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SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Ana Rosa Gonçalves de Paula Guimarães O duplo no Romantismo: o exemplo de E. T. A. Hoffmann UBERLÂNDIA 2017 Universidade Federal de Uberlândia - Avenida Maranhão, s/nº, Bairro Jardim Umuarama - 38.408-144 - Uberlândia MG +55 34 3218-2701 [email protected] http://www.pgpsi.ufu.br

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SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA INSTITUTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

Ana Rosa Gonçalves de Paula Guimarães

O duplo no Romantismo: o exemplo de E. T. A. Hoffmann

UBERLÂNDIA

2017 Universidade Federal de Uberlândia - Avenida Maranhão, s/nº, Bairro Jardim Umuarama - 38.408-144 - Uberlândia – MG

+55 – 34 – 3218-2701 [email protected] http://www.pgpsi.ufu.br

SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA INSTITUTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

Ana Rosa Gonçalves de Paula Guimarães

O duplo no Romantismo: o exemplo de E. T. A. Hoffmann

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Psicologia – Mestrado, do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, como requisito parcial à obtenção do Título de Mestre em Psicologia.

Área de Concentração: Psicanálise e Cultura

Orientador: Dr. Caio César Souza Camargo Próchno

UBERLÂNDIA 2017

Universidade Federal de Uberlândia - Avenida Maranhão, s/nº, Bairro Jardim Umuarama - 38.408-144 - Uberlândia – MG

+55 – 34 – 3218-2701 [email protected] http://www.pgpsi.ufu.br

SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA INSTITUTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Sistema de Bibliotecas da UFU, MG, Brasil. _______________________________________________________ G963d Guimarães, Ana Rosa Gonçalves de Paula, 1985 2017 O duplo no romantismo: o exemplo de E.T.A.

Hoffmann / Ana Rosa Gonçalves de Paula Guimarães. - 2017. 187 p.

Orientador: Caio César Camargo Souza Próchno. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de

Uberlândia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Inclui bibliografia.

1. Psicologia - Teses. 2. Romantismo - Alemanha -

Teses. 3. Inconsciente (Psicologia) - Teses. 4. Sujeito (Filosofia) - Aspectos psicológicos - Teses. I. Próchno, Caio César Camargo Souza. II. Universidade Federal de Uberlândia. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. III. Título.

_____________________________________________CDU: 159.9

SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA INSTITUTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

Ana Rosa Gonçalves de Paula Guimarães

O duplo no Romantismo: o exemplo de E. T. A. Hoffmann

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia – Mestrado, do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, como requisito parcial à obtenção do Título de Mestre em Psicologia.

Área de Concentração: Psicanálise e Cultura

Orientador: Dr. Caio César Souza Camargo Próchno

Banca Examinadora

Uberlândia, 01 de Junho de 2017.

Prof. Dr. Caio César Souza Camargo Próchno (Orientador)

Universidade Federal de Uberlândia – Uberlândia, MG

Prof. Dr. Carlos Augusto de Melo (Examinador)

Universidade Federal de Uberlândia – Uberlândia, MG

Prof. Dr. Pedro Heliodoro de Moraes Branco Tavares (Examinador)

Universidade de São Paulo – São Paulo, SP

Prof. Dr. Luiz Carlos da Silva Avelino (Examinador Suplente)

Universidade Federal de Uberlândia – Uberlândia, MG

Universidade Federal de Uberlândia - Avenida Maranhão, s/nº, Bairro Jardim Umuarama - 38.408-144 - Uberlândia – MG

+55 – 34 – 3218-2701 [email protected] http://www.pgpsi.ufu.br

SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA INSTITUTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

Prof. Dr. Sérgio Kodako (Examinador Suplente)

Universidade de São Paulo – Ribeirão Preto - SP

UBERLÂNDIA

2017

Universidade Federal de Uberlândia - Avenida Maranhão, s/nº, Bairro Jardim Umuarama - 38.408-144 - Uberlândia – MG

+55 – 34 – 3218-2701 [email protected] http://www.pgpsi.ufu.br

AGRADECIMENTOS

À minha família: minha mãe, Rosângela, meu pai, Darci, minha avó, Maria Rosa e

minha tia, Rosita por todo o apoio emocional e financeiro.

Ao Prof. Dr. Caio César Souza Camargo Próchno por ter me aceito como orientanda e

por todos os ensinamentos durante o trajeto da pesquisa.

Aos Profs. Dr. Carlos Augusto de Melo e Dr. Luiz Carlos da Silva Avelino pelas

valiosas contribuições no exame de qualificação e por aceitarem o convite para participarem

da banca de defesa.

Aos Profs. Dr. Pedro Heliodoro de Moraes Branco Tavares e Dr. Sérgio Kodako

agradeço pela receptividade e prontidão com que se dispuseram à leitura deste texto.

Aos meus amigos e professores de Franca, agradeço por todo o incentivo, carinho e

generosidade de sempre.

Aos meus novos amigos, colegas e professores de Uberlândia.

Aos meus supervisores, amigos e pacientes da ONG GHIV.

Muito obrigada!

Em todas as criaturas com quem deparamos, percebemos em primeiro lugar que elas guardam uma relação consigo mesmas. Soa estranho, naturalmente, exprimir algo que é autoevidente; porém, só podemos progredir com as outras pessoas na busca do desconhecido depois de termos compreendido de maneira cabal aquilo que sozinho já conhecemos (Goethe, 2014, p. 54).

O que é o Romantismo? Qualquer arte ou filosofia podem ser consideradas como remédios da vida, auxiliares do crescimento ou bálsamos dos combates que postulam sempre sofrimento e sofredores. Porém, estes últimos pertencem a duas espécies: para uns o sofrimento provém de uma superabundância de vida; reclamam uma arte dionisíaca, e querem, concreta ou abstrata, uma visão trágica da vida; os outros sofrem, ao contrário, de um empobrecimento dessa vida, pedem à arte e ao conhecimento o repouso, o silêncio, o mar calmo, o esquecimento de si ou, no outro pólo, a embriaguez, os frenesis, o abalo e a loucura. À dupla necessidade destes últimos, responde qualquer Romantismo nas artes e no conhecimento (Nietzsche 2006, p. 210).

RESUMO

O duplo no Romantismo: o exemplo de E.T. A. Hoffmann Este trabalho tem por objetivo apontar causas e modos pelos quais o fenômeno do duplo se torna um dos símbolosdo Romantismo Alemão. Para tanto, o contexto histórico-social entre o final do século XVIII e meados do século XIX foi revisitado a fim de discorrer sobre as particularidades do panorama em que o sujeito estava permeado. Assim, foi possível notar que a eclosão da crise social também repercutiu para a existência conflituosa do sujeito com os seus “eus”, isto é, com as suas fragmentações e com as suas divisões. As principais características desse movimento artístico permitiram compreender o que buscava e sentia o homem romântico. Sendo assim, algumas das interfaces realizadas do Romantismo com a psicanálise visaram considerar os antagonismos psíquicos, bem como a apreensão das manifestações do lado noturno da alma humana, os aspectos do inconsciente e da fragmentação do sujeito, tornando-o um “divíduo”: uma parte de seu ser é consciente e a outra parte, inconsciente, preocupações estas que anteciparam a psicanálise. As manifestações do duplo na literatura do Romantismo Alemão tiveram como destaque o escritor E. T. A. Hoffmann e, por meio da leitura interpretativa de seus contos, A imagem perdida, O Doutor Trabacchio e Os Duplos foram percorridas as naturezas para as manifestações de tal fenômeno, que oscilou tanto para o não reconhecimento de si, como para a necessidade utópica de reencontro do sujeito romântico consigo mesmo. As manifestações do duplo evidenciam, portanto, a necessidade romântica de percebê-lo como pertinente ao “Eu real e verdadeiro”, enquanto ambição pelo princípio do absoluto. Contudo, Hoffmann desenvolve em sua ficção que o sujeito é um ser em si e de si mesmo fragmentado – um “divíduo”, que faz de sua existência o perpétuo conflito do ser, que almeja pela busca de compreensão de uma unidade atrelada perante aos lutos referentes quanto a sua origem e quanto a sua essência. A partir disso, existe a possibilidade do encontro com o duplo, como o “outro de si” ou como os “outros eus”, a fim de haver a permanente construção do sujeito e a eterna busca por seus fragmentos sociais e psíquicos. Mesmo com a possibilidade de observação de uma “forma particular de unidade”, esta se divide em si mesma. Simbolicamente, a vida pode ser uma criação literária, que oferece ao homem, mesmo ele sendo um “divíduo”, a oportunidade de que ele seja um escritor de si.

Palavras-chave: romantismo; duplo; Hoffmann; sujeito; inconsciente.

ABSTRACT

The double in Romanticism: the example of E.T. A. Hoffmann This study aims to point out causes and ways in which the phenomenon of double becomes one of the symbols of German Romanticism. In order to do so, the historical-social context between the end of the eighteenth century and the mid-nineteenth century was revisited in order to discuss the particularities of the panorama in which the subject was permeated, and it is possible to notice that the outbreak of social crisis also reverberated for the conflicting existence of the subject with his "selves", that is, with its fragmentations and divisions. The main characteristics of this artistic movement allowed to understand what the romantic man sought and felt. Thus, some of the interfaces of Romanticism with psychoanalysis aimed to consider the psychic antagonisms as well as the apprehension of the manifestations of the nocturnal side of the human soul, the aspects of the unconscious and the fragmentation of the subject, making it a "divided": a part of his being is conscious and the other part, conscious, preoccupations that anticipated psychoanalysis. The manifestations of the double in the literature of the German Romanticism had as a highlight the writer E. T. A. Hoffmann. And through the interpretative reading of his tales: The lost image, Doctor Trabacchio and The Doubles, have been traversed the natures for the manifestations of such phenomenon, which oscillated both for the non-recognition of self, and for the utopian necessity of the romantic subject's reunion with himself. The manifestations of the double thus evidence the romantic need to perceive it as pertinent to the "real and true self", as ambition for the principle of the absolute. Hoffmann, however, develops in his fiction that the subject is a self in itself and fragmented in itself - "divided" which makes of its existence the perpetual conflict of being, which seeks the understanding of a unity tied to the concerning its origin and its essence. From this, there is the possibility of the encounter with the double, as the "other self" or as the "other selves", in order to have the permanent construction of the subject and the eternal search for its social and psychic fragments. Even with the possibility of observing a "particular form of unity," it divides itself. Symbolically, life can be a literary creation, which offers man, even though he is "divided" the opportunity for him to be a writer of himself.

Key-words: romanticism; double; Hoffmann; subject; unconscious.

SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS ............................................................................................................. 5

RESUMO .................................................................................................................................. 7

ABSTRACT .............................................................................................................................. 8

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 10

1.1 A Psicanálise e a Literatura: algumas questões teóricas e metodológicas ......................... 12

2 O ROMANTISMO ALEMÃO ........................................................................................... 18

2.1 O Contexto Histórico-social ............................................................................................... 18

2.2 As Principais Características .............................................................................................. 31

2.3 O Romantismo e a Psicanálise: algumas interfaces ........................................................... 44

3 O FENÔMENO DO DUPLO ............................................................................................. 59

3.1 O Duplo .............................................................................................................................. 59

3.2 Ernst Theodor Amadeus Hoffmann ................................................................................... 95

4 A LEITURA INTERPRETATIVA DOS CONTOS ...................................................... 112

4.1 A Imagem Perdida ........................................................................................................... 112

4.2 O Doutor Trabacchio ....................................................................................................... 135

4.3 Os Duplos ......................................................................................................................... 155

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 176

6 REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 180

10

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho propõe percorrer as manifestações do fenômeno do duplo enquanto

marca pertinente ao Romantismo, ocorrido entre o final do século XVIII e meados do século

XIX, mais precisamente o cenário desse movimento artístico na Alemanha. O destaque aqui

conferido ao escritor E. T. A. Hoffmann deve-se ao fato de sua grandiosidade enquanto

romancista e destacado escritor da literatura romântica. Recorrendo constantemente aos

desdobramentos do Eu em suas obras, revela a necessidade de que o angustiado homem

romântico, cindido e fragmentado, por meio dos mecanismos da duplicidade pudesse

encontrar consigo mesmo.

O sujeito, portanto, inserido nesse contexto histórico representa o saber enquanto uma

entidade transitória e em crise. A euforia na crença de um progresso, mediante o ecoar de um

novo mundo, prometido pelos avanços tecnológicos e pela Revolução Industrial e pela

Francesa, transforma-se em frustração e desencanto, visto os paradigmas sociais ainda

estarem presos à lógica do dinheiro e da matéria, tornando a vida quantificada, isto é, a

dominação do valor de troca foi sobreposto ao conjunto do tecido social. Dessa forma, a crise

embutida ao momento histórico também se expande a uma tensão convergida dentro do

próprio Eu.

O Romantismo, em sua práxis, pode ser considerado como um movimento que buscou

a unidade perdida. Por meio dos choques entre os opostos, do rebaixamento ao universo das

emoções e do olhar às camadas inconscientes da mente, ansiava por uma síntese, a qual

originou o direcionamento rumo à subjetividade e ao cultivo da interioridade, tendo por

desenrolar a necessidade do encontro do homem romântico com o seu Eu.

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Contudo, diante de um contexto desolador e dilacerador das imagens fragmentadas e

multiplicadas do Eu, o sujeito romântico, ao esconder-se de si, cede território às duplicações.

Portanto, diante do “espírito do tempo” e da afirmação de sua própria subjetividade, o sujeito

vislumbra-se com “um outro”, um estrangeiro de si. O duplo enquanto parte do Eu, ou como

composição dos vários “Eus” embutidos em um mesmo ser, aspira a uma possível

integralização, esta que, no entanto, tem seus caracteres ilusórios e idealizados. No

Romantismo, a princípio, busca-se por uma unidade perdida.

Entretanto, a unidade, a totalidade e o centro ambicionados pelo encontro com o “real”

e “verdadeiro” Eu são impossíveis, sendo que este é um caminho constante e eterno: a

superação dos opostos é a dialética da existência. Em Hoffmann, o Eu é desmembrado em

vários “Eus”, ou seja, o Eu sofre fragmentações e divisões. O sujeito é em si e de si um

“divíduo”, isto é, ele é composto por seu ser consciente, como também pelo seu ser

inconsciente. A possibilidade encontrada tendo em vista as contribuições de Hoffmann, para a

literatura romântica e, como temas ensejados ao posterior desenvolvimento da psicanálise são

as de que: no Romantismo, existe o almejo por uma “forma particular de unidade”, que pode

vir a diferenciar cada ser dos demais, contudo, até mesmo a “unidade particular” desmembra-

se e fragmenta-se, porque o sujeito é em si cindido. A observância de que há vários “Eus”

contidos no mesmo sujeito foram contribuições já apontadas e antecipadas pela ficção de

Hoffmann.

A particularidade notável ao duplo corresponde ao fato de que o único duplicado não é

apenas o objeto ou acontecimento, mas sim o próprio Eu. O fenômeno do duplo no

Romantismo Alemão, especialmente em Hoffmann, representa a dependência a símbolos

paradoxais e alternativos do cenário fantástico, contrapondo as descobertas científicas e os

racionalismos propostos pelo Iluminismo precedente. Sendo assim, o duplo assume seu

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próprio conjunto de leis únicas, que intui expressar um Eu dividido, que se revela de forma

enigmática nos contos: A imagem perdida, O Doutor Trabacchio e Os Duplos.

Em suma, os objetivos dessa dissertação buscam, portanto, problematizar por quais

motivos o fenômeno do duplo ocorre, assim como a tentativa do homem romântico de

encontrar a sua singularidade, levantando como hipótese que a crise do cenário romântico é

também a crise do Eu. A partir disso, o trabalho também conduz à observância às formas com

que o Romantismo pode antecipar o conhecimento psicanalítico fundado por Freud no que diz

respeito às atividades mentais inconscientes, à importância da experiência emocional, à

singularidade subjetiva, aos dualismos da realidade psíquica e ao método de trabalho

psicanalítico, que busca o movimento de tolerância dos paradoxos.

1.1 A Psicanálise e a Literatura: algumas questões teóricas e metodológicas

O trabalho presente fundamenta-se em uma pesquisa qualitativa de caráter de

referência bibliográfica acerca do tema – o Romantismo e o duplo, sobretudo, exemplificados

nos três contos do escritor E. T. A. Hoffmann: A imagem perdida, O Doutor Trabacchio e Os

Duplos. Contempla-se ainda o método psicanalítico de pesquisa, o qual interpreta,

primeiramente, as impressões advindas da leitura dos textos referidos, para, em um segundo

plano, elaborar a escrita onde as sensações acerca dos contos tomarão marcas e efeito de

sentido. Para tanto, a investigação prioriza a intertextualidade, relacionando os enigmas ou

questões advindas com a literatura e a psicanálise, buscando significar as passagens

percorridas e o conhecimento da construção e constituição do fenômeno do duplo.

13

A clínica psicanalítica é em si mesma uma modalidade essencial de pesquisa, assim

como os estudos dos fenômenos culturais. Hermann (1997) destaca a capacidade de o

conhecimento psicanalítico produzir saber sobre todo e qualquer fenômeno humano, em que,

as possibilidades interpretativas são fundamentais para sua práxis, independentemente do

lugar onde se efetiva. O psicanalista ainda propõe o termo Clínica Extensa para esclarecer a

aplicação do método psicanalítico em todos os contextos humanos, abarcando, com isso,

também, as correlações entre a literatura e as artes em geral, pertinentes às ciências e,

fundamentalmente, à própria psicanálise. Sendo assim, a interdisciplinaridade manifesta-se

em valor.

O modelo interpretativo não busca em si a construção de uma verdade, mas um

método que interroga todo o saber sobre o enunciado, implicando, com isso, de que um

conhecimento de si seja um eterno “requestionamento”. Por consequência, há o saber que

interroga – a teoria e o saber da interrogação – o método, e, portanto, a modernidade que

inaugura o desdobramento da consciência sobre si mesma, faz de si mesma, objeto de

conhecimento (Herrmann, 1997; Frayze-Perreira, 2002).

Portanto, primeiramente, far-se-á a contextualização histórico-social, a qual levará ao

levantamento das principais características do movimento romântico alemão, com o intuito de

explicitar as manifestações do fenômeno do duplo, sobretudo em Hoffmann. Nesse caso, para

se realizar o escopo teórico-literário serão utilizados os seguintes autores: Carpeaux (1985;

2012; 2013), Safranski (2010), Lukács (2015), entre outros, a fim de que se compreenda a

natureza de tal fenômeno no Romantismo. Serão percorridas algumas interfaces entre o

Romantismo e a psicanálise, a fim de observar os dualismos pertinentes à natureza humana e

ao conceito de indivíduo, no qual, o Romantismo antecipou para o conhecimento psicanalítico

e ensejou para as futuras correntes literárias.

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As teorias psicanalíticas vêm, por sua vez, fornecer ferramentas de apoio tanto para se

pensar os objetos em questão, quanto para o estudo de suas relações. Dessa forma, durante o

trabalho, as contribuições psicanalíticas formuladas por Green (1994); a psicanálise fundada

por Freud (1996; 2010); o desenvolvimento da interface entre a psicanálise e a literatura

desenvolvida por Kon (1996; 2003; 2011); a psicanálise referente quanto ao estudo do duplo

de Rank (2013), entre outros serão essenciais à elucidação da compreensão do fenômeno do

duplo.

De acordo com Kon (2013), a compreensão do pensamento freudiano e o modelo de

homem condizente com uma teoria da alma humana mostram que a psicanálise possui

ressonâncias e confluências próprias à literatura fantástica do final do século XIX. A literatura

se firma em um lugar de transição, onde campos duais (como por exemplo, a realidade e a

fantasia, o real e o irreal) eclodem à sobreposição de noções inconciliáveis, devido à busca

pelo mistério do inexplicável e pela presença da estranheza, que conduz a uma necessidade

reflexiva e/ou explicativa acerca destes mistérios, milagres ou enigmas. Nesse sentido, o

“homem-psicanalítico” seria dotado de uma interioridade, que também, abrigaria a

exterioridade do maravilhoso; teria uma subjetividade valorizada e particularizada. Assim, o

inconsciente freudiano é um universo psíquico que acolhe o mistério, o irreal, a

atemporalidade e os enigmas, os quais podem ser decifráveis.

A chamada grande literatura é de importância fundamental também para a psicanálise,

porque a narração ficcional de fatos novos integra acontecimentos reais ou verossímeis, nos

quais se misturam tempo e espaço, despertando no leitor horizontes inéditos e o envolvendo

em situações emocionais novas ou recordadas. Dessa forma, ambas as práticas atrelam-se,

fazendo despertar no outro a reflexão, a identificação, o estranhamento, o que revela a

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condição humana e as originais possibilidades de posicionamento ou pensamento frente ao

mundo e às circunstâncias.

As práticas em questão, tanto a literária quanto a psicanalítica, portanto, resultam do

mesmo homem preocupado com seu passado, a tradição, a cultura e o futuro. Todavia, a

literatura, por ser ligada à criação, abre horizontes ilimitados de sentido, que ultrapassam o

próprio autor e continua sendo sempre uma fonte inesgotável de conhecimento,

autoconhecimento e reflexão. É, portanto, marcada por sua atemporalidade.

Como destaca Kon (2011), a psicanálise é uma arte interpretativa, que traz, do poder

fertilizador das manifestações artísticas, o fazer engenhoso e inventivo, ao assumir o objetivo

de evidenciar e repelir uma perspectiva cientificista e tecnicista, as quais ainda saturam o

campo psicanalítico e que propõe para si uma atividade revestida de uma suposta

neutralidade, que apenas desvelaria as experiências traumáticas, as fantasias e os desejos

submergidos por meio do recalque. Nazar (2009) observa que a articulação da psicanálise e da

arte através do recorte com a literatura encontra-se justamente na linguagem inconsciente,

situada a partir da descoberta freudiana de que o artista escreve com seu inconsciente e

antecipa o analista, visto que, a palavra no contexto psicanalítico, assim como no literário

proporciona o encantamento, a ação mágica, o poder metafórico, nomeia e, estes são

“espaços” onde a linguagem e a vida constituem-se como uma unidade.

A linguagem, portanto, se apresenta com toda a sua potência criadora de uma nova

subjetividade: a linguagem que é palavra poética e não apenas condução de comunicação de

ideias de transmissão de um conhecimento já dado. Tal palavra não é mais descritiva e

acessória. Ela é literatura, o espaço de criação de sentidos e de realidades. Para Kon (2011), é

vinculada ao psicanalista, assim como ao escritor, a criação, o processo de inventividade e de

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desvelamento, sendo que, a linguagem poética, quando se oferece plena, pode reescrever a

experiência de cada história particular.

No entanto, Rosenfeld (1996) adverte ao uso indiscriminado da “psicologia profunda”

nas obras de arte, isto é, discuti-las como uma espécie de dados clínicos, a fim de investigar as

anomalias psíquicas de seus autores. Aponta também, que, alguns psicanalistas reduzem

problemas gerais a casos particulares, contendo certas psicopatologias e, a partir disso, negam

as respectivas obras, a universalidade configurada em Aristóteles, sobre a Arte Poética.

Contudo, em Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen, Freud (1907 [1906]/1996)

salienta a importância dos escritores ao conhecimento psicanalítico, em especial, aos estudos

fundamentalmente do inconsciente, que ultrapassam os elementos de análise da psiquiatria,

pois, se expande a uma visão de que a arte é uma fonte para a psicanálise, visto que antecipa e

aponta situações da condição humana. Assim como, por exemplo, em um texto literário, em

que a linguagem é plurissignificativa, determinados fatos buscados pela compreensão

psicanalítica podem ter muitas possibilidades interpretativas, porque a existência e o trabalho

psicanalítico estão em contínuo devir:

E os escritores criativos são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser

levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o

céu e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não deixou sonhar. Estão bem

adiante de nós, gente comum, no conhecimento da mente, já que se nutrem em fontes

que ainda não tornamos acessíveis à ciência (Freud, 1907 [1906]/1996, p. 20).

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Desse modo, Kon (2011) apresenta que muitos autores que exploram a região de

fronteira entre a psicanálise e o fazer poéticos e agruparam, primordialmente, sob duas

orientações gerais. De um lado, aqueles que utilizam o pensamento psicanalítico como

bússola teórica em sua tentativa de elucidar um suposto sentido oculto no impulso criador do

artista e/ou na obra por ele criada; e, de outro, há autores que procuram trazer para o interior

do pensamento e do fazer psicanalíticos a potência da fantasia criadora de realidades, força

intrínseca à criação artística.

A arte, ou nesse caso mais especificamente a literatura, assume na psicanálise o papel

de solo a ser explorado para que se legitime o alcance universal das hipóteses clínicas,

permitindo que se ultrapasse o interesse psicopatológico e terapêutico das formulações

freudianas para a criação de uma verdadeira teoria sobre o homem.

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2 O ROMANTISMO ALEMÃO

2.1 O Contexto Histórico-social

[...] A Justiça! O que os homens todos amam

E reclamam, desejam, não dispensam,

A ele toca assegurá-lo ao povo.

Mas ai!, que vale à mente humana engenho,

Bondade ao coração, à mão presteza,

Quando furor febril consome o Estado

E de um só mal inúmeros se geram?

(Chanceler – Goethe, 2013, p. 211).

Quem é que neste mundo não tem faltas?

Um quer isto, outro aquilo; nós... dinheiro.

(Mefistófeles – Goethe, 2013, p. 214).

A partir do tempo e espaço que compõem determinada época, pode-se tentar entender

as posturas e comportamentos de seus indivíduos. Dessa forma, o movimento romântico tem

por alicerces a Revolução Francesa e a Industrial, bem como os seus ideais propostos. O

sujeito, neste período, encontra-se submerso em novos inventos e tecnologias, a partir de

padrões científicos e racionais estabelecidos. Entretanto, suas emoções e inconformismo

sufocados se tornam o cerne de suas mobilizações e tentativas de escape. A rápida expansão

das concepções científicas, por outro lado, possibilitou novos rumos aos diversos níveis de

investigação.

O Romantismo, como ressalta Guinsburg (1985), é antecedido pelos Séculos das

Luzes, o qual abandonou a visão teocêntrica e teológica judaico-cristã, que concebia a

19

História como um ciclo de revelação do poder divino através de seus atos de vontade, cuja

primeira manifestação seria a Gênese, ponto de partida para uma sucessão de intervenções

providenciais e miraculosas ao nível do humano e terreno, cujo termo seria o Juízo Final e a

instalação do reino beatífico dos justos e dos santos.

Carpeaux (1985) ressalta que o Romantismo foi o movimento que nasceu na

Alemanha por volta de 1800 e logo conquistou a Inglaterra e, a partir de 1820, a França e, por

conseguinte, instalou-se entre todas as literaturas europeias e americanas, acabando-se nas

tempestades das revoluções de 1848.

O acontecimento permeado pela Revolução Francesa despertou em toda a Europa e no

continente americano uma profunda emoção, exprimindo-se em uma literatura de tipo

emocional, que deu a si mesma o nome de “Romantismo” (Carpeaux, 2012). A história desse

movimento artístico, que além da literatura, abarca a pintura, a música e a arquitetura, pode

ser relacionado em termos de histórias das revoluções: foi produzido pela Revolução de 1789

e 1793 e foi desviado pelo acontecimento contrarrevolucionário da queda de Napoleão, em

1815. Reencontrou, porém, o impulso pela Revolução de 1830 e se encerrou com a Revolução

de 1848. Apenas durante as Guerras Napoleônicas que as classes dominantes conseguiram

atrair os românticos para o lado da reação.

A França foi a grande codificadora do Romantismo, pelo fato de que, no final do

século XVIII, o país apresentava um panorama propenso à explosão, pois, de um lado, havia

uma sociedade fechada, na qual a mobilidade social praticamente inexistia, e, de outro, as

massas estavam entregues à miséria e à opressão. As classes dominantes, formadas por uma

aliança entre a nobreza e o clero, articulavam mecanismos de comando sobre o resto da

sociedade: ordem terrena e ordem espiritual se ligaram, a fim de manter intactos seus

privilégios. No entanto, essa aliança foi desgastada, uma vez que passou a perder a capacidade

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de controlar a insatisfação popular, já que a discriminação política, o uso da força e a

sobretaxação dos impostos ajudaram a precipitar os indícios de revolta que culminou com a

Revolução de 1789. O desespero e a miséria das classes populares, o descontentamento

político das classes médias, o desejo da burguesia de traduzir o seu predomínio econômico em

superioridade política fizeram com que esses grupos se unissem e programassem a revolta.

Em 14 de julho, cai a Bastilha, símbolo do velho regime feudal e expressão máxima do poder

monárquico.

Esse quadro referencial se conecta à questão romântica, de acordo com Citelli (1993),

pois o ideário iluminista, base da doutrina ideológica da Revolução Francesa, insistia na

materialização dos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade. Ou seja, desse modo,

lutava-se por uma sociedade mais harmônica e que respeitasse os direitos individuais. Fato

esse que, nos primeiros atos da Assembleia Nacional, incitou a forte pressão dos camponeses

insurgentes que exigiam a distribuição de terras, ameaçando, portanto, o conceito de

propriedade.

A tendência inicial artística do Romantismo foi a de saudar tais ideias e as propagar,

colocando-se em uma espécie de porta-voz. O ecoar de um novo mundo, os originais valores,

a possibilidade de se concretizar a justiça social, a possibilidade de uma sociedade mais justa

e igualitária e o rompimento das barreiras decorrentes ao modo de produção feudal

contaminaram o universo dos românticos.

O Novo Estado, no lugar de exercer uma função repressora e discriminatória, poderia

agora, como almejava Rousseau, propiciar felicidade e garantir as liberdades individuais.

Sendo assim, os românticos são levados a identificar o Novo Estado à nação. Diante disso,

nos países em que se culminavam as lutas pela libertação nacional, eram relacionados quase

que mecanicamente ao Estado Novo, responsável para com as terras, para com a nação e para

21

com seus cidadãos. O país recém-liberto poderia vir a funcionar, dentro desse raciocínio,

como um agradável local para uma nova forma de satisfazer a vida. Contudo, tais promessas

acabaram em pura idealização.

A ideia de revolução, a absorção de pontos de vista recolhidos junto ao Iluminismo e

ao Liberalismo, a crença na possibilidade de alcançar a felicidade humana, motivaram toda

uma geração romântica, situando-a na rota das grandes transformações sociais e históricas que

poderiam redefinir positivamente os caminhos da humanidade. Essa visão foi, no entanto,

logo embaraçada pela própria dinâmica que haveria de marcar a ascensão da burguesia. As

novas formas de dominação e a aplicação dos princípios de liberdade, igualdade e

fraternidade, segundo os interesses da nova classe, formaram um movimento oscilante dentro

do Romantismo. A crença no progresso tendeu a se transformar na frustração do presente,

pois o mundo novo, tão prometido pela revolução, recheou-se de negatividade, dor e

desencanto. Também, o sentimento de descrença pode ter vinculações com a própria

consciência da inexorabilidade das transformações urbanas, como advento de um tempo que

ultrapassou a tradição agrária e com a vitória de um mundo inflexivelmente racionalista e

preso à lógica da matéria e do dinheiro.

A Revolução Francesa não aboliu a desigualdade entre os homens. A liberdade sem a

igualdade foi considerada insatisfatória, o que se propunha, já naquela ocasião, que se

reduzisse a distância entre pobres e ricos, ou entre os possuidores e os que nada tinham a

perder. Na França e na Alemanha, o espírito romântico foi marcado por uma profunda

concepção e tendência ao coletivismo, porque a vida seria contornada por uma espécie de

“aliança filosofante”, onde, escrevendo, criticando e discutindo as ações, encontrar-se-ia o

significado essencial da mesma vida, do amor e da amizade. O trabalho em conjunto na

22

comunidade, mesmo sendo um impulso simbólico, poderia ser significativo como o reverso

do individualismo e uma compensação para solidão e para a ausência de raízes.

A peculiaridade essencial do anticapitalismo romântico é uma crítica à moderna

civilização industrial burguesa, que inclui os processos de produção e de trabalho em nome de

certos valores sociais e culturais pré-capitalistas. De acordo com Löwy (1990), esse passado

pré-capitalista, na visão romântica, encontra-se combinado em uma série de virtudes, sendo

elas reais ou imaginárias, como, por exemplo, a predominância dos valores qualitativos

(valores de uso ou valores éticos, estéticos e religiosos), a comunidade orgânica entre os

indivíduos, ou ainda, o papel essencial das ligações efetivas e dos sentimentos. Esse passado

entra em contraposição com a civilização capitalista moderna, fundada na quantidade e no

preço; na mercadoria, no cálculo racional e frio do lucro, e no egoísmo dos indivíduos.

Quando essa nostalgia se torna o eixo central que estrutura o conjunto da Weltanschauung

[visão de mundo], encontra-se com o pensamento romântico stricto sensu, como, por

exemplo, na Alemanha, no início do século XIX. Ao se tratar de um elemento dentre outros,

em um conjunto político-cultural mais complexo, poder-se-ia falar de uma dimensão

romântica.

A característica central da civilização industrial burguesa, a qual o Romantismo critica

não é a exploração dos trabalhadores ou a desigualdade social de fato, mas concretiza-se pela

quantificação da vida, ou seja, a total dominação do valor de troca acima do conjunto do

tecido social. Todas as outras características negativas da sociedade moderna são

intuitivamente sentidas pela maior parte dos anticapitalistas românticos, como que fluindo da

nascente corrupção, como por exemplo, na religião, ao acúmulo monetário, ao declínio de

todos os valores qualitativos, a dissolução de todos os vínculos humanos qualitativos, a morte

23

da imaginação e do romance, a uniformização monótona da vida e a relação puramente

utilitária.

Na verdade, a recusa à adequação na sociedade burguesa pragmática está toda calcada

na tradição romântica antiliberal e antidisciplinar. É nitidamente romântica a aspiração a uma

forma de identidade absolutamente singular e única, radicalmente diferenciada de todas as

demais. No lugar de impulsos, há o tédio mortal e a impotência; no espaço da espontaneidade,

existe a estilização minuciosa; no lugar da restauração, há a resignação a um estado de

independência absoluto (Figueiredo, 2002).

Para Safranski, (2010), no diálogo com a vida dividida pelo trabalho, o espírito

criativo atrofia-se e, essa experiência passa a subsidiar a fantasia romântica da libertação,

onde os artistas tendem ao retrocesso e à fragmentação da vida: primeiro em si mesmos e no

círculo de amigos, depois, então, por exemplo, na vida em sociedade.

Foi Jean-Jacques Rousseau, considerado como o grande precursor do Romantismo, o

qual, no trecho dos seus Devaneios de um caminhante solitário, de 1777, introduziu, na língua

francesa, o vocábulo romântico, que até então significava “como nos antigos romances” e se

aproximava de tudo aquilo que poderia ser contornado como pitoresco, romanesco e fabuloso.

No entanto, os sentidos semânticos do termo romântico eram vistos também como

desordenados, confusos e opostos à disciplina, à regra, à classificação, enfim, oposto ao rigor

do clássico (Saliba, 1991).

Etimologicamente, o termo “romântico”, de fato, contém referência ao passado, à

literatura de língua romana da Idade Média, porque, estender o conceito de nostalgia

romântica é retomar ao Romantismo Alemão “clássico”, ao “paraíso perdido”, que foi a

sociedade feudal. Todavia, a referência à época medieval é ambígua na medida em que esta

sociedade continha muitas estruturas sociais diferentes: de um lado, as instituições

24

hierárquicas, como a cavalaria, as ordens religiosas, e, por outro lado, apresentava o

remanescente da comunidade rural gentílica (a Marche Germânica), igualitária e coletivista.

O tempo presente percebido como incerto e o sujeito margeado por instituições

opressoras, desencadeou em um retorno ao passado - ao mundo medieval, que tinha suas

contradições sociais, econômicas e políticas, mas que estaria repleto de lendas e mistérios, nos

quais poderia ser o ponto de encontro e refúgio dos artistas, haja vista que o adjetivo

romântico é derivado do substantivo romaunt (roman ou romant), o qual designa romances

medievais e de cavalaria. Entretanto, segundo Löwy (1990), a busca referencial a um passado

real ou imaginário não significou necessariamente a orientação reacionária ou regressiva:

poderia ser reacionária tanto quanto conservadora.

O Romantismo, como destaca Rosenfeld (1993), teve seus primórdios nos últimos

anos do século XVIII, o qual assimilou tendências do Pré-romantismo, onde é ao mesmo

tempo tributário do Classicismo e do grande arrebatamento filosófico idealista. Conscientes

das antinomias da moderna civilização industrial, os românticos sentem-se fascinados pelos

sonhos clássicos da unidade e reconciliação. Tal anseio se manifesta na Filosofia da

Identidade (Schelling), em um idealismo que se revela na Natureza, constituída como a

própria substância espiritual do homem, como uma força misteriosa, cujo efeito de contato

com a mesma seria concentrado na identificação com o divino, pela busca do

autoconhecimento e pela aspiração e inspiração ao infinito. O homem teria vocação ao

sublime e teria características divinas, por constituição; logo, a identificação com as forças da

Natureza revelaria uma das formas de retorno à unidade primitiva.

Segundo os apontamentos de Lukács (2015), na Alemanha, os jovens começaram a se

reunir com o objetivo de criar, a partir do caos, uma nova cultura, sendo ela, universal e

harmoniosa. Visto que o progresso externo era algo inconcebível, o entusiasmo voltava-se

25

para dentro e, com isso, o “país dos poetas e dos pensadores” superaria todos os demais em

profundidade, sutileza e força espiritual.

Com isso, Safranski (2010) aponta que a literatura alemã torna-se inteiramente

burguesa, mas, o seu protesto contra os abusos do despotismo e o entusiasmo exaltado à

liberdade eram autênticos quanto sua atitude antirracionalista. O espírito do movimento Sturm

und Drang [Tempestade e ímpeto] deu o princípio e lucidez ao genial, que estava adormecido.

O Romantismo é uma época áurea do espírito alemão, com grande irradiação

para outras culturas nacionais. Acabou enquanto época, mas o romântico permaneceu

com outra postura. Este quase sempre está em jogo quando um mal-estar diante do real

e do usual busca por saídas, mudanças e possibilidades de transcendência. O

romântico é fantástico, criativo, metafísico, imaginário, tentador, transbordante,

profundo. Não tem obrigação de consenso, não precisa ser útil à sociedade, sim, nem

mesmo à vida. Pode estar apaixonado pela morte. O romântico busca a intensidade até

o sofrimento e a tragicidade. [...] O romântico ama os extremos; uma política sensata,

por sua vez, ama o compromisso (Safranski, 2010, p. 355).

O Sturm und Drang foi um movimento literário romântico alemão - o Pré-romantismo

situado no período entre 1760 a 1780. Entre seus representantes, destacam-se Herder,

Hamann, Goethe e Schiller (Safranski, 2010). Os franceses, de acordo com as pesquisas de

Carpeaux (1985), consideravam Goethe como romântico, entretanto, para os alemães, Goethe

é o maior classicista. As duas partes apresentam igualmente argumentos para defender suas

respectivas teses: o subjetivismo de Goethe é romântico, mas sua forma de expressão é

indubitavelmente clássica.

26

Contudo, os componentes do Romantismo Alemão do final do século XVIII e começo

do século XIX propuseram diferentes círculos: houve o círculo de Berlim, com E. T. A.

Hoffmann e Ludwig Tieck; o círculo de Heidelberg, com Achim von Amin e Clemens

Brentano; os círculos de Dresden e de Munique, que se inspiravam no círculo de Heidelberg

e, finalmente, o círculo de Iena e dos irmãos Schlegel e Novalis.

A “Escola Romântica”, na Alemanha, agrupada pelos irmãos Schlegel, por volta de

1880, adquiriu voz na controversa revista Athenäum, de modo autoconfiante e, embora, por

vezes, doutrinário. O livre espírito filosófico de Fitche e Schelling propôs o encanto pela

saudade do passado e uma tendência para a noite e para o misticismo poético, como, por

exemplo, em Novalis. Para Safranski (2010), esse sentimento particular era o de um novo

começo, de um espírito livre de uma geração jovem, que se apresentava ao mesmo tempo

como severa e libertária para carregar o impulso da Revolução ao mundo do espírito e da

poesia.

A valorização da literatura e seu significado para a vida aumentam sensivelmente: lê-

se e se escreve mais do que anteriormente. O surgimento do Romantismo, portanto, está

marcado pela era de leitores e escritores obstinados. No entanto, todo o tumulto, as

metamorfoses políticas, a heterogeneidade profunda, não são, em realidade, senão as

diferentes vias de desenvolvimento possíveis a partir da matriz comum, que define o

Romantismo enquanto tal: a nostalgia das sociedades pré-capitalistas. A filosofia de vida ou a

concepção de mundo, no cenário do romântico, valoriza o romance, pois descreve a história

de um sujeito que não é mais uma entidade artificial, e sim, um ser de “carne e osso”,

constituído orgânica e historicamente.

