
que se experiencia poeticamente na dobra poética e obra poética” (Castro, 2009, p.105).
Em muitas religiões tradicionais, há a separação entre o corpo e a alma. A coexistência
de forças antagônicas do bem e do mal também se encontram em praticamente todas as
formas de pensamento e comportamentos humanos e, com isso, apontam a natureza dupla do
homem, cujas metades estão em perpétuo conflito. Segundo a enciclopédia Homem, Mito e
Magia (1974), todo homem é acompanhado, em sua vida, por duas extensões de sua
personalidade: uma boa e luminosa, e outra má, negra e ameaçadora.
A maioria das crenças religiosas prevê um grupo de divindades, onde há a
preeminência de dois líderes. Por exemplo, no zoroastrismo, os dois princípios opostos são
Ormuz, criador, representante das forças do bem; enquanto, Arimã é comandante das forças
malignas. Arimã e seu exército de seres do mal vivem para molestar a criação de Ormuz, no
entanto, estas duas forças se misturam sorrateiramente, a fim de tentar exercer seus ofícios e
poderes. Contudo, conforme estipula a religião, os adeptos do mal serão vencidos e lhes será
erradicada toda a força maléfica.
A simbologia ao redor do algarismo dois, para Chevalier & Gheerbrant (1997)
contorna a oposição e o conflito, e pode sugerir tanto o equilíbrio quanto o desequilíbrio. É
por meio do número dois que todas as divisões ocorrem. Também pode ser considerado o
algarismo do desdobramento e das ambivalências, pois, por meio de seu simbolismo, indica
tanto a rivalidade quanto a reciprocidade, o ódio e o amor, o que oferece a incompatibilidade
e a semelhança.
Os conceitos mais primitivos sobre a ideia de um “outro eu” influenciaram largamente
a crença popular até os séculos XVIII e XIX, uma vez em que se acreditava que a alma podia
escapar do corpo, ser roubada ou ser projetada para fora dele, por um ato de vontade. Além da
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alma, reflexos no espelho, sombras, duplo etéreo, corpo astral e o conceito cristão de anjo da
guarda são as variedades nos nomes apontados ao fenômeno do duplo. A palavra aura é
utilizada pelos ocultistas para designar uma nuvem tênue ou de aparência luminosa, a qual é
vista envolvendo o corpo humano. Já o duplo etéreo é um puro elemento refinado, com
aparência brilhante ou ainda pode ser o “corpo mental” e até mesmo o centro espiritual do ser
humano.
Apesar do fenômeno do duplo ser um tema imemorial e estar presente mesmo na
literatura mais recente, ele apresenta-se como marca do movimento romântico. O duplo nesse
contexto assume, sobretudo, a feição da cisão interior do Eu, aos problemas da identidade e a
fragmentação da personalidade, devido às fragilidades dos limites entre o imaginário e o
princípio da realidade. O sujeito inserido nesse momento histórico representa o saber
enquanto uma entidade transitória e em crise (Giora, 2015).
O duplo, para Rank (2013), no Romantismo simbolizou um sujeito que se vê cindido
em dois, movido por forças antagônicas que lutam internamente e podem levá-lo até mesmo a
autodestruição. Foi nesse período, contudo, que se conceberam as ideias de inconsciente, de
valorização dos sonhos e dos símbolos, onde tais temas ganham um caráter trágico, expressos
na criação artística em vários países.
Para Hauser (1998), no contexto do movimento romântico, o sujeito perdera todos os
apoios extremos. Era dependente de si mesmo, tinha de procurar auxílio interior e tornando-se
o seu próprio objeto de infinito interesse. Considerava o mundo meramente a matéria-prima e
o substrato de suas próprias experiências e utilizava-o como pretexto para falar a seu próprio
respeito. O espírito do novo tempo é o do desajustamento, do sentimento de geração perdida,
da fixação de uma postura evasiva, cética, à qual não faltava a atração pela morte, do
platonismo amoroso e da atmosfera configurada do desajuste.
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Quanto mais inatingível, inconstante e insubstancial o mundo se apresenta,
mais forte, mais livre e mais autônomo será o sentimento do sujeito que luta por
autoridade. [...] todo o subjetivismo aparatoso, o impulso irresistível para o
alargamento espiritual, o lirismo jamais satisfeito e que a si próprio continuamente se
transcende na nova arte só podem explicar-se por essa divisão do ego (Hauser, 1998,
p. 682).
Rosenfeld & Guinsburg (1985) pontuam que os românticos veem o homem, em
sentido mais profundo, como um ser cindido, fragmentado, dissociado. Em função disso,
sentem-se criaturas infelizes e desajustadas que não conseguem se enquadrar no contexto
social e que tampouco querem fazê-lo, uma vez que a sociedade apenas iria cindi-las ainda
mais. Entre consciente e inconsciente, deveres e inclinações, trabalho e recompensa, a brecha
apenas poderia crescer como parte de um afastamento cada vez maior entre natureza e
espírito. Daí o sentimento de inadequação social; a aflição e a dor que recebem o nome geral
de mal du siècle; a busca de evasão da realidade e o anseio atroz de unidade e síntese, que
tanto marcam a “alma romântica”.
A subjetividade unificada, no entanto, é cindida. Dividida em sua unicidade, tenta
desesperadamente unir seus antípodas. A produção romântica faz-se, consequentemente, a
partir da tentativa de fusionar os opostos em todas as suas manifestações. Os românticos
haviam estado na escola da sensibilidade, da filosofia da reflexão e do culto do Eu. Em
decorrência disso, tudo se tornou mais uma experiência, pois, essa subjetivação tinha de ter
consequências, visto não haver nenhum outro objeto em torno, a não ser o grande e
apavorante Eu.
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A partir do Romantismo, encontra-se, de um lado, o sujeito fantasioso, imprevisível,
de alta complexidade psicológica, centrado na sua imaginação e sensibilidade, gênio intuitivo
investido de missão por lance do destino ou impulso inerente à sua personalidade, que é o
herói romântico, encarnado de uma vontade antes social do que pessoal, apesar da forma
caprichosamente subjetiva de seus motivos e decisões e, de outro lado, um ser ou organismo
coletivo dotado de corpo e alma, de alma mais do que de corpo, cujo espírito é o centro de
uma existência conjunta. O subjetivismo romântico, baseado na exaltação de uma fantasia,
muitas vezes, arbitrária, coloca acima de tudo o Eu criativo, justificado, porém, quando
destrói a própria criação pela intervenção da ironia, que nega sua própria forma e invalida os
valores do senso comum.
Ao se reproduzir um “eu-outro” e não um “eu-mesmo”, a duplicação é tomada como a
descontinuidade de si mesmo que, no caso, por exemplo, dos poetas, em especial dos
românticos, exerce uma função propriamente de ser o seu senhor. Nessa perspectiva, a
mímese deve ser vista antes como ato e não como a indicação de que a poesia refere-se a algo
preexistente e que ela reproduz.
De acordo com Suzuki (1993), o gênio filosófico tem uma definição dupla: gênio e
gênio do gênio. O gênio romântico será interpretado em uma literatura mais kantiana, como
“sistema de talentos” e conjunto orgânico das faculdades da mente. Quando analisado sob o
plano mais fitchiano, seria a genialidade duplicada e potencializada: “plural interior”. O gênio
é o organismo espiritual que organiza indivíduos, isto é, como gênio, as individualidades que
compõem o sistema são unificadas de tal modo que filósofo e homem sejam apenas um –
tanto no sentido da individualidade quanto da singularidade – e este ponto é o que ambiciona
a proposta romântica. A unidade viva do sistema exige um sistema individual, único e
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original, somente sendo possível porque é o sistema deste homem ser ao mesmo tempo
filósofo e, enquanto humano, requer um caráter próprio e original.
A vida interior, para os românticos, aparece então como labirinto sem saída, segundo
os estudos de Moisés (2007), pois é povoada por recantos secretos, visões e sombras, que, ao
mesmo tempo, oferecem ao poeta a posse do que lhe parece ser seu Eu profundo, verdadeiro,
e o tornam um estrangeiro para si mesmo - o alter ego, vinculado a uma dimensão de
realidade que o ultrapassa. Com a marca dessa forma irracional, o poeta romântico se
desvenda rumo ao onirismo e ao inconsciente, às forças misteriosas da Natureza e aos mitos
arcaicos.
O conflito interior da alma romântica se reflete de modo direto e expressivo à figura
do “segundo eu”, que está sempre presente ao espírito romântico e se repete em inúmeras
formas e variações na literatura também romântica. A fonte desta ideia fixa, segundo Hauser
(1998), vem por meio do impulso à introspecção, na qual há uma tendência de auto-
observação e compulsão do sujeito rumo ao desconhecido, ao estranho e ao remoto. Também
pode representar uma tentativa de evasão dos românticos no sentido de não se submeter ou
aceitar sua própria condição histórica e social. Tal duplicidade precipita-se a tudo que seja
obscuro e ambíguo, caótico e extático, demoníaco e dionisíaco e busca, a partir disso, o
refúgio de realidade que é incapaz de dominar por meio racionais.
É típica do Romantismo a tematização da dupla ou tripla identidade, como percebido,
por exemplo, na obra musical de Schumann, em que a posição existencial torna-se
insustentável, pois se coloca a uma altura na qual se vê embaraçado, sem forças para subir e
sem condições de descer, de fato, onde se opera o terreno da humana convivência. Os que
fragmentavam ou extravagavam enlouqueceram ou morreram, ou ambos, o que foi o destino
de diversos românticos notáveis. Sobre tal temática, Hoffmann (apud Kiefer, 1985, p. 214):
70
aponta: “A música de Beethoven move as alavancas do estremecimento, do temor, do horror,
da dor e desperta aquela nostalgia infinita que é a essência do Romantismo”.
A ideia romântica é a de que personagens com semelhanças intrínsecas ou diferenças
complementares, fazem parte de um mesmo princípio ou de uma mesma existência. O duplo
enquanto garantia da emancipação da cópia, eleva-se à posição de repetição, pois, é através da
imitação que o simulacro se emancipa e a necessidade de encontro com a unicidade
constituiria a marca ontológica do ser original. No Romantismo, como aponta Giora (2015),
fundir-se com o seu duplo, tornar-se uno por meio dele, denota, através disso, a tentativa de
reencontro com a unidade perdida.
Baseando-se nas formulações de Schlegel e Schelling quanto às ideias de duplicação,
Suzuki (1998) realça que a cisão acontece quando há dois princípios, um superior e o outro
inferior, onde se estabelece uma luta por clareza, uma conversação interior e misteriosa,
propriamente filosófica. A arte interior da qual a arte exterior é “reafigurada” formaria a
dialética. O duplo, portanto, não seria apenas o reflexo do Eu, mas um Eu real. Todos os
elementos percebidos como fora do Eu, na verdade, seriam inteiramente iguais. Seria um
“contra-eu vivo”, um tu, no qual, contudo, é colocado distante do Eu.
Essa cisão [em dois princípios, um superior e outro inferior], essa duplicação
de nós mesmos, esse comércio secreto de dois seres, um que pergunta e outro que
responde um que sabe, ou melhor, que é a própria ciência, e outro que não sabe, que
luta por clareza, essa arte da conversação interior é o mistério propriamente dito
filosófico, arte interior da qual a arte exterior, que daí se chama dialética, é apenas a
reafiguração [ou cópia: Nachbild] e, onde se torna mera forma, é aparência vazia e
sombra (Schelling apud Suzuki, 1998, p. 163).
71
Ainda, nas formulações de Suzuki (1998), o espírito do idealismo transcendental
somente pode encontrar explicação mediante a sociabilidade, não apenas pelo “não-eu”, mas,
através da presença misteriosa de um “tu”. A decifração do sentido que o “tu” representa para
o “Eu” garante a pressuposição heurística do mais completo idealismo, uma vez que tudo o
que existe fora do “Eu” não é o “não-eu”, mas a própria egoicidade (Ichheit), o proto-eu (Ur-
Ich), do qual o finito desola-se e continua sendo parte (Stück).
O Eu absoluto cria o não-eu, limitando-se pela contraposição de uma realidade
aparente a fim de poder atuar contra resistências autoimpostas. O Eu, enquanto uma eterna
vontade atuante opõe-se a barreiras, a fim de superá-las, podendo atuar e lutar diante do
mundo. Desse modo, impõe sua liberdade moral em face das leis da natureza e da sociedade.
Portanto, dentro de si, o Eu infinito, o homem empírico, limitado às necessidades naturais,
procura tornar-se um Eu puro e livre.
Rosenfeld (1996) enfatiza a influência que exerceram sobre os românticos o conceito
de “Eu absoluto”, de Fitche e a filosofia da “Identidade”, de Schelling. A Identidade e a
unidade são princípios essenciais à filosofia romântica, visto as tentativas de superação dos
dilaceramentos da civilização moderna. A Identidade, por sua vez, tem fundamentos, sendo
eles: o lógico e o alógico, a necessidade (natureza) e a liberdade (espírito). Seu símbolo
perfeito é o Belo, que reúne e procura superar todas as dicotomias, bem como seu princípio
que é a coincidentia oppositorum de todas as antinomias, que exerceu fascínio imenso sobre
os românticos. A manifestação à unidade original estimulou à tendência ao mito e à procura
pela unidade perdida, ao misticismo.
A civilização que havia perdido a unidade e dilacerava-se em antagonismos, o que
desencadeou nos românticos experiências de fragmentação e alienação, contrapõe-se, a partir
72
disso, ao ideal de integração e de síntese. Contrapõe-se ao desejo de fusão e conciliação, a fim
de se conseguir a superação dos choques entre o sujeito e o mundo, entre o Eu e a sociedade,
entre a consciência e a inconsciência, a natureza e a civilização.
Dessa forma, o pensamento romântico foi conduzido a uma posição que não
compactua com a tensão e conflitos trágicos enquanto inconciliáveis. Tal postura contribui
para que muitos românticos alemães tendessem a preferir a comédia ou outros tipos de
fantasias do maravilhoso, para que, com isso, superassem os conflitos processados pela
própria lei do universo das fadas. A duplicidade humana, para Rosenfeld (1996), é ao mesmo
tempo trágica e cômica, porque nela reside a elevação e a fraqueza do homem.
A consciência de si e da sociedade em que se vive desgasta a ambição romântica pela
unidade. Portanto, as antíteses absolutas não acolhem uma síntese absoluta, a menos que seja
realizada uma aproximação infinita, na qual implique em um movimento constante:
Esse oscilar entre as contradições, diz Novalis, exige “uma versatilidade
infinita do intelecto culto que pode retirar-se de tudo, virar e inverter tudo, conforme
quer”. [...] “deve-se sentir-se, portanto, em disponibilidade ilimitada para as mais
diversas tendências‟. Para caracterizar alguém “é preciso ser o mesmo e, apesar disso,
outro...”. ou então: “Para entender alguém que se o entenda primeiro totalmente e
melhor que ele a si mesmo e, em seguida, só pela metade, exatamente como ele a si
mesmo” (Rosenfeld, 1996, p. 158).
No Romantismo, os conflitos naturais da própria condição humana se convertem em
uma forma básica de consciência de elementos duais, a fim de se tornar uma realidade
73
unitária. Vida e espírito, natureza e cultura, história e eternidade, solidão e sociedade,
revolução e tradição deixam de se apresentarem como correlativos lógicos ou alternativas
morais e passam a ser vistas como possibilidades para que cada um se esforce para realizá-los
simultaneamente. Ainda não estão, porém, dispostas em oposição dialética mútua. Não há
uma busca de possibilidades experimentadas e manipuladas. Idealismo e espiritualidade,
irracionalismo e individualismo não dominam sem oposição, pelo contrário, se alternam com
uma tendência igualmente forte para o naturalismo e o coletivismo. Maroni (2008) destaca
que a relação romântica do sujeito com o mundo não seja a de oposição, e sim a de
implicação mútua, uma vez que cada ser possui apenas uma verdade parcial; diferente para
cada um: verdades incertas em estado errante.
O contato entre sujeito e sociedade, no Romantismo, remonta ao fato de que em cada
época histórica existe o Zeitgeist, isto é, o conjunto do clima intelectual e cultural do mundo,
o qual possui determinadas características de uma dada época. O conceito de “espírito de
época” ou “espírito do tempo” remonta aos românticos Herder e Hegel, os quais enfatizavam
que determinado artista é um produto de sua época, carregando sua cultura e seu momento
histórico em suas produções.
Der Zeitgeist – “o espírito unificador”, como foi pontuado por Rosenfeld (1996),
indica que, mesmo em uma cultura complexa, com alta especialização e autonomia das
diferentes esferas, as ciências, as artes e a filosofia são interdependentes e se influenciam
entre seus campos. Além do mais, a “unidade de espírito” e o sentimento da vida carregam,
em certa medida, todas as agitações próprias de seu contexto, perceptíveis nas obras dos
artistas.
Sendo assim, nas obras artísticas, em maior ou menor grau, há o “processo de
desrealização”, no qual, por exemplo, a pintura ao deixar de ser mimética recusa a função de
74
reproduzir ou copiar a realidade empírica, sensível. A abstração e a desindividualização
evidenciam a tentativa dos artistas em ultrapassar a dimensão da realidade sensível para se
chegar a uma essência absoluta.
As formas relativas da consciência, o tempo e o espaço, de acordo com Rosenfeld
(1996), sempre foram manipuladas como se fossem absolutas, contudo, com o “espírito
unificador”, elas passam a ser processadas como relativas e subjetivas. A consciência e a
própria vida psíquica põem em crédito seu direito de se impor às coisas, do mesmo modo que
a ordem já não parece corresponder-se à realidade verdadeira. No entanto, a dificuldade
encontrada por boa parte do público em adaptar-se à arte moderna decorre de que ela nega o
compromisso com o mundo empírico das “aparências”, ou seja, com o mundo temporal e
espacial, posto como o real e absoluto pelo realismo tradicional e o senso comum. A visão de
uma realidade mais profunda, mais real do que a do senso comum é incorporada à forma total
da obra e essa visão torna-se mais válida em termos estéticos.
Certos grupos românticos, ainda, segundo Rosenfeld (1996), ansiavam atingir pela
autoexpressão uma verdade objetiva: a constituição de um mundo íntimo estabelece a verdade
do universo exterior, algo semelhante às teses expressionistas. A imaginação
“transcendental”, por sua vez, seria a condição de realidades essenciais, todavia o
“objetivismo” revelaria uma forma velada do subjetivismo radical, visto que o “não-eu” seria
seu símbolo e teria como finalidade a autocompreensão do Eu. Porém, ao desejar o contato
objetivo com a realidade substancial, o romântico não é capaz de abandonar sua subjetividade
solitária a fim de conseguir entrar e encontrar uma “verdade”. Nesse caso, mediante uma
nostalgia ou um prazer estético, o sujeito fixa-se em um estado prazeroso mórbido, o que faz
com que tirem uma satisfação da insatisfação.
75
Apesar da aspiração de objetivar a realidade e diante ao cenário desolador do
Romantismo do século XVIII, tal perspectiva tende a desaparecer, porque não existe mais um
mundo exterior para se projetar. O fluxo psíquico a ser englobado seria dirigido a um plano de
tela, como uma espécie de “monólogo interior radical”, o qual é o “espaço” em que se
manifestam as crises do sujeito e de seu tempo. Há uma relação entre dois polos: o homem e o
mundo projetado, que se efetua através de uma ruptura.
A vontade de superar a distância entre o sujeito e o mundo desacredita nos dogmas
iluministas da consciência humana frente ao mundo e não confia mais na possibilidade de se
construir, a partir dela, uma realidade verdadeira e real. O sentimento da “consciência infeliz”
provoca um sentimento de angústia, a que os artistas e intelectuais românticos procuravam
encontrar uma posição permanente para tal busca, exprimindo-se, por exemplo, na
experimentação dos gêneros literários e na liberdade poética. Desse modo, instala-se uma
ambição de fugir para outro mundo ou outra época, em que o homem, ilusoriamente, estaria
em sintonia com a vida universal e, a partir disso, não haveria os contornos desejados, as
definições e a necessidade de um encontro com o “verdadeiro” e “real” Eu (Rosenfeld, 1996).
A decomposição da personalidade do sujeito e o “achatamento” do objeto perante a
imensa realidade social sufocam o “elemento humano” e a possibilidade de se tornar um Eu,
isto é, realmente um indivíduo. As redefinições das situações de homem, de sujeito e de
indivíduo, são tentativas que revelam o esforço em assimilar o “espírito unificador” e a
posição precária da vida no mundo moderno. Os indivíduos, para Rosenfeld (1996), quase
desindividualizados no Romantismo, são lançados, por exemplo, em relatos de histórias
fantásticas, acontecimentos sobrenaturais, fatos misteriosos e inexplicáveis, cenários estes
onde desaparece o fluxo psíquico, a ordem lógica dos fatos e acontecimentos, a fim de que a
consciência das personagens se manifeste como um Eu que ocupa uma tela imaginária.
76
Os românticos, dessa forma, são forçados a refletir acerca das leis da vida e da
sociedade, assim como a respeito de sua própria subjetividade, que se torna um refúgio e um
processo de autodescoberta em um universo desconhecido de si mesmo. O homem romântico
isola-se, tornando-se seu próprio objeto e privado pela consciência do agir, visto que a crise
do período romântico tornou-se, para ele, também, uma crise do Eu.
E, o Romantismo, conforme já fora mencionado neste trabalho, precipita alguns
elementos da psicanálise, como a teoria de conhecimento sobre o Eu e o método subjetivo de
interpretação do mundo, pois, através de uma vida singular e da procura pelo
autoconhecimento, as diversas realidades de cada vida poderão ser vistas sob novos ângulos,
como permite a construção identitária do sujeito.
Figueiredo (2014) revela que foi com o Romantismo que as redefinições entre o
sujeito e o objeto tornaram-se perceptíveis. Desse modo, a palavra “sujeito” deriva do latim
subjectus, que é o particípio passado de subicere, significando “colocar sob, abaixo de”;
formado por sub- (“sob”) mais a forma combinante de jacere, “lançar, atirar”. Assim,
“sujeitar” tem a mesma origem. O sujeito, portanto, é alguém que se encontra em posição
inferior em determinado momento, revelando também a descaracterização dos elementos do
comportamento humano. Etimologicamente, o vocábulo “indivíduo” vem do latim individuus,
que significa “indivisível, uno, o qual depende de sua integralidade”. Aplica-se este termo há
outros seres, além do humano. O conceito de indivíduo refere-se, também, como sendo
sinônimo de particular, que não se divide e é capaz de uma existência independente.
No entanto, o próprio indivíduo é observado como um ser fragmentado, um “divíduo”,
visto que o homem é pelo menos dois, ou seja, por exemplo, é cindido entre o seu ser
consciente e o seu ser inconsciente. A psicanálise, portanto, apresenta a noção de sujeito
cindido, o qual é contraposto ao sujeito uno, ao indivíduo da psicologia da consciência,
77
herdeira do cartesianismo. A partir disso, a dimensão da estranheza é pertinente ao Eu, que se
insere e que o faz sujeito (Tavares, 2012; 2017).
Portanto, o sujeito no Romantismo é solitário, sem unidade; não se encontra, não se vê
e busca, com isso, construir a sua identidade. No entanto, esbarra-se nos fenômenos do duplo.
Nesse caso, diante do “espírito do tempo” e da afirmação de sua própria subjetividade, o
sujeito, vislumbra-se com “um outro”, um estrangeiro de si que, sendo cindido, reflete a
multiplicidade e os problemas de assimilação com a multiplicidade de seus Eus, com as suas
naturezas e as diferentes facetas de sua personalidade, as quais formam um conjunto de seu
próprio Eu-complexo.
A ausência de referências, a sensação de desamparo e as imagens multiplicadas do Eu
fazem com que o homem romântico, envergonhado ao fugir e esconder de si, ceda espaço ao
duplo. No entanto, o duplo é parte do seu Eu ou de seus vários “Eus”, que ainda se encontra
em um processo de conhecimento e de reconhecimento. Estes que são caminhos constantes e,
até mesmo eternos para a busca de si. O duplo, por sua vez, enquanto fenômeno do Eu e dos
dualismos românticos, aspira, de forma idealizada e ilusória a uma possível integralização,
enquanto ideal absoluto para os românticos, para que, com isso, se torne um princípio, mesmo
que subjetivo e relativo, devido às diversas realidades pertinentes a cada sujeito. O duplo,
desse modo, representa o perpétuo conflito do ser, que tem com a dialética da existência a
busca pela atividade de compreensão de unidade, atrelada às perdas referentes diante da
origem e da própria essência do sujeito.
Contudo, o Eu que é um “divíduo” sofre as interferências do inconsciente e o trabalho
para as descobertas da interferência dessa instância na vida do sujeito será constante e árdua.
Deverá ocorrer uma “versatilidade infinita” quanto ao esclarecimento de suas emoções, onde
78
o inconsciente “vira e inverte tudo, conforme quer”. Determinados processos da vida psíquica
para serem elaborados precisam ser compreendidos e preenchidos.
Existem experiências não-sensorialmente apreensíveis, ou em linguagem filosófica:
experiências não-sensíveis. Segundo Sandler (2000b), é perceptível a existência do
inconsciente. Sendo assim, não se trata apenas do consciente substituir o inconsciente
estendendo o campo de percepção, mas de perceber ou de intuir a sua existência. Por
exemplo, a percepção individual de inveja não implica domínio ou eliminação da
característica invejosa. Implica levar-se em conta tal traço e estar vigilante. Neste sentido,
pode-se falar em “percepção do inconsciente”, “percepções inconscientes” e “emoções
inconscientes”.
Um inconsciente sendo percebido em sua própria existência, não em sua
essência ou alguma pretensa materialidade que ele não possui, a despeito das várias
descrições de seu funcionar. [...] Perceber a existência equivale a experimentar e
apresentar, sendo vivido. Não implica conhecer em sua plenitude, totalidade,
essencialidade e extensão, e muito menos explicar, entender, desvendar símbolos que
solucionam o mistério que distinguem a chama do desconhecido. Conhecer o
inconsciente os seus conteúdos de modo causal ou final seria conhecer “O” (Sandler,
2000b, p. 24).
A respeito das percepções inconscientes, Freud (1940 [1938]/(1996a) menciona as
relações entre a percepção e o aparelho psíquico, uma vez que tais mecanismos são possíveis
em virtude dos supostos elementos psíquicos do isso (processo primário), os quais se diferem
da percepção consciente da vida intelectual e afetiva. Todavia, o isso isolado do mundo
79
externo possui um universo próprio de percepções. Em especial, onde oscila as necessidades
pulsionais, que se tornam conscientes, como sensações na série: prazer e desprazer.
Estabelecidas as autopercepções, sensações cinestésicas e sensação de prazer-desprazer, estas
irão governar com soberana tirania os processos do isso. A percepção corresponde, portanto,
ao núcleo de um objeto, uma espécie de miragem de movimento, que, necessariamente, tem
uma identidade, mas apenas em se tornando uma delegação.
Dessa forma, o duplo, no Romantismo, simboliza a busca, mesmo que idealizada e
ilusória pela unidade correspondente a cada sujeito. O Eu ou os diversos “Eus”, em conjunto
com o “tu”, deverão englobar o nós. Safranski (2010) salienta que a existência humana, na
qual a pessoa deverá formar uma personalidade, não seja uma questão suficiente, pois, deverá
haver um terceiro elemento a ser entendido que não é a liberdade obtida individualmente, mas
através de um empreendimento coletivo.
