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Ana Cláudia Gruszynski Bruno Guimarães Martins Márcio Souza Gonçalves

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Ana Cláudia GruszynskiBruno Guimarães MartinsMárcio Souza Gonçalves

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAISReitora: Sandra Regina Goulart Almeida

Vice-Reitor: Alessandro Fernandes Moreira

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANASDiretor: Orestes Diniz Neto

Vice-Diretor: Bruno Pinheiro Wanderley Reis

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃOCoordenadora: Ângela Cristina Salgueiro Marques

Sub-Coordenador: Eduardo de Jesus

SELO EDITORIAL PPGCOMBruno Souza Leal

Nísio Teixeira

CONSELHO CIENTÍFICO

Ana Carolina Escosteguy (PUC-RS) Benjamim Picado (UFF)Cezar Migliorin (UFF)Elizabeth Duarte (UFSM)Eneus Trindade (USP) Fátima Regis (UERJ) Fernando Gonçalves (UERJ) Frederico Tavares (UFOP) Iluska Coutinho (UFJF) Itania Gomes (UFBA)Jorge Cardoso (UFRB | UFBA)

Kati Caetano (UTP)Luis Mauro Sá Martino (Casper Líbero) Marcel Vieira (UFPB)Mariana Baltar (UFF)Mônica Ferrari Nunes (ESPM) Mozahir Salomão (PUC-MG) Nilda Jacks (UFRGS)Renato Pucci (UAM)Rosana Soares (USP)Rudimar Baldissera (UFRGS)

Avenida Presidente Antônio Carlos, 6627, sala 4234, 4o andar Pampulha, Belo Horizonte - MG. CEP: 31270-901

Telefone: (31) 3409-5072

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)

E74Escritos sobre comunicação e experiência estética [recurso eletrônico] : sedimentos, regimes, modalidades / Organi-zador Benjamim Picado. – Belo Horizonte, MG: PPGCOM/UFMG, 2019

Formato: PDFRequisitos de sistema: Adobe Acrobat ReaderModo de acesso: World Wide WebInclui bibliogra aISBN 978-85-54944-28-5

1. Comunicação – Filoso a. 2.Estética. I. Título. CDD 302.02

Elaborado por Maurício Armormino Júnior – CRB6/2422

CRÉDITOS DO E-BOOK © PPGCOM/UFMG, 2019.

CAPA E PROJETO GRÁFICOAtelier de Publicidade UFMG Bruno Guimarães Martins Daniel Melo Ribeiro

DIAGRAMAÇÃOVictor Oliveira Ferrarezi

REVISÃOOs autores

O acesso e a leitura deste livro estão condicionados ao aceite dos termos de uso do Selo do PPGCOM/UFMG, disponíveis em:

https://seloppgcom.fa�ch.ufmg.br/novo/termos-de-uso/

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SUMÁRIO

Apresentação 9Benjamim Picado

Parte 1: Sedimentos Conceituais 20Capítulo 1 21Elementos para a Construção de uma Comunicologia: de como melhor compreender a comunicação, considerando-a como um eventoCiro Marcondes Filho

Capítulo 2 37O que Ainda Podemos Esperar de Kant?Thales Vilela Lelo

Capítulo 3 56A Estética que Vem Cesar Guimarães Capítulo 4 77Crítica de Moda e Experiência EstéticaRenata Pitombo Cidreira

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Parte 2: Regimes Sensíveis 97Capítulo 5 98Quando o Cinema se Faz VizinhoÉrico Araújo Lima Capítulo 6 122 Sobrevivências dos Rostos nas Imagens: aproximações entre Lévinas e Didi-HubermanFrederico VieiraRicardo Lessa Filho Capítulo 7 150Testemunho Tardio: o desastre em Mariana (MG) no fotjornalismo de Zero HoraJulia Capovilla Luz Ramos

Capítulo 8 175Guerrilhas do Sensível: estetização e contra-estetização do mundoJean-luc MoriceauCarlos Magno Camargos MendonçaIsabela Paes

Parte 3: Modalidades Comunicacionais 191Capítulo 9 192Mal-Entendidos: arte contemporânea, vida cotidiana e experiência estéticaEduardo Antonio de Jesus

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Capítulo 10 208Signo, Medialidade e Sobrevivência: do gesto perdido ao gesto prometidoÍcaro Ferraz Vidal JuniorFernanda Bruno

Capítulo 11 233O Giro Lúdico na Experiência Estética Audiovisual MusicalLaan Mendes de Barros

Capítulo 12 251Em Busca do Som Qualquer: música experimental e experiência da comunicaçãoMaria Fantinato SiqueiraMaurício Lissovsky Índice dos Autores 270

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ApresentaçãoBenjamim Picado

Através desta coletânea de textos, busca-se introduzir o leitor a um estado atualizado das idéias e debates que têm orientado, nos últimos anos, um importante campo de reflexão que tenta fazer convergir o estudo dos fenômenos, produtos e processos comunicacionais da cultura contempo-rânea e seu estatuto de vetor de experiências estéticas, no modo particular com o qual esta última pode ser conceituada – através do recurso a tradi-ções anteriores e estágios contemporâmneos da discussão nesse impor-tante ramos da filosofia acadêmica.

Pelo modo como tal interseção é promovida, o enlace entre comu-nicação e experiência estética coloca no centro dessas discussões um universo empírico de manifestações que não são costumeiros da vertente na qual essas reflexões se travam, no seu âmbito filosófico. É assim o caso de se reconhecer que um perfil característico do registro no qual os voca-bulários estéticos se insinuam nos estudos da Comunicação reclama um lugar apropriado para os produtos da cultura dos modernos meios de comunicação – o que se evidencia inclusive pelo traço quase instituciona-lizado da presença do cinema e da fotografia, já aceitos plenamente como

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tópicos de discussão estética, em campos como o da história e da filosofia da arte.

Por outro lado, contudo, há um aspecto dessa discussão sobre o “esté-tico” na comunicação que ainda tem merecido pouca atenção, a saber, o fato de que a pedagogia da transmissão dos saberes filosóficos em nossa área de estudos ainda padece de vícios já devidamente tematizados e criti-cados em suas fontes disciplinares: no caso dos saberes estéticos, trata--se de assimilação irrefletida entre tal estatuto e os objetos do mundo da arte – caráter de definição das tarefas de uma teoria estética que já foram devidamente esquadrinhados pela discussão conceitual, a ponto de fazer uma inflexão que demarca as fronteiras entre o “estético” e o “artístico”, de modo a consignar para o primeiro um estatuto relativamente inde-pendente da matriz artística dos fenômenos que provocam um tal estado distintivo de nossa sensibilidade.

Naquilo em que a diferença entre a matriz estética e a origem artís-tica dos fenômenos de nosso interesse pode concernir a um campo de estudos como o da Comunicação, isto afeta gravemente a possibilidade de construção de um saber estético sobre fenômenos e processos comuni-cacionais: ela não mais concerne a uma interrogação sobre a viabilidade de estatuir o caráter “artístico” dos produtos comunicacionais (como já foi o traço da pedagogia que transmitiu tais saberes, em disciplinas ainda existentes nos cursos de comunicação, tais como “Estética e Cultura de Massa” ou “Estética da Comunicação”), mas sim a de avaliar os horizontes de “resposta sensível” que se podem depreender da eficácia simbólica e cultural de tais produtos.

Mais ainda, uma tal abordagem estética da comunicação faz inflexões ainda mais importantes sobre os fenômenos e processos de nosso campo, quando deslocam sua episteme de base de uma atenção aos “produtos” mediáticos para aquele das “dinâmicas interacionais” que os antecedem e até mesmo os condicionam. Estamos assim falando da noção de que os enlaces entre estética e comunicação podem implicar uma redefinição do próprio conceito que define esse campo de estudos, no sentido de valo-rizar os processos de interação como “acontecimentos” de comunicação.

Para alem desses aspectos de sinalização ou somatismo sobre deter-minados fundamentos epistemológicos de nosso campo de estudos, este conjunto de textos reflete mais evidentemente uma curva existencial

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dessas discussões, materializada na existência de um Grupo de Trabalho sobre “Comunicação e Experiência Estética”, abrigado desde 2007 na programação dos encontros anuais da Associação do Programas de Pós--Graduação em Comunicação (COMPóS), principal entidade represen-tativa do sistema da pesquisa avançada na área de estudos da Comuni-cação no pais: nesse contexto institucional, a existência do grupo induziu o desenvolvimento e amadurecimento das grandes linhas temáticas nas quais estas relações puderam se desenvolver – sempre num clima garan-tido de pluralidade epistemológica e espírito critico devidamente combi-nados. A ementa desse GT pode conferir ao leitor uma imagem possível do escopo abrangente dos debates que transcorreram nesse espaço, há mais de uma década:

O GT explora a interseção entre os fenômenos comunicacionais e as teorias estéticas, contribuindo para a reflexão e a crítica de ma-nifestações expressivas da cultura contemporânea, tanto em traba-lhos teóricos quanto analíticos. Busca-se compreender as questões vinculadas à dimensão estética dos processos comunicacionais, na medida em que contemplem a dimensão ativa da sensibilidade. São de interesse do GT discussões tais como: os aspectos valorativos do afeto e do gosto estéticos; os enlaces entre experiência estética e política; as várias dimensões performativas da experiência estética; a inflexão epistemológica das abordagens estéticas da comunica-ção.

Para além dos limites da existência do GT na COMPóS, seus membros mais atuantes desde sua origem desenvolveram uma ampliação dos espaços de debate acerca da oportunidade na qual se articulam os temas da estética e da comunicação, sob variados formatos: naquilo que a apre-sentação da presente coletânea faz efeito, ela reflete uma tradição de publi-cações coletivas sobre diferentes temas associados ao núcleo conceitual que orienta o GT, materializadas em sucessivas coletâneas para o acesso público a muitas dessas discussões.1 No que tange a apresentação do

1 Enumeramos tais itens, para fornecer a amostragem dessa evolução dos debates sobre os enlaces entre comunicação e experiência estética: Comunicação e Experiência Estética (Cesar Guimarães, Bruno Souza Leal e Carlos Camargos Mendonça, orgs.). Belo Horizonte: UFMG, 2006; Entre o Sensível e o Comunicacional (Bruno Souza Leal, Cesar Guimarães e Carlos Mendonça, orgs.), Belo Horizonte: Autentica, 2010; Experiência Estética e Performance

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presente volume, destaca-se que o mesmo resulta de um apanhado das mais significativas contribuições que circularam na história recente do GT, no intervalo entre os encontros dos últimos 4 anos – entre 2015 e 2018.

No universo representado por essa escolha editorial, o leitor certa-mente constatará não apenas a qualidade das reflexões propostas como réplicas ao desafio representado pelos termos da ementa desse grupo, mas igualmente a diversidade temática e das aproximações teóricas e metodo-lógicas implicadas nesse enderaçamento de temas de estética aos universos comunicacionais – em qualquer aspecto que se apresentem: nesse sentido, propõe-se aqui uma repartição tópica das abordagens representadas por esse conjunto heterogêneo de reflexões, e que se materilizará no modo como o índice de assuntos dessa coletânea reparte as dimensões do enlace entre estética e comunicação, de modo a melhor organizar as fronteiras dessa discussão para uma melhor apreciação do leitor.

É com esse sentido que distribuímos esses artigos entre três grandes zonas temáticas do debate: na primeira delas, designada como “Sedimentos”, identificamos os registros mais vinculados ao debate epistemológico que pode condicionar os entrelaçamento da comunicação e da experiência estética, envolvendo a concepção de “acontecimento” ou “manifestação” comunicacionais – seja pela recapitulação de autores menos freqüentes em nosso campo de estudos ou por experiências limítrofes da compre-ensão de outras culturas e civilizações; no segundo momento, delimitam--se os “regimes” que emergem da experiência de certos produtos, seja como horizontes puramente temáticos ou como princípios de organização sensível do mundo (tais como os da “vizinhança”, do “testemunho” ou do “cotidiano”); finalmente, na última parte desta coletânea, destacam-se as “modalidades” de aparição de núcleos estéticos em produtos e processos comunicacionais, conforme sejam eles oriundos da experiência de dispo-sitivos mediáticos – e manifestos através de “gestos”, “performances” ou “jogos” desinteressados.

(Benjamim Picado, Carlos Magno Camargos Mendonça e Jorge Cardoso Filho, orgs.). Salvador: EDUFBa, 2014; Comunicação e Sensibilidades: pistas metodológicas (Carlos Magno Camargos Mendonça, Eduardo Duarte, Jorge Cardoso Filho, orgs.). Belo Horizonte: Selo PPGCOM, 2016.

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Apresentamos, a seguir, um breve apanhado dos temas que o leitor encontrará nessa coletânea, nas três partes em que ela se divide: na primeira delas, privilegiamos um conjunto dos textos que se concentra em determinadas regiões sedimentares da discussão sobre os enlaces entre os fenômenos da comunicação e a experiência estética. Não por acaso, são reflexões que oferecem o espaço – nem sempre tranqüilo e, de fato, epis-temologicamente arriscado – de uma “fuga” aos registros tradicionais da pesquisa em Comunicação: pois é fato que um dos traços mais recorrentes da história dos debates no interior do GT em “Comunicação e Experi-ência Estética” da COMPóS foi, ao menos por vezes, o de concentrar-se mais na dimensão comunicacional da sensorialidade e da afetividade do que – como seria de se esperar – conferir aos objetos mais correntes dessa reflexão (como os universos mediáticos) um status de distinção ou quali-ficação “estéticas”.

Dentre as figurações desse possível escape à tradição da reflexão no pensamento comunicacional, se destacam temas como o da valorização acontecimental dos processos, produtos e fenômenos da Comunicação, como proposta no artigo de Ciro Marcondes Filho: em “Elementos para a Construção de uma Comunicologia”, este autor tenta retirar a carga esté-tica dos fenômenos de nosso campo estudos, do âmbito das obras, objetos ou discursos, para situá-las enfim no estatuto interacional de sua efetivi-dade e no caráter de “acontecimento” comunicacional que elas instalam apenas na medida em que horizontes de sensibilidade e de resposta afetiva sejam ativados pelos sujeitos do processo – sujeitos estes dotados de uma corporeidade que pronuncia as condições da própria interação.

Ainda na chave de uma recapitulação de tradições teóricas “submersas” do pensamento sobre o estético no campo da Comunicação, o texto de Thales Vilela Lelo tenta recobrar o sedimento da filosofia kantiana, como espécie de centro irradiador das questões que têm mais freqüência no enlace entre comunicação e experiência estética: perguntando-se sobre “O que ainda podemos esperar de Kant”, este autor tenta se exercitar sobre uma hipotética e silenciosa influência da estética da Crítica da Faculdade do Juízo, menos pela perspectiva de uma exegese dessas idéias, e mais pelo suposto de que sua circulação ainda é ressentida em autores que traba-lham numa maior proximidade dos conceitos estéticos com a pesquisa em Comunicação: recuperando noções como a da “relação”, do “desinteresse”

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e do “juízo” estéticos (legados pela reflexão kantiana), Thales Lelo fornece interessantes indicativos de uma tarefa de explicitação dessa herança da filosofia transcendental nos modos de se endereçar os problemas da comunicação a seus sedimentos estéticos.

Em outro ângulo de ataque dessa mesma “fuga” a uma Comunicação centrada em fundamentos conceituais e empíricos não questionados na história desse campo de reflexão, podemos também nos perguntar sobre uma determinada “origem” de nossas concepções sobre o “estético”, situ-ando-as para além daquilo que as tradições de pensamento acadêmico sedimentaram como um “grau zero” dessas disciplinas: ao falar de uma “Estética que Vem”, este é precisamente o ponto que se situa o texto de Cesar Guimarães, na medida em que seu ponto de partida é uma riquíssima experiência com a articulação entre saberes tradicionais de comunidades indígenas do interior de Minas Gerais e suas produções audiovisuais – em cujo âmbito se delineiam outros modos de se pensar as intensidades que demarcam espaços e intervalos entre a imagem, a sensibilidade e os modos de vida comunitários. Nessa outra expressão da “fuga” aos costumes epis-têmicos de nossa área, é igualmente um discurso sobre as modalidades de aparição e de origem do acontecimento comunicacional que se instauram, mas agora no contato com os limites de nossos próprios padrões civiliza-tórios (ainda que manifestos pelo emprego de meios audiovisuais que nos são familiares como modalidades de transmissão cultural).

Nesses casos, não é apenas a admissão de que os domínios da esté-tica são muitas vezes assimilados ao limite mais diáfano entre a raciona-lidade e sua negação (como os textos da fase final de Adorno não deixam desmentir), mas sobretudo a idéia de que, conferidos com os instrumentos tecnológicos para a produção de um discurso que poderia apaziguar as distancias entre culturas, o que o experimento trazido pelo texto de Cesar Guimarães nos aporta é uma desestabilização mais radical dessa proprie-dade estética das imagens – trata-se da exposição de uma modalidade do sentir e perceber que nos parece estranha ou, no melhor dos casos, quase arcana. Ainda assim, seus modos de aparição nos apontam para a moda-lidade de sua “origem” mesma como sendo o núcleo de uma interrogação estética.

No último artigo dessa primeira parte da coletânea, nos encontramos com o familiar problema do “juízo estético”, com especial rebatimento

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sobre o fundamento da critica cultural: no texto de Renata Pitombo Cidreira, esse problema da relação entre crítica e experiência estética é situado em torno dos processos de avaliação dos produtos e eventos do universo da Moda. Este é um centros nervosos da avaliação sobre os potenciais comunicacionais da experiência sensível – já que herdamos da letra oitocentista das teorias estéticas a noção de que o estético se cons-titui como escape ou limite da racionalidade e da discursividade comu-nicacionais, não obstante também sabermos que, desde Kant, a noção do gosto é também identificada com horizontes presumidos de univer-salidade (por seu turno garantidos pelo fato de que se estruturam sob a forma de “juízos”). O exercício disciplinado da crítica nos conferiria assim com um campo de provas privilegiado sobre uma tal “comunicabilidade” da experiência estética, ainda que garantido que seu uso discursivo não caracteriza o núcleo dessa experiência como algo que possa ser (ao menos de imediato) reduzido à estabilidade das proposições epistêmicas sobre a realidade.

Na segunda parte dessa coletânea, começamos a explorar mais de perto determinados enlaces entre os regimes comunicacionais mais caracte-rísticos do universo mediático abordado em nosso campo de estudos e sua devida cota ou vetor de uma “experiência estética”: ao designarmos essa sessão como “regimes”, desejamos salientar que o caráter estético no qual se pronuncia a interrogação dos textos que a compõem, não é tanto a materialidade ou matriz tecnológica que de sua origem que nos importam, mas precisamente os horizontes de resposta sensível e afetiva que estão colocadas para o debate.

No primeiro desses textos, “Quando o cinema se faz vizinho”, Érico Araújo Lima aborda os diferentes registros que a noção de “proximidade” é construída através do cinema: ao escolher o filme A Vizinhança do Tigre, do cineasta mineiro Affonso Uchoa, o autor elege um conjunto peculiar de estratégias de encenação e narrativas da construção dos espaços subur-banos como lugares de uma experiência da “vizinhança” – como gesto de exposição de um mundo que, ainda que afastado de nossas rotinas, evoca um certo senso de proximidade. Os regimes audiovisuais da filmagem são, assim, instâncias da elaboração dessa dimensão estética do pertencimento – um dos temas mais caros à história do GT “Comunicação e Experiência Estética”: no contexto de todas essas operações de um “regime estético” da

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imagem cinematográfica, o sentimento da vizinhança é igualmente uma resultante de estratégias de encenação que apagam as fronteiras entre os gêneros ficcional e documental.

Ainda no âmbito dos “regimes” estéticos derivados da experiência da imagem na cultura contemporânea, destacamos dois textos que abordam tais questões, tendo como centro empírico o fenômeno da fotografia – de resto, tópico que atravessa a história de mais de 12 anos desse GT: no artigo de Frederico Vieira e Ricardo Lessa Filho, é a questão da “sobrevivência” dos rostos na imagem que os motiva a formular uma proximidade entre as reflexões de Georges Didi-Huberman e Emmanoel Lévnas; nesses dois, os autores de “Sobrevivências dos Rostos nas Imagens” encontram um eixo comum que articula a presença da fisionomia como tópica de represen-tação fotográfica (e com as evocações iconológicas daí derivadas) com os temas da filosofia existencial de Lévinas – e a importância que a questão da significação do rosto assume para o filósofo. Nesse mesmo contexto, os autores do artigo buscam identificar as marcas através das quais esse outro gênero de comunicação emerge, na unidade entre os aspectos iterativos da sobrevivência e os horizontes comunicacionais da figuração dos rostos, na história da arte e da imagem.

Outro regime saliente da significação fotográfica, com consideráveis conseqüências para uma abordagem estética de sua efetividade é aquela que se associa aos efeitos de testemunho atribuídos à representação de atualidades históricas no fotojornlismo: a um tal titulo, o artigo de Julia Capovilla Luz Ramos aborda a importante questão da anacronia entre o testemunho e o momento de sua abordagem – em contextos de represen-tação nos quais a atualidade do testemunho está fora do alcance dos agen-ciamentos produtivos que o fotojornalismo pode construir. Em conexão com um importante segmento da reflexão de historiadores e críticos da imagem fotográfica da história, quase todos abordando a questão a partir desse caráter do retardo do olhar sobre tragédias humanas, o artigo “Testemunho Tardio” se endereça especificamente às estratégias de apelo do jornal gaúcho Zero Hora em endereçar os acontecimentos ligados ao rompimento da barragem da Samarco, próxima à localidade de Bento Rodrigues, em Minas Gerais. As questões estéticas do olhar fotográfico aqui decorrem dessa espécie de descontinuidade entre o registro teste-munhal e a atualidade dos eventos, aspecto em que os recursos de apelo

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sensorial e emocional são aqueles que mais se encontram no conjunto das imagens que abordam esse evento.

O último artigo dessa segunda parte da coletânea aborda questões relativas à uma “guerrilha do sensível”, como resultante dos processos de disputa dos espaços públicos, exercitada através da sua encenação perfor-mada, em estratégias do poder público e pelas iniciativas dos artistas que habitam e fazem desses espaços uma inscrição de suas próprias identi-dades sociais e de gênero: em “Guerrilhas do Sensível”, os autores Carlos Camargos Mendonça, Jean-Luc Moriceau e Isabela Paes constroem uma argumentação sobre as potencias políticas da aparência e da performati-vidade, como aspectos de um desenho do “capitalismo artista”, no qual a competitividade assume afetos e criatividade como sendo os capitais de uma disputa simbólica na contemporaneidade.

Finalmente, na terceira parte desta coletânea, nos dedicamos às “modalidades” geradas pelo encontro entre os regimes expressivos da comunicabilidade e os horizontes estéticos de seu devido acolhimento, em diversas esferas da experiência cultural contemporânea: aqui emergem os problemas que coligam a experiência estética a determinadas matrizes do cotidiano, dos costumes sociais e dos esquemas cognitivos que disparam os processos de sensibilização dos produtos e processos da cultura contem-porânea. No primeiro dos artigos desta última sessão, “Mal Entendidos”, Eduardo de Jesus avalia os enlaces entre a arte contemporânea e o coti-diano, a partir do exame dos trabalhos da artista plástica mineira Rivane Neuenschwander: nesse contexto, ele avalia as modalidades nas quais a arte contemporânea se endereça aos aspectos aparentemente insignificantes da vida ordinária, identificando ali os temas de deslocamento característico que tais obras fazem sobre o cotidiano – aspecto este que igualmente tem atravessado as reflexões do GT, no transcurso de sua história.

Já em “Signo, Medialidade e Sobrevivência”, os autores Ícaro Vidal Junior e Fernanda Bruno estabelecem uma plataforma de observação sobre o papel das novas tecnologias de visualização (em especial aquelas dedicadas ao controle e vigilância), no sentido em que sedimentam um conjunto de gestos que se estruturam como parte das operações de inte-ração com dispositivos comunicacionais: os autores avaliam o fenômeno não apenas no âmbito de sua importância como acumulação cultural do controle disciplinar sobre corpos, mas especialmente como elemento que

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orienta certos segmentos da arte contemporânea. Num sentido distinto do texto anterior (mas, de algum modo, complementar), os autores estatuem as modalidades mediáticas como conferindo parâmetros do gesto e do comportamento, em face dessa ecologia mediática contemporânea.

Já nos últimos textos da coletânea, encontram-se reflexões que situam nas modalidades sonoras e audiovisuais um centro de interesses sobre os enlaces da comunicação e da experiência estética: em “O Giro Lúdico na Experiência Estética Audiovisual e Musical”, Laan Mendes de Barros inter-roga-se sobre os aspectos de desinteresse próprios à dinâmica de “jogo livre” que tipificam a experiência do cinema e da música, no contexto mais freqüente da reflexão sobre a recepção dessas ordens expressivas – com foco nos universos mediáticos da cultura contemporânea; centrando-se nos aspectos mais associados aos suportes mediáticos e aos processos de sua convergência, o autor ainda assim procura valorizar nesse âmbito as variáveis lúdicas de sua estruturação como fatores preferências de uma orientação genuinamente estética de sua manifestação na cultura de nossos dias.

Por fim, com o texto “Em Busca do Som Qualquer”, define-se a musica experimental como espaço de reflexões acerca daquilo que, em certa medida, extrapola os limites da comunicação como estrita mediação, abordando o objeto dessa experiência como tendo validade para além de uma tal função restritiva de sua funcionalidade. Em linha com um pensa-mento freqüente acerca da unidade estética dos objetos de uma experi-ência de comunicação (como aquela que separa o fenômeno sensível de suas estritas funcionalidades de significação), Mauricio Lissovsky e Maria Fantinato Siqueira deslindam esse caráter da autonomia fenomênica de uma estesia musical, no plano de uma atenção sensível à matéria sonora e instrumental da música.

Em suma, ao apresentarmos ao público da área de estudos em Comu-nicação esta coletânea de textos, visamos conferir ao leitor uma espécie de retrato momentâneo de um importante segmento da reflexão continuada acerca dos processos e fenômenos da comunicação, na precisa medida em que envolvam não apenas uma concepção mais dirigida pelo acento sensorial e afetivo das respostas a tais universos de sentido, assim como igualmente ampliar os horizontes de uma redefinição do próprio termo que confere identidade a nossa área, aquele da comunicação, no contexto

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cultural da modernidade e da contemporaneidade. Esperamos que seja uma leitura proveitosa e enriquecedora.

Leme, Rio de Janeiro, abril de 2019.

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Parte 1: SedimentosConceituais

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Capítulo 1

Elementos para a Construção de uma Comunicologia: de como melhor compreender a comunicação considerando-a como um evento estético1

Ciro Marcondes Filho

1. De uma arte que dispensa seus fruidoresNa obra O que é filosofia?, Gilles Deleuze e Félix Guattari sugerem que, em

filosofia, a qualidade dos conceitos está em transbordar as opiniões correntes, enquanto que na produção estética, os afectos transbordam as afecções e as percepções comuns (DELEUZE; GUATTARI, 1991, p. 87). Diferentemente da percepção, no percepto algo se autonomiza, se imortaliza. Perceptos trans-cendem as percepções, tornam-se independentes do estado daqueles que os experimentam. Da mesma forma, os afectos, que deixam de ser sentimentos ou afecções para transbordar os agentes (idem, p. 212).

1 Trabalho originalmente apresentado ao Grupo de Trabalho em “Comunicação e Experiência Estética” do XXVI Encontro Anual da COMPóS, na Faculdade Cásper Líbero, São Paulo - SP, em 2017.

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Ora, temos aqui uma proposição singular dentro do campo da filosofia quando os autores lançam a hipótese de que as sensações, os perceptos e os afectos são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido [idem, ibidem]. Não se trata de algo como os data de Whitehead, que ao descrever as entidades atuais diz que após sua realização, elas morrem e se tornam “dados” para outras entidades atuais (WHITEHEAD, 1929/1978). Eu, minha obra, minha atuação no mundo, uma vez morto, transformo--me nesses dados que outros se utilizam para realizar sua concrescência e assim por diante.

Para os autores franceses, perceptos e afectos existem na ausência do homem. A arte seria “um ser de sensação e nada mais, existindo em si” (DELEUZE; GUATTARI, 1991, p. 212). O homem, dizem eles, não passa de um composto de perceptos e afectos. Tal acepção vai na contracorrente de outros teóricos da estética, que falam de um “encontro feliz” entre um ser percipiente, fruidor, voltado ao objeto artístico, e a obra em si, que ele “realiza”.

É o caso, por exemplo, de Martin Buber, para quem:

uma forma defronta-se com o homem e anseia tornar-se obra por meio dele. Ela não é um produto de seu espírito, mas uma aparição que se apresenta a ele, exigindo-lhe um poder eficaz. Trata-se de um ato essencial do homem: se ele a realiza, proferindo de todo o seu ser a palavra-princípio Eu-Tu à forma que lhe aparece, aí então brota a força eficaz e a obra surge (BUBER, 1923/2004, p. 58).

Ora, a afirmação de Deleuze e Guattari supõe uma magia intrínseca à obra de arte que a torna fetiche ao ser humano, algo como a aura, que, para Walter Benjamin, é “o aparecimento único de algo longínquo, por mais próximo que ele esteja” (BENJAMIN, 1936/1985, p. 170), e que, por isso, evidentemente, afasta as pessoas, como na adoração religiosa. Essa mística, que Marx denuncia no fetichismo da mercadoria, seria mera ilusão, a sensação de que as coisas, por si mesmas, têm esse poder de encantar, independentemente do esquema ou do contexto acolhedor ou não de seu fruidor. Tal afirmação inviabiliza até mesmo o conceito de comunicação, visto que acredita que um mero “emissor” já seja comuni-cação, funcionando independentemente de haver ou não quem realize a cadeia comunicacional.

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23ELEMENTOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA COMUNICOLOGIA

De fato, o produto estético, cultural ou artístico, quando dotado de qualidades técnicas suficientes e de força expressiva incomum (ou, como falam Deleuze e Guattari: dotado de “inverossimilhança geométrica, imperfeição física, anomalia orgânica”), ganha vida própria, torna-se “um ser” ou um dado, na terminologia de Whitehead, que passa a interferir na vida dos outros, mas, veja-se bem, na medida em que esses outros entrem em relação com ele, se apropriem – possam ou queiram se apropriar – dele. Nesse caso precisamos ser husserlianos: não existe a coisa em si, qualquer coisa só existe enquanto percebida (intencionalidade).

Não obstante, Gilles Deleuze e Félix Guattari, partindo de Espinosa, refutam Husserl nessa questão. Se Husserl dizia que, pela intencionali-dade, a consciência dirige-se à coisa e introduz significação no mundo, Deleuze diz, ao estilo de Espinosa, que a coisa não se dá no interior do indivíduo, é desdobramento de algo externo, do Ser-uno, quer dizer, do universo que nos habita. Não é a consciência que se dirige à coisa mas este algo externo, este Ser-uno, que se desdobra no indivíduo e sobre ele (WAHL, 1998, p. 133).

Ora, quando Husserl fala que a coisa só existe se percebida, isso não implica, a nosso ver, a refutação da intencionalidade. O que a refuta é dizer que a consciência introduz significação no mundo, que seria a segunda parte da lógica, um derivativo husserliano de uma afirmação original - em verdade, de Berkeley - de que se nós não nos voltarmos à coisa, ela, por si, não será nada. Trata-se do perceber, nada foi dito ainda sobre o dar significação. Uma substância material, diz o bispo anglicano, jamais pode ser conhecida em si mesma; a única coisa a que temos acesso são as quali-dades que se mostram no processo perceptivo. Só existe, de fato, o feixe de sensações: esse est percipi. E isso vale principalmente para a arte, mas não só para ela, é claro. A parte criticável em Husserl é o “dotar sentido”, que é construído, evidentemente, na trama do mundo. Ora, se a coisa não se dá no interior do indivíduo, sendo desdobramento externo, a correção de Merleau-Ponty ao colocar a questão da carne do mundo dá conta plena-mente disso.

Diz Merleau-Ponty, que é pela carne do mundo que se pode compre-ender o corpo próprio (DUPOND, 2008, p. 19), que há algo como um “envolvimento recíproco”, um ineinander, entre percipiente e perce-bido, não tendo nenhum dos dois a primazia. A tarefa do pensamento,

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continua, não seria, então, a de hierarquizar as ordens do Ser, ou derivar e deduzir uns dos outros, mas de pensá-los “uns nos outros”, pensar um tecido conjuntivo que os une, o entremundo (idem, p. 107-108). Esse algo externo, Uno-todo de Deleuze é que parece vir, como deus ex machina, a se desdobrar no indivíduo e sobre ele. Avant la lettre, Merleau-Ponty estaria criticando Deleuze, ao dizer que a filosofia não pode ser formal, não pode chegar ao Ser sem passar pelos seres, pois a prioridade é do mundo percebido sobre as essências.

Numa retomada posterior dessa questão, Félix Guattari irá dizer, em seu Caosmose, como Mikhail Bakhtin “descreve uma transferência de subjetivação que se opera entre o autor e o contemplador de uma obra – o olhador, no sentido de Marcel Duchamp. Nesse movimento, para ele, o ‘consumidor’ se torna, de algum modo, cocriador” (GUATTARI, 1992, p. 25). E mesmo Deleuze já tinha falado algo diferente em seu Cinema II: Imagem-Tempo:

Eisenstein sempre analisa os quadros de Da Vinci e El Greco como se fossem imagens cinematográficas (como Elie Faure faz com Tin-toreto). Mas as imagens pictóricas não são por isso menos imóveis em si, tanto assim que é o espírito que deve “fazer” o movimento (DELEUZE, 1985, p. 189).

Com efeito, retornamos a Buber. A obra não se faz sozinha, sem a presença daquele que a realiza; sem ele ela não é nada, não existe. Sequer como entidade mística, nenhum objeto “fica em pé sozinho”, a não ser do ponto de vista físico; jamais metafísico, de sua intervenção no mundo.

2. Sobre o vazio da arteSeguindo em frente, Deleuze e Guattari atribuem outros componentes

para a plenitude de uma obra estética: o ar, o vazio, o neutro, conceitos já vistos em Bachelard, Barthes, Bergson, Derrida, entre outros. Gaston Bachelard, por exemplo, dizia que o princípio do silêncio na poesia é um pensamento escondido, um pensamento secreto. A ausência de imagens na literatura e na poesia sugere que o leitor deva dar um tempo, uma pausa, um break em sua leitura para poder ver as imagens repercutirem. Necessitamos da parada. Ela é fundamental no processo da comunicação.

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Para ele, as mais belas imagens literárias não são compreendidas de uma única vez, mas se revelam pouco a pouco num verdadeiro “devir da imagi-nação” (BACHELARD, 1943, p. 8).

Roland Barthes nos sugere que ergamos a cabeça, fechemos os olhos e deixemos o detalhe remontar sozinho à consciência afetiva, faça com que a imagem, a cena, o conjunto visual atue por si mesmo, opere em você o impacto (BARTHES, 1980/1984, p. 39; 1973/2013, p. 32).

Em Bergson, a possibilidade do saber é fundada antes no vazio e na desordem, quer dizer, no Nada enquanto captura daquilo que “na obscuri-dade se esconde atrás dos elementos da curva real” (BERGSON, 1934/1999, p. 148-149). Ela precisa desse vácuo, desse nada. Por fim, em Derrida:

A filosofia e a cultura quase sempre instauraram a ausência no ser humano, que deveria ser superada na perspectiva do tempo linear - tempo do cristianismo, do capitalismo, do hegelianismo. Descons-truindo a metafísica da ausência, Derrida articula, ao contrário, o vazio que nunca deve ser preenchido. Preencher o vazio significa-ria o estabelecimento da nova identidade (MILOVIC, 2006, p.3).

3. A parte não humana da subjetividadeO que distingue o percepto da percepção e o afecto da afecção é algo

mais do que uma mudança de estado, é o que eles chamam de devir não humano do homem. Quando se faz os personagens entrarem em devires--animais ou devires-vegetais, tornando-se pássaros ou árvores não significa exatamente transformar-se no outro mas algo passar de um ao outro (DELEUZE; GUATTARI, 1991, p. 223-224), como no exemplo de Merleau-Ponty que nos conta o caso da vassoura e do esquizofrênico, que, ao ver uma vassoura perto da janela, ele sente que ela se aproxima dele e entra na sua cabeça (DUPOND, 2010, p. 41). Algo da vassoura passa nele, é o devir-vassoura do esquizofrênico.

Cria-se um “nó de associações”. É também o caso do sonho freudiano “O homem dos lobos”, onde há uma borboleta com listras amarelas, asso-ciada a peras com listras amarelas, cujo nome, em russo, lembra Gruscha, nome de uma jovem empregada (Idem, p. 20). Para Merleau-Ponty, aí não há três lembranças associadas (borboleta, pera, empregada) mas

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“um jogo” da borboleta no campo colorido, um ser da borboleta e um ser da pera que se comunicam com o ser linguístico “Gruscha”: são três seres “unidos por pertencimento a uma mesma dimensão ‘elementar’” (MERLEAU-PONTY, VI 294). Deleuze e Guattari, falando do devir como campo comum e da comunicação por contágio entre a vespa e a orquídea, poderiam reconhecer, ao contrário, essa sutil aproximação com o conceito merleau-pontyano. Mas não o fazem.

Em outra passagem de Caosmose, Guattari tenta melhor traduzir essa expressão do não humano no homem, comentando como Deleuze e Foucault foram condenados por darem relevo a uma parte não humana da subjetividade, “como se assumissem posições anti-humanistas!”

A questão não é essa mas a da apreensão da existência de máquinas de subjetivação que não trabalham apenas no seio de “faculdades da alma”, de relações interpessoais ou nos complexos intrafami-liares. A subjetividade não é fabricada apenas através de fases psi-cogenéticas da psicanálise ou dos “matemas do inconsciente”, mas também nas grandes máquinas sociais, massamediáticas, lingüís-ticas, que não podem ser qualificadas de humanas (GUATTARI, 1992, p. 20).

Pois bem, o não humano aqui, então, mostra sua cara. Há “máquinas de subjetivação” em toda parte, desde os ambientes familiares e domés-ticos até moduladores sociais maiores, possivelmente as instituições, os complexos tecnológicos, as cidades, e também, como ele diz, os meios de comunicação de massa. Esses dispositivos que nos constituem, que agem por nós, falam por nós, quando vistos de forma unilateral (considere--se aqui, contudo, a ressalva de Guattari com o “apenas”, citado acima), continuam a realimentar o modo estruturalista de pensar, pelo qual o mundo torna-se objeto de forças cegas, que sem dúvida existem, mas que, por outro lado, questionam as ações consequentes de agentes humanos capazes de detonar movimentos, mudanças, inversões de rotas. Isso, natu-ralmente, sem contar a total ausência do elemento ético nessas pondera-ções, a saber, o fato de ninguém ser responsável, tanto pelo bem quanto pelo mal daquilo que provocam.

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4. Lógica das sensaçõesNuma obra estética, há dois tipos diferentes de violência. Uma ancorada

no sensacional, outra, na sensação, diz Gilles Deleuze, em Francis Bacon. Lógica da sensação. O sensacional seria a figuração primária daquilo que provoca a segunda, uma sensação violenta.

Bacon quis pintar o grito, mais do que o horror (...), a sensação mais do que o sensacional. A violência da sensação tem a ver com essa ação direta sobre o sistema nervoso, com a passagem por vá-rios níveis, ou domínios por onde atravessa. Assim é a Figura. Ela não se confunde, “não deve nada” ao objeto figurado (DELEUZE, 2002/2007, p. 46).

Deleuze classifica a sensação como o contrário do lugar comum, do clichê, do sensacional. Enquanto aquela opera em vários níveis, estes permanecem num mesmo. Por exemplo, a pintura figurativa ou a pintura abstrata. Elas passariam pelo cérebro, não atingiriam o sistema nervoso, não produziriam a Figura, mas, ao contrário, permaneceriam num mesmo nível. As transformações que elas operam seriam da forma, não atingindo as deformações do corpo (idem, p. 43-44). Transitar em diferentes níveis seria ver cada quadro, cada Figura como uma sequência movente ou como uma série e não apenas como um dos elementos dessa série. A sensação, para ele, está em diferentes níveis, diferentes ordens, diferentes domínios (Idem, p. 44).

Assim, caberia ao pintor fazer ver uma espécie de “unidade original dos sentidos” e fazer aparecer visualmente uma Figura multissensível. Mas essa operação só é possível se a sensação desse ou daquele domínio (aqui, a sensação visual) for diretamente capturada por uma potência vital que transborda todos os domínios e os atravessa. Essa potência é o Ritmo, mais profundo que a visão, que a audição, etc. (…) A relação do ritmo com a sensação coloca em cada sensação os níveis ou os domínios pelos quais ela passa (DELEUZE, 1981, p. 49-50).

O ritmo talvez constitua aquilo que Merleau-Ponty estaria chamando de “elemento”, vínculo secreto entre as coisas, matéria comum do corpo vidente e do mundo visível, como no exemplo da narrativa Homem dos Lobos. Talvez acrescida, agora, dessa energia de transformação: quando a

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sensação atinge o corpo através do organismo, adquire um caráter exces-sivo e espasmódico, rompe os limites da atividade orgânica. Em plena carne, ela age diretamente sobre a onda nervosa ou a emoção vital. É a “violência vinda do exterior que nos força a pensar” (PAMART, 2012, p. 165).

Conhecemos a emoção vital desde Bergson. Emoção, para ele, é a soma de “moção” (movimento) e o prefixo “e-“, do ex- latino, que sinaliza algo “para fora”, um movimento de nos tira de nós mesmos. A emoção verda-deira, diz F. C. Aeymaex, não é uma afecção interior ou a percepção de um objeto exterior mas o acontecimento de uma transformação de nós mesmos e, assim, a emergência de algo de novo, de uma criação (AYEMAEX, 2006, p. 8). O termo é algo totalmente distinto da forma como a filosofia e a psicologia tradicional o veem (como algo passivo). A emoção criadora, que Bergson cita em Duas fontes da moral e da religião, de 1932, não é determinada por uma representação, da qual ela dá sequência e se manterá distante; ao contrário, em relação aos estados seguintes, propõe Aeymaex, ela é causa, não resultado; ela se confunde com a própria comunicação: é um movimento de transformação da alma.

5. A teoria pós-semiótica de Bárbara KennedyEm seu livro Deleuze e o cinema. A estética da sensação, Barbara

Kennedy propõe uma teoria pós-semiótica e pós-linguística para o estudo das obras cinematográficas. Para ela, filme é processo, é experiência, não é representação:

Qualquer entendimento dos desejos, dos prazeres ou das sensações precisa ser teorizado dentro de um entendimento sobre como o filme opera ontologicamente, como filme, em vez de puramente como um modo de representação (KENNEDY, 2000, p. 10).

Cinema é “captura material”, diz ela, experiência sinestésica da sensação, em que os efeitos, as tonalidades, as intensidades se conectam num nível efetivo, não podendo ser lidos pela ideologia ou pela signi-ficação (idem, p. 5 e 28). Rejeitando o signo semiótico, que se mantém no plano da linguagem, a “máquina abstrata” não representa nada, ela simplesmente constrói a “realidade” de um modo diferente (idem, p. 68).

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Dessa forma, não se trata de saber o que o filme quer dizer mas de ver como o filme efetua conexões “através de uma arena diferente, como a mimética, a pática, a gestual, a cognitiva, a afetiva” (Idem, p. 69). Como diz Guattari, os agenciamentos “não os conhecemos através de representa-ções mas por contaminação afetiva. Eles se põem a existir em você, apesar de você” (GUATTARI, 1992, p. 117). Estamos cada vez mais nos aproxi-mando da comunicação.

Nesse sentido, Barbara Kennedy vincula-se às noções propostas por Steven Shaviro em seu The Cinematic Body, de 1993, segundo o qual, as questões afetivas do cinema estão em primeiro plano, em contraste flagrante com as preocupações dos críticos tradicionais, centradas na forma, no significado e na ideologia.

O cinema é um medium vívido, e é importante falar sobre como ele provoca reações corpóreas de desejo e medo, prazer e nojo, fas-cínio e vergonha. (…) Também argumento que tais experiências afetivas envolvem direta e urgentemente uma política. O poder tra-balha nas profundezas e nas superfícies do corpo, e não somente no mundo descorporificado das “representações” ou do “discurso”. É antes de tudo na carne, muito longe de qualquer nível de suposta reflexão ideológica, que a política se torna pessoal, e o pessoal se torna político (SHAVIRO, 1993/2015).

A teoria pós-semiótica opera com o corpo, um “corpo tecnologici-zado” ou agregado, corpo molecular no processo da experiência cinemá-tica (KENNEDY, 2000, p. 26), corpo que se move em conexão com outros corpos (idem, p. 79). A partir disso, ela define o que seria uma estética da sensação:

Uma “estética da sensação” descreve conexões, energias, conexões moleculares da consciência e do sistema nervoso [nervousness] dentro da mente/corpo/cérebro daqueles que experienciam o filme como um encontro material. Nesse sentido, texto ou filme, pode-se argumentar, são também corpos (KENNEDY, 2000, p. 53), mais ainda, são um acontecimento que atravessa os corpos (idem, p. 26).

Barbara Kennedy é defensora de uma bioestética (ou neoestética). Para ela, agir sobre esse plano é mais efetivo do que atuar sobre a política, na

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forma como a conhecemos convencionalmente. Usando o vocabulário guattariano, Kennedy considera a neoestética uma “armação micropo-lítica que pode fornecer possibilidades criativas para as transformações da consciência, externamente às estruturas políticas” (idem, p. 38). Isso ocorreria ao se utilizar o conceito de “devir-mulher”, para ela, a chave de todos os devires em Deleuze e Guattari: “para homens e para mulheres, é a desestabilização da identidade molar e, como tal, é um marcador para um tipo de transformação mais geral do processo, por meio dos processos do molecular” (idem, p. 92).

6. Pesquisando a comunicação: o que nos afeta na obra?Uma obra nos afeta por meio das intensidades ou de suas “singulari-

dades”, diz Kennedy. Singularidades, diz ela, são pontos que produzem efeitos de transição, são as formas, por exemplo, como a pintura nos atinge individualmente (idem, p. 89). Citando Vivian Sobchok, ela diz que Cézanne ou Duchamp nos fazem sentir, mas de forma diferente. Sua capa-cidade de nos atingir não depende de suas habilidades em captar “ordens extensivas diferentes da realidade” [idem], mas de intensidades que mexem com nossa sensibilidade [in The Address of the Eye]. Ela se refere aqui às modulações estéticas, de ritmo, movimento, energia, duração, por meio das quais atinge-se o êxtase, muito além do desejo (KENNEDY, 2000, p. 102).

Mas, afinal, por que – ou como - o filme nos agrada? É a pergunta que se coloca Félix Guattari e que nós também fazemos continuamente e que define uma pesquisa da comunicação:

Que processos se desenrolam em uma consciência com o choque do inusitado? Como se operam as modificações de um modo de pensamento, de uma aptidão para apreender o mundo circundante em plena mutação? Como mudar as representações desse mundo exterior, ele mesmo em processo de mudança? (GUATTARI, 1992, p. 22).

Barbara Kennedy já deu sua explicação, propondo uma leitura para além das teorias do visual, da psicanálise e da subjetividade de gênero, voltada àquilo que Deleuze havia chamado de “espaços intersticiais”. Ela

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sugere processos mas se mantém no plano da constatação (ou da propo-sição). Ela não esclarece a pergunta de Guattari, sobre as modificações no pensamento ou da aptidão para apreender o mundo circundante. Tampouco dá qualquer pista sobre o “como mudar” as representações desse mundo.

Como o leitor irá se lembrar, nós iniciamos este texto relatando que conceitos são usados em filosofia para transbordar as opiniões correntes, na mesma medida que os afectos, nas artes, transbordam as afecções e as percepções comuns. Em ambos os casos há um descolamento do que se chama “senso comum” ou opinião trivial, em busca de formatos em que a interferência da subjetividade vai sendo progressivamente excluída. Deleuze e Guattari nos dois casos estão em busca de um discurso em que a própria coisa fale, ou, melhor dizendo, em que se criem condições para o afloramento da própria coisa, independentemente de nós.

Se nossa tese é a de que a comunicação revela-se de forma mais contun-dente no evento estético, se é este que tem mais condições de se apre-sentar diante de nós como um estranho, uma alteridade provocativa, um desafiador pleno capaz de desestabilizar nossas certezas, de injetar ideias novas em nosso universo de pensamento, de propor outros olhares para o cenário à nossa frente, ou, dito de maneira inversa, se o acontecimento estético é a forma mais perceptível para se ilustrar o fato comunicacional, uma pesquisa no campo da comunicação deve jogar, ao mesmo tempo, com a necessidade de transcender as opiniões e as afecções e percepções.

O campo da comunicação deve fundir, desta maneira, teoria do acon-tecimento estético e filosofia, considerando dois momentos da pesquisa comunicacional: a apreensão ou vivência do acontecimento e sua descrição no relato ou na exposição discursiva. No primeiro caso, trata-se de estar presente ou de acompanhar sincronicamente um determinado objeto de estudo, seja ele um acontecimento de rua, uma peça teatral, a exibição de um documentário, a visita a uma instalação artística, a um concerto sinfônico, a leitura de uma obra literária, etc., e avaliar em que medida essa mesma obra pôde “conduzir a cena” e levar a que os participantes entrassem numa espécie de transe ou, pelo menos, forte envolvimento, a ponto de saírem incomodados, alterados, de alguma forma diferentes do que no momento anterior a essa vivência. Não basta, naturalmente, viver o impacto, a emoção circundante, pois, isso, mesmo espetáculos esportivos,

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exibições pirotécnicas, festas possibilitam. Não basta a sinergia envol-vente, de que fala Georges Bataille (1943, p. 102). É preciso algo mais. Se não houver produção de sentido, permanece-se no plano lúdico (e isso, inclusive com as obras estéticas ditas “políticas”). Se se puder definir a arte – ou a experiência estética – como um processo de nos arrancar de nossa indiferença, de nossa passividade, em suma, da situação de imobi-lismo e letargia que a vida cotidiana nos impõe, então que esse movimento também instigue um mal-estar positivo, um questionamento de nossa própria percepção do mundo.

Isso tudo já é bastante conhecido. Contudo, para aquele que pretende avançar na comunicologia e estudar o fenômeno comunicacional não basta vivenciar um fato, é preciso reportá-lo. O relato vai então dar conta do outro lado, do outro momento da pesquisa, que é a parte “filosófica”. Esse relato do acontecimento joga com múltiplos elementos narrativos: a ficção, a reportagem, os depoimentos, em suma, com vários recursos estilísticos que irão buscar realizar aquilo que Deleuze e Guattari falam do conceito: transcender as meras opiniões, dos dados físicos, e chegar ao campo “metafísico” do relato.

Um conceito, dizem os autores, é uma coisa viva ou um ser vivo, um “dispositivo dinâmico”; ele é uma “forma junta” que une posturas, movi-mentos, tonalidades, de onde emanam intensidades, formas que o fazem mover-se. Ele é a seiva que alimenta o tronco e faz “surgir o aconteci-mento”. Ao jogo de atores que fazem parte da cena, aplicam-se as noções de “devir” e de plano de imanência: devir como algo da coisa que se trans-fere a mim e algo de mim passa à coisa, sem que um transforme-se no outro. O contexto ou pano de fundo onde isso tudo se realiza é o plano de imanência; lá se fundem corpos, movimentos, espaços físicos e um espírito que povoa toda a cena. Tudo nasce e morre nessa mesma cena. Evidentemente existe um contexto, uma história, uma cultura que forma o background sociológico do que está acontecendo mas isso não tira seu caráter de imanência: o que ocorre ali não remete a nenhum plano trans-cendental, o acontecimento se dá ali e só ali. Ali ele nasce, ali ele morre. Se houver outro, amanhã, exatamente igual, será exatamente diferente, pois a imanência não tem repetição. Não é possível a iteração em pesquisas comunicacionais.

O conceito deve capturar esse movimento, o processo de devir (que

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nós chamamos de “comunicação”), o contato dos componentes em seu interagir recíproco, uns captando coisas, fatos, emoções, dos outros e vibrando com elas. Como dizem os autores: mesmo que não dure mais do que uma matéria em fusão e dê lugar rapidamente à divisão, a vitória de uma revolução se dá nas ligações que cria. Ligações singulares, momentâ-neas, atreladas a esse momento.

Deleuze e Guattari criticam Husserl por este ficar nas meras opiniões, não transcendendo para outro plano, “metafísico”, “da máquina que produz as percepções e afecções”. Eles se referem ao plano de imanência, que já não tem a ver com nossas opiniões mas com a maneira como são engendradas em nós essas percepções. De certa forma, o conceito busca capturar aquilo que “sobrevoa” o Acontecimento, o “neutro” ou verbo no infinitivo em relação a todas das descrições de uma batalha, por exemplo. Trata-se de um evento situado no campo transcendental impessoal e pré--individual, espécie de “verdade eterna” distinta das diferentes ocorrên-cias singulares. Em outra parte, eles chamam a isso de “devir não humano do homem”.

Na nossa relação com o objeto estético, dizem os autores, “algo se auto-nomiza”. E esse algo seriam os afectos e os perceptos. Não dá para supor aqui que eles imaginem que as obras existam por si, independente dos seres que as apreciam ou que sofrem seu impacto. Podemos tentar entender essa afirmação como o fato de que o afecto e o percepto são ocorrências que se dão no jogo entre obra e fruidor, espécie de instância terceira, surgida no momento da apreciação. O que se autonomiza é o acontecimento ali, momentâneo, único e irrepetível. Trata-se de uma mudança de atributo advinda da ação de um incorpóreo produzido no meu encontro com o objeto.

Proust engendrou o conceito de tempo em estado puro no último volume de sua obra Em busca do tempo perdido. Proust não é filósofo nem físico, é apenas um escritor. Contudo, sua obra é considerada um clás-sico da literatura universal. Para Deleuze, ele transcende a mera exposição de opiniões arrancando o percepto de todas as coisas que vê e sente (das percepções e das afecções). Mais do que isso, seu relato é como o deu um observador do mundo, mas não o observador husserliano com suas proto--opiniões fundadoras do mundo, mas como alguém que mal aparece na cena, é quase um invisível, mas extrai, das figuras suas projeções metafi-

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sicas, no caso, a temporalidade, fato esse que torna sua obra – assim como a de Balzac – um documento de época, um testemunho “não humano no homem”, um discurso que possui tanta validade quanto os relatos ditos “objetivos” da historiografia, da sociologia ou da antropologia.

A ciência da comunicação constrói sua seriedade a partir disso, de seu instrumental, de seu modo de observação e da validade de sua exposição destacando o que de “extra-humano” cabe num relato sobre o Aconte-cimento comunicacional. Os atuais pensadores da comunicação em sua maioria ainda a veem segundo a formulação clássica e tradicional da primeira cibernética, um discurso metafísico da comunicação, que a vê simploriamente como “transmissão e recepção de mensagens”; negam que mesmo a corrente cibernética abandonou esse esquema e questiona a própria possibilidade da comunicação. Ela não é transmissão de nada, porque nada do que sentimos e sofremos pode ser transferido a ninguém; ela é puro sentir, aisthesis, um sentir que nos muda e que muda o mundo mas que exige instrumentos e modos de captura absolutamente próprios e precisos. Essa é a ciência que precisa florescer.

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Capítulo 2

O que Ainda Podemos Esperar de Kant?1 Thales Vilela Lelo

1. Introdução Nas últimas décadas o pensamento estético contemporâneo vem revi-

sitando a Crítica da Faculdade do Juízo, originalmente publicada por Immanuel Kant em 1790, com inquietante recorrência. Este reencontro tardio indica, em um primeiro sentido, um reconhecimento do pionei-rismo do filósofo prussiano em pavimentar o terreno para uma perspec-tiva menos orientada à discriminação formal dos componentes intrin-sicamente estéticos presentes em objetos artísticos, desvelando uma abordagem focada na apreensão da dimensão experiencial da estesia. Para Yves Michaud (2009), a título de exemplo, a contribuição de Kant teria incidido na própria demarcação entre a estética e a filosofia da arte; já Wolfgang Iser (2004), concedendo condecorações similares, enfatiza que o ressurgimento da discussão estética (esvanecida no início do século XX devido à profusão dispersa de teorias da arte) seria essencialmente deri-

1 Artigo originalmente apresentado ao Grupo de Trabalho em “Comunicação e Experiência Estética”, do XXVII Encontro Nacional da COMPóS, realizado na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, em Belo Horizonte, MG, 2018.

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vado da caracterização kantiana do juízo estético; e, em tom similar, ao recensear a produção recente em estética do cotidiano, Dan Eugen-Ratiu (2012) também menciona a influência de Kant em trabalhos como os de Christopher Dowling (2010), preocupados em conceituar a manifestação de experiências estéticas para além do universo artístico. Este movimento também incide, atualmente, nos estudos que gravitam na órbita de uma estética da comunicação, a exemplo das incursões de Herman Parret (1993) e Monclar Valverde (2017), os quais destacam não só a inscrição relacional das experiências, bem como a oportunidade de encontros esté-ticos na fruição de imagens midiáticas.

Menos entusiásticos em sua rememoração a Kant são os diversos empreendimentos filosóficos que procuram acentuar certo anacronismo em seu arcabouço teórico e mesmo uma obsolescência no pensamento estético clássico (e, conseqüentemente, no kantismo), supostamente atado à dignificação do ajuizamento da beleza e à apreensão da estesia pelo filtro suprassensível. Não desconsiderando o fato de que a abordagem kantiana do belo exerceu notável influência na história do pensamento estético, como pondera Parret (2011), questiona-se a histórica normatização da beleza como categoria de referência na avaliação das qualidades afetivas despertas no encontro com um objeto ou fenômeno singular. Autores como Jean-François Lyotard (1993), Paul Valéry (1939), Thierry de Duve (1998), além do próprio Parret (2011), vêm problematizando esta suposta axiologia da fruição estética aportada em Kant, atribuindo a ela a respon-sabilidade por circunscrever a experiência singular eventualmente acio-nada diante de obras de arte ou da exuberância natural à universalidade do ajuizamento do belo. Não obstante, para estes filósofos o declínio de ênfase no juízo da beleza é marca definidora do século XX, seja no campo artístico seja no próprio pensamento estético, uma vez que a modernidade teria condenado a normatividade da beleza, considerada resquício de uma cultura burguesa de gosto social retrógado e de posição política conserva-dora (Parret, 2011).