O movimento entusiasmava-se por uma reação ao racionalismo que o Iluminismo do

século XVIII propunha. Os precursores do Romantismo valorizavam o efeito da emoção,

27

imediato e poderoso, em contraposição à razão. Os stürmer eram contra a literatura e a

sociedade do Antigo Regime. Deixando de lado a rígida métrica da poesia francesa divulgada

em grande parte por Herder, voltou-se para a poesia clássica de Homero, para a Bíblia

luterana, para os contos e histórias do folclore nacional nórdico. A paixão pela linguagem

cifrada e os hieróglifos tornava a língua mais próxima da inocência primeva. A linguagem

perfeita estaria no retorno e resgate dos mitos e daqueles mitos de raiz gnósticos – os contos

de fadas, os quais as ideias e pensamentos não são racionais, mas metafóricos e, nos quais, o

exprimível se tornava inexprimível.

A incompatibilidade, porém, ao mesmo tempo o desejo de compreensão e

reaproximação entre sujeito e sociedade é o tema típico do Sturm und Drang e, de muitas

correntes do Romantismo posteriores, tornando-se um dos motivos fundamentais do

Weltschmerz [dor do mundo], tão característico da época romântica.

A razão, conforme destaca Schiller (2011a), é fundamental à Ilustração e evidencia

juntamente com o irracional, o germe do Romantismo. O racionalismo e o irracionalismo,

entretanto, deveriam encontrar seu princípio por meio de uma atitude rumo ao ativo e

necessário sentimento de integração, a fim de que razão encontre força e apresente um

impulso para o sucesso, encontrado por meio do entendimento, que está presente no coração -

no plano emotivo, na subjetividade. O primeiro desses impulsos é a sensibilidade, em virtude

da emancipação e do sentir genuínos, a qual submete o homem às limitações do tempo,

tornando-o matéria. A matéria que não significa modificação da realidade, mas

transformações do conteúdo do tempo. O tempo preenchido é chamado de sensação, que se

manifesta através da existência física. Assim sendo, a razão deveria submeter-se a uma dupla

tarefa permeada por forças antagônicas, que, por sua vez não conviveriam de forma

harmônica, necessitando sobrepor-se à realidade interna e à realidade externa.

28

Nessa época dominada pela literatura romântica, a luz do Iluminismo perdeu o brilho.

A Era das Luzes não havia chegado às camadas mais simples, e nos círculos aristocráticos

brincava-se com a razão, como que com ela praticando uma espécie de oráculo. No final do

século, o estranho, o autossuficiente podia de novo aparecer como o fantástico. Safranski

(2010) pontua que os curandeiros, que antes haviam sido presos na workhouses, reaparecem.

As pessoas se juntam nas sociedades secretas; vão para as cidades para ouvir os profetas que

falam sobre o fim do mundo ou da volta do Messias. O clima geral se transforma. As pessoas

voltam a gostar do misterioso, a crença na transparência e possibilidade de prever o mundo

diminuíra. Lukács (2015) pontua, nesse sentido, haver a exacerbação do sentimento do Eu em

um sentimento místico de totalidade.

Como possíveis tentativas para se tentar definir o movimento romântico, ele pode se

expandir enquanto uma forma, um estado de espírito, um forte fenômeno histórico e, também,

como uma escola de pensamento. O termo romântico, entretanto encanta e humilha, uma vez

que pode se referir a uma atitude positiva, a um gesto condenável, um sonho, ou a um

alimento para o pleno exercício do imaginário humano. Amor e glória, sedução e prazer, ou

simplesmente irresponsabilidade e frustração, representam, muitas das antinomias imaginadas

ao ser empregar tal palavra.

Todavia, Citelli (1993) ressalta que, enquanto movimento, o Romantismo foi mais que

um intento de ação de um grupo de poetas, romancistas, filósofos ou músicos. Tratou-se de

um vasto movimento onde se asilaram o conservadorismo e o desejo libertário, a inovação

formal e a repetição de fórmulas consagradas, o desejo com o poder e a revolta radical. Berlin

(2015) enfatiza em sua “tese”, que o movimento romântico foi uma transformação tão

gigantesca e radical que depois dele nada mais no mundo permaneceu o mesmo.

29

Habitualmente o Romantismo, de acordo com Loureiro (2002), qualifica-se como um

modo de pensar no qual se empregam e exploram os conflitos, as contradições e os choques

entre os opostos, embora todas estas polaridades tendessem a ser resolvidas em uma síntese,

sobre a qual, o pano de fundo é uma unidade fundamental. A melhor definição de romântico,

para Safranski (2010, p. 17), vem de Novalis: “Ao dar um sentido elevado ao comum, ao dar

ao usual uma aparência misteriosa, ao conhecido a nobreza do desconhecido, ao fugaz uma

aparência de eterno, assim é que os romantizo”.

O estilo romântico para Loureiro (2002) pode ser definido por um sentimento de

ruptura, o qual foi vivido como perda, ou ainda, para Andrade (2011), o movimento buscou a

unidade perdida. Já Kiefer (1985) destaca o Romantismo como o rebaixamento corajoso ao

universo das emoções e Vizziolli (1985) revela que o movimento liberou as camadas

inconscientes da mente. O “programa” romântico, segundo Suzuki (1998), almeja pelo

reencontro do sentido originário por meio da potencialização qualitativa da vida, ou seja, por

exemplo, oferecer ao finito um brilho infinito, o que fez com que adquirisse uma expressão

corriqueira – a filosofia romântica. A partir disso, percebe-se a multiplicidade dos tipos

românticos, de modo a ser mais pertinente falar em “Romantismos”, no plural, do que em

“Romantismo”.

O Romantismo, portanto, é a expressão máxima do antagonismo posto entre a

individualidade e a universalidade, entre a ação e a contemplação, entre o sujeito e o objeto,

entre o Eu e o mundo, e, visa restituir a uma experiência de plenitude e de absoluto, por meio

da superação dos dualismos. Caracteriza-se, também, pelo movimento reflexivo do Eu em

torno de si mesmo, ao defender a agilidade da fantasia entre o espírito científico e o sentido

artístico.

30

A oposição entre o clássico e o romântico, para Loureiro (2002), constitui-se o cerne

da história do Romantismo, ou, ainda, nasce do contraste com o Classicismo e dos vários

polos opostos que são entrelaçados neste jogo: o antigo e o moderno, o ingênuo e o

sentimental. A crítica romântica, a partir disso, é motivada por meio da experiência de perda,

devido ao fato de que algo de precioso foi perdido, tanto ao nível do individuo, como da

humanidade. E, assim, a visão romântica se caracteriza pela dolorosa melancolia advinda do

presente, o qual carece de certos valores humanos essenciais, que foram vencidos, causando

também o sentimento de exílio, de nostalgia e de desenraizamento.

Diante do cenário desolador do mundo moderno, as críticas românticas caem sobre o

desencantamento do mundo e a tentativa de reverter este processo, por meio do interesse pela

magia e pelo esoterismo; pelo universo da noite, que inclui os sonhos e o fantástico; pelos

recursos da ironia e dos mitos. As quantificações do mundo sintetizado nos cálculos racionais

e no utilitarismo do mundo, a mecanização e a dissolução dos vínculos sociais contribuem

para as críticas dos poetas românticos, pois do isolamento e da solidão em sociedade.

Anterior à reviravolta romântica, o que predomina é a aceitação de que o máximo a

que o homem pode aspirar é reproduzir, pela imitação, os modelos antigos, fixando no

passado o ideal a ser atingido. Os clássicos, quando muito, buscavam a semelhança e não a

diferença. Moisés (2007) destaca que foi no Romantismo que começa a ser escrita uma nova

História, desconhecida dos antigos. A alma romântica anseia pelo novo, pelo gesto original,

pelo traço distinto, pela diferença, em síntese, de modo que o ideal a ser atingido não se

localiza mais no passado, mas no porvir. O novo rumo apronta para o futuro em permanente

construção.

Os românticos propuseram um novo contrato de inserção do homem no mundo, ao

formular uma crítica radical do projeto Iluminista e é exatamente isso que justifica as variadas

31

expressões do Romantismo: moral, política, social, antropológica, estética. Uma vez que o

universo romântico incorpora a noção de projetos, de configurações totalizantes, a

antropologia negativa romântica, para Maroni (2008), é permeada pela diferença e pela

multiplicidade, abertas para o infinito e visando a uma expansão sem fim. Apesar disso, os

românticos são paradoxais, pois ao mesmo tempo em que anseiam por um saber total

científico-religioso-artístico-filosófico, recusam a noção de sistema acabado e fechado.

2.2 As Principais Características

Não se perdem de vista a ambiguidade da natureza humana e o fracassado esforço em reunir o divino e o físico no Homem, e, como a fábula deve caminhar para o forte e bruto, então não se permanecerá no assunto, mas através dele se poderá ser conduzido a ideias (Carta de Goethe a Schiller - Goethe & Schiller, 2010, p. 139).

O que é uma síntese superior, senão um ser vivo? E por que temos de atormentar-nos com a anatomia, a fisiologia e a psicologia, senão para formar de alguma maneira um conceito da complexa unidade que se produz continuamente, por mais que a tenhamos decomposto em tantas partes? (Goethe, 2012, p. 115).

O romântico, por sua vez, não se contenta em “ser romântico”, mas faz do

Romantismo um ideal e uma política para sua vivência. A “romantização” significa,

sobretudo, simplificar e unificar a vida, isto é, libertá-la da dialética do ser histórico, que a

excluía de todas as contradições indissolúveis, oposição que oferece a todos os desejos

expressos em sonhos e fantasias de natureza romântica.

A liberdade de expressão refletida a partir do Romantismo expressou a maneira pela

qual o homem pode ultrapassar os limites do improvável e do estabelecido, como meios para

atingir suas aspirações frente a um mundo liberto de paradigmas. De acordo com Bornheim

32

(1985), o movimento romântico organizou-se a partir de rebeliões decorrentes do

inconformismo quanto aos valores propostos pelo cenário histórico e social e, com isso,

buscou uma inédita categoria de valores derivados do irracional, do inconsciente ou do

popular e histórico.

O Romantismo levado às últimas consequências representou a força que nutria a

condição de marginalidade destinada em uma sociedade, que se pensava a partir de conceitos

liberais. Para Figueiredo (2002), a música, a poesia e a pintura românticas mantinham com o

público uma relação contraditória, pois nelas estavam presentes tanto o escândalo e a

agressão, quanto a reverência e mesmo a admiração às grandes personalidades criativas, as

quais foram os gênios românticos.

Como o homem é parte indissociável da natureza, ele é visto como complexo,

conflitivo e ambivalente, glorificando-se tanto o sujeito como a natureza. O homem

pertence a um todo maior, cósmico, do qual ele só é uma parte insignificante. Porém,

essa visão não impede o interesse dos sentimentos e das paixões, em contraposição ao

mundo racional. O homem romântico não é moderado como o clássico, mas, pelo

contrário, capaz das ações excessivas, que revelariam os conflitos e as paixões abissais

que perturbam a alma romântica. É um homem imaginativo e criativo, cujo modelo

ideal seria o artista ou o poeta, que se aproxima intuitivamente do infinito e do

absolutismo com suas criações. Ferrater Mora considera que o romantismo

corresponde à alma fáustica e dionisíaca, em contraposição às manifestações da alma

apolínea (Lejarraga, 2002, p. 21).

33

Entre o final do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX, Moisés (2007)

conclui que o isolamento do poeta passa a ser experiência efetivamente vivida pelo homem

comum que, sentindo-se “excluído”, pode vir a se identificar com o poeta, desde que veja nos

devaneios e estranhezas da nova poesia confessional, o retrato de suas ansiedades pessoais,

incertezas e de autoafirmação. Partindo desse ponto, Safranski (2010) destaca que o poeta

assumiria, no Romantismo, o papel desempenhado pelo sacerdote na sociedade tradicional.

Entretanto, o poeta é acessível e permite que outros mergulhem no divino, isto é, seria

mediador do conhecimento e sua missão era a de transmitir ideias. A poesia reflete os grandes

acontecimentos espelhados pelas ideias, passando às coisas, como também acena aos séculos,

aos povos e aos impérios. Ainda, acerca da participação dos poetas, como enviados de Deus,

Safranski (2010) ressalta:

A união com Deus – ou melhor: a participação na divindade – não é algo da

vida eterna depois da morte. Tampouco pressupõe a existência de um legislador

celestial. Ela é muito mais a participação na vida eterna aqui e agora. A imortalidade,

explica nada mais é do que, “no meio do finito, torna-se uno e com o infinito e ser

eterno num momento”. Esta é a experiência do eterno no finito, que também Fitche

descreverá nos seus Conselhos para uma vida beata [Anweisung zum seligen Leben],

escritos pouco tempo depois. O eu, diz ele, que está absolutamente decidido, abre-se

com isso para o incondicional. Mas diferentemente de Fitche, para quem a ação se

transforma em êxtase, em Schleiermacher domina uma passividade infantil. Menos um

agir do que um receber: uma tomada de consciência prazerosa do “desaparecimento

sem ruído de toda a nossa existência no infinito”. Uma experiência que Freud,

34

seguindo Romain Rolland, chamará mais tarde do “sentimento oceânico” (Safranski,

2010, p. 133-134).

A obra de arte, sendo assim, alcança no Eu a intuição de si mesmo com o Absoluto. A

arte, como produto do entendimento, solveria as contradições entre o subjetivo e o objetivo, o

consciente e o inconsciente, o real e o ideal, a liberdade e a necessidade que o artista genial

supera e recebe a cada produção. O núcleo da estética romântica reside no rompimento com a

mímesis da estética clássica. Ela agora se torna poiésis, isto é, a ênfase recai na ideia de

produção e criação, no poder de conformação que é atribuído ao artista.

Ainda sobre a arte romântica, Benjamin (2011) pontua que sua teoria provém do

caráter representativo. Porém, nem todos os primeiros românticos concordaram com tal

afirmação, ou simplesmente a levaram em conta. O espírito romântico se embebedou pelo

fantasiar agradavelmente sobre si mesmo, pela reflexão propiciada pelas produções artísticas,

pela particularidade do conteúdo e por um meio privilegiado em que o pensamento se

desdobrou: um médium-de e da-reflexão [Reflexionsmedium].

A expansão do pensamento romântico foi uma crítica ao Iluminismo, ao liberalismo e

ao individualismo da ilustração. Enquanto o Iluminismo ressalta a igualdade dos indivíduos

entre si, o Romantismo acentua a singularidade única do sujeito. O próprio termo

individualismo nasceu na França como consequência de uma reação negativa ao pensamento

conservador de ideias e realizações da Revolução Francesa e, com este sentido pejorativo, a

expressão invadiu outros ares culturais.

35

Os românticos criariam, eles também, uma noção de individualidade, melhor

dizendo, de personalidade, não mais definido pelo isolamento e pela privacidade, nem

pela identidade social, mas pela capacidade de se autopropulsionar, autodesenvolver,

de criar e, na própria criação, transcender-se e integrar-se às coletividades e tradições.

Estas, por sua vez, também eram concebidas sob a forma da personalidade: espírito

novo, o espírito da língua, o espírito da religião etc. que são menos um conjunto de

traços identificatórios do que matrizes de experiências, representações, sentimentos e

possibilidades existenciais (Figueiredo, 2002, p. 141).

Desse modo, por meio do Romantismo, a noção de liberdade negativa – a liberdade

exercida no terreno da não-interferência do poder do Estado acerca das ações individuais –

passa a uma versão moderna na liberdade positiva, como a autonomia, cujos processos

implicam tanto na transformação dos sujeitos, naquilo que eles são de fato (a personalidade

singularizada), como na permanente perda de suas identidades convencionais: o tornar-se o

que verdadeiramente se é, contrapondo-se ao conservar os papéis e às máscaras socialmente

convencionais.

Destaca ainda Figueiredo (2002), que o espaço psicológico seja exatamente o que

abriga as forças alienantes do Eu, os elementos da identidade-estilo, as relações entre eles e os

processos de subjetivação/des-subjetivação, que o promovem incessantemente. Para Lejarraga

(2002), esse individualismo qualitativo, que celebra a singularidade do indivíduo, remete-o a

seu mundo interior, o que é de fato um dos valores básicos do movimento romântico.

O Romantismo desenvolveu, portanto, uma tendência fortemente individualista: o

centro do mundo é o Eu. Tudo tende a se organizar em torno do sujeito, caracterizando o que,

ao nível das funções da linguagem, se chama de função emotiva ou expressiva. O

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Romantismo levou seu individualismo a extremos, como um meio de compensação ao

materialismo do mundo e como uma proteção contra a hostilidade às coisas do espírito. Por

meio do momento místico ocasionado pela consciência do contato da alma com o divino,

Andrade (2000) sugere que as categorias de tempo e espaço são abolidas. O mesmo ocorreria

com a exaltação do Eu, cujos desdobramentos são conduzidos pela proposição Ich bin [Eu

sou].

Mais que meros clichês, os românticos sustentam grande interesse pelas temáticas

ligadas à morte, à doença, ao noturno e ao subterrâneo, pois, buscam com isso, a possibilidade

de plenitude harmônica que lhes é negada no cotidiano. Estas “saídas” são pintadas com as

tintas do maravilhoso, como, também, são exaltadas em seu caráter inexprimível e inefável. O

evacionismo romanesco é permanentemente a expansão geográfica, pois, ao se conquistar um

país após outro, via-se uma forma de transformação da utopia estética. Para Carpeaux (2012),

a poesia musical e filosófica reproduzia as esferas harmônicas das leis do Romantismo de

evasão. O imaginário utópico, de acordo com Saliba (1991), funcionou como um exercício

para conceber o transcendente em um esforço mental, para imaginar outras possibilidades e

saídas, ainda que envoltas pela atmosfera do sonho e da alucinação. Contudo, Lukács (2015)

considera que os românticos partiram de um voo heroico e frívolo aos céus e se esqueceram

da terra, não conseguindo superar a tensão existente nem mesmo entre a poesia e a vida.

A característica psicológica do Romantismo é o sentimento como objeto da ação

interior do sujeito, o qual excede a condição de simples estado afetivo, porque transcende a

intimidade, a espiritualidade e a aspiração ao infinito. A sensibilidade romântica, dirigida

rumo e pelo amor da irresolução e da ambivalência, separa e une estados opostos, sendo eles:

do entusiasmo à melancolia, da nostalgia ao fervor, da exaltação confiante ao desespero.

Contém também, o elemento reflexivo do ilimitado, do infinito, de inquietação e de

37

insatisfação permanentes de toda experiência conflitiva aguda, que tende a reproduzir-se

indefinidamente à custa dos antagonismos insolúveis que a produziram. Assim, o

sentimentalismo do século XVIII foi substituído por uma sensibilidade exacerbada, um maior

impacto no núcleo da alma. Kundera (1990), em seu livro A Imortalidade, faz a seguinte

observação:

A civilização europeia é supostamente fundamentada na razão. Mas também

poderíamos dizer que a Europa é uma civilização do sentimento; ela deu origem ao

tipo humano que eu gostaria de chamar o homem sentimental: homo sentimentalis [...]

É preciso definir o homem sentimental não como uma pessoa que experimenta

sentimentos [...] mas como uma pessoa que os valorizou. Desde que o sentimento seja

considerado valor, todo mundo quer experimentá-lo; e como todos nós temos orgulho

de nossos valores, é grande a tentação de exibir nossos sentimentos. [...] Do momento

que queremos experimentá-lo [...] o sentimento não é mais sentimento, mas imitação

de sentimento, sua exibição. Aquilo que geralmente chamamos histeria. É por isso que

o homo sentimentalis (em outras palavras, aquele que instituiu o sentimento como

valor) é na realidade idêntico ao homo hystericus (Kundera, 1990, p. 108-110).

A valorização dos sentimentos conduz, como afirma Kundera (1990), à imitação do

sentimento, que se torna, no processo da sua valorização, um disfarce de si mesmo, pois o

homo sentimentalis se transforma no homo hystericus. Tal fenômeno acontece em virtude da

impossibilidade de externalização da interioridade, pois, se pode falar sobre sentimentos, mas

não se consegue fazer com que o outro sinta o que um “Eu” sente. Valorizar os sentimentos,

38

no entanto, significa também perceber falhas e impossibilidades decorrentes nesta

comunicação; isto é, tornar-se um homo sentimentalis incompreendido pelo homo faber.

Ao penetrar no âmago da realidade, a imaginação penetra nos espaços mais intensos

do “Eu”, rompendo barreiras, ou mais precisamente, uma floresta selvagem – o

“inconsciente”. Os românticos, portanto, se sentem atraídos por esta região profunda do ser,

porque as dissociações, associações e fragmentações, que se cindem ou desintegram, fazem

domínio da expressão poética e de um reino encantando, no qual não há a racionalidade e nem

as leis cotidianas.

Como o vasto e integrado conglomerado geocultural, a nação era vista, sobretudo,

como manifestação inconsciente e espontânea do “gênio” ou “espírito popular”, em que todas

as manifestações históricas seriam, assim, portadoras privilegiadas de destinos misteriosos e

vastos objetivos. Este tom quase messiânico, raramente materializava-se em um único homem

ou herói, cuja missão seria redentora ou purificadora. Trata-se da nação, espécie de “messias-

plural”, que, de acordo com Saliba (1991), realizaria um ideal coletivo, primitivo, encoberto

por forças obscuras e insondáveis na história. Como tentativas de resgatar a unicidade

perdida, o homem, Deus e o Universo consistiriam um Todo, no qual a divindade estaria no

meio e entre todos. A indistinção entre sujeito e objeto seria fundida no homem por meio da

Natureza, na qual, inexistiria a distinção.

As recordações de uma terra, na qual se nasceu, é onde operam os grandes fenômenos

de sensibilidade. Nesta autêntica idolatria do tempo e da história, de acordo com Saliba

(1991), que é regida sob uma forma retrospectiva de idealização do passado, tendo-o como

refúgio quase sagrado, escondia-se um olhar aristocrático que fazia da tradição um imperativo

da história. Mas, por outro lado, esta ótica também envolvia um propósito progressista ou,

pelo menos, prospectivo, que ansiava igualmente em recorrer ao passado, mas como um

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diálogo cruzado entre este e o presente, isto é, como uma autêntica evocação do pretérito. A

dialética entre o passado e o futuro transcorre frequentemente por uma negação radical,

apaixonada e irreconciliável com o presente, ou seja, com o capitalismo e com a sociedade

burguesa industrial.

A nostalgia pode ser vista, em alguns momentos, no Romantismo, como uma

formação reativa, uma defesa contra o poder dissolvente da melancolia. Esta, por sua vez,

pode ser vista como um momento de superação da nostalgia. Enquanto o exílio é sentido

como uma condição individual, a solução nostálgica domina a melancolia e essa se deixa

reduzir à nostalgia, ou mesmo se confunde com ela. Porém, quando sob o efeito de

afastamento, a pátria equivale, em estranhamento ao país estrangeiro e o exílio passa a ser

reconhecido como condição geral da existência, em que, se observa o progressivo triunfo da

melancolia. Andrade (2011) refere-se à importância e significados da nostalgia no cenário

romântico:

Jean Starobinski dedicou um estudo sobre a nostalgia. A nostalgia: teorias

médicas e expressão literária, o autor cita como sendo a origem desta palavra uma

tese, defendida em 1668 por um médico suíço, intitulada: Dissertatio Medica de

Nostalgia oder Heimweh. Esta última palavra também significa nostalgia, mas remete,

especificamente, a uma falta geográfica. Neste tratado, especificamente, Heimweh,

refere-se à patologia provocada pelo desejo de retornar à terra-mãe, que acometia os

soldados suíços a soldo soberanos estrangeiros. Em português, seria análoga ao banzo,

doença que acometia os escravos africanos; muitos deles sucumbiram vítimas desta

melancolia da terra natal. Se a Heimweh remete á falta geográfica, a Sehnsucht remete

à falta ontológica, que com os românticos – como o mito andrógino o evidencia – esta

40

nostalgia ontológica será acrescentada uma conotação erótica e epistemológica

(Andrade, 2011, p. 62-63).

O sonho de recuperação integral do tempo pretérito ultrapassava os valores políticos

restauradores da antiga ordem, ou acerca do controle da história, na medida em que a

ideologia acabou marcando o processo de edificar a nação-contrato dos doutrinadores liberais.

Tudo encaminhava à busca da essência de algo novo, prestes a desabrochar e até a redimir o

tempo perdido. No entanto, dominados pela mercadoria, este é o universo por excelência da

repetição, do “sempre-o-mesmo” [Immergleichen], disfarçado em novidade, do mito

angustiante do eterno retorno.

Os medos noturnos do não-ser, da ausência e da falta de sentido são evidentes no

Romantismo e, conquanto de onde a grande transformação decorre, pois, é durante a noite que

se visualiza a origem e o momento no qual o ser irrompe. O mundo, como destaca Safranski

(2010), não é um sonho, porém, pode se tornar, ao transfigurar a realidade e ao se assumir os

abismos noturnos da alma, onde se encontram o inconsciente e a poesia. Talvez, assim, no

universo dos sonhos, seja possibilitada uma nova sensibilidade diante das recusas oferecidas

durante o dia. O universo do Romantismo é percebido como clarões no meio da noite, onde o

romântico privilegia o nebuloso – o amanhecer, o entardecer, limiares entre a segurança do

dia e a incerteza da noite. Nesses limiares, lugar de origem da desconfiança, as fronteiras dos

objetos se perdem, a ambiguidade toma lugar, através do incerto e do contraditório. A atração

pelo lado noturno ou subterrâneo da vida subordina-se ao desejo de ampliação da consciência.

O gosto pela noite traduz o mistério, o sombrio e remete a um momento em que os

acontecimentos sobrenaturais, acoplados à imaginação, são associados. Também, o prazer

desencadeado pela “noite da alma” desvenda o modo de ser do melancólico ou lutuoso, cuja

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dominação ocorre através das forças incontroláveis, inconscientes. Portanto, na noite, a

imaginação romântica desdobra-se em um mundo que provoca por meio da transmutação de

uma nova maneira de ver e conceber, tanto o mundo exterior, quanto o interno. Para

Rosenfeld & Guinsburg (1985), o elemento noturno avalia alguma expressão selvagem e

também patológica, refletindo, através disso, a inclinação mórbida.

Coligado com a perspectiva do mistério e do insondável, o Romantismo dedicou-se

determinantemente à valorização do Eu e da morte. Citelli (1993) ressalta que, a fim de se

afastar de um mundo incompleto e desajustado, o romântico opta pela morte, como forma

gloriosa, gesto definitivo e radical, que revela uma profunda indisposição com a sociedade. A

morte tornou-se um tema comum em quase todo o período romântico, revestindo-se de maior

ou menor dose de lirismo: ora remetendo a uma visão mais ingênua ora a uma crueldade

quase demoníaca.

Embora sob as fatalidades circunscritas na sociedade em que se vive o romântico,

muita das vezes o mesmo tende a mergulhar na melancolia e na aceitação de sua infelicidade,

exprimindo-se em um lirismo terno e, também, por vezes, mórbido e sombrio. Assim sendo,

veem-se ao mesmo tempo despontar o gênio da melancolia e da meditação. O gênio

romântico não teria pressentimentos, ou seja, seus sentimentos excederiam seus poderes de

observação, uma vez que ele não apenas observa, mas vê e sente.

Contudo, para Carpeaux (2012), nesse período, o pessimismo não é uma filosofia, e

sim uma Stimmung [temperamento]: a insatisfação de sujeitos insaciáveis por sensações e que

pertenciam ao ambiente passivo da Restauração, ou ainda, o desespero de sujeitos abúlicos,

incapazes de agir.

O homem, portanto, estaria destinado à insatisfação e à infelicidade, visto que o

caráter trágico do sofrimento, da dor e até da própria destruição implicam por si mesmos a sua

42

natureza e a condição humana. Nesse caso, o sofrimento e a dor são a condição própria do

humano, enquanto o prazer e a felicidade consistem em aliviar a dor ou em satisfazer

temporariamente um desejo.

Com o desejo insatisfeito e indefinido, o homem romântico enverga-se ao satanismo,

como forma de conhecimento, desviando-se das causas de conflitos dramáticos e teológicos,

com os quais, pactua de sua vontade própria e contra quem se debate. Lúcifer, anjo caído de

Deus, instiga a sede do poder e pelo conhecimento. Adversário e aliado, antagonista

necessário que transfigura a árvore do Bem e do Mal na árvore da vida, ao desencorajar o

homem a infringir as interdições de Deus-Pai, defronta-se com seu destino e com a morte: o

trágico embate do destino humano. Conforme salienta Nunes (1985), a ascensão e o decesso,

a subida e a queda vertiginosas tipificam, na lírica e no romance, a conduta espiritual dos

românticos que acompanharam a “turbulência fáustica” em que se forjou o “escudo de

sublimação ou do ideal do Eu”.

Através do processo de sublimação, o comportamento prende-se à Natureza, pois os

temas como amor e poder, por sua vez, são condensados em erotismo e satanismo. Quanto ao

satanismo, o homem, então, não seria o único agente responsável pela sua condição no

universo: sofreria interferências de Deus, quando assim obtivesse êxito em suas metas e, caso

transcorresse alguma adversidade, estaria subjugado por Lúcifer.

A concepção do “anjo caído” possuía admirável capacidade de atração para o

desiludido mundo do Romantismo, que se batia por uma nova fé. Haveria um sentimento

geral de culpa, decorrido pelo afastamento de Deus, porém, ao mesmo tempo, um desejo de

transformar-se em Lúcifer. Segundo Hauser (1998), até mesmo os poetas seráficos, como

Lamartine e Vigny, terminaram ao lado dos satânicos e se tornaram seguidores de Hoffmann,

43

Byron, Musset e Heine. Esse satanismo originava-se na ambivalência da atitude romântica em

face à vida e decorria de uma insatisfação religiosa.

Os românticos também tinham obsessão pelo lócus horrendus, o lugar horrível, feio e

sóbrio, que provocariam o medo e o espanto. Os cenários para as histórias envolviam,

geralmente, cemitérios, catacumbas, casarões/mansões/castelos assombrados, abandonados ou

em ruínas e florestas escuras. Há a presença de uma fauna característica, que contém animais

asquerosos, tais como: sapos, vermes, ratos, lagartixas; de animais peçonhentos, como cobras,

corvos, mochos, escorpiões, aranhas, lacraias e animais de mau-agouro, como corujas, urubus,

gatos-pretos, morcegos e sapos.

A ambivalência romântica fez-se através do confronto dramático do sujeito com o

mundo, possibilitada pelo “assujeitamento” humano, que, conduzido à vivência com a

Natureza - objeto de contemplação ou lugar de refúgio para o indivíduo solitário – provocou

tonalidades afetivas díspares, que vão do reconhecimento religioso à volúpia da

autoafirmação, da melancólica sensação de desamparo ao entusiasmo. Do mesmo modo, o

sujeito oscilou entre um sentimento de proximidade, de união desejável e prometida, de

compenetração a realizar-se um sentimento de distância, de afastamento irrecuperável ou de

separação inevitavelmente consumada.

Nesse sentido, o Romantismo abriu caminhos para que se percebesse que o divino e o

demoníaco – ainda que, o demoníaco, por exemplo, advinha do objeto externo, ou ainda, uma

personagem, a qual seria ainda neste momento plana – teriam apenas características positivas

ou negativas. Somente estes dois polos estavam em processo de percepção como dotados em

uma única interioridade, a qual seria o inconsciente, dotado do divino e do demoníaco,

estudado pelo fundador da psicanálise, Freud. Todavia, Lukács (2015) adverte para a vontade

romântica de unidade, contudo, ela sempre e necessariamente foi fragmentária.

44

2.3 O Romantismo e a Psicanálise: Algumas Interfaces

Contudo, por mais valioso que seja um experimento considerado individualmente, ele só adquire seu valor pela união e conexão com outros. Porém, justamente unificar e combinar dois experimentos que tenham alguma semelhança entre si exige, mas não na medida em que acreditamos. Dois fenômenos podem parecer consecutivos um ao outro, embora entre eles devesse haver uma grande cadeia intermediária para levá-los a uma conexão verdadeiramente natural (Goethe, 2012, p. 59).

[...] o inconsciente freudiano é dependente da literatura e da arte, cujos segredos ele pretende desvendar. Trata-se, antes de mais nada, de assinalar as relações de cumplicidade e de conflito que se estabelecem entre o inconsciente estético e o inconsciente freudiano (Rancière, 2009, p. 43).

A partir do século XVIII, foi possível observar uma redefinição das relações entre

sujeito/objeto, tanto no plano da ação, quanto no plano do reconhecimento. A razão

contemplativa, orientada para a verdade e concebida de modo receptivo de uma apreensão

empírica ou racional acerca da essência das coisas, cede espaço, progressivamente, à razão e à

ação instrumental.

De acordo com Figueiredo (2014), o sujeito empírico pode ser visto como um

importante fator de erro e de ilusão, uma vez que a produção e a validação do conhecimento

requerem o incremento do domínio técnico sobre a natureza, pressupondo, a partir disso, o

autocontrole, a fiscalização e a autocorreção do sujeito, os quais se tornam o foco das

preocupações epistemológicas e metodológicas, características de um projeto de psicologia

como ciência natural do sujeito. Contudo, tal projeto envolve contradições: de um lado, sua

natureza interna é útil à disciplina, devido ao método científico; porém, de outro lado, o

objetivo deveria submeter-se às práticas da pesquisa – ao controle, o qual se desenvolve na

interação com a natureza externa – seu caráter. O sujeito é atravessado, portanto, por diversas

rupturas, sendo de primeiro estado sua sensibilidade, afetividade e intuição, que conflitam

45

com a razão instrumental. Em uma segunda esfera, a própria razão se abre às pretensões de

um discurso racional, disfarçado de subjetividade.

A perspectiva instrumental da administração racionalizada, dessa forma, apresenta-se

como um projeto de ciência contra o sujeito, pelo fato de que há necessidade de se conhecer

para fiscalizar, controlar, prever e corrigir os elementos irracionais. Todavia, um conceito, por

exemplo, sobre o “bem” é individual e único, independente e irracional, sendo, portanto,

inacessível às leis científicas e sociais. Desta perspectiva, a psicologia, para tanto, seria

inviável, pois a ilusão transitória acerca do sujeito e do objeto não a justificaria enquanto uma

ciência independente. Figueiredo (2014) refere-se ao projeto científico da psicologia como

contendo as cisões pertinentes do indivíduo para si, do indivíduo para com o outro, assim

como um suporte de papéis sociais predefinidos.

As ideologias científicas do pensamento psicológico afirmam que o sujeito é um

objeto em que se legitima o poder e a dominação. Já as ideologias românticas complementam

que, além das questões acerca da dominação e do poder, a liberdade humana é indestrutível,

em que o sujeito é livre e a própria escravidão seria uma opção do sujeito. Tais ideologias

legitimam o isolamento do sujeito sobre si mesmo em um orgulho inconsequente de sua

própria subjetividade. No entanto, todas as características que foram excluídas pelas matrizes

cientificistas foram abarcadas na perspectiva intelectual chamada de vitalismo naturalista, em

que o qualitativo, o indeterminado, o criativo e o espiritual trocam-se em sinais. Contudo,

ainda permanece a divisão entre a razão e a “vida”.

As pesquisas de Figueiredo (2002) demonstram que o Romantismo pertence aos

valores da espontaneidade impulsiva e, na medida em que a identidade é delimitada, as forças

da natureza são transpostas. A potência dessas forças promove uma restauração do contato do

homem com as origens pré-pessoais, pré-racionais e pré-civilizadas do “Eu”, um contato com

46

os elementos da animalidade e da infância. Essa Restauração propulsiona uma espécie de

autodesenvolvimento, que, no entanto, é marcado por crises, experiências de desagregação,

adoecimento, loucura e até mesmo de morte.

Figueiredo (2014) ainda destaca que Goethe percebeu a identificação entre sujeito e

objeto e que, com o advento do Romantismo, houve um enfoque epistemológico mais

adequado às possibilidades das ciências naturais. Nestas disciplinas, garante-se a supremacia

da identidade entre sujeito e objeto e, simultaneamente, se instala o problema da comunicação

e da interpretação.

Dessa forma, o Romantismo é antes de tudo uma filosofia da expressão, da

representação simbólica, em que o resultado da intuição constitui-se pela superação da

distância entre sujeito e objeto. Mais que uma relação sujeito/objeto: é o fruir da estética.

O século XIX não foi “romântico” apenas em sua primeira metade; ao longo de

todos os seus decênios o seu orgulho cientificista, de aspecto sombrio e duro, pouco

alegre e afável, salvo alguma trivialidade monística, foi compensado e mesmo

superado pelo seu pessimismo, pela sua comunhão musical coma noite e com a morte,

em virtude dos quais nós o amamos e o defendemos contra o desprezo com que o trata

um presente de bem menor envergadura (Mann, 2015, p. 23).

O movimento estético em questão enuncia uma teoria do conhecimento, cujo Eu do

sentimento como método subjetivo de interpretação do mundo prevalece sobre o Eu da

consciência da razão metafísica. A consciência romântica vem resistente também ao “eu” da

cientificidade iluminista, que buscou reduzir o sujeito a um materialismo reducionista e a uma

47

causalidade fenomenal. Nesse caso, a ciência não pode ser um modelo de verdade aplicado ao

domínio humano. Lejarraga (2002) pontua que o Romantismo pode ser narrado como o

primeiro grande protesto contra o mundo moderno, contra o materialismo e o cientificismo,

ressaltando o predomínio do sentimento sobre o pensamento, do dinâmico sobre o estático e

do orgânico sobre o mecânico.

Porém, quando Descartes focaliza a interferência da singularidade de um

sujeito e de suas particularidades nas produções da racionalidade, seu gesto só faz

ressaltar a importância mesma da subjetividade. Essa focalização da subjetividade

como o que não se costuma à razão, ou como o que a confunda, abriu os canais para o

movimento oposto ao da valorização da razão cartesiana: a ênfase na emoção, uma

série de questões que causaram turbulência nas verdades e nos modos de viver

estabelecidos, prenuncia a própria modernidade, com tudo que trouxe de novidade e

subversão, e não apenas para os padrões tradicionais da Academia de Belas-Artes

(Maurano, 2003, p. 19-20).

Os românticos almejaram reconhecer todas as dimensões do ser, sendo ele constituído

pelo sentimento, pela intuição, pela emoção e pelo afeto. Com isso, ansiavam pela exploração

do domínio da interioridade humana em sua singularidade. No lugar de sofrer passivamente a

lei da ordem física e moral instituída pelos administradores do território humano, a

individualidade romântica é reconhecida como o ponto de origem de uma verdade. Cada

homem, pela dotação originária que constitui sua personalidade, é chamado a desempenhar

uma vida singular. O conhecimento de si, para os românticos, implica em uma passagem

48

obrigatória pelos componentes da cultura. E é por meio dessa passagem que será possível

diferenciar as aquisições da época e as exigências próprias do sujeito.

Um princípio vital inclui a probabilidade de multiplicação das mais simples origens

dos fenômenos por meio do crescimento rumo ao infinito e às mais extremas diversificações.

Um fenômeno em si e por si não é o suficiente. Ele necessita separar-se para assim poder se

manifestar. Para Goethe (2012), todas as coisas existentes sofrem atuação da vida e podem ser

pensadas através do dualismo. Destacam-se: “nós” e o objeto; a luz e a escuridão, o corpo e

alma; duas almas; espírito e matéria; pensamento e expansão; sensibilidade e razão; fantasia e

intelecto; ideal e real, ser e anseio. Em uma de suas cartas, Schiller ressalta, justamente, a

questão dos dualismos analisados por Goethe:

O senhor deve ter tido uma certa fase, e não muito breve, que eu gostaria de

denominar período analítico, quando, através da divisão e separação, o senhor

ambicionou um todo, quando a sua natureza havia como que rompido consigo mesma

e procurava restabelecer-se através da arte e da ciência (Goethe & Schiller, 2010, p.

52).

Há diversos dualismos na natureza humana, que foram inclusive evidenciados pelos

românticos, porém, enquanto grande característica e aspiração do Romantismo, a polaridade

universal que permite a natureza restabelecer ordem deriva de um equilíbrio, em virtude de

um desequilíbrio permanente, no qual tal mecanismo encontra-se na base de todo o existente.

A ambição romântica quanto ao postulado do absoluto, no entanto, propõe a recusa de todo

dualismo e afirma haver um monismo ontológico e epistemológico.

49

Os românticos, entretanto, incapazes de se disciplinar em uma viagem sem fim, de

acordo com Loureiro (2000), deixam grande parte das obras inacabadas, significando, com

isso, fragmentos nostálgicos do infinito, o que se transformará em uma das próprias marcas do

gênero romântico. A eterna inquietude, a busca infindável do Todo se torna, por isso, uma

manifestação do próprio sintoma da Sehnsuchtangst romântica, que se aproxima do objeto

originário, objeto de angústia; a marca da própria falta, que pode impulsionar a pulsão do

saber e o desenvolvimento do pensamento em direção à gênese de uma obra.

Da obra científico-poética de Goethe, os românticos herdaram, no plano ontológico, a

noção de forma e a ideia da natureza como uma potência criadora e transformadora, dotada de

uma temporalidade imanente. Os românticos resgataram e enfatizaram, portanto, o conceito

de conflito entre as forças antagônicas como substrato dos fenômenos naturais. No plano

epistemológico herdam, ainda, a identidade do sujeito com o seu objeto, que não deve ser

desfeita pelos métodos objetivos das ciências naturais iluministas. Já no plano metodológico

será o antielementarismo da apreensão globalizante das formas, o antimecanicismo das

explicações dinâmicas da criação e das metamorfoses dos seres vivos e a evidência na

experiência imediata, enquanto práticas científicas ocuparão o centro das teorias românticas

(Figueiredo, 2014).