Um caminho dividido é o mesmo que um caminho triplo. Dois é o mesmo que
três. Se estamos andando e chegamos a uma ramificação dele, há dois caminhos pelo
quais podemos seguir, pois o terceiro é o que se acabou de trilhar. Para quem, ao
contrário, não está andando, mas simplesmente olhando o mapa dessa ramificação, vai
parecer haver três caminhos a seguir. A ação vê apenas dois caminhos, a contemplação
vê três. (Rudnytsky apud Murad, 2014, p. 11).
Os duplos, como pares apresentados a si e aos outros como fragmentados, revelam, na
verdade, duas metades de um terceiro a ser cindido, assim como metades que se procuram e
se prosseguem enquanto duplos. A integralização do duplo, entretanto, não resiste à solidão,
se efetuando em sintonia entre o Eu, o “tu” e o nós.
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Com o duplo expulso, as unidades encontradas representariam o anjo e o demônio
românticos, os quais deveriam ter o caráter passageiro, cedendo lugar ao homem em sua
integralidade. Nesse sentido, os processos irônicos românticos sobre a autoconsciência da
obra mostram-se apenas materiais. No fracasso da representação do Eu, o assunto passa a ser
ele mesmo.
Muitas vezes, identifica-se no Romantismo uma revolta contra algo que tenha ou teria
sido perdido – o “paraíso perdido”. Para Maroni (2008), essa experiência pode também ser
chamada de busca, de audácia das travessias com a vivência das múltiplas moradas da alma,
com o inusitado aprendizado que conduz para o impossível: o lugar inencontrável. Transitar
pode criar interioridade, convivência com a incerteza; convivência com o não saber, com o
mistério, para que o “ser” possa fazer-se presente em um “lugar”, onde se torna permitido o
experienciar: a esperança.
No entanto, em algumas fugas da realidade dos românticos, descobre-se o
“inconsciente”, aquilo que está oculto e seguro para a mente racional: a origem de seus
sonhos de realização de desejos e das soluções irracionais de seus problemas. Ainda, para
Hauser (1998), descobre-se o habitar de duas almas em um mesmo corpo, o qual carrega seu
demônio e seu juiz e, ainda neste momento, se precipita a descoberta da psicanálise, fundada
posteriormente por Freud.
O duplo e os fenômenos irracionais têm a vantagem de não estarem subordinados ao
controle consciente, motivo pelo qual enaltece o inconsciente, os instintos obscuros, os
estados oníricos, os devaneios e êxtases de alma, buscando neles a satisfação que não lhe é
assegurada pelo frio e crítico intelecto. Por isso, a crença nas experiências diretas e nos
estados de ânimo, a entrega ao momento e à impressão fugaz. Loureiro (2002) acentua a
questão fundamental de que a psicanálise será a herdeira do Romantismo Alemão: o
81
inconsciente, o qual, no início do século XIX, os românticos propõem como núcleo de seu
programa estético, será retomado por Freud, no início do século XX, como núcleo de sua
Metapsicologia.
No artigo de Freud (1919/2010) intitulado, Das Unheimliche, [O inquietante], ele
inclina-se a trabalhar com outras camadas da vida psíquica; com emoções atenuadas, que
dependem de fatores concomitantes constituídos pelo material oferecido pela estética,
valendo-se, neste texto, da narrativa O Homem de Areia (1817/2012), de autoria de
Hoffmann.
A palavra alemã unheimlich [estranho, não familiar] e é alheia a heimlich [doméstico],
heimisch [nativo], vertraut [doméstico, autóctone, familiar], o que concluí que algo se torna
assustador justamente por não ser nem conhecido e nem familiar. Algum acontecimento novo
faz-se facilmente assustador e inquietante, contudo, algumas circunstâncias novas são
assustadoras e outras não, pois, há a necessidade do elemento inquietante a fim do novo, e do
não familiar se tornar assustador. Freud (1919/2010) refere-se aos estudos de Jentsch, quanto
à condição essencial para o surgimento do sentimento novo e não familiar, o qual seria a
condição de incerteza intelectual, podendo este sentimento variar de pessoa para pessoa. O
inquietante, portanto, causaria o espanto, visto que o sujeito seguro e orientado acerca de seu
ambiente dificilmente terá a impressão de algo inquietante nas coisas e eventos.
Freud, ainda, no início de seu texto explora os significados e a evolução da palavra
unheimlich, que, de maneira geral, denota vivências e situações nas quais se desperta o
sentimento do inquietante, do que é fora do comum ou, além disso: o inquietante poderia ser
nomeado enquanto uma espécie de elemento assustador que retoma a algo conhecido e
bastante familiar. A vivência da sensação de estranheza, da “inquietante estranheza familiar”,
depende de condições simples e uma abrangência das mais complexas.
82
O conto inicia-se com o jovem Nathaniel escrevendo uma carta para seu amigo Lothar,
sobre a experiência que acabara de ter: estava em seu quarto, quando batem à porta e, ao abri-
la, assusta-se com o homem que vê, trazendo uma lembrança de sua infância - a de um
vendedor de barômetros, amigo de seu pai. Ao avistar esse homem, Nathaniel o coloca para
fora. Ao descrever o relato da experiência, o jovem se recorda, por exemplo, da casa de sua
família, onde após o jantar, todos ficavam em torno de seu pai. Mas, de vez em quando, as
crianças eram colocadas na cama mais cedo, pois o Homem de Areia iria chegar. Nathaniel
ouvia os passos do visitante, com quem o pai estaria ocupado durante certas noites.
O protagonista ouviu de sua babá que o Homem de Areia era um sujeito perverso, que,
se chegasse antes das crianças ainda estarem deitadas, jogava areia nos olhos delas, fazendo
com que saltassem fora e, depois, colocava os olhos em um saco e os levava para alimentar
seus netos na lua. Para descobrir mais sobre tal Homem, Nathaniel se escondeu no escritório
de seu pai, na noite em que o visitante era esperado, reconhecendo o visitante como o
advogado Copellius. De seu esconderijo, ele descobre que o visitante e o pai parecem fazer
um experimento alquímico. Descoberto, ele é ameaçado de ter seus olhos arrancados e
desmaia. No entanto, o Homem de Areia ainda volta outra vez a sua casa e ocorre uma
explosão, a qual mata o pai de Nathaniel.
Depois de muitos anos, Nathaniel reconhece Copellius no vendedor Copolla e, diante
disso, a fim de ficar mais calmo, decide comprar qualquer coisa do vendedor. Ele compra um
binóculo, com o qual, porém, consegue ver Olímpia, por quem se apaixona. O jovem
enlouquece ao descobrir que Olímpia é uma boneca, construída por Copellius/Copolla.
Vindo de uma longa e severa doença, Nathaniel fica internado em um manicômio.
Após aparentar estar curado, reencontra a sua noiva, Clara e tenta jogá-la do alto de uma torre,
após olhar novamente pelo binóculo. Pouco tempo depois ele se joga da torre.
83
O sentimento do inquietante, portanto, de acordo com Freud (1919/2010), está
diretamente ligado à figura do Homem de Areia, visto que o medo de ferir ou perder os olhos,
como destaque em um dos temas da narrativa, é uma angústia infantil, embora, muitos adultos
ainda a conservem. Nos estudos psicanalíticos do autor acerca dos sonhos, das fantasias e dos
mitos, o medo em relação a ficar cego é frequentemente um substituto para o medo da
castração. O ato de cegar-se remete a Édipo, quanto a uma forma amenizada do castigo da
castração. Ainda, sobre o aspecto inquietante do Homem de Areia, Freud refere-se à angústia
do complexo infantil da castração e o retorno do recalcado:
Pois por que esse medo é aí colocado em relação íntima com a morte do pai?
Por que o Homem da Areia sempre surge para perturbar o amor? Ele separa o infeliz
estudante de sua noiva e de seu melhor amigo, que é o irmão daquela; ele destrói seu
segundo objeto de amor, a bela boneca Olímpia, e leva o próprio estudante ao suicídio,
quando é iminente a sua feliz união com Clara, após tê-la reconquistado. Esses e
outros traços da narrativa parecem arbitrários e sem sentido, quando é rejeitado o nexo
entre o medo relativo aos olhos e a castração, e tornam-se plenos de significado ao
substituirmos o Homem da Areia pelo pai temido, de cujas mãos se espera que venha a
castração (Freud, 1919/2010, p. 261).
No exemplo do Homem da Areia, o artifício do inquietante desperta um antigo medo
infantil. Todavia, a fonte de tal sentimento, não seria a angústia infantil, mas, contudo, um
desejo infantil, ou ainda, uma crença da infância. A partir dessas observações, Freud
(1919/2010) retoma os estudos sobre o fenômeno do duplo de autoria de Rank (2013), a fim
de investigar as diversas formas de variações e a evolução sobre o tema.
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Para Freud (1919/2010), a ideia do duplo não desaparece ao passar do narcisismo
primário, pois pode ter um novo significado nos estágios posteriores ao desenvolvimento do
ego, em que, se formam lentamente restos do ego, que têm a função de observar e criticar o
Eu e de exercer censura sobre a mente, da qual decorre a chamada consciência. Contudo, nos
casos patológicos de delírio, como também de transtorno de personalidade múltipla, essa
atividade mental torna-se isolada, dissociada do Eu e discernível à percepção do analista.
Certos conteúdos repelidos para a crítica do Eu podem ser incorporados ao duplo,
como, também, todos os desejos não realizados pela ação do “destino”. Assim, a fantasia e as
tendências do Eu facilitarão a ilusão do livre-arbítrio. No entanto, o caráter do inquietante
pode derivar do fato de que o duplo é uma criação remota e seus significados englobam as
crendices populares e as religiões.
As fragmentações internas exploradas por Hoffmann são um recuo das fases
evolutivas do sentimento do Eu, que há uma regressão a um período em que o Eu ainda não se
demarcava em relação ao mundo externo. Quando a natureza dos elementos inquietantes for
permeável a atribuir superstições, o sujeito estará inclinado a impor um significado oculto a
determinado evento.
O efeito inquietante do retorno de um mesmo resgata a vida psíquica infantil, pois a
repetição dos impulsos instintuais se liga provavelmente à natureza do mesmo e sobrepõem-se
ao princípio do prazer; a determinados aspectos da psique, onde o caráter demoníaco
manifesta-se ainda nas tendências do bebê e se transpõem na psicanálise do adulto neurótico.
Portanto, o que é percebido como inquietante recorda a uma compulsão de repetição interior.
A análise de casos de natureza inquietante conduziu Freud (1919/2010) à antiga
concepção de animismo, o qual assinala o mundo enquanto preenchido com espíritos –
concepção esta feita por meio da superestimação narcísica dos processos psíquicos, pela
85
onipotência dos pensamentos e pela técnica do ocultismo, que estão baseadas na atribuição de
poderes mágicos ao homem. Todas essas criações têm o ilimitado narcisismo da etapa de
desenvolvimento inicial, em que há a defesa contra a objeção da realidade.
A consciência de estar familiarizado com dada situação significa a segurança perante
as coisas que se tem conhecimento. Nesse caso, o desconhecido advindo do universo externo
representa uma ameaça. Portugal (2005) nota que o reconhecimento das situações remete ao
“estar em casa”, que nada mais é do que o estado paradisíaco, pois, apenas no momento em
que se foi comido o fruto da árvore do conhecimento, a condição de paraíso foi reconhecida
como tal. O saber foi a causa da expulsão e não é possível o retorno ao estado inocente e
seguro da existência. Nesse sentido, Sandler (2001, p. 105), enfatiza: “Quem sabe se Deus é
uma criação do Diabo interno de cada pessoa? E o que chamamos de Diabo, será o pai da
ciência?”.
A reação romântica, dessa forma, foi obtida devido à consciência dessa perda e
também, através da tentativa de construção de pequeno “paraíso”: o doce lar e o espaço
seguro. Uma criança crescida em um meio burguês, por exemplo, ainda não desenvolveu os
mecanismos de autoproteção dos pais e, então, tem que enfrentar os lugares ocultos dentro da
própria casa, como, em seu quarto escuro. A solução burguesa-iluminista, inicialmente, foi a
de ascender à luz do quarto escuro e promover as luzes da ciência, contudo, a iluminação
apenas teve impacto no mundo exterior e o estranho não viria de fora, mas, estaria enraizado
na operação de autodefesa, ao se projetar para fora algo como sendo uma ameaça externa. A
criança, ao projetar no escuro a sua imaginação, não importa se as coisas fazem sentido para a
lógica racional, porque, em sua forma notória, a fantasia não procura eliminar o medo,
declarando sua falta de significado, porém trabalha através de sua representação, onde tudo
86
passa a ser unheimlich (Portugal, 2005). A “inquietante estranheza familiar”, portanto, exerce
fascínio, pois reafirma ser impossível ocultar o que não veio à luz.
Os elementos inquietantes e o duplo fazem parte da constituição do vínculo humano e
da categoria do desamparo, um território psíquico que requer a cobertura de falhas e o
estabelecimento de um sentido e de uma ordem. Enquanto reedição do passado, algo
incomodamente familiar retorna se repetindo, mas, no entanto, se apresenta como diferente.
Também, como território do inconsciente, o inquietante representa a condição de Pathos no
indivíduo, onde o conhecimento psicanalítico é orientado a fim de dar sentido a determinadas
experiências, a buscar reconhecer o que ainda não foi nomeado e é regido pelos domínios do
inconsciente. O ato psicanalítico, com isso, promove o “estranhamento familiar” no
psiquismo do analisando, propondo paralisar o sintoma, ao promover a elaboração e a
vivência simultânea de desterritorialização e de aquisição do saber (Kupermann, 2003).
Em suas contribuições sobre o conceito intitulado como Gêmeo Imaginário, Bion
(1994) refere-se a sugestões da atividade moral que é estrangeira à personalidade estruturada,
assim como um sonho terrível em que, por exemplo, o sujeito aprisionado em seu carro possa
ser perseguido por seu gêmeo. Tal atividade psíquica é, portanto, nomeada por ataque cruel
do supereu, o qual assassina o ego.
Desse modo, o funcionamento cindido da personalidade age como um sistema de
dupla imaginária, isto é, uma parte da personalidade utiliza-se de elementos arcaicos do
próprio sujeito e a outra se vale de processos intrapsíquicos projetivos, devido à incapacidade
do sujeito em tolerar as realidades psíquicas internas que coexistem em si. Com isso, a
realidade interna e externa são negadas.
Já para Freud (1940 [1938]/1996b), quando uma criança, por exemplo, esta em vias de
satisfazer uma exigência pulsional e subitamente se assusta com o ensinamento da
87
experiência, ou seja, a continuação desse contentamento resultara em um perigo real, onde o
Eu deverá renunciar a satisfação ou rejeitar a realidade. Estabelece-se, portanto, um conflito
entre a exigência por parte do Eu e a proibição por parte da realidade. A divisão do Eu resulta,
nesse caso, na utilização de mecanismos de defesa que rejeitam a realidade e se recusam a
aceitar qualquer proibição. Por outro aspecto, ao reconhecer o perigo da realidade, assume o
medo desse perigo como um sintoma que tenta desfazer-se do próprio medo.
A categoria da “inquietante estranheza familiar”, o duplo e as divisões do Eu acolhidas
pro Freud instigam à reflexão acerca do que é desconhecido na inconsciência psíquica dos
indivíduos. Algo faltoso, desejado ou temido possibilita a dualidade: outra metade, boa ou
ruim, mas sempre complementar a sua finalidade. O “outro eu” sustenta a ideia do ser
completo, total e inteiro, o qual foi perdido. A mitologia pessoal, para Giora (2015), é
encantadora, porém entrar em contato com ela pode causar o horror e o sentimento de
“inquietante estranheza”. O duplo romântico – o Eu no outro ou a parte do Eu alocada no
outro – configura pares e deposita no externo o que é insuportável em si mesmo.
Mas tudo está lá, como parte perdida de nós mesmo, mas que foi guardada;
pareceria algo para ser suprimido, recalcado, aniquilado, esquecido, por não ser bom.
E o esquecimento então cria um núcleo velado, que acaba determinando em nós
atitudes por vezes estranhas, paradoxais, bem como inibições e repetições, na ilusão de
que o entendimento seja possível. O esquecimento passa então a funcionar como um
muro defensivo, um dique, por trás do qual ficam as palavras e o silêncio. E ás vezes,
ou quase sempre nas situações em que o recalcado reaparece, mesmo que
discretamente, nos estranhamos, e muito. Que é esse outro em mim? Quem é esse
88
outro que se ligou a mim? De quem é essa fala? Por quem falei? Para quem falei?
(Giora, 2015, p.12).
Todos os sujeitos durante sua existência convivem com mistérios, que giram,
sobretudo, a respeito de mistérios essenciais e que se camuflam no complexo de castração,
sendo a transitoriedade e a morte. Os maiores segredos são aqueles que remontam ao tempo,
onde o ciúme, a rivalidade, o amor e o ódio, vividos dentro da família, por exemplo, não se
apresentam expressos, o que, por sua vez, gera novos mistérios e fantasias, retomando a
estação edípica; um tempo de indeterminação, que carrega a marca do proibido, do incestuoso
e do inconfessável.
Se, por um lado, a experiência de contato com o inconsciente é acompanhada da
estranheza, a qual assinala uma divisão para o indivíduo, por outro prisma a produção fictícia,
tornando o inquietante mais confortável em concebê-lo.
O Unheimliche pertence à psicanálise, pois, como litoral, consiste em
reproduzir, em “redoar” essa metade sem par da qual subsiste o sujeito, no ponto em
que o inconsciente não se mistura como uma linguagem, perfurando a face serial do
significante – o Heim, o familiar. Por outro lado, a escrita do Unheimliche pertence à
literatura, onde se associa, segundo Borges, ao limbo dos poetas, só de letras, como
estas paisagens “de horror tranqüilo e silencioso” (Portugal, 2006, p. 162).
Enquanto objeto de saber, capaz de elaborar as mazelas da realidade psíquica com a
realidade externa, a literatura transporta a vida ao texto e o texto à vida. De fato, a fantasia,
89
elemento fundamental ao texto literário, também é construída a partir de um núcleo da
realidade, do mesmo modo que algumas lendas e mitos são contados, transformando
consideravelmente certos acontecimentos históricos. Como um fenômeno notoriamente
humano, a criação literária será sempre tão complexa, fascinante, misteriosa e essencial
quanto à própria condição humana.
Como saberes orientados à representação das possibilidades da condição humana, a
literatura e o conhecimento psicanalítico possuem um vínculo intrínseco, conforme aponta
Kon (2003). Já para Green (1994), o psicanalista deve ter uma visão de que toda a experiência
feita, sendo ela até mesmo a literária, requer o uso da interpretação, a qual não se faz apenas
pela revelação de um sentido oculto, mas, através da criação de um sentido ausente, onde a
verdadeira invenção de um sentido costuma dizer o que permaneceu em sofrimento. Freud,
todavia, apresentou a atitude inicial de desconhecimento quanto a imagem de “um outro”,
referindo-se ao fenômeno do duplo como algo estranho, que detém força na suspensão do
juízo da realidade e na confusão entre a percepção e a fantasia. Todavia, conseguiu captar que
a figura, a princípio um intruso, era o reflexo de si mesmo: o duplo. Logo, os conflitos da
posição freudiana diante da função da arte e do artista caminharam para possibilidade de um
fazer psicanalítico (Kon, 1996).
A psicanálise, segundo Freud (1913/1996), é um procedimento médico que propõe a
“cura” de certas formas de doenças nervosas, as neuroses, por meio de uma técnica
psicológica. A investigação psicanalítica, ao partir da análise dos sonhos, permite a
construção de uma psicologia das neuroses que é construída continuamente. Os fenômenos
psicopatológicos seriam desencadeados através de forças motivadoras de origem psíquica,
sendo que os sintomas eram provenientes de conflitos internos, nos quais o paciente combatia
continuamente seus desejos inconscientes.
90
O estabelecimento da hipótese de atividades mentais inconscientes seria advindo dos
estudos da filosofia. Entretanto, o inconsciente, para os filósofos, foi algo místico e
inatingível, cuja relação com a mente permaneceu obscura, ou identificaram o mental como
sendo o consciente e passaram a deduzir, dessa definição, que aquilo que é inconsciente não
pode ser mental, tampouco assunto da psicologia. De acordo com as afirmações de Loureiro
(2002), as afinidades entre a psicanálise e o Romantismo Alemão iniciam-se por meio da
arquitetura da alma humana, em que a noção de inconsciente foi a primeira afinidade
convocada. Elemento essencial para a psicologia romântica, o inconsciente é postulado com a
predominância de fatores irracionais na maior parte das manifestações psíquicas dos
indivíduos e das coletividades.
Os grandes temas abordados pela literatura fantástica – a loucura, o duplo, o
invisível, o espelho, a sombra, a morte, a solidão, a sexualidade, o desejo, o feminino,
o que não tem sentido, o impensado e o impensável, a busca desesperada por encontrar
respostas na razão, na ordem, no método, o que pouco antes ainda garantia, sem
surpresa, a certeza sobre si – parecem acomodar-se perfeitamente na perplexidade
nova que toma o homem da modernidade. É em relação à sombra desse homem, não
mais passível de ser iluminado por um ordenamento natural da representação, que se
insurge numa nova humanidade, numa nova rede epistêmica, o incompreensível, o
impensado e impensável, o inexplicável soterrado pela razão clássica (Kon, 2003, p.
16).
Nesse sentido, o homem-psicanalítico é um ser dotado de interioridade e abriga a
exterioridade do fantástico. O inconsciente freudiano, por conseguinte, é o território inédito
91
que lhe é intrínseco. O mundo psíquico vai acolher o maravilhoso, atraindo-o para seus
domínios e procurando, assim, desfazer o mistério essencial do fantástico.
Para Kon (2003), compreende-se a criação do pensamento freudiano e do homem-
psicanalítico, devido às ressonâncias e confluências como uma literatura específica, própria à
metade do século XIX: a literatura fantástica. A psicanálise, portanto, nasce como portadora
de uma diferença interna, pois, se de um lado acolhe o insólito no homem, dando visibilidade
e presença ao que até então não fazia sentido ou era oculto, de outro, trata de apaziguar o
indomável e até mesmo o inominável, ao estabelecer uma lógica própria à razão que procura
reinserir, no admissível, aquilo que teima em escapar.
O termo “inconsciente”, de acordo com Ffytche (2014), foi utilizado pela primeira vez
por Schelling, em 1800, sob análise das condições inconscientes da autoconsciência e das
origens da arte. O inconsciente romântico, conforme pontua Loureiro (2002), não é formado
pela soma dos conteúdos esquecidos ou reprimidos propostos por Freud. Não é uma
consciência larval, como conceituou Leibniz e nem mesmo é uma região obscura e perigosa,
como assinala Herder. Ele é a própria raiz humana, o qual se relaciona com os processos da
Natureza e permanece em harmonia com o Cosmos e com a origem divina. Portanto, o
inconsciente romântico é “interno” e se abre para a comunicação com o Todo, com a
Natureza, sendo uma passagem do Eu ao fluxo cósmico.
O metafísico arquitetado enquanto possuidor do “divino” individual, por sua vez,
rompe com o modelo da procriação na realidade, uma vez que o sujeito não resultaria de seus
pais humanos. Ele seria criação do vínculo oculto com sua fonte: o metafísico.
Bornheim (1985) assinala que, no Romantismo, almejou-se à fusão de uma unidade
superior. Contudo, todo conhecimento deveria ser explicado a partir de um princípio básico,
de raiz fundamental a todas as culturas.
92
Como componente da estrutura da história, Ffytche (2014) sugere que o inconsciente
romântico foi formado por processos divisórios primordiais e de repressão dentro da cultura.
A tarefa de encontrar indícios de crise nos registros mais antigos da vida humana permitiu
averiguar que o absoluto imergiu na inconsciência, não apenas como nascimento ontológico,
mas enquanto a ocorrência do real. Desse modo, o inconsciente foi discernido por Schelling,
por meio da mitologia grega, assim como Schubert aludiu aos vestígios a uma época perdida
primordial, envolvida nos cultos de mistérios clássicos.
Fichte pretende estabelecer a distinção entre o dualismo entre a mente e a
corporeidade. “O que sou, por essa razão eu sei, porque eu sou...”. Aqui nenhuma
conexão entre sujeito e objeto: e essa sujeito-objetividade, essa volta do conhecimento
a si mesmo, é o que eu designo como o conceito “Eu”. Esta não é uma declaração
psicológica a respeito da maneira como a consciência vivencia a si mesma, mas é
relevante para a maneira pela qual a autoconsciência, a autodeterminação e a
individualidade são concebidas com relação umas às outras (Ffytche, 2014, p. 71).
As análises românticas sobre a natureza do inconsciente e a atenção quanto aos
fenômenos do Eu, ainda de acordo com Ffytche (2014), tiveram como referencial os estudos
de Schelling e Schubert, os quais descobriram a divisão existente entre o diálogo entre self
consciente e um self inconsciente, sendo eles, possuidores de aspectos misteriosos ou
reprimidos da natureza moral. A psique, tanto para Carus quanto para Schelling, não era
apenas uma intermediária entre o corpo e a mente, pois mediava a determinação e a liberdade,
a necessidade lógica e psicológica acerca do pensar sobre si mesmo como fundamento da
93
criação livre de si. Já para Fichte, a harmonia do sujeito com o inconsciente viria através da
atenção para consigo mesmo e para com tudo que cerca o interior de si.
A psicanálise freudiana (1919/2010), ao adotar como fundamento em seus estudos a
natureza do fenômeno do duplo, a “inquietante estranheza familiar”, aos processos
inconscientes, aos mistérios do inexplicável contidos na narrativa de Hoffmann, pretendeu
mapear e esclarecer os acontecimentos sobrenaturais, a fim de torná-los menos obscuros e
entender sua causalidade oculta. Os vários dualismos ao nível da representação em Freud,
como, por exemplo, os princípios de prazer e os princípios de realidade, o inconsciente e o
pré-consciente/consciente têm o mesmo inconsciente como instância mediadora entre eles. A
superação do dualismo entre a fantasia e a realidade torna-se um jogo sustentado pelo
dinamismo da literatura fantástica. Freud transformou o universo do fantástico no retorno do
familiar reprimido, por meio das narrativas dos escritores do cenário romântico, como, em
especial, em Hoffmann.
Freud em Uma nota sobre o inconsciente na psicanálise (1912/1996), expressa que o
termo inconsciente sempre esteve presente no imaginário psicanalítico, mas, contudo, estava
latente na consciência. O termo havia sido empregado em seus artigos anteriores tendo o
sentido descritivo e, de tal modo, o inconsciente designa não somente as ideias latentes em
geral, as quais, em um primeiro momento, podem vir a ser chamadas de pré-conscientes, mas,
se refere, sobretudo, ao caráter dinâmico que tais ideias, as quais se mantêm apesar de sua
intensidade e atividade, à parte do nível consciente.
Os lapsos na linguagem, os erros na memória, o esquecimento, a natureza dos
sintomas e o estudo dos sonhos permitem compreender e demonstrar a deficiência destas
funções, devido à ocorrência da ação de ideias inconscientes. O produto das ações
inconscientes pode vir a penetrar na consciência, no entanto, é necessária uma quantidade de
94
esforço do indivíduo, pois, ao perceber a imersão desses conteúdos, o sujeito pode sentir
repulsa e ser dominado pela resistência causada por eles. O inconsciente também é
caracterizado como o enigma de um ato psíquico bem definido e, onde as noções de tempo e
espaço perdem sua importância. Os processos mentais inconscientes são completos e
perfeitos, assim como aos mecanismos da vida consciente. Medeiros (1959) afirma: “em
verdade é como se dentro de nós vivesse um diabo que nos obriga a fazer coisas que nos
surpreendem”.