Neste momento de intensa revisita à Kant, alguns trabalhos (LONTRADE, 2009; ANGELINI, 2017) já se dedicaram a cartografar um mapa destas reinterpretações da “Crítica da Faculdade do Juízo”, seja enfocando em textos que, inspirados por esta obra inaugural, discorrem sobre a experiência estética de um prisma relacional, seja elencando os

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críticos que ressaltam o ocaso do belo na arte contemporânea. Por esta razão, pretendo neste artigo enveredar por outro percurso, me detendo em duas propostas de releitura do juízo estético em Kant que estabelecem um diálogo estratégico com os escritos do filósofo prussiano, produ-zindo resultados diametralmente opostos sob o ímpeto de sustentar seus próprios eixos argumentativos. De um lado, encontra-se em filó-sofos como Jacques Rancière e Martin Seel o anseio em produzir uma exegese da “Crítica da Faculdade do Juízo” que os possibilite entrever uma potência política no caráter “desinteressado” da complacência estética. De outro, orbitam autores como Jean-Marie Schaeffer, que tratam, em radical discordância a Kant, a fruição típica à estesia como conduta “interessada”, realçando a suposta contiguidade entre os regimes cognitivos e estéticos mobilizados na experiência. Entretanto, perceber-se-á que há uma forte tendência em ambas estas correntes de acionar o texto do filósofo prus-siano à revelia de seus marcos explicativos, visando fundamentar refle-xões que não necessariamente convergem ou destoam dos argumentos de Kant, a despeito das intenções de seus autores. Muito embora a proposta deste trabalho não seja a de reclamar uma retomada ortodoxa da estética kantiana, pretende-se evidenciar como estas duas chaves de interpretação desta tradição de pensamento excedem, em muitos pontos, os limites de uma releitura engenhosa e profícua, produzindo contorcionismos filosó-ficos que destoam, integralmente, do horizonte reflexivo estabelecido em “Crítica da Faculdade do Juízo”.

A proposta levada a cabo neste texto corrobora com a acertada adver-tência que Michaud (2009) faz para que qualquer “nova” conceituação da experiência estética não seja louvada sem que antes sejam inquiridos seus pressupostos. Deste modo, dada a supracitada proliferação de trabalhos que se filiam explícita ou implicitamente à matriz kantiana neste momento de revalorização da estética, considera-se fundamental esmiuçar como o pensamento do filósofo prussiano é convocado seja nas teorizações em direção a uma política da estesia (Rancière, Seel) seja na perspectiva de uma racionalidade estética (Schaeffer, Greenberg). O contraste entre as conceituações extraídas diretamente do texto de Kant com tais releituras permitirá não só perceber os ganhos explicativos destes investimentos, mas também seus pontos passíveis de problematização.

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2. Uma política do “desinteresse” estéticoDe partida é importante pontuar que quando autores como Rancière

ou Seel recorrem à filosofia kantiana não há qualquer promessa explícita de superação desta matriz teórica. Seus esforços reflexivos se dirigem, sobremaneira, em delinear um modelo de eficácia estética que contorce a apreensão do juízo do gosto como complacência pura e desinteressada visando nela encontrar matéria para aventar transformações de escopo político nas formas de organização sensível do mundo. Feita esta ressalva, cabe então retomar a caracterização do ajuizamento estético nos escritos de Kant esmiuçando, na sequência, como é produzida sua “contra leitura” nas conceituações da estesia propostas por Rancière e Seel.

Para o filósofo prussiano (KANT, 1993), o juízo do gosto diz respeito ao sentimento produzido no sujeito pela representação de um objeto ao qual ele é indiferente com respeito aos conhecimentos que dele possam ser extraídos. Alvitrando uma oposição entre a complacência desinteres-sada desta faculdade do juízo e os ajuizamentos de ordem lógica, Kant proclama: “se a questão é se algo é belo, então não se quer saber se a nós ou a qualquer um importa ou sequer possa importar algo da existência da coisa, e sim como a ajuizamos na simples contemplação” (KANT, 1993, p. 49). Logo adiante, o filósofo ilustra sua tese com um exercício hipotético de reflexão: diante de um suntuoso palácio, alguém pode exercitar suas faculdades do entendimento e se furtar de emitir um juízo sobre a beleza formal do edifício, alegando desprezo por construções supérfluas que acentuam as desigualdades sociais ou ainda são desproporcionais à vista do fato de que uma habitação se basta pela comodidade que oferece. Mas no julgamento de beleza, todavia, “quer-se saber somente se essa simples representação do objeto em mim é acompanhada de complacência, por indiferente que sempre eu possa ser com respeito à existência do objeto dessa representação” (KANT, 1993, p. 50). Em outras palavras, as convic-ções morais do sujeito sobre o palácio devem ser postas de lado para que ele possa formular um juízo genuinamente estético sobre o edifício em questão, ligado unicamente aos sentimentos de (des)prazer que este desperta nele subjetivamente.

Em diversas passagens de sua obra, Rancière (2010, 2012, 2014) explora o que poderíamos entender como uma leitura pretensamente hetero-

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doxa desta conceituação clássica do juízo estético em Kant, extraindo da “indiferença” daquele que emite o juízo no que diz respeito às estruturas sociais uma potência política de desestabilização da ordem vigente. Muito embora o filósofo franco-argelino mais frequentemente recorra às “Cartas sobre a educação estética do homem” de Friedrich Schiller (1995) para desenvolver seu argumento sobre o caráter político e suspensivo da expe-riência estética, a ilustração de Kant sobre as condições para a contem-plação desinteressada do palácio também é revisitada como alegoria da feição transformadora intrínseca a um tipo de juízo que não está “subme-tido nem a lei do entendimento que impõe suas determinações concei-tuais à experiência sensível, nem a lei da sensação que impõe um objeto de desejo” (RANCIÈRE, 2012, p. 93)1. A estratégia argumentativa de Rancière o situa, ao mesmo tempo, tanto à distância da crítica sociológica que Pierre Bourdieu (2007) tece à a estética kantiana quando à crítica ética apresentada por Lyotard (1993). Importante recordar que, para o autor de “A Distinção”, a distância estética tematizada por Kant nada mais seria que uma “negação do social” que dissimularia uma radical separação entre os gostos próprios ao habitus popular e àqueles reservados à elite. Não obstante, para Bourdieu (2007), o juízo estético também seria privilégio de intelectuais pequeno-burgueses que acreditam serem capazes de se abstrair das determinações que distribuem a cada classe os gostos corres-pondentes à sua condição social. Já para o autor de “Lições sobre a analí-tica do sublime”, o ajuizamento desinteressado resume-se a uma ilusão filosófica orientada a traduzir a perda de qualquer forma de adequação entre as normas do belo e um público socialmente determinado de conhe-cedores de arte (LYOTARD, 1993).

Rancière (2014) parte das teses críticas de Bourdieu e Lyotard sobre a apreciação estética do palácio em Kant no intuito de atribuir valência positiva a esta possibilidade desvelada pelo juízo do gosto de autorizar que alguém possa observar um objeto sem considerar seus usos sociais ou significação. Ou seja, tais ajuizamentos não seriam nem formas de fruição encarnadas em habitus que traduzem um ethos de classe determinado (BOURDIEU, 2007), e muito menos modos de experimentação anco-rados às normas historicamente defasadas de contemplação da beleza em

1 Tradução livre feita do espanhol, assim como outros trechos em inglês e francês.

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um período de efervescência do sublime no universo artístico (LYOTARD, 1993). Rancière lê Kant partindo de um elemento exógeno à sua reflexão que julga não ter sido devidamente levado em consideração nas perspectivas de Bourdieu ou Lyotard, a saber, suas condições históricas de produção. Para o filósofo franco-argelino, ao insinuar que a experiência estética permitiria neutralizar as distinções sociais que conectam os olhos do trabalhador às suas mãos - alimentando a crença de que é possível a eles se dissociarem ainda que momentaneamente da condição que lhes foi imposta para ajuizar sobre a beleza assim como fazem os privilegiados que dispõem de tempo livre – Kant acenou para uma potência política na estesia passível de desdo-bramentos ulteriores. Mais uma vez na perspectiva de Rancière (2014), em um momento histórico em que mesmo a revolução operária ainda estava estruturada pela desconexão entre a contemplação e a atividade manual, propor que a condição para o juízo estético é “ignorar a quem efetivamente pertence o palácio, a vaidade dos nobres ou o suor das pessoas implicadas em sua construção” (RANCIÈRE, 2014, p. 30) possui uma radicalidade incontestável. Apreciar desinteressadamente a arquitetura sendo um traba-lhador destinado à maestria manual assume, segundo Rancière, a feição de uma atividade dissensual apta a subverter temporariamente as relações de poder que estruturam o tecido social.

É vital mencionar que a linha argumentativa adotada por Rancière em sua releitura às avessas da ilustração de Kant é nutrida, sobremaneira, por seu próprio edifício conceitual. Quando o filósofo franco-argelino conceitua o juízo estético do autor de “Crítica da Faculdade do Juízo” como um veículo de neutralização da partilha do sensível vigente (RANCIÈRE, 2014), ele não está mais aportado nos escritos kantianos, mas sim em uma sua própria obra. Cumpre rememorar que em texto precedente, Rancière (2005) clas-sificara a partilha do sensível como uma configuração de dados disponí-veis à percepção, que pode ser ora disjuntiva, ora conjuntiva. Por esta razão, quando Kant (1993) assevera que nos juízos lógicos há uma conformidade a fins que produz a hierarquização das faculdades, para Rancière (2014) isto corresponde a uma partilha do sensível conjuntiva (que obedece a “regra do jogo”). Diversamente, se a experiência estética é aquela que, para o filósofo prussiano, propicia um livre das faculdades de entendimento e imaginação, então, de acordo com Rancière (2014), poderíamos identificar nela um farol de neutralização da ordem vigente (que subordinara, por exemplo, o olhar

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do trabalhador aos objetivos práticos que regem suas mãos ou à satisfação de suas necessidades sensoriais mais imediatas).

Ou seja: na excursão à Kant empreendida por Rancière a eficácia para-doxal da experiência estética é a de enfraquecer uma relação estável entre o inteligível e o sensível, neutralizando os fins sociais de objetos ofere-cidos à contemplação de um olhar que se encontra igualmente separado de qualquer prolongamento sensório-motor definido. E esta eficácia também poderia ser constatada, séculos adiante do momento histórico em que viveu Kant, em nossas experiências contemporâneas com produções artísticas (da pintura ao cinema), contanto que no contato com elas se produza uma descontinuidade entre as formas sensíveis destas produções e as vias através das quais elas são “apropriadas por espectadores, leitores ou ouvintes” (RANCIÈRE, 2010, p. 85). Ademais, para além da livre fruição dos objetos artísticos, uma política da experiência estética espreitaria em cada situação em que as formas novas de circulação da palavra, de exposição do visível e de produção dos afetos determinam capacidades inéditas em rotura com a antiga configuração do possível.

Por mais que esta revisita heterodoxa da “Crítica da Faculdade do Juízo” ofertada por Rancière aparente ser substancialmente original (até por emaranhar quase indistintamente a filosofia kantiana com reflexões elabo-radas pelo próprio Rancière ao longo de sua trajetória), cumpre ressaltar que também Martin Seel se aventura por uma rota similar ao reler Kant em um de seus artigos recentes (SEEL, 2008). Nele, o filósofo alemão compre-ende a percepção estética à moda kantiana como um exercício de liberdade, haja vista que ao adentar em seus domínios os sujeitos se libertariam de constrangimentos práticos e cognitivos que conformam o mundo social, operando uma potencial dissonância em sua relação com ele e também consigo mesmos, despertando, em consequência, a consciência sensível de um sentido intensificado da existência humana. Por conseguinte, na letra de Seel,

a percepção estética (e a produção) representam uma variedade es-pecial de libertação porque tudo que advém dessa atividade deriva do fato de que, em primeira instância, nada deriva dela; porque nós voluntariamente nos entregamos às coisas que nos prendem, compe-lem, oprimem, cegam ou desestabilizam (2008, p. 21-22).

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O autor prossegue o argumento propondo que a liberdade estética avistada por Kant resguardaria, nesta visada, um potencial de contribuir para a autorrealização humana na medida em que os sujeitos afetados por ela teriam a oportunidade de se lançar em uma desinibida forma de auto experimentação. Referindo-se especificamente às experiências acionadas no encontro com obras de arte, Seel assevera (em via similar a elegida por Rancière): “É precisamente nas artes que nossas mais importantes crenças e atitudes – mesmo e especialmente aquelas que tomamos como as nossas melhores – são postas em questão” (SEEL, 2008, p. 17). Destarte, o ganho decisivo da consciência estética seria a capacidade de propiciar um momento para que os sujeitos reconfigurassem suas convicções éticas acerca do mundo em que habitam.

É intrigante notar que, seja em aspecto nacional ou internacional, há uma notável adesão a esta apreensão do conceito de experiência estética dotada de feições políticas, seja consciente ou não de sua associação ao pensamento kantiano. Sem levantar ressalvas à chave de acesso a Crítica da Faculdade do Juízo (1993) elegida por Rancière, autores como David Panagia (2009) e Joseph Tanke (2010) basicamente reiteram o argumento do filósofo franco-argelino em seu entendimento peculiar da experiência estética, assentindo com a ideia de que subjaz ao juízo do gosto em Kant uma qualidade política e um viés democrático radical. Situação similar é notada também em uma senda nacional das pesquisas em estética da comunicação, que acompanham irrestritamente a circunscrição do conceito promovida por esta via interpretativa no ímpeto de torna-la um operador da emancipação política via práticas comunicativas (GUIMA-RÃES, 2006; MARQUES, 2011; MARQUES; MARTINO, 2015; MORI-CEAU; MENDONÇA, 2016).

Sem desmerecer o esforço argumentativo de autores como Rancière e Seel, que vêm evocando Kant como recurso para deflagração de uma compreensão politizante do conceito de experiência estética (com os consequentes potenciais heurísticos advindos dela), parece-nos que há nestas investidas certo esgarçamento desproporcional das teses apresen-tadas em “Crítica da Faculdade do Juízo”, sobretudo no que diz respeito à recuperação do juízo do gosto como um livre jogo das faculdades (não legislado nem pelo entendimento ou pela sensação) calcado em uma complacência desinteressada. Ora, ao transformar a experiência estética

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em gatilho para a autorrealização e a emancipação humana, enrique-cimento do self e liberação dos modos de fruição de objetos artísticos, oportunidade de encontro sensível com a alteridade, além de veículo de subversão das hierarquias vigentes pela suspensão efêmera da ordem dominante, tal abordagem ambiciosa converte a noção em panaceia para problemáticas oriundas não mais da estética filosófica, mas sim do pensa-mento político convencional (a exemplo das abordagens deliberacionistas, que ainda apresentam dificuldades em conciliar um tratamento raciona-lista das decisões democráticas com as formas sensíveis e cotidianas de transformação do mundo).

Se não é o caso de advogar aqui em favor de uma rendição ortodoxa à “Critica da Faculdade do Juízo”, também não é possível ignorar certa falta de rigor nestas diversas revisitas tardias a Kant que se dedicam a extrair um potencial emancipatório do ajuizamento estético. Nas definições de expe-riência estética propostas por Rancière e Seel (e paulatinamente incor-poradas por outros pesquisadores), o “desinteresse” que fundamentaria a estesia conforme Kant, celebrado em sua virtude política, não estaria sendo exaltado somente na medida em que sinaliza um “interesse” oculto, a saber, a reconfiguração dissensual das formas sensíveis de estruturação social, de fruição dos objetos do mundo e de estabelecimento de vínculos intersubjetivos? Em certa medida, o acento privilegiado no caráter insur-gente da contemplação produz, como efeito indesejado, a desvalorização de uma dimensão crucial à fruição conforme Kant, a saber, o (des)prazer que a acompanha. Recordemos que, em “Crítica da Faculdade do Juízo”, o juízo do gosto é “a faculdade de ajuizamento de um objeto ou de um modo de representação mediante uma complacência ou descomplacência independente de todo interesse” (1993, p. 55). Por esta razão, ao reivin-dicar uma atenção unilateral para o potencial de suspensão dos modos habituais de percepção como componente indispensável ao juízo estético, autores como Rancière ou Seel traçam, inadvertidamente, uma axiologia da estesia que, ao invés de qualificar as experiências pela satisfação ou os afetos mobilizados, rende-se ao seu presumido efeito político subja-cente, legando ao segundo plano quaisquer experiências estéticas inaptas a motivar tais instantes de insurgência.

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3. Uma conduta estética “interessada” A caracterização do juízo estético em Kant (1993) como complacência

desinteressada capaz de neutralizar temporariamente as categorias expli-cativas que conduzem o sujeito em sua percepção comum é recuperada também por um feixe diverso de reflexões em torno da experiência estética, como já assinalado na introdução deste artigo. Todavia, distintamente das formulações em torno de uma “política da estética”, a argumentação desen-volvida por esta perspectiva não apreende a estesia como manancial de subversão democrática e autorrealização humana. Em caráter mais modesto, autores como Schaeffer e Greenberg formulam uma conceituação descritiva ou antropológica da racionalidade estética, que, por vezes, se opõe frontal-mente à filosofia kantiana ao discordar da inseparabilidade ontológica entre “desinteresse” e estesia.

A referência fundamental neste aspecto é a obra “Adieu a l’esthetique”, publicada por Schaeffer na última virada do século. A despedida anun-ciada já no título se refere explicitamente à doutrina estética que tem Kant e Baumgarten como seus principais expoentes. Com efeito, para Schaeffer (2000) as reflexões ulteriores à Kant trataram, com incômoda frequência, a relação estética ou como “resto” irracional de um conhecimento idealmente racional ou ainda como intuição ao mesmo tempo suprassensível e suprar-racional. Logo, é também Schaeffer que sustenta provocativamente que toda a filosofia moderna nada mais seria que uma filosofia do espírito herdeira do kantismo – condenada a reproduzir o dualismo ontológico entre mente e corpo e a inviabilizar o tratamento da atitude estética levando em conside-ração a inalienável dimensão biológica da humanidade.

A solução encontrada por Schaeffer (2000) para escapar deste desfila-deiro teórico o qual ele associa a Kant é proclamar, como tarefa da reflexão estética, a simples identificação e compreensão dos fatos estéticos, sem com isso sugerir a proposição de ideais de gosto ou critérios de juízo. Para o filó-sofo francês, não há equívoco no raciocínio do autor de “Crítica da Facul-dade do Juízo” quando este sugere que na atitude estética é a própria relação do sujeito com um objeto ou situação que lhe propicia satisfação, mas o argumento estaria permeado por inconsistências ao sugerir, do despren-dimento com respeito às questões de natureza pragmática ou ética que marcam a estesia, que uma de suas características é a de ser uma “conduta

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desinteressada”. Schaeffer procura advogar em favor de uma abordagem mais “natura-

lista” da experiência estética, que não a dissocia das atividades cognitivas que mobilizamos em outras esferas de nossa vida prática - pautadas por uma atitude interessada (que, portanto, desperta nossa atenção). Conceituando o comportamento estético desta forma, Schaeffer (1996, 2000) acredita se dissociar da tese que ele credita a Kant de que haveria um apartamento entre os registros perceptuais advindos do encontro estético e àqueles concer-nentes às outras instâncias da vida cotidiana (que mobilizam faculdades do juízo diversas). Para o autor, há uma faceta cognitiva intrínseca à experi-ência estética, dado que em sua abordagem tal experiência é uma conduta intencional a ser conceituada nos termos da psicologia humana.

Se a atitude estética em Schaeffer (2015) é um fato antropológico, seu cerne é um processo “atencional”, ou seja, a estesia seria materializada em atividades dirigidas por objetos que constituem seu referente (ainda que a propriedade estética não resida no objeto em questão, mas na configuração relacional que ele adquire quando abordado esteticamente). Sua particula-ridade em face de outros processos mentais poderia ser encontrada em uma especificidade funcional no uso da atenção cognitiva, a saber, o acionamento de um regime lúdico e endógeno de coleta de informações pelos sentidos (que Kant (1993) teria tratado como o livre jogo das faculdades no juízo estético), uma vez que em regimes perceptuais correlatos os mecanismos de seleção acionados são somente pré-conscientes, tramados na familiaridade do repertório adquirido e movidos por certo automatismo pragmático.

A origem deste regime lúdico impresso na esfera cognitiva seria expli-cada, conforme Schaeffer (2000), pela genealogia cultural ancorada na evolução biológica da espécie humana (e não em um espírito abstrato capaz de tecer ajuizamentos). Para o autor, se os processos mentais se estruturam segundo sua funcionalidade na produção de comportamentos, então a gênese das atividades cognitivas auto induzidas é a coleta de dados adicio-nais e relativamente distantes pelos sentidos (como o olfato, a audição e a visão), conformando nosso contexto situacional2. No caso das experiên-

2 Na visão de Schaeffer (2000), os dados sensíveis seriam capturados quase automaticamente pois pré-estruturados pelo cérebro, não sendo de modo algum índice da autonomia do espírito (como advoga Kant), mas exclusivamente resultado da seleção natural.

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cias estéticas, pressupõe-se então uma intensidade na atenção perceptual de elementos que passariam despercebidos em outras esferas, mobilizando um alto gasto energético. O que garante a continuidade da atividade, nestas ocasiões, é o índice de (in)satisfação interna gerado do processamento custoso dos dados sobressalentes e a curiosidade suscitada pela fruição do objeto: “quando somos curiosos, nós avaliamos as informações em si mesmas independente de qualquer recompensa cognitiva ou pragmática. Isso significa que a recompensa da curiosidade reside no início e no curso do processamento em si mesmo” (SCHAEFFER, 2015, p. 162).

Nesta caracterização da estesia preconizada por Schaeffer, o autor também se aparta da filosofia kantiana ao propor uma desagregação entre juízo estético e experiência. Em sua formulação, pontua que o valor hedô-nico que conforma estas experiências não deve ser entendido como um ato de juízo (como o fora em Kant), e sim um efeito da atividade cognitiva. Em face da estesia, assevera Schaeffer, “não julgo que estou satisfeito ou insatisfeito, me limito a dar conta disso” (2000, p. 51). Por conseguinte, um eventual julgamento não derivaria diretamente da conduta estética ou seria constitutivo dela, pois em sua perspectiva há atitudes estéticas completa-mente despidas de juízo de valor (SCHAEFFER, 2000, 2015).

Ao sustentar que: 1) ajuizamentos estéticos se referem, sobremaneira, a uma comunicação intersubjetiva posterior capaz de atribuir à experiência um predicado de valor e; 2) que o prazer ou desprazer gerado no encontro estético é uma vivência de ordem puramente subjetiva e irrefutável, Scha-effer (2000) igualmente recusa outro elemento fundamental ao juízo do gosto conforme delineado em “Crítica da Faculdade do Juízo”, a saber, sua aspiração à universalidade. Cumpre recordar que, em Kant, a complacência ligada ao belo, por mais subjetiva que seja, não se finda nela mesma (como no caso do juízo de que algo é agradável e apraz aos sentidos de um sujeito particular3). Se alguém toma algo por belo, na acepção kantiana, reivindica uma unanimidade referente ao seu juízo, atribuindo a outros que venham a contemplar o objeto que lhe despertou tal aprazimento uma conformidade de apreço. Atestando a aspiração à normatividade no ajuizamento da beleza,

3 A despeito desta observação, importante notar que o agradável em Kant (1993) também pode sinalizar uma busca por unanimidade. A distinção reside no fato de que tal juízo faz referência às regras empíricas de sociabilidade e não ascende ao plano universal que caracteriza o ajuizamento do belo.

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Kant prossegue: “Em todos os juízos pelos quais declaramos algo belo não permitimos a ninguém ser de outra opinião, sem com isso fundarmos nosso juízo sobre conceitos, mas somente sobre nosso sentimento” (KANT, 1993, p. 85).

Dito isto, se para Schaeffer a fruição estética é de ordem puramente pessoal e não se destina à universalização, como então este filósofo consegue explicar situações em que há consenso em juízos estéticos singulares? Para o autor de “Adieu a l’esthetique”, há um tipo de programação genética ou de impregnação cultural que favorece certos objetos e acontecimentos no que diz respeito à sua possibilidade de nos conduzirem a adotar, mais ou menos automaticamente, uma atitude estética (a exemplo da imagem de flores, que, independente do contexto, podem agir como estímulo ao deslizamento momentâneo da atividade cognitiva).

Antes de partirmos para a crítica desta abordagem descritiva da estesia apresentada por Schaeffer (produzida a partir de um profundo desacordo com a estética kantiana), cabe pontuar que formulações contíguas também despontam, por exemplo, na obra de Greenberg (1999). Embora este autor não reivindique uma oposição à filosofia kantiana, já que, em sua pers-pectiva (e distintamente de Schaeffer) a experiência estética “é um julga-mento, é elaborar julgamentos de gosto, é gostar ou não gostar, obter ou não satisfação em diferentes níveis; uma intuição estética não apenas coin-cide com ou é consubstancial de um veredito de gosto: ela significa isso” (GREENBERG, 1999, p. 43), Greenberg também discorre sobre a estesia como uma alteração mental que desloca o registro da intuição comum para a intuição estética, gerando um estado de “cognitividade exaltada” que é o próprio valor estético. Também não deixa de ser relevante pontuar que há uma miríade de esforços no horizonte da estética da comunicação que vêm tentando incorporar esta grade conceitual em suas excursões, sejam elas marcadamente teóricas (GUIMARÃES, 2006; CARDOSO FILHO, 2009) ou ainda empíricas (PICADO; LINS, 2017).

Não obstante o esforço de autores como Schaeffer por dotar a atitude estética de uma feição antropológica - possibilitando enraizá-la no âmago dos estados mentais em contraponto às abstrações filosóficas fornecidas por Kant – a defesa de uma visada “naturalista” da fruição parece esbarrar em entraves que nos levam a problematizar se de fato esta caracterização repre-senta um ponto de virada à ideia do juízo estético como aprazimento desin-

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teressado ou se não se trata de um giro em falso em direção a uma estética pós-kantiana.

No caso específico de Schaeffer, a primeira ressalva aos seus argumentos advém de uma simples leitura da complicada definição geral da experiência estética presente em um de seus textos mais recentes: “um loop de feedback bidirecional entre a atenção prestada ao objeto (obra de arte ou qualquer outro) e um cálculo hedônico interno avaliando a valência positiva ou nega-tiva do processo atencional que se desdobra no tempo” (SCHAEFFER, 2015, p. 160). Ora, se o índice de satisfação provocado na estesia é auto gerado por um flexionamento auto consolidativo de atenção apreciativa (um tipo de atenção que clama por mais atenção) desprovido de um telos para além de sua própria processualidade e regulado por uma curiosidade desinteressada e endógena (SCHAEFFER, 2000), convém questionar se esta formulação aparentemente hermética não se equivale, no fim das contas, à descrição kantiana do juízo do gosto como faculdade ligada exclusivamente ao sujeito afetado pelo (des)prazer diante de algo apreendido esteticamente (portanto, despido das finalidades práticas que demarcam os registros habituais da percepção).

Também não me parece esclarecida a tentativa de transposição do idea-lismo kantiano reivindicada por Schaeffer quando este sugere, em aparente distinção ao filósofo prussiano, uma contiguidade entre os modos percep-tuais corriqueiros de atenção ao mundo e àqueles de matriz estética. A desconfiança aqui reside em dois pontos centrais: 1) Kant (1993) também já sugeria em “Crítica da Faculdade do Juízo” que ajuizamentos estéticos podem ser extraídos de acontecimentos e situações que não necessaria-mente seriam propícios para tal conduta; 2) o próprio Schaeffer (2015) reconhece uma disparidade entre a inscrição auto teleológica da estesia e os comportamentos cognitivos pautados por objetivos mais pragmáticos. Ou seja, nem Kant demarcou fronteiras rígidas entre os registros habituais da percepção e àqueles de base estética e muito menos Schaeffer segue até as últimas consequências a suposta confluência dos regimes de percepção que o distanciariam da estética kantiana.

O mesmo ocorre quando Schaeffer (1996, 2000) propõe a individuali-dade do gosto argumentando que a experiência estética independe de um juízo de valor. Neste caso, seu raciocínio parece se avizinhar mais da defi-nição do agradável em Kant (aquilo que “apraz aos sentidos na sensação”

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(KANT, 1993, p. 50) independente de qualquer ajuizamento ulterior) do que incidir criticamente nas definições clássicas da faculdade do juízo esté-tico.

Em síntese, apesar do esforço de superação de dualismos ontológicos que marca a teoria estética de autores como Schaeffer, não deixa de saltar aos olhos que seu enfoque descritivo da racionalidade estética privilegie uma noção de experiência substancialmente intelectiva, na qual sobressaem os sentidos capazes de captar dados sensoriais à distância e faltam referên-cias àqueles que nos conduzem a um contato mais tátil e somático com o mundo (embora não faltem referências neste sentido na teoria estética, a exemplo do pragmatismo de John Dewey, George Mead e William James, bem como às suas contemporâneas releituras na soma-estética de Richard Shusterman (2008) ou ainda na “virada afetiva” da estesia apresentada por Jean-Luc Moriceau e Carlos Mendonça (2016)). Sem embargo, o potencial heurístico de sua investida é igualmente reduzido ao caracterizar a expe-riência estética de um prisma marcadamente solipsista, algo que o obriga a ascender ao plano da genética evolutiva para resolver a coincidência dos juízos do gosto que em Kant (1993) é solucionada de maneira mais coerente pela sensibilidade vinculante do sensus communis, padrão básico de partilha dos afetos que é condição necessária para a comunicabilidade dos juízos estéticos.

4. Considerações finaisA excursão promovida ao longo deste trabalho pelas obras de filósofos

contemporâneos que vêm produzindo releituras do juízo do gosto conforme apresentado em “Crítica da Faculdade do Juízo” revelam, em primeiro lugar, um esforço de atualização da matriz original proposta por Kant. Tal empenho se soma tanto às investidas que ressaltam o pioneirismo de sua obra ao evidenciar o papel matricial da relação entre sujeito e objeto na emergência do encontro estético, quanto àquelas que reclamam criticamente uma superação da normatividade da beleza em um contexto de produção artística que se esmera em apresentar o irrepresentável pelos cânones do sublime, conforme Lyotard (1993).

Nas obras averiguadas neste artigo, o encontro estético é tematizado ora como marca antropológica da humanidade em sua sede por extrair do

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manancial de dados coletados focos de atenção e obtenção de satisfação, ora como veículo catalisador de reorientações dissensuais nos registros habituais de percepção (promovendo desestabilizações na ordem social e ou mesmo na estruturação do self). Em cada uma destas abordagens a estesia emerge como um processo transitório, intenso e prenhe de possíveis desdobramentos - que embora não possam ser qualificados como um telos próprio à experiência estética, compõe o seu leque de impactos nas esferas contíguas do mundo da vida (ainda que se possa alegar que em alguns casos esse “impacto” só é intimamente vivenciado).

Dito isto, é igualmente crucial reforçar, em segundo lugar, que a diligência destes empreendimentos filosóficos só é comprometida por certa ausência de rigor na recuperação do quadro teórico que configura a estética kantiana – gerando implicações problemáticas em determinados aspectos. Como visto, nas investidas que buscam descortinar uma potência emancipatória do caráter desinteressado do juízo estético conforme teorizado por Kant, os riscos mais imediatos são: 1) o de fundar uma axiologia da estesia (substituindo a apologia da beleza que marcou por séculos a filosofia da arte, segundo Parret (2011) que normatiza como ideal de fruição um situação dotada de insurgência criativa e política, confinando à invisibilidade experiências estéticas que não desorganizam a partilha do sensível vigente ou não conduzem à autorreali-zação humana; 2) omitir, equivocadamente, o papel indispensável dos afetos e emoções no encontro estético.

Já no caso dos autores que vêm refletindo sobre a racionalidade estética em divergência ao caráter “desinteressado” que demarca o juízo do gosto em Kant, percebe-se uma tendência em apontar inconsistências que não corres-pondem aos argumentos de “Crítica da Faculdade do Juízo”. Um exemplo é a caracterização naturalista da estesia em Schaeffer, que peca ao limitar a coin-cidência dos juízos do gosto à genética, desconsiderando a ancoragem histó-rica e cultural do contato sinestésico que precede às experiências estéticas e que fora devidamente tematizada por Kant em sua obra clássica. Assim, no afã de acusar toda filosofia pós-Kant de ser uma “filosofia do espírito” (esque-cendo-se de tradições como o pragmatismo, que, no alvorecer do século XX, já se empenhava em superar os dualismos que teriam pautado o idealismo kantiano), autores como Schaeffer acabam, por fim, mais acentuando a vita-lidade dos escritos de Kant do que anunciando a superação de suas reflexões sobre a estética.

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Capitulo 3

A Estética que Vem1

César Guimarães

1. Apresentação

À sombra de qual animal nós existimos? Qual é o bicho ou qual é a árvore que, em nós, faz falar o nosso silêncio?

Marie-José Mondzain

Esta intervenção foi extraída de uma experiência vivida em abril de 2015, quando Isael Maxakali e Suely Maxakali ofereceram aos alunos de gradu-ação da UFMG o curso “Cosmociências: Cinema e pensamento Maxakali”, no qual apresentaram e comentaram seus filmes e fotografias. Inserido no âmbito do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais, o curso teve o professor André Brasil e eu como parceiros dos cineastas indígenas. Os apontamentos aqui esboçados provêm da escuta de diferentes

1 Trabalho originalmente apresentado ao Grupo de Trabalho em “Comunicação e Experiência Estética” do XXVI Encontro Anual da COMPóS, Faculdade Cásper Líbero, São Paulo - SP, em 2017.

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vozes: os comentários de Isael e Suely nas aulas que presenciamos, as desco-bertas da etnomusicóloga Rosângela Pereira de Tugny, em seu admirável trabalho com os cantos e narrativas dos Tikmũ’ũn (conforme os Maxakali se auto-denominam) e as instigantes proposições de André Brasil acerca do cinema indígena (em especial, sobre as modalidades de incidência do fora--de-campo cosmológico no campo cinematográfico).

Ao observar como os filmes e as fotografias feitos pelos Maxakali causavam um vívido estranhamento nos alunos – para além do exotismo ou da idealização que, em situações como essa, costumam atenuar ou limar os traços da alteridade que se expõem diante de nós – pensamos em sugerir como as imagens Tikmũ’ũn oferecem um tipo de experiência sensível aos seus espectadores (não-indígenas) que desafia os padrões de que dispomos para caracterizar o fenômeno estético. Para tanto, valemo-nos, de saída, das proposições de Martin Seel, para quem a experiência estética pode ocorrer plenamente fora do circuito institucional das artes e dos seus objetos, que são guiados por uma modalidade específica de percepção (2014, p.29). Tal perspectiva, entretanto, não deve nos levar a universalizar a experiência estética, concedendo-lhe uma pretensa presença em todas as sociedades, nem valer-se dela como um enganoso tradutor que viria recobrir com os nossos termos os eventos e as experiências que ocorrem em outras socie-dades e com outros povos, orientadas por princípios e valores – não raro – inconciliáveis com os nossos.

Assim, quando acontece de certas criações de outras povos e de outras culturas se apresentarem diante de nós para serem experimentados este-ticamente, podemos começar por indagar como e porquê elas desestabi-lizam as atitudes e os repertórios que habitualmente acionamos para apre-endê-las. Com o intuito de descrever as dificuldades que tal situação nos traz, propomos uma breve visita à pequena e longínqua Aldeia Verde, no município de Ladainha, Minas Gerais. Ali, a espessura de outro espaço--tempo desafia – sem alarde e sem ressentimento – as bases eurocêntricas do nosso modo de pensar e a mono-episteme que impera nas universidades brasileiras (para lembrar as palavras de José Jorge de Carvalho, com seu empenho em promover o encontro entre os mestres dos saberes tradicionais e o pensamento científico desenvolvido pela academia).2

2 A primeira elaboração dessas ideias se deu por ocasião de uma apresentação no Seminário

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2. Vir em sonho, agir no realPoderia uma imagem vir como um sonho vem? Poderia uma imagem

vir em sonho e agir no real, sem permanecer apenas como um resíduo do imaginário, mantido e cultivado à parte, ou uma fantasia encerrada na interioridade de alguém, como o seu pequeno segredo? Poderia um canto chegar, como um animal que aparece à porta de nossa casa, errante – escorraçado de outro lugar ou fugido de uma floresta devastada (seja ontem ou há centena de anos), e nos trazer um sinal que tememos ou que nos salvará?

Alguém sonha com um parente que o convida para caminhar pela mata (que sobrevive tão mais tenazmente como universo cantado quanto mais diminuem as espécies animais e vegetais que um dia a povoaram). Ao aceitar a comida oferecida pelo parente desaparecido, o sonhador torna--se o comensal de uma aparição. Coisa terrível, relembrada com temor logo ao acordar, ao se esfregar os olhos; mas isso não traz o alívio costu-meiro quando se desperta de um pesadelo. O sonhador acorda doente. Ao entardecer, o pajé vem visitá-lo e pede a ele que se recorde do canto do povo-espírito com o qual sonhou. Seria com o canto nostálgico e saudoso de Mõgmõka, o gavião-espírito? Ou com o de Xunin, o morcego-espírito? Os mais velhos conversam longamente sobre a construção do repertório de cantos que pode retirar do corpo do doente os espíritos ruins que dele se apossaram. Escolhidos os cantos, as pessoas da casa e da vizinhança passam a noite em claro, cantando. Dentre os cantos, inumeráveis, eles entoam o de Xamoka, a andorinha-espírito. De manhã cedinho, as crianças aspergem água pelos cômodos da casa do convalescente, molhando a terra batida.

Ao escutar esse relato de Suely Maxakali sobre o canto benfazejo de Xamoka, a andorinha-espírito, começamos a indagar, quase sob a forma de um devaneio, se uma imagem também não poderia chegar

Internacional “Por uma estética do século XXI”, realizado no Museu de Arte do Rio de Janeiro, de 25 a 27 de agosto de 2015. José Jorge de Carvalho, antropólogo da UnB, coordenador do Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI) foi quem criou o Encontro de Saberes, projeto no qual a universidade acolhe os saberes das mestras e mestres das culturas populares, indígenas e afro-descendentes. Confira a instigante perspectiva do projeto em http://www.inctinclusao.com.br/encontro-de-saberes/encontro-de-saberes. Nossa iniciativa foi inspirada nas proposições de José Jorge de Carvalho.

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dessa maneira, como uma cura ou o fim de um tormento. E se isso fosse possível, qual seria a marca da experiência que ela inauguraria para aquele que a recebe, que a toma como um evento a ser sentido? Lembremos do final de Os mestres loucos (1955), de Jean Rouch, quando o cineasta reencontra na frente do hospital psiquiátrico de Accra os homens que, no final de semana, haviam passado pelo ritual de possessão entre os Houkas. Diante dos rostos sorridentes dos “melhores operários da Water Works”, que em nada lembravam os esgares e as convulsões do ritual da véspera, Rouch se pergunta se os africanos não conheciam certos remédios que lhes permitiam viver perfeitamente integrados ao seu meio, longe de toda “anormalidade”.

Uma oficina de fotografia ministrada por Ana Alvarenga às mulheres da Aldeia Verde permitiu que Suely Maxakali registrasse uma das visitas dos diversos povos-espírito que chegam frequente-mente ao território dos Tikmũ’ũn (não por acaso, a casa de religião, construída de costas para a aldeia, volta-se para fora, pronta a receber os visitantes).3 Primeiro, no fim da tarde, chegou um homem-espí-rito, em atendimento ao pedido de uma doente. Em seguida as tarta-rugas-espírito tomaram o pátio e iniciou-se uma brincadeira entre elas, as moças e as mulheres. Antes do amanhecer, na madrugada, as mulheres encheram as vasilhas d’água para molhar as andorinha--espírito, que acabavam de chegar.

3 O relato de Ana Alvarenga encontra-se no livro Koxuk Xop/Imagem. Fotógrafas Tikmũ’ũn da Aldeia Verde.

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Figura 1- Andorinha-espírito (Foto: Suely Maxakali)Fonte: ALVARENGA, 2009.

É essa passagem por um acontecimento que chega e transforma aqueles a quem alcança, que gostaríamos de tomar como parâmetro ao perguntar pelo tipo de experiência que a aparição da imagem poderia proporcionar. Este exemplo tem algo de desconcertante, mas cremos que ele é útil para comparamos aquilo que nós e outros povos (como os ameríndios, por exemplo) obtêm de experiências sensí-veis que tem valor de evento. Trata-se menos de discutir se objetos de culturas distintas são capazes de despertar uma “reação estética” sob o crivo de uma “semântica da linguagem da apreciação artística”, como quer Arthur Danto (2011, p. 159), do que compreender as cone-xões outras (para além do âmbito institucional da arte), acionadas por fenômenos cujas formas expressivas se impõem de tal modo que extravasam a atitude de apreciação dos elementos sensíveis por parte de um sujeito.

Aliás, o que está em questão, como criticou Els Lagrou, são justa-mente os critérios utilizados para se estabelecer a distinção entre os objetos artísticos das culturas ocidentais (tomados como autô-

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nomos e oferecidos à contemplação) e os artefatos da cultura indí-gena, circunscritos ao uso e à sua função na vida social dos povos que os produzem (2010, p. 20). Se podemos visar esse problema sob uma nova angulação concedida à maneira como experimentamos sensivelmente certos fenômenos – para além dos horizontes da esté-tica filosófica – devemos nos livrar dos enganos produzidos pelas tentativas de identificação a avaliação dos atributos ditos “artísticos” das invenções dos povos indígenas: a cestaria, a arte plumária, as máscaras, a arte das miçangas, os adereços, a pintura corporal, a tecelagem e tantas outras mais.

Como reivindica Lagrou, ao adotar uma abordagem praxiológica, podemos atribuir uma “eficácia estética” a objetos, ações, eventos e processos que prescindam da sua caracterização como extraordiná-rios e destinados à unicamente à contemplação de suas formas, livres, autonomizadas, destituídas de funções e separadas do cotidiano (2010, p. 20). Numa palavra, podemos reivindicar que não somente a arte pode transfigurar o lugar comum, assim como essa operação de transfiguração pode muito bem prescindir de um sujeito, tal como escreve Emanuele Coccia: “Se há sensível no universo é porque não há nenhum olho observando todas as coisas. Não é um olho que abre o mundo, mas é o sensível mesmo que abre esse mundo diante dos corpos e dos sujeitos que pensam os corpos” (2010, p. 35).

Como identificou Rosângela Pereira de Tugny, as intervenções do povo Maxakali “diante de qualquer forma de alteridade são essencialmente esté-ticas” (2011, p. 24). E se hoje eles se vêm às voltas com a imagem técnica – ao produziram seus filmes e fotografias – a relação deles com os elementos sensíveis que ela aciona escapa da noção de representação para se tornar um “evento de extrema intensidade, que é a aparição, a abertura da visão, a possibilidade de ver e de se dar a ver entre corpos que estão próximos, mas nem sempre acessíveis ao olhar” (TUGNY, 2011, p. 89).

Contudo, se os ameríndios se abrem à experiência da alteridade sob um modo estético, nós, ocidentados (neologismo inventado por Lacan), esperamos, na direção inversa, que a experiência estética nos ofereça algum grau de alteridade, em um mundo que ou a expulsa (por não suportar a diferença) ou a devora, para dela se apropriar e retirar sua potência perturbadora (reconhecemos aqui as palavras de Lévi-Strauss).

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A essa outra experiência, experiência do outro, Maria Inês de Almeida, em alusão ao trocadilho lacaniano, denominou Desocidentada, em seu belo livro dedicado aos textos literários indígenas (2009).

Rosângela de Tugny explica que os Tikmũ’ũn utilizam o termo koxuk (imagem) para designar os povos-espírito, os yãmĩyxop-cantores que chegam à sua aldeia. Embora o termo também tenha sido traduzido por linguistas como sombra ou alma, a etnomusicóloga ressalta:

Koxuk, imagem, não é em definitivo algo que se encontra para nós no domínio da aparência, da imaterialidade, do invólucro visível ou da representação, supondo que algo mais verdadeiro repouse na invisibilidade. Koxuk seria o corpo verdadeiro que se dá a ver em toda sua plenitude. Estamos aqui novamente em um terreno de confronto entre as bases profundas de nossas ontologias. Os Tikmũ’ũn mostram-me sempre os yãmĩyxop, os povos-espíritos, com seus corpos pintados chegando à aldeia, dizendo-me que “são koxuk”, ou koxukxop” (TUGNY, 2011, p. 88).

Koxukxop foi o título escolhido para o livro de fotografias realizado pelas mulheres da Aldeia Verde. Considerando que o termo Xop possui a função de coletivizar, Tugny traduziu Koxukxop por “povos-imagens”. Para melhor discernir a diferença entre essas duas ontologias da imagem, a dos Tikmũ’ũn e a nossa, mencionemos, de passagem, duas observa-ções de Jean-Jacques Wunenburger. Entre nós, o registro semântico da imagem oscila entre a ideia de forma visível (imago, forma, bild, gestalt, picture, figure, pattern, frame, shape) e a ideia de conteúdo irreal, fictício, produção daquilo que não é (eidolon, phantom). Neste caso, a imagem é menos uma “emanação do real objetivo do que o produto da ativi-dade de eidolonpoietiké, de fictio (para os latinos), ligada à imaginação, phantastikon, que engendra os phantasmata (que só se ligam ao real pela aparência).” (WUNENBUGER, 1997, p. 6). A despeito da variação entre os diferente usos que a noção recebe, podemos definir a imagem do seguinte modo:

uma representação mediata, mista, que permite, simultaneamente, ligar e opor dois planos ou duas entidades opostas, sempre pres-supostas nas concepções filosóficas do conhecimento: de um lado, a realidade objetiva das coisas, que nos é apresentada em uma in-

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tuição sensível; de outro lado, um núcleo de informação abstrata, conceito ou ideia, que nos oferece os objetos de pensamento inde-pendente de sua configuração empírica (WUNENBURGER, 1997, p. 8).

Embora empregada correntemente, tal definição da função mediadora da imagem não deixa de ser limitadora. Para Marie-José Mondzain, a imagem não é um objeto particular alcançado pela visão, mas a condição mesma do visível. Seria mais apropriado chamá-la de um “não-objeto” que escapa à apreensão exclusiva por meio da visão. Ao exceder sua visi-bilidade, a imagem torna visível o que ainda não está aqui e nos põe a esperar o que virá, aquilo que nosso olhar – partilhado com os que vêm juntos conosco – qualificará como uma imagem (2011, p. 23). Ela nos põe a ver, juntos, o que ainda não é visível, e cria assim um espaço intersticial, o lugar do encontro comum, no qual o espectador é deslocado de uma posição subjetivista, monádica, assentada em sua experiência interna, para uma situação intersubjetiva, reconhecido pelo olhar do outro. Mais do que isso: ver com os outros, partilhando o invisível, é ver a si mesmo como outro: “A imagem é a intimidade do nosso fora, é o longínquo de nossa intimidade” (2011, p. 61). Operador da extradição e do exílio de si, a imagem é um ser de fuga que não pode ser possuído nem domado, reforça a filósofa. Pertencente a um “entre-mundo”, promovedora de trocas entre os vivos e os mortos, as aparições e as desaparições, a imagem faz entrar no mundo “uma política sensível e vibratória das distâncias, a vibração perceptível da ausência” (MONDZAIN, 2011, p. 10).

Ao estudar dois mitos Maxakali (o da criação dos animais, caídos do céu, e o da mulher que, inconformada com a morte do marido, vai visitá--lo na aldeia dos mortos), Tugny nota uma vizinhança semântica entre Koxuk (imagem, sombra, alma), xokop (os animais, ou povo de mortos) e Xok (morrer, guardar dentro, mas também semear ou plantar): “O corpo animal é então ao mesmo tempo o corpo dos ancestrais dos Tikmũ’ũn, a forma dos seus mortos, enquanto seus koxuk são o evento em que eles se dão a ver aos Tikmũ’ũn” (2014, p. 172). Quando os yãmĩyxop vem visitar a aldeia, não se trata nunca de uma representação desse povo de mortos, pois, como observa Tugny, não há “uma distinção entre dimensões sepa-radas e excludentes para as coisas materiais e as imateriais, as verdadeiras

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e as falsas, as essências e as aparências” (2011, p. 89). E se as máscaras, os aerofones, os adereços rústicos e a pintura corporal guardam um traço de semelhança que permite identificar os povos-espírito, o seu registro é bem diverso do nosso. Enquanto entre nós a semelhança na aparência é o traço mínimo definidor da imagem, “a expressão que eles [Tikmũ’ũn] utilizam para “parecer com”, “assemelhar-se a” é sempre a mesma que utilizam para “transformar-se em”, yãy hã (TUGNY, 2011, p.89). É desse modo que a aparição das imagens se torna um evento, conclui a etnomusicóloga.

Para Tugny, foi a contiguidade entre as mulheres Tikmũ’ũn e os yãmĩyxop (os povos-espíritos), que permitiram a elas fotografar os rituais de uma maneira tal que prescindiram de uma mirada externa e de um controle do enquadramento diante dos eventos: “o alvo da objetiva que elas carregavam residia já dentro dos olhos das fotografas” (2011, p. 95).

Figura 2 - Tartaruga-espírito (Foto: Suely Maxakali)Fonte: ALVARENGA, 2009.

Em razão disso, as bordas do quadro fotográfico perdem seu caráter cortante e se tornam elásticas, flexíveis, permeáveis ao fora de campo lateral que atrai a ação para o exterior: no jogo entre as mulheres e os

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povos-espíritos as perseguições entre uns e outros concedem ao quadro uma energia centrífuga, e as figuras femininas, arrastadas pela intensi-dade do encontro, contagiadas pela presença dos visitantes, perdem o contorno de suas formas e tornam-se manchas esvoaçantes de cores com seus vestidos (verde-limão, rosa, vermelho), enquanto o solo, ora amar-ronzado, ora ocre esmaecido, perde o seu limite com o verde da vegetação que envolve o espaço e os tetos cobertos de palha amarelada. Tomado pelos afetos que animam o jogo das mulheres com os visitantes-espírito, pela excitação da corrida e dos contatos entre os corpos, ágeis, brincantes, soltos no espaço, o olho se liberta da moldura imposta pela máquina foto-gráfica e entra numa deriva, como se rodopiasse, em transe, movendo-se em um espaço descentrado que não cessa de alterar suas coordenadas.

Podemos lembrar a maneira com que Maurício Lissovsky, ao conceber a fotografia como uma “máquina de esperar”, caracterizou o gesto criativo de alguns fotógrafos modernos – William Klein, Arthur Omar e Cláudia Andujar, dentre outros – que “entram em fase” com o universo fotogra-fado (2008, p. 142). Lissovsky ressalta que nesses autores o borrão e o tremido da imagem não podem ser reduzidos ao vestígio do movimento, tomados como indicadores da inscrição material da duração no espaço visível: o que há é um “pôr-se-dentro do instante” que nos impede de iden-tificar com precisão quando ele começa e quando termina (2008, p. 142).

E se um desses fotógrafos, Arthur Omar (mencionado por Lissovsky), concebe o centro da imagem como um “aparelho de sucção violenta, ao qual, um dia, enviaremos o olho em missão tripulada” (2008, p. 141), para as fotógrafas Tikmũ’ũn, tão distantes das práticas e dos discursos sobre a arte, trata-se justamente do oposto: de jamais desprender o olho do corpo, contagiado pela presença dos povos-espírito. Tugny sublinha que o interdito que pesa sobre o olhar das mulheres, instruídas a não olhar dire-tamente nem os espíritos nem os estrangeiros, é compensado pela proxi-midade que elas mantêm com os corpos e pelo exercício de uma visão do imperceptível, concedida pelo canto. (2011, p. 94). Afinal, como escrevem Deleuze e Guattari, “os movimentos e os devires (...) estão abaixo ou acima do limiar da percepção” (1997, p. 74).

A princípio, tais afirmações podem soar muito distantes do vocabu-lário usualmente empregado para dar conta das preocupações em torno do fenômeno estético, e em particular, do tipo de experiência peculiar que as

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imagens nos proporcionam. Ora, os embaraços trazidos pela aproximação que promovemos, longe de ser algo de que deveríamos nos livrar, são na verdade, constitutivos da Estética, como tem indicado Jacques Rancière em sua formulação em torno da partilha do sensível. Sem a pretensão de sistematizar os variados ângulos com que ele já visou o tema, resumi-remos alguns aspectos que nos permitem arriscar uma aproximação entre as ideias do autor e a questão que apresentamos nesse artigo.

3. A alteração da cena sensívelAo circunscrever o termo “estética” a um regime de identificação da

arte – social e historicamente construído – Rancière mostra que, a cada vez que surge um discurso que procura identificar o que é próprio da arte, trata-se de uma operação que promove um recorte dos espaços e dos tempos, dos sujeitos e dos objetos, do comum e do singular, e que configura, a cada vez, uma partilha do sensível. Para o autor, o mal-estar atual provocado pela estética se deve à inter-relação entre dois escândalos dos quais ela é acusada de ser cúmplice: o surgimento de uma arte que “acolhe em suas formas e em seus lugares os objetos de uso e as imagens da vida profana”; e de outro as “promessas exorbitantes e enganosas de uma revolução estética que queria transformar as formas da arte em formas de uma vida nova” (2004, p. 25). O presente pós-utópico da arte – tempo no qual vivemos – comporta dois modos de reagir a esses dois escân-dalos: uma, adotada pelos filósofos e historiadores da arte, procura “isolar a radicalidade da pesquisa e da criação artísticas das utopias estéticas da vida nova”, comprometidas com os projetos totalitários ou com a esteti-zação mercantil da vida (2004, p. 31). Surge aí uma defesa da radicalidade da arte concebida como “potência singular de presença, de aparição e de inscrição”, que rompe com a experiência ordinária.

A outra atitude, adotada pelos artistas e pelos profissionais das institui-ções artísticas, se distancia tanto daquelas utopias estéticas que desejaram transformar as formas da arte em formas de vida quanto desta radica-lidade da forma artística radicalmene separada da vida: marcada agora pela modéstia, a arte abre mão tanto da sua capacidade de transformar o mundo quanto da singularidade de seus objetos. Ao invés de buscar a instauração do mundo comum através da singularidade absoluta de

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sua forma, tal modalidade de arte procura dispor de uma nova maneira “os objetos e as imagens que formam nosso mundo comum já dado”, ou então, cria “situações apropriadas para modificar nossos olhares e nossas atitudes a respeito desse meio-ambiente coletivo” (2004, p. 33-34). Embora distintas, ambas atitudes “reafirmam uma mesma função comunitária da arte: a de construir um espaço específico, uma forma inédita de partilha do mundo comum” (2004, p. 35).

Resta saber como essa cena sensível da estética que nos é contempo-rânea poderia ser modificada pela presença das imagens criadas pelos Tikmũ’ũn… Atualmente, diversas criações indígenas tem adentrado os espaços dos museus e galerias de arte, e não apenas aqueles que carregam o selo das pesquisas etnográficas. Porém, como se não bastasse o fato da epistemologia indígena ter sido confinada ao domínio domesticado da arte – como critica Viveiros de Castro (2008, p. 142) – volta e meia a chamada arte indígena ainda se vê desprovida dos atributos e proprie-dades característicos dos objetos artísticos estudados e consagrados pelas instituições não-indígenas. Para não incorrer na ardilosa divisão entre os povos que designam como arte um tipo de experiência sensível fornecida por eventos, processos e objetos selecionados, e aqueles outros povos que não circunscrevem a vida sensível aos objetos artísticos, mencionaremos um outro exemplo, oferecido por André Brasil, e que também guarda uma misteriosa relação com o mundo indígena.

4. O animal que vemNo Vale do Catimbau, sertão de Pernambuco, um homem, outrora

predador de animais e lenhador, acorda um dia do sonho que o mandara esculpir em madeira os animais que matara e comera. Ele sai pelo mato farejando as formas futuras que surgirão dos galhos tortuosos da umbu-rana. Assombrado que pelo desapareceu, pelo que ele próprio destruiu com faca e machado, ele agora vive cercado por aquilo que dura na forma: em volta de sua casa, centenas de esculturas de madeira povoam o terreiro. As aparições tomam o lugar dos bichos desaparecidos.

Os animais nos espreitam, escondidos na matéria mutante do mundo. E se eles se revelam a nós, trata-se menos de uma contemplação (de nossa parte) do que de nossa capacidade – por força de qual atração ou

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espanto? – de farejar a sua presença no nosso entorno, assim como eles fazem conosco.

Figura 3 - O terreiro dos animaisFonte: Catálogo da Exposição José Bezerra – 2009 (curadoria de Rodrigo

Naves).

É o próprio escultor, José Bezerra, descendente do povo indígena Fulni-ô, quem diz que fareja a forma por vir na matéria da madeira, ainda informe ou com o formato e função que a natureza lhe dera. Por um viés surpreendente e astucioso, reencontramos aqui a fórmula que Rancière cunhou para definir o regime estético da arte, quando já não é mais possível se apoderar de uma matéria para conceder-lhe uma forma.

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Ao comentar o conflito interno que rege a obra de José Bezerra, Rodrigo Naves se vale de termos que, para nós, encontram uma equivalência com a concepção do “regime estético” em Rancière:

José trabalha em geral com toras retorcidas, típicas da vegetação do lugar, como é o caso da umburana. Esse aspecto irregular, unido aos poucos talhos que as conformam, produz um resultado notá-vel. A definição oscilante das figuras se une à tortuosidade da ma-deira, e essa relação faz com que percebamos formas que parecem lutar para emergir, em meio ao embate entre a matéria vegetal e a intervenção escultórica rude e parcimoniosa. Vem daí a expressivi-dade singular de suas obras, que parece não derivar do conflito en-tre as paixões individuais e a avareza do mundo, como é corrente, e sim de uma realidade que, cindida e conturbada, revela um conflito interno que retarda sua definição e aparecimento.

Seus bichos, corpos e rostos não têm a doçura de grande parte da chamada arte popular, feita de afeto e familiaridade com os mate-riais, que advém de sua proximidade com o artesanato e da neces-sidade de tirar o melhor proveito da madeira, da argila ou da pedra por meio de técnicas rudimentares. Ao contrário, fazer e figuração parecem estranhar-se reciprocamente, ainda que ao fim cheguem a uma unidade (NAVES, 2009, p. 8)

No mundo de José Bezerra, se a matéria ao mesmo tempo resiste à forma e permite obter uma configuração expressiva que lhe será conce-dida, é porque a madeira é atravessada por outras forças que a cercam, situada numa região da experiência que lhe impede de ser simplesmente uma coisa à disposição do homem. Se algo é ditado em sonho ao escultor é porque no seu umbigo (o do sonho, para falar com Freud) age um incons-ciente duplamente atravessado: pelos componentes do socius e do cosmos. O mundo social também assombra, e o trauma é como uma cicatriz que o formão do escultor percorre, encarregando-se de dar seguimento à semelhança que desponta, incerta, imprecisa, mas sem nunca alisá-la. Ela permanece áspera, mal-aparada, não-domesticada. No documentário José Bezerra: aulazinha com a madeira (de Malu Viana Batista), o escultor aponta para um pedaço de madeira no qual antevê a forma futura. Ele

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diz que trata-se de um bicho baleado, com a pata quebrada, cujos olhos procuram pelo caçador que o atingiu. O animal por vir, esculpido em madeira, assombrado pela sua desaparição violenta, procura pelo seu predador e nos interpela, exibindo uma queixa, ou melhor, um dano – para deslocar o conhecido termo empregado por Rancière – que não pode ser julgado unicamente pelo tribunal dos humanos. A forma que dura (como o escultor diz) não pode esquecer a violência que se abateu sobre os bichos um dia. O terreiro do escultor está povoado por uma matilha de animais que nos assombram, pois que reaparecem depois de mortos.