Além de contribuir para a produção dos artistas românticos, Goethe não foi apenas o

ideal cultural de Freud, mas foi o ideal para toda a cultura alemã, visto ser poeta, cientista,

escrever sobre as cores e interessar-se pela paleontologia nascente. A influência da literatura

na obra freudiana não se desenha de forma linear, pois se realiza em vias de mão dupla, isto,

pois a referência às obras literárias são uma constante nos seus estudos, servindo

eventualmente como fonte de conhecimento privilegiado do inconsciente ao lado daquele que

lhe é fornecido pela clínica com seu pacientes.

50

Freud (1930/1996) ao escrever uma carta em agradecimento por ter conquistado o

Prêmio Goethe, relata que Goethe não teria rejeitado a psicanálise como tantos de seus

contemporâneos fizeram, porque, ainda segundo o psicanalista, o escritor alemão estaria

familiarizado com alguns dos pontos em comum do conhecimento psicanalítico, bem

próximos de conceitos e propostas da literatura e o poeta ainda nutriria aceitação pela força

dos primeiros laços afetivos das criaturas humanas. Freud, além do mais, ressalta que Goethe

sempre teve Eros em alta consideração, que acompanhou as expressões primitivas do poeta,

manifestações estas de modo não menos decisivos do que Platão o fez no passado remoto.

A temática entre a articulação da psicanálise fundada por Freud e do Romantismo

Alemão tem sido objeto de interesse desde o período em que o referido psicanalista era vivo.

As discussões sobre as possíveis afinidades entre as duas correntes de pensamento tiveram

como “patrono” Thomas Mann, cujo qual não hesitava em inserir a psicanálise freudiana na

linhagem dos pensadores românticos. As possibilidades desencadeadas por tais inter-

relacionamentos adviriam do interesse de Freud por temáticas que marcam a alma romântica,

como, por exemplo, o sonho, a loucura, a morte. Entretanto, o próprio Freud e alguns outros

estudiosos sobre o assunto não são unânimes quanto a tais aproximações.

Loureiro (2002) destaca a tentativa romântica de restituir uma experiência de plenitude

e de absoluto, contudo, para o conhecimento científico, Freud apontava os limites deste, a

precariedade de seus alcances, a parcialidade e efemeridade de seus resultados, isto é, haveria

a impossibilidade de um conhecimento totalizador. A autora (2002), em sua tese de

doutorado, analisa algumas possíveis aproximações e afastamentos entre o Romantismo

Alemão e a psicanálise. Contudo, conclui que o chamado “estilo romântico” na obra freudiana

não partilha de uma nostalgia da plenitude perdida, nem intui pelo reencantamento do mundo.

51

Freud critica a sociedade que lhe é contemporânea, acreditando que o homem possa ser um

pouco menos infeliz e, em linhas gerais, sua teoria é cética e desilusionadora.

Apesar disso, ainda, segundo Loureiro (2002), a psicanálise pode ser qualificada de

anti-racionalista, já que sua busca dirige-se ao noturno, ao sonho, ao instinto, ao pré-racional,

e a noção de inconsciente se inscreve em seus princípios. A obra freudiana contém referências

a diversos autores românticos, como Hoffmann, Goethe, Schubert, Schelling e vários textos

evidenciam o interesse do psicanalista por temas ligados também às tradições do ocultismo e

do misticismo românticos, tais como: o duplo, a possessão demoníaca, a feitiçaria e a

telepatia.

Anterior ao século XIX, o estudo sobre os sonhos atraiu a atenção de estudiosos,

místicos e poetas. Porém, a abordagem dos sonhos era mais literária e metafísica do que

experimental e científica. O escritor romântico alemão, Jean Paul fez experiências tentando

reter a consciência e impor a vontade para controlá-los e, com isso, pode ter precipitado o

interesse de Freud pela temática e aos possíveis significados latentes presentes no universo

onírico.

Explorador das profundezas da alma e psicólogo das pulsões, Freud se inscreve

na linhagem de escritores do século XIX e XX que – historiadores, filósofos, críticos

ou arqueólogos – opõem-se ao racionalismo, ao intelectualismo, ao classicismo, em

uma palavra, à fé no espírito do século XVIII e talvez mesmo um pouco do século

XIX. Ele sublinhava o lado noturno da natureza e da alma, veem aí o fator

verdadeiramente determinante e criador da vida, eles o cultivam e esclarecem-no por

um viés científico; eles defendem, por meios revolucionários, a primazia de tudo o que

52

é ctônico, anterior ao espírito, “vontade”, paixão do desconhecido ou, como diz

Nietzsche, o “sentimento” primado sobre a “razão” (Mann, 2015, p. 19).

O inconsciente, para Mann (2015), poderia ser considerado, algum dia, como o efeito

curativo que esses dois campos de conhecimento (a psicanálise e o Romantismo) têm para a

humanidade, o qual corresponde a uma região da alma. Nela, a exploração e iluminação

trouxeram enquanto conquista a missão do próprio espírito investigativo. Loureiro (2002)

enfatiza que a psicanálise visa conduzir o desconhecido, o místico e o infinito às suas origens

pulsionais, traduzindo-os em linguagem metapsicológica.

Como formações do inconsciente, os sonhos, atos falhos, fantasias, sintomas e chistes

não obedecem às leis da racionalidade consciente, a qual exige coerência e clareza. O modo

de funcionamento do inconsciente demonstra que o psiquismo é muito mais amplo do que o

acessível à consciência. Além do mais, Maurano (2003) observa que a psicanálise ressalta que

o Eu não é uma fachada do sujeito, todavia, constitui-se do que realmente escapa às suas

possibilidades de apreensão.

O psíquico e o consciente eram pensados como instâncias que caminhavam juntas,

pois, anterior às descobertas freudianas, os fenômenos da consciência eram conteúdos da alma

e o psíquico inconsciente era algo inconcebível. Mann (2015) enfatiza a demonstração de

Freud quanto ao psíquico, que é em si inconsciente e a consciência pode ser acrescentada ao

ato psíquico, contudo nada modifica nele se deixada de ocorrer. A psicologia profunda e as

descobertas de Freud sobre o inconsciente investem-se nos aspectos obscuros da natureza

humana, as quais pertencem à história do espírito e ao conjunto de antagonismos das

tendências mecanicistas e materialistas do século passado. Sendo assim, determinado

53

fenômeno é interessante por ele mesmo, onde quer ele exista. No entanto, parte-se de um

fundamento que ele exista enquanto uma finalidade.

Ora, o psicólogo do inconsciente, Freud, é um filho autêntico do século dos

Schopenhauers e dos Ibsens, em cuja metade ele nasceu. Como sua revolução está

próxima da de Schopenhauer, pelos conteúdos, mas também pelo seu caráter moral.

Sua descoberta do enorme papel que o inconsciente, o “isso”, o “id”, desempenha na

vida psíquica do homem foi e é tão escandalosa para a psicologia clássica, segundo a

qual consciência e vida psíquica são uma e mesma coisa, quanto a doutrina da vontade

de Schopenhauer foi para toda crença filosófica na razão e no espírito (Mann, 2015, p.

60).

A grande iluminação trazida pelos românticos, de acordo com Sandler (2000a), foi a

percepção do inconsciente. Também a noção de mundo interno e objeto internalizado foram

elaborados entre o fim do século XVII e a metade do XVIII, época em que tais termos foram

apresentados pela primeira vez, todavia, em um desenvolvimento posterior da mesma

natureza de problemas – com o conhecimento psicanalítico cunhou-se os termos projeção e

introjeção. Nesse contexto, foi introduzida a refutação da distinção entre um mundo interno e

externo. Portanto, o cultivo de si e da interioridade, o autoconhecimento e a autonomia são

características evidentes buscadas tanto em relação às propostas da psicanálise como pelo

desejo romântico.

O Romantismo, contudo, confundiu emoções com sentimentos, pois os hipervalorizou

violentamente. Na infância do movimento romântico, como na infância humana, a distinção

entre realidade e ficção, verdade e alucinação tornou-se infactível. A busca do conhecimento

54

encontrava um obstáculo talvez mais insuperável do que qualquer outro que já havia se

deparado. O obstáculo, paradoxalmente, era também seu maior aliado: a emoção e a paixão. O

Romantismo, para Sandler (2000a), tocou em um problema de limites tênues: o limite entre a

alucinação e a realidade. Talvez se possa dizer este é o marco inicial na história do

Romantismo: o exagero e a polarização.

Esta seria a mente humana para o romântico: admiração incontida e

incondicional por paixões fortes, sem pensar em conseqüências de ódio e

ressentimento. As histórias eram de amores aparentemente apaixonados, porém

odiosamente destruídos; a dedicação total do outro, a uma causa (social-ista),

implicava a própria morte e, portanto a falta absoluta; traições inexplicáveis,

vinganças completas, ciúmes, remorso esmagador, desespero profundo e

incontornável, falta de alternativas a não ser o orgulho ferido e a fúria frente à injustiça

e à opressão; glorificação do militarismo; desprezo superior ante falhas humanas,

como inveja, escravidão e covardia. (Sandler, 2000a, p. 73).

Na vida psíquica existe a ilusão de que cada ser é único e original, representando, com

isso, o seu caráter mítico. Para Mann (2015), o interesse mítico é natural à psicanálise, assim

como o interesse psicológico é habitual ao trabalho literário. O recuo à infância da alma

individual é ao mesmo tempo também o recuo à infância do ser humano, isto é, ao primitivo e

ao mítico.

Por um lado, se o Romantismo tudo prevê, não há escapatória: até Freud, quem

diria, acaba realizando em alguma medida os propósitos românticos. Por outro lado,

55

porém, e aqui reside toda a diferença (se é que alguma diferença consegue resistir...),

não esqueçamos que o estilo romântico é norteado pela ambição do absoluto. Todos os

seus paradoxos e contradições, toda essa impressionante capacidade de fagocitar o que

quer se lhe apresente, enfim, tudo isso é orientado pelo desejo último de síntese e de

totalidade (Loureiro, 2002, p. 354).

Há vários dualismos na teoria de Freud, como, por exemplo, no nível da

representação, percebe-se o dualismo de princípios (princípio de prazer e princípio de

realidade); o dualismo tópico (inconsciente e pré-consciente/consciente, processos primários e

processos secundários) e, há ainda um dualismo energético (energia livre e energia ligada).

No nível das pulsões, ocorre o dualismo entre as pulsões de vida e a pulsão de morte, em que

se estabelece o dualismo entre as pulsões e as representações, ou seja, em linguagem mais

precisa, entre o corpo e a alma.

Sandler (2001) afirma que Freud conseguiu perceber os dualismos do funcionamento

psíquico tanto na possibilidade prática da realidade psíquica quanto na formação da própria

realidade psíquica, tornando o método de trabalho psicanalítico um movimento contínuo de

tolerância de paradoxos. Há muitas manifestações de paradoxos observadas e vivenciadas

pelo conhecimento psicanalítico: matéria energia; sentimento pensamento; pensar

fazer; teoria prática; racionalismo irracionalismo; análise síntese; forma

conteúdo; consciente inconsciente; isso supereu; vida morte; realidade fantasia.

Os dualismos, com isso, fazem parte da metapsicologia freudiana. Tavares (2007),

contudo, assinala que eles não seriam propriamente uma dialética, mas estariam

caracterizados pelo próprio termo da “análise”, isto é, são fundamentados com a quebra, a

separação de elementos a fim de estabelecerem os conceitos enunciados.

56

Contudo, Figueiredo (2014) observa o totalitarismo do determinismo funcional da

psicanálise freudiana, o qual atribui à decifração de sentido e uma identificação de

intencionalidade dos conteúdos inconscientes. Todos os fenômenos psíquicos estão inter-

relacionados. O sujeito é um todo cujas partes estão indissociáveis e as relações estabelecem

um conjunto que tem função, estrutura e desenvolvimento. Como nada acontece ao acaso,

“Freud explica”, torna-se o retrato caricatural do determinismo absoluto de Freud. Entretanto,

o determinismo absoluto freudiano não é determinista mecanicista, mas determinista

funcional, porque a psicanálise freudiana acredita em uma explicação acerca da função de um

sentido aos fenômenos psíquicos.

Em certo aspecto, no entanto, a psicanálise afasta-se das manifestações típicas do

funcionalismo, em virtude de que exista a ênfase sobre a existência de um conflito. Por

exemplo, a elucidação psicanalítica dos atos falhos evidencia que o homem é movido por

tendências contraditórias muito mais frequentes do que se poderia supor. O conflito entre

forças pulsionais antagônicas, o embate entre as forças biológicas, as barreiras físicas, sociais

e sua plena e imediata satisfação constituem e enfatizam um organismo funcionalista, em que

a harmonia e a complementaridade entre as partes apresentam-se por meio de um sistema

adaptativo. Com isso, as leituras puramente funcionalistas da psicanálise são apontadas como

tendenciosas, pois eliminam o conflito como determinação essencial da vida psíquica.

A psicanálise visa conquistar, esclarecer e iluminar, isto é, tornar as “profundezas” e

as “trevas” menos obscuras. Maurano (2003) refere-se ao conhecimento psicanalítico como

tendo fundamentos à percepção da vida e do mundo, através de uma beleza que se movimenta

e não se aquieta.

Assim sendo, Lejarraga (2002), em seus estudos, observa que Freud orientou-se pelo

positivismo rumo à busca por causas fundantes, objetivas e universais. Entretanto, se tornou

57

cada vez mais “romântico”, principalmente na medida em que se abriu à inesgotabilidade das

singularidades subjetiva: ao conceito de sujeito.

Os principais “transmissores” da tradição romântica – os autores chegam a

empregar o termo “inoculação” – seriam os românticos tardios Fechner, Lipps e Fliess.

Do primeiro, Freud teria recebido a topografia da mente, a idéia de uma cena do

sonho, o princípio do prazer-desprazer, o da constância e a noção de repetição; de

Theodor Lipps, extraiu elementos para sua teoria dos sonhos, do chiste e do

inconsciente. Por fim, em Fliess estariam presentes alguns dos princípios básicos da

biologia romântica. (Loureiro, 2002, p. 48).

Os românticos também escolheram a noite como ambiente preferido de representação,

o lugar de fusões, o ponto intermediário de sínteses, onde a vida retorna à unidade original.

Para Andrade (2010), essa escolha se opõe à estética iluminada da Aufklärung: a luz do dia

que separa, dissocia e torna o julgamento crítico possível. A escolha da noite, sobretudo, os

Nachstüke [noturnos ou literalmente pedaços da noite] literários que são identificados nos

contos fantásticos de Hoffmann. Através da leitura do conto, Der Sandman [O homem de

Areia], narrativa que levou Freud a escrever seu artigo: O inquietante (1919/2010), esse

sentimento descrito pelo psicanalista é, portanto, o produto fundamental de análise do conto

acerca do fenômeno do duplo e das manifestações derivadas do inconsciente.

Nesse sentido, as particularidades apontadas por Sandler (2000a) quanto à fronteira

existente entre a psicanálise e a arte romântica apontam para o fato de que a humanidade foi

introduzida na ciência por meio da medicina e esta foi inserida na arte pelos iluministas e

românticos. Estas duas humanidades proveriam a ser apenas uma, vindo a se chamar

58

“psicanálise”. O movimento romântico, portanto, trouxe a consciência da necessidade de

respeito e consideração para com a experiência emocional, visto que o idealismo alemão

acabaria alastrando a ideia de que a mente humana tem uma capacidade sintética em si e por

si mesma autonomamente.

Sendo assim, a consequência proporcionada por meio de tal movimento foi a

psicanálise em si, proveniente da medicina e da ciência, a qual considerou a mente como seu

instrumento, método e objeto de estudo.

59

3 O FENÔMENO DO DUPLO

3.1 O Duplo

O que está separado busca a si mesmo novamente e pode se reencontrar e se reunificar – no sentido inferior, na medida em que se mescla apenas com seu oposto, associando- se com ele, caso em que o fenômeno se torna nulo ou pelo menos indiferente. A unificação pode, contudo, ocorrer também em sentido superior, na medida em que o separado primeiramente se intensifica e, mediante a conexão das partes intensificadas, produz um terceiro elemento, novo, superior, inesperado (Goethe, 2012, p. 78).

O inconsciente não se conhece diretamente, deduz-se. Estado dentro do Estado possui uma força compulsional que encontra o meio de expressar seus conteúdos. É intratável pela consciência. Tem suas leis, sua economia, sua racionalidade próprias (Green, 1994, p. 130).

O termo “duplo” foi empregado pela primeira vez, na psicanálise, por Rank (2013), o

qual conceitua que, este fenômeno se organiza como forma de negação contra o sepultamento

do self, diante da existência da pulsão de morte. No entanto, o psicanalista avança em suas

observações, afirmando que o duplo possa ser representado por espelhos, sombras, crença na

existência da alma e no medo da morte, ou seja, algo estranho a si mesmo. Há um termo

alemão específico: Der Doppelgänger, que é utilizado para se referir ao duplo, almas gêmeas

ou mesmo projeções fantasmagóricas não vistas por ninguém além de seu portador e, foi

introduzido no vocabulário da crítica no final do século XVIII.

Der Doppelgänger foi o ponto de partida de Rank, reconhecido como o precursor nos

estudos sobre do duplo, ainda que, outros autores, posteriormente a ele, tenham se dedicado

ao tema, ao longo do século XX, tais como Michel Guiomar (1961), Clément Rosset (1976),

Juan Bargalló (1994), Yves Pélicier (1995) e Massimo Fusillo (1998).

60

A partir da análise de obras dos autores como, por exemplo, E. T. A. Hoffmann, Edgar

Allan Poe, Fiódor Dostoiévski, Oscar Wilde, entre outros, o psicanalista Rank,

contemporâneo de Freud, percorreu os caminhos acerca dos fenômenos da duplicidade do Eu

na literatura, a fim de problematizar a questão.

Como mais representativas obras literárias acerca do fenômeno do duplo destacam-se:

o romance gótico de terror Frankenstein ou o Moderno Prometeu, de autoria de Mary Shelley,

escritora britânica, que teve sua terceira edição revisada e definitiva, em 1831; os diversos

contos do autor americano, Edgar Allan Poe, como, por exemplo, William Wilson (1839) e O

gato preto (1843); o romance O Duplo, do escritor russo Fiódor Dostoiévski (1846); a clássica

história de horror e de mistério O médico e o monstro, de autoria do escocês Robert Louis

Stevenson (1886); O Retrato de Dorian Gray, que é um romance filosófico do escritor e

dramaturgo Oscar Wilde (1890); as poesias dos heterônimos de Fernando Pessoa (1888-

1935), que foram personalidades do próprio escritor português modernista; sendo invenções

de personagens completos, que tiveram uma biografia própria, estilos literários diferenciados

e que produziram uma obra paralela a do seu criador; o escritor brasileiro, Machado de Assis

(1963), em seu conto O espelho: um esboço de uma nova teoria humana, entre outros autores

e obras.

As manifestações do duplo podem corresponder às personas ou máscaras, as quais o

sujeito utiliza para desempenhar os diversos papéis sociais que lhe são requisitados, passando

por representações de algum aspecto interior do sujeito, até os casos em que o duplo não é

uma extensão, uma sombra ou um fantasma do sujeito, mas outro ser, que por algum processo

de identificação anímica é pelo sujeito percebido como seu desdobramento. Segundo França

(2009), as manifestações do fenômeno do duplo assumem outros artifícios simbólicos, como

espelhos e retratos, como também pela figura de gêmeos. Os efeitos cômicos gerados por

61

gêmeos, por sósias, por identidades duplicadas, pela semelhança física entre os personagens

ou pela usurpação da identidade fazem-se presentes em Aristófanes, Plauto, Shakespeare,

Lope de Vega, Molière.

De modo geral, França (2009) ressalta que o duplo possa ser qualquer desdobramento

do ser. Embora, apesar de ser uma extensão do sujeito, mesmo quando com ele se identifica

positivamente e plenamente, o duplo não abandona sua condição de simulacro, de mera

sombra, uma vez que não tem valor em si mesmo, mas apenas naquele que seu modelo lhe

fornece. A condição ontológica do duplo tem sua origem em um indivíduo, do qual é uma

espécie de mímesis, porém não possui o mesmo estatuto, pois, quando é gerado, o duplo já

não pode mais ser confundido com o “Eu” original, visto possuir uma essência própria e se

assume necessariamente como “outro”.

O fenômeno do duplo assume combinações envolvendo dois extremos: o da

semelhança e o da diferença. De um lado há os duplos homogêneos, cuja semelhança torna

quase ou mesmo impossível a diferenciação; já, do outro lado, estão os heterogêneos, em que

a relação de complementaridade os fabrica de forma indissociável. Portanto, a ideia de

duplicidade se refere à contraposição de forças antagônicas e ao equilíbrio ativo da mesma.

Green (1994) observa que o homem duplo se expressa por meio de um homem dilacerado. A

dualidade, fenômeno através do qual o dualismo se manifesta, opõe-se ao princípio lógico de

não-contradição, que postula que algo não pode simultaneamente ser e não-ser.

Os duplos são metáforas um do outro e da própria identidade. As semelhanças entre os

duplos ultrapassam a dimensão de mera coincidência ou eventualidade, porque estabelecem o

diálogo de complementaridade, manifestando identidade ao atualizar as maneiras diferentes

ou desdobramentos de um pensamento criativo.

62

A ideia de duplicação, segundo Gonçalves Neto (2011), diz respeito ao sistema

binário, à dualidade, à contraposição e ao equilíbrio ativo de forças. O dualismo é algo

estranho, mas, ao mesmo tempo familiar; é uma estranheza que aterroriza, e ao mesmo tempo

é conhecida. Giora (2015) aponta para o fato de que o “estranho” seria algo como o retorno de

um mesmo, que nasce do que é interno e desconhecido; do que é verdadeiro, mas, que, não foi

dito e atravessam gerações, linhagens familiares, subvertendo o tempo e sacrificando o futuro,

tornando-se locatária dele. O acontecimento cede espaço a um “outro acontecimento”,

ocasionado pelo engano que a vítima acredita que há; “alguma coisa” da qual a realização do

novo evento teria tomado forma. É então a sensação de estar enganado que é enganadora. A

realização do episódio não fez outra coisa senão se realizar. Ele não tomou o lugar de um

“outro acontecimento”.

A particularidade notável ao duplo corresponde ao fato de que o único duplicado não é

apenas o objeto ou acontecimento, mas, o próprio Eu. Este caso particular da duplicação do

único, que constituiu o conjunto dos fenômenos chamados de desdobramento da

personalidade, originou inúmeras obras literárias, como também debates de ordem filosófica e

psicológica. O duplo, enquanto desdobramento da personalidade é enfatizado por Rosset

(1998) como não exclusivo às manifestações literárias, mas, também, estaria presente na

pintura, da qual constitui um tema essencial e decisivo, do ponto de vista psicológico, visto

que, todo pintor tem como meta fundamental ter êxito ou fracassar em seu próprio

autorretrato. A propensão patológica e distúrbios psicológicos, segundo Rank (2013), causam

a cisão da personalidade e a maior acentuação do Eu-complexo diante do próprio sujeito.

O tema do duplo, com isso, segundo Rosset (1998), em geral, está associado aos

fenômenos de desdobramento de personalidade (esquizofrênica ou paranoide). No entanto, o

duplo está contido em um espaço cultural infinitamente mais vasto, isto é, no campo de toda

63

ilusão, já presente, por exemplo, na ilusão oracular ligada à tragédia grega e aos seus

derivados (duplicação do acontecimento), ou na ilusão metafísica inerente às filosofias de

inspiração idealista e a duplicação do real em geral: o “outro mundo”.

Nas narrativas míticas, em síntese, o duplo ocorre devido à união entre dois contrários,

ou ainda, entre dois iguais. Nas lendas oraculares, há algo aparentemente concreto, podendo

ser chamado de destino, que designa o caráter do imprescindível. O destino existe enquanto

elemento real, determinado de maneira independente de qualquer previsibilidade, embora,

talvez, o oráculo possa anunciar seu modo de ação. No entanto, a profundidade e a verdade da

palavra oracular estão aquém de predizer o futuro, mas a de exprimir a necessidade opressora

do presente, o caráter inelutável do que acontece no agora. A predição antecipada tem um

valor simbólico, projetando no tempo aquilo que aguarda o homem a cada instante de sua vida

presente: o reconhecimento – efetivação de “um outro acontecimento”, esperado, que, talvez,

nem se tenha pensado e imaginado, mas, que, apesar disso, o acontecimento real apagou e, ao

ser realizado, move a estrutura do fundamento ao duplo.

Nada distingue, na realidade, este outro acontecimento do acontecimento do

real, exceto esta concepção confusa segundo a qual ele seria, ao mesmo tempo, o

mesmo e um outro, o que é a exata definição de duplo. Descobre-se, assim, uma

relação muito profunda entre o pensamento oracular e o fantasma da duplicação, que

explica a enigmática surpresa associada ao espetáculo do oráculo realizado (Rosset,

1998, p. 39).

A paralisação, acarretada diante da impossibilidade de se prever a ação do destino e os

possíveis desencadeamentos trágicos, remete ao parentesco com a maldição, pois, ela é

64

cultural e rompe com uma força contida e silenciosa do passado. Giora (2015) aponta, nesse

sentido, que os mitos têm a função de representar o absurdo, o inexplicável. São relatos de um

passado distante, que, ainda marcam uma trama permanente ligada ao presente, a qual irá

determinar o futuro, como em Édipo.

A estrutura metafísica do duplo tende a depreciar o real, privando-o de outras

realidades e esvaziando o presente de todos os fatos passados, como, também, em todas as

possibilidades futuras. Todavia, o tema da duplicação não está necessariamente ligado a uma

estrutura de pensamento metafísico. Pode-se imaginar também estruturas não metafísicas da

duplicação, que, ao contrário, enriquecem o presente com todas as potencialidades, tanto

futuras quanto passadas.

O aparecimento do duplo também pode estar relacionado com o despertar da

autoconsciência do sujeito, visto que o desdobramento tem, muitas vezes, um benéfico poder

revelador para o indivíduo, que reconhece e identifica, na semelhança do duplo, aspectos até

então desconhecidos de seu próprio caráter. Outras vezes, contudo, o processo revela um mal,

uma doença ou até mesmo a finitude da existência humana, suscitando dessa forma o espanto

e o horror. Os desdobramentos das imagens do Eu, as autoduplicações da consciência podem,

portanto, revelar tanto a semelhança quanto a diferença. Contudo, a aversão ao “outro”,

produzida pelo duplo antagônico, possui uma força ainda mais terrível: o mal, não

identificado como o que é radicalmente diferente, mas sim com algo que mantém, com o

sujeito, uma estranha familiaridade.

O paradoxo do duplo estabelece o conceito de permanência na mudança, porém, não

se realiza a fim de duplicar a realidade em novas categorias e novos conhecimentos. A

conservação da essência originária do duplo não caracteriza a solicitação do pensamento real.

“Podemos, agora, notar que a dobra se desdobra em muitas dobras. Esse desdobramento no

65

tempo da memória origina- como diá-noia e diá-logo a travessia de cada um, uma travessia

que se experiencia poeticamente na dobra poética e obra poética” (Castro, 2009, p.105).

Em muitas religiões tradicionais, há a separação entre o corpo e a alma. A coexistência

de forças antagônicas do bem e do mal também se encontram em praticamente todas as

formas de pensamento e comportamentos humanos e, com isso, apontam a natureza dupla do

homem, cujas metades estão em perpétuo conflito. Segundo a enciclopédia Homem, Mito e

Magia (1974), todo homem é acompanhado, em sua vida, por duas extensões de sua

personalidade: uma boa e luminosa, e outra má, negra e ameaçadora.

A maioria das crenças religiosas prevê um grupo de divindades, onde há a

preeminência de dois líderes. Por exemplo, no zoroastrismo, os dois princípios opostos são

Ormuz, criador, representante das forças do bem; enquanto, Arimã é comandante das forças

malignas. Arimã e seu exército de seres do mal vivem para molestar a criação de Ormuz, no

entanto, estas duas forças se misturam sorrateiramente, a fim de tentar exercer seus ofícios e

poderes. Contudo, conforme estipula a religião, os adeptos do mal serão vencidos e lhes será

erradicada toda a força maléfica.

A simbologia ao redor do algarismo dois, para Chevalier & Gheerbrant (1997)

contorna a oposição e o conflito, e pode sugerir tanto o equilíbrio quanto o desequilíbrio. É

por meio do número dois que todas as divisões ocorrem. Também pode ser considerado o

algarismo do desdobramento e das ambivalências, pois, por meio de seu simbolismo, indica

tanto a rivalidade quanto a reciprocidade, o ódio e o amor, o que oferece a incompatibilidade

e a semelhança.

Os conceitos mais primitivos sobre a ideia de um “outro eu” influenciaram largamente

a crença popular até os séculos XVIII e XIX, uma vez em que se acreditava que a alma podia

escapar do corpo, ser roubada ou ser projetada para fora dele, por um ato de vontade. Além da

66

alma, reflexos no espelho, sombras, duplo etéreo, corpo astral e o conceito cristão de anjo da

guarda são as variedades nos nomes apontados ao fenômeno do duplo. A palavra aura é

utilizada pelos ocultistas para designar uma nuvem tênue ou de aparência luminosa, a qual é

vista envolvendo o corpo humano. Já o duplo etéreo é um puro elemento refinado, com

aparência brilhante ou ainda pode ser o “corpo mental” e até mesmo o centro espiritual do ser

humano.

Apesar do fenômeno do duplo ser um tema imemorial e estar presente mesmo na

literatura mais recente, ele apresenta-se como marca do movimento romântico. O duplo nesse

contexto assume, sobretudo, a feição da cisão interior do Eu, aos problemas da identidade e a

fragmentação da personalidade, devido às fragilidades dos limites entre o imaginário e o

princípio da realidade. O sujeito inserido nesse momento histórico representa o saber

enquanto uma entidade transitória e em crise (Giora, 2015).

O duplo, para Rank (2013), no Romantismo simbolizou um sujeito que se vê cindido

em dois, movido por forças antagônicas que lutam internamente e podem levá-lo até mesmo a

autodestruição. Foi nesse período, contudo, que se conceberam as ideias de inconsciente, de

valorização dos sonhos e dos símbolos, onde tais temas ganham um caráter trágico, expressos

na criação artística em vários países.

Para Hauser (1998), no contexto do movimento romântico, o sujeito perdera todos os

apoios extremos. Era dependente de si mesmo, tinha de procurar auxílio interior e tornando-se

o seu próprio objeto de infinito interesse. Considerava o mundo meramente a matéria-prima e

o substrato de suas próprias experiências e utilizava-o como pretexto para falar a seu próprio

respeito. O espírito do novo tempo é o do desajustamento, do sentimento de geração perdida,

da fixação de uma postura evasiva, cética, à qual não faltava a atração pela morte, do

platonismo amoroso e da atmosfera configurada do desajuste.

67

Quanto mais inatingível, inconstante e insubstancial o mundo se apresenta,

mais forte, mais livre e mais autônomo será o sentimento do sujeito que luta por

autoridade. [...] todo o subjetivismo aparatoso, o impulso irresistível para o

alargamento espiritual, o lirismo jamais satisfeito e que a si próprio continuamente se

transcende na nova arte só podem explicar-se por essa divisão do ego (Hauser, 1998,

p. 682).

Rosenfeld & Guinsburg (1985) pontuam que os românticos veem o homem, em

sentido mais profundo, como um ser cindido, fragmentado, dissociado. Em função disso,

sentem-se criaturas infelizes e desajustadas que não conseguem se enquadrar no contexto

social e que tampouco querem fazê-lo, uma vez que a sociedade apenas iria cindi-las ainda

mais. Entre consciente e inconsciente, deveres e inclinações, trabalho e recompensa, a brecha

apenas poderia crescer como parte de um afastamento cada vez maior entre natureza e

espírito. Daí o sentimento de inadequação social; a aflição e a dor que recebem o nome geral

de mal du siècle; a busca de evasão da realidade e o anseio atroz de unidade e síntese, que

tanto marcam a “alma romântica”.

A subjetividade unificada, no entanto, é cindida. Dividida em sua unicidade, tenta

desesperadamente unir seus antípodas. A produção romântica faz-se, consequentemente, a

partir da tentativa de fusionar os opostos em todas as suas manifestações. Os românticos

haviam estado na escola da sensibilidade, da filosofia da reflexão e do culto do Eu. Em

decorrência disso, tudo se tornou mais uma experiência, pois, essa subjetivação tinha de ter

consequências, visto não haver nenhum outro objeto em torno, a não ser o grande e

apavorante Eu.

68

A partir do Romantismo, encontra-se, de um lado, o sujeito fantasioso, imprevisível,

de alta complexidade psicológica, centrado na sua imaginação e sensibilidade, gênio intuitivo

investido de missão por lance do destino ou impulso inerente à sua personalidade, que é o

herói romântico, encarnado de uma vontade antes social do que pessoal, apesar da forma

caprichosamente subjetiva de seus motivos e decisões e, de outro lado, um ser ou organismo

coletivo dotado de corpo e alma, de alma mais do que de corpo, cujo espírito é o centro de

uma existência conjunta. O subjetivismo romântico, baseado na exaltação de uma fantasia,

muitas vezes, arbitrária, coloca acima de tudo o Eu criativo, justificado, porém, quando

destrói a própria criação pela intervenção da ironia, que nega sua própria forma e invalida os

valores do senso comum.

Ao se reproduzir um “eu-outro” e não um “eu-mesmo”, a duplicação é tomada como a

descontinuidade de si mesmo que, no caso, por exemplo, dos poetas, em especial dos

românticos, exerce uma função propriamente de ser o seu senhor. Nessa perspectiva, a

mímese deve ser vista antes como ato e não como a indicação de que a poesia refere-se a algo

preexistente e que ela reproduz.

De acordo com Suzuki (1993), o gênio filosófico tem uma definição dupla: gênio e

gênio do gênio. O gênio romântico será interpretado em uma literatura mais kantiana, como

“sistema de talentos” e conjunto orgânico das faculdades da mente. Quando analisado sob o

plano mais fitchiano, seria a genialidade duplicada e potencializada: “plural interior”. O gênio

é o organismo espiritual que organiza indivíduos, isto é, como gênio, as individualidades que

compõem o sistema são unificadas de tal modo que filósofo e homem sejam apenas um –

tanto no sentido da individualidade quanto da singularidade – e este ponto é o que ambiciona

a proposta romântica. A unidade viva do sistema exige um sistema individual, único e

69

original, somente sendo possível porque é o sistema deste homem ser ao mesmo tempo

filósofo e, enquanto humano, requer um caráter próprio e original.

A vida interior, para os românticos, aparece então como labirinto sem saída, segundo

os estudos de Moisés (2007), pois é povoada por recantos secretos, visões e sombras, que, ao

mesmo tempo, oferecem ao poeta a posse do que lhe parece ser seu Eu profundo, verdadeiro,

e o tornam um estrangeiro para si mesmo - o alter ego, vinculado a uma dimensão de

realidade que o ultrapassa. Com a marca dessa forma irracional, o poeta romântico se

desvenda rumo ao onirismo e ao inconsciente, às forças misteriosas da Natureza e aos mitos

arcaicos.

O conflito interior da alma romântica se reflete de modo direto e expressivo à figura

do “segundo eu”, que está sempre presente ao espírito romântico e se repete em inúmeras

formas e variações na literatura também romântica. A fonte desta ideia fixa, segundo Hauser

(1998), vem por meio do impulso à introspecção, na qual há uma tendência de auto-

observação e compulsão do sujeito rumo ao desconhecido, ao estranho e ao remoto. Também

pode representar uma tentativa de evasão dos românticos no sentido de não se submeter ou

aceitar sua própria condição histórica e social. Tal duplicidade precipita-se a tudo que seja

obscuro e ambíguo, caótico e extático, demoníaco e dionisíaco e busca, a partir disso, o

refúgio de realidade que é incapaz de dominar por meio racionais.

É típica do Romantismo a tematização da dupla ou tripla identidade, como percebido,

por exemplo, na obra musical de Schumann, em que a posição existencial torna-se

insustentável, pois se coloca a uma altura na qual se vê embaraçado, sem forças para subir e

sem condições de descer, de fato, onde se opera o terreno da humana convivência. Os que

fragmentavam ou extravagavam enlouqueceram ou morreram, ou ambos, o que foi o destino

de diversos românticos notáveis. Sobre tal temática, Hoffmann (apud Kiefer, 1985, p. 214):

70

aponta: “A música de Beethoven move as alavancas do estremecimento, do temor, do horror,

da dor e desperta aquela nostalgia infinita que é a essência do Romantismo”.

A ideia romântica é a de que personagens com semelhanças intrínsecas ou diferenças

complementares, fazem parte de um mesmo princípio ou de uma mesma existência. O duplo

enquanto garantia da emancipação da cópia, eleva-se à posição de repetição, pois, é através da

imitação que o simulacro se emancipa e a necessidade de encontro com a unicidade

constituiria a marca ontológica do ser original. No Romantismo, como aponta Giora (2015),

fundir-se com o seu duplo, tornar-se uno por meio dele, denota, através disso, a tentativa de

reencontro com a unidade perdida.

Baseando-se nas formulações de Schlegel e Schelling quanto às ideias de duplicação,

Suzuki (1998) realça que a cisão acontece quando há dois princípios, um superior e o outro

inferior, onde se estabelece uma luta por clareza, uma conversação interior e misteriosa,

propriamente filosófica. A arte interior da qual a arte exterior é “reafigurada” formaria a

dialética. O duplo, portanto, não seria apenas o reflexo do Eu, mas um Eu real. Todos os

elementos percebidos como fora do Eu, na verdade, seriam inteiramente iguais. Seria um

“contra-eu vivo”, um tu, no qual, contudo, é colocado distante do Eu.

Essa cisão [em dois princípios, um superior e outro inferior], essa duplicação

de nós mesmos, esse comércio secreto de dois seres, um que pergunta e outro que

responde um que sabe, ou melhor, que é a própria ciência, e outro que não sabe, que

luta por clareza, essa arte da conversação interior é o mistério propriamente dito

filosófico, arte interior da qual a arte exterior, que daí se chama dialética, é apenas a

reafiguração [ou cópia: Nachbild] e, onde se torna mera forma, é aparência vazia e

sombra (Schelling apud Suzuki, 1998, p. 163).

71

Ainda, nas formulações de Suzuki (1998), o espírito do idealismo transcendental

somente pode encontrar explicação mediante a sociabilidade, não apenas pelo “não-eu”, mas,

através da presença misteriosa de um “tu”. A decifração do sentido que o “tu” representa para

o “Eu” garante a pressuposição heurística do mais completo idealismo, uma vez que tudo o

que existe fora do “Eu” não é o “não-eu”, mas a própria egoicidade (Ichheit), o proto-eu (Ur-

Ich), do qual o finito desola-se e continua sendo parte (Stück).

O Eu absoluto cria o não-eu, limitando-se pela contraposição de uma realidade

aparente a fim de poder atuar contra resistências autoimpostas. O Eu, enquanto uma eterna

vontade atuante opõe-se a barreiras, a fim de superá-las, podendo atuar e lutar diante do

mundo. Desse modo, impõe sua liberdade moral em face das leis da natureza e da sociedade.

Portanto, dentro de si, o Eu infinito, o homem empírico, limitado às necessidades naturais,

procura tornar-se um Eu puro e livre.

Rosenfeld (1996) enfatiza a influência que exerceram sobre os românticos o conceito

de “Eu absoluto”, de Fitche e a filosofia da “Identidade”, de Schelling. A Identidade e a

unidade são princípios essenciais à filosofia romântica, visto as tentativas de superação dos

dilaceramentos da civilização moderna. A Identidade, por sua vez, tem fundamentos, sendo

eles: o lógico e o alógico, a necessidade (natureza) e a liberdade (espírito). Seu símbolo

perfeito é o Belo, que reúne e procura superar todas as dicotomias, bem como seu princípio

que é a coincidentia oppositorum de todas as antinomias, que exerceu fascínio imenso sobre

os românticos. A manifestação à unidade original estimulou à tendência ao mito e à procura

pela unidade perdida, ao misticismo.

A civilização que havia perdido a unidade e dilacerava-se em antagonismos, o que

desencadeou nos românticos experiências de fragmentação e alienação, contrapõe-se, a partir

72

disso, ao ideal de integração e de síntese. Contrapõe-se ao desejo de fusão e conciliação, a fim

de se conseguir a superação dos choques entre o sujeito e o mundo, entre o Eu e a sociedade,

entre a consciência e a inconsciência, a natureza e a civilização.

Dessa forma, o pensamento romântico foi conduzido a uma posição que não

compactua com a tensão e conflitos trágicos enquanto inconciliáveis. Tal postura contribui

para que muitos românticos alemães tendessem a preferir a comédia ou outros tipos de

fantasias do maravilhoso, para que, com isso, superassem os conflitos processados pela

própria lei do universo das fadas. A duplicidade humana, para Rosenfeld (1996), é ao mesmo

tempo trágica e cômica, porque nela reside a elevação e a fraqueza do homem.