O conceito do Eu, da maneira como Freud o utiliza, para Ffytche (2014), oscila entre a
objetividade genérica e individual e, também, enquanto algo socialmente coesivo, como o
bom-senso e a realidade objetiva. Loureiro (2002) aponta que o conceito de Eu formulado por
Freud é precário, pois ele é esmagado por outras instâncias – pelo isso e pelo supereu.
Contudo, o isso seria um alargamento em direção ao instinto, aquilo que permanece intocado
pela cultura, ao permitir com que o sujeito escape das opressões do mundo externo.
De acordo com Sandler (2000a), as ideias de “extrusão” de características internas à
mente, que sejam mal vindas, temidas, ou sentidas como dolorosas inventam uma verdadeira
psicologia, em que se imagina tanto uma causalidade – sempre externa – como um
“conhecimento” do mundo e das pessoas feitos à custa de um tipo de “espelho”. O mundo e as
pessoas relembram constantemente a pessoa, a ela mesma, visto como que “espelham” a
pessoa. Ela percebe algo em si, mas não suporta essa percepção. Assim, nesse sentido, as
pessoas e o mundo passam a “ser” como a mente que os produziu, revelando um
idealismo/subjetivismo.
Tal mecanismo é uma característica onipotente, conferida desde os primórdios à
própria divindade, que teria feito o homem à sua imagem e semelhança. Essa atitude seria
posteriormente entendida por Freud como “projeção” e, na obra de Rousseau, essa tendência
95
aparece cristalina, na afirmação deste de que o homem é naturalmente bom e somente pelas
instituições é feito mau. O homem, portanto, teria as combinações do “anjo”, conceituado por
Rousseau, e com o pequeno selvagem, proposto por Freud.
“Até os dias de hoje, a psicanálise é encarada como que cheirando a misticismo e o
seu inconsciente é olhado como uma daquelas coisas existentes entre o céu e a terra com que a
filosofia se recusa a sonhar” (Andrade, 2000, p. 27). O ocultismo, no entanto, dentro dos
limites assinalados pelo incognoscível, anuncia a subdivisão daquilo que ainda não é
conhecido, mas que poderá algum dia vir a ser.
A humanidade, de fato, é formada por elementos contrastantes, por deparar-se com a
mistura de dois gêmeos inimigos, que lutam a fim de ser o centro da atividade psíquica. Kon
(2003, p. 213), no entanto, destaca: “Somos, com Freud, não mais vítimas dos poderes do
maravilhoso, mas, sim, vítimas de poderes maravilhosos internos ao nosso ser”.
3.2 Ernst Theodor Amadeus Hoffmann
Somente a mais pura consonância do princípio psíquico inerente à lei do dualismo favorece a operação que vou agora empreender (Hoffmann, 1819/2009, p. 92).
Mas longe de mim está a mania de querer explicar por meio de vis princípios físicos aquilo que só no campo do puramente psíquico encontra sua inabalável origem natural (Hoffmann, 1819/2009, p. 147).
Ernst Theodor Wilhelm Hoffmann – cujo penúltimo nome substituiu para Amadeus
em homenagem a Mozart – nasceu em 24 de Janeiro de 1776, em Königsberg, Prússia
(posteriormente Kaliningrado, Rússia) e veio a falecer em 25 de Junho de 1822, em Berlim,
na Alemanha.
96
Hoffmann, em Berlim, consolidou-se como escritor, com suas histórias de mistério e
terror, as quais tornaram-no um dos mais expressivos novelistas alemães. O poder de
imaginação o levou às fronteiras do sobrenatural, vindo a influenciar uma série de escritores
como Baudelaire, Maupassant, Poe, Wilde, Dostoiévski, Álvares de Azevedo, entre outros.
Ao lado de Goethe e Heine, Hoffmann é um dos maiores escritores alemães de repercussão
internacional.
Além de escritor, Hoffmann foi músico, pintor, caricaturista, diretor de teatro,
introduzindo Calderón no palco alemão. Boêmio é o protótipo do artista romântico. De
acordo com a enciclopédia 501 grandes escritores (2009, p. 128), o epitáfio do artista
definiria bem sua personalidade e seus múltiplos talentos: “Conselheiro do Tribunal de
Justiça, excelente em seu ofício como poeta, músico, como pintor, dedicado a seus amigos”.
Como uma literatura específica, própria à metade do século XIX, a literatura
fantástica, segundo os apontamentos de Todorov (1981), é um gênero literário, no qual as
narrativas ficcionais estão centradas em elementos conhecidos ou desconhecidos na realidade
pelas ciências dos tempos, em cuja obra foi escrita. Os relatos fantásticos encontram-se ante o
inexplicável, uma vez que, assim como no pensamento mítico, a literatura fantástica não
ignora o limite entre a matéria e o espírito, mas, pelo contrário, busca o pretexto para
incessantes transgressões. No universo evocado pelo texto, produz-se um acontecimento ou
ação que provém do sobrenatural ou de um falso sobrenatural, provocando a reação no leitor
implícito, como, também, geralmente, no herói da história. A existência de seres ou
acontecimentos sobrenaturais, mais poderosos que o homem e do qual a razão conduz o leitor
não a comprovar os fatos narrados, mas à necessidade de buscar pelo seu significado.
O fenômeno de tal literatura decorre da incerteza causada diante das leis naturais,
frente a um acontecimento sobrenatural, no qual, a relação com o real e com o imaginário
97
rompe a ordem, desencadeando o mistério, o inexplicável e o inalterável da determinação
cotidiana. No autêntico campo do fantástico, existe sempre a possibilidade exterior e formal
de uma explicação simples dos fenômenos, mas, ao mesmo tempo, esta explicação carece por
completo de probabilidade interna. Há um fenômeno estranho que pode ser explicado de duas
maneiras: por tipos de causas naturais e sobrenaturais. A possibilidade de vacilar entre ambas
cria o efeito fantástico.
As condições necessárias a fim de definir a determinação do gênero fantástico, para
Todorov (1981), devem cumprir três características: em primeiro lugar, o texto deve
direcionar o leitor ao universo dos personagens, como um mundo de pessoas reais; em
segundo lugar, o leitor deve hesitar quanto a uma explicação natural ou explicação
sobrenatural dos acontecimentos evocados. No momento em que o leitor acomete ao mundo
dos personagens e se volta para sua própria prática – a de leitura – há o perigo de ameaça ao
fantástico, situado ao nível da interpretação. Finalmente, na terceira condição, o leitor deve
adotar a atitude frente ao texto, de nem interpretá-lo por meio da alegoria e nem de tomá-lo
pelo sentido da interpretação “poética”.
Perante eventos impossíveis de serem elucidados pela ordem do mundo familiar, duas
soluções são possíveis: tratá-lo com ilusão dos sentidos ou como parte realmente integrante de
uma realidade, regida por princípios, ainda desconhecidos. O fantástico, com isso, ocupa o
tempo da incerteza e se escolhe uma das duas respostas, a fim de se deixar o terreno do
fantástico para entrar em um gênero vizinho: o do estranho ou o do maravilhoso.
O homem busca por sentidos para a vida, por isso, a agregação ao fantástico diante de
artifícios literários como a ficção científica tem como principal característica proporcionar a
reflexão sobre aspectos da sociedade de massas, a falência do pensamento utópico através da
defesa do “todo” em detrimento das “partes”, como também a valorização de ideias
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igualmente em detrimento de fatos. Para Dutra (2012), o escritor traz personagens que
revelam um sujeito massacrado pela técnica, a despeito da evolução científica e, por um
sistema governamental que intenta controlar sua vida, sua reprodução e sua própria morte.
É possível encontrar na ficção de Hoffmann um universo observável da condição
fragmentada do homem moderno, o qual começa a esboçar-se no final do século XVIII,
coincidindo, portanto, com o surgimento do gênero fantástico. O fantástico, conforme assinala
Batalha (2012), em sua especificidade genérica ou modal, vincula-se ao advento da
modernidade. A demarcação semântica maravilhoso/fantástico é fruto dos progressos
estéticos e sua oposição metatextual foi se construindo gradativamente, uma vez identificadas
as condições intrínsecas exigidas para a existência dos dois gêneros, ou subgêneros. O fator
determinante do fantástico é o conceito de “ruptura” da racionalidade.
Na cultura literária no final do século XVIII, segundo Safranski (2010), emergindo
diante da ânsia pelo secreto, pelo fascinante desejo de mudança na mentalidade que repulsa o
espírito racionalista, esta atmosfera favorece o surgimento de um gênero literário sobre
irmandades secretas [Bundesroman], que conta com horror dosado, por exemplo, sobre
misteriosas irmandades e suas façanhas. A ânsia pelo segredo era uma força motriz, tanto para
aqueles que formavam alianças secretas, quanto para os que se deixavam intimidar por elas.
Tal gênero era lido por Hoffmann e, logo após constantes leituras, ele começou a escrever seu
primeiro romance sobre irmandades secretas, que, contudo, não foi publicado.
O ponto de referência real das histórias acerca das irmandades secretas são os jesuítas,
os maçons, os iluminados e os rosa-cruzes. Esse tipo de romance utiliza um esquema
estereotipado, no qual uma pessoa inofensiva cai em uma armadilha misteriosa; é perseguida;
e determinadas pessoas que, aparentemente sabem tudo sobre ela, cruzam seu caminho. De
maneira comum, o protagonista penetra nos recônditos mais secretos da irmandade e, por
99
vezes, é iniciado aos mistérios de uma escondida sabedoria ou intenção oculta. Conhece
alguns líderes, porém, jamais o maior deles. Os pertencentes da irmandade, identificados,
muitas vezes, se tratavam de pessoas que a vítima conhecia há algum tempo. Nessas
narrativas, costumeiramente, há uma boa e uma má entidade, lutando uma contra a outra e,
também, agentes duplos estariam infiltrados no decorrer dos eventos.
Emergindo do contexto de que muitos duvidavam do gradual crescimento do
progresso iluminado, o sonho, como um estado de emergência, permitiria deixar de lado
algumas etapas e fazer logo a felicidade individual, antes ainda que a razão garantisse a
felicidade da humanidade. Aguardavam-se mudanças surpreendentes, encontros que trouxesse
a prosperidade. Portanto, as fantasias que contornam as sociedades e os complôs de segredos
agitavam o público e, com isso, possibilitava o encontro com um mundo desconhecido,
tornando-se autodescoberta.
Nas consagrações dos mistérios dos antigos, segundo Schiller (2011b), havia uma
impressão temível e solene a fim de privilegiar o recurso do silêncio, o qual fornece à
imaginação tanto um espaço livre para expectativas quanto um receio que está por vir. Nos
exercícios do culto, no silêncio de toda uma congregação e nas superstições populares o
silêncio torna-se dispositivo eficaz para os devaneios, impulsionando o fantasiar. Além disso,
o silêncio nos palácios encantados, que surgem nas lendas das fadas e as florestas encantadas
inabitadas, incitam a solidão que, no entanto, traz um fundamento objetivo para o principal
temor: a ideia de desamparo do sujeito romântico.
O misterioso, enquanto categoria de ilusão, no final do século XVIII, ainda não havia
sido desvendado e ainda possuía uma natureza inquietante. Nesse sentido, Safranski (2010)
ressalta que o pensamento central do discurso de Novalis é o de que: “onde faltam deuses,
reinam os fantasmas”. A partir disso, o mundo foi conduzido pelos mistérios e pelos
100
fantasmas e tais tendências seriam convergidas para a sociedade, para a cultura e para a
política, a fim de investi-las e deslocá-las para o nacionalismo e para o poder político.
Atualmente, tais condutas teriam um sentido sagrado, sendo chamadas de “ideologias” e,
também, quando se separou o saber da crença, as pessoas foram lançadas a uma nova
confiança: a ciência como religião substituta.
Sobre o escapismo dos românticos, tão recorrentes em suas obras, constitui uma
resposta direta a questões vividas em seu momento histórico, o que é notavelmente visível no
caso de Hoffmann. Percebível inclusive em seus contos de fadas, nos quais o elemento
mágico não serve simplesmente para imergir o leitor em uma atmosfera de sonho, mas sim
para levá-lo a ver a própria realidade sob um novo prisma. A fantasia mostra-se sustentada ao
propor o secreto, o indefinido e o impenetrável como objetos de terror. Para Schiller (2011b),
enquanto elemento da realidade, a imaginação oferece-se aberta ao reino das possibilidades,
pois tende para o terrível, podendo vir a causar repúdio, justamente porque se supõe coisas
ruins, mais do que se espera por coisas boas, devido ao elemento subsidiado pelo
desconhecido.
Berlin (2015) enfatiza que, no Romantismo, sobretudo, nas narrativas de Hoffmann, a
estrutura fixa das coisas e da existência sufocaria o campo da ação e, a partir disso, as
fragmentações, as sugestões, os vislumbres e a iluminação mística seriam as formas para se
captar a realidade, visto que qualquer tentativa de circunscrever e oferecer uma explicação
absoluta e coerente frente à mesma estaria, basicamente, produzindo perversões e caricaturas.
Tais ideias estariam no cerne da fé romântica, em conjunto com a de que: “o homem seria um
joguete nas mãos do destino” (Carpeaux, 2012, p. 118).
O caos, de acordo com Safranski (2010), existente em diversas dimensões, fato que,
até mesmo o próprio Eu contém o caos e, de tal forma, a experiência plenamente desenvolvida
101
a fim de experienciar si mesmo, adviria por meio da espontaneidade, pois, o “Eu sou” é o
segredo revelado do mundo. O mundo, entretanto, não é o resumo de todos os fatos, mas de
todos os acontecimentos; daquilo que se descobre pela movimentação produtiva do Eu,
expandida por meio da sua liberdade criativa.
Para os românticos, Rosenfeld (1993) destaca que a realidade empírica é mera
aparência, pois, no íntimo, o mundo é espírito, que facilmente se condensa em “espíritos”, ao
fantástico. O irreal e onírico se localizam, por vezes, em pleno ambiente real, descrito com
grande precisão. Para Safranski (2010), em Hoffmann, o sobrenatural torna-se natural e
comum, enquanto a realidade da vida cotidiana se torna sinistra e assombrosa.
Talvez, o caso mais interessante de quebra de convenções se encontre nas narrativas
de Hoffmann e o principal tema de suas ficções, as quais acentuam tais rupturas, seja a
capacidade de transformar qualquer situação, através da ilusão psicológica. O objetivo de
Hoffmann foi o de tentar confundir a realidade com a aparência; a de dissolver a barreira entre
a realidade e a ilusão, entre o sonho e a vigília, entre a noite e o dia, entre o consciente e o
inconsciente, a fim de produzir um significado do universo sem barreiras, sem muros, através
de uma contínua transformação, partindo da vontade individual de moldar aquilo que se
deseja. Portanto, no Romantismo, foram reconhecidos certos aspectos da condição e da
existência humana, as quais haviam sido excluídas e tais incompreensões e paradoxos foram
evidenciados através das manifestações artísticas, próprias ao período (Berlin, 2015).
Os espaços das narrativas em Hoffmann são retilíneos e delimitados, mesmo quando
por fora denotem amplidão, pois, têm o efeito paradoxal de evocar o sentimento de estreiteza.
As regularidades no espaço causam o mesmo efeito das repetições no tempo, pois, quando são
utilizadas de forma econômica, produzem o sentimento de ritmo e, até mesmo de beleza.
Conquanto, usadas de modo abusivo, assumem a monotonia e o tédio. Os espaços vastos se
102
encolhem quando a razão retrocede ao comum, ao incomum e ao previsível, o que não pode
prever e, por isso, o já citado antiprograma romântico em Novalis: “tudo depende de dar ao
que é usual uma aparência misteriosa, ao conhecido a nobreza do desconhecido, ao que pode
perecer a aparência do infinito” (apud Safranski, 2010, p. 185).
Para Dimas (1994), a ambientação é subjetiva e implícita, o que faz com que atinja
elevados valores simbólicos na narrativa em que se insere. Todavia, como é expresso, o
espaço em instâncias posteriores pode atingir determinado valor simbólico. Em Hoffmann, as
personagens se perdem no tempo e no espaço, elementos utilizados para demonstrar a busca
dos indivíduos românticos diante da construção de sua própria identidade, por meio da
interação propiciada pelo ambiente em que se vive. Os espaços nas narrativas de Hoffmann
permitem identificar os indivíduos a lugares sociais existentes. Porém, também, há o intuito
de representação social e, ao mesmo tempo, o de preservar a condição ficcional do relato, ou
seja, considerá-la como um processo de criação estética.
É deslocável o presente, como deslocáveis são o passado e o futuro. Nas narrativas de
Hoffmann, o presente é considerado como incerto e frustrante; o futuro, desolador; e, com
isso, o tempo passado torna-se o cenário do imaginário e do fantástico para a apresentação do
enredo e das unidades espaço-temporais. O momento atual, o passado remoto e idealizado, as
imagens obsessivas e confusas quanto ao futuro, além de poderem ser conceituadas como um
tratado psicológico processam-se em um nível narrativo, cujas estruturas temporais não têm
uma marcação nítida.
Para Rosenfeld (1996), Goethe já havia reconhecido a subjetividade e relatividade do
tempo, sendo que a vivência subjetiva se afasta do tempo cronológico dos relógios. Em cada
instante, a consciência engloba o presente, o passado e o futuro, sendo um horizonte de
possibilidade e expectativas. Portanto, o espaço, o tempo e a causalidade, ao serem
103
desvelados, se constituem apenas como aparências exteriores e tornam o mundo narrado um
ambiente caótico e opaco, características próprias ao “espírito do tempo” do Romantismo.
Dois caminhos são definidos nas narrativas de Hoffmann, segundo Carpeaux (2012).
De um lado, a transformação do Romantismo em um espetáculo, comercialmente explorado
para as grandes massas de leitores e, do outro lado, a elevação, que o pensamento de Novalis
se encontra com a arte de Baudelaire. Nos contos de Hoffmann, por exemplo, Safranski
(2010) afirma que todos os cidadãos vistos como comportados e, os quais não permitem ser
constrangidos, representam essa tendência para identidade sem surpresas. Contudo, ao não
desejarem nenhuma mudança, faz no máximo carreira: uma versão burguesa e banal da
metamorfose; a verdadeira ameaça à geração que rompeu com a antiga crença de que não se
encontra satisfação na razão, mas que havia sido motivada pelos voos da imaginação.
Encontra-se, portanto, na monotonia e contra aquilo que ela acarreta: o mal-estar diante da
normalidade concentrada no medo do tédio - a consciência do vazio, a insignificância da
existência e do nada.
Em Hoffmann, o aniquilamento fantasmagórico da realidade empírica se produz
constantemente tanto pela passagem a um mundo ideal quanto pela deformação grotesca da
realidade vulgar. De acordo com Rosenfeld (1996), os bons e maus espíritos, de um mundo
onírico e espectral, repetem e ecoam a fragmentação e desarmonia do mundo real. Nota-se
também, em Hoffmann, uma inclinação às ciências ocultas (sonambulismo, fantasmas,
telepatia, mesmerismo), na qual a súmula da tendência de sua obra se concretizou pela efusão
violenta de paixões, pela visão dissonante do mundo, pelo ímpeto irracional, pelo lado
noturno e tétrico da vida, pelo estranho, excêntrico, caricato e grotesco.
Freud, em Prefácio e textos breves. E. T. A. Hoffmann e a função da consciência (1919/2010), aponta o romance O elixir do diabo, de Hoffmann, como sendo rico em
104
descrições de estados anímicos patológicos. O personagem Schönfeld consola o herói da
história, estando este de consciência temporariamente perturbada. A personagem ainda pontua
que a consciência é uma maldita atividade, um atroz fiscal, um auxiliar de controle, que
“montou seu escritório no pequenino cômodo superior” e complementa, ao notar que: “a
mercadoria pretende sair”. Hoffmann (1819/2009) destaca, a partir disso, que o psíquico
condiciona o organismo humano, que deve sua existência ao espírito e à faculdade do
pensamento.
O princípio de utilidade e de funcionalidade que oculta as fantasias do mundo burguês
é um dos motivos para o desajustamento romântico diante da normalidade. Outra razão para
que os românticos lutem contra a realidade é um processo que Hoffmann denomina “perda da
pluralidade” (Safranski, 2010). Desse modo, no Romantismo é proposto o Pathos de um novo
começo, por meio da experiência de conversão, ao voltar-se para a interioridade.
O homem dilacerado, saudoso de unidade, é tema constante das seguintes obras de
Hoffmann: os quatro volumes de Fantasiestücke in Callots Manier [Contos Fantásticos à
Maneira de Callot, 1813-1815], os três volumes dos Nachtstücke [Contos Noturnos, 1817], os
quatros volumes de Die Serapionnsbrüder [Os irmãos Serapions, 1819-1821] e no volume
único de Hoffmanns Tod [A morte de Hoffmann, 1820-1825].
O Eu, no Romantismo, segundo Rosenfeld & Guinsburg (1985), coloca-se diante de
um espelho, que é ele próprio e no qual se desdobra. Com isso, perdidos os fins e os objetos
superiores desta busca, restam os meios entre os quais se incluem o próprio objeto imediato e
ponto de partida, ou seja, o homem singular. É nele que se concentra a ironia romântica,
sobretudo sob a forma de autoironia. Dessa forma, uma parte do Eu converte-se em objeto,
enquanto a outra se mantém como o sujeito que ironiza. No Romantismo, o grotesco eclode
105
nas desordens dos níveis do ser, fazendo-se saltar à superfície expressiva da obra artística,
justamente por compulsão das oposições radicais que seus traços envolvem.
O fenômeno do duplo, no Romantismo, especialmente em Hoffmann, representa a
dependência a símbolos paradoxais e alternativos do cenário fantástico, diante das descobertas
científicas e racionalismos propostos pelo Iluminismo. O duplo assume seu próprio conjunto
de leis únicas, que apresenta o intuito de expressar um Eu dividido, revelado de forma
dramática, fluida e enigmática, o qual escapa do raciocínio fundamentado pelo real. Os termos
dualidades, antíteses e cisões remetem ao terreno do imaginário, onde o retorno a lendas e
histórias mágicas da tradição popular se articula ao profundo estado de insegurança
individual, social e comunitária. Como o mundo da diferença é calcado por meio do sentido
de valor, a noção do duplo inquieta e testemunha a insuficiência do ser. O encontro com “um
outro”, com a identidade dividida, sugere ser um mito o encontro consigo mesmo, pois o Eu é
uma entidade desconhecida, contudo, é necessário a busca pelo conhecimento sobre si e sobre
as possíveis verdades das muitas realidades existentes.
Hoffmann é, ao mesmo tempo, escritor industrializado, na sua existência diurna, e
artista fantástico, na sua existência noturna. O primeiro transformou fantasmas para uso dos
burgueses, já o outro, viu elementos de verdade, a fim de descrevê-los com o Realismo de
Balzac, levando o leitor à esfera do horror drástico e sublime. A própria realidade foi
transmitida de maneira inédita, como, por exemplo, quando a cidade de Berlim, cinzenta e
prosaica, aparece em seus contos como um inferno povoada por diabos. O mágico, o
originário da Idade Média, o fantasmagórico, nesse momento, era ligado a uma devoção, a
qual, continuava a ter conjuntura. Hoffmann, além do mais, em narrativas com características
inquietantes, chega a indicar o endereço dos seus fantasmas, os nomes de ruas e casas
realmente existentes.
106
Ainda, segundo Carpeaux (2012), o recurso supremo artístico de Hoffmann foi o de
contrastar, com o naturalismo do ambiente, o pavor das aparições, ocasionando ao leitor
efeitos humorísticos e terrores da esfera do fantástico, os quais se confundem pela mesma raiz
que possuem: a invasão da vida burguesa e normal pelas criaturas e monstros do lado noturno
da natureza. Hoffmann, nesse sentido, pertence, em certo sentido, ao Romantismo de Iena e
não ao de Berlim, visto que o sonho de uma vida puramente estética e surpreendente não
encontrou expressão mais fantástica do que em seus contos.
Os românticos de Iena, segundo Duarte (2011), transformaram a “eternidade”,
substantiva, em advérbio aplicado à renovação: ao “eternamente”. Tentaram, assim, contra o
preceito ontológico tradicional, visto que a verdade absoluta é definida pela ausência de
tempo da eternidade plena. Apenas é eterna a busca pela eternidade; nada que está no tempo é
eterno, mas o próprio tempo o é.
A história de uma personalidade dividida, não havia sido contada com tamanha
sensibilidade como foi por Hoffmann. Com isso, a dor da existência percebida durante o
contexto romântico se conduz à visão de que em cada pessoa estão contidas as experiências de
várias pessoas, tornando-a múltipla. No entanto, o niilismo do escritor era “vitalista”, ao
afastar toda a amargura da existência, cuja consequência deste humor, o próprio Hoffmann
definiria como: “Uma força de pensamento maravilhosa, oriunda da contemplação da
natureza, apta a criar seu próprio sósia irônico, em cujas estranhas palhaçadas ele reconhece
as suas e – eu quero manter a palavra ousada – também as palhaçadas de toda existência aqui,
regozijando-se” (apud Safranski 2010, p. 205). O humorismo do terrível, em Hoffmann, de
acordo com Carpeaux (2013), baseia-se no realismo quase sóbrio e exato que envolve as
descrições acerca dos mistérios originários da própria vida.
107
A ideia de sósias, objeto de humorismo no mundo antigo e renascentista, foi então
aperfeiçoada por meio da fantasia popular do Doppelgänger – o duplo, o homem que busca o
encontro consigo mesmo. As desilusões sucessivas da realidade e da personalidade, em
Hoffmann, representaram os símbolos da dissolução da realidade social pela Revolução. Para
Todorov (1981), a aparição do fenômeno do duplo nas narrativas de Hoffmann são motivos
de alegria, pois, representa a vitória do espírito sobre a matéria. Safranski (2012) destaca
ainda que, na obra de Hoffmann, a fantasia e a realidade se misturam, pois tudo é suprimido
pela consciência satisfeita de duplicidade de todos os elementos que fazem parte do Eu. Em
Hoffmann, visualiza-se o que está perto, aquilo que se transforma ao que está distante. Suas
narrativas surpreendem e seu leitor deve estar livre, para que veja as coisas de determinada
forma, não se limitando ao campo da visão e tornando o comum verdadeiramente usual. Por
meio da fantasia, há a fachada do real e foi justamente este jogo que Hoffmann trouxe
novamente à tona, que é o jogo transformador do carnaval. Afastando às exigências
devastadoras do exterior e familiarizado com os abismos do interior, ele se transforma em um
grande “carnavalesco” da literatura do século XIX.
O carnaval permite a transformação, reprimida pela pressão de uma identidade sem
conflitos no cotidiano burguês, pois pode ser vivido no instante presente, assim como o riso,
que liberta o sujeito da opressão. O carnaval faz seu jogo de inversão, como quem está acima
e como quem está abaixo, com o bem e o mal, com o belo e o horrendo, como o homem e a
mulher. As hierarquias desaparecem e se pode rir do que, geralmente causa medo. Até mesmo
com as experiências fundamentais da vida, como o nascimento, o amor e a morte, podem
produzir o humor. Segundo Bakhtin (1996), a “sensação carnavalesca do mundo” - de algo
corporalmente vivido, o qual produz a unidade e o caráter inesgotável da existência –
transforma as situações em íntimas, subjetivas e individualizadas.