Figura 4 - O bicho baleadoFonte: José Bezerra: aulazinha com a madeira (Malu Viana Batista)

Ocorrem-nos aqui as palavras de Marie-José Mondzain, ao perguntar se as imagens não nos dariam energias xamânicas:

O animal “imageant” está no centro do homem pensante e, ao mesmo tempo, o priva de toda centralidade. Arrancar a imagem à

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animalidade, eis o que quiseram os pensadores cristãos ao aposta-rem no “homme imagé” contra o animal. O que eles ganharam em termos de reino e poder, perderam em força de indeterminação e liberdade. O cristianismo é a fundação antropológica da imagem em ruptura com a natureza inteira. Fazer do homem um caso de exceção, uma finalidade da criação divina. O que o poder ganhou com isso ele perdeu em convivência com os bichos e os deuses. Os xamãs sabem muito bem disso. (2011, p. 66-67).4

Em contraposição ao elogio da sensação (tantas vezes reduzida a uma dimensão subjetivista) ou das propriedades irredutíveis do objeto artístico, para outros povos e em outros contextos (não-euro-cêntricos), o que nós chamamos de experiência estética para eles ocorre em uma região da experiência que se avizinha das intensidades variáveis do cosmos. Aqui, como escreveram Deleuze e Guattari, o “ser de sensação” torna-se o “composto das forças não humanas do cosmos”, dos “devires não-humanos do homem” (1992, p. 236). Tais devires são bem reais, e não se confundem nem com os sonhos nem com os fantasmas, os autores destacam (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 18). E se se trata de vizinhança (entre os homens, os animais, os espíritos), ela não é apenas topológica, mas principalmente mole-cular, regida por intensidades e vibrações.

Não podemos aproximar, abruptamente, as formulações de Rancière e as de Deleuze acerca do sensível, sabemos bem. Apesar de reconhecer a dificuldade de desenrolar (em outra língua) o “novelo deleuzeano”, Rancière  puxa para si um fio que lhe permitirá afirmar que Deleuze se interessa pela estética não como disciplina, mas pela potência de pensamento que habita o sensível e que o excede em seu regime normal. Para Deleuze, o “ser de sensação” de que é feita a obra de arte (sobretudo moderna) vem rasgar o tecido da doxa (o princípio mimético que submete as obras ao regime representativo, definindo sua produção segundo certas regras), da figuração e da

4 Para resguardar a especificidade das noções criadas por Mondzain, optamos por não traduzir os dois termos, já que tanto “animal imaginante” quanto “homem imaginado” desvirtuam as ideias da autora. Seria possível adotar um neologismo e falar de “homem imageante” e de “homem imajado” (neste caso, a figura do Cristo, tal como surge na Encarnação), mas isso nos pareceu algo forçado.

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opinião para instaurar a imanência do pathos ao logos (2009, p. 509). Rancière  ressalta que, ainda que o pensamento-árvore ou o pensamento-seixo, ao desfazer a ordem da doxa, seja resgatado em um logos ou em organismo de novo tipo, Deleuze insistirá sempre no combate que a obra trava para fazer valer esse sensível puro ou incondicionado, capaz de por em crise – desfigurando ou desfa-zendo – sua forma orgânica. Gesto paradoxal, que sela o destino da estética, afirma Rancière, quando o pensamento acerca das regras de produção da obra dá lugar   a “um produto que se iguala a um não-produto, um consciente que se iguala ao inconsciente” (2009, p. 512).

Se Rancière se interessa pelo sensível, isso não se manifesta na atenção à gênese da sensação (em seus qualia) e na sua na passagem para as formas organizadas da percepção, tal como se dá quando a obra ou evento são experimentados pelos sujeitos. E Deleuze e Guattari, muito menos, também não militam por uma estética das qualidades puras, mas pelo devir que delas se apodera (1997, p. 108). Rancière, por sua vez, se interessa pelo deslocamento que um arranjo peculiar de uma forma sensível (que não se restringe às práticas da arte) introduz no regime que organiza as relações entre o visível e o dizível, e que, assim fazendo, prescreve os lugares, as identidades e as ações dos sujeitos. Essa dimensão do sensível, submetido a alguma forma de composição e organização no âmbito das obras e dos eventos conta muitíssimo, pois é dessa maneira que o sensorium da dominação pode ser confrontado (JDEY, 2013, p. 14).

Certamente, esse fio que Rancière puxou do pensamento deleu-ziano foi entremeado às suas próprias formulações. Ao caracterizar a racionalidade do “regime estético das artes”, Rancière afirma que ele possui uma complexidade que não pode ser simplesmente decretada pelo discurso filosófico, pois concerne tanto aos critérios imanentes da criação artística quanto às forças que inscrevem nas obras a marca do Outro: “respiração de uma sociedade, sedimentação da matéria, trabalho do pensamento inconsciente” (2002, p. 19). O regime esté-tico das artes é guiado por uma tensão entre dois pares de contrários: ao mesmo tempo em que identifica a potência da arte ao imediato

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de uma presença sensível, ele faz entrar na vida das obras o trabalho da crítica que as altera e lhes concede reescrituras e metamorfoses diversas; ele afirma a autonomia da arte e também multiplica a desco-berta de belezas inéditas nos objetos da vida ordinária, ou apaga a distinção entre as formas de arte e aquelas outras do comércio ou da vida coletiva.

Rancière afirma que os conceitos que designam o que é próprio da arte dependem de uma “mutação das formas da experiência sensível, das maneiras de perceber e ser afetado (2011, p. 10-11). Tais conceitos – que designam as condições de emergência da arte – formulam um modo de inteligibilidade das diferentes reconfigurações da experi-ência, denominadas “cenas do regime estético da arte”. Uma cena – o filósofo define– “é uma pequena máquina ótica que nos mostra o pensamento ocupado em tecer os liames que unem as percepções, os afetos, os nomes e as ideias, e a constituir a comunidade sensível que esses liames tecem e a comunidade intelectual que torna o tecido pensável”, já que, a princípio, o pensamento é sempre “um pensa-mento do pensável, um pensamento que modifica o pensável ao acolher o que era impensável” (2011, p. 12).

A singularidade das cenas estéticas constituídas pelas fotogra-fias de Suely Maxakali e de José Bezerra, tão fortemente marcadas pelos processos de expropriação e de violência que vem moldando perversamente a sociedade brasileira desde a sua fundação, consiste em afirmar a presença de um Outro – para retomar o termo de Rancière, mas nele destacando sua feição de múltiplo – que exige que o comum criado pelas imagens seja capaz de acolher não somente os sujeitos que habitam o espaço da pólis, mas as entidades não--humanas dotadas de agência – a natureza, os espíritos e os animais – tal como tem enfatizado as abordagens do perspectivismo ameríndio. Como tem destacado André Brasil, em diferentes filmes realizados por cineastas indígenas a cena fílmica se vê coabitada não apenas pela pluralidade dos homens (para lembrar os conhecidos termos de Hannah Arendt para definir a política), mas é alterada ou alienada – ora sutil, ora radicalmente – pela abertura que concede à multipli-cidade das formas de vida que vem habitá-la, transfigurando-a em uma cena cosmopolítica. Nesses filmes, o ser sensível das imagens

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ganha não apenas outras qualidades visíveis, mas se metamorfoseiam justamente porque são afetadas pelo invisível, num entrelaçamento entre duas máquinas, uma fenomenológica e outra cosmológica:

Em termos fílmicos, a forma como essas duas máquinas, fenome-nológica e cosmológica, se relacionam traduz-se de forma indire-ta, não mimética, pela relação entre o campo e o fora-de-campo – aqui definido simplesmente como aquilo que não está visível em cena, mas que nela incide. Em sua dimensão cosmológica, o fora--de-campo será um lugar contíguo à aldeia, abrigando contudo mundos outros, arriscados, habitados por animais-espíritos, por agências e potências não humanas da floresta (BRASIL; BELISÁ-RIO, 2016, p. 606).

A essa outra experiência sensível oferecida pelas imagens – capaz de abrigar humanos, animais e povos-espíritos no quadro fotográfico ou na cena fílmica – poderíamos chamar, quem sabe, de uma estética da hospi-talidade.

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REFERÊNCIAS:

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Capítulo 4

Crítica de Moda e Experiência Estética1

Renata Pitombo Cidreira

1. IntroduçãoEm recente colóquio internacional sobre moda2, uma das mesas

redondas suscitou o debate sobre a cobertura jornalística do mundo fashion e a ambiguidade dessas produções textuais que, ora transitam pelo âmbito pessoal da opinião, ora arriscam afirmações com pretensões objetivas, visando a universalidade. O fato é que ainda hoje uma inquie-tação persiste: É legítimo falar de crítica de moda no Brasil? Se sim, quais contornos ela tem? A que demandas essa crítica procura atender e em que ela difere da crítica de arte? Essas são algumas das questões que nos inquietam e vamos nos debruçar sobre elas, ao longo deste artigo.

Além do fato da moda fazer parte do nosso campo de pesquisa, acredi-

1 Trabalho originalmente apresentado ao Grupo de Trabalho “Comunicação e Experiência Estética”, no XXVI Encontro Anual da Compós, Faculdade Cásper Líbero, São Paulo - SP, 2017.2 12º Colóquio de Moda, 9ª Edição internacional. Unipê, João Pessoa, Paraíba, setembro de 2016.

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tamos que ela manifesta, de modo exemplar, essa dualidade que configura muitas das expressões contemporâneas, que envolvem, a um só tempo, funcionalidade e contemplação. Imersas no cenário da indústria cultural, até mesmo as expressões autorais da atualidade parecem não escapar da possibilidade concreta da serialização e da promessa do entreteni-mento. E, sem dúvida, a produção no campo da moda, e, especialmente, do segmento do vestuário, inscreve-se de forma radical nesse ambiente híbrido, em que consumo utilitário e deleite desinteressado se entrelaçam.

Por outro lado, tendo em vista as possibilidades expressivas da atua-lidade, procuraremos compreender o lugar da crítica, levando em conta seu papel na experiência estética. Entendemos que, por mais racional e objetiva que se pretenda, a avaliação do crítico está, de algum modo, rela-cionada ao juízo de gosto dos usuários, à sensibilidade e a uma situação cultural e histórica determinada. Mais que espaço de polêmicas, enten-demos a crítica como ambiência para disseminação de sentidos e possí-veis esclarecimentos sobre o papel dos valores em jogo na recepção das diversas expressões contemporâneas, incluindo aí o campo da moda. Para tanto, serão observadas a realidade sensível da obra, suas matizes, tessi-turas e costuras, investigando a inventividade de seus criadores, tendo em vista os procedimentos técnicos envolvidos, os quais definem, conjunta-mente, um estilo próprio.

2. Do julgamento espontâneo à crítica profissionalMarc Jimenez em seu livro O que é Estética? (1999) chama atenção do

leitor para o fato de que, em grego, a expressão krinein origina as pala-vras julgar, distinguir e critérios. Contudo, tal aproximação entre julga-mento e critério, numa interpretação de sabor iluminista, significa uma operação racional, mas não é disso que se trata. Nesse sentido, é possível duvidar da leitura que Jimenez faz da questão, ao defender que a crítica não é o apanágio dos peritos e dos eruditos, mas tarefa de todos aqueles que buscam a sabedoria. Quando ouvimos falar de crítica hoje pensamos no exercício profissional especializado, na avaliação em bases racionais e técnicas. Mas a sabedoria que os gregos tinham em conta não significava então conhecimento científico, mas acúmulo e refinamento da experiência prática. Dito de outro modo, não estava baseada em regras explícitas, mas

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em valores transmitidos implicitamente através de condutas concretas. O discernimento nos âmbitos da ética, da estética, da política não se exerce a partir de diretrizes declaradas, mas a partir de princípios que se exibem através de comportamentos. Trata-se, antes, de julgamento do que de crítica. Essa distinção nem sempre estabelecida nos parece um ponto de partida fundamental.

Nesse sentido, podemos tirar algumas conclusões dessas observa-ções: por um lado, compreender que a capacidade de julgar é algo que atinge a todos nós, indivíduos, e que se exerce de múltiplas formas; e que talvez, não haja uma separação tão nítida entre o fazer artístico e a ativi-dade crítica, uma vez que o julgamento que o crítico faz é em si também um fazer, uma atividade expressiva comunicante; e que o próprio artista também exerce seu julgamento ao produzir uma obra. Por outro lado, que a crítica que se pretende como uma atividade profissional vai, de certo modo, partir de alguns critérios visando estabelecer um julgamento justo sobre algo, sedimentado em aspectos objetivos.

É interessante observar que a crítica como atividade profissional vai se estabelecer em paralelo ao apogeu da produção artística e do próprio artista distanciado da categoria de artesão e do surgimento da estética enquanto disciplina. Como assinala Marc Jimenez “a estética e a arte tornam-se, no final do século XVII, vastos campos de investigação abertos ao exercício da crítica” (p. 105). A partir do século XVIII, em função da superação de uma noção técnica da arte, e da dissolução de uma poética normativa para as produções artísticas, o exercício crítico se impõe justa-mente para compreender as novas formas de configuração da experiência estética, e a conseqüente ampliação de horizontes de sentidos. E quais os contornos desse novo profissional? Um dos aspectos interessantes desta-cado por Jimenez é a função pedagógica da atividade crítica.

Dissemos que o árbitro das artes, o amador esclarecido que se permite julgar as obras alheias se institucionaliza e tem seu status aumentado: o crítico de arte é um profissional. Mas se julga seus contemporâneos, este crítico não é um juiz. Sua função é pedagógica. Consiste ela em instruir o profano, a dar a cada um uma parte do privilégio reservado anteriormente aos letrados, aos aristocratas, aos ricos burgueses e aos próprios artistas (JIMENEZ, 1999, p. 107-108).

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Considerado um dos maiores críticos do Brasil, conforme assinala Tristão de Ataíde3, Machado de Assis prezava o bom gosto, a sensibilidade receptiva e o respeito pela análise. Desse modo, a crítica se configurava como uma atividade indispensável e um gênero literário fundamental para o autor. Num texto de 1865, publicado originalmente no Correio Brasiliense, com o sugestivo título “O ideal do crítico”, Machado de Assis se interessa em apontar quais os critérios que o crítico profissional deve seguir. Embora estivesse pensando especificamente na crítica literária, podemos deslocar seus apontamentos para toda e qualquer crítica. Ciência e consciência são duas condições primordiais para o exercício da crítica; também a coerência, a independência e a tolerância devem guiar o crítico no seu fazer. Em suas palavras:

A crítica útil e verdadeira será aquela que, em vez de modelar as suas sentenças por um interesse, quer seja o interesse do ódio, quer o da adulação ou da simpatia, procure produzir unicamente os juízos da sua consciência. (…) Sem uma coerência perfeita, as suas sentenças perdem todo o vislumbre de autoridade, e abatendo-se à condição de ventoinha, movida ao sopro de todos os interesses e de todos os capri-chos, o crítico fica sendo unicamente o oráculo dos seus inconscientes aduladores. (…) O crítico deve ser independente, — independente em tudo e de tudo, — independente da vaidade dos autores e da vaidade própria. (…) É preciso que o crítico seja tolerante, mesmo no terreno das diferenças de escola: se as preferências do crítico são pela escola romântica, cumpre não condenar, só por isso, as obras-primas que a tradição clássica nos legou, nem as obras meditadas que a musa mo-derna inspira (ASSIS, 1959, p. 812-813).

Para o escritor, enfim, a crítica deve minimamente seguir esses crité-rios e tem como dever meditar profundamente sobre a obra que pretende avaliar, “procurar-lhe o sentido íntimo, aplicar-lhe as leis poéticas, ver enfim até que ponto a imaginação e a verdade conferenciaram para aquela produção” (ASSIS, 1959, p. 812). Machado de Assis acredita que, assim, as observações do crítico tanto vão servir à obra concluída, como àquelas

3 Em texto publicado originalmente na Revista do Brasil, 3ª fase, nº 12. Rio de Janeiro, junho de 1939. Consultado em versão publicada em Machado de Assis. Obra completa. Volume III. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar Ltda, 1959, p. 793-797.

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ainda em gestação. “Crítica é análise, — a crítica que não analisa é a mais cômoda, mas não pode pretender a ser fecunda” (ASSIS, 1959, p. 812).

Como podemos perceber, Jimenez e Machado de Assis concordam em privilegiar a condição pedagógica da crítica, uma vez que esta deve servir tanto para o autor da obra e seus colegas artistas, sobretudo ao levantar considerações de cunho poético, que dizem respeito, particularmente, ao modo de produção da obra; quanto para o público que pode ser informado sobre determinados aspectos da obra, antes reservados apenas aos ‘conhe-cedores’ do métier. Até aqui, podemos reconhecer que, geralmente, são os aspectos poéticos que são privilegiados em detrimento dos aspectos esté-ticos. Reivindicamos que a sensibilidade, os valores implícitos, também sejam considerados numa avaliação crítica, contemplando a dimensão social, o alcance político e econômico, entre outros aspectos da produção em questão, na relação com seu público.

3. A crítica no jornalismo culturalEm artigo intitulado Crítica de moda: entre o entretenimento e a arte,

publicado no livro Interfaces Comunicacionais (2014), refletimos sobre o papel da crítica no jornalismo cultural, levando em consideração que tanto a crítica quanto o jornalismo estão circunscritos a um mercado que constantemente reorienta demandas, públicos etc. Como assinalamos, não podemos desconsiderar o papel do jornalismo e, sobretudo, do jornalismo cultural como elemento mediador e, por vezes, constituinte do próprio campo da cultura, bem como dos campos da produção e do consumo, nos quais a moda está inserida, muitas vezes protagonizando mudanças significativas nos gostos e comportamentos. Nesse sentido, o jornalismo cultural e a crítica são responsáveis por configurar critérios de relevância, gosto e valor que afetam a produção e o consumo social de produtos.

Avaliando o cenário nacional, pudemos observar que

O jornalismo cultural, no Brasil, se expande no final do século XIX, através de nomes como Machado de Assis, José Veríssimo, Sílvio Romero, entre outros. Vale ressaltar que a conquista de espa-ço para crítica cultural nos periódicos diários vai se dar de forma gradual; como observa Sérgio Luiz Gadini (2009) tal incorpora-ção vai ocorrer “(...) ao ritmo das demandas e da emergência de

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públicos consumidores, associado ao fortalecimento das cidades e da própria indústria cultural” (p.248). Além de críticas de obras literárias, percebe-se que o jornalismo cultural começa a promover observações sociais, instigar polêmicas políticas e fazer avaliações de obras de arte. “O crítico cultural agora tinha de lidar com ideias e realidades, não apenas com formas e fantasias”, observa Daniel Piza (2004, p. 17). Durante o século XX, a maior representativida-de do jornalismo cultural vai acontecer entre os anos 40 e 60, com destaque para nomes como Álvaro Lins, Antonio Callado, Sergio Buarque de Holanda e Otto Maria Carpeaux, este último um mes-tre do ensaio curto, que soube refletir sobre a literatura e a cultu-ra brasileiras como ninguém. Também são deste período talentos como Paulo Francis, Carlos Heitor Cony, Ruy Castro, Nelson Ro-drigues (CIDREIRA, 2014, p.223).

No século XXI, frente às transformações no jornalismo, bem como a potência da Internet, o jornalismo cultural vem sofrendo alterações, assu-mindo novas perspectivas. Sobretudo no Brasil, há uma noção de crise vigente no jornalismo cultural que tem tido dificuldade em escolher bem o que noticia, premido pela agenda cultural. Na verdade, desde o início da década de 1990, como observa Marcelo Lima (2013), “o avanço da cultura do entretenimento, a supremacia das mídias eletrônicas no Brasil e, no final do decênio, a consolidação das novas mídias, sinalizavam para o enfraquecimento do veículo impresso” (p. 12). O autor ainda comenta que a aversão à critica tornou-se mais visível na década de 1990, com a ampliação da indústria cultural brasileira e pela grave crise das empresas de comunicação. Cada vez mais se exigia ressonância entre o que era publicado e o grande mercado da indústria cultural, levando em contra critérios como atualidade ou notoriedade. Diante desse novo cenário que começa a se delinear, torna-se cada vez mais complicado o exercício da atividade crítica e o reconhecimento do papel desse profissional. No entanto, acreditamos que é preciso continuar insistindo no fato de que “(...) a imprensa cultural tem o dever do senso crítico, da avaliação de cada obra cultural e das tendências que o mercado valoriza por seus interesses, e o dever de olhar para as induções simbólicas e morais que o cidadão recebe”, diz Piza (2004, p. 45).

Um dos motivos da incapacidade de produção de uma boa crítica é a

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forte associação dos suplementos ou cadernos culturais à agenda ou às notícias quentes, ignorando certas especificidades do jornalismo cultural e igualando-o aos outros. Como ponderam alguns autores, a exemplo de Gadini (2009), conferir à cultura o mesmo status jornalístico da polí-tica e da economia foi, sem dúvida, um avanço, mas algumas deforma-ções ocorreram, sendo a mais lamentável a “dominante lógica do furo” jornalístico. Como se sabe, o jornalismo cultural requer o enfrentamento de uma série de questões; ao invés de ser um segmento fácil e simples, defronta-se frequentemente com uma infinidade de polarizações, que, por vezes, ocasionam muitas dificuldades no tratamento dos assuntos. É neste cenário, movediço e ainda carente de problematizações, que este artigo procura situar a moda no jornalismo cultural, e, particularmente, a crítica de moda.

A partir do final dos anos de 1990, a moda, bem como outros assuntos que não dizem respeito ao universo das artes ou mesmo ao meio inte-lectual, passam a ser acolhidos pelos cadernos culturais, uma vez que pertencem ao universo cultural. Como explicita Gadini citando Buitoni:

Para muitos, um conceito contemporâneo de jornalismo cultural deve abranger um universo amplo de práticas que não se restringe às artes consagradas ou às artes de massa. Assim, quadrinhos, culi-nária, manifestações religiosas, grafites, paisagismo, arquitetura, fotografia, rodeios, design, bordados, videogames, tudo é passível de ser objeto do jornalismo cultural. Todavia, as artes ‘consagradas’ ainda servem de referência quando se fala em jornalismo cultural (BUITONI apud GADINI, 2009, p. 246).

Tais temas, certamente, encontram-se vinculados às reflexões sobre comportamento, hábitos sociais, aspectos da realidade que interferem no cotidiano do leitor. O trabalho desse mediador, o crítico cultural, ao emitir avaliações sobre produtos e expressões artísticas as mais diversas, interfere na própria dinâmica da história cultural.

4. A crise da crítica (de arte)No âmbito da arte, desde a década de 1970, pelo menos, experimenta-

-se uma certa crise da crítica ou, talvez, fosse melhor dizer que havia

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naquela época uma rejeição à crítica. Tal recusa se baseava, por um lado, na própria tendência artística em diluir-se e identificar-se com a vida ordinária e, portanto, na recusa de qualquer tipo de análise poética; por outro lado, na desconstrução da noção de arte, que passa a ver-se como uma crítica de grau superior, em sua capacidade de discutir seus próprios limites. De todo modo, ainda que os contornos da produção artística atual sejam outros, parece que vivenciamos ainda uma crise da crítica.

Se na década de 1970 o mais plausível era a reivindicação da incor-poração da crítica na própria produção artística, dispensando, assim, a atividade posterior do crítico, na atualidade parece haver uma inversão: é a crítica que absorve as funções da arte e gera os objetos artísticos. Como pondera o crítico de arte italiano Lorenzo Mammi (2012), “(...) o papel do crítico e do curador por vezes tem mais destaque que o do próprio artista”(p. 19). Nesse sentido, constatamos que o que faz uma obra de arte hoje não se encerra na sua feitura, mas se estende as modalidades de sua exposição. Por isso mesmo, talvez a avaliação crítica sinta-se deslo-cada ou seja impelida e se reinventar levando em conta novos aspectos. De fato, concordamos com Mammi quando afirma que “a autonomia da arte perdeu força, a obra tornou-se campo de embate de diferentes planos de discursos – teorético, ético, estético. Mas não fomos eximidos de emitir juízos” (p. 27), ou melhor, de emitir avaliações.

Ainda que alguns críticos de arte, como sustenta Clement Greenberg (2002), tenham se dispensado em apontar o que é bom ou ruim, reser-vando esta tarefa aos resenhistas; ou mesmo que façam avaliações posi-tivas quanto mais ilegível consideram uma obra de arte, o que nos aponta para um sintoma de crise, parece-nos necessário esclarecer que uma coisa são os juízos de valor e outra seria a avaliação de uma obra, como já assi-nalamos ao distinguir julgamento de crítica no segundo item desse texto.

Toda e qualquer experiência estética inclui um gostar ou um não gostar, que tem relação com o que consideramos belo e essa capacidade é um julgamento; logo, a experiência estética consiste em criar juízos de gosto e todos nós estamos nela concernidos. No entanto, a crítica não se reduz a um juízo de gosto, embora parta dele e dele não possa prescindir, mas é preciso considerar que a atividade crítica deve ir além do gosto e estabelecer uma avaliação que considere os aspectos dinâmicos do fazer artístico, sua conexão entre forma e conteúdo, sua unidade plástica e de

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sentido, na correlação com seu espaço e tempo. Como afirma Greenberg,

O juízo estético é espontâneo, involuntário, está à mercê de seu objeto como toda intuição; não envolve deliberação nem reflexão. (Avaliação, apreciação – se é que há como distingui-las do juízo – só podem surgir após o fato e dependem da revisão do juízo que já ocorreu: é desse modo que avaliamos a produção global de um artista). Mais uma vez, a experiência estética consiste em juízos de valor intuídos, e não ponderados (2002, p. 114).

Quem melhor explicita essa distinção é o pesquisador Monclar Valverde (2007), ao afirmar que existe uma clara diferença entre juízo de gosto e juízo crítico, batizando de valoração estética e avaliação artís-tica, cada uma dessas instâncias, respectivamente. A valoração estética seria justamente a capacidade que todos nós temos de julgar a beleza de algo, inclusive de uma obra de arte, de forma espontânea; já a avaliação artística, atividade do crítico, por excelência, incluiria um engajamento reflexivo consciente, tendo alguns parâmetros explícitos como critérios de análise. Como esclarece o autor, reportando-se a Pareyson:

(...) haveria, entre a atitude do espectador comum e aquela do crí-tico, uma verdadeira mudança de regime, em que a espontaneidade da contemplação daria lugar a um processo intelectual e metódico de reflexão. Não se trata, porém, de opor a sensibilidade do públi-co ao pensamento do crítico, mas de reconhecer que, na atividade espiritual, espontaneidade e reflexão são sempre antitéticas e, por isso, sucessivas, enquanto pensamento e sensibilidade podem ser simultâneos (VALVERDE, 2007, p. 291).

Nesse sentido, partilhamos com Valverde a concepção de que a avaliação procura julgar se a obra efetivamente atingiu seu êxito, através do efeito provocado no espectador. “A crítica pode acrescentar ainda a avaliação minuciosa do quanto ela é bela e a explicação histórico-analítica de como ela resultou assim tão bela, a partir dos materiais, (...) e técnicas adotados pelo criador” (VALVERDE, 2007, p. 293).

Feitas essas considerações, gostaríamos de salientar que a crítica faz parte da experiência estética. Ao sermos afetados por algo, temos uma necessidade de falar sobre esse sentimento e também queremos que o

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outro compartilhe o que sentimos, reiterando-se, assim, uma comunicabi-lidade afetiva originária. Embora a necessidade de traduzir num discurso o que sentimos não seja exatamente o papel da crítica, podemos consi-derar que o exercício crítico procura esclarecer por que e como a obra suscita esse ou aquele sentimento.

Mesmo em crise, talvez a crítica esteja no seu elemento mais genuíno, uma vez que a própria etimologia da palavra crise, em grego, remete-nos à discernimento, sugerindo-nos o confronto com situações que suscitam problemas e que exigem avaliação, e, portanto, possibilidades de reno-vação. Como pondera o crítico de arte e também professor de estética e história da arte, Luiz Camillo Osorio, mesmo que não seja possível negar a crise da crítica, isso não significa que ela tenha se tornado indiscrimi-nadamente indispensável. Para o autor, é “função primordial da crítica procurar compreender as transformações da arte, seus novos processos e materializações, dando voz a manifestações poéticas ainda indefinidas e hesitantes” (OSORIO, 2005, p. 13), além de “tentar responder às demandas de sua época, (...) procurando abrir e disseminar, de dentro destas regiões de ressonância, novos espaços de produção e circulação para a arte” (OSORIO, 2005, p. 13).

Remetendo-se ao argumento de Argan, Lorenzo Mammi (2012), por sua vez, amplia o debate, ao convidar-nos a pensar que fazer a crítica de uma obra “significa reconhecer o lugar, a colocação e o valor dela numa cultura, e [que] a obra de arte é um objeto histórico por excelência” (p. 21). Nesse sentido, parece que concordamos em destacar a ideia de que o papel da crítica está em ir além da análise dos aspectos poéticos envol-vidos numa obra, devendo, sobretudo, avaliar como ela dialoga com seu tempo e observar seu impacto na vida das pessoas.

5. A crítica de moda e seus deviresSe por um lado, a crítica de arte visa compreender e julgar cada obra

de arte na sua inconfundível singularidade, penetrando a fundo no ato estético-criativo, visando uma avaliação com caráter de universalidade, por outro lado, não há como destituí-la da pessoalidade do crítico, pois ela advém de uma subjetividade que não há como apagar. No entanto, para que a mesma tenha um caráter de validade universal, o crítico deve ser

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capaz de converter suas predileções em um órgão de percepção sensível em direção a sinceridade, pois “(…) quando deixa que sua forma especial e seletiva de resposta endureça em um molde fixo, ele fica incapacitado até para julgar as coisas para as quais sua predileção o atrai” (DEWEY, 2010, p. 547).

Como já assinalamos em outro momento (em artigo publicado na Revista Dobras, intitulado Moda e Crítica4), um dos aspectos que mais chama nossa atenção na ainda frágil crítica de moda no Brasil é justa-mente o excesso de pessoalidade, ou então, a adoção de uma escrita total-mente impessoal. Na pesquisa que temos desenvolvido nesse campo desde 2015, verificamos que, em grande medida, os textos que se aproximam de uma crítica exageram na exibição das preferências pessoais do crítico ou simplesmente não se configuram como uma crítica, mas sim como um texto jornalístico, que traz informação e não avaliação.

Assim como o crítico de arte deve reconhecer e fazer reconhecer a obra de arte enquanto tal, entendemos que a crítica de moda deve “repercorrer o processo da interpretação no ato de interrogar a obra sobre o seu íntimo significado, descrevendo a compreensão que atingiu e as revelações recebidas” (PAREYSON, 1993, p. 261-262). Como já mencionamos, muito mais do que o artista, o crítico se vê diante de um objeto palpável, exteriorizado, que tem suas características internas e cabe a ele procurar entender como se deu aquela composição, ou seja, como se efetuou a harmonia entre a matéria e a forma. É nesse sentido que a crítica não deve ser nem um esforço de classificação dos objetos ou mesmo de teorização dos mesmos, e sim uma busca do reconheci-mento da unidade estética. E desse modo, deve procurar compreender de que modo aquela expressão nos afeta, nos toca, nos sensibiliza.

A fragilidade da crítica de moda já vem sendo apontada por alguns pesqui-sadores e jornalistas. Eduardo Motta, por exemplo, acredita que um dos fatores que impede o amadurecimento da crítica no Brasil é a ainda pequena presença da produção de uma moda autoral no país. “A marca autoral supos-tamente define o campo em que atua. Na medida em que ela põe em jogo questões que estão além do ordinário é que entra na mira do interesse crítico” (2013, p. 139). O autor vai mais longe, afirmando que a ausência da crítica

4 Ver em CIDREIRA, Renata Pitombo. Moda e crítica In Revista Dobras. São Paulo: Estação das Letras e Cores, outubro de 2014, p. 64-69.

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impede o amadurecimento da moda como atividade e sua evolução enquanto forma de expressão.

Também o jornalista Pedro Diniz concorda que a crítica de moda no Brasil se exerce de uma forma muito tímida e observa que o excesso de opinião é um dos problemas a ser enfrentado. Aqui cabe reiterar que o crítico deve pensar por si mesmo, mas também deve saber se colocar na posição dos outros e levar em conta esse “nós” que, de certa forma, ajuíza e que modela o gosto de uma comunidade, de uma época. Outro aspecto destacado por Diniz deve-se ao fato de que é preciso se dar conta, ainda, da falta de conhecimento do setor pelos profissionais que escrevem sobre moda. “Todo mundo acha que pode cobrir um evento de moda, que é algo fácil, que não é necessário um conhecimento prévio sobre história da moda, aviamentos, tecidos, o processo criativo dos estilistas etc”. Esse é um problema a ser enfrentado de forma séria para o fortalecimento do campo da moda de modo geral e da crítica de moda, especificamente.

Outro aspecto que nos parece merecer destaque é o fato de que o campo da moda não se dê conta das suas especificidades enquanto forma de expressão. Enquanto produto cultural a ser analisado, é preciso ressaltar que, em geral, sua plataforma de exibição é, sobretudo, o desfile. É ele o objeto da atenção e escrita crítica. Nesse sentido, não podemos desprezar a importância dessa plataforma, uma vez que se deve levar em conside-ração tanto o espetáculo em que se dá a apresentação das vestes, quanto as roupas enquanto tais. Logo, são dois movimentos que a análise exige, pois abarcam o evento em sua integridade.

Sobretudo a partir da década de 1990, os criadores de moda, inspi-rados em performances dadaístas e provocados pela arte performática dos anos 1960 e 1970, passam a produzir desfiles de moda espetaculares, chamados por alguns de “teatro sem trama”, como assinala a curadora Ginger Gregg Duggan (2002). Mas o fato é que os desfiles têm uma longa história. Encontramos registros desta arte performática, na apresentação das coleções de grandes criadores desde o início do século XX, quando as manequins vivas passam a ser incorporadas na exibição das coleções dos costureiros. Em pleno século XXI, o formato desfile continua atestando a sua potência, como o grande meio de exibição das coleções e a melhor forma para dar visibilidade às novas tendências.

Nesse sentido, o crítico de moda precisa estar atento ao momento do

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espetáculo, levando em conta cenário, iluminação, música, espaço esco-lhido e a maneira como as modelos exibem a roupa que portam nessa grande cena. Não basta descrever cada peça e tentar elucidar, a partir do conjunto das vestes, a unidade da coleção; é necessário ir além, contex-tualizando o modo como cada uma das roupas aparece, segundo o modo como os corpos vestidos as exibem. De todo modo, é curioso perceber que, nos desfiles, dificilmente as roupas são apresentadas em situações corriqueiras, em episódios do dia a dia; em geral, as cenas nos reportam a mundos imaginários ou a contextos especiais, já sugerindo, assim, uma suspensão da vida ordinária, para um momento de fantasia, e, quem sabe?, de êxtase.

Outra dimensão que gostaríamos de ressaltar é o hibridismo dos arte-fatos da moda. A roupa e seus adereços são, a uma só vez, objetos utilitá-rios, que cumprem a função de cobrir e proteger o corpo, e objetos dados à contemplação, visando o deleite do olhar de quem a porta e do olhar de quem a aprecia. Nesse sentido, questionamentos que apresentam a moda numa polaridade entre produto e arte, consumo e fruição, não se sustentam. Sabemos desde a década de 1960, através das inúmeras contribuições de pesquisadores que refletiram sobre a cultura de massa e a indústria cultural, que o consumo e os objetos passaram a satisfazer desejos simbó-licos e imaginários, além das necessidades básicas. Os objetos deixam de estar ligados a uma função ou a uma necessidade definida e passam a ser elementos significativos, conforme assinala, entre outros, Jean Baudrillard (1981). Da mesma forma, com a reprodutibilidade tecnológica, a perfor-mance, as instalações e outras tantas intervenções, a própria noção de arte se expandiu e deixou de atender à expectativas apenas contemplativas, reconhecendo e integrando a interatividade e a operacionalidade.

Desse modo, a moda passa a ser vista não apenas como objeto de consumo, mas como um fenômeno que interfere no comportamento das pessoas e é capaz de provocar uma atitude contemplativa, o que justificaria sua aproximação com o campo artístico e também com o campo do design, uma vez que hoje falamos em designers de moda. Tal expressão procura dar conta, justamente, desse caráter híbrido do campo da moda, que neces-sita ter preocupações mais sistêmicas, planejamentos consistentes, anco-rados em demandas e movimentações do mercado e aqui estaria contida a dimensão do desígnio, do projeto envolvido na palavra design. Mas também

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não podemos perder de vista o desenho, a forma e, portanto, uma certa plasticidade que solicita um modo de formar que se revela num estilo.

Assim, o designer de moda aparece como figura emblemática que nos incita a pensar a especificidade desse traçado, que opera, a uma só vez, na esfera de uma certa praticidade, pois a vestimenta deve ser utili-tária, adequando-se às formas corporais e seus movimentos possíveis e no âmbito do exercício da imaginação, do deleite da contemplação, da fruição do belo. Por isso, ele busca a harmonia das formas, capaz de promover mudanças poéticas e estéticas, remodelando costumes e modi-ficando papéis sociais.

6. Uma ilustração, à guisa de conclusãoEm nosso incipiente empenho crítico, estamos há exatamente um

ano exercitando a crítica de moda, assinando mensalmente a coluna Pensando Moda, no Portal A Tarde. Concordando com as observações de Luiz Camillo Osorio (2005), apesar de reconhecermos a crise atual da crítica jornalística e do próprio jornalismo cultural, como já apontamos, tentamos encontrar novos espaços e formas de abordagem dos fenô-menos, alinhados ao âmbito da internet e suas conexões, reorientando nossa escrita e nossa reflexão, em busca de novas reverberações. Nesse espaço, procuramos, a cada vez, analisar algum produto do universo fashion, apontando características poéticas, ou seja, os procedimentos e os materiais utilizados na dinâmica do fazer, mas procuramos também dar conta da dimensão e da relevância histórica, social, econômica e política do produto em questão, para entender como ele nos afeta. Tendo como guia princípios já elencados aqui, mas também uma grade de relações que cada objeto sugere, tentamos observar em que medida a obra ou objeto se sustenta, a partir de um processo que alcançou êxito.

Para tanto, abraçamos a perspectiva pareysoniana que defende como único critério para julgar uma obra (de arte) a própria obra, “de maneira que a obra é factível e avaliável somente com base na sua própria lei, ou seja, em sua própria ‘poética’ interna”(p. 249). É a partir dela que os próprios critérios passam a ser acionados, levando em conta os valores vigentes no campo da arte e na própria comunidade. Ao mesmo tempo em que o crítico deve aproximar-se do momento de execução da obra, procu-

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rando compreender sua dinâmica entre forma formada e forma formante5, em que fantasia e intuição se manifestam, também deve ter uma consci-ência reflexiva de suas próprias operações, servindo-se do patrimônio da cultura a seu dispor.

Ao analisar o desfile da estilista paulista Fernanda Yamamoto, que fez parte da 42ª edição da São Paulo Fashion Week, realizado no espaço da Pinacoteca, museu mais antigo da cidade, no dia 25/10, lançamos nosso olhar sobre os aspectos produtivos, como os materiais utilizados e as técnicas envolvidas, bem como procuramos contextualizar a criação da designer, resumindo sua história, suas linhas gerais e estabelecendo uma relação entre a obra e algum aspecto da realidade. Levamos em conta, ainda, o próprio desfile como modo de exibição das peças, argumentando sobre a coerência cênica em relação ao produto exposto, explicitando a ambiência, a música e a escolha dos artefatos presentes no ato. Além disso, seguindo as sugestões do jornalista Daniel Piza (2004), tentamos escrever um texto sintético e cromático, capaz de suscitar a reflexão do nosso leitor, de proporcioná-lo prazer no ato da leitura, “por sua argúcia, humor e/ou beleza” (p. 72), constituindo-se, assim, como uma “peça cultural” em si mesma.

A expectativa foi provocar o interesse do leitor pela coleção de Yama-moto, ao trazer informação e uma interpretação possível sobre o produto; bem como estimular a quem viu o desfile e conhece as peças, a se sentir atraído pela maneira como o nosso olhar modulou a percepção da obra. Procuramos, assim, propor algo para o autor da obra e seus colegas artistas, ao tecer considerações de cunho poético, que dizem respeito, particular-mente, ao modo de formar da obra; e para o público que foi informado sobre determinados aspectos da obra, até então só conhecidos pelo artista e seus colegas do campo, além de ser contemplado com observações que procuraram dimensionar o alcance social, e até mesmo as preocupações econômicas, entre outros elementos da produção da estilista.

Declaramos nossa satisfação com a coleção, à medida que reconhe-

5 Pareyson utiliza essas duas expressões para se referir à dinâmica do processo artístico. Para ele, o processo traz em si mesmo sua própria direção; é orientado pelo presságio da obra que deseja realizar. “(…) a forma, além de existir como formada ao termo da produção, já age como formante no decurso da mesma. A forma já é ativa antes mesmo de existir; dinâmica e propulsora antes mesmo de conclusiva e satisfatória” (1993, p. 75).

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cemos o seu êxito, e, assim, experimentamos, neste gozo, o gosto como um modo de aproximação com a obra, manifestando opções e preferências, que acabam por criar uma certa expectativa sem, no entanto, tornarem--se critérios de juízo; procuramos fundamentá-la, situando o leitor em relação ao trabalho da designer, identificando uma poética particular, ou como designa Pareyson (1993), um ‘programa’ de arte; além de transmitir um ponto de vista sobre um aspecto da vida, a partir da dinâmica do tempo, da importância do trabalho manual e da apologia da rica simpli-cidade, através da moda. Também procuramos refletir sobre a escolha da designer como uma resposta ao momento contemporâneo e aos valores que lhe são conferidos, verificando como a moda em algumas das suas manifestações, ainda que, ou, justamente porque, inserida na dinâmica da indústria cultural, mercadológica, também pode suscitar uma experiência estética, promover questionamentos sobre as condutas de cada um de nós e provocar mudanças.

Minimalismo elaborado: o inverno de Fernanda Yamamoto6

Renata Pitombo CidreiraNum momento em que o excesso, o exagero, o extravagante, a mistura e

o espetacular prevalecem como valores da vida contemporânea, o desfile da estilista Fernanda Yamamoto chama atenção justamente por ir na contramão dessa tendência que elege o bordão “quanto mais, melhor” como sua grande máxima ou mesmo da apologia da beleza inspirando loucas exigências. Seu trabalho reafirma, assim, que a beleza pode estar na contenção. Afinal, como afirma Jean Galard, o belo é incompatível com o projeto de sua exibição.

Assim, podemos batizar a última coleção da estilista Fernanda Yama-moto, apresentada na 42 edição da São Paulo Fashion Week (SPFW), no espaço da Pinacoteca, museu mais antigo da cidade, no dia 25/10, às 10h, como uma espécie de minimalismo elaborado. O desfile transcorreu ao modo clássico, com apresentação dos looks de forma pausada e sóbria, ao som de uma trilha também intimista, a partir de três instrumentos acústicos: sanfona, violino e flauta.

Recorrendo a poucos elementos e apostando no corte austero da alfaia-

6 Texto publicado no facebook do Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura, em 27 de dezembro de 2016. Ver link: https://pt-br.facebook.com/GrupoDePesquisaCorpoECultura

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taria, Yamamoto exibe 20 peças repletas de sentido e beleza com o mínimo de recursos. Roupas estruturadas e a prevalência da cor preta, associada a tons de cinza reiteram o minimalismo que integra a coleção. Não por acaso, a associação com o movimento artístico minimalista, surgido na década de 60, cujo objetivo era justamente alcançar um purismo funcional e apro-ximar-se da ideia de síntese.

A busca pelo essencial talvez seja uma das marcas mais fortes do trabalho de Fernanda Yamamoto e que lhe confere sua identidade e o estilo das suas roupas. No mercado desde 2007, a estilista paulista combina materiais nobres, técnica artesanal e uma preocupação grande com a modelagem, num mix de simplicidade e elaboração. E nesta coleção de inverno mais uma vez o consumidor pode experimentar esse traço, o que vem delineando um caminho formativo consistente: “Este é um trabalho que fala novamente das questões que considero as mais pertinentes para os dias de hoje: o tempo, o trabalho manual, as relações humanas e o que está por trás da superfície, do aparente”, diz a estilista.

Apesar da procura pelo essencial, o mesmo não se exime da riqueza e complexidade, sobretudo no trabalho de modelagem. Ela segue caminhos sinuosos ao longo das peças inspiradas na alfaiataria clássica masculina, mas de uma forma completamente desconstruída. O trabalho do modelista Fernando Jeon foi exatamente o de desconstruir o que seria uma alfaiataria esperada. Além disso, a preocupação com a sustentabilidade também esteve presente, através de técnicas de upcycling, com reaproveitamento de tecidos, na elaboração das peças apresentadas, bem como na produção das acomo-dações do público: bancos feitos de papelão.

Preocupada tanto com o processo formativo, quanto com o resultado final, a estilista traduz na sua poética uma originalidade fincada no trabalho arte-sanal. A risca de giz, feita de fio de nylon encapado com linha, é tudo menos uma linha reta. Materiais inusitados também apareceram bastante nesse desfile de Fernanda Yamamoto: o crinol – que é invisível na crinolina que arma a saia -, a reunião de ourelas (a barra da fazenda) de tecidos diversos que seriam descartadas (num trabalho conjunto com Augustina Comas), os bordados com borrachinhas e ruelas (em parceria com Natália Rios) e até renda a renascença feita com cordão de couro. Outro destaque das peças foi a transparência. Chamou também atenção a ausência de acessórios na composição dos looks, reforçando a poética minimalista.

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Com esse desfile a estilista prova que mesmo num universo repleto de tecnologia e recursos os mais diversos, menos ainda pode ser mais! Na vida, na arte e na moda!

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REFERÊNCIAS:

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Parte 2: Regimes Sensíveis

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Capítulo 5

Quando o Cinema se Faz Vizinho1

Érico Araújo Lima

A vida não é uma sucessão de lanternas de carruagens dispostas em simetria; a vida é um halo luminoso, um invólucro semitrans-parente nos envolvendo dos primórdios da consciência até o fim.

Virginia Woolf. Ficção moderna.

1. Relações de vizinhançaEm uma publicação intitulada Vocabulário político para processos

estéticos (2014), um conjunto de artistas e críticos de arte propõe breves caracterizações de palavras importantes para seus trabalhos. Valeria destacar aqui um dos momentos dessa publicação com espécies de verbetes situados no entremear da estética com a política. A palavra “Vizinhança” é assim descrita por Enrico Rocha:

1 Texto originalmente apresentado no Grupo de Trabalho em “Comunicação e Experiência Estética”, no XXV Encontro Anual da COMPóS, na Universidade Federal de Goiás, em Goiânia, 2016.

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A partir do seu lugar, possivelmente, você perceberá o lugar do outro. Sua reação pode ser de quem reconhece uma ameaça, o mundo pode estar cheio delas; ou um vizinho, o mundo pode ser uma imensa vizi-nhança. Diante de uma ameaça, não há muito o que fazer, ou você foge dela ou você a enfrenta, geralmente com violência. Em uma relação de vizinhança, você negocia o que é comum, as aproximações e também as distâncias necessárias. Aqui, a vizinhança poder ser considerada o lugar que você mora, a cadeira do ônibus que você compartilha, a rua que você ocupa em dias de manifestação etc. Bom pensar que uma boa política de vizinhança deve partir de relações recíprocas. Bom acredi-tar que entre a guerra e a diplomacia colonizadora há outras relações de vizinhança possíveis. Em qualquer escala (ROCHA, 2014).

Desde já, esse mote que Enrico Rocha nos traz é bastante instigante para pensarmos os modos de compor uma vida em comunidade em nosso presente. Uma vizinhança pode se constituir segundo diferentes maneiras. De imediato, pensamos em um sentido bem cotidiano que essa palavra pode adquirir em nosso vocabulário. Percorremos uma vizinhança, ao perambular pelas redondezas de parcelas contíguas de uma cidade, ao desenvolver relações entre aqueles que moram por perto, ao experimentar as possibilidades de circulação e de trocas que podem ser ou não viabili-zadas pela arquitetura das casas de uma mesma imediação. Estamos aqui, primeiramente, diante de um enfoque geográfico, que concerne aos modos de fabricar territórios, de torná-los moventes, relacionais e porosos.

Caminhando junto a essa dimensão espacial, a palavra vizinhança implica também um gesto, o de um avizinhamento, um esgueirar-se para estar próximo – reconhecendo também as distâncias necessárias –, um princípio articulador dos heterogêneos, para tornar possível uma relação entre mundos antes não colocados em coexistência. Avizinhar-se é uma dessas faces que pode estar contida quando invocamos a investigação de formas de vizinhança. Trata-se, poderíamos dizer, de um possível gesto constituinte da vida coletiva, e que queríamos, mais especificamente, explorar como um operador da escritura fílmica, dos seus procedimentos de mise-en-scène e de montagem.

Falar de vizinhança teria, então, uma oscilação entre lugar e gesto. Essa palavra nos confere um vocabulário do espaço para considerar a dimensão sensível e ética implicada em modos de morar. Se a vizinhança não é

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apenas o exterior, as redondezas de um lar, a concretude de um bairro e de casas contíguas, ela será aqui também uma postura, uma maneira de elaborar proximidades e distâncias. Para indicar, mais claramente, o campo sensível que nos mobiliza a propor essa discussão sobre relações, forças e formas de vizinhança, devemos dizer de nosso especial interesse em articular essas proposições à escritura fílmica de A vizinhança do tigre (2014), de Affonso Uchoa2.

Junim, Neguim, Menor, Eldo e Adílson são os personagens filmados em meio a suas circulações pela região do bairro Nacional, em Contagem, Minas Gerais. Aqui estamos diante de uma montagem que nos apresenta fragmentos das vidas dos jovens, que a escritura do filme organiza como que por conste-lações, sempre transitando de uma a outra, sem uma dominância narrativa, mas, sobretudo, atenta à fulguração de cada encontro, de cada interação entre os personagens, e entre eles e os espaços habitados. A geografia é perscru-tada no mesmo movimento em que é inventada pelo gesto da relação. Na vizinhança entre quem filma e quem é filmado, e na “cumplicidade escritural entre cidade e filme”, como já disse Comolli (2008, p.183), estamos aqui a nos perguntar sobre os modos possíveis de avizinhar-se do mundo e sobre como uma vizinhança geográfica pode precipitar-se na cena fílmica, a partir de uma tessitura relacional dos espaços e dos sujeitos que neles habitam.

Os corpos de cada um dos jovens filmados se manifestam a partir de um procedimento de reencenações que se apropriam ricamente da experiência vivida no bairro pelos garotos, sem abrir mão de uma elaboração fílmica que assinala também uma diferenciação dos sujeitos deles mesmos. Nesse movi-mento, a ficção é solicitada a penetrar constantemente a tessitura do filme, convocada para a elaboração de uma dramaturgia que tem por matéria a expressividade do cotidiano dos jovens em cena: potente movimento que permeia a cena, entre a escuta atenta de um território e dos hábitos daqueles que são filmados e a investida no trabalho do cinema, que não se furta a operar

2 A vizinhança do tigre é o segundo longa-metragem de Affonso Uchoa, que já havia realizado um primeiro longa, Mulher à tarde (2010). Nesse trabalho anterior, encontramos muitas questões formais que retornam em A vizinhança do tigre, sobretudo no que concerne à duração dos planos, à observação de momentos banais e a um investimento formal para compor as relações entre corpo e espaço. Trata-se também de uma depurada pesquisa em torno dos intercâmbios entre cinema e pintura, numa aposta pela constituição de uma força pictórica e visual no encontro com as personagens filmadas.

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sua elaboração formal, responsável por também transformar o vivido. Aqui, um roteiro, por exemplo, se faz na medida do processo vivido, construído para disparar situações nas quais os personagens irão interagir: se cada bloco encenado nos sugere um gesto de fabricação, um pôr em cena bastante estu-dado a partir das circunstâncias do espaço filmado, a cena se compõe como que para abrigar as forças que viriam do improviso dos atores3.

O movimento deste artigo tenta, então, partir do filme para investigar em que medida se pode falar dessa vizinhança que se inscreve na imagem segundo um duplo movimento: uma vizinhança da escritura e uma escritura da vizinhança. A vizinhança é, nesse sentido, um espaço de atuação do filme – trata-se de observar, acompanhar e, ainda, inventar um território – e também um gesto contido nesse trabalho – avizinhar-se, no gesto mesmo de filmar4.

3 Ao longo deste artigo, apostamos em certo trânsito entre dimensão processual do filme e sua materialidade, ainda que reconheçamos as dificuldades de pensar essas passagens, como destacamos mais adiante. Em torno dessa dimensão do processo com os atores, retomo aqui um trecho de entrevista de Affonso Uchoa, a respeito do modo de trabalhar ao longo do filme: “Queria conhecer melhor meus personagens e guiar as minhas ideias pra eles e não o contrário (fazer eles se adaptarem a ideias prévias). Sendo o próprio processo do filme guiado pela abertura ao improviso e a adaptação às precariedades e contratempos de toda sorte, não filmamos todas as ideias contidas nesse roteiro e filmamos mais de uma dezena a mais, que não estavam previstas nele” (UCHOA, 2014, p.85).

4 Nosso esforço, dentro do escopo deste texto, consiste em uma elaboração analítica e teórica em contato íntimo com o próprio filme aqui estudado. Certamente, em outras obras do cinema brasileiro contemporâneo, uma perspectiva de relação com uma geografia também é mobilizada, com esforços variados em produzir uma vizinhança na cena fílmica (tanto espacial quanto de aproximação). Este artigo se situa mesmo dentro de uma pesquisa mais ampla em torno das relações entre filmar e morar: devemos reconhecer, desde já, que há aqui um movimento de atenção à singularidade de uma obra, ao mesmo tempo em que apostamos em alargamentos de nossas proposições, na medida também em que elas forem conduzidas com atenção às particularidades de outros filmes. Essas considerações se ampliam, quando dizem respeito à busca por métodos de aproximação, de imersão em territórios, de costura de relações, a partir de uma matriz estética (neste caso, ligada à imagem cinematográfica). Se o cinema pode construir suas metodologias a partir de territórios íntimos, gostaríamos de discutir mais de perto o que contagia a escritura fílmica desde essas proximidades e, simultaneamente, como a imagem formula o seu trabalho, posicionando-se diante dos vizinhos, da casa ou do bairro habitados, para tanto acolher as formas expressivas que emergem do mundo e das pessoas filmadas quanto formular uma heterogeneidade em relação ao vivido.

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2. Formas de acolhidaParece ser bastante decisivo para a materialidade da obra um aspecto

processual, que gostaríamos de trazer agora mais de perto. Os créditos finais do filme nos situam sobre uma circunstância de fabricação: A vizi-nhança do tigre foi filmado no período entre fevereiro de 2009 e dezembro de 2013. Junto a isso, sabemos, por meio de entrevistas e debates com o realizador, que um ponto de partida fundamental era a perspectiva de construir um filme a partir do bairro em que vivia5. Por meio de texto escrito por Clarisse Alvarenga (2014), temos acesso a mais uma parte da dinâmica processual ligada ao modo decantado do filme: as gravações contaram com uma primeira fase, que resultou em 30 horas de material filmado. A partir dessas primeiras imagens produzidas, Affonso e João Dumans, um dos diretores assistentes6, escreveram um roteiro de base, com cenas pensadas a partir do que foi filmado naquele momento inicial. “Esse primeiro material, no qual o diretor acompanha o cotidiano de seus personagens, é encaminhado para o terreno da ficção. Daí em diante foram mais 100 horas de filmagens” (ALVARENGA, 2014, p.120).

Um desafio junto às imagens seria, portanto, o de indagar em que medida se precipita na cena uma relação de avizinhamento, a partir de uma tessitura que trabalha para construir a proximidade, desde a posição de um realizador diante do bairro em que mora. Haveria uma situação moradora a mobilizar o filme, que permitiria algumas intimidades com percursos pelo território e relações com os filmados, e haveria um longo

5 Também na entrevista para o catálogo da Mostra de Tiradentes, Uchoa já afirma, de saída: “A Vizinhança do Tigre foi, antes de tudo, um filme vivido. Começou sem roteiro, apenas permeado de desejos criativos e uma ligação férrea a um lugar: o bairro Nacional, onde cresci e moro” (UCHOA, 2014, p.85). E mais adiante, ele segue a respeito desse vínculo com o bairro, na busca por “conhecer melhor o lugar em que vivia […] Queria fazer um filme sobre e com personagens jovens, queria filmar meus vizinhos de bairro, queria filmar pessoas e lugares pobres de modo diferente que o cinema brasileiro contemporâneo os filmava” (UCHOA, 2014, p.94).

6 Junto a Warley Desali, com quem Uchoa desenvolveu ainda um projeto fotográfico intitulado Sangue de bairro, também no Bairro Nacional, iniciado em 2007. Algumas fotos estão disponibilizadas aqui: http://www.desali.com.br/sangue-de-bairro/. E uma entrevista com os dois, a respeito deste trabalho em especial, pode ser lida aqui: http://centrocultural.sp.gov.br/site/programa-de-exposicoes-2017-affonso-uchoa-e-warley-desali/. Último acesso em: 25.02.2019.

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processo, permeado por um trabalho de cinema e de experimentação em grupo, um gesto de paciência e de encontro desenvolvido com a imagem e com o espaço, entre atores e equipe, para construir uma coabitação. Desafio, então, constitutivo: em que medida o filme nos devolve, na sua fatura, a força dessa coabitação, tramada pela mediação da imagem?

Dizendo de outro modo, cabe se perguntar como o filme dá forma a essa trama processual vivida, a essa relação decantada longamente, a essa vizinhança que implica corpos para um contato. A tarefa do analista é desafiadora duplamente porque, de um lado, a trama do filme não nos oferece elementos evidentes da passagem temporal (não temos, por exemplo, indícios de transformações ao longo desses anos na vida dos personagens), e de outro lado, a implicação no território, por realizador e equipe, não se evidencia por procedimentos como a aparição em cena daqueles que filmam, recurso que Cláudia Mesquita (2012) e André Brasil (2013) já salientaram a respeito, por exemplo, de uma forma de engaja-mento complexa mobilizada por A cidade é uma só? (2011), de Adirley Queirós. Em A vizinhança do tigre, não temos, portanto, nem recursos de reflexividade nem gestos narrativos que exponham, na sua fatura, a evidência desse elemento processual. É uma questão que também Clarisse Alvarenga salienta em seu texto para o filme:

Apesar de guardar uma relação de “vizinhança” com seus perso-nagens, afinal Affonso foi criado ali entre os garotos, em momento algum ele evidencia o processo do seu filme reflexivamente nas ce-nas ou mesmo em retrospecto, na montagem. A proximidade não é narrada, mas certamente é constitutiva de cada um dos planos filmados, o que se percebe no extremo cuidado para posicionar a câmera e compor o quadro nas diversas situações. Certamente, a observação que faz parte da proximidade, que também foi constru-ída no tempo estendido das filmagens, na elaboração de cada uma das cenas por meio do roteiro, e que se irradia na temporalização dos planos (ALVARENGA, 2014, p. 120, 121).