A consciência de si e da sociedade em que se vive desgasta a ambição romântica pela

unidade. Portanto, as antíteses absolutas não acolhem uma síntese absoluta, a menos que seja

realizada uma aproximação infinita, na qual implique em um movimento constante:

Esse oscilar entre as contradições, diz Novalis, exige “uma versatilidade

infinita do intelecto culto que pode retirar-se de tudo, virar e inverter tudo, conforme

quer”. [...] “deve-se sentir-se, portanto, em disponibilidade ilimitada para as mais

diversas tendências‟. Para caracterizar alguém “é preciso ser o mesmo e, apesar disso,

outro...”. ou então: “Para entender alguém que se o entenda primeiro totalmente e

melhor que ele a si mesmo e, em seguida, só pela metade, exatamente como ele a si

mesmo” (Rosenfeld, 1996, p. 158).

No Romantismo, os conflitos naturais da própria condição humana se convertem em

uma forma básica de consciência de elementos duais, a fim de se tornar uma realidade

73

unitária. Vida e espírito, natureza e cultura, história e eternidade, solidão e sociedade,

revolução e tradição deixam de se apresentarem como correlativos lógicos ou alternativas

morais e passam a ser vistas como possibilidades para que cada um se esforce para realizá-los

simultaneamente. Ainda não estão, porém, dispostas em oposição dialética mútua. Não há

uma busca de possibilidades experimentadas e manipuladas. Idealismo e espiritualidade,

irracionalismo e individualismo não dominam sem oposição, pelo contrário, se alternam com

uma tendência igualmente forte para o naturalismo e o coletivismo. Maroni (2008) destaca

que a relação romântica do sujeito com o mundo não seja a de oposição, e sim a de

implicação mútua, uma vez que cada ser possui apenas uma verdade parcial; diferente para

cada um: verdades incertas em estado errante.

O contato entre sujeito e sociedade, no Romantismo, remonta ao fato de que em cada

época histórica existe o Zeitgeist, isto é, o conjunto do clima intelectual e cultural do mundo,

o qual possui determinadas características de uma dada época. O conceito de “espírito de

época” ou “espírito do tempo” remonta aos românticos Herder e Hegel, os quais enfatizavam

que determinado artista é um produto de sua época, carregando sua cultura e seu momento

histórico em suas produções.

Der Zeitgeist – “o espírito unificador”, como foi pontuado por Rosenfeld (1996),

indica que, mesmo em uma cultura complexa, com alta especialização e autonomia das

diferentes esferas, as ciências, as artes e a filosofia são interdependentes e se influenciam

entre seus campos. Além do mais, a “unidade de espírito” e o sentimento da vida carregam,

em certa medida, todas as agitações próprias de seu contexto, perceptíveis nas obras dos

artistas.

Sendo assim, nas obras artísticas, em maior ou menor grau, há o “processo de

desrealização”, no qual, por exemplo, a pintura ao deixar de ser mimética recusa a função de

74

reproduzir ou copiar a realidade empírica, sensível. A abstração e a desindividualização

evidenciam a tentativa dos artistas em ultrapassar a dimensão da realidade sensível para se

chegar a uma essência absoluta.

As formas relativas da consciência, o tempo e o espaço, de acordo com Rosenfeld

(1996), sempre foram manipuladas como se fossem absolutas, contudo, com o “espírito

unificador”, elas passam a ser processadas como relativas e subjetivas. A consciência e a

própria vida psíquica põem em crédito seu direito de se impor às coisas, do mesmo modo que

a ordem já não parece corresponder-se à realidade verdadeira. No entanto, a dificuldade

encontrada por boa parte do público em adaptar-se à arte moderna decorre de que ela nega o

compromisso com o mundo empírico das “aparências”, ou seja, com o mundo temporal e

espacial, posto como o real e absoluto pelo realismo tradicional e o senso comum. A visão de

uma realidade mais profunda, mais real do que a do senso comum é incorporada à forma total

da obra e essa visão torna-se mais válida em termos estéticos.

Certos grupos românticos, ainda, segundo Rosenfeld (1996), ansiavam atingir pela

autoexpressão uma verdade objetiva: a constituição de um mundo íntimo estabelece a verdade

do universo exterior, algo semelhante às teses expressionistas. A imaginação

“transcendental”, por sua vez, seria a condição de realidades essenciais, todavia o

“objetivismo” revelaria uma forma velada do subjetivismo radical, visto que o “não-eu” seria

seu símbolo e teria como finalidade a autocompreensão do Eu. Porém, ao desejar o contato

objetivo com a realidade substancial, o romântico não é capaz de abandonar sua subjetividade

solitária a fim de conseguir entrar e encontrar uma “verdade”. Nesse caso, mediante uma

nostalgia ou um prazer estético, o sujeito fixa-se em um estado prazeroso mórbido, o que faz

com que tirem uma satisfação da insatisfação.

75

Apesar da aspiração de objetivar a realidade e diante ao cenário desolador do

Romantismo do século XVIII, tal perspectiva tende a desaparecer, porque não existe mais um

mundo exterior para se projetar. O fluxo psíquico a ser englobado seria dirigido a um plano de

tela, como uma espécie de “monólogo interior radical”, o qual é o “espaço” em que se

manifestam as crises do sujeito e de seu tempo. Há uma relação entre dois polos: o homem e o

mundo projetado, que se efetua através de uma ruptura.

A vontade de superar a distância entre o sujeito e o mundo desacredita nos dogmas

iluministas da consciência humana frente ao mundo e não confia mais na possibilidade de se

construir, a partir dela, uma realidade verdadeira e real. O sentimento da “consciência infeliz”

provoca um sentimento de angústia, a que os artistas e intelectuais românticos procuravam

encontrar uma posição permanente para tal busca, exprimindo-se, por exemplo, na

experimentação dos gêneros literários e na liberdade poética. Desse modo, instala-se uma

ambição de fugir para outro mundo ou outra época, em que o homem, ilusoriamente, estaria

em sintonia com a vida universal e, a partir disso, não haveria os contornos desejados, as

definições e a necessidade de um encontro com o “verdadeiro” e “real” Eu (Rosenfeld, 1996).

A decomposição da personalidade do sujeito e o “achatamento” do objeto perante a

imensa realidade social sufocam o “elemento humano” e a possibilidade de se tornar um Eu,

isto é, realmente um indivíduo. As redefinições das situações de homem, de sujeito e de

indivíduo, são tentativas que revelam o esforço em assimilar o “espírito unificador” e a

posição precária da vida no mundo moderno. Os indivíduos, para Rosenfeld (1996), quase

desindividualizados no Romantismo, são lançados, por exemplo, em relatos de histórias

fantásticas, acontecimentos sobrenaturais, fatos misteriosos e inexplicáveis, cenários estes

onde desaparece o fluxo psíquico, a ordem lógica dos fatos e acontecimentos, a fim de que a

consciência das personagens se manifeste como um Eu que ocupa uma tela imaginária.

76

Os românticos, dessa forma, são forçados a refletir acerca das leis da vida e da

sociedade, assim como a respeito de sua própria subjetividade, que se torna um refúgio e um

processo de autodescoberta em um universo desconhecido de si mesmo. O homem romântico

isola-se, tornando-se seu próprio objeto e privado pela consciência do agir, visto que a crise

do período romântico tornou-se, para ele, também, uma crise do Eu.

E, o Romantismo, conforme já fora mencionado neste trabalho, precipita alguns

elementos da psicanálise, como a teoria de conhecimento sobre o Eu e o método subjetivo de

interpretação do mundo, pois, através de uma vida singular e da procura pelo

autoconhecimento, as diversas realidades de cada vida poderão ser vistas sob novos ângulos,

como permite a construção identitária do sujeito.

Figueiredo (2014) revela que foi com o Romantismo que as redefinições entre o

sujeito e o objeto tornaram-se perceptíveis. Desse modo, a palavra “sujeito” deriva do latim

subjectus, que é o particípio passado de subicere, significando “colocar sob, abaixo de”;

formado por sub- (“sob”) mais a forma combinante de jacere, “lançar, atirar”. Assim,

“sujeitar” tem a mesma origem. O sujeito, portanto, é alguém que se encontra em posição

inferior em determinado momento, revelando também a descaracterização dos elementos do

comportamento humano. Etimologicamente, o vocábulo “indivíduo” vem do latim individuus,

que significa “indivisível, uno, o qual depende de sua integralidade”. Aplica-se este termo há

outros seres, além do humano. O conceito de indivíduo refere-se, também, como sendo

sinônimo de particular, que não se divide e é capaz de uma existência independente.

No entanto, o próprio indivíduo é observado como um ser fragmentado, um “divíduo”,

visto que o homem é pelo menos dois, ou seja, por exemplo, é cindido entre o seu ser

consciente e o seu ser inconsciente. A psicanálise, portanto, apresenta a noção de sujeito

cindido, o qual é contraposto ao sujeito uno, ao indivíduo da psicologia da consciência,

77

herdeira do cartesianismo. A partir disso, a dimensão da estranheza é pertinente ao Eu, que se

insere e que o faz sujeito (Tavares, 2012; 2017).

Portanto, o sujeito no Romantismo é solitário, sem unidade; não se encontra, não se vê

e busca, com isso, construir a sua identidade. No entanto, esbarra-se nos fenômenos do duplo.

Nesse caso, diante do “espírito do tempo” e da afirmação de sua própria subjetividade, o

sujeito, vislumbra-se com “um outro”, um estrangeiro de si que, sendo cindido, reflete a

multiplicidade e os problemas de assimilação com a multiplicidade de seus Eus, com as suas

naturezas e as diferentes facetas de sua personalidade, as quais formam um conjunto de seu

próprio Eu-complexo.

A ausência de referências, a sensação de desamparo e as imagens multiplicadas do Eu

fazem com que o homem romântico, envergonhado ao fugir e esconder de si, ceda espaço ao

duplo. No entanto, o duplo é parte do seu Eu ou de seus vários “Eus”, que ainda se encontra

em um processo de conhecimento e de reconhecimento. Estes que são caminhos constantes e,

até mesmo eternos para a busca de si. O duplo, por sua vez, enquanto fenômeno do Eu e dos

dualismos românticos, aspira, de forma idealizada e ilusória a uma possível integralização,

enquanto ideal absoluto para os românticos, para que, com isso, se torne um princípio, mesmo

que subjetivo e relativo, devido às diversas realidades pertinentes a cada sujeito. O duplo,

desse modo, representa o perpétuo conflito do ser, que tem com a dialética da existência a

busca pela atividade de compreensão de unidade, atrelada às perdas referentes diante da

origem e da própria essência do sujeito.

Contudo, o Eu que é um “divíduo” sofre as interferências do inconsciente e o trabalho

para as descobertas da interferência dessa instância na vida do sujeito será constante e árdua.

Deverá ocorrer uma “versatilidade infinita” quanto ao esclarecimento de suas emoções, onde

78

o inconsciente “vira e inverte tudo, conforme quer”. Determinados processos da vida psíquica

para serem elaborados precisam ser compreendidos e preenchidos.

Existem experiências não-sensorialmente apreensíveis, ou em linguagem filosófica:

experiências não-sensíveis. Segundo Sandler (2000b), é perceptível a existência do

inconsciente. Sendo assim, não se trata apenas do consciente substituir o inconsciente

estendendo o campo de percepção, mas de perceber ou de intuir a sua existência. Por

exemplo, a percepção individual de inveja não implica domínio ou eliminação da

característica invejosa. Implica levar-se em conta tal traço e estar vigilante. Neste sentido,

pode-se falar em “percepção do inconsciente”, “percepções inconscientes” e “emoções

inconscientes”.

Um inconsciente sendo percebido em sua própria existência, não em sua

essência ou alguma pretensa materialidade que ele não possui, a despeito das várias

descrições de seu funcionar. [...] Perceber a existência equivale a experimentar e

apresentar, sendo vivido. Não implica conhecer em sua plenitude, totalidade,

essencialidade e extensão, e muito menos explicar, entender, desvendar símbolos que

solucionam o mistério que distinguem a chama do desconhecido. Conhecer o

inconsciente os seus conteúdos de modo causal ou final seria conhecer “O” (Sandler,

2000b, p. 24).

A respeito das percepções inconscientes, Freud (1940 [1938]/(1996a) menciona as

relações entre a percepção e o aparelho psíquico, uma vez que tais mecanismos são possíveis

em virtude dos supostos elementos psíquicos do isso (processo primário), os quais se diferem

da percepção consciente da vida intelectual e afetiva. Todavia, o isso isolado do mundo

79

externo possui um universo próprio de percepções. Em especial, onde oscila as necessidades

pulsionais, que se tornam conscientes, como sensações na série: prazer e desprazer.

Estabelecidas as autopercepções, sensações cinestésicas e sensação de prazer-desprazer, estas

irão governar com soberana tirania os processos do isso. A percepção corresponde, portanto,

ao núcleo de um objeto, uma espécie de miragem de movimento, que, necessariamente, tem

uma identidade, mas apenas em se tornando uma delegação.

Dessa forma, o duplo, no Romantismo, simboliza a busca, mesmo que idealizada e

ilusória pela unidade correspondente a cada sujeito. O Eu ou os diversos “Eus”, em conjunto

com o “tu”, deverão englobar o nós. Safranski (2010) salienta que a existência humana, na

qual a pessoa deverá formar uma personalidade, não seja uma questão suficiente, pois, deverá

haver um terceiro elemento a ser entendido que não é a liberdade obtida individualmente, mas

através de um empreendimento coletivo.

Um caminho dividido é o mesmo que um caminho triplo. Dois é o mesmo que

três. Se estamos andando e chegamos a uma ramificação dele, há dois caminhos pelo

quais podemos seguir, pois o terceiro é o que se acabou de trilhar. Para quem, ao

contrário, não está andando, mas simplesmente olhando o mapa dessa ramificação, vai

parecer haver três caminhos a seguir. A ação vê apenas dois caminhos, a contemplação

vê três. (Rudnytsky apud Murad, 2014, p. 11).

Os duplos, como pares apresentados a si e aos outros como fragmentados, revelam, na

verdade, duas metades de um terceiro a ser cindido, assim como metades que se procuram e

se prosseguem enquanto duplos. A integralização do duplo, entretanto, não resiste à solidão,

se efetuando em sintonia entre o Eu, o “tu” e o nós.

80

Com o duplo expulso, as unidades encontradas representariam o anjo e o demônio

românticos, os quais deveriam ter o caráter passageiro, cedendo lugar ao homem em sua

integralidade. Nesse sentido, os processos irônicos românticos sobre a autoconsciência da

obra mostram-se apenas materiais. No fracasso da representação do Eu, o assunto passa a ser

ele mesmo.

Muitas vezes, identifica-se no Romantismo uma revolta contra algo que tenha ou teria

sido perdido – o “paraíso perdido”. Para Maroni (2008), essa experiência pode também ser

chamada de busca, de audácia das travessias com a vivência das múltiplas moradas da alma,

com o inusitado aprendizado que conduz para o impossível: o lugar inencontrável. Transitar

pode criar interioridade, convivência com a incerteza; convivência com o não saber, com o

mistério, para que o “ser” possa fazer-se presente em um “lugar”, onde se torna permitido o

experienciar: a esperança.

No entanto, em algumas fugas da realidade dos românticos, descobre-se o

“inconsciente”, aquilo que está oculto e seguro para a mente racional: a origem de seus

sonhos de realização de desejos e das soluções irracionais de seus problemas. Ainda, para

Hauser (1998), descobre-se o habitar de duas almas em um mesmo corpo, o qual carrega seu

demônio e seu juiz e, ainda neste momento, se precipita a descoberta da psicanálise, fundada

posteriormente por Freud.

O duplo e os fenômenos irracionais têm a vantagem de não estarem subordinados ao

controle consciente, motivo pelo qual enaltece o inconsciente, os instintos obscuros, os

estados oníricos, os devaneios e êxtases de alma, buscando neles a satisfação que não lhe é

assegurada pelo frio e crítico intelecto. Por isso, a crença nas experiências diretas e nos

estados de ânimo, a entrega ao momento e à impressão fugaz. Loureiro (2002) acentua a

questão fundamental de que a psicanálise será a herdeira do Romantismo Alemão: o

81

inconsciente, o qual, no início do século XIX, os românticos propõem como núcleo de seu

programa estético, será retomado por Freud, no início do século XX, como núcleo de sua

Metapsicologia.

No artigo de Freud (1919/2010) intitulado, Das Unheimliche, [O inquietante], ele

inclina-se a trabalhar com outras camadas da vida psíquica; com emoções atenuadas, que

dependem de fatores concomitantes constituídos pelo material oferecido pela estética,

valendo-se, neste texto, da narrativa O Homem de Areia (1817/2012), de autoria de

Hoffmann.

A palavra alemã unheimlich [estranho, não familiar] e é alheia a heimlich [doméstico],

heimisch [nativo], vertraut [doméstico, autóctone, familiar], o que concluí que algo se torna

assustador justamente por não ser nem conhecido e nem familiar. Algum acontecimento novo

faz-se facilmente assustador e inquietante, contudo, algumas circunstâncias novas são

assustadoras e outras não, pois, há a necessidade do elemento inquietante a fim do novo, e do

não familiar se tornar assustador. Freud (1919/2010) refere-se aos estudos de Jentsch, quanto

à condição essencial para o surgimento do sentimento novo e não familiar, o qual seria a

condição de incerteza intelectual, podendo este sentimento variar de pessoa para pessoa. O

inquietante, portanto, causaria o espanto, visto que o sujeito seguro e orientado acerca de seu

ambiente dificilmente terá a impressão de algo inquietante nas coisas e eventos.

Freud, ainda, no início de seu texto explora os significados e a evolução da palavra

unheimlich, que, de maneira geral, denota vivências e situações nas quais se desperta o

sentimento do inquietante, do que é fora do comum ou, além disso: o inquietante poderia ser

nomeado enquanto uma espécie de elemento assustador que retoma a algo conhecido e

bastante familiar. A vivência da sensação de estranheza, da “inquietante estranheza familiar”,

depende de condições simples e uma abrangência das mais complexas.

82

O conto inicia-se com o jovem Nathaniel escrevendo uma carta para seu amigo Lothar,

sobre a experiência que acabara de ter: estava em seu quarto, quando batem à porta e, ao abri-

la, assusta-se com o homem que vê, trazendo uma lembrança de sua infância - a de um

vendedor de barômetros, amigo de seu pai. Ao avistar esse homem, Nathaniel o coloca para

fora. Ao descrever o relato da experiência, o jovem se recorda, por exemplo, da casa de sua

família, onde após o jantar, todos ficavam em torno de seu pai. Mas, de vez em quando, as

crianças eram colocadas na cama mais cedo, pois o Homem de Areia iria chegar. Nathaniel

ouvia os passos do visitante, com quem o pai estaria ocupado durante certas noites.

O protagonista ouviu de sua babá que o Homem de Areia era um sujeito perverso, que,

se chegasse antes das crianças ainda estarem deitadas, jogava areia nos olhos delas, fazendo

com que saltassem fora e, depois, colocava os olhos em um saco e os levava para alimentar

seus netos na lua. Para descobrir mais sobre tal Homem, Nathaniel se escondeu no escritório

de seu pai, na noite em que o visitante era esperado, reconhecendo o visitante como o

advogado Copellius. De seu esconderijo, ele descobre que o visitante e o pai parecem fazer

um experimento alquímico. Descoberto, ele é ameaçado de ter seus olhos arrancados e

desmaia. No entanto, o Homem de Areia ainda volta outra vez a sua casa e ocorre uma

explosão, a qual mata o pai de Nathaniel.

Depois de muitos anos, Nathaniel reconhece Copellius no vendedor Copolla e, diante

disso, a fim de ficar mais calmo, decide comprar qualquer coisa do vendedor. Ele compra um

binóculo, com o qual, porém, consegue ver Olímpia, por quem se apaixona. O jovem

enlouquece ao descobrir que Olímpia é uma boneca, construída por Copellius/Copolla.

Vindo de uma longa e severa doença, Nathaniel fica internado em um manicômio.

Após aparentar estar curado, reencontra a sua noiva, Clara e tenta jogá-la do alto de uma torre,

após olhar novamente pelo binóculo. Pouco tempo depois ele se joga da torre.

83

O sentimento do inquietante, portanto, de acordo com Freud (1919/2010), está

diretamente ligado à figura do Homem de Areia, visto que o medo de ferir ou perder os olhos,

como destaque em um dos temas da narrativa, é uma angústia infantil, embora, muitos adultos

ainda a conservem. Nos estudos psicanalíticos do autor acerca dos sonhos, das fantasias e dos

mitos, o medo em relação a ficar cego é frequentemente um substituto para o medo da

castração. O ato de cegar-se remete a Édipo, quanto a uma forma amenizada do castigo da

castração. Ainda, sobre o aspecto inquietante do Homem de Areia, Freud refere-se à angústia

do complexo infantil da castração e o retorno do recalcado:

Pois por que esse medo é aí colocado em relação íntima com a morte do pai?

Por que o Homem da Areia sempre surge para perturbar o amor? Ele separa o infeliz

estudante de sua noiva e de seu melhor amigo, que é o irmão daquela; ele destrói seu

segundo objeto de amor, a bela boneca Olímpia, e leva o próprio estudante ao suicídio,

quando é iminente a sua feliz união com Clara, após tê-la reconquistado. Esses e

outros traços da narrativa parecem arbitrários e sem sentido, quando é rejeitado o nexo

entre o medo relativo aos olhos e a castração, e tornam-se plenos de significado ao

substituirmos o Homem da Areia pelo pai temido, de cujas mãos se espera que venha a

castração (Freud, 1919/2010, p. 261).

No exemplo do Homem da Areia, o artifício do inquietante desperta um antigo medo

infantil. Todavia, a fonte de tal sentimento, não seria a angústia infantil, mas, contudo, um

desejo infantil, ou ainda, uma crença da infância. A partir dessas observações, Freud

(1919/2010) retoma os estudos sobre o fenômeno do duplo de autoria de Rank (2013), a fim

de investigar as diversas formas de variações e a evolução sobre o tema.

84

Para Freud (1919/2010), a ideia do duplo não desaparece ao passar do narcisismo

primário, pois pode ter um novo significado nos estágios posteriores ao desenvolvimento do

ego, em que, se formam lentamente restos do ego, que têm a função de observar e criticar o

Eu e de exercer censura sobre a mente, da qual decorre a chamada consciência. Contudo, nos

casos patológicos de delírio, como também de transtorno de personalidade múltipla, essa

atividade mental torna-se isolada, dissociada do Eu e discernível à percepção do analista.

Certos conteúdos repelidos para a crítica do Eu podem ser incorporados ao duplo,

como, também, todos os desejos não realizados pela ação do “destino”. Assim, a fantasia e as

tendências do Eu facilitarão a ilusão do livre-arbítrio. No entanto, o caráter do inquietante

pode derivar do fato de que o duplo é uma criação remota e seus significados englobam as

crendices populares e as religiões.

As fragmentações internas exploradas por Hoffmann são um recuo das fases

evolutivas do sentimento do Eu, que há uma regressão a um período em que o Eu ainda não se

demarcava em relação ao mundo externo. Quando a natureza dos elementos inquietantes for

permeável a atribuir superstições, o sujeito estará inclinado a impor um significado oculto a

determinado evento.

O efeito inquietante do retorno de um mesmo resgata a vida psíquica infantil, pois a

repetição dos impulsos instintuais se liga provavelmente à natureza do mesmo e sobrepõem-se

ao princípio do prazer; a determinados aspectos da psique, onde o caráter demoníaco

manifesta-se ainda nas tendências do bebê e se transpõem na psicanálise do adulto neurótico.

Portanto, o que é percebido como inquietante recorda a uma compulsão de repetição interior.

A análise de casos de natureza inquietante conduziu Freud (1919/2010) à antiga

concepção de animismo, o qual assinala o mundo enquanto preenchido com espíritos –

concepção esta feita por meio da superestimação narcísica dos processos psíquicos, pela

85

onipotência dos pensamentos e pela técnica do ocultismo, que estão baseadas na atribuição de

poderes mágicos ao homem. Todas essas criações têm o ilimitado narcisismo da etapa de

desenvolvimento inicial, em que há a defesa contra a objeção da realidade.

A consciência de estar familiarizado com dada situação significa a segurança perante

as coisas que se tem conhecimento. Nesse caso, o desconhecido advindo do universo externo

representa uma ameaça. Portugal (2005) nota que o reconhecimento das situações remete ao

“estar em casa”, que nada mais é do que o estado paradisíaco, pois, apenas no momento em

que se foi comido o fruto da árvore do conhecimento, a condição de paraíso foi reconhecida

como tal. O saber foi a causa da expulsão e não é possível o retorno ao estado inocente e

seguro da existência. Nesse sentido, Sandler (2001, p. 105), enfatiza: “Quem sabe se Deus é

uma criação do Diabo interno de cada pessoa? E o que chamamos de Diabo, será o pai da

ciência?”.

A reação romântica, dessa forma, foi obtida devido à consciência dessa perda e

também, através da tentativa de construção de pequeno “paraíso”: o doce lar e o espaço

seguro. Uma criança crescida em um meio burguês, por exemplo, ainda não desenvolveu os

mecanismos de autoproteção dos pais e, então, tem que enfrentar os lugares ocultos dentro da

própria casa, como, em seu quarto escuro. A solução burguesa-iluminista, inicialmente, foi a

de ascender à luz do quarto escuro e promover as luzes da ciência, contudo, a iluminação

apenas teve impacto no mundo exterior e o estranho não viria de fora, mas, estaria enraizado

na operação de autodefesa, ao se projetar para fora algo como sendo uma ameaça externa. A

criança, ao projetar no escuro a sua imaginação, não importa se as coisas fazem sentido para a

lógica racional, porque, em sua forma notória, a fantasia não procura eliminar o medo,

declarando sua falta de significado, porém trabalha através de sua representação, onde tudo

86

passa a ser unheimlich (Portugal, 2005). A “inquietante estranheza familiar”, portanto, exerce

fascínio, pois reafirma ser impossível ocultar o que não veio à luz.

Os elementos inquietantes e o duplo fazem parte da constituição do vínculo humano e

da categoria do desamparo, um território psíquico que requer a cobertura de falhas e o

estabelecimento de um sentido e de uma ordem. Enquanto reedição do passado, algo

incomodamente familiar retorna se repetindo, mas, no entanto, se apresenta como diferente.

Também, como território do inconsciente, o inquietante representa a condição de Pathos no

indivíduo, onde o conhecimento psicanalítico é orientado a fim de dar sentido a determinadas

experiências, a buscar reconhecer o que ainda não foi nomeado e é regido pelos domínios do

inconsciente. O ato psicanalítico, com isso, promove o “estranhamento familiar” no

psiquismo do analisando, propondo paralisar o sintoma, ao promover a elaboração e a

vivência simultânea de desterritorialização e de aquisição do saber (Kupermann, 2003).

Em suas contribuições sobre o conceito intitulado como Gêmeo Imaginário, Bion

(1994) refere-se a sugestões da atividade moral que é estrangeira à personalidade estruturada,

assim como um sonho terrível em que, por exemplo, o sujeito aprisionado em seu carro possa

ser perseguido por seu gêmeo. Tal atividade psíquica é, portanto, nomeada por ataque cruel

do supereu, o qual assassina o ego.

Desse modo, o funcionamento cindido da personalidade age como um sistema de

dupla imaginária, isto é, uma parte da personalidade utiliza-se de elementos arcaicos do

próprio sujeito e a outra se vale de processos intrapsíquicos projetivos, devido à incapacidade

do sujeito em tolerar as realidades psíquicas internas que coexistem em si. Com isso, a

realidade interna e externa são negadas.

Já para Freud (1940 [1938]/1996b), quando uma criança, por exemplo, esta em vias de

satisfazer uma exigência pulsional e subitamente se assusta com o ensinamento da

87

experiência, ou seja, a continuação desse contentamento resultara em um perigo real, onde o

Eu deverá renunciar a satisfação ou rejeitar a realidade. Estabelece-se, portanto, um conflito

entre a exigência por parte do Eu e a proibição por parte da realidade. A divisão do Eu resulta,

nesse caso, na utilização de mecanismos de defesa que rejeitam a realidade e se recusam a

aceitar qualquer proibição. Por outro aspecto, ao reconhecer o perigo da realidade, assume o

medo desse perigo como um sintoma que tenta desfazer-se do próprio medo.

A categoria da “inquietante estranheza familiar”, o duplo e as divisões do Eu acolhidas

pro Freud instigam à reflexão acerca do que é desconhecido na inconsciência psíquica dos

indivíduos. Algo faltoso, desejado ou temido possibilita a dualidade: outra metade, boa ou

ruim, mas sempre complementar a sua finalidade. O “outro eu” sustenta a ideia do ser

completo, total e inteiro, o qual foi perdido. A mitologia pessoal, para Giora (2015), é

encantadora, porém entrar em contato com ela pode causar o horror e o sentimento de

“inquietante estranheza”. O duplo romântico – o Eu no outro ou a parte do Eu alocada no

outro – configura pares e deposita no externo o que é insuportável em si mesmo.

Mas tudo está lá, como parte perdida de nós mesmo, mas que foi guardada;

pareceria algo para ser suprimido, recalcado, aniquilado, esquecido, por não ser bom.

E o esquecimento então cria um núcleo velado, que acaba determinando em nós

atitudes por vezes estranhas, paradoxais, bem como inibições e repetições, na ilusão de

que o entendimento seja possível. O esquecimento passa então a funcionar como um

muro defensivo, um dique, por trás do qual ficam as palavras e o silêncio. E ás vezes,

ou quase sempre nas situações em que o recalcado reaparece, mesmo que

discretamente, nos estranhamos, e muito. Que é esse outro em mim? Quem é esse

88

outro que se ligou a mim? De quem é essa fala? Por quem falei? Para quem falei?

(Giora, 2015, p.12).

Todos os sujeitos durante sua existência convivem com mistérios, que giram,

sobretudo, a respeito de mistérios essenciais e que se camuflam no complexo de castração,

sendo a transitoriedade e a morte. Os maiores segredos são aqueles que remontam ao tempo,

onde o ciúme, a rivalidade, o amor e o ódio, vividos dentro da família, por exemplo, não se

apresentam expressos, o que, por sua vez, gera novos mistérios e fantasias, retomando a

estação edípica; um tempo de indeterminação, que carrega a marca do proibido, do incestuoso

e do inconfessável.

Se, por um lado, a experiência de contato com o inconsciente é acompanhada da

estranheza, a qual assinala uma divisão para o indivíduo, por outro prisma a produção fictícia,

tornando o inquietante mais confortável em concebê-lo.

O Unheimliche pertence à psicanálise, pois, como litoral, consiste em

reproduzir, em “redoar” essa metade sem par da qual subsiste o sujeito, no ponto em

que o inconsciente não se mistura como uma linguagem, perfurando a face serial do

significante – o Heim, o familiar. Por outro lado, a escrita do Unheimliche pertence à

literatura, onde se associa, segundo Borges, ao limbo dos poetas, só de letras, como

estas paisagens “de horror tranqüilo e silencioso” (Portugal, 2006, p. 162).

Enquanto objeto de saber, capaz de elaborar as mazelas da realidade psíquica com a

realidade externa, a literatura transporta a vida ao texto e o texto à vida. De fato, a fantasia,

89

elemento fundamental ao texto literário, também é construída a partir de um núcleo da

realidade, do mesmo modo que algumas lendas e mitos são contados, transformando

consideravelmente certos acontecimentos históricos. Como um fenômeno notoriamente

humano, a criação literária será sempre tão complexa, fascinante, misteriosa e essencial

quanto à própria condição humana.

Como saberes orientados à representação das possibilidades da condição humana, a

literatura e o conhecimento psicanalítico possuem um vínculo intrínseco, conforme aponta

Kon (2003). Já para Green (1994), o psicanalista deve ter uma visão de que toda a experiência

feita, sendo ela até mesmo a literária, requer o uso da interpretação, a qual não se faz apenas

pela revelação de um sentido oculto, mas, através da criação de um sentido ausente, onde a

verdadeira invenção de um sentido costuma dizer o que permaneceu em sofrimento. Freud,

todavia, apresentou a atitude inicial de desconhecimento quanto a imagem de “um outro”,

referindo-se ao fenômeno do duplo como algo estranho, que detém força na suspensão do

juízo da realidade e na confusão entre a percepção e a fantasia. Todavia, conseguiu captar que

a figura, a princípio um intruso, era o reflexo de si mesmo: o duplo. Logo, os conflitos da

posição freudiana diante da função da arte e do artista caminharam para possibilidade de um

fazer psicanalítico (Kon, 1996).

A psicanálise, segundo Freud (1913/1996), é um procedimento médico que propõe a

“cura” de certas formas de doenças nervosas, as neuroses, por meio de uma técnica

psicológica. A investigação psicanalítica, ao partir da análise dos sonhos, permite a

construção de uma psicologia das neuroses que é construída continuamente. Os fenômenos

psicopatológicos seriam desencadeados através de forças motivadoras de origem psíquica,

sendo que os sintomas eram provenientes de conflitos internos, nos quais o paciente combatia

continuamente seus desejos inconscientes.

90

O estabelecimento da hipótese de atividades mentais inconscientes seria advindo dos

estudos da filosofia. Entretanto, o inconsciente, para os filósofos, foi algo místico e

inatingível, cuja relação com a mente permaneceu obscura, ou identificaram o mental como

sendo o consciente e passaram a deduzir, dessa definição, que aquilo que é inconsciente não

pode ser mental, tampouco assunto da psicologia. De acordo com as afirmações de Loureiro

(2002), as afinidades entre a psicanálise e o Romantismo Alemão iniciam-se por meio da

arquitetura da alma humana, em que a noção de inconsciente foi a primeira afinidade

convocada. Elemento essencial para a psicologia romântica, o inconsciente é postulado com a

predominância de fatores irracionais na maior parte das manifestações psíquicas dos

indivíduos e das coletividades.

Os grandes temas abordados pela literatura fantástica – a loucura, o duplo, o

invisível, o espelho, a sombra, a morte, a solidão, a sexualidade, o desejo, o feminino,

o que não tem sentido, o impensado e o impensável, a busca desesperada por encontrar

respostas na razão, na ordem, no método, o que pouco antes ainda garantia, sem

surpresa, a certeza sobre si – parecem acomodar-se perfeitamente na perplexidade

nova que toma o homem da modernidade. É em relação à sombra desse homem, não

mais passível de ser iluminado por um ordenamento natural da representação, que se

insurge numa nova humanidade, numa nova rede epistêmica, o incompreensível, o

impensado e impensável, o inexplicável soterrado pela razão clássica (Kon, 2003, p.

16).

Nesse sentido, o homem-psicanalítico é um ser dotado de interioridade e abriga a

exterioridade do fantástico. O inconsciente freudiano, por conseguinte, é o território inédito

91

que lhe é intrínseco. O mundo psíquico vai acolher o maravilhoso, atraindo-o para seus

domínios e procurando, assim, desfazer o mistério essencial do fantástico.

Para Kon (2003), compreende-se a criação do pensamento freudiano e do homem-

psicanalítico, devido às ressonâncias e confluências como uma literatura específica, própria à

metade do século XIX: a literatura fantástica. A psicanálise, portanto, nasce como portadora

de uma diferença interna, pois, se de um lado acolhe o insólito no homem, dando visibilidade

e presença ao que até então não fazia sentido ou era oculto, de outro, trata de apaziguar o

indomável e até mesmo o inominável, ao estabelecer uma lógica própria à razão que procura

reinserir, no admissível, aquilo que teima em escapar.

O termo “inconsciente”, de acordo com Ffytche (2014), foi utilizado pela primeira vez

por Schelling, em 1800, sob análise das condições inconscientes da autoconsciência e das

origens da arte. O inconsciente romântico, conforme pontua Loureiro (2002), não é formado

pela soma dos conteúdos esquecidos ou reprimidos propostos por Freud. Não é uma

consciência larval, como conceituou Leibniz e nem mesmo é uma região obscura e perigosa,

como assinala Herder. Ele é a própria raiz humana, o qual se relaciona com os processos da

Natureza e permanece em harmonia com o Cosmos e com a origem divina. Portanto, o

inconsciente romântico é “interno” e se abre para a comunicação com o Todo, com a

Natureza, sendo uma passagem do Eu ao fluxo cósmico.

O metafísico arquitetado enquanto possuidor do “divino” individual, por sua vez,

rompe com o modelo da procriação na realidade, uma vez que o sujeito não resultaria de seus

pais humanos. Ele seria criação do vínculo oculto com sua fonte: o metafísico.

Bornheim (1985) assinala que, no Romantismo, almejou-se à fusão de uma unidade

superior. Contudo, todo conhecimento deveria ser explicado a partir de um princípio básico,

de raiz fundamental a todas as culturas.

92

Como componente da estrutura da história, Ffytche (2014) sugere que o inconsciente

romântico foi formado por processos divisórios primordiais e de repressão dentro da cultura.

A tarefa de encontrar indícios de crise nos registros mais antigos da vida humana permitiu

averiguar que o absoluto imergiu na inconsciência, não apenas como nascimento ontológico,

mas enquanto a ocorrência do real. Desse modo, o inconsciente foi discernido por Schelling,

por meio da mitologia grega, assim como Schubert aludiu aos vestígios a uma época perdida

primordial, envolvida nos cultos de mistérios clássicos.

Fichte pretende estabelecer a distinção entre o dualismo entre a mente e a

corporeidade. “O que sou, por essa razão eu sei, porque eu sou...”. Aqui nenhuma

conexão entre sujeito e objeto: e essa sujeito-objetividade, essa volta do conhecimento

a si mesmo, é o que eu designo como o conceito “Eu”. Esta não é uma declaração

psicológica a respeito da maneira como a consciência vivencia a si mesma, mas é

relevante para a maneira pela qual a autoconsciência, a autodeterminação e a

individualidade são concebidas com relação umas às outras (Ffytche, 2014, p. 71).

As análises românticas sobre a natureza do inconsciente e a atenção quanto aos

fenômenos do Eu, ainda de acordo com Ffytche (2014), tiveram como referencial os estudos

de Schelling e Schubert, os quais descobriram a divisão existente entre o diálogo entre self

consciente e um self inconsciente, sendo eles, possuidores de aspectos misteriosos ou

reprimidos da natureza moral. A psique, tanto para Carus quanto para Schelling, não era

apenas uma intermediária entre o corpo e a mente, pois mediava a determinação e a liberdade,

a necessidade lógica e psicológica acerca do pensar sobre si mesmo como fundamento da

93

criação livre de si. Já para Fichte, a harmonia do sujeito com o inconsciente viria através da

atenção para consigo mesmo e para com tudo que cerca o interior de si.

A psicanálise freudiana (1919/2010), ao adotar como fundamento em seus estudos a

natureza do fenômeno do duplo, a “inquietante estranheza familiar”, aos processos

inconscientes, aos mistérios do inexplicável contidos na narrativa de Hoffmann, pretendeu

mapear e esclarecer os acontecimentos sobrenaturais, a fim de torná-los menos obscuros e

entender sua causalidade oculta. Os vários dualismos ao nível da representação em Freud,

como, por exemplo, os princípios de prazer e os princípios de realidade, o inconsciente e o

pré-consciente/consciente têm o mesmo inconsciente como instância mediadora entre eles. A

superação do dualismo entre a fantasia e a realidade torna-se um jogo sustentado pelo

dinamismo da literatura fantástica. Freud transformou o universo do fantástico no retorno do

familiar reprimido, por meio das narrativas dos escritores do cenário romântico, como, em

especial, em Hoffmann.

Freud em Uma nota sobre o inconsciente na psicanálise (1912/1996), expressa que o

termo inconsciente sempre esteve presente no imaginário psicanalítico, mas, contudo, estava

latente na consciência. O termo havia sido empregado em seus artigos anteriores tendo o

sentido descritivo e, de tal modo, o inconsciente designa não somente as ideias latentes em

geral, as quais, em um primeiro momento, podem vir a ser chamadas de pré-conscientes, mas,

se refere, sobretudo, ao caráter dinâmico que tais ideias, as quais se mantêm apesar de sua

intensidade e atividade, à parte do nível consciente.

Os lapsos na linguagem, os erros na memória, o esquecimento, a natureza dos

sintomas e o estudo dos sonhos permitem compreender e demonstrar a deficiência destas

funções, devido à ocorrência da ação de ideias inconscientes. O produto das ações

inconscientes pode vir a penetrar na consciência, no entanto, é necessária uma quantidade de

94

esforço do indivíduo, pois, ao perceber a imersão desses conteúdos, o sujeito pode sentir

repulsa e ser dominado pela resistência causada por eles. O inconsciente também é

caracterizado como o enigma de um ato psíquico bem definido e, onde as noções de tempo e

espaço perdem sua importância. Os processos mentais inconscientes são completos e

perfeitos, assim como aos mecanismos da vida consciente. Medeiros (1959) afirma: “em

verdade é como se dentro de nós vivesse um diabo que nos obriga a fazer coisas que nos

surpreendem”.