108
Em uma festa popular como o carnaval, portanto, há o rebaixamento, a eliminação de
barreiras e a quebra com o cotidiano. Os papéis invertem-se e, ao mesmo tempo, aproximam-
se, possibilitando a eclosão do cômico e a mistura entre o sagrado e o profano. Os temas
desenvolvidos nas narrativas de Hoffmann, como, por exemplo, a loucura, a morte, as figuras
do diabo e as dissociações da personalidade são empregadas, a fim de aterrorizar o leitor,
remetendo-o ao mundo exterior, o qual não é mais sentido como sendo seu.
As luzes e o brilho próprios do carnaval cedem espaço às sombras, ao noturno e,
assim, o realismo grotesco, que era claro, acessível à luz do dia, provocaria riso. Entretanto,
no grotesco romântico, para Kupermann (2003), a luz deveria permanecer secreta e oculta,
tornando-se inquietante. O carnaval popular permite o riso ambivalente, porém, no contexto
do Romantismo passa a ser apreciado como feiura ou deformação, ainda que vivenciadas
como próprias da realidade humana.
O termo grotesco, ainda, de acordo com o mesmo estudioso, foi definido como estilo
artístico apenas no final do século XV, tendo como referencial a pintura ornamental
descoberta nos subterrâneos das termas de Tito, em Roma, chamado grottesca, do substantivo
grotta, gruta em italiano. A característica marcante dessas figurações era a mistura insólita das
formas vegetais, animais e humanas, que se confundiam umas com as outras. Além do mais, o
grotesco requeria uma apresentação do universo, na qual a mobilidade e as transformações
impostas pelo tempo colidiam com as representações de um mundo, cuja essência abrigaria a
estabilidade e a perfeição.
Em seus estudos sobre o grotesco e o sublime, Victor Hugo (2010) alude ao
nascimento do gênio moderno, o qual nasceu da mescla do tipo grotesco com o tipo sublime;
em meio as suas formas mais variadas e complexas e, dessa forma, oposto à simplicidade do
gênio antigo. O grotesco é a mais rica fonte para as manifestações artísticas, pois objetiva,
109
junto do sublime, um meio de contraste. A arte, portanto, se desdobra e se faz por meio de um
ser harmonioso e incompleto, onde o belo tem um tipo e o feio mil. O chamado “feio” é um
conjunto que se harmoniza com toda a criação e, por isso, se apresenta em aspectos novos,
mais incompletos.
O sublime sobre o sublime dificilmente produz um contraste e se tem a necessidade de
se descansar de tudo, inclusive do belo. Entretanto, o grotesco constitui-se por um tempo de
recuo, de comparação, um ponto de partida, de onde se eleva para o belo com uma percepção
mais entusiasmada, como também expressa o pessimismo e a desistência dos românticos.
As trevas são terríveis e temíveis justamente por serem suscetíveis ao sublime: não são
terríveis em si mesmas, mas escondem os objetos e abandonam todo o poder da faculdade da
imaginação. Também o indeterminado é um ingrediente do terrível, pois oferece à faculdade
de imaginação a liberdade de realçar o que julgar apropriado. O determinado, ao contrário,
leva ao conhecimento distinto e deduz o objeto às alternativas da fantasia, na medida em que
o submete ao entendimento (Schiller, 2011b).
O grotesco, dessa forma, surge por meio da desordem dos níveis do ser, isto é, quando
uma perturbação é produzida e o homem se vê incapaz de exercer uma função restauradora.
Seus efeitos estilísticos e as camadas ontológicas mesclam-se. Rosenfeld & Guinsburg (1985)
referem-se ao grotesco como uma descoberta ou redescoberta romântica, cuja arte de Dionísio
adquiriu grande importância ao homem romântico: o de deus irracional, telúrico, que
ressuscitou mais uma vez para a celebração dos mistérios.
Diante da sensibilidade em conflito, do dinamismo da interiorização, reconduz-se a
uma direção centrípeta, ou seja, para dentro e para o Eu, enquanto a direção centrífuga da
consciência está fora e para as coisas. Sendo assim, o subjetivismo radical em Hoffmann é
efetuado por meio das atitudes de ironia, de autodilaceração e de autofragmentação de seus
110
personagens frente ao contexto romântico, que fazem do fenômeno do duplo, em suas
narrativas, um ideal romântico, ao olhar a realidade a partir de múltiplos ângulos, e tendo
como perspectiva a de que a percepção da realidade pode ser mais fantástica do que qualquer
fantasia. Ao representar um mundo insólito e múltiplo, a literatura fantástica e, em especial, a
ficção de Hoffmann, permitem novas percepções quanto ao real, fazendo com que sua
apresentação não conduza à negação das situações, mas produza à reflexão e o constante
questionamento.
A ambição romântica quanto ao postulado do absoluto, portanto, afirma haver um
monismo ontológico e epistemológico, logo a unidade e a síntese tanto marcam a “alma
romântica”. Em Hoffmann, a princípio, como ideal romântico, existe a necessidade de se
avistar um possível reencontro com a unidade perdida, que, no entanto, assinala para uma
essência e origem, a qual de forma ilusória e idealizada, os românticos acreditam ter existido e
buscam por seu resgate. Em Hoffmann, o possível encontro “utópico” com a unidade
romântica viria por meio do resgate com o Eu. “A arbitrariedade absoluta é, em certo sentido,
picante e romântica. Essa é a romantização positiva da matéria. O não polêmico é a forma
negativa” (Schlegel, 2016, p. 139).
Como marca romântica, há a ambição pela unidade que envolve a poética, a lógica, a
filosofia, a retórica e a ética. Contudo, para Schlegel (2016), a unidade romântica não é
poética, mas mística; a unidade ética torna-se absoluta, quando individual; a totalidade do
romance vem através de sua parcialidade limitada, mas se deve aspirar por uma totalidade
ilimitada e a totalidade filosófica é adquirida por conta da satisfação. A unidade, a partir
disso, na verdade, seria uma forma particular de unidade.
111
Representação absoluta é ingênua, a representação do absoluto é sentimental.
Shakespeare é, ao mesmo tempo, ingênuo e sentimental no mais alto grau. Um colosso
da poesia moderno; o ingênuo em Romeu, por exemplo, é evidente intencional. Não
será toda mímica absoluta, ética, infinita e potenciada uma representação do ingênuo?
(Schlegel, 2016, p. 122).
Ainda, para Schlegel, (2016), a todo escrito crítico perfeito pertence à capacidade de
síntese e análise absolutas. A arte, desse modo, cobiça unificar dois absolutos: a
individualidade absoluta e a universalidade absoluta. “Espírito é unidade e totalidade de uma
maioria indeterminada de singularidades incondicionadas. Tom é uma unidade indeterminada
de especificidades. Forma é uma totalidade de limites absolutos. Matéria é uma parte da
realidade absoluta. (Schlegel, 2016, p. 148).
As multiplicidades, as diferenças das personagens e das narrativas, em Hoffmann,
produzem um anseio pelo saber total, que engloba o artístico, o filosófico e o psíquico, diante
das diversas realidades. Porém, paradoxalmente, os românticos e os desdobramentos dos
fenômenos do duplo, sugeririam o encontro consigo mesmo, mas abrem-se para a
fragmentação, para o infinito, para “o sempre” acabamento e para o devir. Hoffmann, como
romântico procura a totalidade romântica, mas sempre visualiza os fragmentos do Eu, a
divisão que torna o sujeito um “divíduo”. O encontro com os fragmentos do Eu e com a
complexidade dos vários “Eus” existentes no sujeito, faz com que a leitura de Hoffmann
possibilite a percepção de que a proposta romântica se esbarre com a noção psicanalítica de
um Eu descentralizado e cindido. Com isso, há o rompimento com qualquer crença a respeito
de uma verdade absoluta quanto ao sujeito e, principalmente, quanto ao seu psiquismo.
112
A fragmentação jamais está sozinha, pois sua forma é plural. Duarte (2011) aponta
para a expansão da fragmentação que, ao invés de evidenciar por soluções e respostas, o
fragmento, por excelência, é incompleto e afirma a lógica da diferença: não o da identidade, a
completude nunca ocorrerá, pois os fragmentos não cessam. Atravessando a formação de uma
totalidade fechada e sem diferenças, o fragmento pontua, repete, lança, contradiz, isto é, forja
sua duplicidade constituinte: parte e todo ao mesmo tempo.
A obra poética é frequentemente apenas o esboço, o estudo ou o fragmento, assim
como o Eu. Mesmo o maior sistema é apenas um fragmento (Schlegel, 2016). A tentativa
romântica, consequentemente, de alcançar o absoluto, somente pode ser relativa ou
contraditória. Para Duarte (2011), isso não seria tolerável para Hegel, cuja dialética foi a
estratégia para assegurar o respeito pelo princípio da não contradição, resolvendo no jogo da
síntese do saber a oposição entre a tese e antítese.
Nesse sentido, a fusão com o duplo e, a partir dele, tornar-se uno, revela a tentativa
romântica de reencontro com a unidade perdida. A “unidade do ser uno” está perdida, pois o
Eu é fragmentado de si. A partir disso, existe a possibilidade do encontro com o duplo, como
o “outro de si” ou como os “outros Eus de si”, a fim de haver a permanente construção do Eu
e a eterna busca por seus fragmentos sociais e psíquicos. Portanto, o “outro”, em Hoffmann,
aponta para a possibilidade da existência do “Eu”. Simbolicamente, a vida pode ser uma
criação literária, que oferece ao homem, mesmo ele sendo um “divíduo”, a oportunidade de
que ele seja um escritor de si.
113
4 A LEITURA INTERPRETATIVA DOS CONTOS
4.1 A Imagem Perdida
Um homem assim tem dupla existência; por mais que sofra e esteja oprimido por decepções, faz-se quando se recolhe a si mesmo, rodeado por uma auréola na qual não penetram a dor ou a revolta (Shelley, 2007, p. 33).
O homem, entretanto, pode ser oposto a si mesmo de duas maneiras: como selvagem, quando seus sentimentos imperam sobre seus princípios, ou como bárbaro, quando seus princípios destroem seus sentimentos. O selvagem despreza a arte e reconhece a natureza como sua soberana irrestrita; o bárbaro escarnece e desonra a natureza, mas continua sendo escravo de seu escravo por um modo frequentemente mais desprezível que o do selvagem (Schiller, 2011b, p. 68).
O conto A imagem perdida (2003) é originalmente intitulado como Die Geschichte
vom verlorenen Spiegelbilde e não está incluso em nenhum livro de Hoffmann, encontrando-
se como pertencente à coleção de textos dispersos do autor. Segundo Rank (2013), nesse
mesmo período, no qual o ano de publicação dessa narrativa não é datado precisamente, um
novo filme da Messterfilm, O homem no espelho [Der Mann im Spiegel] teria sido baseado
nessa história de Hoffmann, sendo adaptado por Robert Wiene. A imagem perdida é um
conto cuja temática encontra-se ligada às consequências da ausência/perda de sombra, tal
como a perda da imagem no filme alemão O estudante de Praga (1913), o qual foi baseado
em William Wilson, de Edgar Allan Poe.
Hoffmann, em A Imagem perdida, evoca a obra História maravilhosa de Peter
Schlemihl (1814/2003), uma fábula, de autoria do escritor e naturalista franco-alemão
Adelbert von Chamisso. O jovem Peter Schlemihl, de Chamisso, depara-se com uma proposta
114
inusitada de um estranho senhor (o diabo), que em troca de uma bolsa mágica, a qual nunca
para de fornecer moedas de ouro, o jovem deveria trocar por sua sombra. Peter gostou das
vantagens e fez a troca. O diabo prometeu que retornaria dentro de um ano. No entanto, logo
Schlemihl se arrepende do que fizera, porque as consequências não tardaram a acontecer: as
pessoas estranham e se afastam; o jovem é perseguido e afastado da sociedade. Neste
momento, surge novamente o diabo, que se oferece para devolver sua sombra em troca de sua
alma, porém Schlemihl resiste e nega.
O diabo insiste em persegui-lo e assediá-lo, mas Peter resiste obstinadamente, até que
ele joga a bolsa mágica em um precipício e abre mão do benefício do primeiro contrato. O
vínculo é desfeito e o diabo desaparece. Sozinho e sem propósitos, o jovem, sem sombra e
pobre, encontra com um par de botas velhas que comprara de um mascate com suas últimas
economias, sendo elas, as encantadas Botas-de-Sete-Léguas. Depois disso, a única ocupação
da vida de Schlemihl foi a de conhecer cada canto da Terra e colocar seu conhecimento em
livros para servir a futuros pesquisadores. A história de Chamisso tem ingredientes de uma
fábula: o pacto do com demônio, as riquezas e poderes inesgotáveis, a peregrinação pelo
mundo e pode ter ser uma alegoria para os tempos modernos. O homem sem sombra de
Chamisso: Peter Schlemihl é representado por Hoffmann, em A imagem perdida.
Estruturalmente, a narrativa A imagem perdida (2003) encontra-se dividida em duas
partes. A primeira localiza-se temporalmente na véspera do Ano Novo, em que Hoffmann (o
personagem principal) relata seu reencontro com Júlia. O protagonista conhece Peter
Schlemihl, sua sombra, e o General Suwarow, o seu reflexo. Júlia seduz Hoffmann, porém
acaba abandonando-o e levando a sombra dele consigo. Suwarow alerta Hoffmann quanto ao
perigo que está por vir, deixando uma carta, na qual está contida a história dos dois. Nesse
momento, começa a segunda parte do conto, em que a história de Erasmo Spickherr, o general
115
Suwarow, é narrada. Deixando-se seduzir por Giulietta, permite, inconscientemente, que esta
também aprisione seu reflexo no espelho. Nesse caso, as duas partes do conto estão inter-
relacionadas e espelhadas.
Todos os elementos duais em ambas as histórias inserem-se nos fenômenos do que é
estrangeiro, o que é aparentemente alheio ao Eu e, com isso, apenas podem ser apresentados
sob a forma do mistério, do desconhecido e do enigmático. Sendo assim, a categoria do
inquietante transformou-se em algo familiar, ou seja, nos próprios desejos inconscientes, os
quais, contudo, ainda não são dominados e conhecidos pelo próprio sujeito. Isso faz, portanto,
com que haja um aspecto assustador e pavoroso mediante a experiência.
As relações com a angústia e com o desejo inconsciente manifestam-se, assim, por
meio da temática do duplo de que o “homem não é o senhor de sua casa”. O recalque, na
verdade, é o retorno do recalcado e, em cada novo aparecimento, ele esbarra com a vigilância
do Eu e de seus simbolismos. Todavia, o inconsciente insiste em romper com tais bloqueios e
o recalcado regressa disfarçado nos sintomas, nos sonhos e em algumas vivências a princípio
incompreensíveis. A repressão é o processo psíquico do qual o sujeito determina ideias,
pensamentos, lembranças e bloqueios, ao submergi-los na negação inconsciente. O bloqueio,
desse modo, ocasiona a angústia, que, longe de ser extinta, se liga à pulsão. O recalcado,
portanto, torna-se o elemento central do inconsciente.
Em A imagem perdida, os protagonistas expressam a crise romântica que abrangeria
tanto o conflito de seu ser quanto a de seu confuso momento histórico e social. Com isso, a
crise do Eu expressa-se por meio das múltiplas e fragmentadas manifestações do fenômeno do
duplo. O sujeito confronta-se com as dispersões de seus “Eus”, nos quais sua percepção oscila
diante de uma imagem refletida ou que, ilusoriamente, teria, no momento passado, uma
imagem de seu Eu pleno, que foi perdida e, no entanto, busca resgatá-la.
116
O foco narrativo da primeira parte do conto é em primeira pessoa, tendo pela
personagem Hoffmann a principal, o que confirma a presença de um narrador autodiegético –
aquele que descreve suas próprias experiências, configurando a entidade que protagoniza a
dupla aventura de ser herói da história e o responsável pela sua narração. Com a eclosão do
Romantismo, o Eu realiza uma viagem em direção ao seu próprio centro. Portanto, as
narrativas se tornam o relato da abordagem pessoal, por meio de um movimento reflexivo em
torno de si mesmo, através do qual o sujeito constrói a sua essencial verdade. Já a segunda
parte da história encontra-se através da narração de onisciência neutra, em que a voz em
terceira pessoa não realiza intrusões ou comentários gerais sobre o comportamento das
personagens, embora a presença do narrador se interponha entre o leitor e a história de
maneira clara.
A construção do conto, ao apresentar variações nas vozes narrativas, possibilita
condições para que o real seja captado sob duas perspectivas. O foco em primeira pessoa
evidencia a necessidade romântica da possibilidade de conhecimento acerca do Eu, como,
também, propõe uma teoria subjetiva de interpretação e reflexão do mundo, tendo por
respaldo o elemento da vivência interior, efetuada através da linguagem ficcional. Já o foco
em terceira pessoa denota a intenção de distanciamento, pois, como ambas narrativas são
atreladas, o protagonista da primeira parte poderia estar um pouco mais afastado de sua
interioridade e fantasias a fim de poder observar os acontecimentos narrados por “um outro”
com maior nitidez e desprendimento. Com isso, a duplicidade nas vozes da composição da
narrativa, a partir de oposições na forma de descrevê-la e tratá-la, sugere o equilíbrio ativo das
forças e da necessidade de complementaridade.
Inicialmente, a atmosfera do conto sugere o mistério, algo de natureza inquietante, que
poderá vir a acontecer no decorrer da narrativa. Hoffmann, o narrador, à véspera do Ano
117
Novo, descreve-a sendo uma tarde de inverno e sente o sangue queimar-lhe as veias e o
coração a gelar-lhe o peito. Descreve sentir sensações desconhecidas, as quais poderiam ser
febre ou até mesmo delírio. Os gatos estariam enfurecidos e, também, algumas vozes
confundiam-se com a tempestade ou com o “tiquetaquear do relógio que assinala a queda das
horas no abismo da eternidade”. Com isso, o autor sugere que o oculto e o inesperado
estariam presentes na vivência de seus sentimentos, a incerteza dos fatos, assim como
responsáveis pelas possíveis rupturas da ordem no decorrer do conto.
Como se trata de uma narrativa fantástica, tais elementos teriam o propósito de romper
com a estrutura e com a disciplina diante do mal-estar desencadeado pelo contexto, onde os
escritores românticos tinham receio acerca do tédio e da monotonia da vida burguesa, que
privilegiou e ascendeu aos valores de condição quantitativa, como o dinheiro, o lucro e a
realidade cruel da existência.
Para o narrador, a véspera do Ano Novo representava o irrompimento de dores morais,
o sentimento de envelhecimento e a aproximação do fim: a morte. O Ano Novo é o momento
quando um novo ano civil começa e, em geral, ele é comemorado e recebido com expectativas
e esperanças. Contudo, para o protagonista representaria a transitoriedade da vida e do tempo,
causando a desolação e o desencantamento. A passagem para o Novo Ano refere-se também
aos desdobramentos da dimensão temporal, que a tradição agrária é sobreposta ao
racionalismo e à lógica da matéria. A dualidade temporal vem representar a percepção incerta
do sujeito no Romantismo, o qual tende a idealizar o passado em um momento presente. Com
caráter angustiante, fica à espera por acontecimentos futuros, que apenas contornam-se pela
negatividade e pela frustração.
O desenrolar do tempo, sendo assim, produz, no protagonista, um sentimento de
nostalgia e de vazio, decorrente da sensação de impotências sobre a vida. Freud, em Sobre a
118
Transitoriedade (1916 [1915]/1996), analisa os lamentos de um poeta, cujo pensamento recai,
invariavelmente, à fatalidade de extinção da beleza, seja ela o esplendor humano, bem como a
Natureza que se faz destruída pelo inverno, por exemplo. Apenas quando o Eu renuncia ao
objeto perdido e à idealização embutida no mesmo, conseguirá averiguar o alto conceito das
riquezas do mundo e organizará em torno do seu Eu a importância do efêmero. Hoffmann,
portanto, reside em uma confusão temporal, não vivendo nem no passado e nem no presente,
sentindo-se fragmentado e faltoso quanto a algo que teria sido perdido – a sua unidade, que é
camuflada através dos fenômenos do duplo ou dos múltiplos. Contudo, ele se perde diante de
seus múltiplos desdobramentos.
A narrativa prossegue com Hoffmann relatando o dia anterior, no qual estava em uma
festa e se reencontrou com Júlia, pois não se viam há cinco anos. Descreve-a como tendo
feições “angelicais”, possuidora de “esplendorosa beleza”, “mais alta e mais sedutora do que
nunca”. A repetição da figura de Júlia, de Hoffmann, na primeira parte do conto e da
Giulietta, de Suwarow, na segunda parte da narrativa é outro elemento fundamentado no
duplo, despertando a problemática da repetição, em que a compulsão à repetição se lança à
percepção da inquietante estranheza familiar, a fim de que algo seja simbolizado.
Como outros desdobramentos do fenômeno do duplo estão as personagens femininas
Júlia e Giulietta, as quais, podem ser apenas uma mesma pessoa. Além de possuírem muitas
semelhanças físicas e psicológicas, ambas são descritas com detalhes sob a mesma
correspondência. O platonismo constitui um dos horizontes filosóficos do Romantismo, que
acarretará o renascimento do mito do andrógino: o ser híbrido, completo e perfeito. Imortal,
posto ser capaz de se auto-engendrar, porém, devido à sua cisão na origem dos tempos, dará
origem à oposição dos dois sexos, pois cada um traz em si a nostalgia da unidade primeira.
Júlia e Hoffmann, Giulietta e Erasmo. Esses pares formados em duplicidades vêm simbolizar
119
a necessidade romântica, feita por meio da subjetividade, de tentar fundir os opostos, seres
completos e preenchidos, a fim de se alcançar a integração.
Todavia, a síntese amorosa começa por um desejo completo, no qual dois continuam
sempre dois, não podendo se tornar um por mais que se abracem, se enlacem e se desejem por
toda a eternidade. A percepção quanto à unidade perdida obrigou o homem romântico a
conceber os opostos como aspectos complementares de uma única realidade, na qual o
sujeito, como Hoffmann e Erasmo, pode ser eles ou “um outro”, como sendo Júlia e Giulietta
ao mesmo tempo e, ao ser esse outro, não deixa de ser a si mesmo, sendo isso o traço
principal do duplo.
Dando continuidade à narrativa, desesperado por não estar nos planos de Júlia,
Hoffmann entra em uma taverna, onde seus frequentadores o olhavam discretamente, como
que interrogando sobre sua aventura amorosa. Alguém deseja entrar na taverna e o recém-
chegado, antes de entrar, grita para que não se esqueçam de cobrir o espelho. Era um
homenzinho, o general Suwarow, o qual se senta à mesa, colocando-se junto a Hoffmann e a
um botânico. O general, logo ao sentar-se grita: “Com todos os diabos! Esconda este maldito
espelho!”. O narrador sente um terrível medo e pensa que Suwarow poderia mesmo ser Satã
disfarçado. Enquanto isso, o botânico se encarregava de arrumar melhor o pano que ocultava
o espelho.
Os homens com pouca estatura fazem-se presentes nas narrativas de Hoffmann, como
neste conto, com o general Suwarow, e em O pequeno Zacarias chamado Cinábrio. Sendo
assim, o elemento do grotesco acentua as nuances das contradições entre o desejável e a
aparência real do próprio ser, como ocorre também entre o modelo promulgado pela cultura e
a necessidade por rompê-lo, fato que gera a identificação com os sujeitos excluídos. Todavia,
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se o sujeito tiver algum cargo de destaque e de respeito, tal característica indesejada tende a
ficar menos visível e, até mesmo, tornar-se aceitável.
A temática do espelho é frequente ao imaginário da narrativa e do Romantismo, o que
permite, nesse momento, a visão angustiante do mundo, percepção essa também projetada
para a visão de si próprio, na qual ele vê em si mesmo “um outro‟. O Eu, quando se reflete no
espelho, constitui-se como uma cópia que pode ser tida como a visualização da alma, que
confronta o sujeito a ser senhor de si mesmo. Rank (2013) assinala que a relação do sujeito
com o Eu pode ser vivenciada de forma fragmentária, cindida ou multiplicada em sua máxima
expressão. As outras maneiras de perturbação do Eu exploradas pelo autor Hoffmann, nesse
conto, remetem às fases de regressão a um período em que o Eu não se distinguiria
nitidamente do mundo externo e de outras pessoas.
O general, em seguida, desafia o botânico a mostra-lhe uma imagem roubada de um
espelho e diz não poder se ver refletido, mas, em contraponto, ainda tinha sua sombra. Isso
demonstra que a construção da imagem, comum na literatura e, sobretudo, nas narrativas de
Hoffmann, do apagamento do Eu frente ao espelho, decorre devido ao processo interno de
reconhecimento do indivíduo, o qual se enxerga pelo olhar de fora como um estrangeiro para
si mesmo. Suwarow não tem sua imagem refletida no espelho, porque ele ainda não se
reconhece como um sujeito. A imagem refletida pelo espelho nem ao menos existe, pois é
necessário abandonar a visão do Eu irreconhecível ao cobri-lo. Toda a supressão de uma
batalha interna reproduzida, consequentemente, denota a ausência de autoconhecimento e o
não olhar do outro frente ao não reflexo reafirma, com isso, a condição do sujeito romântico
como solitário, confuso e à margem de qualquer constituição social.
De maneira geral, o espelho, segundo Chevalier & Gheerbrant (1997), reflete a
verdade e o conteúdo da consciência, o que pode inspirar o terror diante do conhecimento de
121
si. A concepção de enxergar ou não o reflexo no espelho estaria unido aos conteúdos internos
do sujeito, bem como a desconstrução da identidade da personagem por diferentes fatores,
como o conflito romântico do sujeito consigo e com o mundo. O que é refletido pode,
também, referir-se à verdade escondida ou às revelações de caráter inconsciente.
A ideia de um homem sem sombra causava horror em Hoffmann, o personagem e, ao
observar o general atravessar a sala do ambiente, nota que o corpo deste não projetava sombra
alguma. O protagonista se lembra de Peter Schlemihl, um judeu alemão, e sai em busca do
general. Segundo Freud (1913[1912-1913] /1996), todos os objetos tabus têm caráter
ambivalente. Alusões a isso também aparecem relacionadas à sombra. Os povos primitivos,
de acordo com Rank (2013), têm vários tabus que retomam especificamente às qualidades
oriundas da sombra, como, por exemplo, evitam projetá-la sobre certos objetos
(especialmente alimentos). A sombra, nas antigas lendas, também propõe ao seu antigo
senhor desempenhar, por meio dela, o papel de troca, ou seja, o pagamento perante o mundo.
Assim sendo, os retornos aos elementos misteriosos e lendas atribuídas à sombra condizem
com uma forma de pagamento, que estrutura o Eu e converge quanto à negação romântica de
quantificação da vida, ou seja, do predomínio das relações objetivadas através do papel-
moeda e do lucro. Nesse caso, a maneira de pagamento viria por meio de algo próprio ao Eu –
a sombra, a alma.
Por conseguinte, o dono da taverna o empurra e diz não precisar dos fregueses que
teve naquela noite. Ao sair do recinto, Hoffmann lembra-se de ter esquecido a chave de casa
no bolso de seu casaco e pede asilo na hospedaria Águia de Ouro. Em seu novo aposento há
um grande espelho, no qual Hoffmann via-se refletido: pálido, que mal conseguia se
reconhecer. No entanto, uma forma vaporosa avançava sobre ele, aparentando ser a figura de
Júlia. O grande espelho evidencia que Hoffmann presenciava mais uma manifestação do
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fenômeno do duplo, vindo a formar diante de si a imagem de seu “segundo eu”, o que lhe
causava espanto e desconhecimento perante seu verdadeiro Eu, visto sob outro prisma, pois
ele ainda não havia conhecido ou explorado os domínios de sua interioridade. Sendo assim,
sua imagem ampliada o direciona a ser o seu senhor, em um confronto entre seu Eu e a
realidade, conduzindo-o a um universo desconhecido e apavorante.