Apostamos que um modo de considerar essa dimensão do avizinha-mento, para este filme, teria a ver com a dimensão mesma da tessitura dramática do filme, que nunca os enquadra demasiadamente em situações aos modos de uma ficção roteirizada a priori e também com a tempo-

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ralidade dos blocos mais específicos que, conforme analisaremos mais adiante, se abrem a variação de duetos musicais e duelos lúdicos travados entre os garotos, como se o cotidiano, em suas repetições com diferenças, fosse abrigado aí. Interessa, sobretudo, a perspectiva de uma acolhida a auto-mise-en-scène dos filmados, desde aquela noção cara ao documen-tário, que Comolli talvez tenha evidenciado de forma particularmente precisa em seus escritos7. E essa chave da acolhida nos motiva a seguir com o vocabulário em torno da hospitalidade, a nos instigar como hori-zonte, muito próximo daquele sentido já dado por César Guimarães a respeito de “uma estética da hospitalidade”, esta “que desenvolve a paci-ência de sua escuta e a atenção do olho inumano da câmara para guardar, neste encontro entre o humano e a máquina, os gestos e a voz do outro, sua resistência em ser enquadrado, narrado, encenado” (GUIMARÃES, 2008, p.260).

Se A vizinhança do tigre desdobra essa lição que aprende das possi-bilidades de uma acolhida do documentário, ele encontra também uma nova potência ao extrair da noção de ficção uma capacidade imaginativa e transformadora do real. Ao se valer das potências dos recursos ficcio-nais, a escritura permite combinar o gesto de acolhida (àquilo que, nos filmados, já é auto-mise-en-scène, pela própria lição que o documentário já nos legou) e intensificar a dimensão ficcional e performativa que atravessa o próprio ato de um sujeito se fazer na cena, ao convidar abertamente seus atores a imaginarem outros mundos, que não deixam de ser contíguos aos que vivem fora do filme. Se nos deslocarmos um pouco desse jogo já intri-cado entre ficção e documentário, talvez pudéssemos dizer que o filme se vale de dois gestos, que poderiam ser mesmo transversais aos vários

7 A proposição de Comolli consiste, fundamentalmente, em pensar um encontro entre dois trabalhos, o do filme e o do sujeito filmado. Seria interessante reter, especialmente, o que ele diz sobre um caráter lúdico e coreográfico dessa relação, questão material que deverá reaparecer em nossas discussões com A vizinhança do tigre, considerando mais fortemente, para o caso deste filme, a imbricação entre o vivido e o encenado. Diz Comolli: “[A auto-mise-en-scène] é mais ou menos manifesta. Em geral, o gesto do cineasta acaba, conscientemente ou não, por impedi-la, mascará-la, apagá-la, anulá-la. Outras vezes, mais raras, o gesto da mise-en-scène, acaba por se apagar para dar lugar à auto-mise-en-scène do personagem. Trata-se de uma retirada estética. De uma dança a dois. […] a mise-en-scène documentária – por seu caráter lúdico, coreográfico, seu jogo com o outro, pelo risco do real que ela corre ao se abrir para as sócio-mise-en-scènes e as auto-mise-en-scènes – seria, talvez, aquilo pelo qual o cinema, ainda, se entrelaça com o mundo” (COMOLLI, 2008, p.85).

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registros do cinema: trata-se de acolher o que é estilo de existência dos jovens filmados, contagiando-se por seus modos de vida, e simultanea-mente, de convidá-los a imaginar, em variação das suas existências, como se pudessem encontrar naquele intervalo do cinema uma possibilidade de apresentação e invenção de si, que envia a seus contextos e hábitos, ao mesmo tempo em que permite que se afirmem nas suas metamorfoses8. Diríamos que se trata de uma imbricação constitutiva, nas formas do filme, entre atos de imaginação e posturas de hospitalidade.

Vamos tentar caminhar mais adiante com blocos específicos do filme e extrair deles algumas chaves para pensar os procedimentos de apro-ximação engajados, as dinâmicas expressivas de avizinhamento postas em cena, que compreende aproximação e distância, tanto no sentido da postura de relação entre quem filma e quem é filmado, quanto na própria natureza de uma imagem, que é marcada por continuidade e desconti-nuidade com o mundo filmado. Ao mesmo tempo, interessa-nos consi-derar também o trabalho das estruturas do filme, ao costurar uma outra dimensão desse avizinhamento, dessa vez entre as próprias vidas filmadas – uma vez que, em A vizinhança do tigre, os cinco personagens são justa-mente acompanhados de modo a sugerir ligações entre os espaços e entre as existências distintas que compartilham um mesmo território.

3. Da geografiaVejamos como a escritura fílmica de A vizinhança do tigre opera

um alinhavo entre as vidas filmadas, tecendo o que gostaríamos de sugerir como uma elaboração sem centro. De saída, interessa-nos aqui uma formulação já feita por Cezar Migliorin (2011), a respeito de uma montagem polinizadora, para considerar as tramas de um espaço urbano

8 Retomaria aqui passagem de um texto de André Brasil (2011), que nos é fundamental para estas elaborações, sobretudo na sua reflexão em torno do conceito de performance, a balançar constantemente uma obra entre o vivido e o imaginado, como diz o autor: “A performance expõe a continuidade existente entre um domínio e outro – o vivido e o imaginado: ela é a natureza do gesto desde já artificializada e o artifício da mise-en-scène deslocado – ‘naturalizado’ – pela espontaneidade e imprevisibilidade do gesto. Em contrapartida, ela nos mostra que entre o vivido e o imaginado há também descontinuidade: o artifício da imagem permite ao gesto defasar de si mesmo – encenar-se, montar-se – ou seja, ser, no interior do filme, outro gesto; e, por outro lado, a irredutibilidade do gesto persiste e resiste, escapa, em alguma medida, ao ordenamento da imagem” (BRASIL, 2011, p.7).

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relacional – especialmente pensando o filme Avenida Brasília Formosa (2010), de Gabriel Mascaro. Esse olhar de Migliorin para o trabalho da montagem nos mobiliza aqui – sempre guardando todas as singularidades entre o longa de Mascaro e o de Uchoa – naquilo que toca a organização dos blocos elaborada pela escritura de A vizinhança do tigre. Na formu-lação do autor, a noção de rede é bastante cara: a analogia com o trabalho das abelhas, que fazem essa tarefa de polinizar, surge com o intuito de identificar uma operação da imagem no seu esforço em “conectar e formar continuidades que constituam um mundo que não cabe em nenhum dos blocos” (2011, p.165).

Recuperaria também a análise de André Brasil e Cláudia Mesquita a respeito de O céu sobre os ombros (2011), de Sérgio Borges e, novamente, Avenida Brasília Formosa, sobretudo quando observam os modos de relação entre as vidas dos personagens na própria tessitura fílmica de modo mais amplo. A sugestão de vizinhança acontece de modos distintos nos dois filmes: no primeiro, por “cintilação”, que reforça uma autonomia de cada plano; no segundo, por “trançado”, por ligações frágeis, mas que permitem ao filme compor uma vizinhança. Nos dois casos, a moldura que envolve os blocos não chega a ser rígida. E valeria aqui tomar um trecho do artigo que se refere, especialmente, a Avenida Brasília Formosa: “a evidência de que essas vidas fazem vizinhança e foram marcadas por um processo comum compartilhado as conecta sem produzir ou reiterar rígidos enquadres” (BRASIL; MESQUITA, 2012, p.8).

Em A vizinhança do tigre, o trabalho da montagem é pautado pela constante articulação entre os blocos conduzidos por cada um dos perso-nagens, como numa perambulação em torno de episódios da vida de uma juventude. A própria cena fílmica acontece, no mais das vezes, segundo o primado dos corpos que estão em cena e do que eles desdobram nos lugares: são raros os momentos em que o filme se interessa pelo espaço enquanto tal, deslocado da subjetividade que o compõe, predominando a composição de blocos com diálogos e interações variadas entre os atores. É, sobretudo, Junim que circula mais por muitos espaços do bairro, visita os outros companheiros, trabalha, estabelece conversações. Mas essa regularidade maior de aparições do personagem não constitui uma centralidade, na medida em que ele se insere também como força de uma rede mais ampla, para tramar conexões. Há uma espécie de oscilação na

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montagem entre dar conta de uma curva dramatúrgica guiada, em alguma medida, pelas atividades desse personagem, e bifurcar repentinamente para traçar o desenho do espaço vivido pelos sujeitos que ele vai encon-trando. É Junim que faz ver algo como o cintilar de uma narrativa, já que é a ele que se associam, de modo mais explícito, a dimensão de uma trama, com desdobramentos narrativos mais evidentes, ainda que bastante sutis, aludidos sempre discretamente em alguns diálogos ou dispositivos de que lança mão o roteiro, como a recepção da carta de intimação pelo perso-nagem. Ela já vem nos dizer, logo nos momentos iniciais do filme, sobre a situação de prisão domiciliar de Junim, que é intimado a cumprir as condições da pena junto à comarca de Ribeirão das Neves, na Vara de Execuções Criminais. Ao longo da travessia, ele trabalha como pedreiro e, em dado momento, tenta a venda de drogas, para pagar dívida que contraiu anteriormente, com aqueles que lhe emprestaram um revólver, para o roubo de um carro, motivo que havia rendido a prisão.

Essa espécie de discreta linha narrativa torna-se um disparador para o percurso do filme pelo bairro e pelas outras vidas que ali habitam. Certa-mente, ela é reveladora ainda daquilo que o filme também se empenha em inscrever na sua tessitura, a inevitável ronda que fazem as situações de violência e os processos de encarceramento na vida dos seus personagens. Mas a tonalidade do filme será marcada pela decantação do cotidiano em episódios que alternam o trabalho e o jogo, costurando blocos que guardam mesmo algum nível de autonomia entre si e uma ligação mais tênue. Transitamos assim entre brincadeiras travadas entre os persona-gens, muitas vezes aos pares, como se fosse preciso formar duetos, que com alguma frequência irão encarnar duelos – ou batalhas, que não deixam de carregar uma dose considerável de contaminação com aquilo que, nas estilísticas do rap e do passinho, se configuram como batalhas dançadas ou cantadas: elas expõem a performance dos agentes dessas interações, por meio de improvisos e modos de interação variados, atravessados, a um só tempo, pelo estético, pelo social e pelo político. Entre Menor e Neguim, entre Junim e Neguim ou entre Menor e Junim, são travadas boa parte dessas interações, carregadas de uma dimensão lúdica, como uma mani-festação do vínculo entre eles.

Em meio à constelação de casas, ruas, quintais e paisagens, ora eles brincam de encenar um enfrentamento, ora estão explorando paisagens

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descampadas, ruínas abandonadas, cantando ou perambulando com gestos simples de atirar pedras. Essa estrutura de atravessamentos entre ruas, quintais e casas se dá segundo um princípio de montagem bastante atento aos intervalos, aos pequenos gestos, ao ócio. O cinema vem aqui compor uma vizinhança ao se contagiar por certa pulsação comum dos acontecimentos, alinhavando as variadas vidas em um plano de coabi-tação. Para nos apropriar de uma formulação tão cara às obras musicais, poderíamos dizer que o filme de Uchoa seria uma espécie de trabalho de variações em torno do motivo do morar entre vizinhos.

Já com Eldo e Adílson, o filme trava encontros mais pontuais, expondo, especialmente, uma ampliação da cena dos moradores desse território. Eldo surge, pela primeira vez, para presentear Menor com um shape de skate, a prancha onde se deve equilibrar em pé, no percorrer das ruas. Os dois parecem travar, especialmente, um diálogo marcado por uma toada geracional. Já Adílson surge primeiro na interação com Junim, que vai à sua casa para ajudar numa reforma. Dali a pouco, Adílson irá se casar com Bruna. Em cada um desses blocos, as vidas se põem em jogo para apresentar também pedaços da vizinhança que não chegam a compor uma totalidade orgânica, mas fazem do fragmento o seu princípio de elabo-ração. A temporalidade também passa a se instaurar menos pela sucessão de eventos encadeados do que pela duração adensada dos próprios planos, enfatizando a experiência de um mural que se compõe a partir dessa apro-ximação entre blocos com tempos e gestos heterogêneos.

Ainda que tenhamos ideia de uma moldura que situa esse mundo de experiências, o território todo orgânico se perde de vista no gesto de cadenciar os micro-acontecimentos cotidianos, espalhados como que numa “chuva de átomos”, para retomar uma expressão de Virginia Woolf que se torna central para as reflexões de Rancière (2014) em torno da ficção moderna. A escritura trabalha, então, na tensão entre uma dispersão de pequenos instantes de experimentação do espaço e as fagulhas de uma intriga rondando o destino de Junim. Como efeito de composição da vizinhança, cada fragmento torna-se intensidade em uma montagem por constelações, como se o filme nos ensinasse que para adentar um espaço, é preciso abrir mão das representações globais e desenvolver a atenção aos modos singulares de habitar.

Há dois momentos em que o filme adota um gesto mais amplo de filmar

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o território, como se também se colocasse no empenho em situar seus personagens numa trama coletiva. Uma sequência de imagens tomada pela cadência do amanhecer emerge logo após a primeira cena do filme, quando Junim, deitado no sofá de casa, lê uma carta para Cezinha, o amigo que está preso. Um corte nos joga para uma imagem menos iluminada, que vai definindo suas formas aos poucos. A luz vai se fazendo presente, revelando partes do céu, para que depois um novo corte venha convocar uma paisagem em que podem ser vistas, ao fundo, um conjunto de casas do bairro. O plano é frontal e um tanto distanciado, revelando não apenas as moradas, mas também o entorno formado por vegetação. É um dos raros instantes em que o filme nos revela uma situação mais geral desse lugar e nos localiza efetivamente em um espaço marcado pela contigui-dade das casas, algumas pintadas, outras com tijolos à mostra. O filme parece chegar ao bairro por um primeiro gesto de recuo, para nos apre-sentar a um conjunto que o compõe. Estamos numa espécie de prólogo para o que se verá ao longo do filme. A montagem nos apresenta algo como os palcos das encenações de cada personagem, vistos ainda bem de longe, em composição de uma ampla paisagem. Com a aproximação aos fragmentos das vidas de cada um, o espectador passará a ensaiar, com o filme, as táticas de aproximação junto aos modos de vida dos filmados.

Essa aparição inicial do bairro, de toada ampla e contextual, parece dizer também de um filme empenhado em afirmar um lugar e uma paisagem. Mas essa afirmação, como temos indicado, perpassa as produções subje-tivas de cada personagem. Por meio dessa introdução da moldura geral, nos situamos no gesto conectivo que é constitutivo da montagem, que busca sugerir a constante relação entre dentro e fora, casa e rua, e mais amplamente, singularidade e comunidade. Paradigmático disso é, então, o segundo momento em que o filme nos alça a uma visão mais geral do bairro, no sentido de uma saída daqueles personagens que acompanhamos a todo tempo. É sintomático que aqui a mesma música do início é convo-cada: ouvimos mais uma vez Ali Farka Touré, quando saltamos do quarto escuro em que Adílson fuma um cigarro para uma sucessão de retratos nos quais despontam alguns jovens, que só aparecem nesse momento. A sequência se introduz com força de interrupção, abrindo um intervalo para a exposição de outros seres que também povoam aquelas redondezas. Eles emergem compondo uma pose, com a paragem de um movimento

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e a frontalidade do olhar dirigido para a câmera. Como na sequência de exposição das casas no início, o espectador se vê diante de um momento em que o curso da escritura sofre um desvio, e essa pequena torção nos joga novamente para um ponto de ultrapassagem, no qual se implica um coletivo. Não se trata de uma convocação em nome de exemplaridade, mas de um esforço em trazer a pluralidade de seres que também tomam parte nessas práticas espaciais focadas pelo filme.

Na organização desses retratos posados, trata-se de mais uma tenta-tiva de esgarçar o centro da estrutura. No salto que damos do quarto para esses outros sujeitos, o filme aproxima as vidas de jovens moradores desse espaço. O filme não nos dará mais do que essas imagens desses outros sujeitos e não se aproximará deles da mesma maneira como se acerca das vidas dos outros cinco personagens. Mas nessa quebra do fluxo junto às trajetórias individuais, a escritura confronta a particularidade com um excedente. Sem formar uma massa ou um todo unificado desses garotos em breve aparição, o filme pode operar a possibilidade de uma relação entre as vidas, entrelaçando histórias individuais e coletivas.

Falamos aqui num princípio de descentramento como elemento funda-mental de uma política da ficção, cuja caracterização nos chega, especial-mente, a partir de um conjunto de trabalhos desenvolvidos por Rancière em torno da literatura. Essa política da ficção trabalha para desvincular a operação ficcional das exigências de causalidade e mesmo da perspec-tiva de um protagonista, diluído de maneiras singulares conforme o caso: para múltiplos acontecimentos, para as passagens por outros personagens, para uma coexistência igualitária estabelecida com as próprias coisas e os detalhes de uma cena, como o ocioso barômetro descrito em Madame Bovary, de Flaubert, que Rancière toma como elemento paradigmático de um procedimento.

Em Flaubert, dirá o autor, a forte atenção ao detalhe e a descrição exces-siva são partes de um gesto: “a questão é que as partes não estão subordi-nadas ao todo; os membros não obedecem à cabeça” (2010, p.78) Se perso-nagens e objetos surgem segundo uma relação de coexistência sensível, é porque “uma nova cosmologia ficcional é também uma nova cosmologia social” (p.78). Em mais de um momento, o autor fala de uma “democracia literária” fundada pela escritura do romance moderno, sobretudo a partir de Flaubert, mas também se ramificando de forma mais radical nos que

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o sucedem, como Joseph Conrad, Virginia Woolf, William Faulkner, Guimarães Rosa. Uma capacidade de qualquer um fazer não importa o quê se destaca aí como fundação de uma comunidade literária cujo cerne é a emancipação de um papel prescrito (RANCIÈRE, 2014, p. 32, 33). Em Virginia Woolf, a questão é como permitir o contágio da escritura pelo halo luminoso que constitui a vida, por oposição à sucessão de lanternas de carruagem dispostas em simetria. Disso e da própria literatura da autora, Rancière vai retirar uma tensão constituinte, que oscila entre uma intriga a rondar o romance e uma operação constante de divisão e multiplicação rumo às vidas anônimas, que recebem por um tempo um nome e a possi-bilidade de uma história (RANCIÈRE, 2014, p. 62, 63). “Nenhuma situ-ação, nenhum sujeito é ‘preferível’. Tudo pode ser interessante, tudo pode suceder a não importa quem”, diz Rancière (2011), a partir da literatura de Stendhal. Essa discussão de Rancière nos interessa, porque permite ver, pelos próprios procedimentos da escritura, as complicações a modos de repartição da vida política e uma possível emergência de outras configura-ções da comunidade a partir de uma operação estética, constitutivamente pelo trabalho da ficção, cada vez mais interessada numa problematização dos centros e das hierarquizações entre parte e todo.

Boa parte dos percursos feitos pelos personagens de A vizinhança do tigre é marcada por uma pura ocupação dos lugares, esvaziada de finali-dades, ou por um repentino desvio de finalidades, como nos percursos de Junim e Neguim em meio às árvores, que teria por motivo inicial a busca de abacates, depois se converte em coleta de mexericas, e logo em seguida vira uma ocasião para ouvi-los na prática de desafio um ao outro, sentados e a se provocar mutuamente a partir da música posta em um celular. Se o fio tênue do roteiro dispara uma situação dramatúrgica – no telefone, em cena anterior, Junim e Neguim conversavam e antecipavam essa busca por abacates –, trata-se, logo em seguida, de complicar qualquer funcionali-dade narrativa do percurso: como se a ação fosse um pretexto para captar, sobretudo, os gestos dos garotos, tanto nos modos de brincar enquanto se dá a coleta de abacates ou de mexericas, mas especialmente no momento preciso do duelo musical entre os dois, carregado do improviso. No filme de Uchoa, o gesto de cada personagem surge propiciado pelas articula-ções do trabalho da imagem, da elaboração do plano e da intervenção da montagem, mas numa íntima contaminação pelo que existe de poética e

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de expressividade nos gestos de cada personagem. O cinema vem como que desencadear situações para a emergência de uma força estética vinda desse encontro preciso entre os corpos dos garotos e a operação de filmar.

Os pequenos acontecimentos que rondam a estrutura do filme inserem, portanto, aproximações demoradas diante de gestos e uma abertura estru-tural, que corrobora uma entrada no bairro tendo por base a multiplici-dade. Nesse jogo complexo entre cinema, território e experiências vividas, vamos nos aproximando do bairro Nacional segundo chaves muito singu-lares de constituir imagem a partir da periferia. Se não há tentativa de apaziguar violências que circundam essas vidas, há uma aposta formal e ética em adentrar os quintais, as ruas e os quartos de cada um, para acom-panhar como se produzem as subjetividades nesses lugares, sem que seja afirmada a falta, mas justo com o interesse em perceber as intensidades de momentos quaisquer. As ocasiões de jogo, de brincadeira ou de duelo musical vão permeando os percursos e tornando inseparáveis a investi-gação da geografia e as práticas que habitam esses lugares9.

4. Do avizinhamentoHá uma sequência que nos parece bastante emblemática para as estra-

tégias de encenação de A vizinhança do tigre, na sua maneira de organizar constantes pares entre os personagens, que passam a interagir por meio de provocações e desafios entre si. Tomaria aqui mais de perto um momento

9 Discutindo outros procedimentos, ligados ao cinema de Eduardo Coutinho, Consuelo Lins (2002) já observou o princípio de uma “locação única”, como metodologia adotada em alguns trabalhos, como Boca de Lixo ou Babilônia 2000: por meio desses dispositivos de se inscrever num lugar específico, “a geografia espacial tornou-se fundamental para a realização dos filmes, o que de imediato impõe determinadas linhas ao que vai ser filmado, acentuando o caráter imanente das imagens” (LINS, 2002, p.44). Coutinho extrai de cada metodologia empregada, singular às situações impostas por cada projeto – sem dúvida um dos cinemas, em nossa cinematografia recente, mais empenhados em se avizinhar do mundo do outro, tomando como dimensão fundamental as sabidas distâncias existentes. Na caracterização de Lins sobre essa maneira em especial, a dedicação a um lugar único, me parece rica a elaboração dessa forma atada à concretude espacial, tomada como possibilidade de extrair consequências para práticas mais amplas, que não dizem de uma generalização a respeito dos mundos filmados. “Partindo da geografia, a história e a memória ganham outra substância, ligadas à terra, às pessoas, a suas fabulações, aos encontros, misturados ao cotidiano” (LINS, 2002, p.44). Como caracteriza Lins, trata-se de uma arte do presente: “certo movimento que faz do cinema uma arte cada vez mais impura, aberta ao mundo, à diferença, ao imponderável, ao presente” (LINS, 2002, p.50).

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no qual se desenrola uma espécie de duelo travado entre Junim e Neguim. Esse confronto surge motivado por provocações feitas em cena imediata-mente anterior, quando os dois garotos começaram as zoações em torno do que saberiam fazer na vida, de quem seriam no mundo, do local onde seus nomes estariam inscritos, tudo manifestado de modo completamente integrado ao simples fluxo de um cortar laranja. Basta a Junim observar que Neguim descascava a laranja de maneira errada – “Feriu a laranja toda”, provoca – para passarmos ao ir e vir do diálogo, numa escalada que nos lembra jogos de crianças, sempre tentando trazer elementos a mais para compor o desafio: “Ô Neguim, eu nunca vi seu nome nem na caixinha de fósforos!”, diz Junim em um instante, enquanto Neguim, dali a pouco, vai dizer: “Seu nome, eu nunca vi nem em palito de fósforo”.

A partir daí, a dinâmica do desafio a ser travado se estabelece pela narra-tiva, de um modo bastante simples, sem que haja necessidade de amarras muito rígidas na construção do roteiro. Basta uma conversação cotidiana para disparar uma ação, neste filme que parece estar interessado exata-mente na potência de aparição dos corpos, no presente de uma inscrição viva em cena. “Ô Neguim, você acha que sabe mais do que eu?”, diz Junim, que recebe a resposta: “Lógico que sei!”. “Então vamo ver!”, dizem os dois juntos. Estabelecido o fino disparador da contenda, passamos para o fora da casa, em um espaço que parece abrigar um campo de futebol na vizi-nhança – logo ao fundo, podemos ver as traves e a paisagem aberta das casas. É do fundo do quadro que Junim se dirige, caminhando firme, em continuidade direta com as provocações que encerravam a cena anterior: “Qual é, ô, Neguim, você não falou que você que era o vida louca?”.

Junim chega a um ponto diante da câmera e interrompe sua cami-nhada, ele se fixa num momento exato em que se deixa enquadrar quase ao modo do universo de filmes western, no que estaria muito próximo de um plano americano. Também num eco com esse jogo dramático e formal caro a esse campo do cinema clássico, teremos, logo em seguida o contraplano, quando vemos Neguim, enquadrado em medida semelhante, braços cruzados, que se abrem em alguns momentos, a responder as provocações do outro duelista: “Eu sou melhor que você, seu arrombado”. Se esse esquema inicial joga com frescor com os pactos formais de certo cinema clássico, lançando mão do plano/contraplano para apresentar o palco da disputa, ele nos serve tanto para estabelecer a dualidade do

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esquema dramático, com o qual se brinca, como para também inscrever os corpos junto à própria paisagem do bairro, captada ao fundo dos dois personagens.

Estabelecida a situação cênica, algo distinto também logo se processa diante dessa disposição mais clássica. Ao plano que nos exibe Neguim da cintura para cima, teremos uma contraparte já em tudo diferente da confi-guração formal que apresentava Junim. O corte nos dirige, de imediato, ao detalhe de uma perna, a de Junim, já com o dedo apontado para uma cica-triz, a explicar a origem de cada marca que tem na pele. A câmera, muito próxima dessa parte do corpo do ator, acompanha a narração de uma memória – entre o vivido e o imaginado – que convoca, inevitavelmente um extracampo de violência que também compõe, sem nunca determinar, as experiências dos jovens. Se as marcas de Junim são de balas, como ele segue a indicar (com locais de saída e de entrada no corpo), as de Neguim, que veremos em seguida, trazem outras histórias: um machucado em casa, bem perto do joelho, e outra cicatriz sobre a qual ele não encerra a elaboração, já próxima do peito. Logo que apresenta essas inscrições na pele, surge a provocação de Junim: “Nossa, a sua ficou paia de mais”. Neguim responde: “Ficou, né, Zé?”. Inevitável efeito cômico que surge, em deslocamento produzido na interação singular entre os dois jovens e convivendo com toda sorte de dureza que as narrações de Junim evocam. Deslocamento imediato da ferida, que os dois desviam para um processo lúdico, que sem apagar cicatrizes, marcas, consegue reelaborar memórias, ou momentaneamente deslocá-las, dentro da situação peculiar que a cena fílmica permite surgir.

Diante dessas distâncias entre as experiências inscritas nas peles, Junim seguirá exibindo mais algumas cicatrizes, enquanto ouvimos Neguim reagir: “Credo, Zé, todo furado”. Nesse retorno à pele de Junim, a câmera parece se revelar ainda mais tátil, subindo das cicatrizes na perna até o rosto, em um plano que nos parece singular por essa aproximação sensual entre câmera e corpo. Essa imagem tão carregada de contato revela não apenas uma proximidade, aqui em sentido um tanto imediato e literal, entre quem filma e quem é filmado, mas compõe ainda um campo de contágio gerado com o próprio espectador. Se a atenção íntima dada à pele segue, incialmente, a narração de uma história, ela também tem continui-dade até o rosto, quando já não se trata mais de ilustrar o que é dito pela

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voz. A câmera e a montagem optam por seguir no corpo, habitando-o por um instante, se demorando por um tempo na pele de Junim, o que colabora para contagiar a câmera e o próprio lugar do espectador por essa intimidade corpórea.

A partir desse primeiro lance entre os duelistas, quando os corpos ainda estão distanciados, os desafios feitos entre si vão se acumulando e se organizam numa espécie de três esquetes, instantes bastante pontuais em que as brincadeiras se alternam: cantar, “banhar”, lutar. Primeiro, os dois são vistos reunidos num só plano, um de frente para o outro, distante do esquema do plano/contraplano inicial. Nesse instante, mais uma vez, retoma-se a estratégia constante no filme, a da batalha cantada, quando um celular entoa uma música, que serve de base para o entoar de provoca-ções mútuas entre os meninos. Essas falas cantadas são criadas sob o calor da improvisação, não sem algumas hesitações, que seguem incorporadas ao filme, dando a ele o frescor mesmo desse fazer da cena, com os garotos, longe de toda dramaturgia rígida que imporia aos atores um texto dema-siadamente fechado a ser seguido.

Em seguida, da cena de embate mediada pelas palavras, passamos para outro esquete, na qual os personagens se disponibilizam uma ao outro para espécies de “banhos”, que um daria no outro, dentro do espírito da zoação: a disposição do jogo consiste na imobilidade de um enquanto o outro traz seu elemento do desafio. Primeiro, é Junim, enquanto Neguim surge de fora do quadro para espremer laranja e derramar suco no outro; no momento do seu turno, é Junim que chega de fora para dentro, arre-messa pipocas no corpo de Neguim e também dá-lhe um banho completo logo em seguida. Finalizando essa sucessão de jogos de provocações, a cena se abre ao duelo de espadas, também sempre entremeado pela força de gags: se Junim já chega com dois grandes espetos de churrasco, Neguim se mune de duas pequenas facas de cozinha. Para fazer da disputa mais justa, os dois acordam a necessidade de uma troca: um espeto para Neguim, uma faca para Junim. Assim estarão dentro das devidas condições do duelo. A troca vai se dar no ar, conforme a condição posta por Neguim. É nesse momento que a brincadeira leva ainda a um contato corporal mais efetivo entre os dois, chegando a um agarrar-se no chão.

A câmera é aqui submetida à própria energia da luta, como se a cena sensível do encontro entre os corpos fosse responsável por dar as coor-

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denadas de como será preciso se movimentar, qual espaço e posição encontrar, para filmar esse encontro. Câmera tomada pela força da cena, por assim dizer: ela mergulha, atraída por esse campo de forças, sai defi-nitivamente da abordagem fixa que marcava os planos iniciais, aqueles que abriam os primeiros lances do duelo, para agora circular, percorrer, conforme os personagens se movem. Também a fragmentação marca o próprio gesto da montagem, sem que o plano experimente um escoar, revelando também certa economia narrativa, pela montagem, na própria exposição da luta – cortada em algumas partes, ela é submetida a saltos e mostra o choque corporal por meio de momentos, que rompem a integra-lidade de um só plano contínuo. Irresolvida, ainda que Neguim comemore uma vitória (por meio de recursos sagazes na dinâmica do jogo), a luta teria ainda algo como um prolongamento virtual, dessa vez muito alhures daquele espaço recortado pela câmera – fora dali, as vidas seguem. Ao final de todo esse bloco, composto por uma série de variações em torno do corpo e da voz daqueles que aparecem em cena, os dois seguem para o fundo do quadro: num salto, Junim e Neguim partem em direção a outras partes do bairro, o primeiro ainda no encalço do segundo.

Há nessa sequência um conjunto de componentes recorrentes nos procedimentos de base de A vizinhança do tigre. Ela também expõe algo constitutivo da dinâmica que se instala nesse filme, a todo tempo traçando maneiras de acolher a criação que vem dos jovens filmados e afirmando o trabalho do cinema, a investida formal que o caracteriza – ecos de uma história do cinema que chegam aqui, ao mesmo tempo sem necessaria-mente resvalar no primado de um lugar do criador. Dizendo de outra maneira: o trânsito entre o trabalho do cinema – as formas de um filme específico em diálogo com uma história das formas que o antecedem – encontra a medida de sua elaboração a partir deste embate ali com outras formas, no aqui e agora da cena, da experiência com os sujeitos filmados, permitindo que a própria forma cinematográfica varie, se renove, se singu-larize, a partir do que se passa no acontecimento da filmagem. Fazer um filme é se inserir em um ritmo do habitar, que também tem suas formas, suas maneiras: é nessa negociação entre formas que o encontro se dá. Clarisse Alvarenga (2014) já observou que há no gesto de A vizinhança do tigre algo mais do que a necessidade de fazer um novo filme, entendida aí como meta, como finalidade. “Fazer o filme é, nesse caso, algo anterior

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a fazer um filme” (ALVARENGA, 2014, 122). Íntima contaminação entre trabalho do cinema e estilísticas de viver que transbordam o cinema e o alteram. Retomo algumas palavras do realizador: “Queria fazer um filme que fosse, ao mesmo tempo, uma experiência de vida e de cinema. Quis fazer do Vizinhança um atestado da força do sonho dos meus amigos do bairro Nacional e um filme no qual cada imagem tem o valor de uma cica-triz” (UCHOA, 2014, p. 94).

O momento do duelo entre os dois personagens indica ainda que a escritura do filme elabora, como procedimento que lhe é constitutivo, uma sorte de teatralização do cotidiano. Concentrada nas atitudes do corpo, montada sobre o ritual que ele cria, a câmera tenta estabelecer suas posições junto aos meninos, que têm a casa ou o bairro como palco para suas encenações – se ampliarmos essas considerações para o filme no seu conjunto. A composição de um quadro se faz, no mais das vezes, a partir de um desenrolar de gestos miúdos na cena, atos e posturas que não têm funcionalidades narrativas ou significações que pudessem enquadrar os meninos em papéis já concebidos. Cada gesto miúdo é também rituali-zado: a brincadeira, o cantar, o coletar mexericas se transformam em ceri-mônias. O que o filme vem dizer é, sobretudo, da produção dessa vida de uma juventude. E parece nos ensinar que a possibilidade de estar à altura de uma tal tarefa seria indo repetidas vezes ao encontro de cada corpo, reatualizando os rituais, aprendendo com a expressividade que cada personagem pode doar à existência de um filme.

5. Repetir, variar: se avizinharDe modo geral, ao longo de todo o filme, nunca se trata de ocultar toda

sorte de elementos que rondam o cotidiano, fazendo o lúdico conviver em meio aos aspectos mais instáveis da vida: a própria situação de Junim na narrativa, em prisão domiciliar e em dívida pelo empréstimo do revólver, é uma exposição constante da dureza das vidas, ainda que o desvio seja sempre configurado pela fulguração de infindáveis gestos de jogo. Se não se trata de obliterar esses elementos, ou de apaziguar a cena diante das parcelas brutais de violência que incidem no cotidiano de diferentes periferias, o projeto do filme escapa em tudo da afirmação de imagens da violência como definidoras do cotidiano do bairro. Ele constitui seus

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procedimentos junto à riqueza sensível desse habitar dos meninos, sabe-dores das durezas variadas a serem enfrentadas, mas promotores de uma invenção constante para os modos de habitar. É como se fosse preciso lidar com a complexidade de aspectos que rondam as vidas dos jovens, sem resumi-los a uma tipificação. A ficção irrompe, então, da escritura, ao forjar uma cena na qual os sujeitos se elaboram para além das marcações que lhes são impostas, trabalhando a partir de vivências uma elaboração de si que questiona a própria suposição do que eles poderiam ser.

E aqui poderíamos voltar a dizer mais diretamente da singularidade processual desse filme e de como a decantação do encontro parece fornecer condições para se situar nessa complexidade. Em alguma medida, o filme parece nos expor, na sua montagem, o próprio processo de repetição, em uma dinâmica de estar com os meninos. A dinâmica das variações, à qual nos referimos, parece ser uma maneira que expressa esse tempo dos ciclos, tão caro ao acontecer cotidiano. Na estrutura desses blocos, entre-meados pelo fio tênue da trajetória de Junim, o filme parece encontrar uma maneira possível de devolver ao espectador a prática de aproximação decantada junto às alterações miúdas na experiência vivida. O cotidiano de repetições é uma marca do elaborar da experiência moradora, que o filme acompanha, com demora.

Nessa toada das variações, A vizinhança do tigre parece, então, nos enviar algo da proximidade construída. Cada bloco atualiza uma nova potência de corpo dos garotos, exibe as suas performances renovadas, em relação com a casa e com a vizinhança. Dinâmicas de cena se repetem e, simultaneamente, se diferem infinitamente. Se não há aqui, na dimensão da diegese, o passar concreto do tempo ligado à experiência vivida para filmar, há um passar das vidas com o cinema, um constante ressurgir de uma nova cena na qual Junim e Neguim irão colocar um celular e cantar, como se o esquema repetido-renovado nos fizesse, a cada vez, chegar um pouco mais perto. A repetição desse constante variar de si, tramado na duração do tempo, gera um instalar da vida dos personagens na vida dos espectadores, uma intimidade que se instala internamente (corpos em cena) e para o corpo do espectador.

Dessa maneira, a escolha por diluir uma intriga e a centralidade de um protagonista, fazendo do filme uma circulação, se articula aqui com a lógica da proximidade tão cara ao filme. Quero dizer: ao nos instalar nesse

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fluxo, nessa passagem entre momentos de uma constelação, montados numa certa perspectiva de coexistência, o filme parece encontrar uma forma para indicar a reiterada apreensão das fagulhas de um cotidiano. Na espessura da duração de um filme, que condensa outra duração, aquela bem mais larga da filmagem, o cinema encontra uma medida para instalar o espectador na espessura da experimentação cotidiana, entremeada sem um fio contínuo, feita e refeita, reiteradamente. O espectador está de passagem naquele encontro duradouro.

Apostamos que A vizinhança do tigre trabalha, em cada jogo e brinca-deira, em cada cena de desafio, a recusa de enquadres formulados pelas dinâmicas organizadoras e distribuidoras das possibilidades no campo social. A abordagem ficcional abole um consenso sobre aquilo que compete a cada sujeito fazer do seu tempo: a ficção é justo o que cinde qualquer amarra entre um sujeito e uma função. Na companhia da ficção, Junim, Neguim, Menor, Adílson e Eldo não estão destinados ao trabalho ou a caminhos inexoráveis em suas vidas. O investimento pelo avizinhamento consiste em se deixar contagiar por aquilo que, nas experiências vividas, escapa às demarcações dos papéis, potencializando também uma escritura que vai imaginar destinos e sortes outras, travessias diferidas, reelabora-ções das memórias, das histórias individuais e coletivas e do espaço vivido. Talvez haja aqui uma estratégia, tão provisória quanto contingente (jamais regra ou receita), para fazer do cinema uma arte vizinha do mundo do outro.

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REFERÊNCIAS:

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_____________. “O efeito de realidade e a política da ficção”. In: Novos estudos – CEBRAP, 86: p. 75-80, Mar. 2010.UCHOA, Affonso. “Entrevista Mostra Aurora. Entrevista de Affonso Uchoa”. In: 17ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes. Tiradentes, 2014..

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Capítulo 6

Sobrevivências dos Rostos nas Imagens: aproximações entre Lévinas e Didi-Huberman1

Frederico VieiraRicardo Lessa Filho

1 Texto originalmente apresentado ao Grupo de Trabalho em “Comunicação e Experiência Estética” do XVII Encontro Anual da COMPóS, na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, em 2018.

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1. Prelúdio2

Figura 1 - Thiago Fogolin, Sem Título, 2011

Vulnus. O gesto do trauma indicia a cicatriz inescapável do olhar tamponado, obliterado, irrecuperável. O olho enclausurado pela pele suberina é testemunhado por seu outro, o olho vivo e movente que lhe dirige a pupila; o globo aquoso de um outro, ao lado, que (re)aponta a ferida seca, vazando pela imagem a retidão do rosto exposto. Dá-se a crise entre o que vê e o que assiste, ambos indecidíveis. A fissão se torna o paradigma da fotografia para interromper o fluxo das imagens fusionais, saciantes, totalizadoras. Nela a mesma linha dedo-indicadora que comprime, que traz pra dentro, também dilata e dilacera o par de olhos, um sim, outro não, em minha direção; disse-mina e fala ao olhar expectante.

2 Este “Prelúdio” se vale de conceitos que serão explorados nas partes subsequentes do artigo; com isso, não se quer desenvolver sua compreensão racional de imediato, mas antes como se atiçar tais conceitos a partir da imagem exposta ao olhar. Busco com isso favorecer a aproximação do leitor de Lévinas e de Didi-Huberman via apelo ético entramado na/pela fotografia.

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“A ferida dói?”. “Mais ou menos”3. Se todos os signos que nela de mostram confluem de certo modo para o centro da fotografia, a um só tempo o rosto retratado atravessa- me rugosamente, lança-me para fora da mostração, faz-se clamor. A fotografia que nos evade, também endereça-nos um silêncio perturbador.

A aproximação desse homem, mediada pelo momento do gesto retratado, segue entre o visto e o que margeia o visível. O meu olhar vê e passeia por entre as dobras da pele da imagem; a íris sofre num gesto que se dá entre a vigília e a expectativa pelo estranho, o que se revela pelos pixels, como se tomada pelo toque de um rosto que nos interpela. A experiência estética que adentra e extravasa da imagem nos afeta o olho-corpo, numa trama que adensa a precariedade do outro em mim. E a despeito da tragédia cifrada--exposta pela image m, o trauma da ferida retratada flerta com minha retina, apelo que se materializa no corpo deformado, cegando o status da repre-sentação para vocalizar outramente uma espécie de chamamento. O vulnus que é também uma convocação, uma interpelação que, ao ser ouvida, abre passagem para a emergência do rosto.

“A ferida dói?”. “Mais ou menos”. O grisalho dos fios contrapõe o branco sobre o negro: vestígios de pele se espalham pela queratina dos cabelos; pelas caspas encrespadas nas mangas de lã da roupa; pelas reentrâncias do casaco que lhe serve de segunda pele; pelas fendas dos lábios cerrados, ressequidos. Tal subjetividade rugosa em permanente decomposição, desca-mação e, por isso mesmo, mudança, faz-se imperativa em sua máxima fragili-dade, faz deslocação de mim. E resiste algo em mim no acolher desse outro precário, cujas sujidades se confundem com a paisagem cinza e inóspita dos grandes centros urbanos.

A ferida segue interpelando- me, mas meu olhar de esguelha foge, passeia errático sobre o corpo, sem acolher de pronto ao seu clamor. Averso ao meu corpo, o mutilado corpo-outro que a imagem expõe apresenta-se: cicatriz dura, mas de cujas frestas o líquido vivo extravasa; olho-não-olho que me inter-pela e que, de outro modo, impõe-se. Esse entre mim e o outro, incômodo

3 De acordo com o autor da foto, essa foi a resposta a ele dada repetidamente pelo homem retratado, sobre diferentes indagações, sendo a primeira delas a respeito da cicatriz do olho esquerdo, ainda aberta em parte. Depoimento de Thiago Fogolin colhido em 5 de junho de 2016.

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espaço sem nome. Na experiência do gesto que aponta para o acolhimento, sofro também a invasão pelo outro, a intrusão a que resisto como se inimigo. Esse-aí que me desaloja por sua estranha inospitalidade e que se perfaz veio da violência e do padecimento, gesto acusador nascido da imagem dessa alteri-dade ambígua, vítima-algoz.

Contudo, já me evadindo do pensado, do Ser que deseja capturar e compre-ender esse rosto que se apresenta; que faz tornar dito a suspensão extática da imagem vista – abro-me de fato ao acolhimento do estrangeiro retratado, de seu corpo sob minha pele, mesmo que aparentemente cedo para tanto. O aproximar do outro gesta a imagem: “eis-me aqui”. Anuncio o meu sim originário, fazendo da linguagem ética uma resposta a essa aproximação que me chega pela fotografia, sem nome, sem histórico, sem leis. Um rosto que me desnuda, por sua vulnerabilidade extrema, descarnando o Si, apesar de Si. A resposta já está dada, antes mesmo do dito revelado e pelo sofrer que a fotografia realiza no olhar, mesmo que precária, mesmo que não ainda face a face.

“Mais ou Menos”, pois. Expressão que se trai na assimetria que já se estabe-lece nesse contato triádico: olhos para a imagem, olhar da imagem, imagem do olhar. A fotografia, como uma outra de um outro, se revela como passagem da pele, para-além da mostração dos seus vestígios; ela toca o corpo; esse estremece, sofre a aproximação e é alcançado pela voz que ecoa do gesto em vista feito imagem. O dito se trai pelo que expressa e, pelas fendas dos signos que se articulam naquilo que a fotografia mostra e vocaliza, dá passagem ao Dizer.

Mais que mostrar, e já menor nisso, a imagem diz; reapresenta o dito travado no momento em que fotógrafo e o corpo de outrem se encontraram. A face retratada, se captura do dito, por outra via transborda da imagem sua dimensão não-mostrável, porém audível. E se o olho do expectador-expec-tante é capaz de escutar o clamor ético que lhe endereça a ferida via retratação, palavra ambivalente; é porque compartilha de algum modo dessa condição retratável, como (de)vulnus e não como-um; vulnerável naquilo que difere e que, concomitantemente, faz reunir outrem proximamente, como albergamento, hospedaria.

A relação de hospitalidade convocada pela passagem do rosto é, contudo, muito difícil de ser apreendida; passar da presença do outro ao clamor do rosto e, então, à hospitalidade – não necessariamente nessa mesma ordem, pois pela hospitalidade o outro também se faz presença e só então ouço seu

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clamor – é uma experiência sôfrega, repleta de reentrâncias e exigências. A um só tempo, padecer de deslocamentos e libertações.

O expectante olhar que extravasa da pele-cicatriz, desinquieta e desaloja; e passa a se hospedar na imagem, seja por intrusão ou acolhida; a coabitá--la como um Terceiro que chega ao centro do rosto para nele se (de)fusionar. O Terceiro faz completar a entrega do dito fotográfico, produzido pelo primeiro olhar do fotógrafo, interrompendo contudo a poiesis para desbordar as infinitas possibilidades de uma aesthesis que parte do sensível, da absoluta alteridade comunicante que revela-se, (re)trato, sem fiar-se em entendimentos ou intuições apriorísticas.

A aproximação do outro, do outro-outro e do Terceiro faz girar o eixo da perspectiva ética da linguagem na imagem fotográfica. Padecem diacro-nicamente de um sofrer inominável o fotógrafo, o rosto exposto e o olhar expectante.

A imagem se abre como um nó górdio da experiência estética que pade-cemos por entre os olhares. Uma via pela qual acreditamos ser possível fazer uma política outramente, a partir de uma espécie de visitação e transcendência, rumo a uma democracia por vir das infinitas singularidades, subjetivamente gestadas e nas fotografias expostas; compostas por branco, preto, mas antes por incontáveis cinzas.

2. A Comunicação e a ética do sobreviventeLévinas (1906-95), filósofo lituano radicado na França, em seus escritos

tensiono u princípios caros ao judaísmo com outros típicos da filosofia ocidental, mantendo, contudo, o rigor filosófico de seu pensamento nas obras que escreveu, embora seus detratores não o reconheçam. Interessa--me sobremaneira as inflexões que Lévinas produz entre o modo de pensar greco-romano e a perspectiva oriental, contrapondo, numa analogia, a visão de Odisseu à de Abraão.

Vítima da perseguição aos judeus pelo nazifascismo, ele foi prisioneiro em campo de trabalhos forçados durante a Segunda Guerra Mundial, na qual todos seus familiares, com exceção de sua esposa, foram mortos. Iniciou seus escritos filosóficos influenc iado pela Fenomenologia de Husserl e a ontologia de Heidegger, superando posteriormente a linha de pensamento de seus antecessores.

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Souza (1999) apresenta-nos o pensamento de Lévinas em três fases cronológicas : a primeira (1929-1951) em que os escritos estão centrados na fenomenologia de Edmund Husserl e ontologia de Martin Heidegger; a segunda (1952-1964), em que Totalidade e Infinito (1961) protagoniza o ápice dos trabalhos anteriores e se constitui como referência fundamental para a compre-ensão de obras posteriores. Nessa fase sobressaem as reflexões a respeito da metafísica da linguagem do Rosto e da ideia de Infinito, reapropriada pelo filósofo a partir de Descartes, com destaque para as noções de alteridade e das relações com outrem; na terceira fase (1966-1979), em que De outro modo que ser ou para lá da essência (1974) promove uma viragem conceitual importante, dá-se a discussão ética mais profunda de Lévinas. Conceitos como substituição e obsessão pelo outro são apresentados a partir de uma compre-ensão da subjetividade como refém de outrem. Nessa última fase, Lévinas faz da hipérbole a linha mestra de seus escritos e radicaliza a concepção de alteridade que já apresentara nas fases anteriores. Embora se possa distinguir com certa clareza tais fases da filosofia levinasiana, não se pode dizer que elas sejam estanques ou que apresentem uma evolução linear.

Dardeau (2015) comenta a atualidade do pensamento de Lévinas, desta-cando o gesto do filósofo de colocar a alteridade como o centro principal de sua obra. Para ela, ao fazer isso Lévinas abre as portas para assumir um posicio-namento de seu pensar como não-neutro diante do mundo, desenvolvendo um novo modo de “racionalidade” e “a responsabilidade como nova forma de fazer filosofia (…) ao invés de reduzir a ética a um discurso positivo ou à noção de direitos humanos, [Lévinas] a (re)pensa como experiência, como infi-nita tarefa” (p.193).

O pensamento tardio de Lévinas nos apresenta um manancial de conceitos que, sob a perspectiva da Comunicação, oferecem interessantes caminhos para se pensar, a partir de uma outra ética, o campo das relações sociais e das imagens a elas articuladas, considerando - se especialmente as subjetivi-dades que estão implicadas em ambas.

Desde seu breve ensaio “Linguagem e Proximidade” de 1967, Lévinas explora a dimensão do sensível na constituição da comunicação entre os entes, atentando para a linguagem que se faz embrenhar na experiência da pele e na aproximação dos sujeitos. Esse processo, na visão do autor, produz vestígios a partir da “carícia” que se dá no momento em que o eu se encontra exposto ao outro.

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A visão é certamente abertura e consciência e toda a sensibilidade que se abre como consciência diz-se visão, mas a visão conserva, mesmo na sua subordinação ao conhecimento, o contato e a proximidade. O visível acaricia o olho. Vê-se e entende-se como se toca (LÉVINAS, 1967, p. 168, grifo nosso).

Esse acariciar, contudo, não absolve a exposição mútua entre os sujeitos de seus padecimentos, da frequente violência e aversão que o contato venha a produzir. A visão levinasiana da carícia, longe de qualquer romantismo, está mais para o padecimento de uma experiência de proximidade que nos exige uma saída de si que, propriamente, o de um encontro harmônico e consensual entre mim e o outro.

Já o deslocamento entre os sentidos ver e tocar proposto por Lévinas, os quais se embaralham entre os viventes no campo da experiência coti-diana, ganhará contornos mais radicais em sua obra De outro modo que ser, em que a dimensão ética caminhará da deposição do eu para a substituição de outrem. Nessa seara a perspectiva afetiva da sensibilidade ganhará centra-lidade, já que a subjetividade passará a ser para Lévinas como se pele rugosa, que está susceptível; pele que se afeta.

Fato é que a suceptibilidade para Lévinas é inescapável, posto que outrem do outro, o terceiro, cumpre o papel de atravessar e fazer justiça à possibilidade de tirania do outro sobre mim. Assim, a figura do terceiro será, e especial-mente no campo da Comunicação, um paradigma para se pensar as relações que se estabelecem a partir de outra ética. Promove-se o “arrancamento” de si, apesar de si, na interdição dos sis por outrem. O autor também ressalta o aspecto da incerteza da comunicação, correndo-se o risco do mal-entedido, da falta ou da própria recusa da comunicação que, por sua vez, torna-se trans-cendente enquanto “vida perigosa”, como um “belo risco que se corre”. Com isso, Lévinas não quer prescrever uma moral especial para a linguagem ética, mas contrastar a aproximação ao saber e o rosto com o fenômeno. A responsa-bilidade na comunicação provê uma implicação anterior a quaisquer verdades, rompendo com a certeza e tornando subsidiárias as normas balizadoras dos jogos das relações.

Carrara (2010) lembra que assim como a obra de Lévinas ganha contornos diferentes em cada uma de suas três fases, também o conceito de Rosto se trans-forma nessa trajetória. Se em Totalidade e Infinito ele é caracterizado como

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uma forma de presença, com seus paradoxos, significando “a imediaticidade do face-a-face, a retidão e a franqueza que dão origem à linguagem”, em De outro modo que ser o Rosto é caracterizado por Lévinas “a partir da ambiguidade do fenômeno e de sua defecção. A proibição de matar se inverte em responsabilidade pelo outro e posteriormente em ‘obsessão pelo outro’ ” (p.53). Nesse artigo me interessa explorar, sobretudo essa última perspectiva, “mais tardia” na obra de Lévinas, embora o presente texto não fuja das nuances conceituais incluídas na segunda fase do autor.

De forma sintética, pode-se dizer que para Lévinas o Rosto torna nu o homem; não a nudez da vida nua, da neutralidade esvaziada de sentido, mas de um clamor ético; faz do homem ente exposto e vulnerável, rompe com o contexto cultural e social muitas vezes reificante. Para o filósofo a expressividade do Rosto ultrapassa a imagem plástica que possamos lhe atribuir, embora o Rosto ofereça tal imagem como um resto da desconstrução que promove em sua passagem pela expressão. A imagem, assim, seria o resto de algo que não se deixa capturar de forma total, já que para o autor, “o fenômeno é ainda imagem, manifestação cativa de sua forma plástica e muda, a epifania do rosto é viva” (1972, p. 51).

Portanto, o Rosto levinasiano deve ser entendido para além da sua mani-fest ação concreta da face humana, podendo se manifestar muitas vezes em caráter indicial no rosto concreto, mas apontando para o Infinito das alteri-dades; ao mesmo tempo em que o vejo, o Rosto não se deixa reduzir às deno-minações do percebido.

(…) pergunto-me se podemos falar de um olhar voltado para o ros-to, porque o olhar é conhecimento, percepção. Penso antes que o acesso ao rosto é, num primeiro momento, ético. Quando se vê um nariz, os olhos, uma testa, um queixo e se podem descrever, é que nos voltamos para outrem como para um objeto. (…) A relação com o rosto pode, sem dúvida, ser denominada pela percepção, mas o que é especificamente rosto é o que não se reduz a ele (LÉVINAS, 1982, p. 77, grifo nosso).

Lévinas situa o rosto fora do campo de visão, elevando a estética não redu-zida à forma, mas ampliando-a pelo verbo que expira, atiçado pelo pneuma. “Pode-se dizer que o rosto não é “visto”. Ele é o que não pode se tornar um conteúdo, o que vosso pensamento abarcaria; ele é o que não pode ser contido,

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ele vos conduz ao além” (LÉVINAS apud POIRIÉ, 2007, p.27). Em outras pala-vras, o rosto fala; vocaliza, mas não por meio das palavras comuns e sim através de algo que antecede a elas; o rosto é incomensurável e não se deixaria tematizar por completo.

Observa-se que em De outro modo que ser o sujeito é pensado a partir de sua vulnerabilidade, e o Rosto deixa o campo da fruição para padecer de sua corporalidade radical. Na proximidade do corpo se dá o encontro efetivo de carne e sangue; se dá a verdadeira comunicação que não é a tematização de uma relação (discurso), mas a relação mesma que foge a qualquer tema-tização, significância mesma da significação, anárquica e à revelia de quais-quer idealismos. Carrara (2010) considera que a abordagem da terceira fase de Lévinas reafirma a intuição presente no início de sua trajetória filosófica: “a identidade do sujeito não vem dele mesmo, mas de sua interpelação pelo Outro. Ele é para o outro. O um- para-o-outro da responsabilidade infinita se oferece como significância que fundamenta sua existência (...)” (p. 83). Nas palavras de Lévinas:

A subjetividade do sujeito é a vulnerabilidade, exposição à afeição, sensibilidade, passividade mais passiva, tempo irrecuperável, dia--cronia inssemelhável da paciência, exposição sempre a expor, expo-sição a exprimir, e assim ao Dizer, e assim ao Dar (LÉVINAS, 1999a, p. 85).

Ainda na obra De outro modo que ser, Lévinas pensará questões funda-mentais à Comunicação como são o Dizer e o Dito, e os discursos neles e entre eles forjados; a noção de Linguagem a partir da proximidade sensível, destacada da sensibilidade subordinada ao entendimento e à intuição; a questão da vulnerabilidade como uma condição an-áquica dos seres, situando--os a priori fora da representação.

Assim, além do conceito de Rosto sobre o qual já discorremos, há esses outros dois conceitos-chave para a compreensão do pensamento sobre a comunicação em Lévinas (2011): o Dizer e o Dito. Ambos nascem como uma dupla ultrapassagem à anfibiologia entre ser e ente, binômio enraizado no pensamento ontológico de Heidegger (o ser que se desvela no ente e o ente que se desvela no ser).

O Dito, pertencente à ordem do enunciado, da tematização, do que se faz forma e que se apresenta, não diz o Dizer. Esse é, por sua vez, da ordem do

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impossível, do incomunicáve l, daquilo que o Dito não pode, na forma e contexto, conter. O Dito trai o dizer, mas o Dizer não se trai no Dito, o atravessa. Um remete ao outro, todavia o Dizer não se esgota no Dito. Assim, ao mesmo tempo em que o Dito pertence à ontologia e ao conhecer, também significa pelo Dizer que lhe escapa, mas que nele imprime vestígio, rastro, passagem.

Lê-se além das entrelinhas o que se diz; isso significa dizer, redizer e (des)dizer o que é dito. O Dito é habitado por uma tensão que é capaz de subvertê-lo, interpondo ao tempo linear e redutível uma diacronia que nasce perante outrem, uma vez que o tempo, para Lévinas, é inaugurado no encontro com o outro.

Dizer é aproximar -se do próximo, “dar -lhe significaç ão”. O que não se esgota numa “prestação de sentido”, inscrevendo -se, em jeito de fábula s no Dito. Significação dada ao outro, anterior-mente a toda objetivação, o Dizer-propriamente-dito – não é do-ação de signo s. (...) O Dizer é certamente comunicação, enquanto condição de toda a comunicação, enquanto exposição. A comu-nicação não se reduz ao fenômeno da verdade e da manifesta-ção da verdade como uma combinação de elementos psicológicos (...) A intriga da proximidade e da comunicação não é da moda lida d e do conhecimento. A abertura da comunicação – irredutível à circula ç ã o de informações que pressupõe – efetua-se no Dizer. Ela não diz respeito aos conteúdos que se inscrevem no Dito e que se transmitem à interpretação e à descodificação efetua d a pelo Outro. Ela está na descoberta arriscada de si, na sinceridade, na ruptura da interioridade e no abandono de qualquer abrigo, na exposição ao traumatismo, na vulnerabilidade (LÉVINAS, 2011, p. 68-69, grifo nosso).

A subjetividade como “Dizer sem Dito” será, no Lévinas tardio, a chave para apreender a dimensão do inescapável e irredutível que atravessa o processo de abertura para outrem, da Comunicação. Lévinas expande por meio da linguagem hiperbólica que utiliza em De outro modo que ser, a compre-ensão de Rosto, valendo-se de (des)ditos recorrentes para abrir passagem ao dizer em suas reflexões sobre a linguagem ética, na qual a subjetividade é refém da alteridade. Interessante observar que o capítulo 4 dessa obra, no qual Lévinas versa sobre a Substituição, dando a ver a Comunicação como um dos seus elementos constituintes, foi o embrião da versão final publicada da mesma;

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ele reúne textos de diferentes conferências e publicações realizadas pelo autor nos anos de 1967 e 1968. Se em tal capítulo tem-se o coração de De outro modo que ser, sem dúvidas a Comunicação está no seu núcleo.