O conceito do Eu, da maneira como Freud o utiliza, para Ffytche (2014), oscila entre a

objetividade genérica e individual e, também, enquanto algo socialmente coesivo, como o

bom-senso e a realidade objetiva. Loureiro (2002) aponta que o conceito de Eu formulado por

Freud é precário, pois ele é esmagado por outras instâncias – pelo isso e pelo supereu.

Contudo, o isso seria um alargamento em direção ao instinto, aquilo que permanece intocado

pela cultura, ao permitir com que o sujeito escape das opressões do mundo externo.

De acordo com Sandler (2000a), as ideias de “extrusão” de características internas à

mente, que sejam mal vindas, temidas, ou sentidas como dolorosas inventam uma verdadeira

psicologia, em que se imagina tanto uma causalidade – sempre externa – como um

“conhecimento” do mundo e das pessoas feitos à custa de um tipo de “espelho”. O mundo e as

pessoas relembram constantemente a pessoa, a ela mesma, visto como que “espelham” a

pessoa. Ela percebe algo em si, mas não suporta essa percepção. Assim, nesse sentido, as

pessoas e o mundo passam a “ser” como a mente que os produziu, revelando um

idealismo/subjetivismo.

Tal mecanismo é uma característica onipotente, conferida desde os primórdios à

própria divindade, que teria feito o homem à sua imagem e semelhança. Essa atitude seria

posteriormente entendida por Freud como “projeção” e, na obra de Rousseau, essa tendência

95

aparece cristalina, na afirmação deste de que o homem é naturalmente bom e somente pelas

instituições é feito mau. O homem, portanto, teria as combinações do “anjo”, conceituado por

Rousseau, e com o pequeno selvagem, proposto por Freud.

“Até os dias de hoje, a psicanálise é encarada como que cheirando a misticismo e o

seu inconsciente é olhado como uma daquelas coisas existentes entre o céu e a terra com que a

filosofia se recusa a sonhar” (Andrade, 2000, p. 27). O ocultismo, no entanto, dentro dos

limites assinalados pelo incognoscível, anuncia a subdivisão daquilo que ainda não é

conhecido, mas que poderá algum dia vir a ser.

A humanidade, de fato, é formada por elementos contrastantes, por deparar-se com a

mistura de dois gêmeos inimigos, que lutam a fim de ser o centro da atividade psíquica. Kon

(2003, p. 213), no entanto, destaca: “Somos, com Freud, não mais vítimas dos poderes do

maravilhoso, mas, sim, vítimas de poderes maravilhosos internos ao nosso ser”.

3.2 Ernst Theodor Amadeus Hoffmann

Somente a mais pura consonância do princípio psíquico inerente à lei do dualismo favorece a operação que vou agora empreender (Hoffmann, 1819/2009, p. 92).

Mas longe de mim está a mania de querer explicar por meio de vis princípios físicos aquilo que só no campo do puramente psíquico encontra sua inabalável origem natural (Hoffmann, 1819/2009, p. 147).

Ernst Theodor Wilhelm Hoffmann – cujo penúltimo nome substituiu para Amadeus

em homenagem a Mozart – nasceu em 24 de Janeiro de 1776, em Königsberg, Prússia

(posteriormente Kaliningrado, Rússia) e veio a falecer em 25 de Junho de 1822, em Berlim,

na Alemanha.

96

Hoffmann, em Berlim, consolidou-se como escritor, com suas histórias de mistério e

terror, as quais tornaram-no um dos mais expressivos novelistas alemães. O poder de

imaginação o levou às fronteiras do sobrenatural, vindo a influenciar uma série de escritores

como Baudelaire, Maupassant, Poe, Wilde, Dostoiévski, Álvares de Azevedo, entre outros.

Ao lado de Goethe e Heine, Hoffmann é um dos maiores escritores alemães de repercussão

internacional.

Além de escritor, Hoffmann foi músico, pintor, caricaturista, diretor de teatro,

introduzindo Calderón no palco alemão. Boêmio é o protótipo do artista romântico. De

acordo com a enciclopédia 501 grandes escritores (2009, p. 128), o epitáfio do artista

definiria bem sua personalidade e seus múltiplos talentos: “Conselheiro do Tribunal de

Justiça, excelente em seu ofício como poeta, músico, como pintor, dedicado a seus amigos”.

Como uma literatura específica, própria à metade do século XIX, a literatura

fantástica, segundo os apontamentos de Todorov (1981), é um gênero literário, no qual as

narrativas ficcionais estão centradas em elementos conhecidos ou desconhecidos na realidade

pelas ciências dos tempos, em cuja obra foi escrita. Os relatos fantásticos encontram-se ante o

inexplicável, uma vez que, assim como no pensamento mítico, a literatura fantástica não

ignora o limite entre a matéria e o espírito, mas, pelo contrário, busca o pretexto para

incessantes transgressões. No universo evocado pelo texto, produz-se um acontecimento ou

ação que provém do sobrenatural ou de um falso sobrenatural, provocando a reação no leitor

implícito, como, também, geralmente, no herói da história. A existência de seres ou

acontecimentos sobrenaturais, mais poderosos que o homem e do qual a razão conduz o leitor

não a comprovar os fatos narrados, mas à necessidade de buscar pelo seu significado.

O fenômeno de tal literatura decorre da incerteza causada diante das leis naturais,

frente a um acontecimento sobrenatural, no qual, a relação com o real e com o imaginário

97

rompe a ordem, desencadeando o mistério, o inexplicável e o inalterável da determinação

cotidiana. No autêntico campo do fantástico, existe sempre a possibilidade exterior e formal

de uma explicação simples dos fenômenos, mas, ao mesmo tempo, esta explicação carece por

completo de probabilidade interna. Há um fenômeno estranho que pode ser explicado de duas

maneiras: por tipos de causas naturais e sobrenaturais. A possibilidade de vacilar entre ambas

cria o efeito fantástico.

As condições necessárias a fim de definir a determinação do gênero fantástico, para

Todorov (1981), devem cumprir três características: em primeiro lugar, o texto deve

direcionar o leitor ao universo dos personagens, como um mundo de pessoas reais; em

segundo lugar, o leitor deve hesitar quanto a uma explicação natural ou explicação

sobrenatural dos acontecimentos evocados. No momento em que o leitor acomete ao mundo

dos personagens e se volta para sua própria prática – a de leitura – há o perigo de ameaça ao

fantástico, situado ao nível da interpretação. Finalmente, na terceira condição, o leitor deve

adotar a atitude frente ao texto, de nem interpretá-lo por meio da alegoria e nem de tomá-lo

pelo sentido da interpretação “poética”.

Perante eventos impossíveis de serem elucidados pela ordem do mundo familiar, duas

soluções são possíveis: tratá-lo com ilusão dos sentidos ou como parte realmente integrante de

uma realidade, regida por princípios, ainda desconhecidos. O fantástico, com isso, ocupa o

tempo da incerteza e se escolhe uma das duas respostas, a fim de se deixar o terreno do

fantástico para entrar em um gênero vizinho: o do estranho ou o do maravilhoso.

O homem busca por sentidos para a vida, por isso, a agregação ao fantástico diante de

artifícios literários como a ficção científica tem como principal característica proporcionar a

reflexão sobre aspectos da sociedade de massas, a falência do pensamento utópico através da

defesa do “todo” em detrimento das “partes”, como também a valorização de ideias

98

igualmente em detrimento de fatos. Para Dutra (2012), o escritor traz personagens que

revelam um sujeito massacrado pela técnica, a despeito da evolução científica e, por um

sistema governamental que intenta controlar sua vida, sua reprodução e sua própria morte.

É possível encontrar na ficção de Hoffmann um universo observável da condição

fragmentada do homem moderno, o qual começa a esboçar-se no final do século XVIII,

coincidindo, portanto, com o surgimento do gênero fantástico. O fantástico, conforme assinala

Batalha (2012), em sua especificidade genérica ou modal, vincula-se ao advento da

modernidade. A demarcação semântica maravilhoso/fantástico é fruto dos progressos

estéticos e sua oposição metatextual foi se construindo gradativamente, uma vez identificadas

as condições intrínsecas exigidas para a existência dos dois gêneros, ou subgêneros. O fator

determinante do fantástico é o conceito de “ruptura” da racionalidade.

Na cultura literária no final do século XVIII, segundo Safranski (2010), emergindo

diante da ânsia pelo secreto, pelo fascinante desejo de mudança na mentalidade que repulsa o

espírito racionalista, esta atmosfera favorece o surgimento de um gênero literário sobre

irmandades secretas [Bundesroman], que conta com horror dosado, por exemplo, sobre

misteriosas irmandades e suas façanhas. A ânsia pelo segredo era uma força motriz, tanto para

aqueles que formavam alianças secretas, quanto para os que se deixavam intimidar por elas.

Tal gênero era lido por Hoffmann e, logo após constantes leituras, ele começou a escrever seu

primeiro romance sobre irmandades secretas, que, contudo, não foi publicado.

O ponto de referência real das histórias acerca das irmandades secretas são os jesuítas,

os maçons, os iluminados e os rosa-cruzes. Esse tipo de romance utiliza um esquema

estereotipado, no qual uma pessoa inofensiva cai em uma armadilha misteriosa; é perseguida;

e determinadas pessoas que, aparentemente sabem tudo sobre ela, cruzam seu caminho. De

maneira comum, o protagonista penetra nos recônditos mais secretos da irmandade e, por

99

vezes, é iniciado aos mistérios de uma escondida sabedoria ou intenção oculta. Conhece

alguns líderes, porém, jamais o maior deles. Os pertencentes da irmandade, identificados,

muitas vezes, se tratavam de pessoas que a vítima conhecia há algum tempo. Nessas

narrativas, costumeiramente, há uma boa e uma má entidade, lutando uma contra a outra e,

também, agentes duplos estariam infiltrados no decorrer dos eventos.

Emergindo do contexto de que muitos duvidavam do gradual crescimento do

progresso iluminado, o sonho, como um estado de emergência, permitiria deixar de lado

algumas etapas e fazer logo a felicidade individual, antes ainda que a razão garantisse a

felicidade da humanidade. Aguardavam-se mudanças surpreendentes, encontros que trouxesse

a prosperidade. Portanto, as fantasias que contornam as sociedades e os complôs de segredos

agitavam o público e, com isso, possibilitava o encontro com um mundo desconhecido,

tornando-se autodescoberta.

Nas consagrações dos mistérios dos antigos, segundo Schiller (2011b), havia uma

impressão temível e solene a fim de privilegiar o recurso do silêncio, o qual fornece à

imaginação tanto um espaço livre para expectativas quanto um receio que está por vir. Nos

exercícios do culto, no silêncio de toda uma congregação e nas superstições populares o

silêncio torna-se dispositivo eficaz para os devaneios, impulsionando o fantasiar. Além disso,

o silêncio nos palácios encantados, que surgem nas lendas das fadas e as florestas encantadas

inabitadas, incitam a solidão que, no entanto, traz um fundamento objetivo para o principal

temor: a ideia de desamparo do sujeito romântico.

O misterioso, enquanto categoria de ilusão, no final do século XVIII, ainda não havia

sido desvendado e ainda possuía uma natureza inquietante. Nesse sentido, Safranski (2010)

ressalta que o pensamento central do discurso de Novalis é o de que: “onde faltam deuses,

reinam os fantasmas”. A partir disso, o mundo foi conduzido pelos mistérios e pelos

100

fantasmas e tais tendências seriam convergidas para a sociedade, para a cultura e para a

política, a fim de investi-las e deslocá-las para o nacionalismo e para o poder político.

Atualmente, tais condutas teriam um sentido sagrado, sendo chamadas de “ideologias” e,

também, quando se separou o saber da crença, as pessoas foram lançadas a uma nova

confiança: a ciência como religião substituta.

Sobre o escapismo dos românticos, tão recorrentes em suas obras, constitui uma

resposta direta a questões vividas em seu momento histórico, o que é notavelmente visível no

caso de Hoffmann. Percebível inclusive em seus contos de fadas, nos quais o elemento

mágico não serve simplesmente para imergir o leitor em uma atmosfera de sonho, mas sim

para levá-lo a ver a própria realidade sob um novo prisma. A fantasia mostra-se sustentada ao

propor o secreto, o indefinido e o impenetrável como objetos de terror. Para Schiller (2011b),

enquanto elemento da realidade, a imaginação oferece-se aberta ao reino das possibilidades,

pois tende para o terrível, podendo vir a causar repúdio, justamente porque se supõe coisas

ruins, mais do que se espera por coisas boas, devido ao elemento subsidiado pelo

desconhecido.

Berlin (2015) enfatiza que, no Romantismo, sobretudo, nas narrativas de Hoffmann, a

estrutura fixa das coisas e da existência sufocaria o campo da ação e, a partir disso, as

fragmentações, as sugestões, os vislumbres e a iluminação mística seriam as formas para se

captar a realidade, visto que qualquer tentativa de circunscrever e oferecer uma explicação

absoluta e coerente frente à mesma estaria, basicamente, produzindo perversões e caricaturas.

Tais ideias estariam no cerne da fé romântica, em conjunto com a de que: “o homem seria um

joguete nas mãos do destino” (Carpeaux, 2012, p. 118).

O caos, de acordo com Safranski (2010), existente em diversas dimensões, fato que,

até mesmo o próprio Eu contém o caos e, de tal forma, a experiência plenamente desenvolvida

101

a fim de experienciar si mesmo, adviria por meio da espontaneidade, pois, o “Eu sou” é o

segredo revelado do mundo. O mundo, entretanto, não é o resumo de todos os fatos, mas de

todos os acontecimentos; daquilo que se descobre pela movimentação produtiva do Eu,

expandida por meio da sua liberdade criativa.

Para os românticos, Rosenfeld (1993) destaca que a realidade empírica é mera

aparência, pois, no íntimo, o mundo é espírito, que facilmente se condensa em “espíritos”, ao

fantástico. O irreal e onírico se localizam, por vezes, em pleno ambiente real, descrito com

grande precisão. Para Safranski (2010), em Hoffmann, o sobrenatural torna-se natural e

comum, enquanto a realidade da vida cotidiana se torna sinistra e assombrosa.

Talvez, o caso mais interessante de quebra de convenções se encontre nas narrativas

de Hoffmann e o principal tema de suas ficções, as quais acentuam tais rupturas, seja a

capacidade de transformar qualquer situação, através da ilusão psicológica. O objetivo de

Hoffmann foi o de tentar confundir a realidade com a aparência; a de dissolver a barreira entre

a realidade e a ilusão, entre o sonho e a vigília, entre a noite e o dia, entre o consciente e o

inconsciente, a fim de produzir um significado do universo sem barreiras, sem muros, através

de uma contínua transformação, partindo da vontade individual de moldar aquilo que se

deseja. Portanto, no Romantismo, foram reconhecidos certos aspectos da condição e da

existência humana, as quais haviam sido excluídas e tais incompreensões e paradoxos foram

evidenciados através das manifestações artísticas, próprias ao período (Berlin, 2015).

Os espaços das narrativas em Hoffmann são retilíneos e delimitados, mesmo quando

por fora denotem amplidão, pois, têm o efeito paradoxal de evocar o sentimento de estreiteza.

As regularidades no espaço causam o mesmo efeito das repetições no tempo, pois, quando são

utilizadas de forma econômica, produzem o sentimento de ritmo e, até mesmo de beleza.

Conquanto, usadas de modo abusivo, assumem a monotonia e o tédio. Os espaços vastos se

102

encolhem quando a razão retrocede ao comum, ao incomum e ao previsível, o que não pode

prever e, por isso, o já citado antiprograma romântico em Novalis: “tudo depende de dar ao

que é usual uma aparência misteriosa, ao conhecido a nobreza do desconhecido, ao que pode

perecer a aparência do infinito” (apud Safranski, 2010, p. 185).

Para Dimas (1994), a ambientação é subjetiva e implícita, o que faz com que atinja

elevados valores simbólicos na narrativa em que se insere. Todavia, como é expresso, o

espaço em instâncias posteriores pode atingir determinado valor simbólico. Em Hoffmann, as

personagens se perdem no tempo e no espaço, elementos utilizados para demonstrar a busca

dos indivíduos românticos diante da construção de sua própria identidade, por meio da

interação propiciada pelo ambiente em que se vive. Os espaços nas narrativas de Hoffmann

permitem identificar os indivíduos a lugares sociais existentes. Porém, também, há o intuito

de representação social e, ao mesmo tempo, o de preservar a condição ficcional do relato, ou

seja, considerá-la como um processo de criação estética.

É deslocável o presente, como deslocáveis são o passado e o futuro. Nas narrativas de

Hoffmann, o presente é considerado como incerto e frustrante; o futuro, desolador; e, com

isso, o tempo passado torna-se o cenário do imaginário e do fantástico para a apresentação do

enredo e das unidades espaço-temporais. O momento atual, o passado remoto e idealizado, as

imagens obsessivas e confusas quanto ao futuro, além de poderem ser conceituadas como um

tratado psicológico processam-se em um nível narrativo, cujas estruturas temporais não têm

uma marcação nítida.

Para Rosenfeld (1996), Goethe já havia reconhecido a subjetividade e relatividade do

tempo, sendo que a vivência subjetiva se afasta do tempo cronológico dos relógios. Em cada

instante, a consciência engloba o presente, o passado e o futuro, sendo um horizonte de

possibilidade e expectativas. Portanto, o espaço, o tempo e a causalidade, ao serem

103

desvelados, se constituem apenas como aparências exteriores e tornam o mundo narrado um

ambiente caótico e opaco, características próprias ao “espírito do tempo” do Romantismo.

Dois caminhos são definidos nas narrativas de Hoffmann, segundo Carpeaux (2012).

De um lado, a transformação do Romantismo em um espetáculo, comercialmente explorado

para as grandes massas de leitores e, do outro lado, a elevação, que o pensamento de Novalis

se encontra com a arte de Baudelaire. Nos contos de Hoffmann, por exemplo, Safranski

(2010) afirma que todos os cidadãos vistos como comportados e, os quais não permitem ser

constrangidos, representam essa tendência para identidade sem surpresas. Contudo, ao não

desejarem nenhuma mudança, faz no máximo carreira: uma versão burguesa e banal da

metamorfose; a verdadeira ameaça à geração que rompeu com a antiga crença de que não se

encontra satisfação na razão, mas que havia sido motivada pelos voos da imaginação.

Encontra-se, portanto, na monotonia e contra aquilo que ela acarreta: o mal-estar diante da

normalidade concentrada no medo do tédio - a consciência do vazio, a insignificância da

existência e do nada.

Em Hoffmann, o aniquilamento fantasmagórico da realidade empírica se produz

constantemente tanto pela passagem a um mundo ideal quanto pela deformação grotesca da

realidade vulgar. De acordo com Rosenfeld (1996), os bons e maus espíritos, de um mundo

onírico e espectral, repetem e ecoam a fragmentação e desarmonia do mundo real. Nota-se

também, em Hoffmann, uma inclinação às ciências ocultas (sonambulismo, fantasmas,

telepatia, mesmerismo), na qual a súmula da tendência de sua obra se concretizou pela efusão

violenta de paixões, pela visão dissonante do mundo, pelo ímpeto irracional, pelo lado

noturno e tétrico da vida, pelo estranho, excêntrico, caricato e grotesco.

Freud, em Prefácio e textos breves. E. T. A. Hoffmann e a função da consciência (1919/2010), aponta o romance O elixir do diabo, de Hoffmann, como sendo rico em

104

descrições de estados anímicos patológicos. O personagem Schönfeld consola o herói da

história, estando este de consciência temporariamente perturbada. A personagem ainda pontua

que a consciência é uma maldita atividade, um atroz fiscal, um auxiliar de controle, que

“montou seu escritório no pequenino cômodo superior” e complementa, ao notar que: “a

mercadoria pretende sair”. Hoffmann (1819/2009) destaca, a partir disso, que o psíquico

condiciona o organismo humano, que deve sua existência ao espírito e à faculdade do

pensamento.

O princípio de utilidade e de funcionalidade que oculta as fantasias do mundo burguês

é um dos motivos para o desajustamento romântico diante da normalidade. Outra razão para

que os românticos lutem contra a realidade é um processo que Hoffmann denomina “perda da

pluralidade” (Safranski, 2010). Desse modo, no Romantismo é proposto o Pathos de um novo

começo, por meio da experiência de conversão, ao voltar-se para a interioridade.

O homem dilacerado, saudoso de unidade, é tema constante das seguintes obras de

Hoffmann: os quatro volumes de Fantasiestücke in Callots Manier [Contos Fantásticos à

Maneira de Callot, 1813-1815], os três volumes dos Nachtstücke [Contos Noturnos, 1817], os

quatros volumes de Die Serapionnsbrüder [Os irmãos Serapions, 1819-1821] e no volume

único de Hoffmanns Tod [A morte de Hoffmann, 1820-1825].

O Eu, no Romantismo, segundo Rosenfeld & Guinsburg (1985), coloca-se diante de

um espelho, que é ele próprio e no qual se desdobra. Com isso, perdidos os fins e os objetos

superiores desta busca, restam os meios entre os quais se incluem o próprio objeto imediato e

ponto de partida, ou seja, o homem singular. É nele que se concentra a ironia romântica,

sobretudo sob a forma de autoironia. Dessa forma, uma parte do Eu converte-se em objeto,

enquanto a outra se mantém como o sujeito que ironiza. No Romantismo, o grotesco eclode

105

nas desordens dos níveis do ser, fazendo-se saltar à superfície expressiva da obra artística,

justamente por compulsão das oposições radicais que seus traços envolvem.

O fenômeno do duplo, no Romantismo, especialmente em Hoffmann, representa a

dependência a símbolos paradoxais e alternativos do cenário fantástico, diante das descobertas

científicas e racionalismos propostos pelo Iluminismo. O duplo assume seu próprio conjunto

de leis únicas, que apresenta o intuito de expressar um Eu dividido, revelado de forma

dramática, fluida e enigmática, o qual escapa do raciocínio fundamentado pelo real. Os termos

dualidades, antíteses e cisões remetem ao terreno do imaginário, onde o retorno a lendas e

histórias mágicas da tradição popular se articula ao profundo estado de insegurança

individual, social e comunitária. Como o mundo da diferença é calcado por meio do sentido

de valor, a noção do duplo inquieta e testemunha a insuficiência do ser. O encontro com “um

outro”, com a identidade dividida, sugere ser um mito o encontro consigo mesmo, pois o Eu é

uma entidade desconhecida, contudo, é necessário a busca pelo conhecimento sobre si e sobre

as possíveis verdades das muitas realidades existentes.

Hoffmann é, ao mesmo tempo, escritor industrializado, na sua existência diurna, e

artista fantástico, na sua existência noturna. O primeiro transformou fantasmas para uso dos

burgueses, já o outro, viu elementos de verdade, a fim de descrevê-los com o Realismo de

Balzac, levando o leitor à esfera do horror drástico e sublime. A própria realidade foi

transmitida de maneira inédita, como, por exemplo, quando a cidade de Berlim, cinzenta e

prosaica, aparece em seus contos como um inferno povoada por diabos. O mágico, o

originário da Idade Média, o fantasmagórico, nesse momento, era ligado a uma devoção, a

qual, continuava a ter conjuntura. Hoffmann, além do mais, em narrativas com características

inquietantes, chega a indicar o endereço dos seus fantasmas, os nomes de ruas e casas

realmente existentes.

106

Ainda, segundo Carpeaux (2012), o recurso supremo artístico de Hoffmann foi o de

contrastar, com o naturalismo do ambiente, o pavor das aparições, ocasionando ao leitor

efeitos humorísticos e terrores da esfera do fantástico, os quais se confundem pela mesma raiz

que possuem: a invasão da vida burguesa e normal pelas criaturas e monstros do lado noturno

da natureza. Hoffmann, nesse sentido, pertence, em certo sentido, ao Romantismo de Iena e

não ao de Berlim, visto que o sonho de uma vida puramente estética e surpreendente não

encontrou expressão mais fantástica do que em seus contos.

Os românticos de Iena, segundo Duarte (2011), transformaram a “eternidade”,

substantiva, em advérbio aplicado à renovação: ao “eternamente”. Tentaram, assim, contra o

preceito ontológico tradicional, visto que a verdade absoluta é definida pela ausência de

tempo da eternidade plena. Apenas é eterna a busca pela eternidade; nada que está no tempo é

eterno, mas o próprio tempo o é.

A história de uma personalidade dividida, não havia sido contada com tamanha

sensibilidade como foi por Hoffmann. Com isso, a dor da existência percebida durante o

contexto romântico se conduz à visão de que em cada pessoa estão contidas as experiências de

várias pessoas, tornando-a múltipla. No entanto, o niilismo do escritor era “vitalista”, ao

afastar toda a amargura da existência, cuja consequência deste humor, o próprio Hoffmann

definiria como: “Uma força de pensamento maravilhosa, oriunda da contemplação da

natureza, apta a criar seu próprio sósia irônico, em cujas estranhas palhaçadas ele reconhece

as suas e – eu quero manter a palavra ousada – também as palhaçadas de toda existência aqui,

regozijando-se” (apud Safranski 2010, p. 205). O humorismo do terrível, em Hoffmann, de

acordo com Carpeaux (2013), baseia-se no realismo quase sóbrio e exato que envolve as

descrições acerca dos mistérios originários da própria vida.

107

A ideia de sósias, objeto de humorismo no mundo antigo e renascentista, foi então

aperfeiçoada por meio da fantasia popular do Doppelgänger – o duplo, o homem que busca o

encontro consigo mesmo. As desilusões sucessivas da realidade e da personalidade, em

Hoffmann, representaram os símbolos da dissolução da realidade social pela Revolução. Para

Todorov (1981), a aparição do fenômeno do duplo nas narrativas de Hoffmann são motivos

de alegria, pois, representa a vitória do espírito sobre a matéria. Safranski (2012) destaca

ainda que, na obra de Hoffmann, a fantasia e a realidade se misturam, pois tudo é suprimido

pela consciência satisfeita de duplicidade de todos os elementos que fazem parte do Eu. Em

Hoffmann, visualiza-se o que está perto, aquilo que se transforma ao que está distante. Suas

narrativas surpreendem e seu leitor deve estar livre, para que veja as coisas de determinada

forma, não se limitando ao campo da visão e tornando o comum verdadeiramente usual. Por

meio da fantasia, há a fachada do real e foi justamente este jogo que Hoffmann trouxe

novamente à tona, que é o jogo transformador do carnaval. Afastando às exigências

devastadoras do exterior e familiarizado com os abismos do interior, ele se transforma em um

grande “carnavalesco” da literatura do século XIX.

O carnaval permite a transformação, reprimida pela pressão de uma identidade sem

conflitos no cotidiano burguês, pois pode ser vivido no instante presente, assim como o riso,

que liberta o sujeito da opressão. O carnaval faz seu jogo de inversão, como quem está acima

e como quem está abaixo, com o bem e o mal, com o belo e o horrendo, como o homem e a

mulher. As hierarquias desaparecem e se pode rir do que, geralmente causa medo. Até mesmo

com as experiências fundamentais da vida, como o nascimento, o amor e a morte, podem

produzir o humor. Segundo Bakhtin (1996), a “sensação carnavalesca do mundo” - de algo

corporalmente vivido, o qual produz a unidade e o caráter inesgotável da existência –

transforma as situações em íntimas, subjetivas e individualizadas.

108

Em uma festa popular como o carnaval, portanto, há o rebaixamento, a eliminação de

barreiras e a quebra com o cotidiano. Os papéis invertem-se e, ao mesmo tempo, aproximam-

se, possibilitando a eclosão do cômico e a mistura entre o sagrado e o profano. Os temas

desenvolvidos nas narrativas de Hoffmann, como, por exemplo, a loucura, a morte, as figuras

do diabo e as dissociações da personalidade são empregadas, a fim de aterrorizar o leitor,

remetendo-o ao mundo exterior, o qual não é mais sentido como sendo seu.

As luzes e o brilho próprios do carnaval cedem espaço às sombras, ao noturno e,

assim, o realismo grotesco, que era claro, acessível à luz do dia, provocaria riso. Entretanto,

no grotesco romântico, para Kupermann (2003), a luz deveria permanecer secreta e oculta,

tornando-se inquietante. O carnaval popular permite o riso ambivalente, porém, no contexto

do Romantismo passa a ser apreciado como feiura ou deformação, ainda que vivenciadas

como próprias da realidade humana.

O termo grotesco, ainda, de acordo com o mesmo estudioso, foi definido como estilo

artístico apenas no final do século XV, tendo como referencial a pintura ornamental

descoberta nos subterrâneos das termas de Tito, em Roma, chamado grottesca, do substantivo

grotta, gruta em italiano. A característica marcante dessas figurações era a mistura insólita das

formas vegetais, animais e humanas, que se confundiam umas com as outras. Além do mais, o

grotesco requeria uma apresentação do universo, na qual a mobilidade e as transformações

impostas pelo tempo colidiam com as representações de um mundo, cuja essência abrigaria a

estabilidade e a perfeição.

Em seus estudos sobre o grotesco e o sublime, Victor Hugo (2010) alude ao

nascimento do gênio moderno, o qual nasceu da mescla do tipo grotesco com o tipo sublime;

em meio as suas formas mais variadas e complexas e, dessa forma, oposto à simplicidade do

gênio antigo. O grotesco é a mais rica fonte para as manifestações artísticas, pois objetiva,

109

junto do sublime, um meio de contraste. A arte, portanto, se desdobra e se faz por meio de um

ser harmonioso e incompleto, onde o belo tem um tipo e o feio mil. O chamado “feio” é um

conjunto que se harmoniza com toda a criação e, por isso, se apresenta em aspectos novos,

mais incompletos.

O sublime sobre o sublime dificilmente produz um contraste e se tem a necessidade de

se descansar de tudo, inclusive do belo. Entretanto, o grotesco constitui-se por um tempo de

recuo, de comparação, um ponto de partida, de onde se eleva para o belo com uma percepção

mais entusiasmada, como também expressa o pessimismo e a desistência dos românticos.

As trevas são terríveis e temíveis justamente por serem suscetíveis ao sublime: não são

terríveis em si mesmas, mas escondem os objetos e abandonam todo o poder da faculdade da

imaginação. Também o indeterminado é um ingrediente do terrível, pois oferece à faculdade

de imaginação a liberdade de realçar o que julgar apropriado. O determinado, ao contrário,

leva ao conhecimento distinto e deduz o objeto às alternativas da fantasia, na medida em que

o submete ao entendimento (Schiller, 2011b).

O grotesco, dessa forma, surge por meio da desordem dos níveis do ser, isto é, quando

uma perturbação é produzida e o homem se vê incapaz de exercer uma função restauradora.

Seus efeitos estilísticos e as camadas ontológicas mesclam-se. Rosenfeld & Guinsburg (1985)

referem-se ao grotesco como uma descoberta ou redescoberta romântica, cuja arte de Dionísio

adquiriu grande importância ao homem romântico: o de deus irracional, telúrico, que

ressuscitou mais uma vez para a celebração dos mistérios.

Diante da sensibilidade em conflito, do dinamismo da interiorização, reconduz-se a

uma direção centrípeta, ou seja, para dentro e para o Eu, enquanto a direção centrífuga da

consciência está fora e para as coisas. Sendo assim, o subjetivismo radical em Hoffmann é

efetuado por meio das atitudes de ironia, de autodilaceração e de autofragmentação de seus

110

personagens frente ao contexto romântico, que fazem do fenômeno do duplo, em suas

narrativas, um ideal romântico, ao olhar a realidade a partir de múltiplos ângulos, e tendo

como perspectiva a de que a percepção da realidade pode ser mais fantástica do que qualquer

fantasia. Ao representar um mundo insólito e múltiplo, a literatura fantástica e, em especial, a

ficção de Hoffmann, permitem novas percepções quanto ao real, fazendo com que sua

apresentação não conduza à negação das situações, mas produza à reflexão e o constante

questionamento.

A ambição romântica quanto ao postulado do absoluto, portanto, afirma haver um

monismo ontológico e epistemológico, logo a unidade e a síntese tanto marcam a “alma

romântica”. Em Hoffmann, a princípio, como ideal romântico, existe a necessidade de se

avistar um possível reencontro com a unidade perdida, que, no entanto, assinala para uma

essência e origem, a qual de forma ilusória e idealizada, os românticos acreditam ter existido e

buscam por seu resgate. Em Hoffmann, o possível encontro “utópico” com a unidade

romântica viria por meio do resgate com o Eu. “A arbitrariedade absoluta é, em certo sentido,

picante e romântica. Essa é a romantização positiva da matéria. O não polêmico é a forma

negativa” (Schlegel, 2016, p. 139).

Como marca romântica, há a ambição pela unidade que envolve a poética, a lógica, a

filosofia, a retórica e a ética. Contudo, para Schlegel (2016), a unidade romântica não é

poética, mas mística; a unidade ética torna-se absoluta, quando individual; a totalidade do

romance vem através de sua parcialidade limitada, mas se deve aspirar por uma totalidade

ilimitada e a totalidade filosófica é adquirida por conta da satisfação. A unidade, a partir

disso, na verdade, seria uma forma particular de unidade.

111

Representação absoluta é ingênua, a representação do absoluto é sentimental.

Shakespeare é, ao mesmo tempo, ingênuo e sentimental no mais alto grau. Um colosso

da poesia moderno; o ingênuo em Romeu, por exemplo, é evidente intencional. Não

será toda mímica absoluta, ética, infinita e potenciada uma representação do ingênuo?

(Schlegel, 2016, p. 122).

Ainda, para Schlegel, (2016), a todo escrito crítico perfeito pertence à capacidade de

síntese e análise absolutas. A arte, desse modo, cobiça unificar dois absolutos: a

individualidade absoluta e a universalidade absoluta. “Espírito é unidade e totalidade de uma

maioria indeterminada de singularidades incondicionadas. Tom é uma unidade indeterminada

de especificidades. Forma é uma totalidade de limites absolutos. Matéria é uma parte da

realidade absoluta. (Schlegel, 2016, p. 148).

As multiplicidades, as diferenças das personagens e das narrativas, em Hoffmann,

produzem um anseio pelo saber total, que engloba o artístico, o filosófico e o psíquico, diante

das diversas realidades. Porém, paradoxalmente, os românticos e os desdobramentos dos

fenômenos do duplo, sugeririam o encontro consigo mesmo, mas abrem-se para a

fragmentação, para o infinito, para “o sempre” acabamento e para o devir. Hoffmann, como

romântico procura a totalidade romântica, mas sempre visualiza os fragmentos do Eu, a

divisão que torna o sujeito um “divíduo”. O encontro com os fragmentos do Eu e com a

complexidade dos vários “Eus” existentes no sujeito, faz com que a leitura de Hoffmann

possibilite a percepção de que a proposta romântica se esbarre com a noção psicanalítica de

um Eu descentralizado e cindido. Com isso, há o rompimento com qualquer crença a respeito

de uma verdade absoluta quanto ao sujeito e, principalmente, quanto ao seu psiquismo.

112

A fragmentação jamais está sozinha, pois sua forma é plural. Duarte (2011) aponta

para a expansão da fragmentação que, ao invés de evidenciar por soluções e respostas, o

fragmento, por excelência, é incompleto e afirma a lógica da diferença: não o da identidade, a

completude nunca ocorrerá, pois os fragmentos não cessam. Atravessando a formação de uma

totalidade fechada e sem diferenças, o fragmento pontua, repete, lança, contradiz, isto é, forja

sua duplicidade constituinte: parte e todo ao mesmo tempo.

A obra poética é frequentemente apenas o esboço, o estudo ou o fragmento, assim

como o Eu. Mesmo o maior sistema é apenas um fragmento (Schlegel, 2016). A tentativa

romântica, consequentemente, de alcançar o absoluto, somente pode ser relativa ou

contraditória. Para Duarte (2011), isso não seria tolerável para Hegel, cuja dialética foi a

estratégia para assegurar o respeito pelo princípio da não contradição, resolvendo no jogo da

síntese do saber a oposição entre a tese e antítese.

Nesse sentido, a fusão com o duplo e, a partir dele, tornar-se uno, revela a tentativa

romântica de reencontro com a unidade perdida. A “unidade do ser uno” está perdida, pois o

Eu é fragmentado de si. A partir disso, existe a possibilidade do encontro com o duplo, como

o “outro de si” ou como os “outros Eus de si”, a fim de haver a permanente construção do Eu

e a eterna busca por seus fragmentos sociais e psíquicos. Portanto, o “outro”, em Hoffmann,

aponta para a possibilidade da existência do “Eu”. Simbolicamente, a vida pode ser uma

criação literária, que oferece ao homem, mesmo ele sendo um “divíduo”, a oportunidade de

que ele seja um escritor de si.

113

4 A LEITURA INTERPRETATIVA DOS CONTOS

4.1 A Imagem Perdida

Um homem assim tem dupla existência; por mais que sofra e esteja oprimido por decepções, faz-se quando se recolhe a si mesmo, rodeado por uma auréola na qual não penetram a dor ou a revolta (Shelley, 2007, p. 33).

O homem, entretanto, pode ser oposto a si mesmo de duas maneiras: como selvagem, quando seus sentimentos imperam sobre seus princípios, ou como bárbaro, quando seus princípios destroem seus sentimentos. O selvagem despreza a arte e reconhece a natureza como sua soberana irrestrita; o bárbaro escarnece e desonra a natureza, mas continua sendo escravo de seu escravo por um modo frequentemente mais desprezível que o do selvagem (Schiller, 2011b, p. 68).

O conto A imagem perdida (2003) é originalmente intitulado como Die Geschichte

vom verlorenen Spiegelbilde e não está incluso em nenhum livro de Hoffmann, encontrando-

se como pertencente à coleção de textos dispersos do autor. Segundo Rank (2013), nesse

mesmo período, no qual o ano de publicação dessa narrativa não é datado precisamente, um

novo filme da Messterfilm, O homem no espelho [Der Mann im Spiegel] teria sido baseado

nessa história de Hoffmann, sendo adaptado por Robert Wiene. A imagem perdida é um

conto cuja temática encontra-se ligada às consequências da ausência/perda de sombra, tal

como a perda da imagem no filme alemão O estudante de Praga (1913), o qual foi baseado

em William Wilson, de Edgar Allan Poe.

Hoffmann, em A Imagem perdida, evoca a obra História maravilhosa de Peter

Schlemihl (1814/2003), uma fábula, de autoria do escritor e naturalista franco-alemão

Adelbert von Chamisso. O jovem Peter Schlemihl, de Chamisso, depara-se com uma proposta

114

inusitada de um estranho senhor (o diabo), que em troca de uma bolsa mágica, a qual nunca

para de fornecer moedas de ouro, o jovem deveria trocar por sua sombra. Peter gostou das

vantagens e fez a troca. O diabo prometeu que retornaria dentro de um ano. No entanto, logo

Schlemihl se arrepende do que fizera, porque as consequências não tardaram a acontecer: as

pessoas estranham e se afastam; o jovem é perseguido e afastado da sociedade. Neste

momento, surge novamente o diabo, que se oferece para devolver sua sombra em troca de sua

alma, porém Schlemihl resiste e nega.

O diabo insiste em persegui-lo e assediá-lo, mas Peter resiste obstinadamente, até que

ele joga a bolsa mágica em um precipício e abre mão do benefício do primeiro contrato. O

vínculo é desfeito e o diabo desaparece. Sozinho e sem propósitos, o jovem, sem sombra e

pobre, encontra com um par de botas velhas que comprara de um mascate com suas últimas

economias, sendo elas, as encantadas Botas-de-Sete-Léguas. Depois disso, a única ocupação

da vida de Schlemihl foi a de conhecer cada canto da Terra e colocar seu conhecimento em

livros para servir a futuros pesquisadores. A história de Chamisso tem ingredientes de uma

fábula: o pacto do com demônio, as riquezas e poderes inesgotáveis, a peregrinação pelo

mundo e pode ter ser uma alegoria para os tempos modernos. O homem sem sombra de

Chamisso: Peter Schlemihl é representado por Hoffmann, em A imagem perdida.

Estruturalmente, a narrativa A imagem perdida (2003) encontra-se dividida em duas

partes. A primeira localiza-se temporalmente na véspera do Ano Novo, em que Hoffmann (o

personagem principal) relata seu reencontro com Júlia. O protagonista conhece Peter

Schlemihl, sua sombra, e o General Suwarow, o seu reflexo. Júlia seduz Hoffmann, porém

acaba abandonando-o e levando a sombra dele consigo. Suwarow alerta Hoffmann quanto ao

perigo que está por vir, deixando uma carta, na qual está contida a história dos dois. Nesse

momento, começa a segunda parte do conto, em que a história de Erasmo Spickherr, o general

115

Suwarow, é narrada. Deixando-se seduzir por Giulietta, permite, inconscientemente, que esta

também aprisione seu reflexo no espelho. Nesse caso, as duas partes do conto estão inter-

relacionadas e espelhadas.

Todos os elementos duais em ambas as histórias inserem-se nos fenômenos do que é

estrangeiro, o que é aparentemente alheio ao Eu e, com isso, apenas podem ser apresentados

sob a forma do mistério, do desconhecido e do enigmático. Sendo assim, a categoria do

inquietante transformou-se em algo familiar, ou seja, nos próprios desejos inconscientes, os

quais, contudo, ainda não são dominados e conhecidos pelo próprio sujeito. Isso faz, portanto,

com que haja um aspecto assustador e pavoroso mediante a experiência.