Em seguida, Hoffmann corre para seu leito e observa nele deitado o mesmo general
Suwarow que conheceu na taverna. O general sonhava em voz alta e começou a pronunciar o
nome: “Giulietta!... Giulietta!”. O narrador acorda o general e exige explicações sobre a troca
de quartos. Sobre o nome pronunciado, o general diz a Hoffmann nunca mais o emitir. Pediu
para deixá-lo dormir e não se esquecer de cobrir o espelho. O homenzinho relata que ambos
estão unidos por uma fatalidade, por um mesmo infortúnio, expondo ao personagem
Hoffmann que sua imagem não podia ser refletida. Relata ainda que, enquanto Schlemihl
vendeu sua sombra ao diabo, ele havia dado sua imagem à Giulietta, que nunca mais a
devolveria. Hoffmann ficara estupefato diante do relato e seus sentimentos oscilavam entre o
horror e a piedade e decidiu ir deitar, porém:
A excitação do meu sistema nervoso atingira o máximo; meu espírito
turbilhonava num labirinto povoado de fantasmas indescritíveis. Pareceu-me, de
repente, que o mundo diminuía como aquelas casas de bonecas. Vi todos meus amigos
mudados em homúnculos de açúcar. Depois todas essas figuras cresceram
desmesuradamente e, no meio delas, apareceu Júlia, que me estendia um copo cheio de
ponche, dizendo: - Bebe, meu anjo, bebe este licor divino! (Hoffmann, 2003, p. 9).
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Como uma das propostas do Romantismo, o sonho é capaz de transformar a frustrante
realidade, admitindo os duplos lados da alma. Tanto o aspecto diurno como, principalmente, a
parte noturna são um “espaço” onde se realizam as recusas da vida cotidiana. Para a
psicanálise freudiana, os sonhos têm como principal função proteger o sono e permitir a
realização dos desejos do sonhador. Enquanto desejos não reconhecidos pela pessoa que
sonha, os desejos inconscientes se modificam no universo dos sonhos por meio de alguns
mecanismos de defesa, como, por exemplo, a condensação e o recalque. A partir disso, às
vezes, à primeira vista, eles aparentam ser sem sentido. O pesadelo, ou “sonhos de angústia”
do general com Giulietta, evidencia a divisão da psique e a existência do inconsciente, pois os
desejos neste tipo de sonho são assustadores e mostram cenas apavorantes.
Alguns desejos são inadmissíveis pelo sonhador, sendo eles não reconhecidos, pois,
caso fossem, seria gerada uma angústia, como, por exemplo, o pesadelo – o desejo do general
para com a figura de Giulietta, nesse caso. O universo onírico, especialmente os “sonhos de
angústia”, também pode ser considerado um desdobramento do Eu, porque seu portador, o
general, ainda não tinha domínio sob seus desejos e mobilizações frente à realidade.
Hoffmann estava prestes a tomar a bebida, quando ouve um grito atrás dele: “Não
beba! Não beba! É o veneno de Satã!”, era o general Suwarow. Júlia, todavia, indaga a
Hoffmann sobre qual seria seu medo em tomar a bebida, pois os dois “nasceram um para o
outro por toda a eternidade” e, Hoffmann oferece sua imagem a ela em troca de um beijo.
Suwarow novamente grita: “Não beba! Não beba!
Freud, em Totem e Tabu (1913 [1912-1913] /1996), aponta para as proibições
obsessivas sujeitas ao deslocamento. Um objeto, como, no caso desse conto, a bebida, pode
conter características especiais a fim de poder se concretizar determinado desejo. Os impulsos
psíquicos dos povos primitivos são diferenciados por uma maior ambivalência, a qual pode
124
ser encontrada no homem moderno, civilizado e pautado pelos fundamentos científicos e
racionais. A modernidade, portanto, diminuiu a ambivalência, visto que o tabu, ou seja, o
sintoma da ambivalência e o acordo com os impulsos conflitantes lentamente desapareceram.
As explicações psicanalíticas sobre a resolução dos tabus direcionam-se à origem da
consciência, isto é, ao sentido de percepção do Eu e do mundo externo, pois haveria a
consciência das ações realizadas a fim de satisfazer determinado desejo. Os povos primitivos
atribuíam aos seres benevolentes e malignos às causas dos fenômenos naturais e objetos
inanimados pertencentes ao mundo. O sistema animista das crenças primitivas foi alcançado
por meio das visões dualistas, em que a origem de tais teorizações foi, sobretudo, o
prolongamento da vida.
A magia tem, portanto, como um de seus fundamentos, a crença humana na realização
de todos os seus desejos, a qual, de forma fantasiosa e dinamizada pela onipotência do
pensamento, faz com que os sujeitos produzam ilusoriamente sua própria ordem e controle
perante as situações. Os produtos oferecidos em sacrifício podem ser comidas ou bebidas,
com os quais os homens saudavam as divindades, a fim de se conseguir alguma vantagem.
Originalmente, a bebida ofertada era o sangue da vítima animal, no entanto, mais tarde, foi
substituído pelo vinho – “o sangue da uva”.
Júlia, contudo, continuava a insistir para que Hoffmann tomasse a bebida e “várias
figuras de açúcar cândi” dançavam de forma veloz em torno dele. Nesse caso, os múltiplos
pequenos duplos de açúcar cândi podem ser imaginados como dispersões dos “Eus” de um
mesmo sujeito através de um espelho, porém, visualizados no universo onírico, onde todas
essas figuras movem-se em torno do Eu. O pequeno general Suwarow levantou-se mais cedo
e deixou endereçado a Hoffmann um manuscrito lacrado, no qual narrava uma história, a qual
poderia ser a do próprio narrador.
125
A carta endereçada a Hoffmann, que será a segunda parte do conto, estabelece-se
também como uma forma de oráculo, de previsão, em que, fugindo-se do destino ou dos
próprios desejos inconscientes, paradoxalmente, o sujeito vai ao reencontro de determinadas
situações para cumpri-las, como se pode ser observado em Édipo. Enquanto não haja o
encontro com as camadas inconscientes da mente, ou seja, com os mais familiares desejos, a
existência se enquadra como um esquema espiral, visto que a tendência à fuga corresponderá
a maior probabilidade de aproximação dos eventos.
Na segunda parte da narrativa, o mestre Erasmo Spickherr consegue acumular uma
herança, a qual cobriria seus gastos em uma viagem à Itália. Partiu despedindo-se da jovem
esposa e do filho. Já em Florença, estava reunido com um grupo de amigos em uma orgia e
permaneceu indiferente aos atrativos de algumas mulheres, causando o escárnio de seu amigo
Frederico. Entretanto, a amante desse amigo se volta para Erasmo e diz: “Toma cuidado. Se
visses Giulietta, a neve do teu coração se fundiria como gelo ao sol” (Hoffmann, 2003, p. 10).
No mesmo instante, uma bela jovem, com o “talhe de fada” e com o “rosto de madona”,
aparece no ambiente, sendo ela, a Giulietta.
Enquanto sujeitos que estão inadaptados no contexto romântico, o personagem
Hoffmann da primeira parte do conto e Erasmo da segunda parte iniciam ambas as histórias a
partir de um cenário de possível mudança, que Hoffmann descreve suas experiências
inquietantes, estando no dia da véspera do Ano Novo; já Erasmo começa a ter sua vida
transformada quando adquire o dinheiro de uma herança e vai à Florença. Rank (2013), a
partir disso, relata que o duplo conhece perfeitamente seu duplo, isto é, “seu outro”, o qual
seria uma irmandade própria ao Eu.
As particularidades do destino, ou do que a psicanálise proposta por Freud veio a
nomear como inconsciente, possuem uma construção e articulação próprias às demandas do
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Eu em cada sujeito. Sendo assim, ao querer esquivar-se do “destino”, o homem, por
consequência, corre em direção a ele ou fica amarrado diante dos malefícios ou benefícios
correspondentes aos fenômenos da realidade psíquica do inconsciente. Os desejos reprimidos
alojados no inconsciente retornam, sob forma de repetição, por exemplo, e a censura não
consegue dominar a cobiça por determinado objeto que se faz escapar das profundezas da
alma humana.
O elemento inquietante, inesperado e, ao mesmo tempo, esperado, o duplo, para o
personagem Erasmo, surgiu em um curto intervalo de tempo entre a advertência de uma
pessoa e a mobilização de seu desejo. Dessa forma, a representação de um desejo e a angústia
do vazio de “ser” marcam o acontecimento psíquico, dominado pela estranheza e pela eclosão
dos desejos inconscientes que deveriam permanecer ocultos e afastados por meio do recalque
e da repreensão. No Romantismo, a subjetividade cindida em sua unicidade busca pela união
de seus contrários ou complementares e, o fenômeno do duplo, sendo assim, se torna um
elemento corriqueiro, devido à consciência do apavorante Eu e à tentativa de integrá-lo aos
vários “Eus” contidos em um mesmo indivíduo. O outro possibilita a existência do Eu.
Giulietta faz companhia a Erasmo, oferecendo-lhe uma taça contendo licor, com o
qual ele se embebedou caindo em uma postura de adoração por ela. Ao amanhecer, a jovem
decide retirar-se e dispensa a companhia de Erasmo, que não consegue mais encontrá-la.
Igualmente como na primeira parte do conto, a segunda parte tem como elemento ficcional
inicial, a bebida, a qual irá se desmembrar em outros acontecimentos ao longo da trama, a
partir do animismo, da magia e da onipotência dos pensamentos.
Freud (1913 [1912-1913] /1996) pontua que os indivíduos, diante de suas
necessidades, criaram as primeiras concepções do mundo através de seus próprios desejos. Os
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povos primitivos, por meio da determinação de suas leis psíquicas, externalizavam na
realidade os seus mais íntimos desejos.
Enquanto resgate romântico das lendas e mistérios das crenças populares, os
elementos mágicos no Romantismo viriam a partir do mergulho e das surpresas
desencadeadas através do Eu e para o mesmo Eu. O papel enfatizado através da magia e da
onipotência dos pensamentos traz o elemento imprescindível à psicanálise, que é a realidade
psíquica, orientada por desejos inconscientes. A onipotência é ligada ao narcisismo,
compreendido como o investimento libidinal em si próprio, onde o outro existe somente
enquanto objeto de satisfação e não em sua alteridade.
Certo dia, por conseguinte, Erasmo reencontra Frederico, o qual diz ao amigo que
Giulietta é uma criatura dissoluta; que há muitas histórias sobre ela e Erasmo deveria esquecê-
la. Ambos decidem deixar Florença, mas, quando caminhavam, Dapertuto, o Doutor em
milagres, que vendia drogas à Giulietta, cruza o movimento dos dois e pronuncia que
Spickherr tinha que se apressar, pois Giulietta esperava ansiosamente por ele. Ao avistar
Giulietta, Erasmo vai ao seu encontro. Na narrativa, Dapertuto, sintetiza a possibilidade de
realização dos desejos temidos ou ignorados, inerentes a Erasmo, funcionando como uma
espécie de “princípio do prazer”, onde o encontro com Giulietta representa a realização plena
de seu desejo não sustentado. Nesse sentido, o homem seria o palco de encenação de uma luta
entre o bem e o mal, em um gigantesco enfrentamento produzido na escala do universo, mas,
principalmente, no interior de si. Sedo assim, Erasmo seria plenamente responsável e autor
por sua condenação ou salvação.
Em seguida, a jovem diz que, para Erasmo se salvar, precisará abandoná-la e
abandonar Florença. Apesar desses pedidos, ele se recusa. Sentados diante de um espelho,
128
Giulietta pede a imagem dele, uma vez que, a partir disso, nunca iriam se separar. Erasmo
inicialmente fica desconcertado, porém acaba por ser persuadido:
Ah! Já é preciso fugir para subtrair-me à desgraça que nos separaria para toda a
vida, que, ao menos, eu te possa deixar, para a eternidade, essa imagem cuja presença
adoçará tuas recordações!...Apenas acabara de falar, quando, lançando um olhar ao
espelho, não mais viu a sua imagem. A mesma Giulietta, que ele apertava ao coração,
esvaneceu-se como nuvem. Vozes fantásticas ressoavam no silêncio do apartamento
deserto.Erasmo, trazido de espanto, sentiu um véu gelado descer-lhe sobre os olhos
(Hoffmann, 2003, p. 13).
A imagem perdida representa a perda do Eu integral, ocasionando a sua não
visualização no espelho, simbolizando, com isso, a fragmentação e a impossibilidade do
encontro consigo mesmo diante da ilusão de que o sujeito possa a vir tornar-se uma unidade.
A imagem sugere o enigma do encontro consigo mesmo: quem sou Eu? No entanto,
Hoffmann e Erasmo não conseguem solucionar tal mistério e o discurso sobre os
acontecimentos que os cercam, são vivenciados como se eles fossem um observador externo e
neutro, sem qualquer participação em suas próprias vidas.
A ansiedade causada pela perda ou confusão decorrente da relação com o próprio Eu,
que representa a perturbação sobre o existir e os sentidos da vida para o romântico, afirma-se
com o advento da modernidade, com os avanços da tecnologia e com a quantificação da vida,
afastando o sujeito de sua vida interna, em que o cultivo do pensar sugere o caminho para
uma vida contemplativa e abstrata, o que vem em oposição à ação, à atividade e à
concretização.
129
A perda da sombra é uma referência direta a perda de identidade pessoal, social e
psíquica. Ela pode ser representada como a alma em si mesma ou como um elemento
semelhante. Os significados individuais da temática do duplo e da sombra, no sentido
simbólico-sexual, são regressados para o problema da consciência e do inconsciente. É
através do retorno do recalcamento que deriva o duplo, o estrangeiro, o sósia. E a díade
exposta, de forma vigorosa, algo da semelhança perfeita do duplo, talvez seja como Narciso e
sua imagem no lago, reflexo encantador e amargo de si mesmo. Admitir e deslumbrar a
própria imagem: o intuito é o de desarmar a angústia, ao demonstrar a existência e registrá-la
como lembrança. Portanto, a inquietante estranheza familiar, como a perda do reflexo em
Erasmo, se constitui em uma vivência de hesitação e perplexidade ante o mistério, o
inexplicável e o que se alterou com o curso habitual da experiência corriqueira.
Rank (2013) aponta que a forma de defesa contra o narcisismo manifesta-se pelo medo
e pela aversão através da própria imagem refletida. Todavia, a aparente perda, tanto da
imagem como da sombra, promove o fortalecimento, a independência e a possibilidade a fim
de se tornar foco do interesse do próprio Eu. Portanto, as contradições da perda da imagem no
espelho ou da sombra apresentam-se como perseguição das mesmas, sendo que as
representações dos opostos camuflados são decorrências do regresso do reprimido à
repreensão. “No espelho há a procura por um tu, no qual reconheça o Eu. Dessa forma, “a
„rachadura‟ vem quebrar esta relação dual, um terceiro, desconhecido e estranho, irrompe”
(Tavares, 2007, p. 87).
Diante do seu reflexo no espelho ou pela perda da imagem, Hoffmann e Erasmo não
conseguem revelar as suas personalidade e unicidades, porque seus Eus não são conhecidos
realmente. Como tentativas para a revelação de suas personalidades, eles recorrem às
dualidades e aos duplos. O narcisismo relaciona-se ao mito de Narciso, que viveria muitos
130
anos caso não visse sua imagem refletida, conforme as profecias de Tirésias. O sujeito
romântico, entretanto, se conseguisse reconhecer-se diante da imagem refletida no espelho, se
tornaria um indivíduo e o fato de ser um indivíduo denotaria que ele não poderia ser
reproduzido e quantificado.
O angustiado romântico, em A imagem perdida (2003), aparece como essencialmente
duvidando e interrogando a si mesmo, visto que necessita de um testemunho exterior: do
tangível e visível a fim de se reconciliar consigo mesmo. Sozinho, ele é o nada, mas, em
conjunto com o seu duplo, é garantida a sua existência. A angústia de ver o desaparecimento
do reflexo está conectada à angústia do conhecimento de ser incapaz de demonstrar a sua
vivência por si mesmo. De acordo com Rosset (1998), a fantasia de ser “um outro” cessa de
forma natural com a morte, isso pois o indivíduo acredita que não é parte do seu Eu que
morre, mas sim o seu duplo, o qual designa a unicidade irredutível da pessoa frente à
mortalidade.
Em um determinado dia, Erasmo coloca-se diante de um espelho. O garçom da
hospedaria em que está acolhido não vê nenhuma imagem refletida e começa a gritar que há
um homem sem imagem, um enfeitiçado. Os agentes da polícia são chamados exigindo que
ele mostre sua imagem ou, caso contrário, deveria deixar a cidade. Forçado a fugir, o jovem,
ao entrar em albergues, pedia aos proprietários para cobrirem os espelhos e recebeu o
codinome de general Suwarow, o qual tinha a mesma mania.
Segundo os apontamentos de Rosset (1998), a sombra e o reflexo traduzem um duplo
invertido, pois a sombra não é o duplo, mas, ao contrário, se compõem como seu inverso. O
espelho é enganador, visto que estabelece uma falsa evidencia, a ilusão de uma visão ao
mostrar um inverso, “um outro eu” e não o Eu. O destino de qualquer pessoa é simbolizado na
131
reflexão ou inversão da imagem no espelho, já que não se pode provar a própria existência por
meio de um desdobramento único, o que, portanto, apenas existe problematicamente.
Hoffmann e Erasmo, com isso, simbolizam que, no Romantismo, a inversão da
imagem correspondeu a uma não aceitação das modificações e a inversão de valores que
fragmentaram a unidade individual. O desdobrar-se, no entanto, implica, no fundo, em jamais
se desdobrar, porque o duplo falta para aquele que o duplo persegue. No Romantismo é
abandonado o postulado da singularidade da identidade do sujeito e sua consequente busca
por essa identidade, o que acarreta uma quebra de unidade do ser humano, uma fragmentação
do Eu.
Finalmente, chegando a sua terra Natal, Erasmo foi recebido pela família. Todavia, sua
esposa observa a ausência da imagem dele diante de um espelho e o manda embora, pois a
falta de imagem refletida representava para ela um espírito do inferno ou que ele teria feito
algum pacto. Para Rosset (1998), o destino do vampiro, cujo espelho não reflete nenhuma
imagem, nem mesmo invertida, simboliza o destino de qualquer sujeito: o de não poder
provar a sua existência por meio de um desdobramento real e único.
A verdadeira infelicidade do Eu no Romantismo, portanto, é jamais poder se
desdobrar, pois a falta vai ser preenchida com o que o duplo almeja. O reconhecimento de si
implica por si só, um paradoxo, pois a apreensão do que é impossível de se apreender e a
captura de si mesmo reside, ambiguamente, na própria renúncia desta captura. Talvez, por
isso, a dificuldade do homem romântico em integrar seu Eu, pois deveria abandonar seus
duplos, que funcionavam como uma defesa quanto a determinados elementos repelidos por si,
como também, a duplicidade almeja a união dos contrários. Com a expulsão do duplo, o qual
se coloca como obstáculo a existência do único, logo se exigirá que a unicidade não seja tão
somente ele mesmo.
132
Movido por angústias, o jovem visualiza Giulietta e solicita um reencontro com ela.
No entanto, ao ir até o local combinado, encontra-se com Dapertuto que promete servi-lo
diante de qualquer desejo. O Doutor Milagres oferece um elixir a Erasmo, propondo o
desembaraço do jovem com a esposa e com o filho, a fim de permanecer para sempre com
Giulietta. A bebida provocaria um sono profundo em Spickherr, o qual o recusa. Em seguida,
a lembrança de Giulietta veio atormentá-lo e Dapertuto lhe mostra uma pena de ferro e um
papel. Nesse mesmo instante, uma veia da mão esquerda de Erasmo rompe e o sangue começa
a jorrar. Quando ele iria assinar, um fantasma, representando o supereu de Erasmo, grita para
ele parar, pois iria entregar sua alma ao diabo e ele reconhece, na aparição, a voz de sua
esposa. Ao serem pronunciadas pela esposa as palavras sagradas de Deus e de Jesus, Giulietta
transforma-se em espectro e, depois, em fogo. O chão também se abre e a moça e Dapertuto
desapareceram em uma nuvem de vapor sulfuroso.
Nas duas partes do conto, observa-se o papel desempenhado pelo general Suwarow,
pela amante de Frederico e pela voz reconhecida da esposa no momento de assinar o contrato
com Deodatus. Funcionam como o juízo e a instância moral em Hoffmann e em Erasmo. O
consumo da bebida nas duas partes da narrativa, para ambas as personagens, tem a função de
ilusoriamente lutar pela felicidade e no afastamento da desgraça. A produção imediata de
prazer e a independência ao mundo externo, desencadeados por meio das substâncias
intoxicantes, são apenas “amortecedores de preocupações” e desperdiçam a quantidade de
energia, a qual poderia ser empregada para o aperfeiçoamento do destino humano.
O pacto com o diabo traduz a experiência do homem moderno, que é angustiado e o
qual os seus desejos jamais são satisfeitos. Por meio de um processo alquímico, Leite (1991)
destaca que a venda da alma (sombra, reflexo), em sua essência, corresponderia ao abandono
e troca do fragmentado Eu a fim de se superar o tempo, implicando nele também a
133
transitoriedade e a plenitude de todas as vontades da existência do sujeito. Se os desejos que
motivam os indivíduos encontram-se coligados à magia, logo ao crer nas particularidades
especiais desta, o homem confia de forma desmedida na força de seus desejos.
A angústia humana, para a ciência psicanalítica, seria fabricada pelo medo, que, em
cada momento histórico do Ocidente, realiza ameaças coletivas que seriam deslocadas para
determinados meios, como, por exemplo, o temor ao sexo, transformado em medo à mulher,
nas feiticeiras ou ao diabo. Contudo, a racionalidade se deparou com o limite imposto pela
própria situação do homem, pois a reinvenção do fantástico, aos moldes científicos, foi
rearticulada e transposta de maneira lógica à literatura. O sobrenatural ganhou componentes
humanos, em que, por exemplo, o diabo foi laicizado e o contágio dos elementos da realidade
pelo sonho produziria novos temas, como a volta dos mortos.
Para a psicanálise, o efeito projetivo da ação psíquica, na qual o desejo aparece
imediatamente realizado, é originário da supervalorização dos processos psíquicos, sobretudo
do pensamento. Portanto, o diabo é a melhor saída enquanto desculpa para o mal. Também é
organizado como agente de descarga libidinal e seu bode expiatório. Contudo, os mais
temíveis seriam os próprios desejos do Eu, que o sujeito não aceita algo em si mesmo, devido
ao recalque, e projeta, no espírito maligno, seus conteúdos indesejáveis. O dualismo absoluto,
como representação de Deus e do diabo, implica a presença de um ser único, perfeito,
completo e que seria um mecanismo do duplo enquanto oposições.
O sentimento de onipotência, de onisciência, as fantasia de superioridade e a sensação
de ser capaz de dividir tudo o que se refira à vida mental, como os próprios pensamentos e o
ato de se pensar, são emoções vivenciadas pelo sujeito como possuidoras da verdade absoluta.
A integração, portanto, pressupõe a modificação da visão de mundo, a investigação e o
abandono de alguma ordem já existente. A coesão do Eu poderá ser alcançada ao se acolher e
134
integrar as ambivalências, os dualismos inerentes à vida e a condição humana. Autonomia,
independência e emancipação são essenciais para o encontro consigo mesmo e para a busca
por uma possível tentativa de unicidade.
A multiplicidade dos duplos em A imagem perdida retoma a essência romântica de
que os elementos duplicados são o mundo e o próprio ser. Certos das antinomias da
civilização industrial moderna, os românticos desdobram os conflitos e as contradições entre
os opostos a fim de tentar resgatar e sintetizar as maravilhas e horrores do Eu – do
“divíduo”. A partir disso, os componentes irreais das experiências surgem como aparência da
própria realidade. Como personagens de si, Hoffmann e Erasmo apontam uma tentativa de
reconhecimento de si por meio dos duplos, como, por exemplo, nas relações diante do
espelho, em que não há a materialização do Eu e, quando isso ocorre, são as dispersões dele.
Sendo assim, os duplos auxiliam a necessidade romântica, em meio a um enredo da
realidade, de que a ficção possa colaborar para que o sujeito construa a sua identidade e
personalidade, formando-se e se desenvolvendo para que, com isso, viesse a ser tornar
ilusoriamente uno.
Contudo, a pluralidade de um mesmo Eu esbarra-se com a experiência de
despersonalização, faltando, a partir disso, a consciência de si, que abarca todos os
desdobramentos de um Eu real e do olhar do outro. Um Eu visto e reconhecido tanto para si,
isto é, sob o plano interior, como também para o outro, para os aspectos do mundo externo, ou
seja, um Eu afirmado diante das perspectivas sociais, histórias e econômicas.
A ausência de sombra ocorrida em Schlemihl e a perda do reflexo em Erasmo
remetem, de acordo com Rank (2013), a uma morte social, temática esta pertinente e essencial
ao período romântico. A sombra, enquanto imagem social se opõe à alma, à identidade
profunda. Schlemihl resiste à submissão à sombra e aceita sua condição de homem sem
135
sombra, renunciando ao seu falso duplo e guardando sua alma para sobreviver afastado dos
homens. Existe, portanto, a equivalência entre o reflexo e a sombra, pois, enquanto
pertencentes ao Eu, na narrativa, as personagens duplas cruzam o caminho uma das outras
como pessoas reais, possuindo desejos parecidos com o indivíduo que as encontra.
Ao voltar para casa, dando sequência à narrativa, a esposa sugere que Erasmo viajasse
em busca de sua imagem e que, quando a encontrasse,voltasse para seu lar. De forma
simbólica, desligar-se da família e da segurança do lar propiciaria uma viagem além do
universo conhecido e do domínio consciente; uma busca constante e duradoura, a fim de que
o “verdadeiro” Eu de Erasmo não fosse apenas conhecido, mas reconhecido.
Sendo assim, Spickherr sem imagem refletida e Schlemihl sem sombra, enquanto
duplos complementares se encontram e juntos vão rumo ao caminho do desconhecido
procurar pelos seus Eus perdidos:
Spickherr, o coração opresso, beijou a esposa e o filho, apanhou o bordão e
pôs-se a caminho. Encontrou certo dia o famoso Schlemihl, que havia perdido a
sombra. Os dois desafortunados propuseram-se viajar juntos; Spickherr entrava com a
sua sombra e Schlemihl com sua imagem. Mas não conseguiram chegar a nenhum
acordo e, até hoje, ninguém sabe o que lhes aconteceu (Hoffmann, 2003, p. 17).
4.2 O Doutor Trabacchio
136
Foi a partir do lado moral existente em minha própria pessoa que aprendi a reconhecer a profunda e primitiva dualidade do homem; vi que, das duas naturezas que lutavam no campo da minha consciência, podiam-se afirmar com correção que eu era qualquer uma das duas, mas isso apenas porque eu era radicalmente ambas (Stevenson, 2011, p. 68).
Também vejo uma dificuldade no fato de que o diabo, pelo seu caráter, que é realista, anula a sua existência, que é idealista. Só a razão pode acreditar nele, e o entendimento pode fazê-lo valer e compreender somente assim, como ele é. Estou realmente muito ansioso para saber como a fábula popular vai adaptar-se à parte filosófica do todo (Carta de Schiller a Goethe - Goethe & Schiller, 2010, p. 141).