Permito-me citar um trecho longo, todavia fundamental da palavra do autor, pela força de sua riqueza e pela impossibilidade de traduzir suas asserções.

Comunicar é certamente abrir-se; mas a abertura a não é completa se ela espera o reconhecimento. Ela é c o mp l e ta, não ao abrir -se ao “espetáculo” ou a o reconhecimento, mas ao torna r- se responsabili-dade por ele. Que a ênfase da abertura seja a responsabilidade pelo outro até à substituição – o para o outro do desvelamento, da mostra-ção do outro, que se inverte em para outro da responsabilidade – essa é, em suma a tese da presente obra. A abertura da comunicação não é uma simples mudança de lugar, para situar uma verdade do lado de fora, em vez de guardá-la em si; o espantoso é a ideia ou a loucura de a situar do lado de fora. Viria a comunicação por acréscimo? Ou não será o eu – substituição na sua solidez de idêntico – solidariedade que começa por dar testemunho de si mesma a Outrem, sinal da do-ação do sinal, e não transmissão de algo num a abertura? Trata- se de desloca r a questão de forma singular, quando pergunta m os se o que se mostra nesta abertura é tal como ele se mostra, se o seu aparecer não é mais do que aparência (LÉVINAS, 2011, p.135 , grifo nosso).

A abertura da Comunicação que, como já vimos, se dá na substi-tuição, visa a responsabilidade que deriva do que se mostra de outrem. Esse mostrar, em proximidade, está alicerçado no sensível, e não somente no visível posto que tocar é ver, como já citamos.

Detenhamo-nos nesse ponto para tratar, a seguir, de importantes contribuições de Didi- Huberman.

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3. Entre cascas e sobrevivênciasDidi-Huberman é descendente de judeu-alemão. Seu avô, Jonas, morreu

em Auschwitz em 1944. Em ensaio recente, Cascas, Didi-Huberman (2017) revalida a necessidade de imaginar apesar de tudo o inimaginável e, apre-sentando fotos de sua autoria captadas em visita a Auschwitz-Birkenau, aliadas a textos seus que registram os aspectos sensíve is da experi-ência de estar naquele lugar. O autor propõe uma montagem entre palavras e imagens, frases que tentam escrutar os rostos daqueles e daquelas que pade-ceram o horror nazista. Suas fotografias e relatos estão à procura “das coisas chãs e hediondas, simples e vertiginosas ”, vestígios da Shoah. Essa catástrofe constitui o pano de fundo para a compreensão da obra que se situa entre a alteridade judaica que Didi-Huberman traz em sua pele, nos corpos de seus antepassados, e o trabalho de reflexividade diante do inominável horror que resta como imagem.

Para o autor “olhar as coisas de um ponto de vista arqueológico é comparar o que vemos no presente, o que sobreviveu, com o que sabemos ter desaparecido”. (p.41) E é isso que resulta de sua experiência: são fotografias absolutamente triviais, da paisagem cinza, dos vestígios, das flores do campo que crescem sobre as valas em que arderam os cadáveres, hoje aterradas; imagens de uma trilha, uma cerca, cascas de árvores, enfim, insignificâncias. “Os solos falam conosco precisamente na medida em que sobrevivem, e sobrevivem na medida em que os consideramos neutros, insignificantes, sem consequências. É justamente por isso que merecem nossa atenção. Eles são a casca da história” (p.66).

Ao fotografar o silêncio eloqüente da paisagem e de seus vazios, de suas superfíc ies consideradas “sem consequências” pelos nazistas; ao nos relatar sua experiência de caminhar pelos mesmos lugares que testemunharam o geno-cídio, o autor vai nos revelar as coisas chãs; nos oferecer uma mirada sobre os rostos daqueles anônimos que foram mortos como res, vidas não--passíveis de luto, vida nua. Assim, Didi-Huberman os faz levantar – um rosto que se ergue, o outro que nos escapa; suas fotografias refluem o tempo e dão passagem ao clamor do extermínio que prossegue por entre os solos e as bétulas.

A paisagem-rosto (e não o rosto-paisagem) seria um conceito possível de se derivar a partir desse contexto, valendo-nos do aporte de Lévinas para

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abordar experiências dessa natureza. Aparições de insignificâncias que se pode considerar como uma via de comunicação do (in)comunicável; das formas de vida elimináveis. Na paisagem se revela a interpelação ética dos corpos ausentes, ocultados, mas audíveis pelas superfícies.

Há superfícies que transformam o fundo das coisas ao redor (…) Po-demos pensar que a superfície é o que cai das coisas: que advém di-retamente delas, o que se separa delas, delas procedendo, portanto. E que delas se separa para vir rastejando até nós, até a nossa vista, como retalhos de uma casca de árvore. Por menos que aceitemos nos abaixar para recolher alguns pedaços. A casca não é menos ver-dadeira que o tronco. (…) Ela é a impureza que advém das coisas em si. Enuncia a impureza – a contingência, a variedade, a exuberância, a relatividade a de – de toda coisa. Mantém-se em algum lugar na interface de uma aparência fugaz e de um a inscrição sobrevivente. Ou então designa, precisamente, a aparência inscrita, a fugacidade sobrevivente de nossa s próprias decisões de vida, de nossa s expe-riências sofridas ou promovidas (DIDI-HUB E R M A N, 2017 , p.71, grifo nosso).

Como se cascas, as fotografias, desde sempre películas, superfícies finas ou luminescentes, quase-corpos, podem cair dos rostos e nos trazer o para além da experiência; podem nos trazer, junto com as suas sujidades, a passagem da pura comunicação de outrem. As fotografias podem fazer das insignificâncias, inscrições sobreviventes e transformadoras. Não há nas imagens do ensaio a presença de corpos, mas sem dúvida os vestígios dão passagem ao dizer dos rostos do holocausto. Assim também ocorre no conjunto das fotografias dessa série: as fachadas nos visitam os olhos na medida em que nos perguntamos o que reside por detrás dela, não exatamente no interior, mas na nuca das imagens.

Em outra obra anterior, Sobrevivência dos vaga-lumes, Didi-Huberman (2011) discute o contraste entre as luzes ofuscantes do espetáculo imagético e midiático, do qual nossa sociedade contemporânea se alimenta em grande medida, e as intermitências que lampejam na escuridão de uma espécie de experiência ignorada e que resiste a tal espetáculo, à luminosa cegueira que nos acomete. O autor está interessado em reconhecer quais imagens possi-bilitam o pulsar de uma passagem humana, mesmo que frágeis e precárias como nossa própria condição de existentes.

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A partir de Agamben, Didi-Huberman denuncia que a força das imagens luminosas do espetáculo contribuem para maquinar povos subjugados, hipnotizados pelo seu fluxo. Embora haja certo tom apocalíptico nessa visão, não se pode ignorar as sobrevivências e intermitências ao clarão, aos holofotes da hiperexposição imagética. Há um contra-fluxo de imagens, de seus autores e corpos, que escapam à luz e à glória totalizantes, que oferecem fissuras às experiências de momentos inestimáveis. Nesse ponto, Didi--Huberman retoma o olhar benjaminiano sobre a imagem, contrapondo-o ao de Agamben – que advoga uma redenção da imagem apenas no post mortem, apontando para o ser-para-morte de Heidegger.

Já em Peuples exposés, peuples figurant, Didi-Huberman (2012b) analisa a série de fotografias produzidas por Philippe Bazin durante sua residência do curso de medicina em um hospital na França, no qual cuidava de pacientes idosos. A tese de Bazin intitulada “Aspectos humanos e psicossociais da vida em um centro de longa estadia” descreve seu trabalho no setor de geriatria, com detalhes das rotinas, dos objetos, corpos, gestos e sensações vivenciadas por ele durante a pesquisa. Sua reflexão aborda aspectos como o da negação da humanidade; da humilhação e violência dirigida aos idosos naquele ambiente. Para Didi-Huberman, a tese se torna um verdadeiro ensaio fotográfico no qual se mistura m rostos fotografados de perto, situações de reportagem, de documentário social, de realismo poético. De acordo com o autor, Bazin busca encontrar parcelas de humanidade –sobrevivências? – no gesto da escuta, no exercício de olhar para (e não através dos) idosos, no esforço de dirigir-se ao outro, de interpelá- lo e ser por ele interpelado.

Se aceitarmos entrever as imagens de Bazin (figura 2), sem dúvida perceberemos a compacidade vertical dos rostos, sua natureza, quase, de estelas. Como se a resistência ao languidecer-se tornasse pedra. Como se a vida residual e sufocada se convertesse, na operação fotográfica, em uma vida erguida que se impõe a nós em sua frontalidade, em sua precisão, em sua dimensão de coisa exposta. Então o rosto como esta coisa eternamente exposta do homem – ao homem, sob e sobre o homem –, desta abertura reveladora, diríamos inclusive, desta nudez absoluta de nossa fragilidade que reside, sem dúvida, no locus de onde todo rosto começa. Se para Lévinas o rosto torna nu o homem, é preciso então ler as palavras de Agamben em seu pequeno ensaio levinasiano sobre a ideia de rosto: “Por toda parte em que algo alcança a exposição e tenta tomar o próprio ser exposto – por

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toda parte em que um ser aparece afundado na aparência e deve, desde o início, retornar a ela –, tem-se um rosto” (AGAMBEN, 2001, p. 80).

Assim, poderíamos dizer que a nudez do rosto não significa simplicidade, e não pode em nenhum caso limitar-se à evidência esquemática do que deno-minamos, para efeitos de gênero artístico, um “nu”. A nudez, sua exposição, é matéria de trabalho, porque giram em seu interior a representação do corpo e de um tato camuflado. Como se este rosto envelhecido, quase desfigurado – quase que despicturalizado – no momento mesmo que nos debruçamos a olhá- lo uma ferida fosse infligida tanto em nós quanto no rosto que olhamos. Esse rosto já é a clemência e que sem dúvida não deixa de morrer – de voltar a morrer – sob os nossos olhos.

O enquadramento curto desta imagem reduz, é certo, a perspectiva, mas impõe a força do face à face. Emannuel Lévinas descrevia a “situação do face à face” como “o cumprimento do tempo” (LÉVINAS, 1993, p. 69). Tanto quanto um cumprimento do tempo, um cumprimento da ética, sem dúvida, ali mesmo onde rosto que nos toca – que nos expõe e também nos dilacera – realiza uma troca entre a vida do passado e a vida do porvir, como se no vestígio de cada traço algo de nossa ancestralidade sempre emergisse como gesto ético – é dizer, onde o ethos só pode existir quando exposto, quando reconhecido apesar de tudo. O Outrem que devo acolher é o rosto do Outro que me vem, que busca invadir- me no momento mesmo em que me comovo com sua (re)aparição. Sobre essa ética da fotografia, sobre esse gesto que faz emergir o rosto a partir da violência intrínseca de sua própria exposição, sobre uma sustentação de uma dignidade nestas imagens verticalizadas, escreve Bazin:

A ética da fotografia é a responsabilidade que tenho a respeito a cada pessoa que fotografo. Procuro erguer as pessoas. De uma maneira ou outra, seja no hospital onde estão extendidas em suas camas, ou na instituição que as esmagam, as pessoas estão física ou simbolicamente deitadas. Meu desejo é devolver a cada uma das pessoas cujo rosto fotografo a dignidade do ser humano verti-calizado. Dignidade do olhar que é necessário sustentar (BAZIN, 1997-1998, p.74).

Vieira e Marques (2016) comentam a leitura que Didi-Huberman faz do trabalho de Bazin, destacando que a vida residual dos idosos, ligada à gestão e proteção do ambiente hospitalar, expunha também as

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condições de vulnerabilidade e de precariedade através de mecanismos de controle e subexposição, conduzindo à desaparição social, à impesso-alidade e à desumanização. A produção fotográfica em questão abre-se a uma forma de escuta desse apelo silencioso que emana dos corpos dos internos:

Bazin devolve-lhes o rosto utilizando o aparato fotográfico do olhar, concebido para transformar o olho clínico e sua gestão técnica necessária em “olho à escuta”. Ele descreve essa prátic a, em que falar e olhar se conjugam na mesma temporalidade, como uma iniciação, uma viagem iniciática ao reconhecimento dos outros, partindo de si mesmo (DIDI-HUBERMAN, 2012 b, p. 38).

Figura 2 - Philippe Bazin

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Se as imagens de Bazin nos apresentam uma exposição dos sem nome, dos anônimos, é também claro que uma fotografia não seja capaz de devolver a palavra ao sujeito fotografado. Mas Didi-Huberman (2012b, p. 43) nos lança a uma reflexão sobre as imagens de Bazin: embora elas não restituam o nome próprio às pessoas cujos rostos foram expostos, há uma intenção de erguê-los, sustentá-los e lhes conferir uma fronte, um confrontar-se e, nessa sequ-ência, um enfrentamento (“faire face”). E isso já não seria expô-los na dimensão de uma possibilidade de palavra?

4. Ética do sobrevivente e as sobrevivências nas imagensAproximando-se as perspectivas de Didi-Huberman e de Lévinas, vê-se

em primeiro lugar que o rosto retratado numa imagem não se constitui somente a representação do humano, mas na disjunção entre o que se repre-senta visualmente e o que me fala quando faz ressoar a pele do tímpano e da retina, a significação do rosto que me visita transcende o mostrado para-além do jogo da representação.

O reconhecimento dessa dimensão do rosto em sofrimento mani-festo na imagem, ou mais propriamente, dos vestígios de sua passagem pela expressão de sofrimento revelada pela face fotografada, é possível quando o espectador é implicado na/pela imagem. Nas palavras de Didi-Huberman, não somente quando esse a vê, mas quando a mira e, perante o sofri-mento representado junto ao campo da visão, torna-se o espectador que escuta certo clamor da face/corpo retratado em sofrimento.

Mirar não é simplesmente ver, nem tampouco observar com maior ou menor competência: uma mirada supõe implicação, o ser afetado que se reconhece, nessa mesma implicação, como sujeito. Reciproca-mente, uma mirada sem forma e sem fórmula não é mais que uma mirada muda. É necessário uma forma para que a mirada aceda à lingua gem e à elaboração, única maneira, para essa mirada, de “entre-gar uma experiência e um ensinamento”, quer dizer, uma possibilidade de explicação, de conhecimento, de relação ética: nós devemos, então, nos implicar em, para ter uma oportunida de – dando forma à nossa experiência, reformulando nossa linguagem – e nos explicarmos com (DIDI-HUBERMAN, 2008, p. 41, grifo nosso).

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Daí advém que a escuta do Rosto prediz o dito, concede por substituição voz ao Dizer que segue entrelaçado e entrelaçando-se ao dito, posto que a noção de testemunho está presente na subjetividade manifesta pelo que é absolutamente outro, em suas infinitas formas de vida.

Daí também, como segundo ponto relevante nessa aproximação entre os dois pensadores, a importância de se diferenciar o aparecer (aparição) da aparência, problematizados Lévinas, conforme citação exposta acima; e o que é tematizado por Didi-Huberman (2017b) numa reflexão que o filósofo faz a propósito da Exposição Levantes4 e que nos remete ao seu importante aspecto coletivo, aos terceiros que atravessam a relação binominal para se colocarem como aparições. Essas desbordam as aparências, interrompendo a violência possível dessa suceptibilidade que, no caso em questão, aparece como genuíno gesto de protesto, de indignação dos corpos/rostos.

Filosoficamente, uma diferença enorme deve ser estabelecida entre “apa rição” e “aparência”. A aparência é enganadora, falsa, ela supõe o simulacro. Já a aparição é um evento autêntico, impossível de ser reduz ido: é um raio que corta o céu. A palavra “espetáculo”, sobretudo de-pois do pensador francês Guy Débord, tende a reduz ir toda dimensão visual a uma simples aparência, enganadora ou alienada. De minha par-te, acredito que, nos levantes, trata-se em primeiro lugar de aparições. Para que exista política, é preciso que haja uma encarnação, que algo seja posto no corpo e no movimento: uma dimensão sensível (em todos os sentidos da palavra). É preciso que tudo na política se torne visível a todo mundo. De agora em diante, a questão, evidentemente, é saber como produzir aparições e não aparências. Desculpe-me: não tenho a receita. Observo, porém, que em uma mesma manifestação popular pode haver aparências e aparições. Posso me decepcionar com o trabalho das apa-rências. Mas nada é mais precioso que um evento de aparição (DIDI--HUBERMAN, 2017 b, grifo nosso).

4 Levantes é uma exposição transdiciplinar sob a perspectiva das emoções coletivas; uma realização da instituição francesa Jeu de Paume, nascida da proposição do filósofo e historiador da arte Georges Didi-Huberman. Em Levantes estão presentes as diferentes formas de aparições e de representações dos levantes, atos populares, políticos, engajados nas transformações sociais, nas revoltas e/ou revoluções. Fonte: https://www.sescsp.org.br/programacao/133387_LEVANTES#/content=saiba-mais

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Interessante perceber como as dimensões das aparições e das aparências, levantadas por Lévinas e Didi-Huberman, se conectam, no campo do visível, àquilo que se mostra, podendo aninhar-se também aos conceitos do Dito e do Dizer, do binominal eu-tu ao campo do terceiro – campo da política e da justiça.

Compreendo que as aparências, sobretudo as mais espetaculares, são movidas pelo esvaziamento dos Ditos de suas possibilidades de passagem ao Dizer, o que torna o mostrar-se do rosto mais próximo de um simulacro que da manifestação de sua biopotência política. Já a aparição precisa se levantar; ela diz diretamente da subjetividade; terá necessariamente de se encarnar, fazer--se gesto de um Dizer singular e inapreensível em sua completude e que, justamente por estar aquém e além do corpo, demanda do Dito sua mostração direta, face a face. Lembrando-se que esse perante outrem é a demanda ética atravessada pelo terceiro, eixo fundante da justiça e da política:

É a proximidade do terceiro que introduz, com as necessidades da justiça, a medida, a tematização, o aparecer e a justiça. É a partir do Si e da substituição que o ser terá um sentido. O ser não-indi-ferente, não porque ele seja vivo ou antropomórfico, mas porque – postulado pela justiça que é conte m p o ra ne id ad e ou co-prese nç a – o espaç o pertenc e ao sentido da minha respo n sa bilid a de pelo Outro. O em-toda-a-par te do espaço é o em-toda-a-p ar t e dos rostos que me conce r n e m e que me põem em questã o, apesa r da indife re n ç a que pare c e ofere c e r-se à justi ç a (LÉVINAS, 2011, p. 135, grifo nosso).

Assim, o rosto revelado no seu Dizer político performa as aparições dos Ditos em seus terceiros, de seus levantes, os quais se enredam pela comunicação; rostos que aparecem em suas potencialidades, biopotências que rompem com o simplesmente aparentar ser; queda da máscara oca do eu, desencarnada de sentido e prisioneira da representação formal ou da apatia política.

Um terceiro ponto a se considerar é a própria compreensão da Comuni-cação a partir da filosofia de Lévinas que desemboca numa concepção de testemunho e de responsabilidad e que se abrigam em um aspecto-síntese, palavra-rosto que acolheria aos demais conceitos, interligando-os, no entanto sem simplificá- los. Exercício de sobrevivência por excelência.

Comunicação sobrevivente que se alberga no Dizer, que se avizinha em

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desinteressame nto de si-para-outrem como se testemunho próximo da alteri-dade alcançada pelo Terceiro; comunicação sensível que inaugura o tempo da relação face a face entre os Ditos que dela derivam e que, finalmente, gesta a exposição, a excuta do que está aquém e além do que se mostra no visível, rumo ao terceiro.

Sobrevivência. Trata-se disso, enfim. De uma comunicação sustentada por uma ética sobrevivente, mais que nunca atual; aquela que, por persistir na hospitalidade das alteridades mais vulneráveis, expõe-se ao testemunho, o que significa gesto genuíno e desde sempre voltado ao sim primor-dial, ao padecer que a responsabilidade nos coloca, para além da empatia; mesmo antes de qualquer cálculo, antes de nos situarmos como eu-comunicante, antes do Dito aparecer.

Sebbah (2017)5 apresenta-nos um caminho para a melhor compre-ensão dessa perspectiva que vai de uma ética do cativo – do ente prisio-neiro – a uma ética do sobrevivente, da substituição, e que se vale da experiência do homem Lévinas.6 A partir da leitura de um conto de Lévinas que descreve a destruição de uma cidadela francesa durante a Segunda Guerra, Sebbah (2017) faz uma ponte entre essa cena desoladora e a possibilidade de lucidez que se revela diante dos escombros; que faz buscar o sentido além do horror. Como se, ao fazer o atravessamento do fundo do poço, o sentido da vida surgisse, fazendo- nos sobreviver. Sebbah diz de uma sobrevi-vência que difere das formas fantasmáticas de sujeitos vagantes, à beira das estradas que, naqueles dias de guerra, caminhavam a esmo carregando consigo objetos, pertences, as tralhas que conseguiam arrastar. Nessa condição vulne-rável, os sujeitos se agarram às coisas com se todo o peso do Ser se garantisse no que está alheio a ele; nessa tensão do ter, na força de uma existência que, se a miramos de perto, a reconheceremos vazia.

Eis a ironia: os fantasmas que sobreviveram à destruição são, em síntese, nada; por isso se aprisionam às tralhas, como a colecionar os vestígios de

5 As reflexões referentes à ética do sobrevivente foram desenvolvidas pelo autor, Franç ois-David Sebbah, em Conferência de abertura do III Seminário Internacional Emmanuel Lévinas “Amor e Justiça”, realizado de 26 a 28 de outubro de 2017, na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – Fajee Dom Helder Escola de Direito, em Belo Horizonte.6 De 1939 a 1944, Lévinas esteve aprisionado em um dos campos da Bretanha; durante esse período foi escrita grande parte de sua obra De l’Existence à l’Existant (1947), publicada dois anos após o fim da guerra, bem como produções literárias, como poemas e contos.

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algum sentido que a existência ainda possa oferecer, mas que lhes escapa. Tais espectros são uma imagem próxima do Ser, esse-aí que é colocado à beira do precipício que nadifica; o Ser da vida nua, do rosto anônimo; ser para morte.

Sebbah afirma que, graças à derrocada, hoje sabemos que a reconciliação com a vida que segue não pode ser escamoteada; o sentido vem cedo ou tarde, vem desde além, e a verdade do ser humano não pode escapar à lucidez de tal experiência destrutiva. A realidade do Ser é uma tragicomédia; eis aí a ética do cativo que pode suster a abertura da comunicação e testemu-nhar o sofrimento de outrem como se primeiro responsável fosse por ele, antecipando o acolhimento do vulnus do outro sob a própria pele.

Ainda de acordo com Sebbah (2017), a sobrevivência, todavia, não se refere ao oposto desse sujeito cativo, nem da vida à morte; tampouco aquela sobrevida que se manifesta como gozo de quem, a despeito dos outros, será o último a morrer.

A ética do sobrevivente, em Lévinas, não é piedosa: trata-se da morte do outro e do padecer perante ela. O outro vai agonizar, vai morrer e eu não posso salvá-lo; mas posso, no exercício do desinteressamento mais radical, sobreviver e dar testemunho de sua morte por meio do gesto, no qual me exponho refém de seu sofrimento, perante sua dor. Ética compassiva, mas impiedosa, posto que não posso “ajudar” o outro a (não) morrer, não há como se evitar o padecimento.

Lévinas assim recupera o sentido dessa palavra compaixão; amor como puro desinteressamento – revela-se aí um sujeito de outra forma que não uma cris-pação sobre si mesmo, mas de uma oferta violenta. Não se trata, portanto, de um heroísmo pelo sacrifício; ao contrário, a compaixão levinasiana remete a uma substituição que difere e que rompe com a vida nua; nudez de outra ordem.

Mais uma vez: não se trata de se colocar no lugar do outro; na subs-tituição, eu não me coloco, eu me exponho refém. Nós ficamos sujeitos a esse entre, às duas beiras extremas, do cativo e do sobrevivente, que se negociam nas pequenas coisas. E Sebbah (2017) conclui que é pela condição de refém que pode acontecer no mundo a compaixão no sentido levinasiano… muitas vezes vivemos “pequenas vidas” de sobreviventes, pequenos gestos. Comunicamos isso, algo que sobrevive, apesar de tanta violência, tantos genocídios; apesar dos desastres ambientais provocados

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pela voracidade e técnicas humanas. Na contemporaneidade estamos perante essa urgência ética.

As imagens dessas sobrevivências, no sentido que nos coloca Didi--Huberman, faz também sobreviver os rostos – mesmo que em paisagens, meso que nas cascas – fotografia s compreendidas como ditos, que enquadram o rosto que testemunha, resvalando em parte pela representação. Por isso, no regime representacional não haveria espaço ao aparecer do rosto levinasiano, vez que ele está conectado àquilo que não se pode apreender diretamente na esfera das visualidades, mas ao que é possível ouvir como voz primeva.

Assim, antes de qualquer aparecer ou de qualquer representação que a imagem possa apontar a outrem, o testemunho perante outro, até a sua morte, e perante os outros dos outros, já é infinitamente exterior; por substituição, tal exterioridade que se converte na voz, palavreia e responde ao interior que, por sua vez, nos acusa, inscrevendo-se a responsabilidade originária e ética nessa significação anterior a qualquer contexto.

O que mais amplamente se comunica, nesse processo ético-político do qual as imagens são uma das mais potentes resultantes, são as faltas, as frestas, os espaçamentos que vazam as relações entre os sujeitos, gestando-as infinitas.

Quando a representação se sobrepõe ao representado, com recursos e efeitos, promove- se o afastamento do objeto do espectador, sob risco de um anonimato. Quando as imagens são menos pretensiosas, no sentido da esteti-zação das formas, elas estão ainda mais próximas do cotidiano e da vida ordinária do espectador. Nesse sentido, há maior “semelhança” entre quem vê e o sujeito retratado. Essa proximidade evoca, de dentro das imagens, outros modos de pensar. Nasce aquele que diz: “eu poderia ser um desses”, uma concreta ameaça à subjetividade do espectador. Aproximar subjetividades distantes – a do homem que vive nas ruas e a do espectador – é rasurar em parte sua certeza no mundo.

A precariedade da vida dita e retratada, tanto na poesia, quanto nas imagens oferece passagem ao rosto. Numa palavra: sobrevive à captura da representação; rosto cujos vestígios podem ser apreendidos como resultado de uma relação face a face entre o fotógrafo e o rosto tematizado. É possível entender a imagem como uma repercussão desse rosto que, na condição de voz e discurso, impregna, entrepeles, o testemunho do fotógrafo com a dimensão do que seria uma outreidade.

Há um paradoxo nessa natureza híbrida da imagem que pode fazer da

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aparição do rosto um chamado, que se ergue e diz “eis-me” a quem o retrata; mas que na retratação do sensível se retrai e passa a fazer ditos do que se vê.

Apostamos que essa ambivalência da fotografia, na fricção entre a visitação da face de outrem e a transcendência à representação, produz fendas comu-nicativas pelas quais a excedência da significação escapa do regime da repre-sentação. Se a imagem revelada padece da precariedade dos seus enquadra-mentos, podendo configurar instrumento de sujeição e crueldade, pode também alcançar os outros do outro, os terceiros que por ela captam uma relação.

O espectador seria esse segundo terceiro da relação. A imagem revelada já capta, mesmo que de forma precária, a relação da sobrevivência primeira do fotógrafo ao outro que se expõe e de ambos aos terceiros que lhes atravessam.

5. CodaPensar a comunicação como um fenômeno social a partir de um

universo de significação que não tenha como centralidade o eu-comunicante, mas que permita necessária evasão de si em direção ao absolutamente outro, significa acolher outramente um léxico linguageiro naquilo que se dá como pensado. Isso não significa que o eu-comunicante deixe de ter importância, mas que ele deve ser considerado como um dos elementos de uma inte-ração que o ultrapassa.

Um modo de palavrear que difere-diferindo, isso que nomeamos pensa-mento. E pensar outramente a imagem do outro, em sua transitividade comu-nicacional, já é em si uma tarefa dupla, uma vez que o próprio pensamento “emerge ele mesmo de uma pensatividade sensíve l, de um sensível impensado porque inesgotável em sua exterioridade” (ALLOA, 2015, p.10).

Não se trata apenas de pensar o gesto de olhar a imagem de um outro, mas antes de abrir- se a uma interpelação, a um pedido de atenção que o outro nos lança, como se solicitas se via imagem nossa responsabilidade pelo olhar de volta.

A princípio, o que se concebe nesse outro modo de pensar gesta certo alhe-amento do mesmo. Deste evadir participa a razão via regime sensível e, em grande medida, abre-se à escuta do outro no que se pode apreender das visualidades a ele relativas, como espécie de entrevisão de seus rastros, traços e passagens. Dou-me conta de que esse sensível modo de pensar delineia-se

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justamente na aproximação passiva desse eu-comunicante ou, melhor dizendo, da susceptibilidade que mantém a abertura para o se afetar, para o estado de passividade a algo ou alguém, descentrado de si. O expectante, exposto às dimensões concretas do outro, de sua vida pulsante, de suas formas corpóreas que em nós atuam como catalisadoras de significâncias, as quais nos excedem e nos ultrapassam a ambos: eu-outro. Nesse sentido, o lugar de pesquisador, ciente de sua própria precariedade, retrai-se para melhor contemplar e se deixar afetar, para dar passagem a algo maior que ele, maior que a tese.

Um pensar a comunicação perante o outro, com o eu tomado por uma espécie de apelo inevitável, e por vezes repulsivo, assim como alude Lévinas ao conceito de Rosto. São as corporalidades que me visitam, que me “inquietam” e que me transcendem. Há uma intranquilidade, e mesmo uma violência, emulada pelo encontro entre as corporalidades.

Rosto. Rosto como sentença, que exacerba a palavra, chamando a outras. Formam- se léxicos: face, visão, aparecer, aparência, aparição, espectro, fantasma, máscara, mascaramento, totalidades e infinitos. Sobrevivências. Rosto que diz e se diz, que fala, interpela: que no gesto de dizer, se desdiz, produzindo ditos diversos, mas que segue dizendo desde sempre, a despeito das narrativas, das representações e dos enquadramentos que o pensar e a linguagem estruturante possam por vezes lhe impor.

Há nisso um conjunto de palavras que extravasam, pelo ato de pensar e de se pensá-las em torno do rosto, que parece desafiar esse comunicar outra-mente, ora pelo silênc io ensurdecedor do mesmo, ora pelo vozerio silenciante do eu.

Entretanto, a comunicação mesmo que precariamente, sob o prisma dessa forma de dizer perante o outro, vai como que se definindo em torno de algo que nos escapa, que permanece aquém e para além daquilo que dela se possa apreender e, por conseguinte, compreender. Em entendimento, sinto com isso que o desafio da abertura e do acolhimento ao outro residem na ante-rioridade do gesto de pensar, inventariar, analisar, representar.

Na palavra rosto também reside vida precária que compartilhamos em maior ou menor medida como vulnus e que faz da fenda comunicativa sua hospitalidade. Apostamos num entendimento por vir, a partir e perante o outro, coabitado pelos repertórios nos domínio s da língua e dos corpos, os quais estalam e amortecem os dizeres e os ditos daquilo que nomeamos eticamente outrem.

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Outrem. Imagens de outrem. Infinitos outros do outro, os terceiros que atravessam o binômio relacional eu-tu, rompendo com a possibilidade de solipsismo que se habilita por meio da dominação de um como outro, encapsulando as subjetividades num duo-de-sis.

Em Lévinas (1999b), a figura desse terceiro é o rosto como vetor da justiça ulterior à ética das relações, tendo aí o seu útero; não uma ética consoante aos valores e princípio s morais, articuladora de normas de conduta ou dos interesses comuns, ou mesmo dos particulares, estabelecidos a priori. Trata--se de uma outra ética; uma ética como um dizer que, na aproximação de outrem, remete a uma linguagem sem palavras nem proposições; a ética como “pura comunicação” (p. 279), distinta de uma “comunicação pura”, fusional e totalizante.

A noção de pureza me parece ser aquela que nasce de um esvaziame nto prenhe de possibilidades de significação, embora não se possa definir o que elas sejam antes da própria aproximação de outrem. Nesse atravessamento imbri-cado de rostos dos outros de outros, a linguagem também é deposta de sua condição ontologiza nte. Não está mais a serviço da produção de mensa-gens e representações, dos ditos entre eu-tu-eles, das imagens reprodutíveis ad eternum, embora a língua se constitua também dessa fundamental dimensão distintiva entre os entes.

Porém, na infinidade dos dizeres, para-além dos enunciados, dos ditos, há o entrelaçamento dos rostos que se encontram, se aproximam, se revelam e se desafiam reciprocamente por não se deixarem capturar. Esse processo lingua-geiro faz-se também na corporalidade, torna-se pele da subjetividade, como a carregar o corpo de outrem em si.

A língua não somente é visitada pelo rosto, mas perfaz comunicação do inco-municável, dá-se como signo de responsabilidade por outrem. Há nisso uma diacronia da linguagem ética, inaugurada pelas rupturas de primeira e segunda ordem: a do eu-comunicante e a da linguagem significada e contextual. Quando a comunicação se estabelece entre nós e outrem nesse nível, a respon-sabilidade para e pelo outro passa à passividade; padecemos o padecimento de outrem. A significação se dá pelo sensível contato entre os seres de corpo e carne, pela suceptibilidade.

Essa linguagem remete novamente à nossa precariedade, na contramão da

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autonomia7 que comprime o self em eu individual, ou no mesmo como outro. Autonomia que, de mãos dadas com a liberdade, forma a pedra angular de inúmeras correntes de pensamento no século XX e que hoje, na agonia da sua difícil libertação, é surpreendida pelas alteridades, absolutamente outras.

Assim, a concretude da (inter)dependência corpórea humana e dos seres da Natureza trama a intriga entre a vontade e a liberdade desse eu-comunicante na Cultura, as que constroem ou destroem outrem; o sujeito na condição de partícipe da comunicação da cadeia da vida, do mundo sensível, do qual somos a priori reféns.

7 Cabe distin guir que dizem o s da acep çã o liber al e individ ua liz a nte de auton o m ia, a qual difer e da abor da g e m sobre os conc eitos prese nte s nas teoria s democ rá tic as crític a s, dese nv olvid a s espec ialm e nte pelas obr a s de J. Habermas e A. Honneth.

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Capítulo 7

Testemunho Tardio: o desastre em Mariana (MG) no fotojornalismo de Zero Hora1

Júlia Capovilla Luz Ramos

1. IntroduçãoNossa intenção é debater o papel do fotojornalismo numa cobertura

tardia do desastre2 provocado pela mineradora Samarco no distrito de

1 Trabalho originalmente apresentado ao Grupo de Trabalho em “Comunicação e Experiência Estética” do XXVII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, junho de 2018.2 “No dia 5 de novembro de 2015 aconteceu o que é considerado o maior desastre ambiental do Brasil. Por volta das 16h20min, uma barragem que continha rejeitos de mineração se rompeu em Bento Rodrigues, distrito de Mariana, em Minas Gerais. A barragem que se rompeu, chamada de Fundão, era da Samarco Mineração, empresa que pertence à brasileira Vale e à australiana BHP Billiton. Com o rompimento, foram liberados cerca de 55 milhões de metros cúbicos de rejeito de mineração, dando origem a uma onda, de aproximadamente dez metros de altura, que destruiu o vilarejo, deixando cerca de 350 moradores desabrigados e 19 mortos. Depois de destruir Bento Rodrigues, os rejeitos de mineração entraram nas águas do Rio Gualaxo do Norte, subiram pelo Rio do Carmo e depois se encontraram com o Rio Doce. Durante esse trajeto, os rejeitos de mineração afetaram diversas cidades mineiras e capixabas, deixando milhares de pessoas sem água e destruindo ecossistemas até chegar ao mar do Espírito Santo. Ao todo, foram 663,2 km de cursos de água percorridos pelo lodo

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Bento Rodrigues, em Mariana (MG), realizadas pelo repórter fotográ-fico Bruno Alencastro, do jornal Zero Hora (ZH) em novembro de 2015. Para isso, lançamos mão dos conceitos de “fotografia tardia” (CAMPANY, 2007) e dos estudos recentes sobre a função testemunhal no jornalismo para problematizar a emergência de um tipo de imagem que coloca em foco detalhes das ruínas e rastros da destruição na paisagem afetada. Tal giro na representação imagética e midiática das catástrofes, confor-mada historicamente pelas marcas do sofrimento nos corpos e rostos das vítimas, desloca o modo tradicional da figuração do testemunho na foto-grafia e nos faz pensar na fotografia funcionando ela mesma como um dispositivo testemunhal e locus de contrapoder, na medida em que aponta para o potencial estético e político da experiência a partir de uma postura antipragmática dos fotógrafos durante a cobertura.

Em sua função testemunhal, o repórter atua como uma figura que vai dar coerência às narrativas midiáticas em situações caóticas. De um modo geral, durante a cobertura de catástrofes, tais profissionais extrapolam a simples apresentação dos fatos para, muitas vezes, atestar o ocorrido por meio de suas impressões, garantindo veracidade e credibilidade nas transmissões noticiosas inicialmente realizadas a partir de informações desencontradas, seja em função da natureza do ocorrido e/ou das próprias condições limi-

composto por óxido de ferro e sílica. O Governo de Minas estimou que mais de 320 mil pessoas foram atingidas de alguma forma. No entanto, a cobertura do desastre realizada pelo jornal Zero Hora foi feita de forma ‘atrasada’, já que começou apenas no dia 18 de novembro, quando passou a utilizar a cartola ‘Rota da Lama’ e uma identidade visual para identificar sua série de reportagens. A influência do público foi, possivelmente, a desencadeadora desta cobertura tardia. Durante onze dias, de 6 a 17 de novembro, não haviam repórteres do jornal em nenhum dos estados afetados pelo rompimento da barragem. Nove dias após o desastre em Mariana (MG), ocorreu o atentado na França em 14 de novembro, que teve uma cobertura maior quantitativamente em ZH do que o desastre ambiental causado pela barragem da Samarco. Por se tratar de um jornal brasileiro, os leitores esperaram e cobraram uma cobertura maior. Ocorreram inúmeras reclamações e cobranças nas redes sociais, principalmente via Facebook, para uma cobertura mais aprofundada do jornal que, posteriormente, se posicionou em uma publicação na mesma plataforma, dizendo que não havia esquecido Mariana e que estava mandando uma equipe para a região. Não se pode afirmar se o jornal planejava ou não enviar duas equipes de fotógrafo e repórter a Minas Gerais e Espírito Santo. Mas, tem-se a impressão de que a cobrança do público foi a grande motivadora para que o jornal realizasse tal cobertura especial. Os comentários e as interações podem ter sido, portanto, os grandes responsáveis pela série de reportagens Rota da Lama, publicada de 18 a 24 de novembro de 2015 em Zero Hora” (BARIN, 2016, p. 29-33. Grifo do autor).

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tadas de produção. Conforme Amaral e Lozano Ascencio (2015-2016, p. 248) “quando um desastre vem à tona pelos meios jornalísticos, emerge primei-ramente no tom ‘ao vivo’, do relato da sensação e da experiência imediata”. Citando Sarlo (2007, p. 56), os autores apontam para uma das características fundantes dos discursos pós-modernos: fazer “uma apologia ao instante”, experiência radicalizada na cobertura noticiosa. Neste sentido, “a cobertura tem o compromisso de dar uma explicação provisória para o ocorrido até que outros elementos sejam apurados e haja uma reconstituição do fato aden-sada por diversos dados e depoimentos” (AMARAL; LOZANO ASCENCIO, 2015-2016, p. 248).

No fotojornalismo, especificamente, o flagrante consolidou-se como a forma mais bem acabada de testemunhar uma situação. Ao longo da história, a fotografia fez do instante decisivo sua moeda de valor, prova cabal de um acontecimento, atestado de legitimidade social. Os fotojornalistas passaram a ser considerados pelo senso comum como testemunhas oculares da história, forjando uma identidade. A imprensa, por sua vez, utiliza-se sistematicamente desses valores para dar relevância à atividade e validar o trabalho de toda uma categoria. Não por acaso, Paul Ricoeur (2010, p. 172) vai dizer que a mídia se aproveita da “fórmula típica do testemunho”, ajuizando os enunciados e os tornando simbolicamente verdadeiros e transparentes.

Na contracorrente da prática que privilegia “o calor da hora” (AMARAL; LOZANO ASCENCIO, 2015-2016, p. 251), porém, alguns fotógrafos têm trabalhado no sentido de chegar após o ocorrido em lugares deflagrados, onde o processo pós-traumático recebe tanta atenção quanto o flagrante. A carga informacional transcende a ocorrência instantânea do acontecimento e revela-se material instigante para a análise, chegando mais perto do teste-munho tardio, conceito que iremos desenvolver ao longo do texto, e que garante a inteligibilidade dos acontecimentos por meio de uma construção discursiva sobre o depois. Mas não só isso, visto que todo testemunho pode ser considerado tardio já que é sempre uma narrativa posterior. O testemunho a que nos referimos é atrasado em relação à imediaticidade da cobertura jornalística tradicional, pois há nesta narrativa paulatina outra característica fundante: contar uma história “pelo que resta dos fatos” (SARLO, 2007, p. 52). Nas palavras da autora,

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é pelos vestígios, lapsos de memória, que o jornalista nos convida a entrar na história. [...] Como uma das marcas das narrativas de teor testemunhal, os detalhes são exacerbados como para balizar um caráter de autenticidade ao narrado. Como se a verdade esti-vesse no detalhe (SARLO, 2007, p. 52).

Neste sentido, a credibilidade jornalística do testemunho não estaria atrelada ao imediato, atualizando o acontecimento em tempo real, mas no fato de narrar um acontecimento evidenciando as municias das circunstan-cias testemunhadas. O presente artigo tem como foco principal, portanto, analisar a cobertura fotográfica realizada pelo fotógrafo Bruno Alencastro, do Jornal Zero Hora, sobre o rompimento da barragem da mineradora Samarco na cidade de Mariana (MG) em novembro de 2015, cuja singula-ridade reside não somente em certa demora na cobertura - realizada após 13 dias de mobilização dos leitores pelas redes sociais -, mas, sobretudo pelos aspectos colocados em foco quando postas em circulação no blog de fotografia da empresa: o que restou dos espaços afetados, as ruínas, os objetos abandonados, os cenários desertificados, deslocando para um segundo plano os elementos humanos e suas ações.

2. Fotografia TardiaCampany (2007, p. 136) vai chamar de “Fotografía tardía” um tipo de

imagem que “procede a la representación de acontecimientos que están sucediendo”, pois aparecem tarde, “deambulando por los lugares donde han sucedido las cosas, sumando los efectos de la actividad del mundo”. Em termos visuais, essas imagens privilegiam “rastros de atividade” em detrimento a presença humana e, por esse motivo, são “muy distintas de la instantánea espontánea y mantienen una relación diferente con la memoria y la historia”. Ainda para Campany (2007), as fotografias tardias se carac-terizam por estarem fora do circuito, se referindo a noção consagrada na primeira metade do século XX que colocava os fotojornalistas no cerne dos acontecimentos, tornando-os profissionais capazes de capturar os atos durante o desenrolar. A partir dos anos 1960 e 1970, quando a imprensa adota massivamente as câmeras de vídeo portáteis, “las tomas fotográficas ya no se producen solo después del acontecimiento, sino después que salga na noticia en vídeo” (CAMPANY, 2007, p. 140). Ainda para o autor,

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Al perder la inmediata relación con el acontecimiento y aceptar una relación más lenta con el tiempo, las fotografías ‘tardías’ aparecen para alejarse de la incesante corriente de datos canalizados por la convergencia de las modernas tecnologías de la imagen electrónica (CAMPANY, 2007, p. 144).

O que o autor sustenta é que a mídia impressa passou a ser um espaço no qual a informação aparece como comentário/interpretação das narra-tivas televisivas ou da web e a fotografia documental um tipo de imagem que está sempre em relação às outras que lhe precedem e que constrói seus sentidos dentro de um repertório imagético maior posto em circulação.

Por essa razão as fotografias tardias vêm ocupando outros espaços, como as galerias de arte, pois devem levar em conta a atual tarefa desti-nada ao documental, segundo Campany (2007, p. 143): capturar “las secuelas de los hechos”. Nessa mesma linha de raciocínio é que Char-lote Cotton (2013) vai classificar como “fotografia das consequências” (COTTON, 2013, p. 10) alguns trabalhos desenvolvidos por “profissionais que chegam aos locais de desastres ecológicos e sociais após a ocorrência da destruição” oferecendo “alegorias das consequências dos desatinos políticos e humanos” a partir da exploração dos limites das convenções da fotografia jornalística. Para ela, esses fotógrafos também andam na contracorrente da escola bressoniana ao se colocarem fora do núcleo da ação, priorizando a tomada da imagem após a passagem do momento decisivo. Segundo Cotton (2013, p. 167),

[...] em vez de se verem aprisionados em meio a eventos caóticos, ou muito próximos de cenas de dor e sofrimento, os fotógrafos têm preferido apresentar o que fica na esteira desses momentos trágicos da humanidade, geralmente registrando o que ficou para trás, num estilo que propõe uma visão e um julgamento.

Benjamim Picado (2012), por seu turno, também sinaliza que a comuni-dade profissional da fotografia vem buscando nos últimos anos certas “linhas de fuga” para o discurso imagético tradicional dos acontecimentos. Para ele, ao tentarem escapar da “reiteração de certos cânones da representação visual do histórico - a partir da chave retórico-discursiva da atualidade dos eventos” (PICADO, 2012, s.p), muitos repórteres visuais passaram a elaborar tipos de

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representação que tentam romper com as imagens do testemunho consa-gradas no jornalismo, nas quais “o corpo e a fisionomia são os territórios mais reconhecidos” (PICADO, 2011, p. 178). Para levar a cabo a ideia de “fuga”, portanto, tem sido preciso substituir a exploração do rosto sofredor pela “dos sentidos da paisagem e à quase insignificante aparência da presença humana” (PICADO, 2011, p. 178). Ainda segundo o autor, essa tendência se apresenta como “uma espécie de desdramatização do acontecimento” (PICADO, 2011, p. 178). Mesmo que o rosto humano em sofrimento tenha se tornado o signo maior da cobertura visual dos acontecimentos catastróficos, ele acredita que “uma paisagem destruída se torna capaz de evocar, com sublimidade, as forças que comandaram seu atual estado” (PICADO, 2012, s.p.). Em síntese, dois extremos se apresentam: o cânone imagético da cobertura midiática de desastres, que parece estar sedimentado em uma linguagem familiar de dramaticidade da ação por meio da figuração de um corpo que padece, e os testemunhos tardios, imagens que enquadram “aquilo que já cedeu em força irradiadora” (PICADO, 2012, s.p. grifo do autor).

Sendo assim, e aproximando as ideias dos autores supracitados, pode-se dizer que a fotografia tardia inverte a fórmula cristalizada no jornalismo, uma vez que “sua entrada no acontecimento não se opera através do gerúndio das ações, mas em seu pretérito, nos índices que ela faz incidir sobre os lugares e os corpos em que imprime sua força” (PICADO, 2011, p. 175). Os aportes teóricos que tentam definir a emergência deste movimento, no entanto, menos que mapear uma tendência sobre novos modos do fazer fotográfico, indicam a necessidade de se pensar, de maneira complexa, como algumas práticas comu-nicacionais assumem certas singularidades e instauram processos que modi-ficam rotinas produtivas hegemônicas, transformando as grades de entendi-mento da atividade e dos produtos jornalísticos. E a compreensão deste novo cenário, no caso de presente artigo, solicita uma investigação elaborada sobre o papel do testemunho fotográfico como meio de expressão política.

A partir deste panorama é possível perguntar: 1) Até que ponto a foto-grafia tardia pode ser considerada testemunho daquilo que narra? 2) Que significados políticos podemos dar a esta tendência de fotografar as consequ-ências dos acontecimentos – ruínas, fragmentos, edifícios abandonados, ruas desertas, danos ambientais, paisagens inóspitas – principalmente dentro do campo jornalístico?

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3. O Testemunho na fotografia e a Fotografia-testemunhoAntes de responder aos questionamentos, julgamos oportuno apontar

de forma mais qualificada qual a relação entre a fotografia tardia e o testemunho. Do latim, a palavra testemunho está na raiz de dois termos distintos: superstes e testis. Segundo Cunha (2012, p. 126), o primeiro designa o depoimento de alguém ligado ao acontecimento pela experi-ência sofrida; já o segundo, testis, se refere aos discursos de terceiros sobre um fato, ajudando a julgá-los, como os solicitados pelo campo judiciário. O jornalismo utiliza-se dessa dupla função do testemunho quando acom-panha de perto um acontecimento durante seu desenrolar, protagoni-zando a ação, ou mesmo quando transmite o relato de um fato a partir da experiência de outras fontes.

Selligman-Silva (2016, s.p.), aponta para a potencialidade da foto-grafia que “oscila entre a possibilidade de representar um evento (teste-munho como testis) e o colapso desta representação (testemunho como superstes, sobrevivente)”. A segunda característica seria responsável por subverter “o modo positivista de representação” das fotografias ao intro-duzir a noção de “sobrevivência para despertar a sobrevivência do outro” (SELLIGMAN-SILVA, 2016, s.p.). É também neste sentido que a visão se torna experiência, na acepção foucaultiana do termo: algo que nasce do pessoal, mas que deve ampliar-se para “além do si” (REVEL, 2011, p. 64). Ou seja, “a experiência é algo que realizamos sozinhos, mas só é plena na medida em que escapa à pura subjetividade; quando outros podem cruzá--las ou atravessá-las novamente” (REVEL, 2011, p. 64-65). É a partir desta condição dialógica do particular com o universal que Foucault localiza na experiência seu potencial político: ao tocar o outro, a fotografia torna-se capaz de provocar transformações e fazer frente aos dispositivos de poder.

Tal giro na experiência testemunhal fez com que refletíssemos sobre possíveis diferenças entre o testemunho sendo operacionalizado na foto-grafia e a fotografia funcionando ela mesma como testemunho. Neste sentido, há, pelo menos, dois modos de utilização dos testemunhos sendo postos em funcionamento pela fotografia jornalística: o primeiro assenta--se no testemunho como forma de representação corporal de um terceiro (fonte noticiosa) em ação; o segundo transforma o próprio fotógrafo em narrador-personagem, suprimindo a obrigatoriedade de um corpo

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presente na imagem, tornando-o apto a experimentar e narrar o acon-tecimento por si. Com essa distinção, entramos numa problemática que não procura no próprio ato testemunhal um princípio interno de diferen-ciação, mas no tratamento visual do testemunho que visa ao estabeleci-mento de conexões entre narrativa e ação política para mobilizar o Outro.

O testemunho na fotografia tomaria forma ao enquadrar os persona-gens que compõem as narrativas jornalísticas. Tais personagens costumam aparecer desempenhando ações cujo ponto de partida são as notícias nas quais aparecem implicados. Essa seria a principal função enunciativa do sobrevivente e sua condição de possibilidade histórica. Em outras pala-vras, as imagens teriam a obrigação em mostrar o corpo presente de um sujeito que atesta um acontecimento. É o que Jean-Philippe Pierron (2010, p. 286), a partir de Lévinas, vai chamar de “figuração do testemunho” e que se encontra intimamente ligada à existência de uma exposição da vítima a partir da “epifania do rosto”, como se a face fosse o reduto da ética.

Por outro lado, a fotografia enquanto testemunho pode ser entendida como a marca indelével do fotógrafo no momento mesmo de sua prática. Porém, seu corpo está ausente na fotografia, o que, em certa medida, tornaria possível ampliar a geografia para enquadrá-la no campo da expe-riência, já que a própria ideia de testemunha ocular retiraria a obrigatorie-dade de uma fonte externa para legitimar os acontecimentos. O fotógrafo torna-se, portanto, o próprio personagem, ou o repórter-narrador3, sendo responsável por evidenciar outros modos de compreensão dos desastres, não por meus da fisionomia em sofrimento, mas do território devastado.

O jornalismo convencional parece se valer basicamente do testemunho na fotografia, já que lança mão dele para alimentar suas próprias conven-ções e legitimar seu modus operandi. Jean-Marie Schaeffer (1996) corro-bora com essa ideia quando diz que o testemunho fotográfico é um gênero jornalístico. Já a fotografia-testemunho, por seu turno, viria a reboque

3 Peres (2016) irá retomar a noção de narrador em Benjamin e fazer um contraponto com o conceito de “narrador pós-moderno”, de Silvano Santiago (1989). Para ela, o narrador de Walter Benjamin é “aquele que narra somente a partir da própria experiência”; já, para Santiago, a figura do narrador pós-moderno pode ser a de um jornalista, que “passa a ser basicamente a de quem se interessa pelo Outro (e não por si) e se afirma pelo olhar que lança ao seu redor, acompanhando seres, fatos e incidentes” (SANTIAGO, 1989, p. 45 apud PERES 2016, p. 96).

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da primeira, mas não sucumbiria as suas lógicas e logo poderia ser apro-priada por outros campos, como o da arte, sendo facilmente deslocada para outros espaços, ampliando a circulação do testemunho fotográfico. Enquanto o primeiro tipo (testemunho na fotografia) apontaria para a regularidade de um discurso já consolidado na imprensa, o segundo (fotografia-testemunho) abriria caminho para outros modos de compre-ensão dos acontecimentos, num movimento que estamos chamando de testemunho tardio.

O testemunho tardio nos ajuda a refletir sobre o grau de afetação do próprio fotógrafo, que se imbui do papel de testemunha ocular, seja para cumprir os protocolos jornalísticos ou, no caso especifico da cobertura da tragédia em Mariana, para suprir a lacuna deixada pela falta de depoi-mentos das vítimas. Tal prática, que na ocasião serviu de contraponto para os discursos oficiais, teria ajudado a transformar a memória visual da tragédia em dever político.

4. A cobertura tardia da tragédia em Mariana em ZHTrazemos como exemplo para esta reflexão a reportagem especial “Rota

da Lama”, publicada no jornal Zero Hora4 de 18 a 24 de novembro de 2015. Treze dias após o rompimento da barragem de rejeitos de mineração da empresa Samarco Mineração S.A localizada na cidade de Mariana (MG), os repórteres fotográficos Bruno Alencastro e Anderson Fetter, e o jorna-lista Marcelo Gonzatto começam a percorrer os estados brasileiros de Minas Gerais e Espírito Santo para documentar os impactos ocasionados pelo desastre ocorrido em 5 de novembro de 2015.

No primeiro dia da cobertura, o jornal utilizou três imagens: duas ambientais – uma com perspectiva aérea e outra com a fachada de uma igreja – e uma terceira que colocava em foco um dos cases da reportagem. No segundo dia, 19/11, a estrutura se repetiu: dois retratos de persona-gens citados na matéria, uma imagem geral e uma do detalhe do teto de uma casa destruída. No terceiro dia, mais uma foto de plano geral e uma segunda enquadrando a fonte entrevistada. No dia 21/11, outra foto aérea e um retrato. No dia 22, três personagens são fotografados no local da

4 Jornal impresso de maior circulação do estado do Rio Grande do Sul, Brasil, segundo dados do Instituto de Verificação de Circulação (IVC), 2016.

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tragédia, além de uma imagem de cima que dá a dimensão do estrago ambiental. Dia 23, novamente uma foto da paisagem afetada e, no dia 24, uma ampla imagem “de cima” divide espaço na página com outra que identifica a situação descrita na reportagem (pessoas na fila para distri-buição de água potável). De um total de 18 imagens utilizadas para ilus-trar a série de reportagens “Rota da Lama” (Figuras 1-7), portanto, nove mostram pessoas em ação, sendo que seis são retratos de fontes entrevis-tadas pelo repórter Marcelo Gonzatto. Das sete imagens que mostram os estragos provocados pelo rompimento da barragem e o vazamento dos rejeitos de mineração, 5 foram tomadas aéreas, mas apenas duas foram realizadas pelos fotógrafos de ZH; as outras duas imagens foram cedidas pela Agência Estado, do jornal O Estado de São Paulo; e pela Secretaria Especial de Comunicação do Estado do Espírito Santo (SECOM-ES).

Figura 1 - Primeira reportagem da série “Rota da Lama”Fonte - REPRODUÇÃO ZERO HORA – 18 de novembro de 2015 (In: BARIN,

2016).

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Figura 2 - Segunda reportagem da série “Rota da Lama”FONTE - REPRODUÇÃO ZERO HORA – 19 de novembro de 2015 (In:

BARIN, 2016).

Figura 3 - Terceira reportagem da série “Rota da Lama”Fonte - REPRODUÇÃO ZERO HORA – 20 de novembro de 2015 (In: BARIN,

2016).

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Figura 4 - Quarta reportagem da série “Rota da Lama”Fonte - REPRODUÇÃO ZERO HORA – 21 de novembro de 2015 (In: BARIN,

2016).

Figura 5 - Quinta reportagem da série “Rota da Lama”Fonte - REPRODUÇÃO ZERO HORA – 22 de novembro de 2015 (In: BARIN,

2016).

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Figura 6 - Sexta reportagem da série “Rota da Lama”Fonte - REPRODUÇÃO ZERO HORA – 23 de novembro de 2015 (In: BARIN,

2016).

Figura 7 - Sétima reportagem da série “Rota da Lama”Fonte - REPRODUÇÃO ZERO HORA - 24 de novembro de 2015 (In: BARIN,

2016).

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É possível inferir a partir das reproduções acima que, no impresso, houve o uso predominante de imagens que configuram o aconteci-mento de Mariana pela abrangência da área afetada e pelo uso do testemunho na fotografia. Ou seja, os personagens que aparecem em relação ao local do desastre e que fazem parte do rol de entre-vistados do repórter durante o processo de apuração das notícias são transformados em testemunhas no momento em que seus corpos assumem uma postura de denúncia (apontando para a causa da indignação), ou aparecem subjugados, lastimando as próprias condições (como o homem que leva as mãos sobre o rosto evitando o contato visual com o ambiente danificado). Uma gramática visual passa a definir a forma como deve ser contatado um drama por meio das imagens: (1) grandes planos gerais em que o acontecimento é apresentado de forma panorâmica; (2) planos gerais e médios que mostram os locais afetados de forma pontual; (3) planos de detalhes das consequências sofridas no ambiente e suportadas pelos sujeitos; (4) retratos dos personagens em planos mais aproximados (médio, americano e close-up) ou em planos abertos a fim de abarcar suas ações no contexto local. Cada enquadramento5 cumpre determi-nado propósito dentro da narrativa: os planos gerais servem para situar o espectador e capturar o cerne da história; os planos médios e de detalhe servem tanto para emocionar quanto para dar ritmo à trama; e os retratos são usados para apresentar os personagens, trazendo ao primeiro plano suas condições perante o fato noticiado (SOUSA, 2004).

Para ilustrar como o jornalismo faz funcionar a gramatica visual descrita acima, dividimos as fotografias utilizadas nas matérias de Zero Hora em grupos: grandes planos gerais (figura 8), planos gerais e médios (figura 9), planos de detalhe (figura 10) e retratos (figura 11).