As relações com a angústia e com o desejo inconsciente manifestam-se, assim, por

meio da temática do duplo de que o “homem não é o senhor de sua casa”. O recalque, na

verdade, é o retorno do recalcado e, em cada novo aparecimento, ele esbarra com a vigilância

do Eu e de seus simbolismos. Todavia, o inconsciente insiste em romper com tais bloqueios e

o recalcado regressa disfarçado nos sintomas, nos sonhos e em algumas vivências a princípio

incompreensíveis. A repressão é o processo psíquico do qual o sujeito determina ideias,

pensamentos, lembranças e bloqueios, ao submergi-los na negação inconsciente. O bloqueio,

desse modo, ocasiona a angústia, que, longe de ser extinta, se liga à pulsão. O recalcado,

portanto, torna-se o elemento central do inconsciente.

Em A imagem perdida, os protagonistas expressam a crise romântica que abrangeria

tanto o conflito de seu ser quanto a de seu confuso momento histórico e social. Com isso, a

crise do Eu expressa-se por meio das múltiplas e fragmentadas manifestações do fenômeno do

duplo. O sujeito confronta-se com as dispersões de seus “Eus”, nos quais sua percepção oscila

diante de uma imagem refletida ou que, ilusoriamente, teria, no momento passado, uma

imagem de seu Eu pleno, que foi perdida e, no entanto, busca resgatá-la.

116

O foco narrativo da primeira parte do conto é em primeira pessoa, tendo pela

personagem Hoffmann a principal, o que confirma a presença de um narrador autodiegético –

aquele que descreve suas próprias experiências, configurando a entidade que protagoniza a

dupla aventura de ser herói da história e o responsável pela sua narração. Com a eclosão do

Romantismo, o Eu realiza uma viagem em direção ao seu próprio centro. Portanto, as

narrativas se tornam o relato da abordagem pessoal, por meio de um movimento reflexivo em

torno de si mesmo, através do qual o sujeito constrói a sua essencial verdade. Já a segunda

parte da história encontra-se através da narração de onisciência neutra, em que a voz em

terceira pessoa não realiza intrusões ou comentários gerais sobre o comportamento das

personagens, embora a presença do narrador se interponha entre o leitor e a história de

maneira clara.

A construção do conto, ao apresentar variações nas vozes narrativas, possibilita

condições para que o real seja captado sob duas perspectivas. O foco em primeira pessoa

evidencia a necessidade romântica da possibilidade de conhecimento acerca do Eu, como,

também, propõe uma teoria subjetiva de interpretação e reflexão do mundo, tendo por

respaldo o elemento da vivência interior, efetuada através da linguagem ficcional. Já o foco

em terceira pessoa denota a intenção de distanciamento, pois, como ambas narrativas são

atreladas, o protagonista da primeira parte poderia estar um pouco mais afastado de sua

interioridade e fantasias a fim de poder observar os acontecimentos narrados por “um outro”

com maior nitidez e desprendimento. Com isso, a duplicidade nas vozes da composição da

narrativa, a partir de oposições na forma de descrevê-la e tratá-la, sugere o equilíbrio ativo das

forças e da necessidade de complementaridade.

Inicialmente, a atmosfera do conto sugere o mistério, algo de natureza inquietante, que

poderá vir a acontecer no decorrer da narrativa. Hoffmann, o narrador, à véspera do Ano

117

Novo, descreve-a sendo uma tarde de inverno e sente o sangue queimar-lhe as veias e o

coração a gelar-lhe o peito. Descreve sentir sensações desconhecidas, as quais poderiam ser

febre ou até mesmo delírio. Os gatos estariam enfurecidos e, também, algumas vozes

confundiam-se com a tempestade ou com o “tiquetaquear do relógio que assinala a queda das

horas no abismo da eternidade”. Com isso, o autor sugere que o oculto e o inesperado

estariam presentes na vivência de seus sentimentos, a incerteza dos fatos, assim como

responsáveis pelas possíveis rupturas da ordem no decorrer do conto.

Como se trata de uma narrativa fantástica, tais elementos teriam o propósito de romper

com a estrutura e com a disciplina diante do mal-estar desencadeado pelo contexto, onde os

escritores românticos tinham receio acerca do tédio e da monotonia da vida burguesa, que

privilegiou e ascendeu aos valores de condição quantitativa, como o dinheiro, o lucro e a

realidade cruel da existência.

Para o narrador, a véspera do Ano Novo representava o irrompimento de dores morais,

o sentimento de envelhecimento e a aproximação do fim: a morte. O Ano Novo é o momento

quando um novo ano civil começa e, em geral, ele é comemorado e recebido com expectativas

e esperanças. Contudo, para o protagonista representaria a transitoriedade da vida e do tempo,

causando a desolação e o desencantamento. A passagem para o Novo Ano refere-se também

aos desdobramentos da dimensão temporal, que a tradição agrária é sobreposta ao

racionalismo e à lógica da matéria. A dualidade temporal vem representar a percepção incerta

do sujeito no Romantismo, o qual tende a idealizar o passado em um momento presente. Com

caráter angustiante, fica à espera por acontecimentos futuros, que apenas contornam-se pela

negatividade e pela frustração.

O desenrolar do tempo, sendo assim, produz, no protagonista, um sentimento de

nostalgia e de vazio, decorrente da sensação de impotências sobre a vida. Freud, em Sobre a

118

Transitoriedade (1916 [1915]/1996), analisa os lamentos de um poeta, cujo pensamento recai,

invariavelmente, à fatalidade de extinção da beleza, seja ela o esplendor humano, bem como a

Natureza que se faz destruída pelo inverno, por exemplo. Apenas quando o Eu renuncia ao

objeto perdido e à idealização embutida no mesmo, conseguirá averiguar o alto conceito das

riquezas do mundo e organizará em torno do seu Eu a importância do efêmero. Hoffmann,

portanto, reside em uma confusão temporal, não vivendo nem no passado e nem no presente,

sentindo-se fragmentado e faltoso quanto a algo que teria sido perdido – a sua unidade, que é

camuflada através dos fenômenos do duplo ou dos múltiplos. Contudo, ele se perde diante de

seus múltiplos desdobramentos.

A narrativa prossegue com Hoffmann relatando o dia anterior, no qual estava em uma

festa e se reencontrou com Júlia, pois não se viam há cinco anos. Descreve-a como tendo

feições “angelicais”, possuidora de “esplendorosa beleza”, “mais alta e mais sedutora do que

nunca”. A repetição da figura de Júlia, de Hoffmann, na primeira parte do conto e da

Giulietta, de Suwarow, na segunda parte da narrativa é outro elemento fundamentado no

duplo, despertando a problemática da repetição, em que a compulsão à repetição se lança à

percepção da inquietante estranheza familiar, a fim de que algo seja simbolizado.

Como outros desdobramentos do fenômeno do duplo estão as personagens femininas

Júlia e Giulietta, as quais, podem ser apenas uma mesma pessoa. Além de possuírem muitas

semelhanças físicas e psicológicas, ambas são descritas com detalhes sob a mesma

correspondência. O platonismo constitui um dos horizontes filosóficos do Romantismo, que

acarretará o renascimento do mito do andrógino: o ser híbrido, completo e perfeito. Imortal,

posto ser capaz de se auto-engendrar, porém, devido à sua cisão na origem dos tempos, dará

origem à oposição dos dois sexos, pois cada um traz em si a nostalgia da unidade primeira.

Júlia e Hoffmann, Giulietta e Erasmo. Esses pares formados em duplicidades vêm simbolizar

119

a necessidade romântica, feita por meio da subjetividade, de tentar fundir os opostos, seres

completos e preenchidos, a fim de se alcançar a integração.

Todavia, a síntese amorosa começa por um desejo completo, no qual dois continuam

sempre dois, não podendo se tornar um por mais que se abracem, se enlacem e se desejem por

toda a eternidade. A percepção quanto à unidade perdida obrigou o homem romântico a

conceber os opostos como aspectos complementares de uma única realidade, na qual o

sujeito, como Hoffmann e Erasmo, pode ser eles ou “um outro”, como sendo Júlia e Giulietta

ao mesmo tempo e, ao ser esse outro, não deixa de ser a si mesmo, sendo isso o traço

principal do duplo.

Dando continuidade à narrativa, desesperado por não estar nos planos de Júlia,

Hoffmann entra em uma taverna, onde seus frequentadores o olhavam discretamente, como

que interrogando sobre sua aventura amorosa. Alguém deseja entrar na taverna e o recém-

chegado, antes de entrar, grita para que não se esqueçam de cobrir o espelho. Era um

homenzinho, o general Suwarow, o qual se senta à mesa, colocando-se junto a Hoffmann e a

um botânico. O general, logo ao sentar-se grita: “Com todos os diabos! Esconda este maldito

espelho!”. O narrador sente um terrível medo e pensa que Suwarow poderia mesmo ser Satã

disfarçado. Enquanto isso, o botânico se encarregava de arrumar melhor o pano que ocultava

o espelho.

Os homens com pouca estatura fazem-se presentes nas narrativas de Hoffmann, como

neste conto, com o general Suwarow, e em O pequeno Zacarias chamado Cinábrio. Sendo

assim, o elemento do grotesco acentua as nuances das contradições entre o desejável e a

aparência real do próprio ser, como ocorre também entre o modelo promulgado pela cultura e

a necessidade por rompê-lo, fato que gera a identificação com os sujeitos excluídos. Todavia,

120

se o sujeito tiver algum cargo de destaque e de respeito, tal característica indesejada tende a

ficar menos visível e, até mesmo, tornar-se aceitável.

A temática do espelho é frequente ao imaginário da narrativa e do Romantismo, o que

permite, nesse momento, a visão angustiante do mundo, percepção essa também projetada

para a visão de si próprio, na qual ele vê em si mesmo “um outro‟. O Eu, quando se reflete no

espelho, constitui-se como uma cópia que pode ser tida como a visualização da alma, que

confronta o sujeito a ser senhor de si mesmo. Rank (2013) assinala que a relação do sujeito

com o Eu pode ser vivenciada de forma fragmentária, cindida ou multiplicada em sua máxima

expressão. As outras maneiras de perturbação do Eu exploradas pelo autor Hoffmann, nesse

conto, remetem às fases de regressão a um período em que o Eu não se distinguiria

nitidamente do mundo externo e de outras pessoas.

O general, em seguida, desafia o botânico a mostra-lhe uma imagem roubada de um

espelho e diz não poder se ver refletido, mas, em contraponto, ainda tinha sua sombra. Isso

demonstra que a construção da imagem, comum na literatura e, sobretudo, nas narrativas de

Hoffmann, do apagamento do Eu frente ao espelho, decorre devido ao processo interno de

reconhecimento do indivíduo, o qual se enxerga pelo olhar de fora como um estrangeiro para

si mesmo. Suwarow não tem sua imagem refletida no espelho, porque ele ainda não se

reconhece como um sujeito. A imagem refletida pelo espelho nem ao menos existe, pois é

necessário abandonar a visão do Eu irreconhecível ao cobri-lo. Toda a supressão de uma

batalha interna reproduzida, consequentemente, denota a ausência de autoconhecimento e o

não olhar do outro frente ao não reflexo reafirma, com isso, a condição do sujeito romântico

como solitário, confuso e à margem de qualquer constituição social.

De maneira geral, o espelho, segundo Chevalier & Gheerbrant (1997), reflete a

verdade e o conteúdo da consciência, o que pode inspirar o terror diante do conhecimento de

121

si. A concepção de enxergar ou não o reflexo no espelho estaria unido aos conteúdos internos

do sujeito, bem como a desconstrução da identidade da personagem por diferentes fatores,

como o conflito romântico do sujeito consigo e com o mundo. O que é refletido pode,

também, referir-se à verdade escondida ou às revelações de caráter inconsciente.

A ideia de um homem sem sombra causava horror em Hoffmann, o personagem e, ao

observar o general atravessar a sala do ambiente, nota que o corpo deste não projetava sombra

alguma. O protagonista se lembra de Peter Schlemihl, um judeu alemão, e sai em busca do

general. Segundo Freud (1913[1912-1913] /1996), todos os objetos tabus têm caráter

ambivalente. Alusões a isso também aparecem relacionadas à sombra. Os povos primitivos,

de acordo com Rank (2013), têm vários tabus que retomam especificamente às qualidades

oriundas da sombra, como, por exemplo, evitam projetá-la sobre certos objetos

(especialmente alimentos). A sombra, nas antigas lendas, também propõe ao seu antigo

senhor desempenhar, por meio dela, o papel de troca, ou seja, o pagamento perante o mundo.

Assim sendo, os retornos aos elementos misteriosos e lendas atribuídas à sombra condizem

com uma forma de pagamento, que estrutura o Eu e converge quanto à negação romântica de

quantificação da vida, ou seja, do predomínio das relações objetivadas através do papel-

moeda e do lucro. Nesse caso, a maneira de pagamento viria por meio de algo próprio ao Eu –

a sombra, a alma.

Por conseguinte, o dono da taverna o empurra e diz não precisar dos fregueses que

teve naquela noite. Ao sair do recinto, Hoffmann lembra-se de ter esquecido a chave de casa

no bolso de seu casaco e pede asilo na hospedaria Águia de Ouro. Em seu novo aposento há

um grande espelho, no qual Hoffmann via-se refletido: pálido, que mal conseguia se

reconhecer. No entanto, uma forma vaporosa avançava sobre ele, aparentando ser a figura de

Júlia. O grande espelho evidencia que Hoffmann presenciava mais uma manifestação do

122

fenômeno do duplo, vindo a formar diante de si a imagem de seu “segundo eu”, o que lhe

causava espanto e desconhecimento perante seu verdadeiro Eu, visto sob outro prisma, pois

ele ainda não havia conhecido ou explorado os domínios de sua interioridade. Sendo assim,

sua imagem ampliada o direciona a ser o seu senhor, em um confronto entre seu Eu e a

realidade, conduzindo-o a um universo desconhecido e apavorante.

Em seguida, Hoffmann corre para seu leito e observa nele deitado o mesmo general

Suwarow que conheceu na taverna. O general sonhava em voz alta e começou a pronunciar o

nome: “Giulietta!... Giulietta!”. O narrador acorda o general e exige explicações sobre a troca

de quartos. Sobre o nome pronunciado, o general diz a Hoffmann nunca mais o emitir. Pediu

para deixá-lo dormir e não se esquecer de cobrir o espelho. O homenzinho relata que ambos

estão unidos por uma fatalidade, por um mesmo infortúnio, expondo ao personagem

Hoffmann que sua imagem não podia ser refletida. Relata ainda que, enquanto Schlemihl

vendeu sua sombra ao diabo, ele havia dado sua imagem à Giulietta, que nunca mais a

devolveria. Hoffmann ficara estupefato diante do relato e seus sentimentos oscilavam entre o

horror e a piedade e decidiu ir deitar, porém:

A excitação do meu sistema nervoso atingira o máximo; meu espírito

turbilhonava num labirinto povoado de fantasmas indescritíveis. Pareceu-me, de

repente, que o mundo diminuía como aquelas casas de bonecas. Vi todos meus amigos

mudados em homúnculos de açúcar. Depois todas essas figuras cresceram

desmesuradamente e, no meio delas, apareceu Júlia, que me estendia um copo cheio de

ponche, dizendo: - Bebe, meu anjo, bebe este licor divino! (Hoffmann, 2003, p. 9).

123

Como uma das propostas do Romantismo, o sonho é capaz de transformar a frustrante

realidade, admitindo os duplos lados da alma. Tanto o aspecto diurno como, principalmente, a

parte noturna são um “espaço” onde se realizam as recusas da vida cotidiana. Para a

psicanálise freudiana, os sonhos têm como principal função proteger o sono e permitir a

realização dos desejos do sonhador. Enquanto desejos não reconhecidos pela pessoa que

sonha, os desejos inconscientes se modificam no universo dos sonhos por meio de alguns

mecanismos de defesa, como, por exemplo, a condensação e o recalque. A partir disso, às

vezes, à primeira vista, eles aparentam ser sem sentido. O pesadelo, ou “sonhos de angústia”

do general com Giulietta, evidencia a divisão da psique e a existência do inconsciente, pois os

desejos neste tipo de sonho são assustadores e mostram cenas apavorantes.

Alguns desejos são inadmissíveis pelo sonhador, sendo eles não reconhecidos, pois,

caso fossem, seria gerada uma angústia, como, por exemplo, o pesadelo – o desejo do general

para com a figura de Giulietta, nesse caso. O universo onírico, especialmente os “sonhos de

angústia”, também pode ser considerado um desdobramento do Eu, porque seu portador, o

general, ainda não tinha domínio sob seus desejos e mobilizações frente à realidade.

Hoffmann estava prestes a tomar a bebida, quando ouve um grito atrás dele: “Não

beba! Não beba! É o veneno de Satã!”, era o general Suwarow. Júlia, todavia, indaga a

Hoffmann sobre qual seria seu medo em tomar a bebida, pois os dois “nasceram um para o

outro por toda a eternidade” e, Hoffmann oferece sua imagem a ela em troca de um beijo.

Suwarow novamente grita: “Não beba! Não beba!

Freud, em Totem e Tabu (1913 [1912-1913] /1996), aponta para as proibições

obsessivas sujeitas ao deslocamento. Um objeto, como, no caso desse conto, a bebida, pode

conter características especiais a fim de poder se concretizar determinado desejo. Os impulsos

psíquicos dos povos primitivos são diferenciados por uma maior ambivalência, a qual pode

124

ser encontrada no homem moderno, civilizado e pautado pelos fundamentos científicos e

racionais. A modernidade, portanto, diminuiu a ambivalência, visto que o tabu, ou seja, o

sintoma da ambivalência e o acordo com os impulsos conflitantes lentamente desapareceram.

As explicações psicanalíticas sobre a resolução dos tabus direcionam-se à origem da

consciência, isto é, ao sentido de percepção do Eu e do mundo externo, pois haveria a

consciência das ações realizadas a fim de satisfazer determinado desejo. Os povos primitivos

atribuíam aos seres benevolentes e malignos às causas dos fenômenos naturais e objetos

inanimados pertencentes ao mundo. O sistema animista das crenças primitivas foi alcançado

por meio das visões dualistas, em que a origem de tais teorizações foi, sobretudo, o

prolongamento da vida.

A magia tem, portanto, como um de seus fundamentos, a crença humana na realização

de todos os seus desejos, a qual, de forma fantasiosa e dinamizada pela onipotência do

pensamento, faz com que os sujeitos produzam ilusoriamente sua própria ordem e controle

perante as situações. Os produtos oferecidos em sacrifício podem ser comidas ou bebidas,

com os quais os homens saudavam as divindades, a fim de se conseguir alguma vantagem.

Originalmente, a bebida ofertada era o sangue da vítima animal, no entanto, mais tarde, foi

substituído pelo vinho – “o sangue da uva”.

Júlia, contudo, continuava a insistir para que Hoffmann tomasse a bebida e “várias

figuras de açúcar cândi” dançavam de forma veloz em torno dele. Nesse caso, os múltiplos

pequenos duplos de açúcar cândi podem ser imaginados como dispersões dos “Eus” de um

mesmo sujeito através de um espelho, porém, visualizados no universo onírico, onde todas

essas figuras movem-se em torno do Eu. O pequeno general Suwarow levantou-se mais cedo

e deixou endereçado a Hoffmann um manuscrito lacrado, no qual narrava uma história, a qual

poderia ser a do próprio narrador.

125

A carta endereçada a Hoffmann, que será a segunda parte do conto, estabelece-se

também como uma forma de oráculo, de previsão, em que, fugindo-se do destino ou dos

próprios desejos inconscientes, paradoxalmente, o sujeito vai ao reencontro de determinadas

situações para cumpri-las, como se pode ser observado em Édipo. Enquanto não haja o

encontro com as camadas inconscientes da mente, ou seja, com os mais familiares desejos, a

existência se enquadra como um esquema espiral, visto que a tendência à fuga corresponderá

a maior probabilidade de aproximação dos eventos.

Na segunda parte da narrativa, o mestre Erasmo Spickherr consegue acumular uma

herança, a qual cobriria seus gastos em uma viagem à Itália. Partiu despedindo-se da jovem

esposa e do filho. Já em Florença, estava reunido com um grupo de amigos em uma orgia e

permaneceu indiferente aos atrativos de algumas mulheres, causando o escárnio de seu amigo

Frederico. Entretanto, a amante desse amigo se volta para Erasmo e diz: “Toma cuidado. Se

visses Giulietta, a neve do teu coração se fundiria como gelo ao sol” (Hoffmann, 2003, p. 10).

No mesmo instante, uma bela jovem, com o “talhe de fada” e com o “rosto de madona”,

aparece no ambiente, sendo ela, a Giulietta.

Enquanto sujeitos que estão inadaptados no contexto romântico, o personagem

Hoffmann da primeira parte do conto e Erasmo da segunda parte iniciam ambas as histórias a

partir de um cenário de possível mudança, que Hoffmann descreve suas experiências

inquietantes, estando no dia da véspera do Ano Novo; já Erasmo começa a ter sua vida

transformada quando adquire o dinheiro de uma herança e vai à Florença. Rank (2013), a

partir disso, relata que o duplo conhece perfeitamente seu duplo, isto é, “seu outro”, o qual

seria uma irmandade própria ao Eu.

As particularidades do destino, ou do que a psicanálise proposta por Freud veio a

nomear como inconsciente, possuem uma construção e articulação próprias às demandas do

126

Eu em cada sujeito. Sendo assim, ao querer esquivar-se do “destino”, o homem, por

consequência, corre em direção a ele ou fica amarrado diante dos malefícios ou benefícios

correspondentes aos fenômenos da realidade psíquica do inconsciente. Os desejos reprimidos

alojados no inconsciente retornam, sob forma de repetição, por exemplo, e a censura não

consegue dominar a cobiça por determinado objeto que se faz escapar das profundezas da

alma humana.

O elemento inquietante, inesperado e, ao mesmo tempo, esperado, o duplo, para o

personagem Erasmo, surgiu em um curto intervalo de tempo entre a advertência de uma

pessoa e a mobilização de seu desejo. Dessa forma, a representação de um desejo e a angústia

do vazio de “ser” marcam o acontecimento psíquico, dominado pela estranheza e pela eclosão

dos desejos inconscientes que deveriam permanecer ocultos e afastados por meio do recalque

e da repreensão. No Romantismo, a subjetividade cindida em sua unicidade busca pela união

de seus contrários ou complementares e, o fenômeno do duplo, sendo assim, se torna um

elemento corriqueiro, devido à consciência do apavorante Eu e à tentativa de integrá-lo aos

vários “Eus” contidos em um mesmo indivíduo. O outro possibilita a existência do Eu.

Giulietta faz companhia a Erasmo, oferecendo-lhe uma taça contendo licor, com o

qual ele se embebedou caindo em uma postura de adoração por ela. Ao amanhecer, a jovem

decide retirar-se e dispensa a companhia de Erasmo, que não consegue mais encontrá-la.

Igualmente como na primeira parte do conto, a segunda parte tem como elemento ficcional

inicial, a bebida, a qual irá se desmembrar em outros acontecimentos ao longo da trama, a

partir do animismo, da magia e da onipotência dos pensamentos.

Freud (1913 [1912-1913] /1996) pontua que os indivíduos, diante de suas

necessidades, criaram as primeiras concepções do mundo através de seus próprios desejos. Os

127

povos primitivos, por meio da determinação de suas leis psíquicas, externalizavam na

realidade os seus mais íntimos desejos.

Enquanto resgate romântico das lendas e mistérios das crenças populares, os

elementos mágicos no Romantismo viriam a partir do mergulho e das surpresas

desencadeadas através do Eu e para o mesmo Eu. O papel enfatizado através da magia e da

onipotência dos pensamentos traz o elemento imprescindível à psicanálise, que é a realidade

psíquica, orientada por desejos inconscientes. A onipotência é ligada ao narcisismo,

compreendido como o investimento libidinal em si próprio, onde o outro existe somente

enquanto objeto de satisfação e não em sua alteridade.

Certo dia, por conseguinte, Erasmo reencontra Frederico, o qual diz ao amigo que

Giulietta é uma criatura dissoluta; que há muitas histórias sobre ela e Erasmo deveria esquecê-

la. Ambos decidem deixar Florença, mas, quando caminhavam, Dapertuto, o Doutor em

milagres, que vendia drogas à Giulietta, cruza o movimento dos dois e pronuncia que

Spickherr tinha que se apressar, pois Giulietta esperava ansiosamente por ele. Ao avistar

Giulietta, Erasmo vai ao seu encontro. Na narrativa, Dapertuto, sintetiza a possibilidade de

realização dos desejos temidos ou ignorados, inerentes a Erasmo, funcionando como uma

espécie de “princípio do prazer”, onde o encontro com Giulietta representa a realização plena

de seu desejo não sustentado. Nesse sentido, o homem seria o palco de encenação de uma luta

entre o bem e o mal, em um gigantesco enfrentamento produzido na escala do universo, mas,

principalmente, no interior de si. Sedo assim, Erasmo seria plenamente responsável e autor

por sua condenação ou salvação.

Em seguida, a jovem diz que, para Erasmo se salvar, precisará abandoná-la e

abandonar Florença. Apesar desses pedidos, ele se recusa. Sentados diante de um espelho,

128

Giulietta pede a imagem dele, uma vez que, a partir disso, nunca iriam se separar. Erasmo

inicialmente fica desconcertado, porém acaba por ser persuadido:

Ah! Já é preciso fugir para subtrair-me à desgraça que nos separaria para toda a

vida, que, ao menos, eu te possa deixar, para a eternidade, essa imagem cuja presença

adoçará tuas recordações!...Apenas acabara de falar, quando, lançando um olhar ao

espelho, não mais viu a sua imagem. A mesma Giulietta, que ele apertava ao coração,

esvaneceu-se como nuvem. Vozes fantásticas ressoavam no silêncio do apartamento

deserto.Erasmo, trazido de espanto, sentiu um véu gelado descer-lhe sobre os olhos

(Hoffmann, 2003, p. 13).

A imagem perdida representa a perda do Eu integral, ocasionando a sua não

visualização no espelho, simbolizando, com isso, a fragmentação e a impossibilidade do

encontro consigo mesmo diante da ilusão de que o sujeito possa a vir tornar-se uma unidade.

A imagem sugere o enigma do encontro consigo mesmo: quem sou Eu? No entanto,

Hoffmann e Erasmo não conseguem solucionar tal mistério e o discurso sobre os

acontecimentos que os cercam, são vivenciados como se eles fossem um observador externo e

neutro, sem qualquer participação em suas próprias vidas.

A ansiedade causada pela perda ou confusão decorrente da relação com o próprio Eu,

que representa a perturbação sobre o existir e os sentidos da vida para o romântico, afirma-se

com o advento da modernidade, com os avanços da tecnologia e com a quantificação da vida,

afastando o sujeito de sua vida interna, em que o cultivo do pensar sugere o caminho para

uma vida contemplativa e abstrata, o que vem em oposição à ação, à atividade e à

concretização.

129

A perda da sombra é uma referência direta a perda de identidade pessoal, social e

psíquica. Ela pode ser representada como a alma em si mesma ou como um elemento

semelhante. Os significados individuais da temática do duplo e da sombra, no sentido

simbólico-sexual, são regressados para o problema da consciência e do inconsciente. É

através do retorno do recalcamento que deriva o duplo, o estrangeiro, o sósia. E a díade

exposta, de forma vigorosa, algo da semelhança perfeita do duplo, talvez seja como Narciso e

sua imagem no lago, reflexo encantador e amargo de si mesmo. Admitir e deslumbrar a

própria imagem: o intuito é o de desarmar a angústia, ao demonstrar a existência e registrá-la

como lembrança. Portanto, a inquietante estranheza familiar, como a perda do reflexo em

Erasmo, se constitui em uma vivência de hesitação e perplexidade ante o mistério, o

inexplicável e o que se alterou com o curso habitual da experiência corriqueira.

Rank (2013) aponta que a forma de defesa contra o narcisismo manifesta-se pelo medo

e pela aversão através da própria imagem refletida. Todavia, a aparente perda, tanto da

imagem como da sombra, promove o fortalecimento, a independência e a possibilidade a fim

de se tornar foco do interesse do próprio Eu. Portanto, as contradições da perda da imagem no

espelho ou da sombra apresentam-se como perseguição das mesmas, sendo que as

representações dos opostos camuflados são decorrências do regresso do reprimido à

repreensão. “No espelho há a procura por um tu, no qual reconheça o Eu. Dessa forma, “a

„rachadura‟ vem quebrar esta relação dual, um terceiro, desconhecido e estranho, irrompe”

(Tavares, 2007, p. 87).

Diante do seu reflexo no espelho ou pela perda da imagem, Hoffmann e Erasmo não

conseguem revelar as suas personalidade e unicidades, porque seus Eus não são conhecidos

realmente. Como tentativas para a revelação de suas personalidades, eles recorrem às

dualidades e aos duplos. O narcisismo relaciona-se ao mito de Narciso, que viveria muitos

130

anos caso não visse sua imagem refletida, conforme as profecias de Tirésias. O sujeito

romântico, entretanto, se conseguisse reconhecer-se diante da imagem refletida no espelho, se

tornaria um indivíduo e o fato de ser um indivíduo denotaria que ele não poderia ser

reproduzido e quantificado.

O angustiado romântico, em A imagem perdida (2003), aparece como essencialmente

duvidando e interrogando a si mesmo, visto que necessita de um testemunho exterior: do

tangível e visível a fim de se reconciliar consigo mesmo. Sozinho, ele é o nada, mas, em

conjunto com o seu duplo, é garantida a sua existência. A angústia de ver o desaparecimento

do reflexo está conectada à angústia do conhecimento de ser incapaz de demonstrar a sua

vivência por si mesmo. De acordo com Rosset (1998), a fantasia de ser “um outro” cessa de

forma natural com a morte, isso pois o indivíduo acredita que não é parte do seu Eu que

morre, mas sim o seu duplo, o qual designa a unicidade irredutível da pessoa frente à

mortalidade.

Em um determinado dia, Erasmo coloca-se diante de um espelho. O garçom da

hospedaria em que está acolhido não vê nenhuma imagem refletida e começa a gritar que há

um homem sem imagem, um enfeitiçado. Os agentes da polícia são chamados exigindo que

ele mostre sua imagem ou, caso contrário, deveria deixar a cidade. Forçado a fugir, o jovem,

ao entrar em albergues, pedia aos proprietários para cobrirem os espelhos e recebeu o

codinome de general Suwarow, o qual tinha a mesma mania.

Segundo os apontamentos de Rosset (1998), a sombra e o reflexo traduzem um duplo

invertido, pois a sombra não é o duplo, mas, ao contrário, se compõem como seu inverso. O

espelho é enganador, visto que estabelece uma falsa evidencia, a ilusão de uma visão ao

mostrar um inverso, “um outro eu” e não o Eu. O destino de qualquer pessoa é simbolizado na

131

reflexão ou inversão da imagem no espelho, já que não se pode provar a própria existência por

meio de um desdobramento único, o que, portanto, apenas existe problematicamente.

Hoffmann e Erasmo, com isso, simbolizam que, no Romantismo, a inversão da

imagem correspondeu a uma não aceitação das modificações e a inversão de valores que

fragmentaram a unidade individual. O desdobrar-se, no entanto, implica, no fundo, em jamais

se desdobrar, porque o duplo falta para aquele que o duplo persegue. No Romantismo é

abandonado o postulado da singularidade da identidade do sujeito e sua consequente busca

por essa identidade, o que acarreta uma quebra de unidade do ser humano, uma fragmentação

do Eu.

Finalmente, chegando a sua terra Natal, Erasmo foi recebido pela família. Todavia, sua

esposa observa a ausência da imagem dele diante de um espelho e o manda embora, pois a

falta de imagem refletida representava para ela um espírito do inferno ou que ele teria feito

algum pacto. Para Rosset (1998), o destino do vampiro, cujo espelho não reflete nenhuma

imagem, nem mesmo invertida, simboliza o destino de qualquer sujeito: o de não poder

provar a sua existência por meio de um desdobramento real e único.

A verdadeira infelicidade do Eu no Romantismo, portanto, é jamais poder se

desdobrar, pois a falta vai ser preenchida com o que o duplo almeja. O reconhecimento de si

implica por si só, um paradoxo, pois a apreensão do que é impossível de se apreender e a

captura de si mesmo reside, ambiguamente, na própria renúncia desta captura. Talvez, por

isso, a dificuldade do homem romântico em integrar seu Eu, pois deveria abandonar seus

duplos, que funcionavam como uma defesa quanto a determinados elementos repelidos por si,

como também, a duplicidade almeja a união dos contrários. Com a expulsão do duplo, o qual

se coloca como obstáculo a existência do único, logo se exigirá que a unicidade não seja tão

somente ele mesmo.

132

Movido por angústias, o jovem visualiza Giulietta e solicita um reencontro com ela.

No entanto, ao ir até o local combinado, encontra-se com Dapertuto que promete servi-lo

diante de qualquer desejo. O Doutor Milagres oferece um elixir a Erasmo, propondo o

desembaraço do jovem com a esposa e com o filho, a fim de permanecer para sempre com

Giulietta. A bebida provocaria um sono profundo em Spickherr, o qual o recusa. Em seguida,

a lembrança de Giulietta veio atormentá-lo e Dapertuto lhe mostra uma pena de ferro e um

papel. Nesse mesmo instante, uma veia da mão esquerda de Erasmo rompe e o sangue começa

a jorrar. Quando ele iria assinar, um fantasma, representando o supereu de Erasmo, grita para

ele parar, pois iria entregar sua alma ao diabo e ele reconhece, na aparição, a voz de sua

esposa. Ao serem pronunciadas pela esposa as palavras sagradas de Deus e de Jesus, Giulietta

transforma-se em espectro e, depois, em fogo. O chão também se abre e a moça e Dapertuto

desapareceram em uma nuvem de vapor sulfuroso.

Nas duas partes do conto, observa-se o papel desempenhado pelo general Suwarow,

pela amante de Frederico e pela voz reconhecida da esposa no momento de assinar o contrato

com Deodatus. Funcionam como o juízo e a instância moral em Hoffmann e em Erasmo. O

consumo da bebida nas duas partes da narrativa, para ambas as personagens, tem a função de

ilusoriamente lutar pela felicidade e no afastamento da desgraça. A produção imediata de

prazer e a independência ao mundo externo, desencadeados por meio das substâncias

intoxicantes, são apenas “amortecedores de preocupações” e desperdiçam a quantidade de

energia, a qual poderia ser empregada para o aperfeiçoamento do destino humano.

O pacto com o diabo traduz a experiência do homem moderno, que é angustiado e o

qual os seus desejos jamais são satisfeitos. Por meio de um processo alquímico, Leite (1991)

destaca que a venda da alma (sombra, reflexo), em sua essência, corresponderia ao abandono

e troca do fragmentado Eu a fim de se superar o tempo, implicando nele também a

133

transitoriedade e a plenitude de todas as vontades da existência do sujeito. Se os desejos que

motivam os indivíduos encontram-se coligados à magia, logo ao crer nas particularidades

especiais desta, o homem confia de forma desmedida na força de seus desejos.

A angústia humana, para a ciência psicanalítica, seria fabricada pelo medo, que, em

cada momento histórico do Ocidente, realiza ameaças coletivas que seriam deslocadas para

determinados meios, como, por exemplo, o temor ao sexo, transformado em medo à mulher,

nas feiticeiras ou ao diabo. Contudo, a racionalidade se deparou com o limite imposto pela

própria situação do homem, pois a reinvenção do fantástico, aos moldes científicos, foi

rearticulada e transposta de maneira lógica à literatura. O sobrenatural ganhou componentes

humanos, em que, por exemplo, o diabo foi laicizado e o contágio dos elementos da realidade

pelo sonho produziria novos temas, como a volta dos mortos.

Para a psicanálise, o efeito projetivo da ação psíquica, na qual o desejo aparece

imediatamente realizado, é originário da supervalorização dos processos psíquicos, sobretudo

do pensamento. Portanto, o diabo é a melhor saída enquanto desculpa para o mal. Também é

organizado como agente de descarga libidinal e seu bode expiatório. Contudo, os mais

temíveis seriam os próprios desejos do Eu, que o sujeito não aceita algo em si mesmo, devido

ao recalque, e projeta, no espírito maligno, seus conteúdos indesejáveis. O dualismo absoluto,

como representação de Deus e do diabo, implica a presença de um ser único, perfeito,

completo e que seria um mecanismo do duplo enquanto oposições.

O sentimento de onipotência, de onisciência, as fantasia de superioridade e a sensação

de ser capaz de dividir tudo o que se refira à vida mental, como os próprios pensamentos e o

ato de se pensar, são emoções vivenciadas pelo sujeito como possuidoras da verdade absoluta.

A integração, portanto, pressupõe a modificação da visão de mundo, a investigação e o

abandono de alguma ordem já existente. A coesão do Eu poderá ser alcançada ao se acolher e

134

integrar as ambivalências, os dualismos inerentes à vida e a condição humana. Autonomia,

independência e emancipação são essenciais para o encontro consigo mesmo e para a busca

por uma possível tentativa de unicidade.

A multiplicidade dos duplos em A imagem perdida retoma a essência romântica de

que os elementos duplicados são o mundo e o próprio ser. Certos das antinomias da

civilização industrial moderna, os românticos desdobram os conflitos e as contradições entre

os opostos a fim de tentar resgatar e sintetizar as maravilhas e horrores do Eu – do

“divíduo”. A partir disso, os componentes irreais das experiências surgem como aparência da

própria realidade. Como personagens de si, Hoffmann e Erasmo apontam uma tentativa de

reconhecimento de si por meio dos duplos, como, por exemplo, nas relações diante do

espelho, em que não há a materialização do Eu e, quando isso ocorre, são as dispersões dele.

Sendo assim, os duplos auxiliam a necessidade romântica, em meio a um enredo da

realidade, de que a ficção possa colaborar para que o sujeito construa a sua identidade e

personalidade, formando-se e se desenvolvendo para que, com isso, viesse a ser tornar

ilusoriamente uno.

Contudo, a pluralidade de um mesmo Eu esbarra-se com a experiência de

despersonalização, faltando, a partir disso, a consciência de si, que abarca todos os

desdobramentos de um Eu real e do olhar do outro. Um Eu visto e reconhecido tanto para si,

isto é, sob o plano interior, como também para o outro, para os aspectos do mundo externo, ou

seja, um Eu afirmado diante das perspectivas sociais, histórias e econômicas.

A ausência de sombra ocorrida em Schlemihl e a perda do reflexo em Erasmo

remetem, de acordo com Rank (2013), a uma morte social, temática esta pertinente e essencial

ao período romântico. A sombra, enquanto imagem social se opõe à alma, à identidade

profunda. Schlemihl resiste à submissão à sombra e aceita sua condição de homem sem

135

sombra, renunciando ao seu falso duplo e guardando sua alma para sobreviver afastado dos

homens. Existe, portanto, a equivalência entre o reflexo e a sombra, pois, enquanto

pertencentes ao Eu, na narrativa, as personagens duplas cruzam o caminho uma das outras

como pessoas reais, possuindo desejos parecidos com o indivíduo que as encontra.

Ao voltar para casa, dando sequência à narrativa, a esposa sugere que Erasmo viajasse

em busca de sua imagem e que, quando a encontrasse,voltasse para seu lar. De forma

simbólica, desligar-se da família e da segurança do lar propiciaria uma viagem além do

universo conhecido e do domínio consciente; uma busca constante e duradoura, a fim de que

o “verdadeiro” Eu de Erasmo não fosse apenas conhecido, mas reconhecido.

Sendo assim, Spickherr sem imagem refletida e Schlemihl sem sombra, enquanto

duplos complementares se encontram e juntos vão rumo ao caminho do desconhecido

procurar pelos seus Eus perdidos:

Spickherr, o coração opresso, beijou a esposa e o filho, apanhou o bordão e

pôs-se a caminho. Encontrou certo dia o famoso Schlemihl, que havia perdido a

sombra. Os dois desafortunados propuseram-se viajar juntos; Spickherr entrava com a

sua sombra e Schlemihl com sua imagem. Mas não conseguiram chegar a nenhum

acordo e, até hoje, ninguém sabe o que lhes aconteceu (Hoffmann, 2003, p. 17).

4.2 O Doutor Trabacchio

136

Foi a partir do lado moral existente em minha própria pessoa que aprendi a reconhecer a profunda e primitiva dualidade do homem; vi que, das duas naturezas que lutavam no campo da minha consciência, podiam-se afirmar com correção que eu era qualquer uma das duas, mas isso apenas porque eu era radicalmente ambas (Stevenson, 2011, p. 68).

Também vejo uma dificuldade no fato de que o diabo, pelo seu caráter, que é realista, anula a sua existência, que é idealista. Só a razão pode acreditar nele, e o entendimento pode fazê-lo valer e compreender somente assim, como ele é. Estou realmente muito ansioso para saber como a fábula popular vai adaptar-se à parte filosófica do todo (Carta de Schiller a Goethe - Goethe & Schiller, 2010, p. 141).