A narrativa O Doutor Trabacchio (1816/s.d.) pertence ao livro Nachtrücke, obra
composta também pelo conto O homem de Areia. Originalmente, em alemão, esse conto
recebe o título de Ignaz Denner. A história tem um narrador de onisciência neutra, que se
apresenta, na estrutura do conto, o uso constante do discurso direto, que se caracteriza
justamente pela transcrição exata da fala das personagens, sem a necessidade da participação
do narrador. A história ao ser contata em terceira pessoa possibilita uma maior liberdade
narrativa para a explanação do enredo. No entanto, o recurso do discurso direto proporciona a
reprodução dos pensamentos e sentimentos das personagens, o que ocasiona a passagem do
Eu diante de “um outro”.
A história é ambientada nas terras de Fulda, em uma época remota, à entrada de uma
floresta. No Romantismo, a ideia de regiões inabitadas remete ao espaço onde o Eu pode
irromper, mesmo que por meio de dissociações, de fragmentações e de desintegrações que
propiciam a eclosão das manifestações do fenômeno do duplo e do inconsciente. André, um
hábil caçador e guarda geral da floresta representa, em conjunto com seus duplos, as
possibilidades com que o sujeito apreende-se caso deseje percorrer os movimentos da
natureza humana e as constantes lutas manifestadas dentro do aparelho psíquico. Mesmo
137
sendo um caçador, no entanto, ele hesita em permitir-se ao encontro pleno consigo mesmo,
sendo um guardião de si. Com isso, alguns elementos constituintes ao alcance dele, enquanto
um ser que é um sujeito, são deslocados às manifestações do duplo, que, nesse conto, irão
representar as dualidades que formam a complexidade do “divíduo”.
No Romantismo, as personagens em geral são construídas em redor de uma única
qualidade ou defeito, sendo, portanto, estáticas e sem um comportamento que se altere
durante a narrativa. A partir disso, André, o protagonista, está concebido por meio de
características puramente “divinas”. Já Inácio Denner e Doutor Trabacchio apresentam
elementos de natureza “demoníaca”. Sendo assim, os pares André e Inácio, André e
Trabacchio, representam-se como duplos e simbolizam a dúbia natureza humana.
Enquanto ambição romântica de encontrar-se com a unidade perdida, André e Inácio
surgem como as manifestações do duplo, como um fenômeno particular do Eu, que atravessa
o sujeito por multiplicidades que foram esquecidas, aniquiladas ou até mesmo recalcadas de
sua personalidade. Isso, por ele sentir que não estejam de acordo com o panorama e com as
exigências de seu tempo, que as transformações sociais pressupõem à lógica, à adaptação, à
produtividade e a um modelo identitário, em que os sujeitos deverão triunfar sob o preço da
racionalidade, da matéria, do consumo e do lucro. O refúgio encontrado a fim de que o
homem romântico consiga afastar-se de tais normas situa-se na interioridade e na afirmação
de que o sujeito não pode ser reproduzido. No entanto, ao deparar-se com as fragmentações,
as desintegrações e a complexidade de seus diversos “Eus”, o sujeito projeta-se, vindo a ter
com o duplo um modo de evasão e de segurança para vencer as barreiras da objetividade, da
lógica e do anseio social.
Os obstáculos da narrativa são realizados mediante à crise central referente aos
personagens, que por meio dos desdobramentos do duplo, ligam-se a André. A partir disso, é
138
manifestada a ambiguidade extrema e a necessidade da superação da coexistência dos
opostos, vindo a caracterizar uma forma particular, idealizada e ilusória de unidade, sentida
como perdida, mas que enseja um resgate. A articulação entre o caráter humano deriva do
conflito entre os planos do divino e do demoníaco, em que a fronteira entre os pares duais
românticos cede espaço para o território do inquietante.
De maneira geral, O Doutor Trabacchio retoma a lenda popular alemã, em que Doutor
Johannes Georg Faust (1480-1539), médico, mago e alquimista, teria feito um pacto com o
demônio, obtendo prazeres e poderes por meio de um conhecimento absoluto e de uma
experiência terrena gloriosa. Retomado em diversos contextos por Thomas Mann, Paul
Valéry, Ivan Turgueniev, Lord Byron e Fernando Pessoa, a obra literária Fausto constitui-se
como mais famosa e imortalizada por Goethe.
O tema de Fausto, de acordo com Tavares (2012), realiza alguns diálogos com a
psicanálise, sendo que, destacam-se os seguintes apontamentos: Freud foi influenciado pelo
Fausto goethiano; há objetos e conceitos da clínica psicanalítica, os quais têm relação com
uma construção biográfica-ficcional, diante da repetição e da nominação; existe a
identificação em presença do pai cindido, isto é, entre Deus e o diabo; a relação do sujeito
fáustico e do sujeito psicanalítico, que buscam por um saber que se aproxime da verdade,
perante a produção estética. “Fausto é universal, pois miticamente representa o drama que se
repete em cada homem individualmente. Fausto identifica-se no singular, ao individual que se
apresenta a cada um” (Tavares, 2012, p. 154).
A história de Fausto, para Binswanger (2011), enfatiza a experiência da modernidade,
que o homem angustiado busca superar a transitoriedade do tempo e a realização para todos
os seus desejos. A primeira parte de Fausto concentra-se na primeira tarefa da alquimia
moderna: a produção da poção áurea que traz rejuvenescimento e virilidade – o drama do
139
amor. A segunda parte da obra destaca sua segunda tarefa: a produção de ouro artificial no
sentido de dinheiro, a começar com a criação do papel-moeda na corte do Imperador – o
drama da economia.
Ainda, segundo para Binswanger (2011), a peça trata-se de um pacto com o demônio
sob a forma de Mefistófeles, o alquimista moderno que inicia Fausto nos segredos mais
profundos da alquimia. Portanto, Goethe descreve três possíveis modos de superar o tempo e
a transitoriedade, sendo o trânsito da ciência, que passa pelo portão do passado; o caminho da
arte, que percorre o presente e a passagem da economia que cruza o futuro.
Enquanto desejo romântico de combinar o contraste, o Doutor Trabacchio simboliza
Fausto assim como Inácio Denner, que na narrativa também oscila entre os papéis
desempenhados por Fausto e por Mefistófeles. André, o protagonista, contudo,
metaforicamente, sugere ser Fausto, mas ao inverso. O trabalho em conjunto com a
comunidade e com a natureza, a ideia de uma unidade familiar propiciadora da felicidade, da
harmonia e da ordem eram as sua verdadeiras pretensões.
Inicialmente, o elemento inquietante trazido pela leitura do conto refere-se à vida de
fadigas e aflições vividas pelo casal André e Georgina. Repentinamente, Georgina começa a
definhar e o nascimento de um filho aumenta-lhe os males e as dificuldades financeiras. E,
justamente nesse período, um homem bate à porta buscando abrigo durante uma tempestade.
O estrangeiro examina Georgina e, mesmo sem ser médico, com um remédio que trazia
consigo consegue reanimá-la. O novo hóspede era Inácio Denner que, ao revelar seu
sobrenome, demonstra ocupar uma posição social favorecida e possuir certo prestígio, ao
contrário do caçador e guarda florestal André e de sua esposa Georgina.
Um remédio para curar todas as doenças – um elixir. Vale-se, no Romantismo, do
advento da tecnologia, dos avanços da ciência, do anseio em dominar as adversidades em
140
benefício da evolução para o progresso da humanidade. E, no conto, esse elixir vem a
simbolizar a abertura para o universo irracional, onírico, inconsciente e a fantasia ficcional. A
iluminação ofertada pelo elixir corresponde a uma nova oferta do mundo, a um novo
encantamento ou reencantamento proporcionados pelo espírito investigativo de se conseguir
superar a fronteira entre o conhecido e o desconhecido para o próprio auxílio. A cura adviria
da possibilidade transcendente de libertar não apenas Georgina, mas toda a família das
funções morais e das regras sociais, por meio do mergulho no universo dos elementos
misteriosos do Eu, a fim de se constituir a unidade que foi perdida. O elixir e as implicações
que ele provoca encenam uma tentativa de modificações do Eu e uma nova forma de interesse
do mundo, ligada pelo espírito rumo ao materialismo, pela subjetividade e pelo domínio das
ciências ocultas.
Georgina era uma antiga serviçal de uma hospedaria. O casal não se cansava de
agradecer ao estrangeiro pelo elixir que permitiu a cura da esposa. Enquanto personagem
secundária, Inácio conduz André para os caminhos do desdobramento do duplo e a uma
vivência sobrenatural, pois, além de ter deixado mais um frasco do elixir, entrega ao casal um
cofrinho cheio de joias para que guardasse até seu retorno, o que despertou em Georgina a
cobiça pelo poder, pelo sucesso e pela riqueza.
Para Freud (1920/2010), o que regula o propósito da vida é o programa do princípio do
prazer, o qual visa ao desejo de gratificação imediata. Com isso, por André ter mais cautela
quanto às generosidades de Inácio, evidencia-se que ele seja guiado pelo princípio da
realidade, isto é, vacila quanto às gratificações de caráter imediato. Já sua esposa passou a
orientar-se, a partir da visita de Denner, pelo princípio do prazer. Sendo assim, ambos
simbolizam, a partir de extremos, duas instâncias do aparelho mental: o supereu e o isso,
respectivamente.
141
A mente humana é constituída por uma espécie de anjo, representada pelos aspectos
bons, e por outra parte, pelo diabo, representado pelos elementos considerados social e
culturalmente maus e, também, possuindo uma instância mediadora entre ambas as
representações. O modelo do aparelho psíquico é composto pelo isso, pelo Eu e pelo supereu.
O isso corresponderia à fonte da energia psíquica, a libido. É formado pelas pulsões, impulsos
orgânicos e desejos inconscientes, tendo como modo de funcionamento o princípio do prazer,
o qual se orienta pela satisfação imediata das necessidades e desejos. Recusa as frustrações e
o contato com a realidade. Desconhece o juízo, a moral, a ética e é orientado pelos fenômenos
inconscientes. O Eu desenvolve-se a partir do isso, objetivando o contato com o mundo
externo e com o princípio da realidade. Introduz o indivíduo à razão, possibilitando efetuar o
pensamento antes de concretizar a ação, tendo como principal função a harmonia entre os
desejos prazerosos e a realidade. Posteriormente, media as exigências do supereu. Já o
supereu corresponde às funções morais da psique e representa os valores delineados pela
sociedade. Funda-se após o Eu introjetar os ensinamentos dos progenitores e pode funcionar
de forma a punir o indivíduo diante de determinadas ações ou, até mesmo, pensamentos.
Quanto à saúde restabelecida de Georgina, André diz a Inácio: “- nunca esquecerei o
que lhe devemos, redargüiu-lhe o guarda. Permita Deus que algum dia me seja dado oferecer-
lhe o meu sangue e a minha vida” (Hoffmann, 1816/s.d., p. 67). Durante o enredo, por
diversas vezes, André recusa-se às mordomias propiciadas por Inácio, contudo, o caçador, em
agradecimento pela saúde restabelecida da mulher, pode até mesmo oferecer a sua própria
vida, a menos que sua “consciência” não seja perturbada. Com a ascensão do Romantismo há
o predomínio dos valores qualitativos, os de uso e os éticos em contraposição com os valores
da civilização capitalista moderna. Sendo assim, André ainda está arraigado à importância do
142
papel essencial das ligações afetivas e ao conjunto do tecido social. A predominância da
riqueza e dos bens materiais faz-se disparar em Georgina.
Ao ir embora da casa do casal, Inácio Denner solicita três favores: presenteia Georgina
com certa quantidade de ouro, pede que André permita-a aceitar e solicita que André ensine-o
o caminho pela floresta, porém, apenas até certo ponto. As passagens mais densas serão
percorridas somente por Inácio. A floresta é simbolizada como uma passagem para conteúdo
de natureza inconsciente e aos fenômenos do duplo, isto é, um espaço de conhecimento, pois
instiga a se pensar que Inácio estava disposto a se aventurar por caminhos mais duvidosos; já
André, tendo um supereu rígido, permanece com prudência. A psicanálise almeja pela
descoberta dos conteúdos de natureza inconsciente que interferem na vida do sujeito, como
também, o indivíduo ao não conseguir realizar determinados desejos, tem o inconsciente
como uma instância psíquica que compete à realização. A floresta abarca os conteúdos
reprimidos, isto é, inconscientes e André vacila em adentrar a essa região.
A vastidão da floresta é um espaço onde prevalecem os aspectos nebulosos da alma
humana, os aspectos secretos, os limiares entre o incerto e o seguro, tornando-os ambíguos e
confusos e, também, é um local onde se amplia a consciência e se rompe com as delimitações
do próprio Eu. O inconsciente, visto como uma floresta selvagem apresenta-se ilógico e tem
um caráter atemporal, aumentando a complexidade da relatividade e da subjetividade
pertinente às identificações da personalidade individual.
Passados dois anos, Inácio retorna à moradia do casal e deseja criar o filho deles, que
acabará de completar nove meses, porém André e Georgina não concordam, pois acreditavam
que, mesmo com as dificuldades financeiras, a unidade familiar deveria ser mantida. Passado
um tempo, em uma noite tempestuosa, Inácio volta e diz a André que é chegado o momento
de lhe mostrar gratidão devido à saúde restabelecida de Georgina e aos três anos que vivem
143
por conta de seu dinheiro. André pontua que não irá contra a religião e nem contra a ação de
sua consciência, mas é obrigado a participar de um assalto à casa de um rico lavrador da
vizinhança. Por desencargo de consciência, André decide contar para os magistrados de Fulda
sobre o ocorrido, entretanto, ao voltar para sua casa, encontra seu filhinho morto e com o
peito aberto. Georgina e Jorge, o outro filho do casal, estavam vivos. André encontrava-se em
uma situação rodeado por uma força superior a ele, capaz de dominá-lo, capaz de arrancar a
sua liberdade e conduzi-lo a um sofrimento mental devido às incongruências entre seu modo
moral de agir e as ações negativas causadas por acontecimentos sobrenaturais e longe de
terem uma explicação ou uma solução plausível.
A descoberta do saque leva André à prisão e a uma possível pena de morte, todavia, é
salvo por conta de uma aparição de Inácio na cadeia, o qual oferece a André um licor, mas ele
não toma. A atmosfera ficcional nessa história provém por meio da bebida, que seria análoga
à assinatura do pacto. Mesmo não aceitando a bebida e os benefícios que ela traria para si,
Inácio deixa para André, na cadeia, uma serrinha e uma lima para sua fuga. André mesmo
assim, não sai da cadeia e entrega às autoridades os materiais, contando também a sua
aventura noturna. As autoridades ponderam as alegações dele, ouvem testemunhas e mesmo
assim Inácio acaba sendo acusado pelo assalto.
Doutor Trabacchio ou Doutor Milagre era um médico que havia na cidade de Nápoles
e, por meio de remédios desconhecidos, curava diversos males. Como homem de saber e de
sucesso, era rodeado de prestígio. Recebia honorários que não condiziam com o luxo
extraordinário de sua vida. Assim como Fausto, Trabacchio fez o pacto com o demônio,
abdicando de sua alma eterna a fim de que pudesse ter todas as possibilidades de êxito e de
realização instantânea: a riqueza, o conhecimento, o sucesso e a satisfação amorosa, portanto,
todos os seus desejos seriam realizados, não havendo, a partir disso, faltas e nem frustrações.
144
Fausto representa os letais efeitos para a mente humana quando se estabelece
uma predileção por Absolutos de qualquer espécie: no amor, na organização social, na
arte; e principalmente no motor de tudo, o processo do pensar, que fica aprisionado na
crença e nos sentimentos dela provenientes de posse de tempo absoluto, espaço
absoluto, verdade absoluta (Sandler, 2011, p. 134).
O homem romântico liga-se ao satanismo, pois seus desejos são insatisfeitos e
indefinidos, como forma de conhecimento, afasta-se das causas de colisões dramáticas e
teológicas, com os quais, pactua de sua vontade própria e contra quem se debate. O satanismo
exige de seus adeptos a prática da crueldade, do orgulho e da prepotência. A partir do século
XVIII, o moderno satanismo teve um novo impulso através da decadência dos valores e, com
isso, os satânicos notavam o mundo como profundamente maldoso, sendo ele o verdadeiro
inferno e a vivência na terra uma espécie de sentença a ser cumprida.
Para Trabacchio, a brecha existente, a fim de que a vida pudesse ser um pouco mais
bem aproveitada, viria por meio de seu ajustamento com as características da nova sociedade
moderna, onde a dissolução dos vínculos afetivos, a corrupção e a exaltação ao dinheiro
possibilitariam uma melhor sobrevivência ou até mesmo uma vida plena de feitos e de
triunfos no âmbito pessoal. A venda da alma pode referir-se à venda do Eu que, para o
médico e para o momento histórico-social do século XVIII, por estar fragmentado e
desintegrado, afirma o seu crédito apenas enquanto uma entidade que, para fins ocultos, pode
valer-se para a troca. Ainda que apenas apresentasse como uma importância mercantil para se
realizar o pacto, o Eu, mesmo para Trabacchio, possui uma função compreendida na tentativa
de transformar seu destino e pela busca totalizadora dos processos psíquicos oriundos por
intermédio do princípio do prazer.
145
A crise do Eu é o tema constante em Fausto e em Doutor Trabacchio, pois existe a
despersonalização, a descrença de um saber que tudo engloba em uma verdade reveladora. A
crise do Eu evoca para um “conhecer-te a ti mesmo”, ou seja, “toda a verdade a ser
conhecida” sobre o Eu. Para Tavares (2012, entretanto, o Eu e “toda a verdade” são
incompreensíveis, porque o sujeito irrompe sobre a verdade de que não há esta possibilidade
de absoluto, ou seja, a verdade liga-se ao des-conhecimento, visto que a travessia dos próprios
mitos faz-se presente nas repetições. A demanda da vida humana, segundo Sandler (2011), é
sentida como infernal pelo psiquismo humano, pois há a intolerância dos paradoxos que
circundam os princípios do prazer e do desprazer.
Freud (1920/2010) aponta para o fato de haver uma tendência dominante na vida
psíquica, o esforço em diminuir, manter constante e/ou abolir a tensão interna dos estímulos
expressos no princípio do prazer, conforme ansiado por Trabacchio. Contudo, tal equilíbrio
recebe o nome de princípio de Nirvana e a redução completa das tensões reconduz o ser vivo
ao estado inorgânico e aos serviços do instinto de morte. O princípio do prazer vigia os
estímulos vindos de fora, avaliados como perigosos tanto pelo instinto de vida como pelo
instinto de morte, sobretudo, cuidando dos estímulos vindos de dentro, o que dificulta a tarefa
da vivência do sujeito. Trabacchio, contudo, ao reverenciar a função do princípio do prazer, a
fim de obter vantagens no plano terreno, conta com o esgotamento de todas as realizações
para os seus desejos, ou mesmo com as consequências implicadas pelo pacto, que, no conto, o
levaram a morar em uma floresta. Ficar preso em si mesmo pode levá-lo à destruição, porém,
do mundo externo, ele recebe seguidores que vem à floresta buscar seu elixir e seus
ensinamentos sobre as ciências ocultas, assim como conselhos que oferece a Inácio a fim de
conseguir mais adeptos.
146
O homem sempre foi seduzido por histórias que de uma maneira alegórica lhe
discorrem acerca da condição humana, e a literatura, sendo uma das expressões mais
significativas dessa necessidade, o acompanha (Leite, 1991). A crença no diabo tem sido
reforçada pela tendência humana de encontrar um bode expiatório, preferivelmente uma
entidade oculta e externa, em cujos ombros recaiam a carga da culpa pelo mal, pela violência,
pelo sofrimento e pela infelicidade. Para Chevalier & Gheerbrant (1997), o diabo europeu é
resultado da crença de que Deus é inteiramente bom e, tal protótipo tem raízes na tradição
judaica e com o florescimento no cristianismo.
O demônio apresenta outras nomeações e de tal modo, em cada nova terminologia há
também diferentes significados. O termo “Satã” exprime “adversário” em hebreu, sendo,
originalmente, apenas um opositor, não necessariamente um ser sobrenatural. Na corte celeste
Satã desafiou Deus, foi expulso do paraíso e tornou-se o senhor das trevas infernais. Para os
cristãos, Satã continua sendo inimigo de Deus e do homem, sendo a metáfora a suprema
corporificação do mal, vingativo, intensamente malicioso e cruel. O pecado que causou a
queda de Satã foi o orgulho, não se conformou com encontrar a felicidade apenas em Deus:
queria ser suficiente por si mesmo, amando-se, com exclusão de todos os outros. A escolha de
Satã foi irrevogável: sua rejeição a Deus ocasiona de forma subsequente uma punição. O
mesmo ocorreu com os outros anjos que o acompanharam (Chevalier & Gheerbrant, 1997).
A origem do nome “Luci-pherus” significa “portador ou fazedor de luz”. Lúcifer, o
Portador de Luz, o anjo caído, de acordo com Tavares (2012), paradoxalmente, recebe a
designação de Príncipe das Trevas, que se relativiza, pois a luz apenas pode ser invocada
pelos que estão na escuridão de alguma cegueira. Para Chevalier & Gheerbrant (1997), sem
sombra, a luz não existe, porém sem o limite sombrio, ela não pode ser percebida, pois os
raios solares não bateriam em sua superfície. Poeticamente, a lua é guardadora do sol;
147
fisicamente, a lua é passível de luz. Sem Lúcifer, não há Cristo, porque sem Lúcifer é
impossível Cristo provar que está além da tentação. E sem Cristo, não há Lúcifer, porque sem
Cristo não há nada a ser tentado.
Portanto, Deus, uno se faz verso, o espírito se faz matéria, o ser se faz espelho para se
conhecer. Se o espelho do criador é a sua criação, então, Lúcifer é Deus se fazendo constatar
sua fortaleza e sua origem. Lúcifer pode ser entendido como a mão esquerda de Deus. Tudo o
que ele almeja, no fundo, é a descoberta de si, do universo e a expansão de seu psiquismo. Por
isso, Trabacchio é Lúcifer, que representa a busca pelos domínios do saber, do ocultismo, das
ciências e do domínio de si e do mundo que o cerca.
O mundo interno do homem esteve sempre repleto de seres imaginários e
atemorizantes, que podem ser expressões do inconsciente e somente nele tem uma função. A
literatura fantástica pode ser representada por um “sonhar acordado”, nesse conto, com os
duplos, pois visa destruir ou subverter o lugar atribuído ao que culturalmente é atribuído ao
demoníaco.
Doutor Trabacchio aparentava ser moço, embora tivesse oitenta anos e tivera várias
mulheres que, pouco tempo depois de casadas, faleciam. De cada uma dessas mulheres um
filho nascera, mas quando a criança atingia à nona semana ou o nono mês de vida, ele a
degolava para arrancar-lhe o coração, cujo sangue destilado era usado como a base de seu
famoso elixir. No entanto, da última mulher poupara o filho, que viria a ser Inácio Denner. Os
dois fugiram em determinado dia que a casa de Doutor Trabacchio começou a pegar fogo
inesperadamente. Inácio ainda com quinze anos fugiu com um cofrinho nas mãos. Os dois
fugiram para a floresta e Trabacchio, com o passar dos anos, aprofundou Inácio nas ciências
ocultas.
148
De acordo com a enciclopédia Homem, Mito e Magia (1974), o sangue é o sinônimo
da vida e também, até mesmo, da alma. O sangue é universalmente considerado como o
veículo da vida: o sangue é vida, se diz biblicamente. A oferta do coração aos deuses, que
controlam o destino dos homens, é encontrada nas crenças de diversos povos, como, por
exemplo, nos astecas, que arrancavam o coração do peito dos prisioneiros para oferecê-lo ao
voraz apetite dos prisioneiros do sol e da terra. As tribos primitivas arrancavam o coração do
peito de uma criança para obter o controle dos elementos, como também comiam o coração
dos inimigos heroicos para adquirir sua coragem. O valor místico do coração, como símbolo
da alma, da intenção e da pureza de propósitos tem sido duradouro através dos tempos e em
todas as crenças.
O coração é o órgão central do sujeito, corresponde, de maneira geral, à noção de
centro. Se o Ocidente fez do coração a sede dos sentimentos, todas as civilizações tradicionais
localizam nele, ao contrário, a inteligência e a intuição. O coração é o símbolo da presença
divina e da consciência dessa presença. Para Chevalier; Gheebrant (1997) o duplo movimento
(sístole e diástole) do coração faz dele o símbolo do duplo, que representa também o
movimento de expansão e reabsorção do universo. Trabacchio e Inácio, mesmo tendo
características demoníacas, com o elixir, feito à base do sangue destilado do coração, passam
também, com isso, a ter os elementos de natureza divina. Para conseguir todos os efeitos
ocasionados pela feitura do pacto, mesmo assim, o pacto tendo como essência o sangue, este
que traz à vitalidade e o coração, o qual introduz a noção de centro e da presença divina.
Em O Doutor Trabacchio, o sangue do coração de crianças de nove semanas, nove
meses ou nove anos era o ingrediente básico para compor o elixir mágico e, para que tivesse
maior eficiência, as crianças deveriam ser entregues por livre vontade por pessoas que
tivessem parentesco com elas, produzindo, assim, um poderoso e eficaz elixir de vida. O
149
coração no Romantismo pode estar aludido à forma de apreensão do mundo, vindo pelo plano
da subjetividade e às coisas do espírito que, entretanto, seria buscado por Inácio para
possibilitar a feitura do elixir, o qual deveria ter tal composição como base, mas que teria
como finalidade a compensação para saciar a materialidade dirigida ao mundo e à vida. A
recorrência ao número nove marca um ciclo de vida da criança e com a produção do elixir,
denota a possibilidade de uma transformação, surgindo por meio de elementos do plano
espiritual, convergidos ao plano material, vindo a significar, simbolicamente, uma
possibilidade de totalidade que atuará na vida do sujeito – uma totalidade em termos
absolutos, mas que se desmembra, pois o sujeito é um “divíduo”.
Dando sequência à narrativa, em certa noite, André voltava para casa com o filho e
ouviu gritos de dor que partiam de um mendigo deitado às ervas, parecendo vítima de algum
sofrimento. André foi socorrê-lo e, para seu espanto, era a figura de Inácio, porém com a voz
do pai de Georgina já falecido, solicitando ajuda. E, assim, não mais viu o assassino do filho e
seu perseguidor, Inácio, começou a enxergar o pai da mulher a quem tanto amara. O poder de
transmutação e de estado de transe revela uma projeção, em que André mesmo vendo a figura
de Denner, ouve a voz de seu sogro, para que a situação se torne mais familiar, menos
ameaçadora e garanta a segurança de sua integridade.
Na literatura popular, o demônio nem sempre é olhado com terror, mas com desprezo,
sendo alvo de ridicularizações. Segundo a enciclopédia Homem, Mito e Magia (1974), em
canções populares de várias partes do mundo, como na Alemanha, o diabo é apresentado
como uma entidade fácil de enganar. Na Alemanha o título comum é gute dumme Teufel [o
bom estúpido diabo]. Histórias, peças de teatro e filmes representam o diabo como sempre
tentando reconquistar almas e sendo enganado pela suposta vítima na hora da cobrança, na
hora de levar a alma penhorada. O diabo também é repetidamente apresentado como uma
150
entidade ignorante, que não consegue antever a realidade e cai em ciladas que lhe preparam
supostas vítimas.