5 Sobre a linguagem fotográfica ver Jorge Pedro Sousa (2004, p. 101).

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Figura 8 - Grandes Planos Gerais Fonte - REPRODUÇÃO ZERO HORA – Créditos: Anderson Fetter, Bruno

Alencastro, Estadão Conteúdo, Divulgação SECOM-ES.

Figura 9 - Planos Gerais e Médios Fonte - REPRODUÇÃO ZERO HORA – Créditos: Anderson Fetter e Bruno

Alencastro.

Figura 10 - Plano-detalhe Fonte - REPRODUÇÃO ZERO HORA – Crédito: Bruno Alencastro.

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Figura 11 - Retratos Fonte - REPRODUÇÃO ZERO HORA– Créditos: Anderson Fetter, Bruno Alen-

castro, Agência Estado.

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A figura 10 mostra o telhado danificado de uma casa. A fotografia aparece na segunda reportagem da série de ZH e mostra, sobre os escom-bros de uma casa, um cachorro que aguardava resgate. Mesmo não sendo um close do animal, a imagem ilustra um recorte particular da matéria ao privilegiar um plano visual não muito solicitado pelo jornalismo impresso na cobertura de desastres ambientais justamente por não oferecer uma visão macro do acontecimento. Mas é neste tipo de imagem, que recorta uma parte ínfima do todo, que Picado (2011, p. 175) localiza “um ponto de escape ao sentido mais disciplinado da relação entre imagem e acon-tecimento”, porque, neste caso, apoia-se na descrição de detalhes como forma de tornar a experiência familiar, dando ao relato um caráter ao mesmo tempo verossímil e credível. É aí que, para Sarlo (2012, p. 68), o discurso testemunhal passa a ter um efeito reparador da subjetividade, onde o “primado do detalhe” operacionaliza sistematicamente os teste-munhos e a cobertura jornalística. “El primado del detalle es un modo realista-romántico de fortalecimiento de la credibilidad del narrador y de la veracidad de la narración” (SARLO, 2012, p. 68).

5. O primado do detalhe e o antirretrato na fotografia-testemunhoEm 18 de novembro de 2015, o repórter fotográfico Bruno Alencastro

publica no blog de fotografia do jornal Zero Hora, o Focoblog, algumas fotografias de sua autoria realizadas durante a cobertura do desastre na cidade de Mariana. Em trabalho recente (RAMOS, 2017), discutimos como os blogs de fotografia se diferenciam dos demais espaços destinados à produção e publicação da fotografia jornalística diária por não estarem totalmente subordinados aos processos e aos discursos hegemônicos, mas, sobretudo, por contemplarem outros modos de edição e agrupamento das imagens. O “momento decisivo” bressoniano, entendido como o reconhe-cimento por parte do fotógrafo do acme da ação em simultâneo à perfeita composição geométrica da cena, deixa de ser a estrela dos blogs para dar lugar a outras propostas visuais.

Os blogs são vistos pelos fotojornalistas que neles publicam como palcos privilegiados para narrativas, cujo desenvolvimento de um tema se dá por meio da ordenação de imagens e essa reunião estruturada forma um todo coerente, inclusive, com relação às demais imagens que circulam

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em outros meios e suportes. Ao justapor inúmeras fotografias, o sentido passa do potencial narrativo de cada uma para um discurso visual a partir de um conjunto mais amplo.

Em entrevista concedida à autora em maio de 2015, o fotógrafo Bruno Alencastro disse que mais que apresentar imagens “fáceis e objetivas”, os fotojornalistas que contribuem com os blogs estão interessados em realizar trabalhos “subjetivos” e “conceituais”. Ainda em suas palavras, o intuito é “mostrar que o desafio da fotografia na atualidade está em atrair a atenção das pessoas. Para isso, ela precisa ser interessante, provocativa, interpre-tativa” (ALENCASTRO, 2015). Além disso, ele acredita que os blogs de fotografias, mesmo institucionais, possibilitam “ter total controle sobre a narrativa fotográfica” e “decisões editoriais” que no jornal impresso passam por uma série de constrangimentos que, “eventualmente, podem vetar determinadas fotos de serem publicadas (pelos mais variados motivos)”. E completa: “no blog podemos colocar mais a nossa cara e o nosso pensa-mento, o que acreditamos na fotografia” (ALENCASTRO, 2015). Neste sentido, o blog de fotografia é também um espaço de resistência e experi-mentação.

De um modo geral, pode-se dizer que tanto a construção teórica proposta quanto os exemplos a seguir, apontam para um movimento que busca estabelecer certa distância dos modos hegemônicos de represen-tação imagética dos acontecimentos a partir da qualidade dramática do antirretrato ou dos objetos dispersos no ambiente. Tanto o antirretrato, entendido como a representação de um personagem sem revelar sua identidade, enquadrando-o de forma que seu rosto apareça encoberto ou cortado; quanto o primado do detalhe, quando os elementos secundários são postos em closes, podem ser vistos nas postagens dos dias 18 e 19 de novembro de 2015 no FocoBlog (figura 12-13). Tais imagens apresentam uma consciência que não abandona a matriz documental, mas que, no entanto, se mostra capaz de libertar-se da normativa epistemológica que vem definindo os sucessivos modelos documentalistas. Tampouco se trata de reduzir este tipo de fotografia jornalística ou documental a um “estilo”. O intuito é apontar para o fenômeno da fotografia jornalística que, ao flertar com a arte e com a política, tenta superar um modus operandi histo-ricamente marcado como objetivo.

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Figura 12 - Primado do detalhe Fonte - FOCOBLOG (2017) – publicado em 18 e 19/11/2015 – Créditos: Bruno

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Figura 13 - AntirretratosFonte - FOCOBLOG (2017) – Publicado em 18 e 19/11/2015 – Créditos: Bruno

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Por meio do antirretrato, o fotógrafo optou por um enquadramento no qual o espectador fica impossibilitado de encarar os personagens. Os olhos, aqueles mesmos que testemunharam a devastação de Mariana, são privados do encontro com o outro, pois é a visão do fotógrafo que deve prevalecer neste encontro. O testemunho revela-se, portanto, incompleto. Afinal, o que se vê nessas fotografias? Nem a barragem, nem Mariana. Nem mesmo os homens afetados pela tragédia. Apenas signos que simbo-lizam tal acontecimento: signos da impotência e da falta de humanidade.

Ao romper com o modelo figurativo da cobertura jornalística de catás-trofes, cujo detalhe coloca em evidência preferencialmente rostos e gestos

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em sofrimento, trazendo o humano para a ação, este tipo de fotografia--testemunho se insere numa narrativa mais ampla que solicita a partici-pação reflexiva dos leitores/espectadores através da pausa e da contem-plação de pistas, rastros e dejetos. Sendo assim, ao privilegiarem o caráter pós-traumático da tragédia, tais imagens apontam para a percepção do futuro não mais como promessa, mas como ameaça; “sob a forma de catástrofes que nós mesmos provocamos” (HARTOG, 2013, p. 15).

Os cenários devastados proporcionam às imagens um ar melancólico, além de revelarem imenso potencial para compor um novo regime visual dos testemunhos: o clímax não repousa nem se sustenta na ação ou na imagem desditosa da fonte. Com uma postura anticanônica, portanto, o repórter fotográfico presta seu testemunho aos fatos, revelando que os rastros e as ruínas possibilitam a retomada, apesar de tudo (DIDI--HUBERMAN, 2012), de uma experiência estruturada sobre um discurso de contrapoder, mas também faz lembrar que toda a fotografia documental ou jornalística, em algum nível, é também incompleta e fragmentária em sua representação visual das catástrofes. As fotografias de Bruno Alen-castro, ao produzirem uma variação da gramática a que nos habituamos a ver pela televisão e outras mídias de massa, seja por meio da ausência de rostos ou pelos detalhes ampliados, apontam para uma presença trans-gressora que reverte os códigos da representação desses eventos, desper-tando o olhar de quem contempla e os convidando a tecer outras interpre-tações dos acontecimentos tradicionalmente mediados, vistos de longe e por meio de grandes planos gerais.

6. Uma tentativa de fechamento: o testemunho tardio entre experiência estética e ato político

Existe, na base da política, uma estética, segundo Rancière, mas que em nada se aproxima do que Benjamim nomeou de “estetização da política”. A política, “organismo animado” é essencialmente estética, ou seja, está fundada sobre o mundo sensível, assim como a expressão artística. É justamente neste tronco comum entre política e estética que acontece a “partilha do sensível”, conforme entende Rancière (2005). “A estética e a política são maneiras de organizar o sensível: de dar a entender, de dar a ver, de construir a visibilidade e a inteligibilidade dos acontecimentos” (RANCIÉRE, 2010, p. 125).

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Por isso, é tão caro ao autor, assim como para nós, pensar na estética em sentido amplo: o testemunho tardio pode ser uma porta de entrada para o sensível ao colocar os acontecimentos em relação, seja través do antirretrato ou da primazia dos detalhes, oferecendo outras formas de apreender os fatos noticiados e recolocá-los no mundo vivido a partir da experiência narrativa e do gesto político.

Fazendo uma aproximação entre o pensamento de Rancière e de Pierron, a ética do testemunho exige uma compreensão sensível sobre o que se narra. É o que Pierron define como uma dimensão poética dos acontecimentos. “Defender uma ‘poética’ da vida moral consiste em romper com a exclusão reciproca entre o inteligível e o sensível, o prático e o poético” (PIERRON, 2010, p. 284). Aproximando a experiência esté-tica do engajamento político a partir da relação que se estabelece entre o fotógrafo e o acontecimento, podemos pensar que a ética se torna ação no testemunho tardio, “obrigando suas testemunhas a um trabalho incessante de interpretação do que ele atesta originalmente, a fim de melhor compre-ender e de melhor se compreender” (PIERRON, 2010, p. 287).

Nestas condições de possibilidade, o rompimento com a gramática visual canônica das tragédias parece ser o grande propulsor para o desen-volvimento de novos regimes de visibilidade, novos modos de produzir e pensar as imagens a partir do detalhe e do antirretrato. Porém, não se trata somente de tomar o acontecimento pelos detalhes das consequências ou de deslocá-la para outros circuitos, como os da arte, ou outras plata-formas, como os blogs de fotografia. Ao sair das páginas dos jornais, a fotografia tardia possui alguns atributos que a fazem distintas das conven-ções fotojornalísticas tradicionais, devendo, portanto:

a) acentuar o contraste entre a complexidade geopolítica e a sensibili-dade do fotógrafo;

b) estar radicalmente aberta a interpretações;c) operar num continuum de imagens;d) primar pelo detalhe.É assim que, nos últimos anos, conforme já apontado anteriormente,

vêm aparecendo narrativas fotográficas cuja característica mais signifi-cativa tem sido uma assinatura poética e subjetiva como forma de resis-tência ao regime de verdade jornalístico, que impõe um olhar objetivado e incisivo sobre o mundo. Ao trazer elementos da paisagem para o plano

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visual no blog de fotografia do jornal Zero Hora, o repórter fotográfico Bruno Alencastro aposta no uso dos detalhes e do antirretrato, da pausa e da contemplação como forma política de atuação frente à cobertura fugaz dos acontecimentos, deixando para um segundo plano o flagrante das atuações humanas, na contracorrente do que diariamente é solicitado pela imprensa, sobretudo pelo deslocamento temporal que suscitam; formas que configuram o que batizamos de testemunho tardio.

O testemunho tardio, neste sentido, ao se negar a organizar o caótico, possibilita a aproximação entre o ato inaugural e a experiência pública. Mas não só isso: a forma como tenta romper com as matrizes jornalís-ticas, tanto no que se refere à figuração do testemunho quanto aos enqua-dramentos dados aos episódios catastróficos, faz da imagem tardia um novo locus da experiência estética e política não somente pelo conteúdo mostrado, mas pela forma que o enquadra. Este movimento criaria, neste sentido, as condições possíveis para o desenvolvimento da fotografia--testemunho em contraponto ao testemunho na fotografia.

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Capítulo 8

Guerrilhas do Sensível: estetização e con-tra-estetização do mundo1

Jean-Luc MoriceauCarlos Magno Camargos MendonçaIsabela Paes

Vivemos a era do capitalismo artista ou criativo transestético, professam Lipovetski e Serroy (2013). Sistemas de produção, distribuição e consumo são permeados de todos os lados por operações de natureza estética, veiculando afetos, sensibilidade, universos sensoriais. Neste novo tempo, somos convocados a viver experiências plenas de prazer e deleite sensorial, cheias de estilo e emoção. “Em todos os lugares o real se cons-trói como uma imagem integrando uma dimensão estético-emocional que tornou-se central na competição da qual participam as empresas”2 (LIPO-VETSKI; SERROY, 2013, p. 12)

1 Texto originalmente apresentado no GT “Comunicação e Experiência Estética” no XXIV Encontro Nacional da Compós, em 2015.2 Partout le réel se construit comme une image en y intégrant une dimension esthétique-émotionnelle devenue centrale dans la compétition que se livrent les entreprises (LIPOVETSKI; SERROY, 2013, p. 12)

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A esta estetização da atividade econômica corresponde uma estetização paralela dos estilos de vida e da organização das cidades. Numa compe-tição ao mesmo tempo econômica e turística, para atrair consumidores ávidos por diversão (fun) e novas experiências, as cidades desenvolvem estratégias estéticas semelhantes. A gentrificação3 dos centros urbanos determina a criação de bares, restaurantes, galerias de arte, boutiques de moda, atividades econômicas que demandam um estilo, uma atmosfera eletrizante e conectada (in). Ecoando o marketing sensorial, as cidades teatralizam para criar emoções e sensações. Tudo é espetáculo, mas ao contrário da sociedade do espetáculo teorizada por Guy Debord (1967), teatralidade e espetacularização promoveriam a criatividade, a diversi-dade, a mistura de gêneros, uma segunda camada de sentido e a reflexi-vidade4.

No entanto, essa estetização do mundo descrita por Lipovetski e Serroy produz mesmo tanta diversidade e mistura? Não seria ela a imposição de uma estética particular, com a exclusão de qualquer outra? Ou mesmo imporia uma ordem específica, sobrepondo-se, criando os outros espe-táculos, dirigindo sim um teatro, mas um teatro onde o evento real é excluído, onde é controlado e banido tudo o que poderia comprometer o constante aumento do consumo?

Nossos questionamentos, frente as descrições de Lipovetski e Serroy, encontram eco nas análises efetuadas por pensadores como Jean Baudrillard, Scott Lash, Douglas Kellner, Mike Featherstone sobre a este-tização da sociedade de consumo. Entretanto, pretendemos compor nosso quadro analítico a partir da perspectiva desses pensadores aliada com

3 Entendemos a gentrificação (gentrification) como um fenômeno urbano que afeta determinada região da cidade. A gentrificação produz alterações que transformam o ambiente, seja comercial ou residencial, sobrevalorizando o bairro e excluindo os moradores de baixa renda, criando dificuldades ou mesmo impossibilitando sua permanência naquele espaço. 4 Em seus primeiros escritos sobre a sociedade de consumo, Baudrillard desenvolveu uma teoria da mercadoria-signo, na qual mostrou como a mercadoria se transformou num signo, na acepção de Saussure, cujo o significado é determinado arbitrariamente por sua posição num conjunto auto-referenciado de significantes. (...) Em Simulations, Baudrillard declara que nessa hiper-realidade o real e o imaginário se confundem, e a fascinação estética está em toda parte, de modo que “paira sobre tudo uma espécie de paródia não-intencional, de simulação técnica, de fama indefinível à qual se fixa um prazer estético” (FEATHERSTONE, 1995, p. 101).

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outra matriz reflexiva. Gostaríamos de debater neste artigo a teatralização onipresente e perpétua deste capitalismo artista e desta economia criativa como um teatro que exclui todo movimento real, todo devir que seja o outro desta estética imposta; que tenta controla as outras enunciações e os modos de subjetivação. Apontamos, para tanto, algumas formas de teatra-lização crítica, que fazem um uso menor (usage mineur) das estratégias estéticas majoritárias, e onde a estética é o lugar das batalhas políticas.

Os processos classificatórios e comparativos entre as cidades têm gerado o desenvolvimento de estratégias de negócios que objetivam transformar o ambiente urbano em um espaço ainda mais cognoscível e gerenciável (KORNBERGER; CARTER, 2010). Estas práticas estratégicas podem ser entendida como performances estéticas, que têm o efeito de legitimar determinadas atividades e reduzir vozes dissonantes (KORNBERGER; CLEGG, 2011). A estética se tornou um novo recurso para as estratégias urbanas. No entanto, longe de celebrar o que pode parecer certa humani-zação do capitalismo, estamos lidando com a imposição de um princípio estético majoritário, que sufoca a criatividade, as culturas e as dinâmicas minoritárias.

Tal estética parece responder à lógica econômica e estratégica. Entretanto, ela tem efeitos políticos que merecem atenção. Destacamos dois efeitos: promover um certo estilo de existência e excluir todos os outros; induzir a uma gentrificação dos bairros estetizados. Diante desse movimento, que eles percebem como implacável, Lipovetski e Serroy veem apenas a possibilidade de uma estética de lentidão para retardá-la ou tentar escapar dela. No entanto, e esta será a nossa questão de pesquisa, existem também movimentos contra-estéticos, que confrontam esteticamente, que permitem compreender melhor os efeitos políticos da estetização das cidades, e que nos convidam a não nos retirarmos e resistirmos.

Remontando aos estudos que demostram ser os aspectos estéticos parte fundamental da evolução da gestão urbana e das dinâmicas de gentrificação, gostaríamos de mostrar que essa estetização do mundo é a imposição de implicações estéticas particulares e, por tanto, eminentemente política. Políticas, de fato, já que fundamentalmente essa estetização atribui lugares, estabelece papéis, possui uma (incapacidade) de falar e de ser ouvido; porque uma parte significativa do confronto se desenrola ao nível do sensível. Em outras palavras, o confronto e a resistência estão

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para além das discussões e debates de ideias – o confronto estético lança mão de performances e ações estéticas. Política, também, porque a estética imposta pela cidade comanda uma manutenção da ordem, dos lugares, do poder em nome dos imperativos da economia e da competitividade – aquilo que chamamos de um teatro da representação; porque se opõem ao esteticismo de não só um mundo estético de lentidão como defendeu Lipovetski e Serroy, outrossim um conjunto de movimentos e eventos estéticas e criativas, ao que chamamos guerrilha do sensível.

Entendemos a guerrilha do sensível como uma luta que invoca outras expressões, sensibilidades, elementos culturais e modos de estar e dar-se a ver ao mundo como formas de combate a uma estética majoritária. Para esta pesquisa nos colocamos em uma perspectiva estética, ou seja, observamos os efeitos de uma política de gestão urbana e uma ação de resistência a ela sob a angulação estética, por meio de um método sensível.

1. Aspectos políticos do sensívelPara Stiegler (2005), com o objetivo de garantir o consumo de massa, o

capitalismo busca equalizar os gostos, as subjetividades e destruir o “valor espírito”. Em sua reflexão, há um apelo para uma guerra estética contra um sistema que padroniza as sensibilidades. Contrariamente, Lipovetsky e Serroy apontam que para prosperar dentro de um capitalismo de hiper-consumismo as empresas e as cidades produzem uma proliferação dos afetos, sentimentos e universos estéticos. Para se diferenciar, para atrair e reter o consumidor, esses sujeitos institucionais contam com o estilo e a beleza, a fim de mobilizar os diversos gostos e sentidos, produzindo emoções e eventos, design, imagens, narração, paisagem etc.

Isso é o que chamamos capitalismo artista ou criativo transestético, que é caracterizado pelo crescente peso da sensibilidade nos mer-cados e do ‘design process’, através de um trabalho sistemático de estilização das mercadorias e dos estabelecimentos, da integração generalizada da arte, do ‘olhar’ e do afeto no universo consumista (LIPOVETSKI; SERROY, 2013, p. 12)5.

5 Tel est ce que nous appelons le capitalisme artiste ou créatif transesthétique, lequel se caractérise par le poids grandissant des marchés de la sensibilité et du ‘design process’, par un travail systématique de stylisation des biens et des lieux marchands, d’intégration généralisée

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Esta proliferação de estilos e experiências se irradia para além da busca por vantagens competitivas, ela transmite os padrões de uma existência estética (prazer, emoção, sonho, fuga, entretenimento).

A gentrificação não é o único efeito político. Como afirmamos acima, a estetização do mundo é a imposição de uma estética particular, um luxo estético, calmo e prazeroso, consistente com a competitividade da cidade, atraente para operações econômicas. Para Stiegler (2005), o capitalismo impõe sua ordem notavelmente via a estética, chegando mesmo a uma catástrofe do sensível. Experiências estéticas padronizadas que apenas criam impulsos e não individualizações, diminuindo a capacidade de reflexividade e ação. Espectadores são transformados em cérebros disponíveis para a publicidade. A possibilidade de vivenciar experiências estéticas individualizantes, de conquistar a sensibilidade, é, ao contrário, o que torna possível não apenas ser um consumidor, mas também um cidadão. Stiegler defende uma guerra estética contra tal sistema que, ao padronizar as sensibilidades, retarda a consciência política.

Para avançarmos na compreensão dos efeitos políticos produzidos pela estetização do mundo descrita por Lipovetski e Serroy, nos voltamos para o trabalho de Jacques Rancière, pensador que dedica grande parte de sua produção intelectual à reflexão sobre os modos pelos quais a estética é política. A estética age sobre o sensível. Ela define um compartilhamento do sensível. Trocando em miúdos, uma série de convenções que permitem que as experiências sejam compartilhadas. Simultaneamente, a estética permite ao comum ser compartilhado e, quando atribui papéis e lugares, delimita uma inclusão e uma exclusão. Esta partilha é sobre “o que vemos e o que podemos dizer, quem tem a competência para ver e a qualidade a dizer, sobre as propriedades dos espaços e as possibilidades do tempo” (RANCIÈRE, 2000, p. 14). A estética é, portanto, esse tecido de experiências sensíveis compartilhadas que se reúnem em comunidade e que, ao fazê-lo, atribuem funções, lugares e títulos. Rancière nos indica assim um lugar-chave na articulação entre estética e política: na divisão do comum e da comunidade que distribui lugares e fileiras, na representação e na organização desse comum e, nessa divisão, a posição corpos, as funções

de l’art, du ‘look’ et de l’affect dans l’univers consumériste. (LIPOVETSKI; SERROY, 2013, p. 12)

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da palavra, a distribuição do visível. Nesta perspectiva, a estetização não apenas define quem tem autoridade para dizer o que é bonito, mas também quem fala, quando e onde. É na dissonância (RANCIÈRE, 1995), na possibilidade de desafiar essa divisão sensível do comum, de colocar o outro em igualdade de direito, que reside uma possibilidade de reconfiguração da experiência sensível, na qual repousa a emancipação.

Antes mesmo de uma palavra ser pronunciada, a estética já trouxe para ela sua influência política. A estética atua na organização da cena em que o comum é criado. Esta cena define como as experiências serão sentidas, o status dado às palavras, o lugar, o momento e a escuta programada. Por exemplo, o espaço público, o lugar físico onde o comum pode ser criado, reage no espaço privado como uma esfera de comunicação e participação, a requalificação do primeiro pode provocar uma requalificação no segundo.

As cidades teatralizam a vida urbana conduzidas pelas estratégias de negócios. Tais estratégias dramatizam percursos, criam eventos para transformar consumo em experiências sensoriais, produzem grandes espetáculos para ritualizar o cotidiano. O diagnóstico é semelhante ao de Debord (1967) e da sua análise da sociedade do espetáculo – uma socie-dade na qual desejos autênticos foram fatiados; que consumiu sua própria imagem e o mundo como imagem. Mas aqui não se trata de um espetáculo global distanciado de si mesmo por um consumo de imagens e represen-tações, é uma infinidade de teatros locais que proporcionam experiên-cias diferenciadas que falam diretamente aos sentidos e emoções. Neste quadro, se houver uma recuperação das energias e faculdades criativas ela estará fora do significado do novo espírito do capitalismo, teorizado por Boltanski e Chiapello (1999)6. São as aspirações para o estilo, a diversão e a voracidade de experiências criativamente geradas e desviadas para os motores do consumo.

A gestão das atividades culturais e a dramatização da cidade estão,

6 O livro O novo espírito do capitalismo, de Boltanski e Chiapello, “de modo weberiano (...) distingue três ‘espíritos’ sucessivos do capitalismo: o primeiro, o espírito empreendedor, durou até a Grande Depressão da década de 1930; o segundo teve como ideal o não empreendedor, mas o diretor assalariado da grande empresa. (...) A partir da década de 1970, surgiu uma nova figura: o capitalismo começou abandonar a estrutura fordista hierárquica do processo de produção e, em seu lugar, desenvolveu uma forma de organização em rede baseada na iniciativa do empregado e na autonomia no local de trabalho” (ZIZEK, 2011, p. 52-3).

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muitas vezes, organizadas ao modo de um planejamento e de um controle próximo às práticas de empresas (GETZ, 2010). Por outro lado, a despeito da vontade de planejar e monitorar a imagem da cidade, durante os perí-odos de festas, ocorrem momentos carnavalescos, performáticos, quando as hierarquias são invertidas por um tempo e quando o potencial de expressão e criatividade é revelado (JOHANSSON; KOCIATKIEWICZ, 2011).

Enquanto a estetização do mundo é apresentada como a marcha implacável das forças econômicas, como consequência das estratégias competitivas, essas outras perspectivas nos permitem ver os efeitos políticos de tal movimento que é jogado em particular ao nível do sensível. No entanto, resta entender melhor como esses contra-movimentos também podem atuar ao nível estético para influenciar ou combater a estetização do mundo. Sem dar uma resposta geral, uma abordagem exploratória pode tentar mostrar algumas dessas dinâmicas estéticas.

1.2 O afeto como guia para o procedimento metodológicoRefletimos aqui sobre um tipo de estetização do mundo designada por

um conjunto de práticas operadas por organizações (instituições privadas e governamentais) com o objetivo de criar experiências sensíveis7. Sob esta perspectiva, o consumidor é tomado como um ente sensível e refle-xivo e não como um índice numérico, um dado estatístico. Estudar essa cena sensível, sentir e refletir essa estetização efetiva de cidades e contra-movimentos, nos coloca grandes desafios metodológicos. Primeiro, porque para perceber tal ação, parecia-nos indispensável nos expor à experiência estética, experimentar a experiência, deixar que nos afetasse. Simplesmente coletar depoimentos dos participantes sobre essa experiência pode, de fato, reduzi-los a uma racionalização posterior, a própria experiência

7 “Como faculdade do sentir, como qualidade que permite aos sujeitos receber afetos sobre o próprio corpo e perceber o mundo exterior a ele, a sensibilidade reúne as capacidades de sentir, conhecer e ser afetado. Assim, a sensibilidade refere-se ao aparelho sensitivo do corpo e aos processos próprios à intuição sensível e à excitabilidade. De maneira ainda mais ampla, a sensibilidade está para a fruição do belo, para a construção dos sentimentos, para o estabelecimento do gosto, para o refinamento do sentir; enfim, reside em seus limites as condições que nos permitem a experiência artística e estética” (MENDONÇA; FORMIGA, 2014).

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sendo capaz de se dissolver em um discurso, privando-nos de um acesso mais direto. A estetização e as contra-estetizações não se apresentam como uma mensagem a ser decodificada. Elas podem incluir palavras, sinais ou símbolos. Entretanto, para nós elas se expressam e se ofertam através do nosso corpo, de afetos, impressões e sensações. Então, não nos parece possível sairmos da estetização do mundo para observá-la de fora e à distância. Fazemos parte do mundo estético. Portanto, só pode ser dessa experiência, dessa posição interior, o locus de nossa análise. Finalmente, não se trata apenas de mostrar como a política está impressa nas subjetividades, mas também de apreender as reações que isso provoca.

Nosso objetivo não é descrever toda a experiência, mas apenas alguns momentos-chave quando sentimos que alguma coisa acontece. Nós basicamente seguimos o movimento da Praia da Estação e dos duelos de MCs. Esses duelos fazem parte da cultura hip hop. São jogos de oratória, construídos no contexto instrumental do rap, onde as letras são cantadas ritmadas em um número definido de rimas, onde o desempenho, eloquência e réplicas são projetados para superar o adversário. Realizado desde o ano de 2007, o “Duelo de MCs” ocupava, semanalmente, uma área do centro de Belo Horizonte – sob o viaduto Santa Tereza. Durante a ocupação, eram apresentadas manifestações artísticas do hip hop. O Duelo se tornou referencia nacional e muitos artistas foram revelados ali. Organizado pelo coletivo “Família de Rua”, as batalhas musicais ocor-riam em torno de temas sociais locais e nacionais. Junto com o Duelo, grupos de trabalho dedicados a pensar temas como a mobilidade urbana e moradia realizavam encontros no espaço. O público é o juiz. A “Praia da Estação”, surgida em 2010, é movimento reativo a um decreto da Prefei-tura Municipal de Belo Horizonte que proibia a realização de eventos de qualquer natureza na Praça da Estação. Tal decreto era a ponta de lança de um projeto que, segundo as manifestações contrárias, pretendia esvaziar a ocupação pública sob a alegação de uma mudança estética na capital. Os argumentos para a mobilização de forças em contrário ao projeto do poder público podem ser resumidos na seguinte formulação: padroni-zação estética, esvaziamento do espaço público, diminuição do encontro entre as pessoas e, consequentemente, despolitização. Sendo um dos pontos turísticos mais antigos da cidade, a Praça da Estação é lugar privile-giado para manifestações públicas. Pouco depois da assinatura do decreto

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pelo prefeito, um blog anônimo questionou a proibição e conclamou as pessoas para se encontrarem na praça, vestidas de branco, como forma de protesto. No dia 07 de janeiro de 2010, cerca de 30 pessoas estavam reunidas na praça. Como ação, foi criado uma lista de e-mail chamada “Praça Livre”. Da conversação entre este grupo nasceu a ideia de produzir um evento denominado “Praia da Estação”. Em uma tarde de sábado enso-larado, dizia uma jovem: “a praia é um movimento horizontal, sem lide-ranças, auto-organizado, sem porta-voz. (…) a Praia da Estação é um ato político de apropriação do espaço público que propõe uma nova forma de experimentar a cidade: mais livre, democrática e sem repressão.” Desse movimento, além de várias outras ações políticas, renasceu o carnaval de Belo Horizonte, como uma das estratégias para ocupar a cidade.

Secundariamente, também nos deixamos impregnar pela experiência de um lugar comercial da cidade, a fim de compreender melhor, em contraste, a singularidade da experiência. Como afirmamos, nosso objetivo não era o de restaurar tudo da experiência. Participamos de Duelos, frequentamos a Praia, conversamos com organizadores, caminhamos pelas ruas da cidade, lemos o que a imprensa dizia, sem um plano preliminar, apenas para ouvir tais momentos. Nos deixamos afetar pelos acontecimentos. O afeto nos coloca em movimento, move tanto fisicamente, quanto emocional e reflexivamente, e é esta conjugação em três níveis que será restituída e analisada. Uma vez que o que está em jogo é uma teatralização, é possível estudá-lo como uma peça de teatro.

Clough (2007) ressalta a existência de uma virada afetiva (turn to affects) nas ciências sociais, na qual esta atenção ao afeto permite que se capture a evolução simultânea nos domínios político, económico e cultural. A atenção aos afetos tem se mostrado fértil para pesquisar o social. Ela permite refletir sobre como na experiência o corpo e a mente são acionados juntos, bem como a razão e a paixão, a inteligências e os sentimentos estão interligados (HARDT, 2007). Nas reflexões da corrente turn to affects o termo ganhou múltiplos sentidos (CLOUGH; HALLEY, 2007). A experiência estética nos sensibiliza, em primeiro lugar, na forma de afetos. Afeto é o que nos diz que algo está acontecendo, atrai nossa reflexão. O afeto é o que nos força a pensar. Mas devemos primeiro nos expor a ela, entrar o máximo possível em presença direta com a vida que se apresenta aqui (LETICHE; LIGHTFOOT, 2014), deixar-se invadir pela

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experiência, a fim de entender como isso ocorre, nos afeta. Quando nos submetemos a essa experiência estética, percebemos, acima de tudo, o que é visível e expresso, mas também uma parte do que não é dito, o implícito, a dinâmica potencial, os segredos e os fantasmas do mundo, a história daquilo que às vezes não sabemos ver, naquilo que nos impressiona na forma de afetos. Não se trata, então, de nomear ou classificar os afetos, mas de questionar o que eles apresentam de estranho ou inesperado, e tentar, tanto quanto possível, restaurar essa experiência afetiva ao leitor, para que ele possa, por sua vez, experimentar e pensar nisso. Nos concen-traremos na abordagem de Stewart (1996, 2007), que vê no cotidiano o surgimento de eventos e de sensações como forças responsáveis por mover o pensamento, que ultrapassam uma representação global do capi-talismo, mostram dimensões onde as coisas acontecem e demandam nossa atenção. Esta abordagem do afeto como força e movimento nos pareceu compatível com a concepção de afecto cunhada por Gilles Deleuze8. Tal definição nos servirá como conceito analítico. Essa perspectiva do afeto revelou-se ainda mais preciosa quando nos mostrou o que estava em jogo: uma diferença de movimento.

2. Teatralizações: o controle e a guerrilhaÀ época da pesquisa, na cidade de Belo Horizonte, a estética majoritária

introduzida pelo poder público municipal estava amparada nos poderes económicos dedicados ao controle de expressão de outros movimentos. Grupos organizados denunciavam nas redes sociais, regularmente, o distanciamento entre as políticas públicas para a gestão do espaço urbano e as necessidades da população. O conflito ficou ainda mais acirrado quando Belo Horizonte foi escolhida como uma das capitais a sediar jogos da Copa do Mundo de 2014. Para abrigar seis partidas de futebol durante o torneio, a cartografia urbana foi transformada a partir dos interesses econômico. Naquele projeto, a estetização da cidade não dialogava com a população. Em casos assim, a estética é apresentada não apenas como uma força política e económica, mas também de gestão.

8 É importante lembrar que a formulação proposta por Deleuze aproxima o afecto aos devires. Diretamente ligado à noção de perceptos, pois não há perceptos sem afectos, os afectos superam as forças daqueles que atravessa.

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O “Duelo de MCs” e a “Praia da Estação” agiam na contramão dos atos do poder público. Nos dois eventos citados, o conflito assume a forma de uma multiplicidade de combates de rua a partir da criatividade, do uso de performances estéticas e de plataformas de comunicação como as princi-pais armas. Chamamos a esses grupos de guerrilheiros do sensível.

Em sentindo oposto ao uso das performances estéticas então referidas, experimentamos uma visita a um Shopping Center. Naquele ambiente nos deparamos com uma experiência de fato inédita, mas advinda de algo já conhecido. Nessa teatralização distinta há a reprodução de um mesmo tipo de experiência, uma estetização baseada na volta de uma experi-ência passada. No encontro de MCs ou na Praia da Estação, por estarem ritualizados no centro da cidade de Belo Horizonte, nos encontramos na presença de uma experiência que poderia parecer já conhecida, mas cujo o resultado é incerto, com possibilidade de fazer advir algo imprevisível, potencialmente liminar. Na ruas, as performances sociais e estéticas não são reguladas. A horizontalidade dos encontro, a não hierarquização permite a emergência de manifestações variadas e o surgimento de movi-mentos os mais distintos. O devir se move em todos os sentidos e com ele há o deslocamento de blocos de afetos.

Na teatralização do capitalismo artista, há certamente experiências diferentes, com uma busca pelo “cada vez mais”, “cada vez maior”, “mais alto ou mais forte”, mas no fundo a experiência ainda continua da mesma natureza. Existe sempre a tentativa do controle da experiência estética ou a produção de uma “experiência estética regulada”, um enclausuramento do devir. Como no teatro da representação, observado por Deleuze, essa teatralização não muda o roteiro que já estava definido, o conceito perma-nece o mesmo. Este teatro reproduz o mesmo discurso, a mesma história, as mesmas imagens. Mesmo se na cena os atores e os cenários são dife-rentes, nada acontece. Não há eventos, há a busca por deter o devir. Trata--se da repetição do mesmo, do mesmo prazer da compra, do mesmo tipo de experiência.

Além disso, o espectador desse teatro não trabalha na construção do sentido, o sentido aqui lhe é dado, mastigado. (cf. BARTHES, 2002). O sentido está pronto para ser consumido. O espectador não é emancipado (tal como pensou RANCIÈRE, 2008), não é co-construtor. Como ele não contribui para a criação do sentido, deve apenas prová-lo. Mas Deleuze

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vai mais longe. O teatro crítico, em contraste com o da representação, é um teatro que afeta, de onde os espectadores saem alterados, abertos a novos modos de existência. De onde eles extraem outras maneiras de se constituir como sujeito, de se fabricar sujeito. No tempo presente da realização desse teatro, algo acontece, e a história que é contada, assim como o público, os atores, a situação, tudo é colocado em jogo. Aqui são convocadas a história, a política, aqui atuam os espectros dos espetáculos passados. Este teatro não é uma representação de uma história ou de uma imagem de felicidade; ele não é metáfora, mas produção. Se há uma feli-cidade, é a da criação, a do encontro. O que está em cena não vale pelo que representa, mas pelos pensamentos que cria, porque faz advir, pelos abalos, vibrações, movimentos.9

Citamos Deleuze (1968, p. 18):

O teatro crítico opõe-se ao teatro da representação, como o mo-vimento opõe-se ao conceito e à representação que o relaciona ao conceito. No teatro crítico, experimentamos forças puras, traçados dinâmicos no espaço que, sem intermediário, agem sobre o espíri-to, unindo-o diretamente à natureza e à história; experimentamos uma linguagem que fala antes das palavras, gestos que se elaboram antes dos corpos organizados, máscaras antes das faces, espectros e fantasmas antes dos personagens.10

Na experiência criada durante o Duelo de MCs, não há nenhum texto pré-definido a se dramatizar, o que acontece é mais da ordem da perfor-mance. Dawsey (2005) lembra que Turner utilizava o termo performance à partir de sua raiz indo-européia per, o que significa, entre outras coisas, se aventurar. Raiz que encontramos na palavra perigo. A performance é um colocar em perigo; o que é posto em risco é notadamente o que somos,

9 O que vale ainda mais quando da ausência do movimento dos consumidores. Nos consumidores que consomem mas não se individuam, animados mais pelas pulsões que pelos desejos, Stiegler diagnostica a asfixia do capitalismo.10 Le théâtre de la répétition s’oppose au théâtre de la représentation, comme le mouvement s’oppose au concept et à la représentation qui le rapporte au concept. Dans le théâtre de la répétition, on éprouve des formes pures, des tracés dynamiques dans l’espace qui agissent sur l’esprit sans intermédiaire, et qui s’unissent directement à la nature et à l’histoire, un langage qui parle avant les mots, des gestes qui s’élaborent avant les corps organisés, des masques avant les visages, des spectres et des fantômes avant les personnages.

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assim como a situação11. Mas esta performance não é o trabalho de um ator, ninguém a controla, ela advém em momentos de subjetivação. “A subjetivação não tem nada a ver com a ‘pessoa’ : é uma individuação, parti-cular ou coletiva, que caracteriza um evento (uma hora do dia, um rio, um vento, uma vida ...)”12 (DELEUZE, 1990, p.135; GARCIN-MAROU, 2013).

O que acontece no Duelo de MCs e na Praia da Estação advém pela subtração de um poder. O poder da prefeitura, que dita qual é a utilização correta daquele espaço, ou o poder do capitalismo artista, que dita a esté-tica correta. Esta supressão de um poder é o que permite o ‘colocar em movimento’. A crítica nesse teatro não é a reprodução do passado, mas a retomada do impulso antes de sua captura pelo poder, que propulsiona ao que está por vir, a outras aventuras: outros devires sociais, outras consti-tuições políticas dos sujeitos, outros modos de estar-junto, outras utiliza-ções dos espaços. Este efeito da subtração de um poder para colocar em movimento é o que Deleuze (1979) analisa no teatro de Carmelo Bene. Retirar o poder que bloqueia a situação e abrir à efetuação de outras forças.

A eficácia dessas forças não vem (somente) das palavras que são profe-ridas na cena improvisada, ela não vem da expressão de uma significação que convenceria o público a mudar. Não se trata de forças de persuasão, de retórica ou de um story-telling. Não se trata de cognitivo ou de narrativo. O que acontece é da ordem do sensível. Estas forças são o que Deleuze chama de imagens-ações ou de imagens movimento. O que se passa, passa pelos afetos. O afeto é o que vai transformar tanto o espectador quanto a situação. É uma questão de encontro, de captura. Não é a se interpretar, é a se experenciar, em uma relação não cognitiva ou significativa, mas vital.

O capit”alismo artista redefine os espaços, redesenha as ligações entre centros e periferias, reteatraliza a cidade num imenso shopping center e centro de experiências, ele reconfigura seus ritmos e linhas. Ele impõe uma re-partilha do espaço, que atribui os lugares, as funções, os direitos. É justamente esta partilha definida do espaço que é contestado pelos MCs,

11 Sobre o tema, cf.: MENDONÇA, Carlos M C. O lugar olhada das coisas. In: BRASIL, André (et al.). Visualidades hoje. Salvador: EDUFBA; Brasília: Compós, 2013.12 La subjectivation n’a rien à voir avec la ‘personne’ : c’est une individuation, particulière ou collective, qui caractérise un événement (une heure du jour, un fleuve, un vent, une vie…) (DELEUZE, 1990, p.135).

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e por outros movimentos, como a Praia da Estação ou como o Espaço Comum Luiz Estrela. Ao espaço estriado da cidade, estes movimentos opõem um espaço liso, sem fronteiras, utilizável por todos e para ocupa-ções diferentes a serem inventadas. A um espaço público organizado por e para os habitantes.

Sensível, afeto, espaço, estético... não é sem importância que sejam as mesmas armas do capitalismo artista que são usadas. Estética contra esté-tica? Talvez, mas trata-se antes de tudo de um uso menor (usage mineur) dos processos majoritários da capitalismo transestético.

Mas não se trata apenas de uma guerrilha de nômades que ocupam o lugar contra aqueles que o dirigem ou o possuem. A guerrilha toma lugar e atravessa também cada um desses grupos, ela acontece entre o sensível e o inteligível, ao interior da pesquisa, ao seio dos pesquisadores, no coração das subjetividades. Trata-se de mostrar este theatre of operations e de refletir sobre ele, tentando uma negociação entre afetos e conceitos.

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REFERÊNCIAS:

BARTHES, R. Ecrits sur le théâtre. Paris: Éditions du Seuil, 2002.BOLTANSKI, L. & Chiapello, E. Le Nouvel esprit du capitalisme. Paris: Gallimard, 1999.CLOUGH, P.T. & Halley, J. The Affective Turn: Theorizing the social. Durham: Duke University Press, 2007.CONQUERGOOD, D. Cultural Struggles. Performance, Ethnography, Praxis. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 2013.DAWSEY, John. C. “Victor Turner e antropologia da experiência”. In: Revista Cadernos de Campo, 13: p. 163-176, 2005.DEBORD, G. La Société du Spectacle. Paris. Buchet-Chastel, 1967.DELEUZE, G. Différence et Répétition. Paris. Presses Universitaires de France, 1968.DELEUZE, G. Superpositions, en collaboration avec C. Bene. Paris: Éditions de Minuit, 1979.DELEUZE, G. Pourparlers 1972 – 1990. Paris: Éditions de Minuit, 1990.FEATHERSTONE, M. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Livraria Nobel S.A., 1995.GARCIN-MAROU, F. “Pourparlers sur le théâtre”. In: BOURLEZ, F. e VINCIGUERRA, V. Pourparlers, Deleuze entre art et philosophie, 2013.GETZ, D. Event Studies: Theory, Research and Policy for Planned Events. Oxford: Elsevier, 2007.JOHANSSON, M. & KOCIATKIEWICZ, J. “City festivals: Creativity and control in staged urban experiences”. In: European Urban and Regional Studies, 18/4: p. 392-405, 2011.LIPOVETSKY, G. & SERROY, J. L’esthétisation du monde. Vivre à l’âge du capitalisme artiste. Paris: Gallimard, 2013.MENDONÇA, Carlos M C. “O lugar olhada das coisas”. In: BRASIL, André (et al.). Visualidades Hoje. Salvador: EDUFBA, 2013.RANCIÈRE, J. Políticas da Escrita. Editora 34: Rio de Janeiro RJ, 1995.

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____________. Le Partage du sensible. Esthétique et politique. Paris. La Fabrique: 2000.____________. Le Spectateur émancipé. Paris. La Fabrique: 2008.SCHECHNER, R. Performance Studies. New York: Routledge, 2002.STEWART, K. A space on the Side of the Road. Cultural Poetics in an ‘Other’ America. Princeton: Princeton University Press, 1996.

____________. Ordinary Affects. Durham: Duke University Press, 2007.TURNER, V. Dramas, Fields, and Metaphors: Symbolic Action in Human Society. Ithaca: Cornell University Press, 1974.ZIZEK, S. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo: Boitempo, 2011.

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Parte 3: ModalidadesComunicacionais

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Capítulo 9

Mal-Entendidos: arte contemporânea, vida cotidiana e experiência estética1

Eduardo Antonio de Jesus

Listas de supermercado escritas a mão em diversos tipos de papel, as vezes bem pequenos, outros grandes, recortados ou rasgados grosseira-mente ao acaso. Nestes pedaços de papel são utilizadas canetas com traços, cores e tipos diferentes. A esferográfica mais barata que se encontra em qualquer lugar, de traço grosso ou mais fino. Canetinha hidrocor quase sem tinta. As caligrafias distintas, os vestígios no papel e os produtos listados. Recolhidas de diversos supermercados em Londres entre junho de 2013 e maio de 2014, estas listas de compras, organizadas em torno das estações do ano, compõem “Colheita”, obra de Rivane Neuenschwander que integrava a exposição “mal-entendidos”2.

Retomo as obras de Rivane Neuenschwander provocado por essa expo-sição e por outros trabalhos da artista apresentados na coletiva “Do objeto

1 Trabalho originalmente apresentado ao Grupo de Trabalho “Comunicação e Experiência Estética” do XXIV Encontro Anual da COMPóS, na Universidade de Brasília e Universidade Católica de Brasília, em 2015.2 Museu de Arte Moderna de São Paulo entre 01 de setembro e 14 de dezembro de 2014.

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ao mundo”3. Tomo mais uma vez o caminho, quase tortuoso, que busca aproximar experiências estéticas e vida cotidiana, começando nos espaços institucionais da arte contemporânea para chegar ao domínio da vida ordi-nária. Anteriormente, a questão despertada não só por obras de Rivane Neuenschwander, mas também outras, era saber como a arte poderia nos reconduzir ao domínio da vida cotidiana, mas com uma percepção alargada das experiências estéticas do mundo ordinário. Sem epifanias e acionando uma resistência silenciosa ao grande alarido dos meios de comunicação e das redes sociais sempre sintonizados no tom espetacular típico da vida contemporânea, aquelas obras pareciam nos remeter do espaço expositivo à vida cotidiana, compreendendo-a como espaço de intensas experiências estéticas e resistência.

Era essa a formulação na qual me detive durante um certo tempo. Graças a um relato discutindo essa primeiro abordagem4e a visita as duas exposições, as reflexões se desdobraram em novas direções e se encami-nharam na tentativa de circunscrevê-las em outra chave, desta vez em relação à noção de “literatura menor”. Essa nova chave mantém a questão inicial: a relação entre experiência estética, arte contemporânea e vida cotidiana, como um processo de resistência diante das forças homoge-neizantes que assediam as subjetividades na contemporaneidade. Haví-amos tomado anteriormente, de forma ainda superficial, as reflexões de Deleuze e Guattari (2014) em torno da “literatura menor” que torna-se agora o principal vetor para a construção da noção de “arte menor”, que acreditamos caracterizar algumas obras de Rivane. Naquele momento, a noção apareceu somente mais ao final do texto, num lampejo do que agora se torna a articulação mais central para pensar as experiências estéticas que se dão nos contextos e espaços institucionalizados da arte, mas nos conduzem para fora em direção aos espaços cotidianos da vida ordinária.

3 Palácio das Artes (Belo Horizonte, MG) entre 12 de dezembro de 2014 e 08 de março de 2015.4 No XXIII Encontro Anual da Compós (UFPA, 2014) apresentei o texto “UM PISCAR DE OLHOS: experiência estética e vida cotidiana” primeira abordagem das obras de Rivane Neuenschwander. O texto foi relatado pela Professora Ângela Cristina Salgueiro Marques e seus orientandos na época, Thales Vilela Lelo e Ana Karina de Oliveira Carvalho. Tratava-se de um relato extremamente detalhado e repleto de produtivas indagações que tornou-se a principal motivação para retomada da questão neste texto.

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Assim, acreditamos que as experiências estéticas acionadas por algumas obras nos permitem ativar outras possibilidades de inserção no mundo, nos abrem para a invenção de outros possíveis, como afirma Suely Rolnik:

A especificidade da arte enquanto modo de expressão e, portanto, de produção de linguagem e de pensamento é a invenção de pos-síveis – esses ganham corpo e se apresentam ao vivo na obra. Daí o poder de contágio e de transformação de que é portadora a ação artística. É o mundo que está em obra por meio dessa ação (ROL-NIK, 2008, p. 27).

A produção artística pode revelar novas formas de compreendermos os conflitos, tensões, mutações e contextos contemporâneos nos ofere-cendo outras formas de inserção no mundo. No território dos “mundos--imagens”5 as saídas parecem frequentemente nos enviar para um mesmo lugar cercado pelo espetáculo midiático tanto em suas formulações ligadas aos meios de comunicação de massa (de traço mais Debordiano) quanto as horizontais (mass self communication, como afirma Manuel Castells), essas que alimentamos com nossas imagens nas redes sociais, bem como em seus muitos cruzamentos. Naturalmente que sabemos de toda a intensidade existente nas apropriações, contratos e passagens entre os processos de subjetivação ativados na recepção dessas imagens e a vida social. Coletiva e individualmente esses “mundos-imagens”, sem dúvida servem a difusão do consumo e das tentativas de apaziguamento de todas as contradições contemporâneas. No entanto, apesar disso, há sempre algo que escapa, que pela intensidade dos sentidos em jogo na recepção, rever-bera de outro modo. Não há caminho único na contemporaneidade, as relações entre esses significados se colocam em termos de multiplicidades e agenciamentos expandidos nos dinamismos da vida social.

5 Retomamos aqui a expressão de Suely Rolnik presente em seu texto Geopolítica da cafetinagem. “(...) é exatamente por causa de nossa crença no mito religioso do neoliberalismo que os mundos-imagens que esse regime produz se tornam realidade concreta em nossas próprias existências” (ROLNIK, 2008, p. 33).

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1. Mal-entendidos

O que se diz permanece esquecido por trás do que é dito naquilo que é escutado.

Jacques Lacan

A frase do ensaio “O aturdido” (1973) de Lacan introduz o longo e detido ensaio crítico do curador Adriano Pedrosa no catálogo da expo-sição “mal-entendidos”, panorâmica de Rivane Neuenschwander6. As obras nos mostram sistemas de linguagem que estabelecem outras dinâ-micas acionando percepções que se dão nas falhas, nos lapsos entre o dito e o não-dito, aquilo que é impossível de dizer e que as linguagens buscam de alguma maneira captar e dar forma.

Há um tema central no trabalho de Rivane Neuenschwander: a inaptidão dos conhecidos e tradicionais códigos, sistemas, lin-guagens e alfabetos de dar conta e expressão de outros discursos (incertos, improváveis, inconstantes, imprecisos, infinitos), talvez próximos ao discurso amoroso, afetivo, emocional, corporal, co-tidiano, sexual, orgânico, sexual, natural. Mas não podemos estar certos (PEDROSA, p. 8, 2014).

A epígrafe não poderia ser mais adequada para nos introduzir no universo de proposições que a exposição nos oferece. O nome deriva de uma das obras expostas: um copo cheio de água, no qual flutua um ovo. Devido a refração, a parte de baixo, imersa na água, fica imensa enquanto a de cima continua no mesmo tamanho, provocando um desen-contro entre ambas as partes. Para além do simples truque ótico, “mal--entendido” (2000) exposto em uma pequena prateleira logo na entrada do espaço expositivo, aponta para outras questões bem mais complexas. Trata-se de “uma demonstração de que mesmo materiais aparentemente transparentes como o vidro e a água podem distorcer nossa boa percepção da realidade. A pergunta é: existe, de fato, uma boa percepção e represen-tação da realidade?” (PEDROSA, 2014).

A questão apontada por Pedrosa atravessa a exposição e constrói um

6 Museu de Arte Modernda de São Paulo, entre setembro e dezembro de 2014.

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tensionamento entre sistemas de linguagem e formas de representação apontando falhas e lacunas que tornam os processos de significação abertos ao Outro e ao acaso. Tudo parece pulsar numa vitalidade silen-ciosa, aproximando os códigos de linguagem que mesmo organizados de forma mais rígida e geométrica, trazem em suas articulações de sentido o erro, a falha e o mal-entendido. Paira a dúvida, a instabilidade de sentidos dos códigos de linguagem minados pelas forças da vida e do acaso. Mesmo porque o Outro, convocado a participar da própria elaboração da obra, coloca em jogo seu próprio desejo, como em “Primeiro amor”. Nesta obra o “visitante é convidado a descrever seu primeiro amor para um dese-nhista da polícia especialista em retrato-falado” (NEUENSCHWANDER, 2010, p. 150). Tal qual a música (“meu primeiro amor tão cedo acabou e só a dor deixou nesse peito meu”), as imagens nebulosas e fugidias do primeiro amor, na traição da memória e de nossas próprias construções, vai ganhando forma no desenho e nas sucessivas perguntas e descrições, um jogo entre vivido e imaginado, entre a experiência e o trabalho dos dias, entre fabulação e realidade. Lisete Lagnado comenta essa implicação do Outro7 nas obras de Rivane:

A maioria das obras depende da implicação pessoal de colabora-dores que Rivane consegue mobilizar sem nenhum outro capital que a motivação gerada por seu trabalho. (…) Parte do serviço dela consiste em coordenar indivíduos que lhe emprestam de sua energia vital, um eufemismo da ciência biológica para não nomear diretamente o desejo. Subordinados a suas instruções, os coope-rantes colocam suas competências à disposição e assim o trabalho de um vai nutrindo o do outro (LAGNADO, 2012, p. 14).

7 Em outro trecho do texto, Lisete Lagnado comenta de um sonho recorrente, no qual está em uma exposição de Rivane quando “ (…) de repente, atentados pipocam por todos os lados: indivíduos se apóiam na parede que exibe fitas adesivas horizontais; tropeços acabam dispersando os montículos de pimenta-do-reino que pontuavam o espaço (Attachment); bacias e copos sofrem esbarros, derramando seus líquidos (Continente). Dirijo-me a cada pessoa, explicando a natureza da obra e exigindo mais cautela. Ninguém me dá ouvidos. A situação escapa de meu controle; a exposição desaba. Levo o relato dessa falta de tino do público em relação ao trabalho da artista e eis a resposta que me chega: “É assim mesmo. A vida faz parte. Esta é a medida do trabalho”. E Rivane continua conversando tranqüilamente com seus convidados” (LAGNADO, 2012, p. 09)

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Esse compartilhamento entre sujeitos e obras, repleto de cumplicidade e desejo, atua de forma intensa na ativação dos sentidos e sobretudo nas sensíveis reverberações que provocam nos processos de subjetivação, por nos fazerem notar como são falhos e lacunares os sistemas de linguagem especialmente quando queremos dizer algo impossível de se dizer. Em “Esculturas involuntárias (atos de fala)” (2001-2010) o que vemos são pequenos objetos “feitos por diversas pessoas durante conversas em bares e restaurantes” (NEUENSCHWANDER, 2010, p. 140). Esses pequenos vestígios também funcionam como cartografias construídas na fluidez do espaço amistoso de distração dos encontros e conversas. Paulo Herkenhoff comenta a obra e destaca seu lugar na articulação das falhas da linguagem:

A falta de destino social desses objetos-situação parece ter sido corrigida por Neuenschwander ao trazê-los para a arena da arte. Ali enfrentariam a conclusão de Maurice Blanchot de que “a pala-vra sempre já fracassou em capturar o que nomeia (HERKENHO-FF, 2010, p.76).

A construção dos sentidos se dá mais pelo sensível, pelo envolvimento direto com a obra sabendo que não há sistema de linguagem que consiga abordar a totalidade do que somos e sentimos, como mostrou Herkenhoff ao citar Blanchot. Tudo aberto ao encontro com o Outro e seus processos de subjetivação. Assim os “atos de fala” e outros sistemas de linguagem surgem na exposição como os alfabetos, organizados rigidamente em linhas, mas feitos com temperos, de Açafrão a Zattar em “Alfabeto comes-tível” (2002). As linhas de tempero que compõem cada um dos 26 painéis podem nos permitir escrever um outro texto, muito mais lacunar e aberto para narrativas mais próximas aos sentidos e aos paladares com suas memórias e histórias. O alfabeto também é o ponto de partida para “Pala-vras cruzadas” (2001) que dividia a sala com os quadros de temperos e condimentos. Em pequenas caixas de madeira no chão, como construções labirínticas, pousam limões e laranjas desidratados com letras do alfabeto esculpidas, permitindo que os visitantes componham frases e palavras.

Como usar esse alfabeto? É preciso acionar os sentidos (olfato, visão e tato) para se expressar nesse sistema. As laranjas e limões, por outro lado, nos permitem escrever e expressar livremente, nas rígidas composi-ções geométricas e labirínticas onde estão dispostos. A dimensão ativa da

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participação do Outro – seja um visitante, os autores de trabalhos que são incorporadas à exposição ou um funcionário do museu – ativa as obras levando-as para o território do afeto e da vida.

Quando vemos as listas de compra de “Colheita” ou os pequenos volumes de papel retorcidos em “Esculturas involuntárias (atos de fala)” parece que estamos diante de uma cartografia do Outro, como um mapa aberto de fragmentos da história de cada um de nós e de nossos afetos. É em torno dessa construção repleta de possíveis erros, falhas, sempre incompleta e lacunar por excelência que nos perguntamos sobre as potên-cias da experiência estética na vida cotidiana. Ao mesmo tempo que faz parte da obra a amplia em sentidos

O jogo entre as experiências – aquelas vindas da arte e de seus espaços institucionais e as mais ordinárias e cotidianas – atuam na construção dos sentidos da obra, trata-se de uma desterritorialização. Não estamos exclu-sivamente no território da arte, mas numa linha de fuga. Nesse contexto o sensível tem uma centralidade na construção dos sentidos, como nos mostra Jean-Luc Moriceau e Isabela Paes ao comentarem sobre as relações entre o sensível e o sentido:

Nosso contato com o sentido, ou o nosso trabalho de construção de sentido, nasce a partir de nossa abertura ao mundo, nossa sen-sibilidade, nossa capacidade de sermos afetados, se origina e toma forma ao tocar de nossas sensações, mas ainda mais no universo do sensível (MORICEAU; PAES, 2014, p. 110).