A narrativa O Doutor Trabacchio (1816/s.d.) pertence ao livro Nachtrücke, obra

composta também pelo conto O homem de Areia. Originalmente, em alemão, esse conto

recebe o título de Ignaz Denner. A história tem um narrador de onisciência neutra, que se

apresenta, na estrutura do conto, o uso constante do discurso direto, que se caracteriza

justamente pela transcrição exata da fala das personagens, sem a necessidade da participação

do narrador. A história ao ser contata em terceira pessoa possibilita uma maior liberdade

narrativa para a explanação do enredo. No entanto, o recurso do discurso direto proporciona a

reprodução dos pensamentos e sentimentos das personagens, o que ocasiona a passagem do

Eu diante de “um outro”.

A história é ambientada nas terras de Fulda, em uma época remota, à entrada de uma

floresta. No Romantismo, a ideia de regiões inabitadas remete ao espaço onde o Eu pode

irromper, mesmo que por meio de dissociações, de fragmentações e de desintegrações que

propiciam a eclosão das manifestações do fenômeno do duplo e do inconsciente. André, um

hábil caçador e guarda geral da floresta representa, em conjunto com seus duplos, as

possibilidades com que o sujeito apreende-se caso deseje percorrer os movimentos da

natureza humana e as constantes lutas manifestadas dentro do aparelho psíquico. Mesmo

137

sendo um caçador, no entanto, ele hesita em permitir-se ao encontro pleno consigo mesmo,

sendo um guardião de si. Com isso, alguns elementos constituintes ao alcance dele, enquanto

um ser que é um sujeito, são deslocados às manifestações do duplo, que, nesse conto, irão

representar as dualidades que formam a complexidade do “divíduo”.

No Romantismo, as personagens em geral são construídas em redor de uma única

qualidade ou defeito, sendo, portanto, estáticas e sem um comportamento que se altere

durante a narrativa. A partir disso, André, o protagonista, está concebido por meio de

características puramente “divinas”. Já Inácio Denner e Doutor Trabacchio apresentam

elementos de natureza “demoníaca”. Sendo assim, os pares André e Inácio, André e

Trabacchio, representam-se como duplos e simbolizam a dúbia natureza humana.

Enquanto ambição romântica de encontrar-se com a unidade perdida, André e Inácio

surgem como as manifestações do duplo, como um fenômeno particular do Eu, que atravessa

o sujeito por multiplicidades que foram esquecidas, aniquiladas ou até mesmo recalcadas de

sua personalidade. Isso, por ele sentir que não estejam de acordo com o panorama e com as

exigências de seu tempo, que as transformações sociais pressupõem à lógica, à adaptação, à

produtividade e a um modelo identitário, em que os sujeitos deverão triunfar sob o preço da

racionalidade, da matéria, do consumo e do lucro. O refúgio encontrado a fim de que o

homem romântico consiga afastar-se de tais normas situa-se na interioridade e na afirmação

de que o sujeito não pode ser reproduzido. No entanto, ao deparar-se com as fragmentações,

as desintegrações e a complexidade de seus diversos “Eus”, o sujeito projeta-se, vindo a ter

com o duplo um modo de evasão e de segurança para vencer as barreiras da objetividade, da

lógica e do anseio social.

Os obstáculos da narrativa são realizados mediante à crise central referente aos

personagens, que por meio dos desdobramentos do duplo, ligam-se a André. A partir disso, é

138

manifestada a ambiguidade extrema e a necessidade da superação da coexistência dos

opostos, vindo a caracterizar uma forma particular, idealizada e ilusória de unidade, sentida

como perdida, mas que enseja um resgate. A articulação entre o caráter humano deriva do

conflito entre os planos do divino e do demoníaco, em que a fronteira entre os pares duais

românticos cede espaço para o território do inquietante.

De maneira geral, O Doutor Trabacchio retoma a lenda popular alemã, em que Doutor

Johannes Georg Faust (1480-1539), médico, mago e alquimista, teria feito um pacto com o

demônio, obtendo prazeres e poderes por meio de um conhecimento absoluto e de uma

experiência terrena gloriosa. Retomado em diversos contextos por Thomas Mann, Paul

Valéry, Ivan Turgueniev, Lord Byron e Fernando Pessoa, a obra literária Fausto constitui-se

como mais famosa e imortalizada por Goethe.

O tema de Fausto, de acordo com Tavares (2012), realiza alguns diálogos com a

psicanálise, sendo que, destacam-se os seguintes apontamentos: Freud foi influenciado pelo

Fausto goethiano; há objetos e conceitos da clínica psicanalítica, os quais têm relação com

uma construção biográfica-ficcional, diante da repetição e da nominação; existe a

identificação em presença do pai cindido, isto é, entre Deus e o diabo; a relação do sujeito

fáustico e do sujeito psicanalítico, que buscam por um saber que se aproxime da verdade,

perante a produção estética. “Fausto é universal, pois miticamente representa o drama que se

repete em cada homem individualmente. Fausto identifica-se no singular, ao individual que se

apresenta a cada um” (Tavares, 2012, p. 154).

A história de Fausto, para Binswanger (2011), enfatiza a experiência da modernidade,

que o homem angustiado busca superar a transitoriedade do tempo e a realização para todos

os seus desejos. A primeira parte de Fausto concentra-se na primeira tarefa da alquimia

moderna: a produção da poção áurea que traz rejuvenescimento e virilidade – o drama do

139

amor. A segunda parte da obra destaca sua segunda tarefa: a produção de ouro artificial no

sentido de dinheiro, a começar com a criação do papel-moeda na corte do Imperador – o

drama da economia.

Ainda, segundo para Binswanger (2011), a peça trata-se de um pacto com o demônio

sob a forma de Mefistófeles, o alquimista moderno que inicia Fausto nos segredos mais

profundos da alquimia. Portanto, Goethe descreve três possíveis modos de superar o tempo e

a transitoriedade, sendo o trânsito da ciência, que passa pelo portão do passado; o caminho da

arte, que percorre o presente e a passagem da economia que cruza o futuro.

Enquanto desejo romântico de combinar o contraste, o Doutor Trabacchio simboliza

Fausto assim como Inácio Denner, que na narrativa também oscila entre os papéis

desempenhados por Fausto e por Mefistófeles. André, o protagonista, contudo,

metaforicamente, sugere ser Fausto, mas ao inverso. O trabalho em conjunto com a

comunidade e com a natureza, a ideia de uma unidade familiar propiciadora da felicidade, da

harmonia e da ordem eram as sua verdadeiras pretensões.

Inicialmente, o elemento inquietante trazido pela leitura do conto refere-se à vida de

fadigas e aflições vividas pelo casal André e Georgina. Repentinamente, Georgina começa a

definhar e o nascimento de um filho aumenta-lhe os males e as dificuldades financeiras. E,

justamente nesse período, um homem bate à porta buscando abrigo durante uma tempestade.

O estrangeiro examina Georgina e, mesmo sem ser médico, com um remédio que trazia

consigo consegue reanimá-la. O novo hóspede era Inácio Denner que, ao revelar seu

sobrenome, demonstra ocupar uma posição social favorecida e possuir certo prestígio, ao

contrário do caçador e guarda florestal André e de sua esposa Georgina.

Um remédio para curar todas as doenças – um elixir. Vale-se, no Romantismo, do

advento da tecnologia, dos avanços da ciência, do anseio em dominar as adversidades em

140

benefício da evolução para o progresso da humanidade. E, no conto, esse elixir vem a

simbolizar a abertura para o universo irracional, onírico, inconsciente e a fantasia ficcional. A

iluminação ofertada pelo elixir corresponde a uma nova oferta do mundo, a um novo

encantamento ou reencantamento proporcionados pelo espírito investigativo de se conseguir

superar a fronteira entre o conhecido e o desconhecido para o próprio auxílio. A cura adviria

da possibilidade transcendente de libertar não apenas Georgina, mas toda a família das

funções morais e das regras sociais, por meio do mergulho no universo dos elementos

misteriosos do Eu, a fim de se constituir a unidade que foi perdida. O elixir e as implicações

que ele provoca encenam uma tentativa de modificações do Eu e uma nova forma de interesse

do mundo, ligada pelo espírito rumo ao materialismo, pela subjetividade e pelo domínio das

ciências ocultas.

Georgina era uma antiga serviçal de uma hospedaria. O casal não se cansava de

agradecer ao estrangeiro pelo elixir que permitiu a cura da esposa. Enquanto personagem

secundária, Inácio conduz André para os caminhos do desdobramento do duplo e a uma

vivência sobrenatural, pois, além de ter deixado mais um frasco do elixir, entrega ao casal um

cofrinho cheio de joias para que guardasse até seu retorno, o que despertou em Georgina a

cobiça pelo poder, pelo sucesso e pela riqueza.

Para Freud (1920/2010), o que regula o propósito da vida é o programa do princípio do

prazer, o qual visa ao desejo de gratificação imediata. Com isso, por André ter mais cautela

quanto às generosidades de Inácio, evidencia-se que ele seja guiado pelo princípio da

realidade, isto é, vacila quanto às gratificações de caráter imediato. Já sua esposa passou a

orientar-se, a partir da visita de Denner, pelo princípio do prazer. Sendo assim, ambos

simbolizam, a partir de extremos, duas instâncias do aparelho mental: o supereu e o isso,

respectivamente.

141

A mente humana é constituída por uma espécie de anjo, representada pelos aspectos

bons, e por outra parte, pelo diabo, representado pelos elementos considerados social e

culturalmente maus e, também, possuindo uma instância mediadora entre ambas as

representações. O modelo do aparelho psíquico é composto pelo isso, pelo Eu e pelo supereu.

O isso corresponderia à fonte da energia psíquica, a libido. É formado pelas pulsões, impulsos

orgânicos e desejos inconscientes, tendo como modo de funcionamento o princípio do prazer,

o qual se orienta pela satisfação imediata das necessidades e desejos. Recusa as frustrações e

o contato com a realidade. Desconhece o juízo, a moral, a ética e é orientado pelos fenômenos

inconscientes. O Eu desenvolve-se a partir do isso, objetivando o contato com o mundo

externo e com o princípio da realidade. Introduz o indivíduo à razão, possibilitando efetuar o

pensamento antes de concretizar a ação, tendo como principal função a harmonia entre os

desejos prazerosos e a realidade. Posteriormente, media as exigências do supereu. Já o

supereu corresponde às funções morais da psique e representa os valores delineados pela

sociedade. Funda-se após o Eu introjetar os ensinamentos dos progenitores e pode funcionar

de forma a punir o indivíduo diante de determinadas ações ou, até mesmo, pensamentos.

Quanto à saúde restabelecida de Georgina, André diz a Inácio: “- nunca esquecerei o

que lhe devemos, redargüiu-lhe o guarda. Permita Deus que algum dia me seja dado oferecer-

lhe o meu sangue e a minha vida” (Hoffmann, 1816/s.d., p. 67). Durante o enredo, por

diversas vezes, André recusa-se às mordomias propiciadas por Inácio, contudo, o caçador, em

agradecimento pela saúde restabelecida da mulher, pode até mesmo oferecer a sua própria

vida, a menos que sua “consciência” não seja perturbada. Com a ascensão do Romantismo há

o predomínio dos valores qualitativos, os de uso e os éticos em contraposição com os valores

da civilização capitalista moderna. Sendo assim, André ainda está arraigado à importância do

142

papel essencial das ligações afetivas e ao conjunto do tecido social. A predominância da

riqueza e dos bens materiais faz-se disparar em Georgina.

Ao ir embora da casa do casal, Inácio Denner solicita três favores: presenteia Georgina

com certa quantidade de ouro, pede que André permita-a aceitar e solicita que André ensine-o

o caminho pela floresta, porém, apenas até certo ponto. As passagens mais densas serão

percorridas somente por Inácio. A floresta é simbolizada como uma passagem para conteúdo

de natureza inconsciente e aos fenômenos do duplo, isto é, um espaço de conhecimento, pois

instiga a se pensar que Inácio estava disposto a se aventurar por caminhos mais duvidosos; já

André, tendo um supereu rígido, permanece com prudência. A psicanálise almeja pela

descoberta dos conteúdos de natureza inconsciente que interferem na vida do sujeito, como

também, o indivíduo ao não conseguir realizar determinados desejos, tem o inconsciente

como uma instância psíquica que compete à realização. A floresta abarca os conteúdos

reprimidos, isto é, inconscientes e André vacila em adentrar a essa região.

A vastidão da floresta é um espaço onde prevalecem os aspectos nebulosos da alma

humana, os aspectos secretos, os limiares entre o incerto e o seguro, tornando-os ambíguos e

confusos e, também, é um local onde se amplia a consciência e se rompe com as delimitações

do próprio Eu. O inconsciente, visto como uma floresta selvagem apresenta-se ilógico e tem

um caráter atemporal, aumentando a complexidade da relatividade e da subjetividade

pertinente às identificações da personalidade individual.

Passados dois anos, Inácio retorna à moradia do casal e deseja criar o filho deles, que

acabará de completar nove meses, porém André e Georgina não concordam, pois acreditavam

que, mesmo com as dificuldades financeiras, a unidade familiar deveria ser mantida. Passado

um tempo, em uma noite tempestuosa, Inácio volta e diz a André que é chegado o momento

de lhe mostrar gratidão devido à saúde restabelecida de Georgina e aos três anos que vivem

143

por conta de seu dinheiro. André pontua que não irá contra a religião e nem contra a ação de

sua consciência, mas é obrigado a participar de um assalto à casa de um rico lavrador da

vizinhança. Por desencargo de consciência, André decide contar para os magistrados de Fulda

sobre o ocorrido, entretanto, ao voltar para sua casa, encontra seu filhinho morto e com o

peito aberto. Georgina e Jorge, o outro filho do casal, estavam vivos. André encontrava-se em

uma situação rodeado por uma força superior a ele, capaz de dominá-lo, capaz de arrancar a

sua liberdade e conduzi-lo a um sofrimento mental devido às incongruências entre seu modo

moral de agir e as ações negativas causadas por acontecimentos sobrenaturais e longe de

terem uma explicação ou uma solução plausível.

A descoberta do saque leva André à prisão e a uma possível pena de morte, todavia, é

salvo por conta de uma aparição de Inácio na cadeia, o qual oferece a André um licor, mas ele

não toma. A atmosfera ficcional nessa história provém por meio da bebida, que seria análoga

à assinatura do pacto. Mesmo não aceitando a bebida e os benefícios que ela traria para si,

Inácio deixa para André, na cadeia, uma serrinha e uma lima para sua fuga. André mesmo

assim, não sai da cadeia e entrega às autoridades os materiais, contando também a sua

aventura noturna. As autoridades ponderam as alegações dele, ouvem testemunhas e mesmo

assim Inácio acaba sendo acusado pelo assalto.

Doutor Trabacchio ou Doutor Milagre era um médico que havia na cidade de Nápoles

e, por meio de remédios desconhecidos, curava diversos males. Como homem de saber e de

sucesso, era rodeado de prestígio. Recebia honorários que não condiziam com o luxo

extraordinário de sua vida. Assim como Fausto, Trabacchio fez o pacto com o demônio,

abdicando de sua alma eterna a fim de que pudesse ter todas as possibilidades de êxito e de

realização instantânea: a riqueza, o conhecimento, o sucesso e a satisfação amorosa, portanto,

todos os seus desejos seriam realizados, não havendo, a partir disso, faltas e nem frustrações.

144

Fausto representa os letais efeitos para a mente humana quando se estabelece

uma predileção por Absolutos de qualquer espécie: no amor, na organização social, na

arte; e principalmente no motor de tudo, o processo do pensar, que fica aprisionado na

crença e nos sentimentos dela provenientes de posse de tempo absoluto, espaço

absoluto, verdade absoluta (Sandler, 2011, p. 134).

O homem romântico liga-se ao satanismo, pois seus desejos são insatisfeitos e

indefinidos, como forma de conhecimento, afasta-se das causas de colisões dramáticas e

teológicas, com os quais, pactua de sua vontade própria e contra quem se debate. O satanismo

exige de seus adeptos a prática da crueldade, do orgulho e da prepotência. A partir do século

XVIII, o moderno satanismo teve um novo impulso através da decadência dos valores e, com

isso, os satânicos notavam o mundo como profundamente maldoso, sendo ele o verdadeiro

inferno e a vivência na terra uma espécie de sentença a ser cumprida.

Para Trabacchio, a brecha existente, a fim de que a vida pudesse ser um pouco mais

bem aproveitada, viria por meio de seu ajustamento com as características da nova sociedade

moderna, onde a dissolução dos vínculos afetivos, a corrupção e a exaltação ao dinheiro

possibilitariam uma melhor sobrevivência ou até mesmo uma vida plena de feitos e de

triunfos no âmbito pessoal. A venda da alma pode referir-se à venda do Eu que, para o

médico e para o momento histórico-social do século XVIII, por estar fragmentado e

desintegrado, afirma o seu crédito apenas enquanto uma entidade que, para fins ocultos, pode

valer-se para a troca. Ainda que apenas apresentasse como uma importância mercantil para se

realizar o pacto, o Eu, mesmo para Trabacchio, possui uma função compreendida na tentativa

de transformar seu destino e pela busca totalizadora dos processos psíquicos oriundos por

intermédio do princípio do prazer.

145

A crise do Eu é o tema constante em Fausto e em Doutor Trabacchio, pois existe a

despersonalização, a descrença de um saber que tudo engloba em uma verdade reveladora. A

crise do Eu evoca para um “conhecer-te a ti mesmo”, ou seja, “toda a verdade a ser

conhecida” sobre o Eu. Para Tavares (2012, entretanto, o Eu e “toda a verdade” são

incompreensíveis, porque o sujeito irrompe sobre a verdade de que não há esta possibilidade

de absoluto, ou seja, a verdade liga-se ao des-conhecimento, visto que a travessia dos próprios

mitos faz-se presente nas repetições. A demanda da vida humana, segundo Sandler (2011), é

sentida como infernal pelo psiquismo humano, pois há a intolerância dos paradoxos que

circundam os princípios do prazer e do desprazer.

Freud (1920/2010) aponta para o fato de haver uma tendência dominante na vida

psíquica, o esforço em diminuir, manter constante e/ou abolir a tensão interna dos estímulos

expressos no princípio do prazer, conforme ansiado por Trabacchio. Contudo, tal equilíbrio

recebe o nome de princípio de Nirvana e a redução completa das tensões reconduz o ser vivo

ao estado inorgânico e aos serviços do instinto de morte. O princípio do prazer vigia os

estímulos vindos de fora, avaliados como perigosos tanto pelo instinto de vida como pelo

instinto de morte, sobretudo, cuidando dos estímulos vindos de dentro, o que dificulta a tarefa

da vivência do sujeito. Trabacchio, contudo, ao reverenciar a função do princípio do prazer, a

fim de obter vantagens no plano terreno, conta com o esgotamento de todas as realizações

para os seus desejos, ou mesmo com as consequências implicadas pelo pacto, que, no conto, o

levaram a morar em uma floresta. Ficar preso em si mesmo pode levá-lo à destruição, porém,

do mundo externo, ele recebe seguidores que vem à floresta buscar seu elixir e seus

ensinamentos sobre as ciências ocultas, assim como conselhos que oferece a Inácio a fim de

conseguir mais adeptos.

146

O homem sempre foi seduzido por histórias que de uma maneira alegórica lhe

discorrem acerca da condição humana, e a literatura, sendo uma das expressões mais

significativas dessa necessidade, o acompanha (Leite, 1991). A crença no diabo tem sido

reforçada pela tendência humana de encontrar um bode expiatório, preferivelmente uma

entidade oculta e externa, em cujos ombros recaiam a carga da culpa pelo mal, pela violência,

pelo sofrimento e pela infelicidade. Para Chevalier & Gheerbrant (1997), o diabo europeu é

resultado da crença de que Deus é inteiramente bom e, tal protótipo tem raízes na tradição

judaica e com o florescimento no cristianismo.

O demônio apresenta outras nomeações e de tal modo, em cada nova terminologia há

também diferentes significados. O termo “Satã” exprime “adversário” em hebreu, sendo,

originalmente, apenas um opositor, não necessariamente um ser sobrenatural. Na corte celeste

Satã desafiou Deus, foi expulso do paraíso e tornou-se o senhor das trevas infernais. Para os

cristãos, Satã continua sendo inimigo de Deus e do homem, sendo a metáfora a suprema

corporificação do mal, vingativo, intensamente malicioso e cruel. O pecado que causou a

queda de Satã foi o orgulho, não se conformou com encontrar a felicidade apenas em Deus:

queria ser suficiente por si mesmo, amando-se, com exclusão de todos os outros. A escolha de

Satã foi irrevogável: sua rejeição a Deus ocasiona de forma subsequente uma punição. O

mesmo ocorreu com os outros anjos que o acompanharam (Chevalier & Gheerbrant, 1997).

A origem do nome “Luci-pherus” significa “portador ou fazedor de luz”. Lúcifer, o

Portador de Luz, o anjo caído, de acordo com Tavares (2012), paradoxalmente, recebe a

designação de Príncipe das Trevas, que se relativiza, pois a luz apenas pode ser invocada

pelos que estão na escuridão de alguma cegueira. Para Chevalier & Gheerbrant (1997), sem

sombra, a luz não existe, porém sem o limite sombrio, ela não pode ser percebida, pois os

raios solares não bateriam em sua superfície. Poeticamente, a lua é guardadora do sol;

147

fisicamente, a lua é passível de luz. Sem Lúcifer, não há Cristo, porque sem Lúcifer é

impossível Cristo provar que está além da tentação. E sem Cristo, não há Lúcifer, porque sem

Cristo não há nada a ser tentado.

Portanto, Deus, uno se faz verso, o espírito se faz matéria, o ser se faz espelho para se

conhecer. Se o espelho do criador é a sua criação, então, Lúcifer é Deus se fazendo constatar

sua fortaleza e sua origem. Lúcifer pode ser entendido como a mão esquerda de Deus. Tudo o

que ele almeja, no fundo, é a descoberta de si, do universo e a expansão de seu psiquismo. Por

isso, Trabacchio é Lúcifer, que representa a busca pelos domínios do saber, do ocultismo, das

ciências e do domínio de si e do mundo que o cerca.

O mundo interno do homem esteve sempre repleto de seres imaginários e

atemorizantes, que podem ser expressões do inconsciente e somente nele tem uma função. A

literatura fantástica pode ser representada por um “sonhar acordado”, nesse conto, com os

duplos, pois visa destruir ou subverter o lugar atribuído ao que culturalmente é atribuído ao

demoníaco.

Doutor Trabacchio aparentava ser moço, embora tivesse oitenta anos e tivera várias

mulheres que, pouco tempo depois de casadas, faleciam. De cada uma dessas mulheres um

filho nascera, mas quando a criança atingia à nona semana ou o nono mês de vida, ele a

degolava para arrancar-lhe o coração, cujo sangue destilado era usado como a base de seu

famoso elixir. No entanto, da última mulher poupara o filho, que viria a ser Inácio Denner. Os

dois fugiram em determinado dia que a casa de Doutor Trabacchio começou a pegar fogo

inesperadamente. Inácio ainda com quinze anos fugiu com um cofrinho nas mãos. Os dois

fugiram para a floresta e Trabacchio, com o passar dos anos, aprofundou Inácio nas ciências

ocultas.

148

De acordo com a enciclopédia Homem, Mito e Magia (1974), o sangue é o sinônimo

da vida e também, até mesmo, da alma. O sangue é universalmente considerado como o

veículo da vida: o sangue é vida, se diz biblicamente. A oferta do coração aos deuses, que

controlam o destino dos homens, é encontrada nas crenças de diversos povos, como, por

exemplo, nos astecas, que arrancavam o coração do peito dos prisioneiros para oferecê-lo ao

voraz apetite dos prisioneiros do sol e da terra. As tribos primitivas arrancavam o coração do

peito de uma criança para obter o controle dos elementos, como também comiam o coração

dos inimigos heroicos para adquirir sua coragem. O valor místico do coração, como símbolo

da alma, da intenção e da pureza de propósitos tem sido duradouro através dos tempos e em

todas as crenças.

O coração é o órgão central do sujeito, corresponde, de maneira geral, à noção de

centro. Se o Ocidente fez do coração a sede dos sentimentos, todas as civilizações tradicionais

localizam nele, ao contrário, a inteligência e a intuição. O coração é o símbolo da presença

divina e da consciência dessa presença. Para Chevalier; Gheebrant (1997) o duplo movimento

(sístole e diástole) do coração faz dele o símbolo do duplo, que representa também o

movimento de expansão e reabsorção do universo. Trabacchio e Inácio, mesmo tendo

características demoníacas, com o elixir, feito à base do sangue destilado do coração, passam

também, com isso, a ter os elementos de natureza divina. Para conseguir todos os efeitos

ocasionados pela feitura do pacto, mesmo assim, o pacto tendo como essência o sangue, este

que traz à vitalidade e o coração, o qual introduz a noção de centro e da presença divina.

Em O Doutor Trabacchio, o sangue do coração de crianças de nove semanas, nove

meses ou nove anos era o ingrediente básico para compor o elixir mágico e, para que tivesse

maior eficiência, as crianças deveriam ser entregues por livre vontade por pessoas que

tivessem parentesco com elas, produzindo, assim, um poderoso e eficaz elixir de vida. O

149

coração no Romantismo pode estar aludido à forma de apreensão do mundo, vindo pelo plano

da subjetividade e às coisas do espírito que, entretanto, seria buscado por Inácio para

possibilitar a feitura do elixir, o qual deveria ter tal composição como base, mas que teria

como finalidade a compensação para saciar a materialidade dirigida ao mundo e à vida. A

recorrência ao número nove marca um ciclo de vida da criança e com a produção do elixir,

denota a possibilidade de uma transformação, surgindo por meio de elementos do plano

espiritual, convergidos ao plano material, vindo a significar, simbolicamente, uma

possibilidade de totalidade que atuará na vida do sujeito – uma totalidade em termos

absolutos, mas que se desmembra, pois o sujeito é um “divíduo”.

Dando sequência à narrativa, em certa noite, André voltava para casa com o filho e

ouviu gritos de dor que partiam de um mendigo deitado às ervas, parecendo vítima de algum

sofrimento. André foi socorrê-lo e, para seu espanto, era a figura de Inácio, porém com a voz

do pai de Georgina já falecido, solicitando ajuda. E, assim, não mais viu o assassino do filho e

seu perseguidor, Inácio, começou a enxergar o pai da mulher a quem tanto amara. O poder de

transmutação e de estado de transe revela uma projeção, em que André mesmo vendo a figura

de Denner, ouve a voz de seu sogro, para que a situação se torne mais familiar, menos

ameaçadora e garanta a segurança de sua integridade.

Na literatura popular, o demônio nem sempre é olhado com terror, mas com desprezo,

sendo alvo de ridicularizações. Segundo a enciclopédia Homem, Mito e Magia (1974), em

canções populares de várias partes do mundo, como na Alemanha, o diabo é apresentado

como uma entidade fácil de enganar. Na Alemanha o título comum é gute dumme Teufel [o

bom estúpido diabo]. Histórias, peças de teatro e filmes representam o diabo como sempre

tentando reconquistar almas e sendo enganado pela suposta vítima na hora da cobrança, na

hora de levar a alma penhorada. O diabo também é repetidamente apresentado como uma

150

entidade ignorante, que não consegue antever a realidade e cai em ciladas que lhe preparam

supostas vítimas.

Inácio, em algumas passagens da narrativa, apresenta-se desfrutando de todos os

benefícios que o pacto, assinado na adolescência, lhe proporcionou e, também, faz o papel

que de Mefistófeles, porque induz André a ligar-se a ele e abandonar a proposta de sua vida

monótona e simples. Denner não é o diabo, é humano e, às vezes, se metamorfoseia em

demônio sem causar estranhamento no ambiente. Os aspectos diabólicos são inerentes à sua

natureza e evidencia as cisões da identidade pertinentes ao sujeito que, ainda, nesse momento,

no Romantismo, as personagens possuem a qualidade maniqueísta, a fim de que,

posteriormente, venha a se observar que as características boas e más fazem parte da natureza

humana.

Os personagens de Mefistófeles ou de Inácio representam o diabo que personifica o

mal. Não o mal como constantemente é visto, mas o “Mal” como inerente da vida. Para

Sandler (2011), Mefistófeles pode simbolizar a destruição e a morte, porém ele não é ruindade

ou maldade. A intenção consciente de lançar luz é responsável por mais escuridão, pois

corrompe com o paradoxo luz/escuridão. Não ser dominado por medo á escuridão cria a

oportunidade de alguma iluminação. André, nesse sentido, nega o diabo, refuta a evasão

ficcional, porque necessita evocar a razão e possuir a plena segurança de si.

O demoníaco para a psicanálise seria o sujeito que não consegue aceitar em si mesmo

aspectos de sua personalidade e, com isso, projeta. A predileção por absolutos processa

também pela maneira de se pensar em verdades, tempos e espaços absolutos fundindo uma

crença ilusória sobre o Eu. O demônio não é “um outro” projetado, mas uma parcela do Eu

derivado da condição do “divíduo”, de seu inconsciente e de seus próprios desejos.

151

O entrave narrativo se concentra basicamente no desejo de Inácio para que André se

rendesse as suas investidas e ao não desejo de André. Enquanto um Fausto ao inverso, André

tem valores que exaltam as virtudes da bondade, da simplicidade e da compaixão. Sua

segurança estava em preservar seu pequeno “paraíso”: sua família e seu lar. Como uma

personagem que representa o bem, em sentido absoluto, ele se nega a negociar com o mal e

prefere ter uma vida de concessões: a pobreza e a perda de um filho e, posteriormente, a morte

da esposa.

O protagonista acredita e segue orientado por princípios de natureza divina, em que a

ligação entre o homem e Deus evoca o pietismo, que refletiu o desencantamento de uma

época em relação ao desenvolvimento tomado pelo protestantismo, como também, à

ortodoxia que transformava e adulterava o espírito de piedade cristã pregado originalmente

por Lutero. Seu objetivo foi o de promover uma regeneração a partir do seu próprio interior,

ao mesmo tempo em que aceita as formas já instituídas, mesmo as considerando imperfeitas.

Com o pietismo, o sujeito estava em permanente escuta de si mesmo, a fim de revelar

um saber sobre si, o que conotaria a análise profunda de seu Eu a partir de um movimento de

constante introspecção e por meio da busca de Deus, o que tornaria, assim, indissociável do

autoconhecimento e da sua própria subjetividade. A única realidade real seria a interioridade –

a divindade aprisionada.

A possibilidade de se pensar acerca do sujeito, no Romantismo, em O Doutor

Trabacchio faz-se através dos duplos representados por duas figuras com caracteres absolutos

e opostos, que duelam a fim de triunfar um sobre o outro. O Eu de si próprio e do outro são

reconhecidamente como unicamente bons ou unicamente maus, fazendo com que o outro,

através dos pares André e Inácio, André e Trabacchio convivam com o seu Eu oposto até

então desconhecido. O demoníaco e o divino, enquanto pares absolutos tendem a formar uma

152

totalidade – uma forma particular de unidade. O sujeito possui ambas as características: as

divinas e as demoníacas, sendo que em alguns indivíduos há aspectos mais e outros menos

acentuados, mas todos se ligam a fenômenos próprios e inerentes ao Eu – ao “divíduo”, ao ser

partido e fragmentado. O Eu absoluto, quando inventa o não-eu, permite o arranjo de um fato

superficial para poder agir diante de seus mecanismos de defesas, dirigidos enquanto duplo, a

fim de mascarar a representação utópica do Eu real.

Serve-nos aqui essa ideia/representação demônio-pai como o caído ou talvez,

anterior à ascese sagrada que somente advém, no que se refere ao pai-totêmico, após

seu assassinato e a instituição da lei unificadora. Um pai ainda-não ou não-mais

sagrado, no que nos faz lembrar sua aparência pré-humana, identificada ao animal

totêmico (chifres, cornos e cauda) e que a imagem de Haizmann, do qual se trata no

texto de Freud, anterior à partilha dos sexos (demônio com pênis e mamas). Guarda-se

aqui a chama para a Unheimlichkeit, ou estranheza familiar, que denota esta imagem

do demoníaco, sobretudo na figuração híbrida (parte animal – parte humano) que lhe

reserva o cristianismo medieval. [...] Coloca Luisa de Urubey em seu Freud et le

Diable: “Ele não recalca suas pulsões (O diabo = a personificação da vida pulsional),

ele tem traços animais (como o diabo com sua cauda e seus chifres) e, além do mais

seu narcisismo não seria, afinal, uma característica demoníaca (Lúcifer, e mais bela

criatura)?” (Tavares, 2012, p. 84).

Diane da ênfase do divino para o humano, do medieval para o moderno, do teológico

para o científico e as suas consequências sociais, Tavares (2012), pontua que tais repetições

visam denunciar o luto por um Deus que, morto, não possui mais o poder de outrora. Os

153

poderes do potencial humano, as descrenças nos domínios científicos, na razão e na própria

capacidade do homem contribuem para a questão da feitura do pacto com o diabo. A

descrença em Deus, a corrupção social e a desconfiança do saber, portanto, colaboram para a

questão de Fausto: a onipresença do espírito enganador.

A inquietude da narrativa ocorre na fronteira existente entre os extremos: André e

Inácio, André e Trabacchio, interseção ocorrida entre o Eu e ao “outro não aceito”, ao

aparente não-eu, que também tem sua parcela esquecida ou reprimida dentro do próprio Eu.

Trabacchio e Inácio representam à instância psíquica do isso e André a do supereu. Esses

pares: André e Inácio, André e Trabacchio viriam a serem os heróis e/ou vilões, no conto,

pois, vêm representar os vários “Eus” do sujeito que é um “divíduo”. É do ponto

intermediário entre a luz, como o bem, e das trevas, como o mal, que nasce o despertar para a

consciência e à tolerância dos paradoxos existentes da realidade psíquica.

A psicanálise trouxe a possibilidade da percepção de que o diabo e Deus não estejam

fora de si, mas dentro de si. – no psiquismo. A visão mágica da mente trabalha com as forças

do bem e com as forças do mal representadas por “verdades” plurais e incertas vindas a

unirem-se e/ou fragmentarem-se. O “divíduo” pode redigir sua história ao aniquilar ou libertar

sua personagem em uma aventura residida no plano psíquico e tendo como um dos pilares a

sua maior força sobrenatural: às manifestações do inconsciente.

A alienação social e a desintegração política no Romantismo repercutiram diante dos

temas ligados ao grotesco e às histórias narradas que violam as leis da física, evidenciando o

lado noturno da natureza humana, a frágil identidade do sujeito romântico e o seu medo diante

da visualização da qualidade polimorfa de sua personalidade. Na procura de entendimento de

si e do mundo que o cerca, André, Inácio, Trabacchio e Georgina conduzem-se à tentativa de

compreensão de como o Eu é composto, proveniente de processos identificatórios, reprimidos

154

e duplos. A ambição romântica, no conto, foi a de que os sujeitos tentassem encontrar a

felicidade por si mesmos, em uma imersão por meio da subjetividade, mesmo que amparada

tanto pela espiritualidade como pela materialidade.

Como máximas alquímicas, o conto O Doutor Trabacchio apresenta a necessidade de

compreensão da experiência emocional contida na realidade psíquica de cada indivíduo:

Obscurum per obscurum, ignotum per ignotis! [o obscuro se explica pelo mais obscuro ainda

e o desconhecido pelo mais desconhecido!]. Também mostra, que no Romantismo, a

personalidade e identidade do sujeito foram anuladas e reveladas com o duplo, certos

desdobramentos visavam à integralização com algo perdido - Solve et coagula [dissolve e

combina]. A psicanálise pretende clarear determinados conflitos do Eu, para revelar a

essência do ser humano, enquanto combina, possibilita a modificação rumo a uma nova

personalidade integrada. O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica e, conforme

esclarece Green (1994), a relação com a realidade exterior é uma obrigação limitada, pois a

mesma exige a submissão a ela ou a sua transformação, buscando uma vantagem. A realidade

psíquica subjetiva é um compromisso de fé.

O inconsciente não é o caos desorganizado, mas um pensamento não pensado, à

procura de uma maneira para ser traduzido, racionalizado e ecoado. No Romantismo, a

maneira pela qual o inconsciente fosse exprimível veio a partir dos fenômenos do fantástico

abarcados pelo duplo, que representaram o Eu em crise consigo e com a realidade existente.

Os sujeitos no Romantismo vivem em constante confronto com o mundo e com si

mesmo. Trabacchio e Inácio veem solução no pacto com o demônio e André, por intermédio

da ligação com a família, com a natureza, com seus valores e com a sua consciência. O

encontro entre esses personagens permitiu que os duplos se direcionassem para avistar o Eu e

155

todas as suas particularidades e integralidade, ainda que por meio da dualidade oposta e

extrema.

O sujeito é o filho da angústia. Ao indagar-se sobre quem seja, o sujeito depara-se com

um Eu partido em dois. O duplo, em O Doutor Trabacchio, simboliza o “outro de si”, a

dialética da existência que corresponde a um perpétuo conflito. Os duplos opostos visam,

portanto, a uma tentativa compreensiva por uma unidade. Contudo, é uma constante busca,

pois o Eu é em si e de si fragmentado. Os pares formados por André e Inácio, André e

Trabacchio olham individualmente para seu respectivo “outro” como um reflexo estranho e

ainda não reconhecido.

No entanto, no final do conto, André percebe que sua vida foi modificada depois que

Denner deixou o cofrinho de joias, o qual foi atirado de um despenhadeiro, assim como fez

Peter Schlemihl, de Chamisso, após ter jogado fora sua bolsa mágica em um precipício,

ambos, depois disso, não tiveram mais perturbações e o sossego profundo do viver

estabeleceu-se. O cofrinho simbolizou o despertar da autoconsciência de André, contudo,

ainda não estava preparado para reconhecer-se como um “divíduo”. Ele ainda era um

guardião de si.

4.3 Os Duplos

A maldição da humanidade era o fato de aqueles dois lados incongruentes estarem unidos – que no útero angustiado da consciência aqueles duplos polarizados tivessem que ficar continuamente lutando. Como, então, seriam dissociados? (Stevenson, 2011, p. 69).

Na tragédia, pode e deve o destino, ou o que seja, dominar a decisiva natureza do Homem, a qual o leva cegamente para lá e para cá; ela não deve nunca conduzi-lo ao seu objeto, mas sempre desviá-lo dele; o herói não pode ser senhor de seu

156

entendimento, o entendimento não pode absolutamente entrar na tragédia a não ser em personagens secundários em detrimentos do principal (Carta de Schiller a Goethe - Goethe & Schiller, 2010, p. 131).

Para a leitura interpretativa desse conto recorreu-se à versão em espanhol de Los

Dobles [Os Duplos] (1822/2009) que, originalmente, em alemão, recebe o nome de Die

Doppelgänger e pertence ao volume único de Hoffmanns Tod. A história apresenta oito partes

e tem por foco narrativo um narrador onisciente intruso, ou seja, o qual tem a liberdade de

narrar à vontade e tecer comentários sobre a vida, os costumes e a moral das personagens. No

conto, o narrador pontua ao leitor sobre algumas novas passagens que ainda não foram

esclarecidas, pois, com a mudança brusca para cada novo capítulo torna o desenrolar da

narrativa, às vezes, fragmentado e confuso. Além da duplicação das personalidades do conto,

há o desdobramento na própria forma de narrar, o que ocasiona a estranheza e a necessidade

de que a decomposição do discurso venha a ser integrado. Com o desenvolvimento e a síntese

dos acontecimentos, apenas conectados nos capítulos finais, os quais, as personagens

compreendem as manifestações duplas de si mesmas, permite-se ao leitor a compreensão de

todos os elementos e os recursos ficcionais usados durante o enredo.

A ambientação não funciona apenas como pano de fundo, mas influencia diretamente

no desenvolvimento do enredo e, aliado ao tempo, revela-se como um dos elementos

estruturais mais importantes da narrativa. O início da história tem o espaço de duas

hospedarias próximas, sendo elas: “Cordeiro Dourado” e ”Cordeiro Prateado”; também se

compõe pela ambientação no centro da província, que conta com a figuração de personagens

exóticas e com o desfecho realizado em um castelo em ruínas.

O espaço, como se apresenta, não é apenas físico: é também simbólico. Com isso,

denota as múltiplas perspectivas desenvolvidas diante do cenário de fenômenos sobrenaturais

157

e das violações das ordens físicas, nas quais a tensão existente entre os personagens e seu

lugar confunde-se quanto à possibilidade de compreensão do real e da pretensão de que as

personagens se diferenciem.

O incômodo causado em presença da rápida mudança de cenários e dos encontros

“coincidentemente” pontuais entre as personagens reflete-se à maneira, pela qual, em Os

Duplos, o espaço encena-se fragmentado e com a necessidade da quebra de barreiras com a

realidade, tornando o incomum, o desconhecido e o sinistro, como fontes para que as

personalidades envolvidas no enredo consigam realizar a tentativa da busca de si mesmo. Isso

por meio dos elementos irracionais e misteriosos, oferecidos tanto no plano da ambientação

como no plano psicológico deles mesmos.

O “inesperado”, o “coincidente” e o “repentino” são vocábulos recorrentes na

literatura fantástica e apresentam-se com variações múltiplas. O leitor, diante disso, depara-se

com a proposta de construção de sentidos, com os quais, o diferente e o incomum evidenciam

a presença dos aparentes elementos irreais. O surgimento do inesperado rompe com a cadeia

normal de ligação com a palavra e a realidade, que é um elemento basilar do fantástico: a

representação realista.