Inácio, em algumas passagens da narrativa, apresenta-se desfrutando de todos os
benefícios que o pacto, assinado na adolescência, lhe proporcionou e, também, faz o papel
que de Mefistófeles, porque induz André a ligar-se a ele e abandonar a proposta de sua vida
monótona e simples. Denner não é o diabo, é humano e, às vezes, se metamorfoseia em
demônio sem causar estranhamento no ambiente. Os aspectos diabólicos são inerentes à sua
natureza e evidencia as cisões da identidade pertinentes ao sujeito que, ainda, nesse momento,
no Romantismo, as personagens possuem a qualidade maniqueísta, a fim de que,
posteriormente, venha a se observar que as características boas e más fazem parte da natureza
humana.
Os personagens de Mefistófeles ou de Inácio representam o diabo que personifica o
mal. Não o mal como constantemente é visto, mas o “Mal” como inerente da vida. Para
Sandler (2011), Mefistófeles pode simbolizar a destruição e a morte, porém ele não é ruindade
ou maldade. A intenção consciente de lançar luz é responsável por mais escuridão, pois
corrompe com o paradoxo luz/escuridão. Não ser dominado por medo á escuridão cria a
oportunidade de alguma iluminação. André, nesse sentido, nega o diabo, refuta a evasão
ficcional, porque necessita evocar a razão e possuir a plena segurança de si.
O demoníaco para a psicanálise seria o sujeito que não consegue aceitar em si mesmo
aspectos de sua personalidade e, com isso, projeta. A predileção por absolutos processa
também pela maneira de se pensar em verdades, tempos e espaços absolutos fundindo uma
crença ilusória sobre o Eu. O demônio não é “um outro” projetado, mas uma parcela do Eu
derivado da condição do “divíduo”, de seu inconsciente e de seus próprios desejos.
151
O entrave narrativo se concentra basicamente no desejo de Inácio para que André se
rendesse as suas investidas e ao não desejo de André. Enquanto um Fausto ao inverso, André
tem valores que exaltam as virtudes da bondade, da simplicidade e da compaixão. Sua
segurança estava em preservar seu pequeno “paraíso”: sua família e seu lar. Como uma
personagem que representa o bem, em sentido absoluto, ele se nega a negociar com o mal e
prefere ter uma vida de concessões: a pobreza e a perda de um filho e, posteriormente, a morte
da esposa.
O protagonista acredita e segue orientado por princípios de natureza divina, em que a
ligação entre o homem e Deus evoca o pietismo, que refletiu o desencantamento de uma
época em relação ao desenvolvimento tomado pelo protestantismo, como também, à
ortodoxia que transformava e adulterava o espírito de piedade cristã pregado originalmente
por Lutero. Seu objetivo foi o de promover uma regeneração a partir do seu próprio interior,
ao mesmo tempo em que aceita as formas já instituídas, mesmo as considerando imperfeitas.
Com o pietismo, o sujeito estava em permanente escuta de si mesmo, a fim de revelar
um saber sobre si, o que conotaria a análise profunda de seu Eu a partir de um movimento de
constante introspecção e por meio da busca de Deus, o que tornaria, assim, indissociável do
autoconhecimento e da sua própria subjetividade. A única realidade real seria a interioridade –
a divindade aprisionada.
A possibilidade de se pensar acerca do sujeito, no Romantismo, em O Doutor
Trabacchio faz-se através dos duplos representados por duas figuras com caracteres absolutos
e opostos, que duelam a fim de triunfar um sobre o outro. O Eu de si próprio e do outro são
reconhecidamente como unicamente bons ou unicamente maus, fazendo com que o outro,
através dos pares André e Inácio, André e Trabacchio convivam com o seu Eu oposto até
então desconhecido. O demoníaco e o divino, enquanto pares absolutos tendem a formar uma
152
totalidade – uma forma particular de unidade. O sujeito possui ambas as características: as
divinas e as demoníacas, sendo que em alguns indivíduos há aspectos mais e outros menos
acentuados, mas todos se ligam a fenômenos próprios e inerentes ao Eu – ao “divíduo”, ao ser
partido e fragmentado. O Eu absoluto, quando inventa o não-eu, permite o arranjo de um fato
superficial para poder agir diante de seus mecanismos de defesas, dirigidos enquanto duplo, a
fim de mascarar a representação utópica do Eu real.
Serve-nos aqui essa ideia/representação demônio-pai como o caído ou talvez,
anterior à ascese sagrada que somente advém, no que se refere ao pai-totêmico, após
seu assassinato e a instituição da lei unificadora. Um pai ainda-não ou não-mais
sagrado, no que nos faz lembrar sua aparência pré-humana, identificada ao animal
totêmico (chifres, cornos e cauda) e que a imagem de Haizmann, do qual se trata no
texto de Freud, anterior à partilha dos sexos (demônio com pênis e mamas). Guarda-se
aqui a chama para a Unheimlichkeit, ou estranheza familiar, que denota esta imagem
do demoníaco, sobretudo na figuração híbrida (parte animal – parte humano) que lhe
reserva o cristianismo medieval. [...] Coloca Luisa de Urubey em seu Freud et le
Diable: “Ele não recalca suas pulsões (O diabo = a personificação da vida pulsional),
ele tem traços animais (como o diabo com sua cauda e seus chifres) e, além do mais
seu narcisismo não seria, afinal, uma característica demoníaca (Lúcifer, e mais bela
criatura)?” (Tavares, 2012, p. 84).
Diane da ênfase do divino para o humano, do medieval para o moderno, do teológico
para o científico e as suas consequências sociais, Tavares (2012), pontua que tais repetições
visam denunciar o luto por um Deus que, morto, não possui mais o poder de outrora. Os
153
poderes do potencial humano, as descrenças nos domínios científicos, na razão e na própria
capacidade do homem contribuem para a questão da feitura do pacto com o diabo. A
descrença em Deus, a corrupção social e a desconfiança do saber, portanto, colaboram para a
questão de Fausto: a onipresença do espírito enganador.
A inquietude da narrativa ocorre na fronteira existente entre os extremos: André e
Inácio, André e Trabacchio, interseção ocorrida entre o Eu e ao “outro não aceito”, ao
aparente não-eu, que também tem sua parcela esquecida ou reprimida dentro do próprio Eu.
Trabacchio e Inácio representam à instância psíquica do isso e André a do supereu. Esses
pares: André e Inácio, André e Trabacchio viriam a serem os heróis e/ou vilões, no conto,
pois, vêm representar os vários “Eus” do sujeito que é um “divíduo”. É do ponto
intermediário entre a luz, como o bem, e das trevas, como o mal, que nasce o despertar para a
consciência e à tolerância dos paradoxos existentes da realidade psíquica.
A psicanálise trouxe a possibilidade da percepção de que o diabo e Deus não estejam
fora de si, mas dentro de si. – no psiquismo. A visão mágica da mente trabalha com as forças
do bem e com as forças do mal representadas por “verdades” plurais e incertas vindas a
unirem-se e/ou fragmentarem-se. O “divíduo” pode redigir sua história ao aniquilar ou libertar
sua personagem em uma aventura residida no plano psíquico e tendo como um dos pilares a
sua maior força sobrenatural: às manifestações do inconsciente.
A alienação social e a desintegração política no Romantismo repercutiram diante dos
temas ligados ao grotesco e às histórias narradas que violam as leis da física, evidenciando o
lado noturno da natureza humana, a frágil identidade do sujeito romântico e o seu medo diante
da visualização da qualidade polimorfa de sua personalidade. Na procura de entendimento de
si e do mundo que o cerca, André, Inácio, Trabacchio e Georgina conduzem-se à tentativa de
compreensão de como o Eu é composto, proveniente de processos identificatórios, reprimidos
154
e duplos. A ambição romântica, no conto, foi a de que os sujeitos tentassem encontrar a
felicidade por si mesmos, em uma imersão por meio da subjetividade, mesmo que amparada
tanto pela espiritualidade como pela materialidade.
Como máximas alquímicas, o conto O Doutor Trabacchio apresenta a necessidade de
compreensão da experiência emocional contida na realidade psíquica de cada indivíduo:
Obscurum per obscurum, ignotum per ignotis! [o obscuro se explica pelo mais obscuro ainda
e o desconhecido pelo mais desconhecido!]. Também mostra, que no Romantismo, a
personalidade e identidade do sujeito foram anuladas e reveladas com o duplo, certos
desdobramentos visavam à integralização com algo perdido - Solve et coagula [dissolve e
combina]. A psicanálise pretende clarear determinados conflitos do Eu, para revelar a
essência do ser humano, enquanto combina, possibilita a modificação rumo a uma nova
personalidade integrada. O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica e, conforme
esclarece Green (1994), a relação com a realidade exterior é uma obrigação limitada, pois a
mesma exige a submissão a ela ou a sua transformação, buscando uma vantagem. A realidade
psíquica subjetiva é um compromisso de fé.
O inconsciente não é o caos desorganizado, mas um pensamento não pensado, à
procura de uma maneira para ser traduzido, racionalizado e ecoado. No Romantismo, a
maneira pela qual o inconsciente fosse exprimível veio a partir dos fenômenos do fantástico
abarcados pelo duplo, que representaram o Eu em crise consigo e com a realidade existente.
Os sujeitos no Romantismo vivem em constante confronto com o mundo e com si
mesmo. Trabacchio e Inácio veem solução no pacto com o demônio e André, por intermédio
da ligação com a família, com a natureza, com seus valores e com a sua consciência. O
encontro entre esses personagens permitiu que os duplos se direcionassem para avistar o Eu e
155
todas as suas particularidades e integralidade, ainda que por meio da dualidade oposta e
extrema.
O sujeito é o filho da angústia. Ao indagar-se sobre quem seja, o sujeito depara-se com
um Eu partido em dois. O duplo, em O Doutor Trabacchio, simboliza o “outro de si”, a
dialética da existência que corresponde a um perpétuo conflito. Os duplos opostos visam,
portanto, a uma tentativa compreensiva por uma unidade. Contudo, é uma constante busca,
pois o Eu é em si e de si fragmentado. Os pares formados por André e Inácio, André e
Trabacchio olham individualmente para seu respectivo “outro” como um reflexo estranho e
ainda não reconhecido.
No entanto, no final do conto, André percebe que sua vida foi modificada depois que
Denner deixou o cofrinho de joias, o qual foi atirado de um despenhadeiro, assim como fez
Peter Schlemihl, de Chamisso, após ter jogado fora sua bolsa mágica em um precipício,
ambos, depois disso, não tiveram mais perturbações e o sossego profundo do viver
estabeleceu-se. O cofrinho simbolizou o despertar da autoconsciência de André, contudo,
ainda não estava preparado para reconhecer-se como um “divíduo”. Ele ainda era um
guardião de si.
4.3 Os Duplos
A maldição da humanidade era o fato de aqueles dois lados incongruentes estarem unidos – que no útero angustiado da consciência aqueles duplos polarizados tivessem que ficar continuamente lutando. Como, então, seriam dissociados? (Stevenson, 2011, p. 69).
Na tragédia, pode e deve o destino, ou o que seja, dominar a decisiva natureza do Homem, a qual o leva cegamente para lá e para cá; ela não deve nunca conduzi-lo ao seu objeto, mas sempre desviá-lo dele; o herói não pode ser senhor de seu
156
entendimento, o entendimento não pode absolutamente entrar na tragédia a não ser em personagens secundários em detrimentos do principal (Carta de Schiller a Goethe - Goethe & Schiller, 2010, p. 131).
Para a leitura interpretativa desse conto recorreu-se à versão em espanhol de Los
Dobles [Os Duplos] (1822/2009) que, originalmente, em alemão, recebe o nome de Die
Doppelgänger e pertence ao volume único de Hoffmanns Tod. A história apresenta oito partes
e tem por foco narrativo um narrador onisciente intruso, ou seja, o qual tem a liberdade de
narrar à vontade e tecer comentários sobre a vida, os costumes e a moral das personagens. No
conto, o narrador pontua ao leitor sobre algumas novas passagens que ainda não foram
esclarecidas, pois, com a mudança brusca para cada novo capítulo torna o desenrolar da
narrativa, às vezes, fragmentado e confuso. Além da duplicação das personalidades do conto,
há o desdobramento na própria forma de narrar, o que ocasiona a estranheza e a necessidade
de que a decomposição do discurso venha a ser integrado. Com o desenvolvimento e a síntese
dos acontecimentos, apenas conectados nos capítulos finais, os quais, as personagens
compreendem as manifestações duplas de si mesmas, permite-se ao leitor a compreensão de
todos os elementos e os recursos ficcionais usados durante o enredo.
A ambientação não funciona apenas como pano de fundo, mas influencia diretamente
no desenvolvimento do enredo e, aliado ao tempo, revela-se como um dos elementos
estruturais mais importantes da narrativa. O início da história tem o espaço de duas
hospedarias próximas, sendo elas: “Cordeiro Dourado” e ”Cordeiro Prateado”; também se
compõe pela ambientação no centro da província, que conta com a figuração de personagens
exóticas e com o desfecho realizado em um castelo em ruínas.
O espaço, como se apresenta, não é apenas físico: é também simbólico. Com isso,
denota as múltiplas perspectivas desenvolvidas diante do cenário de fenômenos sobrenaturais
157
e das violações das ordens físicas, nas quais a tensão existente entre os personagens e seu
lugar confunde-se quanto à possibilidade de compreensão do real e da pretensão de que as
personagens se diferenciem.
O incômodo causado em presença da rápida mudança de cenários e dos encontros
“coincidentemente” pontuais entre as personagens reflete-se à maneira, pela qual, em Os
Duplos, o espaço encena-se fragmentado e com a necessidade da quebra de barreiras com a
realidade, tornando o incomum, o desconhecido e o sinistro, como fontes para que as
personalidades envolvidas no enredo consigam realizar a tentativa da busca de si mesmo. Isso
por meio dos elementos irracionais e misteriosos, oferecidos tanto no plano da ambientação
como no plano psicológico deles mesmos.
O “inesperado”, o “coincidente” e o “repentino” são vocábulos recorrentes na
literatura fantástica e apresentam-se com variações múltiplas. O leitor, diante disso, depara-se
com a proposta de construção de sentidos, com os quais, o diferente e o incomum evidenciam
a presença dos aparentes elementos irreais. O surgimento do inesperado rompe com a cadeia
normal de ligação com a palavra e a realidade, que é um elemento basilar do fantástico: a
representação realista.
A narrativa inicia-se com o proprietário da hospedaria “Cordeiro Prateado”
reclamando que, no seu vizinho, o também proprietário de uma hospedaria chamada
“Cordeiro Dourado”, havia mais fregueses, pois lá se encontravam malabaristas, palhaços,
equilibristas e uma mulher que, com seu corvo, fazia profecias. Através do cenário romântico,
a categoria do estranho e do fantástico, que inclui as sociedades secretas, os profetas e as
cartomantes, voltam a serem objetos de interesse, porque as pessoas estavam descrentes na
razão e na era iluminista.
158
Por conseguinte, o gerente da pousada “Cordeiro Dourado” vem receber seu novo
hóspede, o jovem Deodatus Schwendy, contudo, cumprimenta-o como sendo o pintor George
Haberlad. Deodatus havia sido enviado à Hohenflüh por seu pai, Amadeus Schwendy, a fim
de encontrar com o seu futuro. No entanto, Deodatus iria encontrar-se também com o seu
passado, com seu ponto de origem, vindo a conseguir, a possibilidade do encontro consigo
mesmo.
Aqui, el cenit de su vida, debe decidir su futuro por medio de un sucesso
maravilhoso que su padre le habia predicho com su palavras oscuras e misteriosas.
Con sus propios ojos veré a alguien a quien sólo habia visto en sueños. Comprobará
ahora si este sueños, que, nació de una chispa en su interior, habia ido crecido, hasta
volverse cada vez más vivaz y radiante, realmente podia surgir y manifestarse en el
mundo exterior (Hoffmann, 1822/2009, p. 11).
A necessidade do encontro com o destino, assegurado pela palavra paterna, vem
predizer mudanças na vida de Deodatus e o acontecimento esperado, simbolicamente, ao ser
pensado ou imaginado, oferece a estrutura fundamental ao duplo. O relato traz a marca de
uma trama familiar que, mesmo ainda oculta, transporta o personagem à imposição de
“conhecer-te a ti mesmo” e tentar preencher uma provável lacuna existente em sua vida,
perante a um não-dito e a um não-saber de sua história pessoal. O não-dito pode ser
representado como o núcleo de um projeto de vida, um projeto ausente da vontade consciente
dos pais. O ignorado, assim, age como ponto de partida ou vincula-se, a fim de orientar os
caminhos da existência. O percurso, no entanto, é orientado ao desconhecido que tende a
repetir o que estava oculto: ao estranho.
159
Para Giora (2015), o não-dito acaba por constitui-se em um projeto de vida, uma vez
que será direcionado para o desconhecido, ao qual tende a repetir o que estava oculto,
estranho. O estranho pode ser considerado como algo, o qual em determinado tempo foi
familiar, mas, depois, se desvincula da familiaridade para, em um futuro, vir sob o manto da
surpresa do reencontro. A necessidade do reencontro de Deodatus com algo enigmático cede
espaço à cisão, isto é, ao episódio a ser realizado, que para ele ainda teria a característica de
ser novo, porém, o retorno de um mesmo simularia a conciliação consigo mesmo sob a forma
de resgate de algo escondido, que, em algum momento, foi perdido.
O homem romântico compreende ser um joguete nas mãos do destino, no entanto, com
o advento da psicanálise, alguns dos fenômenos atribuídos às causalidades podem ser
dirigidos por intermédio das forças do inconsciente. A influência do inconsciente pode ser
apontada como uma manifestação do duplo, visto que os acontecimentos, de maneira geral,
instigam ao estranho e à repetição, trazendo consigo a familiaridade camuflada. O destino
pode via a ser caracterizado por uma sucessão de eventos, que tendem a levar o sujeito ao seu
lugar de partida, tornando-se, também, o seu espaço de chegada.
Ao sentar-se para o almoço, Deodatus novamente é confundido com George e
apontado como uma figura, um ser e um fantasma sinistro do qual o pintor ainda não
conhecia. Enquanto clones de si mesmo, os duplos idênticos expressam-se através do
fenômeno do desdobramento repetido, porém a duplicidade de um Eu oposto ou multiplicado
de si mesmo, ainda, não estava permitindo o encontro e reconhecimento do sujeito consigo
mesmo. Então, a nova tentativa romântica, nesse conto, viria por meio de duplos com
semelhanças físicas, para que, a partir disso, a visão de si mesmo não tivesse o caráter
apavorante, mobilizando a culpa ou a recusa diante dos eventos observados como fora de si.
160
Em Os Duplos, o fenômeno da duplicidade envolve a combinação do extremo: a
semelhança entre duas pessoas – Deodatus e George. Enquanto duplos homogêneos, a
semelhança se torna quase ou mesmo impossível para a realização da diferenciação. Portanto,
a semelhança entre os dois personagens estabelecem o diálogo de complementaridade,
manifestando a identidade ao atualizar as maneiras diferentes ou desdobramentos de um
pensamento criativo. Inicialmente, Deodatus e George sugerem ser gêmeos e, que por uma
variedade de razões, foram separados e, até então, nenhum sabia da existência do outro.
A imagem de um duplo de si mesmo, idêntico a si mesmo, revela a imagem que o
homem constrói e reconstrói ao longo de sua vida, representando o seu mundo interno. Os
gêmeos idênticos sustentam a ilusão de igualdade entre representação e representado, isto é, a
não divisão do sujeito. Os pares gemelares estando em perfeita sincronia e harmonizados
pelas igualdades, como, por exemplo, os que compactuam com o mesmo estilo e mesmo
comportamento, comprovam ser possível estar em equilíbrio consigo mesmo, de acordo com
o ideal de superação dos conflitos internos, resultado da dinâmica de funcionamento de um
aparelho psíquico submetido às forças contraditórias e em oposição.
Segundo Marquez (2010), a experiência real de ser gêmeo univitelino sustenta a ilusão
de completude, que é a eterna busca do ser humano. Os gêmeos despertam o interesse e
atenção das pessoas, pois estão na possibilidade de liberação do domínio do Eu único e
absoluto senhor das ações humanas. O par gemelar tem a oportunidade de escapar do “Eu
prisão”, porque, mesmo sendo dois, os gêmeos revelam a viabilidade de uma segunda
instância, uma segunda expectativa, uma segunda exigência, ou ainda uma segunda
oportunidade.
Os gêmeos são símbolos concretos da dualidade, trazem a ambivalência, que pode
refletir a harmonia ou também o caos. Simboliza também o psiquismo humano na sua
161
expressão, pleno de diferenças e oposições internas, conflitos e divisões. De acordo com os
estudos de Giora (2015), todos os mitos, lendas e outras histórias que discorrem sobre os
gêmeos são uma busca pela explicação de fatos visíveis na imagem dupla atual, mas que
remontam a acontecimentos primordiais do filo e ontogênese da constituição psíquica. Os
acontecimentos primordiais encontram-se na gênese e, através da cultura se ligam ao atual.
Com isso, os eventos colocados culturalmente expressam àquilo que é primitivo. O modelo
das díades, as gemelares ou não, possibilitam “esse outro” – a outra possibilidade de mim.
Ibejis são divindades gêmeas, sendo usualmente sincretizadas aos santos gêmeos
católicos Cosme e Damião. A palavra Ibeji quer dizer gêmeo e forma-se a partir de duas
entidades distintas que coexistem, respeitando o princípio básico da dualidade. Entre as
divindades africanas, Ibeji é o que indica a contradição, os opostos que caminham juntos: a
dualidade. “Ibeji indica que todas as coisas, em todas as circunstâncias, têm dois lados e que a
justiça só pode ser feita se as duas medidas forem pesadas, se os dois lados forem ouvidos”
(Giora, 2015, p. 22).
A fonte original que aborda o tema do duplo vem pela história bíblica de Esaú e Jacó.
Os primeiros gêmeos de quem se tem informações são marcados pela dualidade até o
extremo. Giora (2015) aponta que Jacó precisava de um agressor, o depositário de aspectos
inaceitáveis quanto desejáveis de si mesmo. O estrangeiro inimigo, o “outro” é o depositário
do não morrer, do permanecer não castrado, da ideia de imortalidade. Jacó precisava de um
agressor para tomar consciência de sua forma. Ele também simboliza o homem em luta com o
que transcende, com a sua natureza e com os seus ideias.
George e Deodatus, no entanto, não são “gêmeos” que representam as características
opostas um do outro. Eles remetem à questão do princípio absoluto da unidade. A ilusão da
completude desfeita conecta-se ao tema romântico da unidade perdida, isto é, os gêmeos
162
confirmam que há antagonismos, porém, mesmo sendo idênticos fisicamente, cada qual
deveria ter a sua alteridade, sua personalidade e suas individualidades diferenciadas, a fim de
que cada um pudesse ser uma unidade. Em grande parte do desenvolvimento da narrativa,
além da igualdade física, os dois personagens apresentavam a simultaneidade de gostos e de
situações que, ao serem justapostas, exprimiria a urgência de que ambos viessem a formar sua
própria singularidade.
Os gêmeos idênticos vivem a ilusão de estar no centro do mundo. Eles podem exibir-
se na característica de duplas idênticas: o desejo de vê-los em exibição também se prende a
esta mesma característica: a gemealidade. O prazer experimentado por todos os envolvidos
neste ver-e-ser-visto alimenta e aprisiona, provocando uma parada no desenvolvimento
natural em busca do Eu e da alteridade (Marquez, 2010).
Na questão dos gêmeos é um pouco diferente. Nascem dois. Um e outro. Um
do outro? Outro do um? E assim a questão do outro em mim, do duplo, do estranho, se
concretiza. Eles precisam daquilo que chamamos de oposição para poderem se definir
como um e outro do um e vice-versa (Giora, 2015, p. 155).
No entanto, as divisões do Eu característicos da época romântica apontam o sujeito
como um ser fragmentado e descentralizado, ideias contrárias a uma unidade subjetiva. Os
duplos, porém, revelam um outro ainda não conhecido, mas que faz parte do Eu. O conceito
do outro, alocado em si, pode vir a representar as próprias manifestações inconscientes de
cada um, às tentativas de apreensão do que é posto pelo mundo e à inesgotabilidade da
subjetividade. A duplicidade sob o plano gemelar, para Marquez (2010), representa o Eu: dois
em um. Nesse sentido, o sujeito psicanalítico apresenta-se dividido: uma parte consciente e
163
outra inconsciente, um Eu acessível ao pensamento, aquele que é possível a visualização e
outro inconsciente, inacessível, aquele que se subtrai à visão. Apenas há o acesso ao
inconsciente pela consciência, através, da decifração das metáforas, da análise do discurso
consciente, da compreensão dos sintomas, dos sonhos e das parapraxias.
Para ser constituído, o Eu, precisa tornar-se um Eu corporal, ou seja, ser a própria
projeção de uma superfície. O recém-nascido não distingue as sensações externas e internas,
assim como confunde os limites de seu próprio corpo. Progressivamente, ele demarca a
superfície do seu interior e ao que pertence ao mundo externo e, com isso, através de um
processo formador, pode separar o Eu próprio do outro. Do autoerotismo, isto é, das pulsões
dirigidas ao corpo, ao Eu corporal, onde o Eu deverá deslocá-las para si próprio, isto é, torná-
las narcísicas.
Freud (1923/1996) esclarece que, com o desenvolvimento do Eu ocorre mediante o
afastamento do narcisismo primário, do qual, o Eu tenta recuperá-lo sob a forma do ideal do
Eu, isto é, uma instância autônoma, que lhe serve de referência, a qual tem a missão de
reprimir o complexo de Édipo e incorporar qualidades boas e reais dos pais e da sociedade. O
Eu representa, portanto, a razão, o senso comum e o controle. Sendo assim, a ideia é a de que,
em cada sujeito, exista uma organização coerente dos processos mentais, que a consciência se
acha ligada e controla as descargas das excitações para o mundo externo. O Eu, para Freud,
desse modo, carrega os princípios da razão, da demarcação de limites e do controle.
Em Os Duplos, os personagens acham-se percorridos pelos elementos do fantástico e
das duplicações que, observadas foras dos sujeitos, fazem com que eles percam o controle
acerca de si e do outro, ou seja, há uma confusão tanto pelo aspecto do mundo interno como
pelos alcances do mundo externo. Com isso, o Eu dos indivíduos no Romantismo não tem um
referencial satisfatório oriundo da sociedade para poderem incorporar. Diante disso, a
164
consciência conecta-se às excitações do ambiente externo, onde os sujeitos envoltos pela crise
social fazem com que o Eu também não consiga realizar a sua tarefa de preservação e adentra,
do mesmo modo, em estado de tensão.
Outra personagem que faz com que Deodatus encontre a si mesmo é a figura
misteriosa da mulher que faz adivinhações com o seu corvo. Simbolizada enquanto uma parte
projetada de Schwendy, isto é, diante das interrogações quanto ao seu futuro, ele desejava por
um alento e tem por meio dela a resposta imediata de suas dúvidas e desejos. A vidente diz
que o jovem já estava entrando nos eventos aludidos pelo pai e: “cómo no debe ser
confundido, simplemente ser incorporadas a su propio auto a otro hombre, como un
matrimonio, que es un poco apretado o demasiado flojo aquí y allá” (Hoffmann, 1822/2009,
p. 15). Através da ajuda do corvo, a vidente relata a Deodatus que o encontro com o seu
“outro eu” deveria ser incorporado como fator pertinente a ele mesmo, por tratar-se de seu
próprio Eu. Assim, por meio do encontro com seu duplo, o reconhecimento da história
pessoal de Deodatus viria a ser desvendada.
Na literatura, os corvos são animais associados aos elementos obscuros e sombrios.