A questão central nessas obras de Rivane Neuenschwander é o modo como as obras nos solicitam ver que, por exemplo, cada uma das listas de compra traz consigo fragmentos de muitas vidas revelando a nossa própria e a força que essa suposta banalidade tem para revelar momentos da vida, contextos, experiências e subjetividades. Um caminho de volta da galeria ou museu aos, supostamente, insignificantes momentos da vida cotidiana, onde, silenciosamente, nada parece significar ou acontecer, como nos contos de Ingo Schulze. Assim nos deslocamos do mais progra-mado e conseguimos sensivelmente perceber que é justo na lisura do coti-diano que efetivamente damos sentido a vida. Aqui também alçamos uma linha de fuga e escapamos dos esquematismos de uma produção de subje-tividade programada e fechada para termos outras formas de inserção no

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mundo. Experimentar essas obras é adentrar-se nesse território no qual a linguagem escapa, aceitando-se falha, lacunar e onde nossos desejos implicados são como um vetor sensível que aciona os sentidos.

2. A arte menor A produção artística contemporânea pode ativar novas visões dos

problemas e tensionamentos do mundo com suas abordagens. Como afirma Rolnik: “não há então porque estranhar que a arte se indague sobre o presente e participe das mudanças que se operam na atualidade” (ROLNIK, 2008, p. 27). Tomando a produção artística podemos esboçar sensações, sentidos e significados típicos de nosso tempo, minado pelas novas formas (cada vez mais sofisticadas) do capitalismo que agora também atua na captura das subjetividades. Nesse contexto, algumas vezes a arte pode manejar pulsões de vida com tamanha intensidade que faz com que se torne uma singular forma de percebe-la como eminente desterritorialização: experiência que para ativar sua intensidade precisa nos deslocar, gerar vetores de saída e linhas de fuga.

As obras de Rivane Neuenschwander solicitam a implicação direta dos sujeitos em sua construção, algumas vezes no momento da exibição, como em “Primeiro amor” e em outras no processo construtivo como “Escul-turas involuntárias (atos de fala)”. O Outro, com o seu desejo e singula-ridade, bem como as complexas relações que desprende de sua presença, habitam as multiplicidades acionadas nas obras.

O deslocamento e o tensionamento provocados pela presença do Outro redimensiona os processos de construção de sentido da linguagem abrindo-os para o mundo, perdendo assim a vontade totalizante de tudo representar. Aqui o fracasso habita a linguagem e a recoloca em contato conosco, para juntos duvidarmos das “boas representações da realidade”.

Esse gesto que recoloca a linguagem em uma situação de imprecisão e risco, presente nas obras de Rivane, pode nos levar a pensá-las como manifestações de uma arte menor, derivando, mais uma vez, das reflexões de Deleuze e Guattari (2014). Mas o que seria uma arte menor8? Será que

8 Mais recentemente entramos em contato com as reflexões de Moacir dos Anjos que também tomam o pensamento de Deleuze e Guattari e a noção de literatura menor, para pensar a arte menor. Apesar de se encamimnhar para outra direção, existem alguns pontos em comum.

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o conceito desenvolvido pelos autores para dar conta dos rizomas e multi-plicidades que caracterizam a obra de Kafka podem nos servir para carac-terizar obras contemporâneas? Será mesmo que essa arte menor pode se tornar uma linha de resistência em relação ao modo como as políticas e os poderes, expressos sobretudo no domínio das imagens, assediam nossas subjetividades? Para empreendermos essa aproximação, é importante retomarmos as reflexões originais dos autores em torno da obra de Franz Kafka.

Lançado em 1975, “Kafka: por uma literatura menor” funciona como campo de experimentação e desenvolvimento de conceitos que seriam centrais para “Mil platôs” (1980), obra posterior. Conceitos centrais na obra dos autores como rizoma (que aparece pela primeira vez logo no início do livro: “(...) como entrar na obra de Kafka? É um rizoma, uma cova”) e agenciamento (que dá nome a um dos capítulos) fazem que esse livro assuma um lugar de destaque nas obras Deleuze e Guattari. Não apenas por isso, mas sobretudo pela passagem de uma “postura crítica, denunciativa, que é a de ´O anti-Édipo´ em face da psicanálise, para uma posição afirmativa, a de seu próprio procedimento, singular, testando-a no confronto com uma grande obra literária” (DOSSE, 2010, p. 202). As características da obra de Kafka, para além do texto propriamente dito, é a matéria da qual Deleuze e Guattari partem para refletir a relação entre teoria e literatura. Como nos mostra Schollhammer, a questão que se coloca diz respeito a uma abordagem mais experimental tanto da litera-tura quanto da teoria literária:

(…) poderíamos dizer que não se trata, para Deleuze e Guattari, de compreender os textos literários nem de interpretá-los e procurar o que significam, mas de descobrir como funcionam, o que podem fazer, assim como se descobre o funcionamento de uma máquina, desmon-tando-a para logo remontá-la teoricamente, evidenciando sua real performance (SCHOLLHAMMER, 2002, p. 60).

Esse traço da obra de Deleuze e Guattari (2014) nos interessa bastante por ativar uma abordagem da literatura de Kafka trazendo para o primeiro

Conferir: ANJOS, Moacir. Por uma curadoria menor. IN: ANJOS, Moacir. Contraditório – arte, globalização e pertencimento. Rio de Janeiro. Cobogó, 2017.

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plano o funcionamento da “máquina” e rompendo com os “cânones consa-grados pela tradição, opondo a ela a força criativa de uma literatura dita menor” (DOSSE, 2010, p. 203).

O que estrutura o livro de Deleuze e Guattari, além da postura mais ampla de abordagem da máquina Kafka, é um protocolo experimental (“não acreditamos a não ser em uma experimentação de Kafka, sem inter-pretação nem significância, mas somente protocolos de experiência”) (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 33) de onde emerge a construção da noção de literatura menor estruturada em três principais características. Primeiramente os autores tratam da desterritorialização abordando a lite-ratura judia em Varsóvia ou em Praga. Para Deleuze e Guattari, “uma lite-ratura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior. Mas a primeira característica, de toda maneira, é que, nela, a língua é afetada de um forte coeficiente de desterritoriali-zação” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 35).

Nas proposições maquínicas ou teoremas de desterritorialização, os autores apontam no primeiro teorema que “jamais nos desterritoriali-zamos sozinhos, mas no mínimo com dois termos: mão-objeto de uso, boca-seio, rosto-paisagem. E cada um dos dois termos se reterritorializa sobre o outro” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 45). Schollhammer nos mostra como os autores caracterizam a desterritorialização na obra de Kafka:

Mas como entender esta prática motivada por “um forte coeficien-te de desterritorialização”? No caso histórico de Kafka, trata-se de um escritor que escreve em alemão como parte de uma minoria judia em Praga e, portanto, é desterritorializado triplamente. Não escreve em tcheco, a língua da sua pátria, não escreve em iídiche, a língua da sua comunidade, mas escreve num alemão deficitário, deslocado da língua maior. Assim, a desterritorialização da língua de Kafka expressa a ruptura do seu compromisso nato com as ide-ologias de uma língua materna, estofo da consciência nacional e conteúdo de uma identidade orgânica que naturalmente represen-ta (SCHOLLHAMMER, 2002, p. 63).

A desterritorialização aqui ativa esse completo impasse que faz da literatura de Kafka “algo de impossível: impossibilidade de não escrever,

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impossibilidade de escrever em alemão, impossibilidade de escrever de outro modo” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 35). Assim compreender essa primeira característica da literatura menor, esse “alto coeficiente de desterritorialização” é perceber que a língua, a linguagem e seus usos produzem um modo específico de estar no mundo, um modo de expe-rimentar as linhas de fuga desta desterritorialização, para reterritoria-lizar novamente. Se “(…) cada um dos dois termos se reterritorializa sobre o outro”, desdobrando a reflexão de Deleuze e Guattari no primeiro teorema, dois possíveis termos em Kafka poderiam ser: língua-pátria, como percebemos em Schollhammer. Esses dois podem se abrir para todo um sistema de “reterritorializações horizontais e complementares” entre língua e pátria ampliando sensivelmente os modos de abordagem graças as reterritorializações ocorridas. Tudo em movimento.

Retomando as reflexões de Deleuze e Guattari em torno da literatura menor, a segunda característica apontada pelos autores é “que nelas tudo é político” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 36). Para os autores “o que nas grandes literaturas permanece oculto e obtuso, na literatura menor torna--se operação em plena luz, mostrando o que pode ser dito e o que não pode” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 37). Todo um entrelaçamento entre individual e coletivo se constrói nesse momento ativando as ques-tões políticas da literatura menor. Trata-se, como afirmam os autores ao comentarem a obra de Kafka, de um programa político “que faz com que cada caso individual seja imediatamente ligado à política” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 37).

A terceira característica desdobra-se da segunda, trata-se do agen-ciamento coletivo de enunciação e nos mostra que “tudo toma um valor coletivo (...) o que o escritor sozinho diz já constitui uma ação comum, e o que ele diz ou faz é necessariamente político, mesmo que os outros não estejam de acordo.” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 39). Para os autores “menor não qualifica mais certas literaturas, mas as condições revolucio-nárias de toda literatura no seio daquela que se chama grande (ou estabe-lecida)”. O conceito de agenciamento desenvolvido por Deleuze e Guattari aponta para uma certa junção entre um conjunto de relações materiais e um regime de signos. O agenciamento, pode assim ser compreendido, pela expressão (agenciamento coletivo de enunciação) e pelo conteúdo (agenciamento maquínico). Podemos citar como exemplos de agencia-

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mentos coletivos de enunciação, entre outros, os agenciamentos midiá-ticos, familiar, judicial e escolar.

3. Resistência

O aspecto imediatamente político da literatura menor não tem nada a ver com seu conteúdo ideológico, mas com sua performan-ce enquanto uma multiplicidade de atos de fala que forma uma máquina expressiva (SCHOLLHAMMER, 2001, p. 64).

A máquina expressiva que se constitui em “mal-entendidos” passa distante dos processos de elaboração formal estritamente ligada a tradição da arte, excessivamente centrada na autoria, por isso fechados em si. Essas obras parecem precisar do Outro e de seu desejo para se construírem. Trata-se de uma língua incompleta, menor, deslocada do domínio prin-cipal da arte, porque precisa intensamente do envolvimento do Outro e de seus processos de subjetivação para ativar seus sentidos e deslocamentos. Existe um enorme coeficiente de desterritorialização nesses processos de formalização das obras, que deslocam para o Outro um importante atributo na própria existência da obra, como por exemplo em “Primeiro amor”, que descrevemos anteriormente. A obra parece existir para criar um processo de desterritorialização entre o real vivido e o fabulado, ampliando sensivelmente o território da arte que, de forma sutil, tangencia a própria vida, criando uma desterritorialização da arte e de sua linguagem para as tramas subjetivas de nossa existência.

Não há explicitamente, numa primeira visada, nas obras de Rivane, um traço político ou engajado especialmente se confrontamos com os atuais rótulos de “arte política” que animam os circuitos das grandes exposições. O que percebemos em suas obras é muito mais “políticas de subjetivação” (ROLNIK, 2008, p.29) ou mesmo uma resistência que ao desterritorializar as obras, aproxima-se de nossas inquietações diante da vida. Não há traço espetacular nas obras e tampouco nos materiais usados. Tudo oscila entre uma intrigante simplicidade e a força ativada quando experimentamos as obras, que se desdobram em nossos processos de subjetivação e podem nos aproximar ou nos reenviar, de forma intensa, para a vida cotidiana, mas transformados. Ao contrário de nos ligarmos nas sensações mercantis

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padronizadas e controladas que os “mundos-imagens” nos oferecem, nos retiramos para a vida cotidiana, e em tom mais baixo, vemos que ali, distante das epifanias espetaculares e programadas, ativamos experiências estéticas transformadoras que pelas sua características individuais nos encaminham para o coletivo. As políticas de subjetivação, como afirma Suely Rolnik, “mudam com as transformações históricas, pois cada regime depende de uma forma específica de subjetividade para sua viabilização no cotidiano de todos e de cada um” (ROLNIK, 2008, p.29), reforçando assim, como Deleuze e Guattari na abordagem de Kafka, a passagem do individual ao coletivo, como traço eminentemente político.

Em “Primeiro amor”, “Colheita” ou “Esculturas involuntárias (atos de fala)”, obras de Rivane Neuenschwander que abordamos anteriormente, a passagem do individual ao coletivo e o manejo dos agenciamentos cole-tivos de enunciação é bastante nítido. Todos nós nos lembramos, mesmo que vagamente, do primeiro amor, mas ao confrontar o agenciamento judicial do policial, especialista em retratos falados que dá forma aos vestígios de nossa memória, toda a forma individual abre-se para o cole-tivo. De alguma forma, o mesmo ocorre em “Colheita”. Só conseguiremos perceber a cartografia do Outro que as listas desenham se nos voltarmos para as nossas próprias listas de compras ou para o sentido que uma lista de compras pode ter ao pensarmos sobre as dinâmicas da vida cotidiana. As “Esculturas involuntárias (atos de fala)” também orbitam nesta mesma passagem do individual ao coletivo. Os pequenos volumes de papel, os canudinhos ou tampas de garrafa retorcidos, bem como as dobraduras de papel entre outras peças nos conduzem imediatamente para conversas despretensiosas em bares, encontros com amigos, momentos que todos nós, de alguma forma, já experimentamos, mas sobretudo endereça para o que pode ter sido dito. Mais uma vez o agenciamento coletivo de enun-ciação assume o lugar do sujeito e aponta para o coletivo, para aquilo que somos em conjunto.

Construir a noção de arte menor – desdobrando as reflexões de Deleuze e Guattari em torno das obras de Kafka e da “literatura menor” – talvez seja um empreendimento teórico grande demais para o exíguo espaço deste ensaio, mas trata-se de um gesto de aproximação, ainda tímido que vem se desdobrando. O que nos interessa sobremaneira, antes de qual-quer coisa, é assumir o mesmo gesto de Deleuze e Guattari na abordagem

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de Kafka, escapando dos cânones e dos significantes, para perceber a potência da máquina expressiva e construir um protocolo experimental na abordagem das obras. Aqui nos interessa centralmente esse caminho que nos tira do cubo branco e nos faz, inevitavelmente, ancorar o sentido das obras nas multiplicidades da vida cotidiana. A lista de compras, os pequenos volumes “escultóricos” ou as nebulosas imagens do primeiro amor apontam para uma máquina, articulada o suficiente, para fazer ecoar a voz do Outro. A arte menor, em nossa construção ainda inicial, é essa potência que nos desloca dos cânones da arte para fazer instaurar em nós outras formas mais abertas de se inserir no mundo, como uma espécie de “solidariedade ativa” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 37) que nos permite produzir formas de subjetividade mais libertárias, mais abertas ao Outro.

A proximidade com a vida cotidiana ou mesmo sua inserção em torno das formas de perceber e experimentar as obras nos fazem construir outros universos de referência menos espetacularizados. O traço de uma experi-ência estética que para ser acionada pela arte precisa inevitavelmente de um lastro nas experiências cotidianas e ordinárias. Uma não opera sem a outra, a máquina expressiva típica de algumas obras de Rivane traz esses estilhaços da vida cotidiana e a ela nos conduz novamente. Agora podemos pensar que nossas listas de compra são, na verdade, retratos dos momentos que vivemos e dos encontros que, de alguma forma, dão sentido a nossa existência. Para Martin Seel as experiências estéticas ativadas pela arte e aquelas da vida cotidiana estão intimamente tramadas:

A experiência da arte vive da experiência fora da arte – e, com referência a essa última, vive de experiências estéticas nos espaços da cidade e do campo, estas sendo experiências em que as coorde-nadas do savoir-vivre e confiança no mundo estão embaralhadas. Assim, quando é uma questão do âmbito da experiência estética, do seu alcance, não podemos parar nas artes como se fossem a verdadeira realização da experiência estética. A experiência esté-tica não conhece realização canônica verdadeira. Ela encontra re-alização em sermos atraídos para as possibilidades de percepção e compreensão, dentro e fora da arte, e descobre que estas possi-bilidades não podem ser esgotadas, controladas ou determinadas (SEEL, 2014, p. 36).

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Talvez seja essa a passagem que as obras de Rivane nos mostram: da arte para fora dela e vice-versa. Território da arte, mas repleto de intensas linhas de fuga operando desterritorializações nos modos como perce-bemos a arte e a relacionamos com nosso entorno e nossa vida. Nesse trân-sito entre arte e vida cotidiana, entre os espaços da arte e os da vida ordi-nária, também residem as formas políticas que apontam para processos de resistência aos apelos mercantis do grande circuito midiático. As obras reforçam a singularidade dos processos de subjetivação, apontam, como Kafka, para essa comunidade porvir, essa que parece se colocar, cada vez mais, “em condição de exprimir uma outra comunidade potencial, de forjar os meios de uma outra consciência e de um outra sensibilidade” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 37). Essa outra consciência, certamente, percebe que as experiências estéticas, em seu trânsito entre arte e vida cotidiana, pode assumir contornos mais políticos e tão revolucionários quanto a literatura menor de Kafka, vista por Deleuze e Guattari. A arte menor se coloca como uma noção que nos permite construir abordagens da arte contemporânea, seguindo os caminhos abertos por Deleuze e Guattari, para além de sua língua própria e de seu repertório específico, para construir um protocolo experimental que veja a arte e as experiências estéticas em deslocamento como uma potência da própria vida.

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REFERÊNCIAS:

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014._______________. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2012.DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos Vaga-Lumes. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011.DOSSE, François. Gilles Deleuze e Felix Guattari: biografia cruzada. Porto Alegre: Artmed, 2010.HERKENHOFF, Paulo. “Rivane Neuenschwander: as coisas e as palavras”. In: NEUENSCHWANDER, Rivane. Um Dia como Outro Qualquer. Rio de Janeiro: Cobogó, 2010LAGNADO, Lisette. “A troca e o troco”. In: Revista Tatuí, Recife, 2012.MORICEAU, Jean-Luc e PAES, Isabela. “Performances acadêmicas e experiência estética: um lugar ao sensível na construção de sentido”. IN: PICADO, Benjamim; MENDONÇA; Carlos Magno Camargos e FILHO, Jorge Cardoso (orgs). Experiência Estética e Performance. Salvador: EDUFBA, 2014.NEUENSCHWANDER, Rivane. Um Dia como Outro Qualquer. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2010.PEDROSA, Adriano. Rivane Neuenschwander: mal-entendidos. São Paulo: Museu de arte moderna de São Paulo, 2014.ROLNIK, Suely. “Geopolítica da Cafetinagem”. In: FURTADO, Beatriz e LINS, Daniel (Orgs). Fazendo Rizoma. São Paulo: Hedra, 2008SCHOLLHAMMER, Karl Erik. “As práticas de uma língua menor: reflexões sobre um tema de Deleuze e Guattari”. In: Ipotesi, 5/2: p. 59-70, 2002.SEEL, Martin. “No escopo da experiência estética”. In: PICADO, Benjamim; MENDONÇA; Carlos Magno Camargos e FILHO, Jorge Cardoso (Orgs.). Experiência Estética e Performance. Salvador: EDUFBA, 2014.

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Capítulo 10

Signo, Medialidade e Sobrevivência: do gesto perdido ao gesto prometido1

Ícaro Ferraz Vidal JuniorFernanda Bruno

A pergunta “O que faremos a seguir?” intitula um projeto de 2006 do artista francês Julian Prévieux2 no qual o tema da gestualidade é central. O projeto baseia-se numa série de gestos manuais, patenteados no período de 2006 a 2011, retomando-os em duas obras: uma animação digital e uma coreagrafia. Os gestos representados nas duas obras compõem o crescente repertório de movimentos voltados para a interação com uma série de dispositivos eletrônicos: smartphones, computadores, tablets, consoles de jogo etc. Muitos destes sequer existem no mercado, mas os movimentos que os acionam já constituem um “arquivo dos gestos por vir” (PRÉVIEUX, 2006). Essa estranha forma de arquivo é singularmente

1 Texto originalmente apresentado no Grupo de Trabalho em “Comunicação e Experiência Estética” do XXVI Encontra Nacional da COMPóS, na Faculdade Casper Libero, em São Paulo, 2017.2 Cf. http://www.previeux.net/html/videos/Next.html

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sintomática de nosso tempo. Primeiro, porque aponta para uma inscrição específica da gestualidade no presente e no futuro próximo, onde a relação homem-máquina ganha cada vez mais relevância. À linhagem do gesto mecanizado do trabalho industrial, da gestualidade acentuada na imagem em movimento do cinematógrafo, somam-se os gestos diários que nos conectam às máquinas com as quais cotidianamente escrevemos, comu-nicamos, vemos, nos deslocamos etc. Reconfigura-se aqui não apenas o domínio do gesto, mas também da visão, especialmente da visão maquí-nica3. Um dos campos mais promissores de pesquisa e desenvolvimento da visão computacional e das chamadas câmeras inteligentes4 é o da gestu-alidade. A proliferação de dispositivos que contam com a função gesture recognition atestam a centralidade do gesto na agenda dos desenvolve-dores. Conforme estudo publicado pela agência Juniper (MOAR, 2016), disporemos em 2020 de meio milhão de dispositivos de detecção ou rastreamento de gestos.

Tal cenário mobiliza interrogar o conceito de gesto que estaria na base do desenvolvimento de máquinas e câmeras capazes de reconhecê--los, monitorá-los e arquivá-los. Neste trabalho, propomos uma primeira aproximação dessa interrogação e de suas implicações estético-políticas, em diálogo com três perspectivas em torno da gestualidade: a noção de gesto como signo, forjada a partir do ingresso da gestualidade no escopo de estudos antropológicos e semióticos; o conceito de gesto como media-lidade do humano, tal como formulado por Giorgio Agamben (1996) e a ideia de gesto como sobrevivência e, portanto, montagem temporal anacrônica, proveniente da leitura de Aby Warburg por Georges Didi--Huberman (2002). A esta constelação de ideias, acrescentamos algumas hipóteses derivadas de projetos artísticos de Taryn Simon e de Julian Prévieux, com quem abrimos esse texto.

3 Designamos por visão maquínica uma série de dispositivos com processos automatizados de visão (câmeras ou video inteligentes, visão computacional etc.)4 Câmeras que operam por algoritmos (acoplados por vezes a sensores de movimento e presença) voltados para a detecção automatizada de padrões na imagem.

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1. Gesto e arquivo No ensaio escrito em colaboração com Harun Farocki e intitulado

Towards an Archive for Visual Concepts, o teórico da mídia Wolfgang Ernst apresenta um problema que nos parece intimamente vinculado ao cenário de desenvolvimento tecnológico descrito acima.

A memória cultural de imagens tem tradicionalmente vinculado imagens com textos, títulos e outros índices verbais. Confrontada com a transição de imagens para o armazenamento digital, méto-dos não-verbais de classificação estão gradualmente tornando-se mais importantes. Não é a questão arquivista como tal que faz da memória do vídeo um problema; mas que os métodos de busca usados para encontrar informação pictórica são ainda limitados a modelos desenvolvidos para recuperar textos [...] “Eles não permi-tem consultas baseadas diretamente nas propriedades visuais das imagens, [e eles] são dependentes do vocabulário particular utili-zado5 (ERNST; FAROCKI, 2004, p. 261).

O problema da indexação colocado pelo arquivo de imagens tem uma longa história. Tom Gunning (1995), em seu famoso texto sobre os usos policiais da fotografia, diagnostica que a conversão da imagem fotográfica, notadamente das fotografias de criminosos, em informação útil esteve estreitamente vinculada à aceleração dos fluxos de circulação. Tais fluxos podem ser compreendidos em dois níveis: de um lado, os fluxos de circu-lação de pessoas e mercadorias, que definem a vida urbana moderna. Mas devemos pensá-lo, ainda, como fluxo de imagens que, com o advento das tecnologias de produção e impressão fotográfica, ganham enorme alcance e autonomia. No quadro da pesquisa de Gunning deparamo-nos com um exemplo que vem corroborar a dificuldade diagnosticada por Ernst: o conhecido método proposto por Bertillon, que consistia na produção de quadros com fotografias de diferentes partes do corpo que estavam orga-nizadas para “observação, comparação, correspondência e identificação final” (GUNNING, 1995, p. 33).

No referido artigo de Gunning, o método de Bertillon desempenha um papel emblemático do estatuto do corpo na modernidade, um corpo

5 Flickner et al., ‘Query by Image and Video Content’, in: Maybury (ed.), Intelligent Multimedia Information Retrieval, Cambridge, Mass. / London (MIT), p. 7.

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211SIGNO, MEDIALIDADE E SOBREVIVÊNCIA

traduzível em uma série de elementos paradigmáticos sistematizados em um quadro de referências que não corresponde a nenhum indivíduo parti-cular. Temos, talvez pela primeira vez, uma espécie de alfabeto do corpo que funcionará como o lastro textual que responde à problemática não apenas da produção e do armazenamento de imagens de criminosos, mas a sua circulação (como transmitir uma imagem por telégrafo?).

O corpo individual agora aparece simplesmente como a realização de um número limitado de tipos mensuráveis. Esta sistematização traz ordem e controle ao caos dos corpos circulantes, domesticados pela circulação de informação (GUNNING, 1995, p. 33-34).

Notamos como a problemática apresentada por Ernst e Farocki remete--nos ao contexto, de pelo menos um século anterior, descrito por Gunning. Afinal, uma das consequências da proliferação de imagens relacionada ao advento da fotografia é o ingresso de tais imagens nos arquivos, o que impõe efetivamente uma questão arquivística e informacional nova. As respostas a tal questão – como indexar imagens? – continuam profunda-mente dependentes de uma codificação textual, como já indicamos. Além de Farocki, outros artistas contemporâneos desenvolvem projetos que desdobram plasticamente esta questão, testemunhando a permanência desta problemática.

É o caso do projeto The Picture Collection, da artista americana Taryn Simon (2013) 6, que aborda a coleção homônima abrigada no terceiro andar da Biblioteca Pública de Nova Iorque. A coleção conta com mais de 1 milhão e 290 mil impressos, cartões postais, pôsteres e imagens cuida-dosamente recortadas de revistas e livros. Esta avalanche de imagens está catalogada segundo um sistema complexo com mais de 12 mil entradas. De acordo com o texto que acompanhou a exposição, em 2013, na galeria Almine Rech, em Paris, trata-se da maior biblioteca de imagens em circu-lação do mundo. A história da biblioteca mereceria um estudo à parte. Fundada em 1915, ela tem sido utilizada por um vasto e heterogêneo público, que conta com escritores, artistas, designers etc. Diego Rivera e Andy Warhol, que nunca devolveu algumas das imagens emprestadas, estão entre seus históricos frequentadores.

6 Cf. http://tarynsimon.com/works/picture_collection/#1

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Um dos efeitos deste sistema de categorização das imagens sublinhado pela artista é que ele torna visível uma série de coincidências. Na medida em que os assuntos que servem como entradas do catálogo foram sendo propostos ao longo destes mais de 100 anos de história por seus biblio-tecários e a partir de demandas específicas do público, as imagens são acessadas em um regime não-hierarquizado, no qual imagens históricas e obras de arte vêm à superfície visível do arquivo ao lado de imagens triviais, que povoam o cotidiano de nossa cultura ocularcêntrica. O gesto de Simon consiste em apresentar as imagens que compõem algumas destas entradas, tais como: becos, neve-avalanches, barbas e bigodes, feridos etc. A maneira como a artista espacializa o arquivo na galeria é fundamental para comunicar sua hipótese de que a referida coleção antecipa analogi-camente os sistemas de busca de imagens com os quais contamos hoje na internet. Simon distribui as imagens horizontalmente e em sobreposição parcial, sendo apenas algumas de cada composição integralmente visí-veis. Fotografadas por Simon, estas composições parecem sinalizar uma impossibilidade crônica de vermos a totalidade do arquivo.

A questão que interessa à Simon também nos interessa, embora tangen-cialmente: a permanência, também encontrada em Farocki, da problemá-tica do (des)arquivamento das imagens. Embora este texto se dedique ao investimento das máquinas de visão sobre o gesto e não propriamente aos arquivos de imagens em geral, observamos que é praticamente impossível compreender os regimes de visibilidade automatizados e “inteligentes” sem passarmos por esta breve discussão sobre os arquivos, pois um dos ganhos que tais câmeras supostamente aportariam é o de uma filtragem das imagens do mundo. Tal feito promete desonerar os arquivos que, em uma era na qual a produção de imagens alcançou níveis quantitativos inadministráveis, tornaram-se uma inalcançável utopia.

Está claro que The Picture Collection, assim como o método de Bertillon, possuem peculiaridades que não são diretamente transponíveis para o caso das câmeras inteligentes. A principal delas tem a ver com a natureza estática – gráfica ou fotográfica – do material que compõe estes dois conjuntos de imagens. Ainda assim, merecem destaque algumas considerações gerais vinculadas ao campo do arquivamento, nisto que elas sinalizam a respeito de nosso engajamento cognitivo com as imagens (e com o mundo). Por mais que as imagens gráficas e fotográficas possam

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ser pensadas de uma maneira extremamente complexa do ponto de vista hermenêutico, e que a vinculação de palavras a signos visuais jamais esgote uma imagem, devemos reconhecer que as imagens em movimento tenderão a tornar ainda mais difícil qualquer processo de categorização. No já referido ensaio de Ernst e Farocki os arquivos de imagens em movi-mento são pensados nos termos de uma arqueologia da mídia, que dife-riria de uma hermenêutica tradicional no sentido de que as relações com tais imagens prescindiriam da visão humana como parâmetro organi-zador, “uma vez que o processamento de imagens por computador não pode mais ser reeditado com a semântica antropológica do olho humano” (ERNST; FAROCKI, 2004, p. 262).

Nesta genealogia do arquivo, o elemento mais importante do trabalho de Simon opera segundo uma ideia que encontramos bem formulada no clássico A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. No conhe-cido ensaio, Benjamin (1987) fala em uma possível antecipação, pela arte, com os meios técnicos disponíveis em um dado momento histórico, de mudanças em regimes perceptivos que só viriam a se consolidar e difundir socialmente em um tempo ainda por vir. Simon parece reconhecer esta lógica artística na Picture Collection na medida em que efetivamente a disposição das imagens analógicas agrupadas sob certas categorias na coleção remetem imediatamente aos sistemas de busca de imagens on-line.

Embora a problemática propriamente gestual da qual nos ocuparemos nas linhas que seguem não tenha sido objeto específico da reflexão de Simon, The Picture Collection fornece um excelente contraponto às exigên-cias arqueológicas que orientam o campo de pesquisa no reconhecimento e arquivamento seletivo de gestos por câmeras inteligentes. Na referida biblioteca, a despeito da monumentalidade da coleção, ainda é o olhar humano, a partir de um contato com cada imagem, que serve de parâmetro à organização do acervo. Esta particularidade da enorme massa de dados visuais vincula-se à condição analógica do arquivo pois, como vimos em Ernst e Farocki, o processamento computacional das imagens irá requerer uma ultrapassagem da “semântica antropológica do olho humano”.

A partir daqui, buscaremos tensionar alguns exemplos de visão e captura automatizada de gestos com o mencionado repertório conceitual que prevê para o gesto os estatutos de signo, medialidade e sobrevivência.

Procuraremos, nas páginas que seguem, traçar alguns trilhas que nos

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auxiliem na compreensão do que está em jogo nessa insistência contem-porânea, algoritmicamente mediada, sobre os gestos.

2. Gesto como signoA abordagem do gesto como signo integra o que se designa ampla-

mente como os estudos modernos sobre o gesto. Segundo Kendon (2007), ainda que o interesse pelo gesto já esteja presente desde os estudos sobre retórica na antiguidade (sendo Quintiliano uma referência central neste contexto), o gesto só se torna objeto de uma sistematização erudita a partir do século XVI. No século XVIII, o interesse pelas origens naturais da linguagem humana fortalece as investigações sobre o gesto, as quais se ampliam no século XIX sobretudo no âmbito da antropologia e da psico-logia nascentes. Neste âmbito, prevalece o interesse pelo papel do gesto na origem dos processos simbólicos e da linguagem em geral. Mais tarde, no século XX especialmente, a relação entre gesto e discurso, entre gesto e comunicação se tornam centrais, abrindo todo um campo de estudos sobre comunicação não verbal, sobre o papel do gesto na interação social etc. (BATESON, 2008, 1942). Uma vez que o gesto nasce antes da palavra, mobilizando a ação e o corpo na relação com o mundo e com o outro, ele “faz signo” (CASSIRER, 2001) e participa, assim, da gênese dos modos como nós e nossas culturas produzem e significam nossos mundos. Além disso, o gesto está também atrelado tanto às formas como transformamos o mundo (LEROI-GOURHAN, 1985), quanto aos modos como estabili-zamos e transmitimos tradições culturais.

Dentre as muitas perspectivas em torno do gesto na Antropologia, uma das questões nesse campo concerne à polissemia do gesto em contextos cultural ou socialmente distintos. É essa questão que ressurge numa passagem de A interpretação das Culturas, de C. Geertz (2008), onde o antropólogo postula a necessidade de se interpretar o domínio da gestu-alidade em meio ao contexto cultural que o abriga. Embora não explicite ou desdobre conceitualmente o gesto, podemos observar que, em alguma medida, são seus possíveis significados culturais que interessam a Geertz.

Se a etnografia é uma descrição densa e os etnógrafos são aqueles que fazem descrição, então a questão determinante para qualquer exemplo dado, seja um diário de campo sarcástico ou uma mono-

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grafia alentada, do tipo Malinowski, é se ela separa as piscadelas dos tiques nervosos e as piscadelas verdadeiras das imitadas (GE-ERTZ, 2008, p. 12).

Um gesto simples como uma piscadela pode portar significados diferentes ou (se quisermos nos esquivar de uma lógica interpretativa) produzir efeitos diversos no mundo, em função da cultura na qual ele se desdobra. Ele pode ainda, no interior de uma mesma cultura, ser modu-lado pelo contexto de sua ocorrência ou por inflexões sutis, como no caso de uma imitação ou de uma ironia. O gesto como signo no trabalho de Geertz opera segundo um esquema no qual o significante – um gesto materialmente efetivado por um corpo no tempo – vincula-se a um signi-ficado que deveria ser buscado na cultura que, embora necessite de uma descrição “densa”, parece ainda pairar, rarefeita, como instância expli-cativa e atribuidora de sentido. Vejamos o trecho no qual o exemplo da piscadela, extraído por Geertz de G. Ryle, é introduzido:

Vamos considerar, diz ele [G. Ryle, de quem Geertz empresta a ideia de “descrição densa”], dois garotos piscando rapidamente o olho direito. Num deles, esse é um tique involuntário; no outro, é uma piscadela conspiratória a um amigo. Como movimentos, os dois são idênticos; observando os dois sozinhos, como se fosse uma câmara, numa observação “fenomenalista”, ninguém poderia dizer qual delas seria um tique nervoso ou, na verdade, se ambas eram piscadelas ou tiques nervosos. No entanto, embora não retra-tável, a diferença entre um tique nervoso e uma piscadela é grande, como bem sabe aquele que teve a infelicidade de ver o primeiro tomado pela segunda. O piscador está se comunicando e, de fato, comunicando de uma forma precisa e especial: (1) deliberadamen-te, (2) a alguém em particular, (3) transmitindo uma mensagem particular, (4) de acordo com um código socialmente estabelecido e (5) sem o conhecimento dos demais companheiros. Conforme salienta Ryle, o piscador executou duas ações – contrair a pálpebra e piscar – enquanto o que tem um tique nervoso apenas execu-tou uma – contraiu a pálpebra. Contrair as pálpebras de propósito, quando existe um código público no qual agir assim significa um sinal conspiratório, é piscar. É tudo que há a respeito: uma partí-cula de comportamento, um sinal de cultura e – voilà! – um gesto (GEERTZ, 2008, p. 5).

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Subsumido a um conceito antropológico de cultura, o gesto no trabalho de Geertz confunde-se com ações que seriam orientadas a determinados fins. Ainda com relação à piscadela de Ryle, postulada como gesto ao fim da citação acima e formulada como a deliberada transmissão de uma mensagem particular, ela contrasta com o conceito de gesto que encontra-remos seja em Agamben, seja em Didi-Huberman.

Ao mesmo tempo, é este caráter sígnico do gesto, cuja conceituação é amplamente tributária do desenvolvimento de pesquisas antropológicas desde o século XIX, que reverbera e parece, em certa medida, fundamentar a produção textual dos desenvolvedores de câmeras inteligentes. Uma tese apresentada em 2009 na Universidade de Nice Sophia Antipolis traz um generoso panorama, com pontos cruciais para a compreensão do desen-volvimento de dispositivos de reconhecimento de gestos humanos, de um ponto de vista técnico. Seu autor, M. Kaâniche, reconhece a necessidade de que se compreenda, antes de iniciar qualquer investigação no domínio do reconhecimento de gesto, a definição e a natureza do gesto, o que supõe uma reflexão a partir de uma série de questões. “Várias questões emergem quando tentamos definir a palavra “gesto”: Quais são as diferentes catego-rias de gestos? Por que usamos gestos? Que tipos de informação podem ser transmitidas por gestos?” (KAÂNICHE, 2009, p. 11). As questões de Kaâniche não poderiam estar mais distantes do território conceitual pelo qual Agamben e Didi-Huberman transitam. Ao mesmo tempo, tais ques-tões deslocam a ideia de gesto como signo do domínio polissêmico sobre qual a antropologia cultural investiu, inserindo-a em uma economia da informação cuja genealogia remete à cibernética. Mas a despeito do pano de fundo pragmático destas questões, o autor oferece uma definição mais genérica do gesto.

De um modo geral, podemos definir um gesto como um movimen-to do corpo. Um gesto é uma comunicação não-vocal, utilizada no lugar ou em combinação com uma comunicação verbal, orientado a expressar um sentido. Talvez seja articulado com as mãos, braços ou corpo, e também pode ser um movimento da cabeça, rosto e olhos, como piscar, acenar, ou revirar de olhos. Gestos constituem um grande e importante sentido da comunicação humana (KAÂ-NICHE, 2009, p. 11-12).

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Não há nada de errado na definição de gesto que encontramos em Kaâniche. Ela, no entanto, não dá conta de alguns aspectos da gestualidade que acessamos a partir das formulações de Agamben e Didi-Huberman e que excedem a referida expressão de um sentido que, tomando a tese de Kaâniche em sua totalidade, poderia ser descrita nos termos de uma “transmissão de informação”, nos moldes que nos foram legados pela Teoria da Informação. Além disso, as outras perspectivas nos permitem olhar com um repertório ampliado de definições do gesto para a contro-vérsia em torno do fenômeno no qual o próprio Kaâniche desempenha um papel de ator: o incremento de uma capacidade de análise algorít-mica do gesto humano em dispositivos de produção e armazenamento de imagens. Esquivar-nos ao imperativo da funcionalidade técnica, tomando uma distância que nos permita questionar a tecnopolítica na qual o desen-volvimento de tais câmeras se entrelaça é o que as leituras de Agamben e Didi-Huberman nos permitirão.

3. Medialidade Giorgio Agamben abre sua quarta nota sobre o gesto com a mesma

questão que Kaâniche se colocou e que, também nós, precisamos enfrentar. Afinal, “o que é o gesto?”. O filólogo aventura-se em uma formulação que parte da retomada de uma distinção proposta por Varrão em seu De lingua latina. Nesta obra, o escritor romano que produziu entre os séculos II e I a.C. inscreve o gesto no domínio da ação, mas o distingue do agir e do fazer:

Pode-se de fato fazer alguma coisa e não agir, como o poeta que faz um drama, mas não age [agir no sentido de “recitar uma parte”]: ao contrário, o ator age o drama, mas não o faz. Analogamente o drama é feito pelo poeta, mas não é agido; pelo ator é agido, mas não feito. Ao contrário, o imperator [o magistrado investido de po-der supremo], com respeito ao qual se usa a expressão res genere [realizar alguma coisa, no sentido de tomá-la para si e assumir a inteira responsabilidade], nisto nem faz, nem atua, mas gerit, ou seja, suporta [sustinet] (VARRÃO7 apud AGAMBEN, 1996, p. 51).

7 De lingua latina VI VIII 77

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O que caracterizaria o gesto, na leitura que Agamben faz de Varrão, é justamente o fato de que ele não faz nem atua, mas suporta. Segundo o filólogo italiano, nada pode ser mais enganador do que inserir o domínio da gestualidade em uma lógica marcada por meios orientados a certos fins. Este mesmo limite ao pensamento sobre o gesto parece ter sido diagnosticado em uma reflexão análoga na ontologia bergsoniana do movimento consignada em Matéria e Memória (1999). O exemplo deste “engano” apresentado por Agamben, notadamente “a caminhada, como meio de deslocar o corpo do ponto A ao ponto B”, evoca imediatamente o questionamento da confusão entre o movimento de um corpo e a traje-tória percorrida por este corpo no espaço, tal como proposto por Bergson. A imagem fornecida por Agamben para elucidar o domínio da gestuali-dade é a da dança como uma dimensão estética, na qual a finalidade do movimento está em si mesmo.

“Uma finalidade sem meio é tão estranha quanto uma medialidade que só tem sentido em relação a um fim” (idem, p. 51). A ideia um tanto enig-mática do gesto como suporte, presente na citação de Varrão, começa a ser esclarecida neste ponto do ensaio de Agamben. O gesto, na definição deste último, é “a exibição de uma medialidade, o tornar visível um meio enquanto tal” (idem, p. 52). Esta medialidade, no entanto, não é imutável ou imune a toda sorte de investimentos provenientes das mais variadas esferas: política, científica, econômica, cultural etc. Notas sobre gesto fornece alguns indícios interessantes desta historicidade: a publicação, em 1886, por Gilles de la Tourette de Estudos clínicos e fisiológicos sobre a caminhada, a Théorie de la démarche (1833), de Balzac, as experiências de Muybridge e de Marey até chegar às gags do cinema mudo e à porno-grafia. O gesto, enfim, é a manifestação da medialidade do humano.

A distinção que Agamben desdobra a partir de Varrão entre o gesto, o agir e o fazer, nos permite perceber uma limitação de base na antro-pologia interpretativa de Geertz. Tal limitação repousaria sobre o fato de que, ao se propor a fazer uma análise semiótica da cultura, Geertz se torna refém de uma estrutura na qual a cultura funciona como o meio no qual humanos agiriam. O salto quântico da cultura enquanto meio à própria medialidade do agir humano, que não se confunde com seu conteúdo e que se dá a ver através do gesto, não acontece, apesar da rica e coerente discussão apresentada pelo antropólogo em torno do conceito de cultura,

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bem como de sua esquiva à querela entre idealismo e materialismo, que também atravessa o campo da antropologia cultural.

Não pretendemos, contudo, propor uma recusa absoluta à antropo-logia culturalista de Geertz, sobretudo porque ela evoca textualmente a hipotética presença de uma câmera, como pudemos verificar na citação acima, para sublinhar sua debilidade, associada ao fato de esta não ser capaz de diferenciar um gesto significante (a piscadela conspiratória) de uma condição motora (o tique nervoso). Em um primeiro impulso, diante da crítica empreendida por Geertz a uma leitura que se detenha apenas na superfície do mundo social, sem um aprofundamento herme-nêutico, tendemos a endossar a objeção antropológica projetando-a sobre o processo de crescente delegação às câmeras inteligentes da tarefa de monitoramento e controle dos gestos. Tais ações tecnologicamente mediadas são, evidentemente, desprovidas de qualquer compromisso com a “descrição densa” de um determinado grupo cultural. Elas são incapazes, apesar de sua capacidade de operação a partir de uma crescente quan-tidade de parâmetros, de extrair qualquer significado do que vêem. Na linguagem desses dispositivos, os significados atribuídos aos gestos devem ser previamente definidos e devem estar univocamente atrelados a uma finalidade ou a um efeito. Não por acaso, o próprio termo técnico (gesture recognition) sublinha que o registro de “leitura” em jogo é o da recognição e o do reconhecimento, jamais o da interpretação. As implicações estético--políticas da crescente presença de uma tal leitura e um tal controle dos gestos em nossas sociedades ainda estão por ser apreendidas. A exploração iniciada nesse artigo limita-se a indicar, por contraste com algumas refle-xões teóricas e conceituais sobre o gesto, o que vem sendo desconsiderado pelos dispositivos e as redes sociotécnicas que implementam essa nova função maquínica de reconhecer e monitorar gestos. A leitura da gestua-lidade realizada por Didi-Huberman sobre o projeto Atlas Mnemosyne de Aby Warburg adiciona, por contraste, mais uma camada nessa reflexão.

4. Sobrevivência: entre natureza e culturaPor um lado, encontramos na tradição da antropologia culturalista

e interpretativa de Geertz esta recomendação de cautela na “leitura” de um gesto, cujos significados podem variar de cultura a cultura e mesmo

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no interior de uma mesma cultura. Por outro, Agamben alça o gesto a um outro patamar, fazendo-o coincidir com a medialidade mesma do humano. Já a recente visibilidade obtida pelo projeto Atlas mnemosyne, de Aby Warburg, sobretudo a partir dos ensaios de Georges Didi-Huberman, indica e difunde a permanência anacrônica e transcultural de certas formas da gestualidade, chamadas por Warburg de Pathosformel (fórmula do pathos). Sobre o gesto, Didi-Huberman escreve:

como o diz Rilke, o gesto é o que sabe, melhor que tudo, “ressur-gir desde a profundeza dos tempos”. Nós o experimentamos cada vez que reagimos corporalmente a uma situação crucial de desejo ou de susto, de luto ou de desesperança: nestes momentos, nossos gestos têm uma antiguidade que não podemos, nós mesmos, senão ignorar. Aby Warburg não observou outra coisa na história cultural das Pathosformeln, próximo nisto de tudo o que Freud enunciava, na mesma época, sobre a temporalidade paradoxal – repetições, supressões, ações diferidas – do sintoma (DIDI-HUBERMAN, 2005, p. 39).

A centralidade da ideia de Pathosformel na produção de Warburg e, consequentemente seu lugar privilegiado na análise de Didi-Huberman desdobra a “questão antropológica do gesto” sobre um plano novo, afir-mando uma “montagem temporal” inerente a tudo o que se passa no corpo. Um dos aspectos centrais do gesto em Warburg é seu caráter anacrônico. Através de seu Atlas Mnemosyne, ele visualiza a recorrência de certos gestos em imagens provenientes de diferentes períodos da história e de diferentes culturas. A presença de uma semelhança gestual nestas imagens está na origem da pesquisa de Warburg sobre as “fórmulas primitivas do pathos”, uma pesquisa que consiste em “buscar compre-ender o que o primitivo quer dizer na atualidade mesma de sua expressão motora” (DIDI-HUBERMAN, 2002, p. 224). Esta relação entre uma força de ordem primitiva e uma forma atual encontra suas raízes na reativação warburguiana de uma relação não-opositiva entre natureza e cultura.

Mas a questão antropológica também se colocou a Warburg nos termos de um primitivismo natural: a dor trágica de Laocoonte, é que ela não manifesta – sublimando-a, como dizia, como Freud, o historiador das Pathosformeln – uma relação ainda mais primor-

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dial? Esta relação, infra-simbólica e infra-narrativa, não seria a do corpo humano ao sofrimento psíquico e à violência da luta animal? Vê-se bem que a proximidade do humano e do animal constitui um motivo essencial do Laocoonte, mas também do ritual indíge-na estudado por Warburg: nos dois casos, o homem confronta-se ao animal como ao perigo mortal por excelência (DIDI-HUBER-MAN, 2002, p. 225).

Em L’image survivante, Didi-Huberman apresenta uma arguta leitura da relação de Warburg com o livro de Darwin, A expressão das emoções no homem e nos animais. Ponto de partida fundamental para esta discussão é a já mencionada ideia de que “tudo o que se passa nos corpos – atuais ou figurados – depende de uma certa montagem do tempo” (DIDI--HUBERMAN, 2002, p. 224). A montagem anacrônica do Atlas Mnemosyne não teria outro propósito se não o de dar acesso ao conhecimento das rela-ções entre o atual e o primitivo. A estátua do Laocoonte e a fotografia de um índio hopi que traz uma serpente entre seus dentes protagonizam os comentários introdutórios à relação entre Warburg e Darwin. A questão do gesto propriamente dito é colocada nos seguintes termos:

Poder-se-ia dizer que a questão antropológica do gesto, introduzida por Warburg no domínio das imagens, situa-se entre dois extre-mos cuja noção de Pathosformel tenta, justamente, compreender a articulação: de um lado, uma atenção à animalidade do corpo em movimento e, do outro, uma atenção a sua “alma”, ou, pelo menos, a seu caráter psíquico e simbólico. Por um lado, encontramo-nos confrontados à não-história, à pulsão, à ausência do arbitrário pró-pria às coisas “naturais”; por outro, nós nos encontramos no nível da história, com os símbolos e o arbitrário que supõe toda coisa “cultural” (DIDI-HUBERMAN, 2002, p. 231).

Algumas passagens da história deste contato de Warburg com o livro de Darwin merecem ser retomadas pois esclarecem a noção de Pathos-formel e, consequentemente, adensam nosso conceito de gesto. Segundo Didi-Huberman (2002, p. 232-233), vários comentadores de Warburg reconheceram a repercussão do pensamento de Darwin na teoria das Pathosformeln. Entretanto, frequentemente tal reconhecimento consistiu em atribuir ao pensamento de Warburg um caráter “evolucionista” ou

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“positivista”, o que resta insustentável diante da prosa warburguiana, cujo estilo não tem nenhuma pretensão cientificista. As consequências histó-ricas e políticas das apropriações, no século XIX e na primeira metade do século XX, do pensamento de Darwin por saberes obcecados com uma categorização e hierarquização exaustiva de certos traços fisionômicos foram imensas e têm no eugênico nacional socialismo alemão sua forma mais emblemática.

Diferentemente destes movimentos, o que Warburg fez, ao deparar-se com o livro de Darwin durante sua viagem de investigação a Florença, foi observar, em relação às imagens da Renascença que o intrigavam, que elas atestariam antes uma regressão do que propriamente uma “seleção natural” ou “progresso” dos gestos. O livro de Darwin, como oportuna-mente assinala Didi-Huberman, não aporta a Warburg nenhuma imagem semelhante àquelas do Laocoonte ou do Hopi com a serpente entre os dentes, de fato “não há neste livro senão desfiles animais, gatos eriçados, sorrisos estudados em um macaco Cynopithecus niger, ou ainda terrores experimentais produzidos sobre um velho de ‘caráter inofensivo’ e ‘inteli-gência limitada’” (DIDI-HUBERMAN, 2002, p. 231-232).

É a formulação do gesto como articulado em torno de um regime temporal complexo, acessado através do livro de Darwin, que confere à perspectiva de Warburg sua originalidade e potência. O Laocoonte, assim como o ritual da serpente do Novo México não serão lidos por Warburg a partir de uma ideia sublime de harmonia ou de uma noção totalizante de cultura. A ideia de sobrevivência em Warburg emerge do cruzamento de uma concepção da natureza como capaz de engendrar formas irredu-tíveis à cultura que, no entanto, reaparecem nela. A relevância para nós desta formulação em torno do gesto está no fato de que ele intervém em nossa genealogia dos investimentos maquínicos sobre o gesto, inserindo um elemento novo e difícil de se negligenciar quando pensamos o corpo: o natural.

Um texto de divulgação sobre tecnologias de reconhecimento de gestos publicado pela Texas Instruments, empresa baseada nos Estados Unidos, leva o curioso título “Reconhecimento de gesto: possibilitando interações naturais com eletrônicos”. O artigo, assinado por funcionários da própria empresa, apresenta um panorama dos dispositivos disponíveis e das limi-tações ainda existentes a um reconhecimento eficaz dos gestos. A prin-

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cipal ênfase do artigo é na difusão de três tipos de sensores em 3D que permitiram uma grande sofisticação no reconhecimento maquínico dos gestos, mas o que salta aos nossos olhos é a insistência na ideia de que aparelhos com reconhecimento automatizado de gestos propiciariam uma interação mais natural:

TI [Texas Instruments] continua a inovar para encarar os desafios do mercado, conduzindo a uma adoção ainda maior de aplicativos 3D e de gestos para além do mercado de eletrônicos de consumo. Quando se trata de aplicativos que fazem as interações entre huma-nos e seus dispositivos mais interativas e naturais, o céu é o limite (KO; AGARWAL, 2012, p. 12).

Esta ênfase em uma interação natural, apesar de sua evidente incon-sistência conceitual – talvez fruto do caráter publicitário do texto, cuja roupagem acadêmica não deixa de ser curiosa – é extremamente interes-sante por supor o domínio da gestualidade como vinculado, em alguma medida, ao domínio da natureza. Por oposição a uma interação através de interfaces como teclados, painéis de controle, joysticks etc., a interação através de reconhecimento gestual parece ser concebida - ao menos é assim que ela é vendida - como uma interação “não mediada” ou “bem menos mediada”, de onde talvez venha a ideia de que ela seja “natural”. A isto soma-se o fato de que – como todos que experimentamos em algum momento de nossas vidas aparelhos ou mesmo instalações interativas nas quais opera um sensor de reconhecimento de gesto sabemos – o gesto reconhecível por câmeras inteligentes precisa, muito frequentemente, ser aprendido.

Se em Warburg a leitura de Darwin restitui ao gesto uma força disrup-tiva primal vinculada a uma dimensão irredutivelmente natural do humano que se vincula a uma dimensão simbólica, mas não é por ela subsumida, que ideia de natureza subjaz à promoção de uma “interação natural” com os dispositivos eletrônicos? Será que uma televisão que liga e desliga em função de sensores de reconhecimento gestual, desligaria no caso de um bocejo – gesto natural e involuntário que indica um estado de sonolência? Ou será que, a fim de preservar a soberania do espectador, que tem sono mas não quer perder o final do filme, o gesto programado para ativar o desligamento do televisor consistirá em um arbitrário movi-

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mento dos braços, que deverá ser aprendido pelo telespectador? Ora, se a interação gestual com o dispositivo é arbitrária, precisa ser

aprendida e voluntariamente executada, a almejada “interação natural” é seguramente uma falácia. De fato, ela parece consistir em um engodo que vela um projeto histórico de inscrição das lógicas de funcionamento de gadgets na carne e, consequentemente, um processo de purificação dos gestos. Esse processo de depuração maquínica do gesto parece reposicionar a tensão entre natureza e cultura condensada nas Pathosformeln warbur-guiana. Algumas questões restarão a ser respondidas: o que perdemos com a supressão desta distância entre nossos corpos e os controles remotos? Até quando poderemos pensar o domínio da gestualidade como expressão da medialidade do humano, como formulou Agamben, uma vez que os gestos já não parecem exprimir senão a medialidade deste híbrido humano--maquínico? Se este processo de ajuste gestual ao ritmo das máquinas não é novo8, ele parece generalizar-se neste começo de século. Por quê?

5. Do gesto perdido ao gesto prometidoAbordar os investimentos das câmeras inteligentes sobre o terreno da

gestualidade requer indicar algumas consequências (técnicas, estéticas, políticas) do sentido que se acopla ao conceito de gesto quando de seu ingresso no campo da tecnociência. Uma das questões, retomando as notas sobre o gesto propostas por Agamben, é se efetivamente estamos diante de um projeto de desenvolvimento de visão computacional cujos algoritmos tenham por principal objetivo identificar e monitorar o gesto e não simplesmente a atuação ou o fazer. Já apontamos que de modo geral não há, nos textos técnicos de seus desenvolvedores, uma problematização conceitual e tampouco uma definição precisa do que se entende por gesto. Tal noção é inclusive utilizada muitas vezes sem prévia definição e, em certos casos, indistintamente em relação a outras palavras (movimento, por exemplo).

Encontramos elementos interessantes para essas questões ao cote-jarmos, por exemplo, as experiências fotográficas de Muybridge e de Marey, fundamentais para o conhecimento do gesto humano pela ciência

8 Emblemático deste processo é o famoso filme de Charles Chaplin, Tempos Modernos (1936).

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moderna, e o recente desenvolvimento de câmeras inteligentes com reco-nhecimento de gestos, atentando para o que elas poderiam estar nos indi-cando a respeito de nossa própria formação histórica. Há, tanto no projeto de Muybridge quanto no de Marey, e especialmente neste último, a aposta numa objetividade maquínica particular. Segundo Daston e Galison (2010), essa aposta marca uma definição moral de objetividade, distinta daquela que vigorava até então, e vigente a partir do século XIX. Trata--se de uma objetividade que se define por subtração e/ou neutralização da subjetividade, sobretudo no campo da representação científica, e que está intimamente atrelada à produção mecânica da imagem (não apenas a fotografia). Vejamos o que diz Marey sobre a ciência “sem palavras” que poderia se expressar pela fotografia ou pelo método gráfico, por meio dos quais a imagem poderia falar a linguagem dos próprios fenômenos.

Não há dúvidas de que a expressão gráfica irá logo substituir todas as outras quer tenhamos à mão um movimento ou uma mudança de estado – numa palavra, qualquer fenômeno. Nascida antes da ciência, a linguagem é frequentemente inapropriada para expressar medidas exatas ou relações definidas. (MAREY, 1978 apud DASTON; GALI-SON 2010)

A aposta numa objetividade maquínica persiste nos sistemas de detecção automatizada do gesto ou nas câmeras inteligentes em geral, mas não mais pelo ideal de uma natureza falando diretamente à máquina. Passamos, talvez, de um ideal de conhecimento da natureza através da visão maquínica para um ideal de performatividade natural na interação gesto-máquina. São recorrentes nas pesquisas sobre sistemas de reco-nhecimento automatizado do gesto dados que atestam a sua precisão ou objetividade, comumente aliada a duas características. A primeira é a já mencionada “naturalidade” na interação – a precisão no reconhecimento do gesto garantiria uma comunicação mais natural e sem esforços com os dispositivos. A segunda é a possibilidade de reconhecimento do gesto desvinculado de qualquer conhecimento sobre a pessoa que o executa. Isso livraria as máquinas, segundo seus promotores, de invadirem a privacidade de seus usuários, bem como de atitudes discriminatórias ou enviesadas. A objetividade no reconhecimento automatizado dos gestos garantiria, em sua versão contemporânea, uma alta performatividade,

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seja pela eficácia e pela suposta facilitação da interação homem-máquina, traduzida na retórica da interface “natural”, seja pela ênfase nos efeitos dos gestos e movimentos. Esses importam não pelo que a eles subjaz ou pelo que neles sobrevive, mas sim pelo que eles acionam nos seus ambientes sociotécnicos.

Alguns textos de divulgação destas tecnologias parecem sinalizar que já não se trata simplesmente de uma programação algorítmica compro-metida com o reconhecimento de um movimento enquanto simples deslocamento de um ponto A até um ponto B. Vejamos um excerto de depoimento do pesquisador Raychowdhury, citado em uma notícia que divulga uma nova câmera inteligente, em desenvolvimento no Instituto de Tecnologia da Geórgia:

“Simples detecção de movimento é uma área de pesquisa muito estudada, e há produtos no mercado que contam com detecção de movimento”, ele [Raychowdhury] disse. “Mas o problema é que uma câmera que pode apenas detectar movimento – e não padrões específicos de movimento ou gestos – vai despertar mais frequen-temente, mesmo quando ela não necessita funcionar” (RESEAR-CHERS DEVELOP…, 2016).