A narrativa inicia-se com o proprietário da hospedaria “Cordeiro Prateado”

reclamando que, no seu vizinho, o também proprietário de uma hospedaria chamada

“Cordeiro Dourado”, havia mais fregueses, pois lá se encontravam malabaristas, palhaços,

equilibristas e uma mulher que, com seu corvo, fazia profecias. Através do cenário romântico,

a categoria do estranho e do fantástico, que inclui as sociedades secretas, os profetas e as

cartomantes, voltam a serem objetos de interesse, porque as pessoas estavam descrentes na

razão e na era iluminista.

158

Por conseguinte, o gerente da pousada “Cordeiro Dourado” vem receber seu novo

hóspede, o jovem Deodatus Schwendy, contudo, cumprimenta-o como sendo o pintor George

Haberlad. Deodatus havia sido enviado à Hohenflüh por seu pai, Amadeus Schwendy, a fim

de encontrar com o seu futuro. No entanto, Deodatus iria encontrar-se também com o seu

passado, com seu ponto de origem, vindo a conseguir, a possibilidade do encontro consigo

mesmo.

Aqui, el cenit de su vida, debe decidir su futuro por medio de un sucesso

maravilhoso que su padre le habia predicho com su palavras oscuras e misteriosas.

Con sus propios ojos veré a alguien a quien sólo habia visto en sueños. Comprobará

ahora si este sueños, que, nació de una chispa en su interior, habia ido crecido, hasta

volverse cada vez más vivaz y radiante, realmente podia surgir y manifestarse en el

mundo exterior (Hoffmann, 1822/2009, p. 11).

A necessidade do encontro com o destino, assegurado pela palavra paterna, vem

predizer mudanças na vida de Deodatus e o acontecimento esperado, simbolicamente, ao ser

pensado ou imaginado, oferece a estrutura fundamental ao duplo. O relato traz a marca de

uma trama familiar que, mesmo ainda oculta, transporta o personagem à imposição de

“conhecer-te a ti mesmo” e tentar preencher uma provável lacuna existente em sua vida,

perante a um não-dito e a um não-saber de sua história pessoal. O não-dito pode ser

representado como o núcleo de um projeto de vida, um projeto ausente da vontade consciente

dos pais. O ignorado, assim, age como ponto de partida ou vincula-se, a fim de orientar os

caminhos da existência. O percurso, no entanto, é orientado ao desconhecido que tende a

repetir o que estava oculto: ao estranho.

159

Para Giora (2015), o não-dito acaba por constitui-se em um projeto de vida, uma vez

que será direcionado para o desconhecido, ao qual tende a repetir o que estava oculto,

estranho. O estranho pode ser considerado como algo, o qual em determinado tempo foi

familiar, mas, depois, se desvincula da familiaridade para, em um futuro, vir sob o manto da

surpresa do reencontro. A necessidade do reencontro de Deodatus com algo enigmático cede

espaço à cisão, isto é, ao episódio a ser realizado, que para ele ainda teria a característica de

ser novo, porém, o retorno de um mesmo simularia a conciliação consigo mesmo sob a forma

de resgate de algo escondido, que, em algum momento, foi perdido.

O homem romântico compreende ser um joguete nas mãos do destino, no entanto, com

o advento da psicanálise, alguns dos fenômenos atribuídos às causalidades podem ser

dirigidos por intermédio das forças do inconsciente. A influência do inconsciente pode ser

apontada como uma manifestação do duplo, visto que os acontecimentos, de maneira geral,

instigam ao estranho e à repetição, trazendo consigo a familiaridade camuflada. O destino

pode via a ser caracterizado por uma sucessão de eventos, que tendem a levar o sujeito ao seu

lugar de partida, tornando-se, também, o seu espaço de chegada.

Ao sentar-se para o almoço, Deodatus novamente é confundido com George e

apontado como uma figura, um ser e um fantasma sinistro do qual o pintor ainda não

conhecia. Enquanto clones de si mesmo, os duplos idênticos expressam-se através do

fenômeno do desdobramento repetido, porém a duplicidade de um Eu oposto ou multiplicado

de si mesmo, ainda, não estava permitindo o encontro e reconhecimento do sujeito consigo

mesmo. Então, a nova tentativa romântica, nesse conto, viria por meio de duplos com

semelhanças físicas, para que, a partir disso, a visão de si mesmo não tivesse o caráter

apavorante, mobilizando a culpa ou a recusa diante dos eventos observados como fora de si.

160

Em Os Duplos, o fenômeno da duplicidade envolve a combinação do extremo: a

semelhança entre duas pessoas – Deodatus e George. Enquanto duplos homogêneos, a

semelhança se torna quase ou mesmo impossível para a realização da diferenciação. Portanto,

a semelhança entre os dois personagens estabelecem o diálogo de complementaridade,

manifestando a identidade ao atualizar as maneiras diferentes ou desdobramentos de um

pensamento criativo. Inicialmente, Deodatus e George sugerem ser gêmeos e, que por uma

variedade de razões, foram separados e, até então, nenhum sabia da existência do outro.

A imagem de um duplo de si mesmo, idêntico a si mesmo, revela a imagem que o

homem constrói e reconstrói ao longo de sua vida, representando o seu mundo interno. Os

gêmeos idênticos sustentam a ilusão de igualdade entre representação e representado, isto é, a

não divisão do sujeito. Os pares gemelares estando em perfeita sincronia e harmonizados

pelas igualdades, como, por exemplo, os que compactuam com o mesmo estilo e mesmo

comportamento, comprovam ser possível estar em equilíbrio consigo mesmo, de acordo com

o ideal de superação dos conflitos internos, resultado da dinâmica de funcionamento de um

aparelho psíquico submetido às forças contraditórias e em oposição.

Segundo Marquez (2010), a experiência real de ser gêmeo univitelino sustenta a ilusão

de completude, que é a eterna busca do ser humano. Os gêmeos despertam o interesse e

atenção das pessoas, pois estão na possibilidade de liberação do domínio do Eu único e

absoluto senhor das ações humanas. O par gemelar tem a oportunidade de escapar do “Eu

prisão”, porque, mesmo sendo dois, os gêmeos revelam a viabilidade de uma segunda

instância, uma segunda expectativa, uma segunda exigência, ou ainda uma segunda

oportunidade.

Os gêmeos são símbolos concretos da dualidade, trazem a ambivalência, que pode

refletir a harmonia ou também o caos. Simboliza também o psiquismo humano na sua

161

expressão, pleno de diferenças e oposições internas, conflitos e divisões. De acordo com os

estudos de Giora (2015), todos os mitos, lendas e outras histórias que discorrem sobre os

gêmeos são uma busca pela explicação de fatos visíveis na imagem dupla atual, mas que

remontam a acontecimentos primordiais do filo e ontogênese da constituição psíquica. Os

acontecimentos primordiais encontram-se na gênese e, através da cultura se ligam ao atual.

Com isso, os eventos colocados culturalmente expressam àquilo que é primitivo. O modelo

das díades, as gemelares ou não, possibilitam “esse outro” – a outra possibilidade de mim.

Ibejis são divindades gêmeas, sendo usualmente sincretizadas aos santos gêmeos

católicos Cosme e Damião. A palavra Ibeji quer dizer gêmeo e forma-se a partir de duas

entidades distintas que coexistem, respeitando o princípio básico da dualidade. Entre as

divindades africanas, Ibeji é o que indica a contradição, os opostos que caminham juntos: a

dualidade. “Ibeji indica que todas as coisas, em todas as circunstâncias, têm dois lados e que a

justiça só pode ser feita se as duas medidas forem pesadas, se os dois lados forem ouvidos”

(Giora, 2015, p. 22).

A fonte original que aborda o tema do duplo vem pela história bíblica de Esaú e Jacó.

Os primeiros gêmeos de quem se tem informações são marcados pela dualidade até o

extremo. Giora (2015) aponta que Jacó precisava de um agressor, o depositário de aspectos

inaceitáveis quanto desejáveis de si mesmo. O estrangeiro inimigo, o “outro” é o depositário

do não morrer, do permanecer não castrado, da ideia de imortalidade. Jacó precisava de um

agressor para tomar consciência de sua forma. Ele também simboliza o homem em luta com o

que transcende, com a sua natureza e com os seus ideias.

George e Deodatus, no entanto, não são “gêmeos” que representam as características

opostas um do outro. Eles remetem à questão do princípio absoluto da unidade. A ilusão da

completude desfeita conecta-se ao tema romântico da unidade perdida, isto é, os gêmeos

162

confirmam que há antagonismos, porém, mesmo sendo idênticos fisicamente, cada qual

deveria ter a sua alteridade, sua personalidade e suas individualidades diferenciadas, a fim de

que cada um pudesse ser uma unidade. Em grande parte do desenvolvimento da narrativa,

além da igualdade física, os dois personagens apresentavam a simultaneidade de gostos e de

situações que, ao serem justapostas, exprimiria a urgência de que ambos viessem a formar sua

própria singularidade.

Os gêmeos idênticos vivem a ilusão de estar no centro do mundo. Eles podem exibir-

se na característica de duplas idênticas: o desejo de vê-los em exibição também se prende a

esta mesma característica: a gemealidade. O prazer experimentado por todos os envolvidos

neste ver-e-ser-visto alimenta e aprisiona, provocando uma parada no desenvolvimento

natural em busca do Eu e da alteridade (Marquez, 2010).

Na questão dos gêmeos é um pouco diferente. Nascem dois. Um e outro. Um

do outro? Outro do um? E assim a questão do outro em mim, do duplo, do estranho, se

concretiza. Eles precisam daquilo que chamamos de oposição para poderem se definir

como um e outro do um e vice-versa (Giora, 2015, p. 155).

No entanto, as divisões do Eu característicos da época romântica apontam o sujeito

como um ser fragmentado e descentralizado, ideias contrárias a uma unidade subjetiva. Os

duplos, porém, revelam um outro ainda não conhecido, mas que faz parte do Eu. O conceito

do outro, alocado em si, pode vir a representar as próprias manifestações inconscientes de

cada um, às tentativas de apreensão do que é posto pelo mundo e à inesgotabilidade da

subjetividade. A duplicidade sob o plano gemelar, para Marquez (2010), representa o Eu: dois

em um. Nesse sentido, o sujeito psicanalítico apresenta-se dividido: uma parte consciente e

163

outra inconsciente, um Eu acessível ao pensamento, aquele que é possível a visualização e

outro inconsciente, inacessível, aquele que se subtrai à visão. Apenas há o acesso ao

inconsciente pela consciência, através, da decifração das metáforas, da análise do discurso

consciente, da compreensão dos sintomas, dos sonhos e das parapraxias.

Para ser constituído, o Eu, precisa tornar-se um Eu corporal, ou seja, ser a própria

projeção de uma superfície. O recém-nascido não distingue as sensações externas e internas,

assim como confunde os limites de seu próprio corpo. Progressivamente, ele demarca a

superfície do seu interior e ao que pertence ao mundo externo e, com isso, através de um

processo formador, pode separar o Eu próprio do outro. Do autoerotismo, isto é, das pulsões

dirigidas ao corpo, ao Eu corporal, onde o Eu deverá deslocá-las para si próprio, isto é, torná-

las narcísicas.

Freud (1923/1996) esclarece que, com o desenvolvimento do Eu ocorre mediante o

afastamento do narcisismo primário, do qual, o Eu tenta recuperá-lo sob a forma do ideal do

Eu, isto é, uma instância autônoma, que lhe serve de referência, a qual tem a missão de

reprimir o complexo de Édipo e incorporar qualidades boas e reais dos pais e da sociedade. O

Eu representa, portanto, a razão, o senso comum e o controle. Sendo assim, a ideia é a de que,

em cada sujeito, exista uma organização coerente dos processos mentais, que a consciência se

acha ligada e controla as descargas das excitações para o mundo externo. O Eu, para Freud,

desse modo, carrega os princípios da razão, da demarcação de limites e do controle.

Em Os Duplos, os personagens acham-se percorridos pelos elementos do fantástico e

das duplicações que, observadas foras dos sujeitos, fazem com que eles percam o controle

acerca de si e do outro, ou seja, há uma confusão tanto pelo aspecto do mundo interno como

pelos alcances do mundo externo. Com isso, o Eu dos indivíduos no Romantismo não tem um

referencial satisfatório oriundo da sociedade para poderem incorporar. Diante disso, a

164

consciência conecta-se às excitações do ambiente externo, onde os sujeitos envoltos pela crise

social fazem com que o Eu também não consiga realizar a sua tarefa de preservação e adentra,

do mesmo modo, em estado de tensão.

Outra personagem que faz com que Deodatus encontre a si mesmo é a figura

misteriosa da mulher que faz adivinhações com o seu corvo. Simbolizada enquanto uma parte

projetada de Schwendy, isto é, diante das interrogações quanto ao seu futuro, ele desejava por

um alento e tem por meio dela a resposta imediata de suas dúvidas e desejos. A vidente diz

que o jovem já estava entrando nos eventos aludidos pelo pai e: “cómo no debe ser

confundido, simplemente ser incorporadas a su propio auto a otro hombre, como un

matrimonio, que es un poco apretado o demasiado flojo aquí y allá” (Hoffmann, 1822/2009,

p. 15). Através da ajuda do corvo, a vidente relata a Deodatus que o encontro com o seu

“outro eu” deveria ser incorporado como fator pertinente a ele mesmo, por tratar-se de seu

próprio Eu. Assim, por meio do encontro com seu duplo, o reconhecimento da história

pessoal de Deodatus viria a ser desvendada.

Na literatura, os corvos são animais associados aos elementos obscuros e sombrios.

Chevalier & Gheerbrant (1997) destacam o corvo como um herói solitário, mensageiro das

almas para outro mundo que, além de profético, liga-se às mensagens divinas. No conto, o

corvo passa por um processo de humanização (antropomorfismo), pois, mesmo sendo um

animal, capta as inquietações do consulente à adivinha, indicando alguns eventos futuros

desejados que devam acontecer repletos de elementos suspeitos e enigmáticos.

Sequencialmente, George e Deodatus encontram-se na hospedaria e tratam-se como

irmãos. Como inicialmente sendo um par de gêmeos, ambos deveriam conquistar um olhar de

reconhecimento diferenciador perante aos outros e, especialmente, de si mesmos, a fim de

alcançarem uma identidade própria. Ainda regidos pelo campo da igualdade, o pintor recebe

165

uma carta de seu amigo Berthold e Deodatus assinala que havia recebido também uma carta, a

qual continha o mesmo teor da de seu duplo: que, com a mudança para Hohenflüh, algo

especial aconteceria para ambos. O duplicado, além de serem os Eus dos personagens,

ressoou para com que as situações vividas por eles também fossem identicas. Mesmo na

situação gemelar há confusão entre os dois seres pela própria condição de nascimento duplo:

eles poderão estar sempre juntos, em situações idênticas ou similares, frente aos mesmos

objetos.

Outra duplicação diante de situações repetidas envolvendo os gêmeos ocorre por meio

da personagem Natalie. Deodatus percebe que a mulher que fazia previsões com a ajuda do

corvo era a mesma pessoa pela qual ele era apaixonado. George também gostava de Natalie e

tinha-a conhecido em Estranburgo, onde fez uma pintura de seu rosto. O conde Hektor von

Zelies, pai da moça, fica perplexo com a pintura e deseja que Haberlad saísse das redondezas,

contudo, ele não aceita e Natalie, misteriosamente, desaparece.

A duplicidade do amor pela mesma mulher sugere que, quanto mais os duplos

aproximam-se um do outro e, consequentemente, de si mesmos, mais duplicidades entre eles

ocorrem. As identificações provisórias têm o intuito de que as personagens, ao partilharem de

um mesmo Eu, apresentem familiaridade do que já era conhecido por si mesmo, mas, que, no

entanto, garantida a ilusória intimidade com si, promova uma nova tensão e outro

desdobramento. Tal fato alude ao processo psicanalítico em que uma nova descoberta sobre si

acarreta uma nova agitação, que deverá ser descoberta, formando uma espiral.

O processo de produção dos duplos remete à crise que envolveu o sujeito do contexto

romântico, o qual vivenciava a falta de compreensão de si e de seu inconsciente. O duplo

igual retoma ao campo do não confronto, do não estranhamento e do não incômodo. Desse

modo, a diminuição das manifestações do duplo, como o término da analise, seria efetuada

166

através de autoavaliações, das (res) significações as quais envolvem o sujeito ao

reconhecimento de seu inconsciente e de suas experiências, para que ele tenha condições de

tentar ser o seu senhor.

O Eu no outro ou a parte do Eu alocada no outro propiciou à narrativa, dois gêmeos

idênticos, isto é, a percepção de si diante do outro vem por meio de características já

conhecidas em si mesmo e o duplo faz-se através de uma confirmação de reconhecimento. O

duplo idêntico permite a Deodatus ficar em um território já conhecido por si mesmo, visto que

seu “outro eu”, aparentemente, era seu Eu real, sem amarras ou códigos presentes. A

duplicação de personalidades idênticas serve para que o jovem venha a tentar encontrar-se

consigo mesmo, perante as situações futuras, que poderão contribuir para ocorrerem às

diferenças entre os dois personagens e, assim, reconhecerem-se, inicialmente, como “únicos”.

Isso posto, pode corresponder a uma “forma de unidade particular”, que os fazem ser

reconhecidos perante aos demais, porém, contudo, é uma “unidade particular” dividida em si

mesma.

Qual o papel da semelhança física na formação da identidade? Ela se desdobra

em: o que é ser uno, singular num espaço, onde à sua volta, ou mais especificamente

ao seu lado, existe um idêntico a você? Como é ser gêmeos univitelinos e viver numa

sociedade que nos ensina que não há indivíduo algum que seja igual ao outro? Como

é, sendo gêmeos univitelinos, viver numa sociedade que valoriza prioritariamente o

individual enquanto diferente de todos os outros? (Marquez, 2010, 79).

A gemealidade remete ao duplo: à sombra, à experiência do idêntico, ao espírito

juntamente com as emoções inerentes às mesmas. Os duplos, Deodatus e George, são

167

“gêmeos” não díspares, como costumeiramente é retratado nas histórias que envolvem a

gemealidade. A igualdade é fonte de prazer e de poder, mas pode tornar-se estranha e

ameaçadora, pois, simbolicamente, a imortalidade simula e anuncia o desaparecimento do Eu,

incapaz de uma diferenciação identitária. Para Marquez (2010), o sujeito é um duplo que se

mostra e esconde-se. O “dois” abre-se a possibilidade do “dois em um”, isto é, aponta para o

conceito de fusão, contudo, ela também pode esconder uma essência diferente: o que se

mostra sem ser.

Em Hohenflüh, Haberlad e seu amigo Berthold vão ao centro da localidade e

percebem uma cultura marginal dentro da própria sociedade burguesa. Essa minoria era

composta pelos ciganos, que vendiam fitas, ícones religiosos, colares de coral e também

previam o futuro. Os ciganos estavam presentes na Alemanha no final do século XVIII e

início do século XIX, representando, com isso, o contraste que ainda existia na nascente

sociedade pré-moderna. Diante do espírito viajante, os ciganos não se sentem pertencentes a

nenhum lugar e, portanto, não criam raízes e desprezam a noção de propriedade privada. Toda

a história desse povo é envolta por suposições, uma vez que lhes faltam documentos. Os

modos de vida dos ciganos, imaginados como avesso aos dogmas da sociedade ocidental,

inscrevem-nos como selvagens, perigosos e antissociais, porém, ao mesmo tempo,

representam o espírito romântico da aventura e da boemia. Enquanto uma minoria à margem,

os ciganos conseguem ter uma singularidade, que os fazem irreproduzíveis dentro da

sociedade burguesa.

No local, ainda existia um teatro de fantoches, em que uma marionete apresentava-se

com o corpo discrepante à cabeça. Um médico que havia no local disse que a marionete não

tinha cabeça e tomou emprestado de alguém, pois "pertenece a algún desafortunado que tenía

ideas locas y ahora por falta de manos podría hacer uso de insultos para proteger palmada,

168

hormigueo en la nariz y similares" (Hoffmann, 1822/2009, p. 39). Simbolicamente, como

crítica romântica, a “cabeça” faz referência às ideias iluministas e a “falta de mãos”, ao seu

inacessível campo, o qual consiste em uma espécie de defesa para que o sujeito não seja

tomado pela sua interioridade, contornada pelas emoções.

Por conta da semelhança entre os dois personagens, outro acontecimento que tornou

percepção dos outros foi o tiro que Deodatus sofreu na floresta, quando estava de carro junto

à Natalie. Alguns achavam que o baleado havia sido ele e outros que teria sido George. Nesse

momento da narrativa, o acontecimento não duplicado começa a esquematizar-se para que as

diferenças entre os dois sejam de fato elucidadas. O fantasma da duplicação conduz os

gêmeos à vista de si mesmos, referenciada pelo alcance da revelação de seus destinos.

De acordo com Giora (2015), a duplicidade idêntica é possibilitada em virtude da

composição das diferenças, que são moldadas pelo oposto, para a defesa da identidade, o que

implica às vezes no abandono ou recusa de partes que poderiam ser apropriadas, mas se

assumidas pela dupla, interferem no processo de autenticidade do próprio Eu. Já para Duarte

(2011), se sujeito e objeto são o Eu, ou seja, se os “dois” vira “um”, também o Eu pode ser

tanto o sujeito, como o objeto, ou seja: “o virar dois” ao invés de propiciar a perfeita

fundamentação do ser consigo mesmo, instaura-se a dessemelhança, a diferença.

A bala apenas roçou o peito de Deodatus, contudo o disparo faz com que o conde

Hektor von Zelies reaparecesse na floresta e falasse para o jovem afastar-se daquele local. A

floresta, com sua vastidão, surge como um espaço onde, por mais que se conheça, ainda há a

sensação de desconhecimento e de incerteza, remetendo aos conteúdos de natureza

inconsciente. Deodatus tem outros contratempos por estar na propriedade do príncipe

Remigius, em Sonsitz, como a sua prisão. O príncipe, ao vê-lo, e Deodatus ao contar sua

versão pronunciando os nomes do conde e de Natalie, sofre um derrame. A tensão emocional

169

do acontecimento foi barrada por uma paralisia. O sofrimento, as lembranças reprimidas e as

obrigações com que a nova realidade impunha a Remigius, desencadearam nele um colapso,

diante do pavor de um possível reencontro. Remonta a um não-dito, que para ele ainda

deveria permanecer silenciado.

Na categoria do inquietante estaria tudo aquilo que sendo familiar retorna

agora como diferente e até mesmo misterioso. O impacto causado está nesta

polaridade do conhecido e desconhecido, na impossibilidade de um conhecimento

total do objeto dado a conhecer: sempre resta algo inacessível, refratário, velado ao

conhecimento. Este resto às vezes se impõe provocando uma sensação de estranheza

que alerta para o perigo, e a angústia é deflagrada automaticamente. Assim

reconhecemos em toda situação familiar a possibilidade de sobrevir o inquietante

(Marquez, 2010, 22).

Remigius encontrava-se em um estado melancólico profundo, desde que sua esposa e

seu filho, inexplicavelmente, haviam desaparecidos. Como ele não tinha herdeiros, quem

tomaria o trono era seu irmão, o conde Hektor von Zelies, o qual estava escondido no castelo

em ruínas. No entanto, em um testamento, Remigius diz que seu irmão não poderia ser o

sucessor do trono.

O conde von Törny era o primeiro-ministro da localidade, porém, com o

desaparecimento da princesa, ele também deixou o reinado e adota o novo nome de Amadeus

Schwendy. A troca do nome, entretanto, não aniquilou o não-dito que atravessava Amadeus e

Deodatus. A força do destino e da palavra posta de Amadeus divulga a história do jovem, que

recomeça reconhecendo a si mesmo e retornando ao seu lugar de origem. O recalque, tanto de

170

Amadeus como do príncipe, criou o efeito de concretização do destino, isto é, por conta de

uma história percorrida por dúvidas, culpas e havendo o retorno do mesmo e do

estabelecimento da confirmação soberana do inconsciente.

Sendo assim, o estranho é aquele “outro” ou algo que tenha sido para o Eu em algum

tempo familiar, depois, no entanto, desvincula-se dessa familiaridade, para, posteriormente,

ser reencontrado. O acontecimento não é estranho, é familiar, depois, de forma ambivalente

torna-se estranho e assustador. A ideia do duplo, nesse conto, retoma a ideia de que o

estrangeiro no outro ou em si mesmo significa o encontro de uma familiaridade abandonada e

esquecida, porém jamais excluída. O “estranho estrangeiro” busca a complementação, a

reintegração, ou até mesmo a oposição, para existir.

No leito de morte, envolto pela culpa, o príncipe disse ter sido injusto com sua esposa,

por conta de uma suspeita de infidelidade, trancando ela e o filho na parte do castelo em

ruínas. O príncipe Remigius e o conde von Törny eram amigos e se apaixonaram ao mesmo

tempo. O príncipe se apaixonou pela princesa Angela e o conde pela condessa Pauline.

Ambos se casaram no mesmo dia. Contudo, a princesa se apaixona pelo conde, que desde a

juventude observara que tanto a princesa quanto a condessa possuíam uma “exaltação na

fronteira da histeria”. As duas mulheres, portanto, não eram representadas com características

angelicais ou demoníacas, tão comum às histórias românticas, mas com uma neurose. As duas

tinham ataques e ambas esperavam um bebê:

Extraña coincidencia o tal vez debería llamarse, el destino maravilloso, la

princesa y la condesa dan a luz a un niño, mientras que al mismo tiempo... También:

todas las semanas, todos los días se hizo cada vez passavem evidente que los niños se

parecían cada vez más para contar (Hoffmann, 1822/2009, p. 82).

171

A princesa e a condessa duplicam-se mutuamente, o que se refere à ideia de uma única

personalidade. A duplicidade vinculada às duas mulheres: o cenário de identificações, as

pontualidades ao nível do casamento e da gravidez, sugere novamente a questão da repetição

das situações, na qual o sujeito tende a afirmar a si o que já conhece para, posteriormente,

encontrar as suas alteridades. Tal questão é contundente ao Romantismo e à narrativa, cuja

busca era de fato por uma identidade única, permitindo ao sujeito contrapor-se aos padrões

sociais e às máscaras. No entanto, ainda não consegue tal realidade, devido ao fato de viver

em comunidade e realizar o contato social, o que revela, com isso, que as demarcações entre o

mundo externo e interno serão tênues. Os dois universos afetam-se. Logo, a crise do período

tornar-se uma crise também do Eu.

A realidade psíquica é tanto objetiva quanto subjetiva, assim como a realidade externa

é o reflexo da vida pulsional. O desamparo do indivíduo é a matéria-prima da psicanálise, já

que ele resulta da subjetividade em um mundo que se funda sobre ideais totalizantes e

universalizantes, uma vez que a vivência genuína requer o recomeçar insistentemente. A

vivência no Romantismo sinaliza o aparecimento da sociedade pré-moderna, a qual representa

uma vida de concessões, pois direciona o sujeito ao aprisionamento, cuja lacuna interior está

presente. O movimento cíclico da morte, do luto e do renascimento, ao constituírem-se,

produz a metáfora do processo de constituição do Eu. Giora (2015) ressalta que o conflito

mental cria o duplo, o que satisfaz a uma projeção do conflito interno.

A histeria das personagens aproxima-se ao fato de que o Eu foi derrubado por

acontecimentos nos quais perde o controle diante de situações não imaginadas. O nascimento

da psicanálise no século XIX foi possível através dos estudos psíquicos da histeria. O

fenômeno básico da histeria, para Freud (1893/1996), é uma tendência para a dissociação e,

com ela, a emergência de estados de consciência anormais, que se pode chamar de

172

“hipnóides”. Por exemplo, o afeto de pavor pode assombrar no curso de algum outro afeto

intenso e, por isso, recebe importância. Após experiências com esses fenômenos, Freud julgou

provável que em toda histeria havia algo de rudimento chamado de “Double conscience” –

consciência dupla. O corpo das histéricas era o palco da ruptura entre as noções de verdade e

ficção, da insuficiência científica que rompia com o universo das afecções da carne e do

mundo do sofrimento psíquico. Os estudos de Freud sobre as histéricas comprovam o efeito

fundamental da fantasia (Tavares, 2012).

Em Os Duplos (1822/2009), além da duplicação das personagens, há o dual fenômeno

da histeria, que também diverge às manifestações de que cada duplicada também divide a sua

personalidade, estando ligadas a dois afetos: um consciente e outro que permanece separado e

adormecido, o qual é denominado por inconsciente. Ao não tolerarem a confusão de si e do

mundo, além de duplicarem-se, seus organismos passaram a somatizar. As representações do

recalque incorporam a relação simbólica de que, mesmo com a duplicação, um “outro eu”

deveria nascer, porém de maneira mais explícita e concreta e, com isso, a gravidez de ambas

ocorre.

Por estar casada com o príncipe e estar apaixonada pelo conde, mesmo não

acontecendo nada real entre os dois, a princesa passa dias lamentando. Ao ocorrer o

nascimento de seu “outro eu”, de seu filho, possível por intermédio de um desejo realizado

sob o plano inconsciente, pela fantasia, ela oscila entre beijar a criança, aceitando que houve a

concretização de seu desejo, ou de recusar, desprezando o bebê. A ideia de duas crianças que

nasceram iguais, isso, pois, suas mães estavam apaixonadas pelo mesmo homem, retoma

novamente ao fenômeno da duplicação, tendo como modelo o desdobramento de dois iguais.

A princesa Angela percebe que, com o nascimento de seu “outro eu”, realizado por

conta de seu “adultério”, traz à tona a presença de um Eu que não é aceito, produzindo, assim,

173

marcações familiares que precisam ser reveladas. Após ser escondida no castelo pelo príncipe,

ela consegue fugir com os ciganos, fato pelo qual, longe dos paradigmas sociais, conseguia

com seus novos amigos, expressar as suas excentricidades, as quais faziam fronteira com a

loucura. Contudo, a princesa se cansa da vida aventureira e, do mesmo modo, por meio das

manifestações do duplo, faz com que os ciganos aparecessem por adivinhação ao corvo, que

conduziu Deodatus ao encontro com ela e com seu Eu desvendado.

O conde von Zelius, irmão do príncipe, também alterou o seu nome para Isidor, a fim

de esconder segredos e tornar-se outro, pois sabia que o príncipe havia encondido a esposa e o

filho nas ruínas do castelo. Pensou que George e Deodatus fossem a mesma pessoa e, diante

disso, tentou matar Schwendy na floresta para que, com a morte de Remigius, não houvessem

herdeiros.

Como George e Deodatus tinham desejos por serem amados, as aparições de Natalie

em diversos lugares, representava um desejo pela reciprocidade. Natalie vai para o convento,

e George, que não era gêmeo e nem irmão de Deodatus, segue rumo às montanhas.

Quando Angela fugiu com os ciganos, Amadeus, com a ajuda de sua mulher, esconde

Deodatus, e faz uma pequena marca com fogo no peito de seu pupilo para que, quando ele

viesse a reencontrar com seu destino, a cicatriz comprovasse. Em seu leito de morte, o

príncipe havia sinalizado que, quando todos de sua vida fossem expulsos, pelo seu comando,

voltariam a reunir-se.

Inicialmente, Deodatus e George foram tratados pelos demais e eles mesmos

percebiam-se como gêmeos. Como “irmãos iguais” eles percorreram por questões com as

quais contornavam a identificação, a igualdade, para, em um posterior momento, haverem as

diferenças. Mesmo se fossem realmente gêmeos, eles não poderiam ser iguais, existiria, a

partir disso, a palavra semelhança. Ser semelhante não é ser igual e também não é ser

174

diferente. Cria-se, portanto, uma situação intermediária aberta, que tanto esconde o que é

igual, como o que os diferencia.

Os desdobramentos caracterizados pela repetição do mesmo representaram, no conto,

a tentativa da imagem igual de si no outro, o que, contudo, não concretizou o almejo da

diferença, calcada através da singularidade, nas diversas personalidades que utilizaram desse

recurso. Os duplos dos duplos simbolizaram a tentativa romântica de que haja o encontro

consigo, mesmo mediante a um igual. Contudo, as constates divisões enfraqueceram ainda

mais a nascente singularidade.

A personagem que é conduzida a um possível reencontro e reconhecimento por meio

das duplicidades semelhantes e, posteriormente, diante do encontro com o seu destino, foi

Deodatus. O choque com o destino representa o descobrimento das forças inconscientes, com

a sua história pessoal secreta, mas que foi conhecida, possibilitando, a partir disso, um

conhecimento de si mesmo, pelo menos no âmbito de suas origens. Deodatus passa a ser uma

“forma particular de unidade”, fato este que o diferencia dos demais, contudo,

paradoxalmente, ele é em si mesmo cindido, sendo um “divíduo.

[...] tudo o que pertence à vida voltará ainda a repetir-se, tudo o que nela há de

indivisivelmente grande ou pequeno, tudo voltará a acontecer e voltará a verificar-se

na mesma ordem, seguindo a mesma impiedosa sucessão, esta aranha também voltará

a aparecer, este lugar entre as árvores, e este instante, e eu também! A eterna

ampulheta da vida será investida sem descanso, e tu com ela, ínfima poeira das

poeiras! (Nietzsche, 2006, p, 179).

175

O destino retoma ao retorno das situações iniciais da origem da vida de Deodatus e

tende, diante dos variados acontecimentos, a chegar de novo a esse conhecido lugar, tornando-

se um processo de reencontro e de redescobrimento. As diversas multiplicidades se

desenrolam para que pelo menos uma personagem do enredo consiga tornar-se diferente dos

demais, recuperando e reconhecendo a sua identidade, que de fato foi perdida.

176

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho evidenciou a crise social do contexto do Romantismo Alemão,

ocorrida entre o final do século XVIII e meados do século XIX. A crise do cenário histórico-

social, também foi convergida ao conflito do sujeito com o seu próprio Eu

A crítica essencial do Romantismo é caracterizada pela quantificação da vida, ou seja,

a total dominação do valor de troca acima do conjunto do tecido social. A princípio, os

conflitos de valores, de normas e de ideologias causaram o Weltschmerz característico da

época romântica. Enquanto ambição por um postulado do absoluto, o desejo dos artistas

viriam por meio do Eu, o qual seria uma identidade absolutamente singular e única,

radicalmente diferenciada de todas as demais.

O valor básico do Romantismo é a celebração da singularidade do indivíduo, que se

remete ao mundo interior a uma vida singular, que fazia com que cada “Eu” fosse uma

entidade que não poderia ser reproduzida e nem mecanizada. Inicialmente, os fenômenos do

duplo seriam fundamentados no encontro do homem consigo mesmo, isto é, ao seu Eu

completo, único e pleno. Mesmo que se tente avistar a uma “forma particular de unidade” em

cada sujeito, que possa diferenciá-lo dos demais, a “unidade particular” desmembra-se em

partes, pois o sujeito é em si e de si mesmo um ser fragmentado e cindido. Enquanto, um

“divíduo”, o sujeito é pelo menos dois: dividido entre o seu ser consciente e o seu ser

inconsciente.

Então, diante dos desdobramentos do duplo, o sujeito vislumbra-se com “um outro”,

um estrangeiro de si, pois, ao ser cindido e fragmentado, as manifestação do duplo revelam a

multiplicidades e os problemas de assimilação perante aos seus “Eus”. O duplo, no

177

Romantismo, desse modo, representa o perpétuo conflito do ser, que tem com a dialética da

existência a busca pela atividade de compreensão de unidade, atrelada aos lutos diante da

origem e da própria essência do sujeito.

Dessa forma, o duplo, no Romantismo, simboliza a busca, mesmo que idealizada e

ilusória pela unidade correspondente a cada sujeito. Contudo, paradoxalmente, os românticos,

como Hoffmann, abandonam o postulado da singularidade da identidade do sujeito e sua

consequente busca por essa identidade, o que acarreta a uma quebra de unidade do ser e, com

isso, revelam uma fragmentação própria ao Eu.

No Romantismo, os desdobramentos vêm pontuar a travessia de cada sujeito, isto é, a

ambição por uma unidade e síntese, cujas quais se eternizam por meio da constante busca por

fragmentos sociais e psíquicos. Os vislumbres, as fragmentações, os aspectos noturnos da

alma humana e a tentativa de encontro consigo mesmo, ainda que manifestado por meio dos

fenômenos dos duplos, referem-se a uma região a ser continuadamente explorada pelo espírito

investigativo.

As narrativas de Hoffmann permitem a compreensão de que o encontro com os

fragmentos do Eu e com a complexidade dos vários “Eus” existentes em um mesmo sujeito,

possibilite esbarrar-se com o conceito psicanalítico de um Eu – ou melhor, um “eu”

descentralizado e dividido, no qual há o rompimento com qualquer crença a respeito de uma

verdade absoluta quanto ao sujeito e, principalmente, quanto ao seu psiquismo.

No conto A imagem perdida, os duplos protagonistas, em um enredo baseado na

multiplicidade das duplicações, têm com os atributos dos espelhos, da ausência de reflexo e

da falta de sombra, a visualização da fragmentação de seus “eus”, grafado em letra minúscula,

com os quais, os personagens ainda não conseguem reconhecê-los como sendo o “eu” uma

entidade plural. A perda da sombra é uma referência direta a perda de identidade pessoal,

178

social e psíquica. Ela pode ser representada como a alma em si mesma ou como um elemento

semelhante.

A imagem perdida representa a perda do “eu” integral e a impossibilidade do encontro

consigo mesmo diante da ilusão de que o sujeito possa a vir tornar-se uma unidade. A imagem

sugere o enigma do encontro consigo mesmo: quem sou “Eu” (“eu”)? No entanto, Hoffmann

e Erasmo não conseguem solucionar tal mistério e o discurso sobre os acontecimentos que os

cercam, são vivenciados como se eles fossem um observador externo e neutro, sem qualquer

participação em suas próprias vidas. Através de uma viagem, ambos, Spickherr, sem imagem

refletida, e Schlemihl, sem sombra, vão rumo ao caminho do desconhecido – às manifestações

inconscientes, procurar ainda por algo que foi perdido e que esperar por um resgate.

Em O Doutor Trabacchio, as personagens, por meio do mecanismo de dois princípios

absolutos separados, os caracteres divinos e demoníacos, tentam avisar o “eu” - dividido.

Contudo, as mesmas personagens ainda conseguem visualizar o sujeito como uma entidade

que carrega em si as facetas dos dois elementos. Como duplos antagônicos, André e Inácio,

André e Trabacchio não aceitam o seu oposto e a representação de seu “outro eu” oposto.

O duplo, em O Doutor Trabacchio, simboliza o “outro de si”, a dialética da existência

que corresponde a um perpétuo conflito. Os duplos opostos visam, portanto, a uma tentativa

compreensiva por uma unidade decomposta. Contudo, é uma constante busca, pois o “eu” é

em si e de si fragmentado. Os pares formados por André e Inácio, André e Trabacchio olham

individualmente para seu respectivo “outro” como um reflexo estranho e ainda não

reconhecido.

Os desdobramentos de um mesmo têm em vista que, através da repetição, o sujeito se

ambiente com elementos conhecidos para si a fim de que, com isso, alcance a diferença

179

pautada através do redescobrimento, na constante tentativa do reencontro de si mesmo, dos

(res) significados perante a sua história pessoal, familiar e das características de alteridade.

Deodatus e George, os “gêmeos” idênticos, sustentam a ilusão de igualdade entre

representação e representado, isto é, a não divisão do sujeito. Os pares gemelares estando em

perfeita sincronia e harmonizados pelas igualdades, comprovam ser possível estar em

equilíbrio consigo mesmo, de acordo com o ideal de superação dos conflitos internos,

resultado da dinâmica de funcionamento de um aparelho psíquico submetido às forças

contraditórias e em oposição.

No entanto, a duplicidade idêntica é possibilitada em virtude da composição das

diferenças, que são moldadas pelo oposto, para a defesa da identidade, o que implica, às

vezes, no abandono ou recusa de partes que poderiam ser apropriadas, mas se assumidas pela

dupla, interferem no processo de autenticidade do próprio “eu”. Se sujeito e objeto são o “eu”,

ou seja, se os “dois” vira “um”, também o “eu” pode ser tanto o sujeito, como o objeto, ou

seja: “o virar dois” ao invés de propiciar a perfeita fundamentação do ser consigo mesmo,

instaura-se a dessemelhança, a diferença.

Portanto, o Romantismo e a temática das manifestações dos desdobramentos do “eu”

possibilitaram observar como o universo psíquico, tendo como suporte o “eu”, os “eus” e os

fenômenos do inconsciente, podem colaborar para a mágica fantasia ocorrida dentro do

próprio ser, que se estende em acontecimentos externos e reais. Com isso, além do

movimento romântico ter ensejado temas próprios à psicanálise, como a ideia de que o “eu”

possa ser instrumento, método e objeto de estudo, possibilitou as outras posteriores escolas

literárias a percepção de que em um mesmo sujeito há diferenças e múltiplas encenações

dentro dele mesmo, tornando-o imprevisível, complexo e de grande densidade psicológica: ou

seja, um Eu de personagens periféricas.

180

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