Chevalier & Gheerbrant (1997) destacam o corvo como um herói solitário, mensageiro das
almas para outro mundo que, além de profético, liga-se às mensagens divinas. No conto, o
corvo passa por um processo de humanização (antropomorfismo), pois, mesmo sendo um
animal, capta as inquietações do consulente à adivinha, indicando alguns eventos futuros
desejados que devam acontecer repletos de elementos suspeitos e enigmáticos.
Sequencialmente, George e Deodatus encontram-se na hospedaria e tratam-se como
irmãos. Como inicialmente sendo um par de gêmeos, ambos deveriam conquistar um olhar de
reconhecimento diferenciador perante aos outros e, especialmente, de si mesmos, a fim de
alcançarem uma identidade própria. Ainda regidos pelo campo da igualdade, o pintor recebe
165
uma carta de seu amigo Berthold e Deodatus assinala que havia recebido também uma carta, a
qual continha o mesmo teor da de seu duplo: que, com a mudança para Hohenflüh, algo
especial aconteceria para ambos. O duplicado, além de serem os Eus dos personagens,
ressoou para com que as situações vividas por eles também fossem identicas. Mesmo na
situação gemelar há confusão entre os dois seres pela própria condição de nascimento duplo:
eles poderão estar sempre juntos, em situações idênticas ou similares, frente aos mesmos
objetos.
Outra duplicação diante de situações repetidas envolvendo os gêmeos ocorre por meio
da personagem Natalie. Deodatus percebe que a mulher que fazia previsões com a ajuda do
corvo era a mesma pessoa pela qual ele era apaixonado. George também gostava de Natalie e
tinha-a conhecido em Estranburgo, onde fez uma pintura de seu rosto. O conde Hektor von
Zelies, pai da moça, fica perplexo com a pintura e deseja que Haberlad saísse das redondezas,
contudo, ele não aceita e Natalie, misteriosamente, desaparece.
A duplicidade do amor pela mesma mulher sugere que, quanto mais os duplos
aproximam-se um do outro e, consequentemente, de si mesmos, mais duplicidades entre eles
ocorrem. As identificações provisórias têm o intuito de que as personagens, ao partilharem de
um mesmo Eu, apresentem familiaridade do que já era conhecido por si mesmo, mas, que, no
entanto, garantida a ilusória intimidade com si, promova uma nova tensão e outro
desdobramento. Tal fato alude ao processo psicanalítico em que uma nova descoberta sobre si
acarreta uma nova agitação, que deverá ser descoberta, formando uma espiral.
O processo de produção dos duplos remete à crise que envolveu o sujeito do contexto
romântico, o qual vivenciava a falta de compreensão de si e de seu inconsciente. O duplo
igual retoma ao campo do não confronto, do não estranhamento e do não incômodo. Desse
modo, a diminuição das manifestações do duplo, como o término da analise, seria efetuada
166
através de autoavaliações, das (res) significações as quais envolvem o sujeito ao
reconhecimento de seu inconsciente e de suas experiências, para que ele tenha condições de
tentar ser o seu senhor.
O Eu no outro ou a parte do Eu alocada no outro propiciou à narrativa, dois gêmeos
idênticos, isto é, a percepção de si diante do outro vem por meio de características já
conhecidas em si mesmo e o duplo faz-se através de uma confirmação de reconhecimento. O
duplo idêntico permite a Deodatus ficar em um território já conhecido por si mesmo, visto que
seu “outro eu”, aparentemente, era seu Eu real, sem amarras ou códigos presentes. A
duplicação de personalidades idênticas serve para que o jovem venha a tentar encontrar-se
consigo mesmo, perante as situações futuras, que poderão contribuir para ocorrerem às
diferenças entre os dois personagens e, assim, reconhecerem-se, inicialmente, como “únicos”.
Isso posto, pode corresponder a uma “forma de unidade particular”, que os fazem ser
reconhecidos perante aos demais, porém, contudo, é uma “unidade particular” dividida em si
mesma.
Qual o papel da semelhança física na formação da identidade? Ela se desdobra
em: o que é ser uno, singular num espaço, onde à sua volta, ou mais especificamente
ao seu lado, existe um idêntico a você? Como é ser gêmeos univitelinos e viver numa
sociedade que nos ensina que não há indivíduo algum que seja igual ao outro? Como
é, sendo gêmeos univitelinos, viver numa sociedade que valoriza prioritariamente o
individual enquanto diferente de todos os outros? (Marquez, 2010, 79).
A gemealidade remete ao duplo: à sombra, à experiência do idêntico, ao espírito
juntamente com as emoções inerentes às mesmas. Os duplos, Deodatus e George, são
167
“gêmeos” não díspares, como costumeiramente é retratado nas histórias que envolvem a
gemealidade. A igualdade é fonte de prazer e de poder, mas pode tornar-se estranha e
ameaçadora, pois, simbolicamente, a imortalidade simula e anuncia o desaparecimento do Eu,
incapaz de uma diferenciação identitária. Para Marquez (2010), o sujeito é um duplo que se
mostra e esconde-se. O “dois” abre-se a possibilidade do “dois em um”, isto é, aponta para o
conceito de fusão, contudo, ela também pode esconder uma essência diferente: o que se
mostra sem ser.
Em Hohenflüh, Haberlad e seu amigo Berthold vão ao centro da localidade e
percebem uma cultura marginal dentro da própria sociedade burguesa. Essa minoria era
composta pelos ciganos, que vendiam fitas, ícones religiosos, colares de coral e também
previam o futuro. Os ciganos estavam presentes na Alemanha no final do século XVIII e
início do século XIX, representando, com isso, o contraste que ainda existia na nascente
sociedade pré-moderna. Diante do espírito viajante, os ciganos não se sentem pertencentes a
nenhum lugar e, portanto, não criam raízes e desprezam a noção de propriedade privada. Toda
a história desse povo é envolta por suposições, uma vez que lhes faltam documentos. Os
modos de vida dos ciganos, imaginados como avesso aos dogmas da sociedade ocidental,
inscrevem-nos como selvagens, perigosos e antissociais, porém, ao mesmo tempo,
representam o espírito romântico da aventura e da boemia. Enquanto uma minoria à margem,
os ciganos conseguem ter uma singularidade, que os fazem irreproduzíveis dentro da
sociedade burguesa.
No local, ainda existia um teatro de fantoches, em que uma marionete apresentava-se
com o corpo discrepante à cabeça. Um médico que havia no local disse que a marionete não
tinha cabeça e tomou emprestado de alguém, pois "pertenece a algún desafortunado que tenía
ideas locas y ahora por falta de manos podría hacer uso de insultos para proteger palmada,
168
hormigueo en la nariz y similares" (Hoffmann, 1822/2009, p. 39). Simbolicamente, como
crítica romântica, a “cabeça” faz referência às ideias iluministas e a “falta de mãos”, ao seu
inacessível campo, o qual consiste em uma espécie de defesa para que o sujeito não seja
tomado pela sua interioridade, contornada pelas emoções.
Por conta da semelhança entre os dois personagens, outro acontecimento que tornou
percepção dos outros foi o tiro que Deodatus sofreu na floresta, quando estava de carro junto
à Natalie. Alguns achavam que o baleado havia sido ele e outros que teria sido George. Nesse
momento da narrativa, o acontecimento não duplicado começa a esquematizar-se para que as
diferenças entre os dois sejam de fato elucidadas. O fantasma da duplicação conduz os
gêmeos à vista de si mesmos, referenciada pelo alcance da revelação de seus destinos.
De acordo com Giora (2015), a duplicidade idêntica é possibilitada em virtude da
composição das diferenças, que são moldadas pelo oposto, para a defesa da identidade, o que
implica às vezes no abandono ou recusa de partes que poderiam ser apropriadas, mas se
assumidas pela dupla, interferem no processo de autenticidade do próprio Eu. Já para Duarte
(2011), se sujeito e objeto são o Eu, ou seja, se os “dois” vira “um”, também o Eu pode ser
tanto o sujeito, como o objeto, ou seja: “o virar dois” ao invés de propiciar a perfeita
fundamentação do ser consigo mesmo, instaura-se a dessemelhança, a diferença.
A bala apenas roçou o peito de Deodatus, contudo o disparo faz com que o conde
Hektor von Zelies reaparecesse na floresta e falasse para o jovem afastar-se daquele local. A
floresta, com sua vastidão, surge como um espaço onde, por mais que se conheça, ainda há a
sensação de desconhecimento e de incerteza, remetendo aos conteúdos de natureza
inconsciente. Deodatus tem outros contratempos por estar na propriedade do príncipe
Remigius, em Sonsitz, como a sua prisão. O príncipe, ao vê-lo, e Deodatus ao contar sua
versão pronunciando os nomes do conde e de Natalie, sofre um derrame. A tensão emocional
169
do acontecimento foi barrada por uma paralisia. O sofrimento, as lembranças reprimidas e as
obrigações com que a nova realidade impunha a Remigius, desencadearam nele um colapso,
diante do pavor de um possível reencontro. Remonta a um não-dito, que para ele ainda
deveria permanecer silenciado.
Na categoria do inquietante estaria tudo aquilo que sendo familiar retorna
agora como diferente e até mesmo misterioso. O impacto causado está nesta
polaridade do conhecido e desconhecido, na impossibilidade de um conhecimento
total do objeto dado a conhecer: sempre resta algo inacessível, refratário, velado ao
conhecimento. Este resto às vezes se impõe provocando uma sensação de estranheza
que alerta para o perigo, e a angústia é deflagrada automaticamente. Assim
reconhecemos em toda situação familiar a possibilidade de sobrevir o inquietante
(Marquez, 2010, 22).
Remigius encontrava-se em um estado melancólico profundo, desde que sua esposa e
seu filho, inexplicavelmente, haviam desaparecidos. Como ele não tinha herdeiros, quem
tomaria o trono era seu irmão, o conde Hektor von Zelies, o qual estava escondido no castelo
em ruínas. No entanto, em um testamento, Remigius diz que seu irmão não poderia ser o
sucessor do trono.
O conde von Törny era o primeiro-ministro da localidade, porém, com o
desaparecimento da princesa, ele também deixou o reinado e adota o novo nome de Amadeus
Schwendy. A troca do nome, entretanto, não aniquilou o não-dito que atravessava Amadeus e
Deodatus. A força do destino e da palavra posta de Amadeus divulga a história do jovem, que
recomeça reconhecendo a si mesmo e retornando ao seu lugar de origem. O recalque, tanto de
170
Amadeus como do príncipe, criou o efeito de concretização do destino, isto é, por conta de
uma história percorrida por dúvidas, culpas e havendo o retorno do mesmo e do
estabelecimento da confirmação soberana do inconsciente.
Sendo assim, o estranho é aquele “outro” ou algo que tenha sido para o Eu em algum
tempo familiar, depois, no entanto, desvincula-se dessa familiaridade, para, posteriormente,
ser reencontrado. O acontecimento não é estranho, é familiar, depois, de forma ambivalente
torna-se estranho e assustador. A ideia do duplo, nesse conto, retoma a ideia de que o
estrangeiro no outro ou em si mesmo significa o encontro de uma familiaridade abandonada e
esquecida, porém jamais excluída. O “estranho estrangeiro” busca a complementação, a
reintegração, ou até mesmo a oposição, para existir.
No leito de morte, envolto pela culpa, o príncipe disse ter sido injusto com sua esposa,
por conta de uma suspeita de infidelidade, trancando ela e o filho na parte do castelo em
ruínas. O príncipe Remigius e o conde von Törny eram amigos e se apaixonaram ao mesmo
tempo. O príncipe se apaixonou pela princesa Angela e o conde pela condessa Pauline.
Ambos se casaram no mesmo dia. Contudo, a princesa se apaixona pelo conde, que desde a
juventude observara que tanto a princesa quanto a condessa possuíam uma “exaltação na
fronteira da histeria”. As duas mulheres, portanto, não eram representadas com características
angelicais ou demoníacas, tão comum às histórias românticas, mas com uma neurose. As duas
tinham ataques e ambas esperavam um bebê:
Extraña coincidencia o tal vez debería llamarse, el destino maravilloso, la
princesa y la condesa dan a luz a un niño, mientras que al mismo tiempo... También:
todas las semanas, todos los días se hizo cada vez passavem evidente que los niños se
parecían cada vez más para contar (Hoffmann, 1822/2009, p. 82).
171
A princesa e a condessa duplicam-se mutuamente, o que se refere à ideia de uma única
personalidade. A duplicidade vinculada às duas mulheres: o cenário de identificações, as
pontualidades ao nível do casamento e da gravidez, sugere novamente a questão da repetição
das situações, na qual o sujeito tende a afirmar a si o que já conhece para, posteriormente,
encontrar as suas alteridades. Tal questão é contundente ao Romantismo e à narrativa, cuja
busca era de fato por uma identidade única, permitindo ao sujeito contrapor-se aos padrões
sociais e às máscaras. No entanto, ainda não consegue tal realidade, devido ao fato de viver
em comunidade e realizar o contato social, o que revela, com isso, que as demarcações entre o
mundo externo e interno serão tênues. Os dois universos afetam-se. Logo, a crise do período
tornar-se uma crise também do Eu.
A realidade psíquica é tanto objetiva quanto subjetiva, assim como a realidade externa
é o reflexo da vida pulsional. O desamparo do indivíduo é a matéria-prima da psicanálise, já
que ele resulta da subjetividade em um mundo que se funda sobre ideais totalizantes e
universalizantes, uma vez que a vivência genuína requer o recomeçar insistentemente. A
vivência no Romantismo sinaliza o aparecimento da sociedade pré-moderna, a qual representa
uma vida de concessões, pois direciona o sujeito ao aprisionamento, cuja lacuna interior está
presente. O movimento cíclico da morte, do luto e do renascimento, ao constituírem-se,
produz a metáfora do processo de constituição do Eu. Giora (2015) ressalta que o conflito
mental cria o duplo, o que satisfaz a uma projeção do conflito interno.
A histeria das personagens aproxima-se ao fato de que o Eu foi derrubado por
acontecimentos nos quais perde o controle diante de situações não imaginadas. O nascimento
da psicanálise no século XIX foi possível através dos estudos psíquicos da histeria. O
fenômeno básico da histeria, para Freud (1893/1996), é uma tendência para a dissociação e,
com ela, a emergência de estados de consciência anormais, que se pode chamar de
172
“hipnóides”. Por exemplo, o afeto de pavor pode assombrar no curso de algum outro afeto
intenso e, por isso, recebe importância. Após experiências com esses fenômenos, Freud julgou
provável que em toda histeria havia algo de rudimento chamado de “Double conscience” –
consciência dupla. O corpo das histéricas era o palco da ruptura entre as noções de verdade e
ficção, da insuficiência científica que rompia com o universo das afecções da carne e do
mundo do sofrimento psíquico. Os estudos de Freud sobre as histéricas comprovam o efeito
fundamental da fantasia (Tavares, 2012).
Em Os Duplos (1822/2009), além da duplicação das personagens, há o dual fenômeno
da histeria, que também diverge às manifestações de que cada duplicada também divide a sua
personalidade, estando ligadas a dois afetos: um consciente e outro que permanece separado e
adormecido, o qual é denominado por inconsciente. Ao não tolerarem a confusão de si e do
mundo, além de duplicarem-se, seus organismos passaram a somatizar. As representações do
recalque incorporam a relação simbólica de que, mesmo com a duplicação, um “outro eu”
deveria nascer, porém de maneira mais explícita e concreta e, com isso, a gravidez de ambas
ocorre.
Por estar casada com o príncipe e estar apaixonada pelo conde, mesmo não
acontecendo nada real entre os dois, a princesa passa dias lamentando. Ao ocorrer o
nascimento de seu “outro eu”, de seu filho, possível por intermédio de um desejo realizado
sob o plano inconsciente, pela fantasia, ela oscila entre beijar a criança, aceitando que houve a
concretização de seu desejo, ou de recusar, desprezando o bebê. A ideia de duas crianças que
nasceram iguais, isso, pois, suas mães estavam apaixonadas pelo mesmo homem, retoma
novamente ao fenômeno da duplicação, tendo como modelo o desdobramento de dois iguais.
A princesa Angela percebe que, com o nascimento de seu “outro eu”, realizado por
conta de seu “adultério”, traz à tona a presença de um Eu que não é aceito, produzindo, assim,
173
marcações familiares que precisam ser reveladas. Após ser escondida no castelo pelo príncipe,
ela consegue fugir com os ciganos, fato pelo qual, longe dos paradigmas sociais, conseguia
com seus novos amigos, expressar as suas excentricidades, as quais faziam fronteira com a
loucura. Contudo, a princesa se cansa da vida aventureira e, do mesmo modo, por meio das
manifestações do duplo, faz com que os ciganos aparecessem por adivinhação ao corvo, que
conduziu Deodatus ao encontro com ela e com seu Eu desvendado.
O conde von Zelius, irmão do príncipe, também alterou o seu nome para Isidor, a fim
de esconder segredos e tornar-se outro, pois sabia que o príncipe havia encondido a esposa e o
filho nas ruínas do castelo. Pensou que George e Deodatus fossem a mesma pessoa e, diante
disso, tentou matar Schwendy na floresta para que, com a morte de Remigius, não houvessem
herdeiros.
Como George e Deodatus tinham desejos por serem amados, as aparições de Natalie
em diversos lugares, representava um desejo pela reciprocidade. Natalie vai para o convento,
e George, que não era gêmeo e nem irmão de Deodatus, segue rumo às montanhas.
Quando Angela fugiu com os ciganos, Amadeus, com a ajuda de sua mulher, esconde
Deodatus, e faz uma pequena marca com fogo no peito de seu pupilo para que, quando ele
viesse a reencontrar com seu destino, a cicatriz comprovasse. Em seu leito de morte, o
príncipe havia sinalizado que, quando todos de sua vida fossem expulsos, pelo seu comando,
voltariam a reunir-se.
Inicialmente, Deodatus e George foram tratados pelos demais e eles mesmos
percebiam-se como gêmeos. Como “irmãos iguais” eles percorreram por questões com as
quais contornavam a identificação, a igualdade, para, em um posterior momento, haverem as
diferenças. Mesmo se fossem realmente gêmeos, eles não poderiam ser iguais, existiria, a
partir disso, a palavra semelhança. Ser semelhante não é ser igual e também não é ser
174
diferente. Cria-se, portanto, uma situação intermediária aberta, que tanto esconde o que é
igual, como o que os diferencia.
Os desdobramentos caracterizados pela repetição do mesmo representaram, no conto,
a tentativa da imagem igual de si no outro, o que, contudo, não concretizou o almejo da
diferença, calcada através da singularidade, nas diversas personalidades que utilizaram desse
recurso. Os duplos dos duplos simbolizaram a tentativa romântica de que haja o encontro
consigo, mesmo mediante a um igual. Contudo, as constates divisões enfraqueceram ainda
mais a nascente singularidade.
A personagem que é conduzida a um possível reencontro e reconhecimento por meio
das duplicidades semelhantes e, posteriormente, diante do encontro com o seu destino, foi
Deodatus. O choque com o destino representa o descobrimento das forças inconscientes, com
a sua história pessoal secreta, mas que foi conhecida, possibilitando, a partir disso, um
conhecimento de si mesmo, pelo menos no âmbito de suas origens. Deodatus passa a ser uma
“forma particular de unidade”, fato este que o diferencia dos demais, contudo,
paradoxalmente, ele é em si mesmo cindido, sendo um “divíduo.
[...] tudo o que pertence à vida voltará ainda a repetir-se, tudo o que nela há de
indivisivelmente grande ou pequeno, tudo voltará a acontecer e voltará a verificar-se
na mesma ordem, seguindo a mesma impiedosa sucessão, esta aranha também voltará
a aparecer, este lugar entre as árvores, e este instante, e eu também! A eterna
ampulheta da vida será investida sem descanso, e tu com ela, ínfima poeira das
poeiras! (Nietzsche, 2006, p, 179).
175
O destino retoma ao retorno das situações iniciais da origem da vida de Deodatus e
tende, diante dos variados acontecimentos, a chegar de novo a esse conhecido lugar, tornando-
se um processo de reencontro e de redescobrimento. As diversas multiplicidades se
desenrolam para que pelo menos uma personagem do enredo consiga tornar-se diferente dos
demais, recuperando e reconhecendo a sua identidade, que de fato foi perdida.
176
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho evidenciou a crise social do contexto do Romantismo Alemão,
ocorrida entre o final do século XVIII e meados do século XIX. A crise do cenário histórico-
social, também foi convergida ao conflito do sujeito com o seu próprio Eu
A crítica essencial do Romantismo é caracterizada pela quantificação da vida, ou seja,
a total dominação do valor de troca acima do conjunto do tecido social. A princípio, os
conflitos de valores, de normas e de ideologias causaram o Weltschmerz característico da
época romântica. Enquanto ambição por um postulado do absoluto, o desejo dos artistas
viriam por meio do Eu, o qual seria uma identidade absolutamente singular e única,
radicalmente diferenciada de todas as demais.
O valor básico do Romantismo é a celebração da singularidade do indivíduo, que se
remete ao mundo interior a uma vida singular, que fazia com que cada “Eu” fosse uma
entidade que não poderia ser reproduzida e nem mecanizada. Inicialmente, os fenômenos do
duplo seriam fundamentados no encontro do homem consigo mesmo, isto é, ao seu Eu
completo, único e pleno. Mesmo que se tente avistar a uma “forma particular de unidade” em
cada sujeito, que possa diferenciá-lo dos demais, a “unidade particular” desmembra-se em
partes, pois o sujeito é em si e de si mesmo um ser fragmentado e cindido. Enquanto, um
“divíduo”, o sujeito é pelo menos dois: dividido entre o seu ser consciente e o seu ser
inconsciente.
Então, diante dos desdobramentos do duplo, o sujeito vislumbra-se com “um outro”,
um estrangeiro de si, pois, ao ser cindido e fragmentado, as manifestação do duplo revelam a
multiplicidades e os problemas de assimilação perante aos seus “Eus”. O duplo, no
177
Romantismo, desse modo, representa o perpétuo conflito do ser, que tem com a dialética da
existência a busca pela atividade de compreensão de unidade, atrelada aos lutos diante da
origem e da própria essência do sujeito.
Dessa forma, o duplo, no Romantismo, simboliza a busca, mesmo que idealizada e
ilusória pela unidade correspondente a cada sujeito. Contudo, paradoxalmente, os românticos,
como Hoffmann, abandonam o postulado da singularidade da identidade do sujeito e sua
consequente busca por essa identidade, o que acarreta a uma quebra de unidade do ser e, com
isso, revelam uma fragmentação própria ao Eu.
No Romantismo, os desdobramentos vêm pontuar a travessia de cada sujeito, isto é, a
ambição por uma unidade e síntese, cujas quais se eternizam por meio da constante busca por
fragmentos sociais e psíquicos. Os vislumbres, as fragmentações, os aspectos noturnos da
alma humana e a tentativa de encontro consigo mesmo, ainda que manifestado por meio dos
fenômenos dos duplos, referem-se a uma região a ser continuadamente explorada pelo espírito
investigativo.
As narrativas de Hoffmann permitem a compreensão de que o encontro com os
fragmentos do Eu e com a complexidade dos vários “Eus” existentes em um mesmo sujeito,
possibilite esbarrar-se com o conceito psicanalítico de um Eu – ou melhor, um “eu”
descentralizado e dividido, no qual há o rompimento com qualquer crença a respeito de uma
verdade absoluta quanto ao sujeito e, principalmente, quanto ao seu psiquismo.
No conto A imagem perdida, os duplos protagonistas, em um enredo baseado na
multiplicidade das duplicações, têm com os atributos dos espelhos, da ausência de reflexo e
da falta de sombra, a visualização da fragmentação de seus “eus”, grafado em letra minúscula,
com os quais, os personagens ainda não conseguem reconhecê-los como sendo o “eu” uma
entidade plural. A perda da sombra é uma referência direta a perda de identidade pessoal,
178
social e psíquica. Ela pode ser representada como a alma em si mesma ou como um elemento
semelhante.
A imagem perdida representa a perda do “eu” integral e a impossibilidade do encontro
consigo mesmo diante da ilusão de que o sujeito possa a vir tornar-se uma unidade. A imagem
sugere o enigma do encontro consigo mesmo: quem sou “Eu” (“eu”)? No entanto, Hoffmann
e Erasmo não conseguem solucionar tal mistério e o discurso sobre os acontecimentos que os
cercam, são vivenciados como se eles fossem um observador externo e neutro, sem qualquer
participação em suas próprias vidas. Através de uma viagem, ambos, Spickherr, sem imagem
refletida, e Schlemihl, sem sombra, vão rumo ao caminho do desconhecido – às manifestações
inconscientes, procurar ainda por algo que foi perdido e que esperar por um resgate.
Em O Doutor Trabacchio, as personagens, por meio do mecanismo de dois princípios
absolutos separados, os caracteres divinos e demoníacos, tentam avisar o “eu” - dividido.
Contudo, as mesmas personagens ainda conseguem visualizar o sujeito como uma entidade
que carrega em si as facetas dos dois elementos. Como duplos antagônicos, André e Inácio,
André e Trabacchio não aceitam o seu oposto e a representação de seu “outro eu” oposto.
O duplo, em O Doutor Trabacchio, simboliza o “outro de si”, a dialética da existência
que corresponde a um perpétuo conflito. Os duplos opostos visam, portanto, a uma tentativa
compreensiva por uma unidade decomposta. Contudo, é uma constante busca, pois o “eu” é
em si e de si fragmentado. Os pares formados por André e Inácio, André e Trabacchio olham
individualmente para seu respectivo “outro” como um reflexo estranho e ainda não
reconhecido.
Os desdobramentos de um mesmo têm em vista que, através da repetição, o sujeito se
ambiente com elementos conhecidos para si a fim de que, com isso, alcance a diferença
179
pautada através do redescobrimento, na constante tentativa do reencontro de si mesmo, dos
(res) significados perante a sua história pessoal, familiar e das características de alteridade.
Deodatus e George, os “gêmeos” idênticos, sustentam a ilusão de igualdade entre
representação e representado, isto é, a não divisão do sujeito. Os pares gemelares estando em
perfeita sincronia e harmonizados pelas igualdades, comprovam ser possível estar em
equilíbrio consigo mesmo, de acordo com o ideal de superação dos conflitos internos,
resultado da dinâmica de funcionamento de um aparelho psíquico submetido às forças
contraditórias e em oposição.
No entanto, a duplicidade idêntica é possibilitada em virtude da composição das
diferenças, que são moldadas pelo oposto, para a defesa da identidade, o que implica, às
vezes, no abandono ou recusa de partes que poderiam ser apropriadas, mas se assumidas pela
dupla, interferem no processo de autenticidade do próprio “eu”. Se sujeito e objeto são o “eu”,
ou seja, se os “dois” vira “um”, também o “eu” pode ser tanto o sujeito, como o objeto, ou
seja: “o virar dois” ao invés de propiciar a perfeita fundamentação do ser consigo mesmo,
instaura-se a dessemelhança, a diferença.
Portanto, o Romantismo e a temática das manifestações dos desdobramentos do “eu”
possibilitaram observar como o universo psíquico, tendo como suporte o “eu”, os “eus” e os
fenômenos do inconsciente, podem colaborar para a mágica fantasia ocorrida dentro do
próprio ser, que se estende em acontecimentos externos e reais. Com isso, além do
movimento romântico ter ensejado temas próprios à psicanálise, como a ideia de que o “eu”
possa ser instrumento, método e objeto de estudo, possibilitou as outras posteriores escolas
literárias a percepção de que em um mesmo sujeito há diferenças e múltiplas encenações
dentro dele mesmo, tornando-o imprevisível, complexo e de grande densidade psicológica: ou
seja, um Eu de personagens periféricas.
180
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