A câmera em questão foi concebida originalmente para funcionar acoplada a outros dispositivos, operando a ativação deles em função de determinados gestos. Por exemplo, uma televisão que liga quando alguém balança a cabeça ou um braço diante dela. Um problema técnico colocado por este tipo de sensor baseado em imagem é que eles frequentemente consomem muita energia. A detecção dos gestos, neste caso, comparece como alternativa ao dispêndio energético. Este projeto de câmera inteligente baseia-se na combinação de um hardware de baixo consumo de energia e de um software de processamento de imagens também eficiente em termos energéticos. Deste modo, obtém-se o que os especialistas chamam de uma always-on câmera, uma câmera que nunca desliga. A estratégia dos desen-volvedores para responderem ao problema do grande consumo energético de processadores de imagem foi “programar a câmera para rastrear movi-mentos de um modo mais generalizado, que ainda preserve detalhes cruciais sobre o que está sendo rastreado. Isto requer muito menos energia para o processamento do que rastrear pixels individualmente através de todo o

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campo de visão” (RESEARCHERS DEVELOP…, 2016).O gesto que se pretende rastrear encontra sua melhor definição técnica

na fala de Romberg, professor na Escola de Engenharia Elétrica e da Computação Georgia Tech, envolvido na pesquisa:

O que esta câmera está vendo não são valores de pixels, mas pixels adicionados juntos em várias diferentes maneiras e um número dramaticamente menor de medidas do que se você tivesse isso de maneira padrão (RESEARCHERS DEVELOP…, 2016).

Tal câmera e sua lógica de funcionamento parecem dar uma volta no parafuso do estatuto das imagens digitais. Se a imagem digital foi frequen-temente pensada como parte de um projeto utópico de conversão e captura total do mundo em pixels, a referida notícia parece sintomática de uma crescente consciência do digital enquanto meio e, portanto, dotado de certa opacidade e limites. Neste sentido, a economia de um processa-mento focado em determinados padrões que vem substituir, em nome de uma eficácia energética, o projeto de um registro total parece sinalizar uma mudança importante. Curiosamente, esta reformulação do princípio da ubiquidade adquire a forma do always-on. Sempre ligada, a câmera só desencadeia a atividade do dispositivo diante de um número pré-estabele-cido algoritmicamente de inputs que, neste caso, são determinados gestos.

Embora as imagens da referida câmera não sejam produzidas para serem vistas, mas para colocarem certos dispositivos em atividade, as apli-cações de tal sistema, segundo seus próprios desenvolvedores, poderiam expandir-se, sobretudo para sistemas de câmeras em locais remotos, onde a troca de bateria ou o fornecimento de energia elétrica seriam problemá-ticos. Possíveis utilizações em circuitos de vídeo-vigilância especializada, na robótica e em dispositivos eletrônicos com a funcionalidade hand-free são mencionados pelos pesquisadores, que também anunciam avanços na direção da transmissão de dados e imagens produzidos por estas câmeras através de antenas, preservando, portanto, o princípio do baixo dispêndio de energia.

Ao olharmos apressadamente para a lógica operacional desta nova câmera, podemos, ao nos determos exclusivamente em suas operações técnicas, acreditar que estamos diante de um declínio do princípio da ubiquidade que tem orientado uma grande quantidade de pesquisas no

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domínio dos dispositivos de produção e armazenamento de imagens. Mas de fato, a eficiência energética desta nova geração de câmeras é um impor-tante catalisador para a expansão, já em curso, do número de dispositivos eletrônicos de uso cotidiano nos quais há a presença de uma câmera produ-zindo imagens operativas, que não são vistas (por quem? até quando?) mas que interferem no funcionamento do dispositivo. Os próximos passos na pesquisa deste grupo de Geórgia, Estados Unidos, são dedicados à trans-missão destes dados e imagens a um custo energético igualmente baixo. Será que teremos que suavizar nossos gestos se quisermos passar desper-cebidos diante das máquinas que nos circundam (e já não estamos falando apenas nas câmeras de vigilância, mas de televisores, ares-condicionados etc.)? Elas hibernam, mas não dormem de fato e, se tudo correr bem no Instituto de Tecnologia da Geórgia, em breve estarão conectadas em rede.

Voltemos à primeira nota sobre o gesto de Agamben: “No final do século XIX a burguesia ocidental já tinha definitivamente perdido seus gestos” (AGAMBEN, 1996, p. 45). Para o autor, é a obra de Gilles de la Tourette, Estudos clínicos e fisiológicos sobre a caminhada, de 1886, que testemunha esta perda e viabiliza esta datação. O filólogo italiano sublinha o abismo entre o olhar de la Tourette sobre o caminhar e aquele de Balzac, consig-nado em sua Théorie de la démarche, de 1833, destacando que a descrição de la Tourette de uma caminhada seria, ainda, uma profecia da chegada do cinematógrafo dali a dez anos. O gesto na obra de Balzac funciona como a expressão de um caráter moral. La Tourette, diferentemente, lança um olhar inédito, estritamente científico sobre o andar humano:

Enquanto a perna esquerda atua como ponto de apoio, o pé direito se levanta da terra passando por um movimento de enrolamento que vai do calcanhar até a extremidade dos dedos, que deixam o solo por último; toda a perna é então trazida à frente e o pé vai to-car a terra com o calcanhar. Neste mesmo instante, o pé esquerdo, que terminou a sua evolução e não se apoia mais que sobre a ponta do pé, se desliga por sua vez do chão; a perna esquerda se conduz à frente, passa ao lado da perna direita da qual tende a avizinhar-se, a supera e o pé esquerdo vai tocar o solo com o calcanhar enquanto o direito termina sua evolução (LA TOURETTE apud AGAMBEN, 1996, p. 45-46).

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Nesta mesma época, lembra Agamben, Muybridge realizava nos Estados Unidos suas séries de fotografias do movimento animal e humano. Estas imagens, amplamente divulgadas já naquela época, foram as precur-soras do uso de dispositivos técnicos de produção de imagens para o esquadrinhamento da gestualidade humana e do movimento animal. Agamben observa ainda que um ano antes da publicação da obra de Gilles de la Tourette sobre a caminhada, era publicado um outro trabalho, inti-tulado Estudo sobre uma afecção nervosa caracterizada pela descoorde-nação motora acompanhada de ecolalia e de coprolalia, que sistematizava o quadro clínico que, posteriormente, ficou conhecido como síndrome de Tourette, caracterizada por uma série de tiques e espasmos, nas pala-vras de Agamben, “uma catástrofe generalizada da esfera da gestualidade” (AGAMBEN, 1996, p. 46-47).

Esta incapacidade de gesticulação foi observada em milhares de pessoas no final do século XIX. Curiosamente, observa Agamben, os casos de síndrome de Tourette desaparecem dos registros médicos no século XX, pelo menos até 1971, quando Oliver Sacks reconhece, em um curto espaço de tempo, algumas pessoas acometidas pelos sintomas previstos pela síndrome caminhando por Nova York. A hipótese aventada por Agamben a partir deste fato, um tanto enigmático, é a de que se parou de registrar os casos da síndrome porque seus sintomas teriam se tornado, na primeira metade do século XX, a regra; e uma gestualidade frenética e entrecortada por tiques e espasmos já não podia ser percebida como caso desviante.

Voltemos ao trabalho de Prévieux e portanto ao início desse texto. Na segunda e terceira séries que compõem a obra What do we shall do next?, o inventário de gestos patenteados é subtraído de sua função utili-tária numa apropriação coreográfica e videográfica. A coreografia do repertório de gestos que executamos em nossa atividades mediadas por dispositivos eletrônicos e digitais é ao mesmo tempo familiar e estranha. Familiar porque já nos reconhecemos nela de algum modo; e estranha porque ainda nos lembramos de quando esses gestos não eram nossos, de quando eles habitavam, quando muito, os futuros imaginados da ficção científica. O estranhamento persiste ao nos darmos conta do quão rápida e distraidamente aprendemos as lições dessa pedagogia sociotécnica dos gestos. “Que gesto significará copiar em vez de mover?”; “Saudamos mais

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frequentemente nossos dispositivos que nossos amigos?”, interroga a voz off na coreografia.

Num documento intitulado “Gestos manuais para significar o que é importante” (PRADA GOMEZ et al, 2013) a Google solicita patentear o gesto de fazer um coração com as mãos, hoje popularizado nas redes sociais de compartilhamento de imagens. A empresa, em 2011, anuncia o uso desse gesto para “curtir” objetos e situações nos contextos de realidade aumentada mediados pelo uso do Google Glass, programando a obso-lescência do clique no botão curtir do Facebook. Esses e muitos outros dispositivos e patentes se somam ao crescente arquivo dos gestos por vir. Se a virada do século XIX para o XX marcaria, como propõe Agamben, uma época que perdeu seus gestos, talvez o século XXI seja uma época que “promete” ou programa seus gestos. O cinema, ainda segundo Agamben, surge como um meio de ao mesmo tempo registrar a perda do gesto e reapropriar-se do que se perdeu. Permanecemos com a questão sobre os processos estéticos e tecnopolíticos que podem desencadear uma reapro-priação dos gestos que nos prometem.

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REFERÊNCIAS:

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Capítulo 11

O Giro Lúdico na Experiência Estética Audiovisual Musical1

Laan Mendes de Barros

1. IntroduçãoEstaríamos vivendo um giro lúdico na produção e percepção dos

audiovisuais contemporâneos? Esta foi a questão central que apresentei ao professor Josep Maria Català Domènech, catedrático da Universidad Autónoma de Barcelona, em colóquio realizado em outubro de 2016, na Faculdade Cásper Líbero (evento que contou com o apoio da Unesp, da FapCom e da Fiam-Faam). Naquela ocasião participei como comentarista da conferência Documentário Expandido: Um mergulho no filme-ensaio, docweb, documentário imersivo e outras modalidades transmídia, proferida pelo visitante catalão2.

1 Artigo originalmente apresentado no Grupo de Trabalho em “Comunicação e Experiência Estética”, no XXVI Encontro Nacional da COMPóS, na Faculdade Casper Libero, em São Paulo, junho de 2017.2 Disponível em vídeo: https://casperlibero.edu.br/graduacao/rtv/noticias-rtv/acompanhe-o-evento-documentario-expandido/

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Aquele meu questionamento é aqui retomado, com um desdobramento ao universo dos audiovisuais musicais presentes na Web, em forma de videoclipes interativos, ou mesmo de álbuns musicais com aplicativos de interação. Em uma analogia aos estudos de Català sobre documentários expandidos, poderíamos falar de videoclipe expandido quando nos refe-rimos a produções que vão além da sobreposição de uma narrativa visual à narrativa musical, originariamente gravada apenas em áudio. Os video-clipes, em geral, trazem uma transposição ou sobreposição de narrativas, que resultam em produtos híbridos, em objetos interdiscursivos, nos quais imagens em sequência são interpostas ao que inicialmente fora proposto em forma musical. Mas quando essas produções extrapolam a proposição de novas narrativas à narrativa já dada e propõem uma experiência de percepção estética interativa e imersiva – como em produções apresen-tadas mais adiante neste texto – poderíamos falar de videoclipe expandido, de audiovisual musical expandido.

Este texto está estruturado em três partes. Num primeiro momento descrevo o diálogo com o professor Català, elenco os giros aos quais ele se refere no processo de expansão estética do filme documentário e fecho com breve discussão sobre a experiência estética no contexto da conver-gência midiática. Em seguida, discorro sobre a dimensão lúdica da criação e percepção estéticas e relembro que esse componente essencial dos fenô-menos artísticos sempre esteve presente na experiência sensível entre seres humanos e objetos estéticos, especialmente no âmbito da arte moderna e contemporânea, mas também nos jogos da literatura e da comunicação midiática. Mais uma vez, fecho o bloco com breve visita ao contexto da sociedade em rede. No terceiro e último segmento do texto desloco a reflexão para o universo dos audiovisuais musicais contemporâneos, dos videoclipes interativos de música pop e das “narrativas transmídia”3 resul-tantes da convergência midiática e da hibridação de diferentes plataformas de mídia. Naquele ponto do texto recorro a exemplos de produções audio-visuais interativas e imersivas, que ilustram bem a ideia de experiência esté-tica expandida e reforçam a perspectiva de que temos vivido, nas últimas décadas, um giro lúdico na experiência estética audiovisual musical.

3 Termo proposto por Henry Jenkins (2009) no livro Cultura da Convergência, presente no desenvolvimento deste artigo.

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2. Os giros de Català e a cultura da convergênciaNa conferência acima citada, o professor Català analisou as transfor-

mações na linguagem, e na própria razão de ser, dos filmes documentários, em um processo de constante transposição de fronteiras, que o leva a falar de “documentários expandidos”. As transições identificadas pelo pensador catalão se desdobram de classificações anteriores, como a de Bill Nichols (2005), que aponta seis subgêneros do gênero documentário: poético, expositivo, participativo, observatório, reflexivo e performático. Recortes estes que já sinalizavam o processo de expansão do documentário.

As transformações mapeadas por Català experimentam momentos de rupturas, de viradas, que ele chama de “giros”. A partir de um confronto com a estrutura tradicional do documentário, pautada na objetividade, no esforço de se afirmar, em oposição à ficção, como narrativa objetiva da realidade, Català identifica cinco giros ocorridos no processo de expansão desse gênero de discurso audiovisual. São eles: giro subjetivo, giro reflexivo, giro emocional, giro imaginário e giro onírico.

Considerando que o documentário se afirmou como gênero cinematográ-fico a partir da ideia de objetividade, como um empreendimento denotativo, o primeiro movimento, o giro subjetivo, representa uma ruptura estrutural e de identidade, pois traz à tona a dimensão conotativa da narrativa. Para Català “o giro subjetivo ao invés de olhar a realidade olha para o sujeito”4. Já o giro reflexivo amplia a dimensão estética e, mesmo, ética da narrativa documental, dando a ela um sentido ensaístico e propositivo, como no caso dos chamados filmes-ensaio. O giro emocional surge como desdobramento do giro subjetivo, e se abre ao universo do drama humano, dos depoimentos emotivos e das próprias emoções do autor documentarista. Estabelece, assim, uma relação emocional com o espectador e aprofunda a dimensão sensível experenciada na percepção estética, plena de estesia. O giro imaginário surge com a adoção de novas formas de documentário, com a inserção de animação e outros elementos de representação criativa da realidade, que são facili-tadas no contexto da sociedade interconectada e da circulação de conteúdos na Web. Esse giro traz várias camadas de narrativa e intertextualidades que possibilitam diferentes dimensões de leitura e níveis de interpretação. Por fim,

4 Afirmação retirada da conferência disponível em https://casperlibero.edu.br/graduacao/rtv/noticias-rtv/acompanhe-o-evento-documentario-expandido/

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o giro onírico remete a narrativa documental a um universo fronteiriço, muito próximo da ficção, e permite uma ruptura temporal e espacial em relação à realidade vivida e se abre à prospecção de futuros sonhados. Trata-se de “construir a realidade como se fosse um sonho”5, sustenta Català.

Com a proliferação de tecnologias digitais de produção, circulação e recepção de produtos audiovisuais, como os dispositivos interativos de navegação, a computação gráfica tridimensional em filmes de animação, a captação de imagens em 360 graus, os aplicativos de geolocalização, a interconexão de computadores e as possibilidades de interação online, as rupturas acima citadas se acentuam e a própria lógica sequencial tradicional da narrativa documental é posta em xeque. A simultaneidade de narrativas com interconexões e possibilidades de intervenção do espectador permitem novas experiências estéticas. Como nos sugere Henry Jenkins, vivemos em um contexto marcado pela “convergência dos meios de comunicação”, pela “cultura participativa” e pela “inteligência coletiva”6 (JENKINS, 2009, p. 29). Para ele a convergência está relacionada “ao fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos mercados midi-áticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comuni-cação” (JENKINS, 2009, p. 29).

Català (2011, p. 89) entende que “as imagens atuais são essencialmente fluídas” e explica que “o que determina as visualidades contemporâneas, o que as agrupa apesar da diversidade de meios que as veiculam, não é tanto a digitalização, seu aspecto tecnológico, mas a fluidez” de sua existência e aparência. Entendo que essa fluidez não está ligada apenas à transitoriedade, ou efemeridade, da materialização da imagem na sociedade em rede, que já não se fixa em suportes analógicos, como acontecia no caso das fotos em papel ou filme. A fluidez está na própria informalidade estética com que se fotografa e se consome imagens, sem grande atenção à forma. Lúcia Santa-ella denomina essas novas expressões imagéticas de “imagens voláteis”, ou “instantâneos voláteis” (SANTAELLA, 2007, p. 400). Elas circulam pela rede de maneira intensa e deixam, por certo, seus registros físicos em dígitos cole-cionados em nuvens de informação ou no imenso hiperdocumento que se constrói nas redes sociais.

5 Idem.6 O temo “inteligência coletiva” Castells empresta de Pierre Lévy (1998a)

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Castells faz uma ampla análise da “sociedade em rede” contemporânea, na qual, segundo ele, “o tempo é apagado” e as “localidades ficam despo-jadas de seu sentido cultural”. Nesse cenário de atemporalidade histórica e desterritorialidade social, a imagem já não é elemento de lembrança do tempo vivido, mas de tentativa de registro de presença no tráfego de infor-mações que circulam sem cessar. Castells explica que vivemos em espaços de fluxos e não mais em espaços de lugares, como acontecia anteriormente. Segundo ele,

O novo sistema de comunicação transforma radicalmente o espaço e o tempo, as dimensões fundamentais da vida humana. Localida-des ficam despojadas de seu sentido cultural, histórico e geográfico e reintegram-se em redes funcionais ou em colagens de imagens, ocasionando um espaço de fluxos que substitui o espaço de luga-res. O tempo é apagado no novo sistema de comunicação já que passado, presente e futuro podem ser programados para interagir entre si na mesma mensagem. O espaço de fluxos e o tempo intem-poral são as bases principais de uma nova cultura, que transcende e inclui a diversidade dos sistemas de representação historicamente transmitidos: a cultura da virtualidade real, onde o faz-de-conta vai se tornando realidade (CASTELLS, 2006, p. 462).

E nesse espaço de fluxos, de mobilidade e redimensionamento das escalas de tempo e espaço, as distâncias se tornam ainda mais relativas e a flutuação entre passado, presente e futuro se apresenta como um jogo contínuo de localização e construção simbólica. As dimensões do local e do global se sobrepõem. E a própria percepção de Si mesmo e do Outro está balizada por esse tempo-espaço em movimento. Configura-se, assim, uma nova cultura, onde “o faz-de-conta” se confunde com a realidade, onde a virtualidade é a nova percepção de realidade. E nisso tudo reside uma dimensão lúdica, do jogo de imagens e do velado a ser revelado.

André Lemos problematiza a ideia de “espaço de fluxos” de Castells, preferindo compreender que mais do que uma substituição, o espaço de fluxos se interpõe ao espaço de lugares. Ele fala dessa fluidez espacial exis-tente na sociedade em rede.

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O espaço de fluxos é definido como uma organização material que permite práticas sociais simultâneas sem necessariamente ha-ver uma continuidade territorial física. Ele não é apenas o espaço eletrônico e se contrapõe às noções simplistas que anunciavam a morte das distâncias e o fim das cidades. O espaço de fluxo proble-matiza o espaço de lugar da mesma forma que o tempo real atinge a noção de tempo cronológico (LEMOS, 2004, p. 134).

Nessa nova cultura “da virtualidade real”, como define Castells, as rela-ções interpessoais e sociais – então reconfiguradas, fluídas e um tanto fragmentadas – se intensificam e se diversificam. Os espaços são transi-tórios e cambiantes... elásticos. A interação ser humano-máquina cria um ambiente de imersão, que se desdobra em interação entre seres humanos, nas mais variadas esferas da vida social. Cria-se assim, no espaço de fluxos, uma nova ordenação cognitiva e afetiva, de experiências compartilhadas, que não mais dependem da relação presencial física.

Lúcia Santaella (2007, p. 275) fala dessa natureza interativa e imer-siva da realidade virtual. Ao analisar o mundo dos games – que guarda proximidade com o universo dos videoclipes interativos, que trazemos mais adiante neste texto – ela lembra que imersão e interatividade já eram conceitos “centrais em quaisquer tipos de jogos” (SANTAELLA, 2007, p. 436). Entendo que ambas – interação e imersão – são os elementos cons-titutivos da ludicidade, hoje potencializada na experiência estética expan-dida, decorrente da convergência midiática.

Ao discutir a questão da interação mediada por computador, Alex Primo (2007a, p. 227) adverte para o fato de que “os processos intera-tivos não podem ser estudados apenas em virtude de suas características tecnológicas” e lembra que “a interação não é uma característica do meio em si”. Assim sendo, Primo (2007a, p. 228) evita falar de “usuário” e “inte-ratividade”, devido “à imprecisão e à influência tecnicista” que tais termos carregam e, de forma a “expandir o alcance do olhar”, opta pelos termos “interagente” e “interação mediada por computador”.

Primo (2007a, p. 228) demarca bem dois tipos de interação: a interação mútua, na qual “os interagentes reúnem-se em torno de contínuas proble-matizações”, e as interações reativas, que “são marcadas por predetermina-ções que condicionam as trocas”. Noutro trabalho, o pesquisador gaúcho já havia diferençado as duas classes de interação: “Enquanto a interação

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mútua (grifo nosso) se desenvolve em virtude da negociação relacional durante o processo, a interação reativa depende da previsibilidade e da automatização nas trocas” (PRIMO, 2005, p.13)

E é justamente essa ideia de interação participativa, e não apenas reativa, experenciada em um contexto de interconexão e mobilidade, que nos leva a pensar em experiência estética imersiva, que envolve autores e especta-dores em processos colaborativos. E essa interação mútua e criativa ganha um sentido lúdico, pois tem a lógica dos jogos, onde cada participante faz os seus movimentos. As narrativas artísticas acentuam a natureza verda-deiramente estética do objeto estético que se oferece à percepção estética, concebidas na trama de poéticas abertas, que se oferecem a experiências estéticas imersivas e dialógicas.

Não se trata, portanto, de mera interatividade, de operações dadas apenas no plano técnico da tecnologia, “marcadas por predeterminações que condicionam as trocas” que determinam a reação do espectador. A experiência estética – em especial no contexto da interconexão digital – implica em interação, que quando aprofundada se converte em algo que poderíamos chamar de “experiência poética”. E essa interação é feita em movimento, de maneira dinâmica e colaborativa, por interagentes que são sujeitos do processo que se desenrola. Como adverte Jenkins (2009, p. 30) “a convergência não ocorre por meio de aparelhos, por mais sofis-ticados que venham a ser. A convergência ocorre dentro dos cérebros de consumidores individuais e em suas interações sociais com outros”. É preciso, portanto, pensar a experiência estética como experiência sensível compartilhada, como nos propõe Jacques Rancière (2009) em A partilha do sensível. E essa partilha tem uma dimensão lúdica.

É neste sentido que formulei a questão a Català. Estaríamos vivendo um giro lúdico na produção e percepção dos audiovisuais contemporâ-neos?

3. A dimensão lúdica na experiência estéticaEmbora a obra de arte durante muito tempo tenha sido revestida de

uma “aura”, ligada que estava ao universo do sagrado, no contexto de “sua reprodutibilidade técnica”, como advertiu Walter Benjamin, ela perde essa aura, perde o “valor de culto” que é substituído pelo “valor de exposição”.

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No clássico texto escrito há cerca de 80 anos7, Benjamin lembra que “na medida em que as obras de arte se emancipam do uso ritual, aumentam as possibilidades de sua exposição” (BENJAMIN et al., 2012, p. 18). Com isso, não basta ao espectador a contemplação passiva da arte, então into-cável, reservada em seu “valor de culto”. Com a intensificação do “valor de exposição”, as obras de arte “perturbam o espectador, o qual percebe que deve procurar um determinado caminho para alcançá-las” (idem, p. 20).

Mas não foi somente a “reprodutibilidade técnica” em si que levou à perda da aura. Como observa Benjamin, a arte moderna já se arriscava em rupturas que tiravam o espectador de sua zona de conforto. Ele toma como exemplo o Dadaísmo, que rompeu drasticamente com o figurati-vismo e se dispunha a experimentar novas formas e a subverter a estética idealista e a lógica da contemplação. Para Benjamin, o Dadaísmo apos-tava na inutilidade de suas obras. Ele lembra que “um dos métodos mais comum para promover tal inutilidade foi um sistemático aviltamento do conteúdo” (BENJAMIN et al., 2012, p. 31). Para ele, as poesias dos dada-ístas pareciam “saladas de palavras”, com “todos os tipos de lixo linguís-tico”, enquanto os quadros traziam colagens com “botões e tíquetes de transporte”. Assim, argumenta Benjamin, os dadaístas “procederam a uma destruição impiedosa da aura de suas criações, conferindo-lhes um estigma de reprodução graças aos métodos usados em sua produção”.

Essa relação de confronto e tensão entre a obra de arte moderna e o espectador, tem uma dimensão lúdica, mesmo quando o jogo que se esta-belece é de mistério e provocação. Em seus comentários sobre o ensaio de Benjamin, Detlev Schöttker (BENJAMIN et al., 2012, p. 82) faz referência aos procedimentos estéticos do dadaísmo, do cubismo e do futurismo, três “movimentos de vanguarda que radicalizaram as ideias de arte moderna”, por meio de “técnicas de montagem, conjugação de escrita e imagem,

7 O ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, de Walter Benjamin, teve sua primeira publicação em 1936 (ou 1935 segundo alguns autores) e recebeu algumas revisões do próprio autor naquela mesma década, foi traduzido em vários idiomas e publicado no Brasil em algumas coletâneas de textos basilares aos estudos de comunicação e experiência estética. A versão aqui citada foi publicada no livro Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (BENJAMIN et al. 2012), que recupera o que se acredita ter sido a última versão de Benjamin, que permaneceu inédita até 1955, quinze anos após a sua morte. Além do ensaio clássico de Benjamin, o livro reúne três estudos bastante consistentes sobre o próprio ensaio e sobre o pensamento do filósofo alemão.

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mescla de artes, fragmentação, abstração, redução e construção”. Ou seja, em boa medida as rupturas presentes nos audiovisuais e

noutras narrativas artísticas hodiernas presentes nas mídias digitais já se anunciavam nas experiências estéticas da arte moderna surgida há cerca de um século. O Cubismo subverteu a lógica da perspectiva da cena, com a sobreposição de planos e ângulos, de tempos e espaços dispostos de maneira multidimensional, que propõem ao espectador um olhar em movimento, uma experiência estética ativa. O Futurismo, por sua vez, forçou uma abertura temática que rompia com certo moralismo presente nas artes do século XIX e introduziu elementos do design gráfico e indus-trial em suas obras visuais. O Dadaísmo, então, rompeu de vez com os cânones do belo. A pintura de Hans Arp e a poesia de August Stramm – citadas por Benjamin (2012, p. 31) como impossíveis de promover “algum recolhimento ou reflexão” – ou as instalações e esculturas de Marcel Duchamp e de Raoul Hausmann e os poemas de Tristan Tzara e de Hugo Ball, se divorciam do plano descritivo e dedutivo das letras e das artes plásticas de até então.

A arte moderna renunciou a lógica da fruição contemplativa e implicou o espectador na experiência estética. Algo que já se desenhava desde o Impressionismo, no século XIX, quando artistas plásticos abandonaram as regras da pintura e trouxeram para suas obras uma profusão de cores e luzes, em pinceladas livres que permitem diferentes percepções depen-dendo da distância e ponto de vista do espectador. Mais que representar uma determinada cena da realidade ou uma ideia numa obra acabada, fechada, os artistas modernistas propunham um jogo com o espectador, assumindo assim uma certa ludicidade em sua concepção estética.

Mas não foi somente na forma e na técnica de produção que os moder-nistas se opuseram apenas às tradições clássicas das artes. Eles trouxeram temas sociais e debates políticos para as suas obras, aproximando assim a estética da ética, a forma do conteúdo. A insurreição formal e temática da arte moderna provocavam o espectador, instigando-o a pensar sob outra ótica. Essa nova proposição de experiência estética, por vezes, adotava o choque e a perturbação como estratégia de ação e, noutros casos, assumia a ironia e o humor para mexer com o espectador.

Tais propriedades estéticas e políticas e o caráter dialógico e dialético da arte moderna estão bem presentes também no movimento modernista

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brasileiro. Assim como acontecia noutras partes, os modernistas daqui trouxeram questões sociais para as suas obras e experimentaram formas inovadoras e a hibridação de elementos, estilos e referências culturais em suas criações. A poesia de Manuel Bandeira, a diversificada produção lite-rária de Mário de Andrade e Oswald de Andrade e as pinturas de Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, para citar apenas alguns nomes, trouxeram proposições linguísticas e plásticas inusitadas. Elementos da cultura indí-gena e africana, regionalismos e referências de arte marginal foram incor-poradas as suas experiências poéticas literárias e visuais, abrindo espaço para novas experiências estéticas por parte dos espectadores.

O movimento estético dos modernistas não se limitou à literatura e às artes plásticas, como a pintura e a escultura. Ele se estendeu e se entranhou na arquitetura, na fotografia, no teatro e na música. E se estendeu por algumas décadas do século XX, influenciando ainda outros movimentos. Por conta dessa evolução estendida, mas especialmente pelo caráter de abertura à interação do espectador, podemos pensar a arte moderna como uma estética expandida.

No âmbito específico da música popular, movimentos surgidos na segunda metade do século XX, como a Tropicália e seus desdobramentos na Vanguarda Paulistana e no Manguebeat do Recife, recuperaram elementos da arte moderna e trouxeram uma faceta ainda mais híbrida para a canção brasileira. Atualmente, bandas alternativas de música popular, que construíram a sua carreira no universo da Web, como Móveis Coloniais de Acaju, Vanguart, O Terno e 5 a Seco, tomam emprestado elementos daqueles movimentos artísticos e culturais, que buscaram um caminho estético e político fora das lógicas do mercado e do poder constituído, e propuseram desdobramentos que alargaram as possibilidades de diálogo com o espectador. Com isso, enveredaram pela experimentação poética e musical e apostaram na quebra do distanciamento entre artista e público. Sua relação com o público se dá de forma interativa e interacional, criando certa cumplicidade a partir de iniciativas de colaboração e convivência presencial e virtual. As redes sociais são espaços privilegiados para esse contato dialógico com o público. E os videoclipes são usados cada vez mais como plataformas de interação, o que acaba sendo potencializado com o desenvolvimento das tecnologias digitais em rede.

A produção audiovisual da música dessas novas bandas da cena musical

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alternativa brasileira em boa medida se enquadra no que Jenkins chama de “narrativas transmídia”. A característica híbrida de suas canções também se reflete na transposição de narrativas de uma linguagem a outra de um meio de comunicação a outro, como no caso de releituras em quadrinhos, tema que já tratei noutros trabalhos (BARROS, 2013).

Os videoclipes contam com dispositivos de interação que os converte em narrativas expandidas e imersivas. Eles consolidam a dimensão lúdica sempre presente na linguagem do videoclipe e promovem um “giro lúdico” na experiência estética do espectador interagente. Alguns casos são trazidos a seguir.

4. Exemplos de audiovisuais musicais expandidosA título de ilustração, trago alguns exemplos de produções audiovisuais

musicais que têm circulado na Web nos últimos anos. Elas poderão nos ajudar a compreender melhor as ideias de interação e imersão na experi-ência estética contemporânea. Também, poderão nos ajudar a perceber a ocorrência de um novo giro na evolução e expansão do audiovisual: o giro lúdico.

Nos videoclipes mais recorrentes as narrativas audiovisuais ora prio-rizam a performance dos artistas, como que num registro de shows ou de ensaios, de viagens e processos criativos (aproximam o espectador do artista – sua vida privada, suas caras e caretas); ora se voltam à letra da canção em uma narrativa paralela, que sugere uma linha de interpretação e conduz o espectador a uma dada cena imagética que se desdobra da narrativa musical. Essas interposições de linguagens e narrativas enfa-tizam os elementos da linguagem musical e poético-verbal da canção, mas já sugerem releituras por parte do espectador. Noutros casos, porém, os vídeos são mais experimentais e trazem grafismos, animações e, espe-cialmente, dispositivos de interação. Estes, em sua maioria, podem ser chamados de audiovisuais expandidos, pois carregam em sua concepção uma estética aberta à interação e, mesmo, à imersão do espectador.

Mesmo se tomarmos somente os videoclipes interativos, com suas diversificadas propostas artísticas, observa-se diferentes níveis e lógicas de interação, desde a aquelas que podem ser identificadas como “inte-ração reativa” até as que se enquadram na categoria de “interação mútua”,

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de acordo com a classificação de Alex Primo, aqui já comentada. No caso das experiências mais participativas e interacionais, algumas poderiam ser entendidas como experiências imersivas.

São muitos os cantores e bandas de música pop, da música eletrônica e do cenário underground que têm experimentado o universo dos video-clipes interativos, como é o caso de Jack White, Bobby Womack, Cee Lo Green, David Guetta, Goldfish, Daniel Savio e Yara Lapidus. Em produ-ções ainda mais elaboradas, alguns poucos artistas têm se enveredado na produção de álbuns aplicativos, dentre os quais merece destaque o caso do álbum Biophilia da cantora sueca Björk, que traz propostas de interação audiovisual em cada peça musical.

Aqui destaco três videoclipes que merecem um breve registro, dada a sua grande repercussão e suas características de linguagem e interação que bem ilustram a reflexão trazida neste artigo. São eles: a canção We Used To Wait, da banda canadense de indie rock Arcade Fire; o clássico Like A Rolling Stone do compositor e cantor americano Bob Dylan; e o hit De repente da banda mineira Skank, que ganhou o prêmio Leão de Ouro no festival de Cannes de 2011.

1) A banda Arcade Fire tem vários videoclipes interativos, como Neon Bible, Black Mirror, Sprawl II, Just a Reflektor e We Used To Wait (The Wilderness Downtown). Dentre eles, destaco este último que usa Google Maps, que propõe uma experiência de interação e, em certa medida, de imersão. A canção fala de alguém no passado perdido no centro da cidade. E o jogo de imagens em movimento coloca várias sequências de animação ou filmagem em live-action, que ora se intercalam, ora se interligam, ora se sobrepõem, com imagens de pássaros que sobrevoam (com uma simu-lação de 3D) as cenas de ruas e estradas e de um personagem misterioso que corre o tempo todo, como que numa busca incessante.

Logo no início da interação, o espectador interagente é convidado a inserir um endereço no site, onde viveu a sua infância. Com a ferramenta street view do Google Maps o audiovisual incorpora imagens do bairro e da cidade informados pelo internauta para utilizá-las como cenário da narra-tiva. O personagem como que passa a correr nas ruas da cidade do espec-tador, nos arredores do endereço informado. Conforme a animação acelera o para, gira o olhar o olha para cima, as imagens 360 graus captadas pelo

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Google Maps são trazidas para a tela, como que vistas pelo personagem, ou pelos pássaros que fazem o sobrevoo. Ao interagente cabe reconhecer as imagens familiares que compõe a narrativa híbrida e, de certa forma, parti-cipar da cena. Trata-se, portanto de um audiovisual interacional e imersivo.

A partir de linguagem HTML5 o site permite automatizar a aberturas de janelas pop-up nas quais aparecem imagens de uma criança correndo, em diferentes planos de câmera, como que simulando diferentes planos de vista e pássaros. Noutras janelas aparecem imagens da rua na qual o interagente viveu a sua infância, numa tomada aérea, com a silhueta de uma criança correndo pelas ruas das redondezas. A partir da HTML5 é possível também ao espectador desenhar e escrever uma mensagem em um pop-up para ele próprio no passado. As linhas do desenho se transformam em galhos de árvores, nos quais irão pousar os pássaros que entram na cena voando, vindos de outras janelas, o que cria mais uma camada de interação entre as narrativas que se intercalam e se movimentam lado a lado na tela.

Existe um jogo nesse videoclipe interativo e interacional. Dá-se uma experiência estética lúdica.

2) No caso da canção Like A Rolling Stone de Bob Dylan, lançada em 1965, o videoclipe interativo de 2013 foi um sucesso na Web. Em apenas um dia de veiculação foram cerca de um milhão de visualizações, como noticiaram blogs e portais de notícia da época. O vídeo é bem humorado, com evidente caráter lúdico, embora proponha uma interação relativamente simples ao interagente, que pode passear por 16 canais de vídeo enquanto ouve a música na voz do cantor. Como relatou a revista Rolling Stone em 24 de novembro daquele ano – cinco dias após o lançamento do videoclipe ne Internet – descreve a experiência estética proposta: “seja assistindo às notícias sobre economia, uma comédia romântica ou um torneio de tênis, tudo parece autêntico, exceto pelo fato de os personagens estarem dublando a letra da música”.

Trata-se, por certo, de uma produção criativa e que deve ter tomado bom tempo para captar e sincronizar as imagens em vídeo com atores e perso-nagens conhecidos da televisão americana. Dentre eles, aparecem o come-diante Marc Maron, o rapper Danny Brown e os hosts de Pawn Stars e Drew Carey (no set de The Price Is Right).

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3) Meu terceiro destaque vai para a canção De repente, da banda mineira Skank, que apesar de não estar mais disponível na Internet, merece ser citada pela riqueza de sua proposta. Trata-se de uma criação, de fato, colaborativa, que resultou em 200 vídeos com versões da mesma música, com a participação de um grande número de músicos – profissio-nais e amadores – que mandaram suas gravações, cantando ou tocando algum instrumento. Como registrou o site da banda, foram cerca de 30 mil vídeos recebidos. Nas versões editadas, os participantes aparecem tocando com a banda, nalgum trecho da canção.

O Skankplay foi “uma iniciativa desenvolvida pelo coletivo DonTryThis, em parceria com o Skank. A plataforma usada – como registra o site da banda – “permite que qualquer pessoa toque junto com o Skank e crie clipes colaborativos”. A canção bem exemplifica o que é uma experiência estética expandida. A disposição da banda em compartilhar a execução de sua canção com anônimos e fãs resultou numa profusão de timbres e sentimentos.

A banda já não mantém aberto o canal para envio de versões da canção De repente, um alegre reggae com pegadas de ska. O aplicativo SkankPlay já não está disponível na internet. Mas são muitos os vídeos no You Tube que ainda registram as participações das pessoas que mandaram suas interpretações individuais ou em pequenos grupos.

No caso do SkankPlay da canção De repente temos a concretização da experiência estética (no sentido da percepção, da aisthesis) convertida em experiência poética (no sentido da produção criativa, da poiesis). A participação ativa do espectador na interpretação da obra – no caso uma canção popular bem no estilo da cultura pop – deixa claro que a produção de sentidos não se limita ao que foi proposto no objeto estético, pois ela depende da percepção estética. E quando essa experiência se faz de maneira colaborativa e sensível, temos a estesia partilhada, bem na linha do que conceituou Rancière no livro Partilha do sensível (2009).

5. Acordes finaisA música teve quase sempre um caráter lúdico para quem a executa e

para quem a escuta. Ela é por natureza uma expressão artística de poten-cial lúdico, ela joga com os sentidos do ouvinte, mexe com o corpo de

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quem a toca, canta ou dança, dá cadência à caminhada, dá ritmo aos movimentos. Isso fica evidente na capoeira, por exemplo, que é embalada pelas melodias e marcação rítmica.

No caso específico da canção, a dimensão lúdica já se faz presente nos jogos entre elementos musicais e elementos literários, em composições que brincam com a entonação ou divisão rítmica das frases. Ela se mostra vigorosa nas danças e no canto coletivo, nos jogos e performances entre artista e público em shows e espetáculos, nos cantos de trabalho e nas festas de rua, nos repentes e desafios musicais. O avanço da indústria fonográfica, com a incorporação de tecnologias digitais, favoreceu a ativi-dade dos DJs em remixagens e samples. A proliferação dos playbacks deu espaço às práticas de karaokê.

Mas quando a música é transportada ao universo audiovisual, ela amplia sua natureza lúdica, nas articulações entre sons e imagens e nas possibili-dades de interpretação. E com a convergência midiática e os dispositivos de interação em rede, como visto nos exemplos acima, a experiência esté-tica musical ultrapassa em muito a dimensão da escuta. Ela se mescla com o cinema e a fotografia, com as artes gráficas e os games, convertendo-se em arte multimídia. A música nessa nova cena plural aprofunda a sua natureza híbrida, polissêmica e multissensorial, revelando de vez sua faceta interacional. Podemos, então, afirmar que vivemos um giro lúdico na experiência estética audiovisual musical.

Para concluir este texto, retomo dois trechos de Edgard Morin em sua defesa da multidimensionalidade do ser humano. Eles se articulam entre si e servem bem de base ao que foi trazido aqui, como ideias abertas para o debate. Diz o pensador francês:

Vamos partir do homem. Ele é concebido como homo sapiens e homo faber. Ambas as definições são redutoras e unidimensionais. Portanto, o que é demens — o sonho, a paixão, o mito — e o que é ludens — o jogo, o prazer, a festa — são excluídos de homo, ou, no máximo, considerados como epifenômenos. [...] Precisamos superar a noção de homem técnico (homo faber), associado a ela, indissoluvelmente, a de homem imaginativo (que imaginas, sonha, cria fantasmas, mitifica) (MORIN, 1986, p.113).

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O homem da racionalidade é também o da afetividade, do mito e do delírio (demens). O homem do trabalho é também o homem do jogo (ludens). O homem empírico é também o homem imaginário (imaginarius) (MORIN, 2000, p. 58).

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REFERÊNCIAS:

BARROS, Laan Mendes de. “Experiência estética e experiência poética: A questão da produção de sentidos”. In: Anais GT Comunicação e Experiência Estética. Juiz de Fora: UFJF Compós, 2012.____________. “Experiência estética na cultura midiatizada: hibridações entre música e história em quadrinhos”. In: Anais GT Comunicação e Experiência Estética. Salvador: UFBA,Compós, 2013.BENJAMIN, Walter et alli. Benjamin e a Obra de Arte: técnica, imagem, percepção. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede, São Paulo: Paz e Terra, 2006.CATALÀ, Domènech Josep M. A forma do Real: introdução aos estudos visuais. São Paulo: Summus, 2011.JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2009.LEMOS, André. “Cidade-ciborgue: a cidade na cibercultura”. In: Galáxia. 2004: p. 129-148LÉVY, Pierre. A inteligência Coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola, 1998a.MORIN, Edgar. Para Sair do Século XX. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1986.____________. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. São Paulo:Cortez/Unesco, 2000.NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. São Paulo: Papirus, 2005. PRIMO, Alex. “Enfoques e desfoques no estudo da interação mediada por computador”. In: André Brasil; Carlos Henrique Falci; Educardo de Jesus; Geane Alzamora. (Org.). Cultura em fluxo: novas mediações em rede. Belo Horizonte: PUC Minas, 2005: p. 36-57.____________. Interação Mediada por Computador: comunicação, cibercultura, cognição. Porto Alegre: Sulina, 2007a.____________. “O aspecto relacional das interações na Web 2.0”. In: Revista E.Compós, 9, 2007b: p. 1-21.

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RANCIÈRE, Jacques. A partilha do Sensível: estética e política. São Paulo: EXO organizacional / Editora 34, 2009.SANTAELLA, Lúcia. Linguagens Líquidas na Era da Mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007.

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Capítulo 12

Em Busca do Som Qualquer: música experimental e experiência da comunicação1

Maria Fantinato Siqueira Maurício Lissovsky

Hoje em dia, no campo da música, frequentemente ouvimos dizer que tudo é possível; (por exemplo) que através de meios eletrôni-cos pode-se utilizar qualquer som (qualquer frequência, qualquer amplitude, qualquer timbre, qualquer duração); que não existem limites para as possibilidades (JOHN CAGE, 1961, p. 67-68).

[...] o homem de hoje crê-se capaz de tudo e repete o seu jovial ‘não há problema’ e o seu irresponsável ‘pode fazer-se’, precisamen-te quando deveria antes dar-se conta de ser entregue numa medida inaudita a forças e processos sobre os quais perdeu qualquer con-

1 Texto originalmente apresentado no Grupo de Trabalho em “Comunicação e Experiência Estética”, no XXIV Encontro Nacional da COMPóS, na Universidade de Brasília e na Universidade Católica de Brasília, em 2015.

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trole. Tornou-se cego não às suas capacidades, mas às suas incapa-cidades, não ao que pode fazer, mas ao que não pode ou pode não fazer (Agamben, 2010, p.58).

1. Experimental: ser a própria maneiraComo pensar os limites da expressão artística contemporânea? E, mais

ainda, como esses limites operam no contexto de práticas específicas? Este artigo investiga essas perguntas a partir de um caso particular: a música improvisada. Desde o início da década de 1960 anunciava-se – como o faz John Cage, em nossa epígrafe – que as possibilidades sonoras haviam se tornado ilimitadas. De fato, o ruído, do qual tanto se fugiu ao longo do desenvolvimento do tonalismo no Ocidente (WISNIK, 1989), foi relativi-zado ao longo do século XX. Obras “eruditas” e “populares” passaram a incorporar barulhos e atonalismos e, em decorrência, as definições usuais a respeito do que era ou não era música tornaram-se insatisfatórias e as que lhe sucederam, complicadas e instáveis (WARNER; COX, 2004).

É aqui, exatamente no limite onde as classificações encontram sua zona de incerteza que essa pesquisa acontece: na música que se improvisa.2 Sabemos que a improvisação musical não é prática recente. Reconhece--se, como faz E.T. Ferrand (apud BAILEY, 1993, p.ix), que o “elemento improvisacional da prática musical viva” esteve e está sempre presente na música, e que a improvisação “foi sempre uma fonte potente de criação de novas formas”. Não surpreende, portanto, que à improvisação viesse associar-se o termo “experimental”. Ao longo da pesquisa, ele ocorreu com frequência na fala dos atores – às vezes como sinonímia, às vezes como especificação da música que se fazia. A intricada relação entre o impro-viso e o experimental, na perspectiva desses grupos musicais, não permite

2 Este texto baseia-se em pesquisa etnográfica (FANTINATO, 2013), realizada entre 2011 e 2012, em “cena musical” (JANOTTI, 2011) de música improvisada no Rio de Janeiro. A pesquisa teve foco nas performances ao vivo dos grupos Duplexx, Chinese Cookie Poets e Rabotnik. As bandas partilhavam um restrito número de ouvintes que se reunia grande parte das vezes na Audio Rebel, um pequeno espaço em Botafogo - bairro de classe média na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro -, primordialmente em um evento intitulado Quintavant. Para uma exposição específica da metodologia utilizada, ver FANTINATO 2014. Foi apresentado no GT de Comunicação e Experiência Estética da Compós 2015.

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a redução a categorias. Há que tomar essas falas como um emaranhado, uma “polifonia” (CAIAFA, 2007, p.137) onde o que está em jogo, tanto quanto a possibilidade de sondar os limites da música, é a própria experi-ência da comunicação.

*

Colocando-se na posição de um ouvinte, Pedro comenta que não gostou do show. Ainda assim, gravou alguns minutos para mostrar ao pai: “já sei o que ele vai dizer: isso não é musica.” Mas, afinal, que tipo de música é essa? “Música experimental. E instrumental. De improviso. Ok?”, afirma Estevão, da banda Rabotnik, ao hesitar em atribuir um rótulo ao que seu grupo cria. O termo “experimental” era recorrente. “Então esse é meu lado experimental, é meu lado que tem a improvisação.”, diria Bruno, integrante da mesma banda. O termo era utilizado até para referir-se à pesquisadora em campo - ela, “que estuda música experimental”.

Historicamente, houve esforços para definir conceitualmente a música experimental vinculando-a obras específicas – tal como faz Michael Nyman em Experimental Music: Cage and Beyond (1999). Aqui, o uso que se faz desta noção é, por um lado, devedor de uma história das vanguardas do século XX - tanto no campo erudito como no jazz - e por outro reflete possibilidades de abertura a tecnologias e práticas DIY (do it yourself) que permitem experimentar e criar sonoridades sem conhecimento formal da linguagem musical. Mas, sobretudo, a noção de experimental é cate-goria problemática, assumida pelos músicos envolvidos como a definição “menos pior”. “Experimental” não designava precisamente o que faziam, mas situava-os em uma complexa interseção de cenas e práticas musicais, eventualmente designadas como noise, improvisação, pós-rock, instru-mental ou underground.

A própria determinação do que seria experimental mostrava-se move-diça, caracterizando uma espécie de antigênero musical: “experimental quer dizer várias coisas”; “é uma música que não pertence especifica-mente a nenhum gênero”; “música que não é comercial”; “só quer dizer que você gosta de não só tocar notinha ou música tonal”; “não formatado, não previsível”. O “experimental” não correspondia exatamente a nenhum rótulo ou estilo, entre os referidos acima, mas permitia assumir essas

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mesmas práticas e classificações como possibilidade parcial. Representava um transitar pela diversidade, ao mesmo tempo titubeando em marcar-se como ‘um’.

E ali, nesse trânsito, estavam músicos que experimentavam. O que seria isso? “Inovar”, “explorar o desconhecido”, “não saber muito bem o que vai acontecer na hora”... A experimentação, assim sugerem as falas, poderia ser pensada como uma prática ancorada no ‘agora’. Ainda que houvesse um passado, referências a antecessores, achar-se experimental, sentir-se expe-rimental, era sentir-se no presente de atualidade movente. As condições necessárias para o exercício dessa experiência não incluíam o domínio extenso da técnica – apesar de se exigir algum - que possibilitaria o uso virtuoso dos recursos do instrumento, mas um domínio aprofundado de uma maneira própria de fazer:

[...] Então eu acabei usando um pouco essa falha, esse buraco, e tra-balhando um pouco dentro disso[...] Acabei criando minha própria forma de tocar. Por mais que seja limitado, é uma coisa minha mesmo assim (Felipe – Chinese Cookie Poets).

Tem músicos que devem me ver tocando e falar ‘pô, diziam que ele era bom baterista, e eu tô vendo ele ali, esbarrando nota, e meio doido... não sei se ele é tão bom assim não’. Aí, sabe, na questão técnica. E ao mesmo tempo, com o passar do tempo, esse mesmo cara vai falar ‘ah, tá, agora entendi. Ele tá criando um negócio novo, ele tá com uma proposta interessante’, o que ele não tem de técnica limpa e sofisticada e apurada ele tem ali de raiz, de envolvimento (Rafa - Rabotnik).

Eu acho que cada um faz da sua maneira. Você conversando com as pessoas eu acho que você vai ouvir depoimentos muito diversos em relação a o quê que é experimentar, mas eu acho que todo mundo tem um pouco uma... esse, essa chama do “poxa, o que é que eu posso fazer aqui, é... para descobrir uma nova forma aqui: de tirar um som, de fazer uma estrutura de uma composição, de fazer contrastes com ins-trumentação (Bartolo – Duplexx).

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O filósofo italiano Giorgio Agamben reconhece nisso que se faz da sua maneira uma terceira figura da lógica que não se confunde nem com o genérico, nem com o particular. Naquele que se faz a sua própria maneira, não repousa qualquer essência nem inscreve-se qualquer destino. É-se o próprio movimento – ser tal qual:

O ser que não permanece na sua própria condição, enquanto tal, que não se pressupõe a si como uma essência escondida, que o aca-so ou o destino condenariam depois ao suplício das qualificações, mas que se expõe nelas, é sem resíduos o seu assim – um tal ser não é acidental nem necessário, mas é, digamos assim, continuamen-te gerado pela própria maneira (AGAMBEN, 1993, p.29, grifos do autor).

O domínio próprio deste que é “a própria maneira” é o exemplo. No que diz respeito a essa pesquisa, este exemplo paradigmático é Arto Lindsay3. Citado por muitos por ter inventado sua própria forma de tocar guitarra uma vez que não dispunha de expressivo domínio técnico e formação musical: “O Arto não toca guitarra. Mas ele toca guitarra do jeito que só ele toca.”, resumiu um músico. Arto Lindsay foi “gerado pela sua própria maneira” e por sua persistência nela. O experimental, portanto, não é profusão de novidade, a promessa de renovação permanente, mas é também persistência, insistência, repetição. É na fusão aparentemente paradoxal desses dois movimentos – repetir e inovar – que a improvisação ao vivo coloca em jogo. É ali que se experimenta seus limites e é ali que ela encontra sua maneira.

3 Músico norte-americano que cresceu em Pernambuco, Brasil, e destacou-se no final dos anos 1970 por integrar o movimento nova-iorquino consagrado como “No Wave”. Integrante então da banda DNA, Arto tocava guitarra com escasso conhecimento musical, explorando os ruídos por ela produzidos e trabalhando também suas influências de música brasileira. Nos anos 1980, ainda em Manhattan, Arto tocou com os grupos The Lounge Lizards e The Golden Palominos, produziu discos para Laurie Anderson e David Byrne, e colaborou com John Zorn. Formou também uma dupla musical com o tecladista Peter Scherer, intitulada Ambitious Lovers. No Brasil, produziu discos de diversos artistas, como Gal Costa, Caetano Veloso, Marisa Monte e Orquestra Contemporânea de Olinda. Durante a realização da pesquisa da qual resulta este artigo, morava no Rio de Janeiro, onde trabalhava como produtor, músico e artista e influenciava diretamente as bandas cariocas estudadas.

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2. Improvisar: vale tudo, só não vale qualquer coisa.A pergunta era obrigatória: “o que é improvisar?”. As respostas, ainda

que variadas, tinham dois pontos em comum: 1) A improvisação é forte-mente atrelada ao momento, articulando a novidade da criação espon-tânea e o que já se sabe (“tocar o agora”; “não ficar repetindo a mesma coisa”; “adaptar-se ao que você tem”; “saber que não se sabe”); 2) a impro-visação implica padrões de comportamento e de relacionamento com os demais membros do grupo (“respeitar o tempo do outro”; “não prender o outro”; “tornar-se parte do que está acontecendo”; “conversar”). Em suma, para improvisar seria preciso atender a dois requisitos: criar no momento e criar na interação.4

Os músicos admitiam que nem a mais improvisada de todas as apresen-tações partiria do nada: “Não existe isso de você sair tocando sem nunca ter pensado naquilo”, disse um deles; “Até não ter combinação nenhuma é uma combinação”, disse outro. Mais além, categorias como “certo” e “errado”, frequentemente associadas às execuções musicais ao vivo, não encaixavam bem na cena: “Eu acho que se você lê como erro, você lê como ‘ah, a música não aconteceu’, mas ela tá acontecendo. Então para mim me parece mais vantajoso você não ler o erro, você ler uma nova possibili-dade”, diz Bartolo. Ao julgar os resultados alcançados nesta ou naquela passagem, com frequência os músicos diziam “isso funciona” ou “isso não funciona”. De fato, tratava-se sempre de um “funcionamento”: uma música que “funcionaria” não por ser boa ou má, nem por ser ‘certa’ ou ‘errada’ ou por ser mais ou menos música, mas por acontecer.

Mas se todos os sons são permitidos, se todas as maneiras de tocar são legítimas, se não existe erro e acerto, mas apenas funcionamento, como

4 Eis uma compilação das respostas dadas pelos entrevistados à pergunta “o que é improvisar”: tocar de forma mais solta; criar na hora em cima de temas ou estruturas; saber que não se sabe; deparar-se com situações não previstas e tentar fazer isso virar alguma coisa; buscar formas novas de tocar a mesma música; reagir, ouvir e se integrar: se tornar parte do que está acontecendo; adaptar-se ao que você tem; todo mundo se embolando, de vez em quando saindo coisas incríveis, às vezes mó barulheira; aprender a respeitar o tempo do outro; chegar, tocar e sair tocando; fazer coisas legais, mas não ficar repetindo a mesma coisa o tempo todo; buscar uma textura, e as pessoas vão somando; forma diferente de tocar; tipo conversar; tocar o agora, não tocar nada pré-concebido, fazer música para aquele momento, para aquela situação; estar aberto para aquilo que te influencia musicalmente na época surgir na música que cria; saber a hora de calar a boca; buscar novas dinâmicas; não prender o outro ao tocar.

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este poderia ser determinado: como sabê-lo, senti-lo, experimentá-lo? Como reconhecer e colocar em prática os limites e procedimentos que determinam o “funcionamento”? Nas conversas com os músicos, uma figura surgiu: “Vale tudo, só não vale qualquer coisa”. Afinal, uma inter-dição em meio às múltiplas possibilidades de funcionamento, no inters-tício das variadas maneiras, na dinâmica que não reconhece erros, mas apenas “acertos diferentes”. Compreender esse “qualquer coisa” tornava--se decisivo.

Um dos músicos, tentando esclarecer, admitiu que ainda que não fosse capaz de colocar em palavras, a noção era bastante clara para ele: “eu não sei exatamente explicar, mas eu consigo sentir perfeitamente se tá rolando um qualquer coisa, aí eu paro de tocar.” Como uma noção tão decisiva para a prática musical em que estavam envolvidos podia ser tão obscura e difícil de comunicar a alguém ‘de fora’, a alguém que não estivesse tomando parte na própria experiência da criação? Tratava-se de algo que os músicos “sentiam”, que acreditavam “perceber”. Algo que, logo foi se delineando, dizia menos respeito à música em si, e mais à dimensão interativa da performance musical, aquilo a que muitos se referiam como “conversa”:

Cara, o bom improviso [...] eu acho que ele vai se fazer a partir do bom entrosamento das pessoas, da qualidade daquela conversa, sabe, entre os músicos (Bartolo - Duplexx).

A conversa, a boa conversa, o diálogo entre os músicos surgia frequen-temente como atributo positivo de um bom show. A boa conversa faz tocar, seguir adiante; em tudo se opõe ao “qualquer coisa” que interrompe o fluxo, que faz cessar o improviso. A analogia com a conversa é corrente entre os praticamente das várias formas de música improvisada, do jazz tradicional a projetos experimentais:

Na improvisação tudo se desenrola como uma conversa em que vá-rios assuntos despontam dependendo do roteiro de improvisação ou do modo de jogo que se tenha criado e ao sabor de atos constan-tes de relacionamento entre vários elementos e componentes. É um agenciamento muito complexo e diversificado. [...] Na conversa não existem regras pré-existentes; o que existe é uma forma de relacio-namento entre os participantes que acaba desenhando os rumos da conversação (COSTA, 2003).

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Ao contrário do “qualquer coisa”, que sempre permanecia vago e impre-ciso, as características que tornavam determinada improvisação uma boa conversa, eram enunciadas com mais fluência.

É uma coisa de afinidade mesmo você trabalhar com música. Você afina. É uma afinação mesmo de personalidades, assim, que você mostra na música, tocando (Bruno - Rabotnik).

Nos grupos estudados, as conversas aconteciam entre pessoas que já se conheciam. Muitos afirmavam que quanto melhor conheciam um ao outro, mais fácil era prever para onde caminharia a música durante a improvisação: “Você tá ali, conversando, com seus amigos, fazendo uma coisa que você faz há bastante tempo.”. Mas, a despeito de serem estruturados como bandas com integrantes fixos, as misturas e a presença de músicos convidados era frequente. Tocar com pessoas diferentes forçaria a fugir das “manias”, disse Felipe. Ter uma pessoa nova tocando, disse Bartolo, era como ter mais alguém no “papo”: “Você vai continuar falando as coisas que você quer, você vai continuar sendo você, mas você vai ter um outro, uma outra pessoa inte-ragindo com você, com a outra e com todas, então gera novos paramentos de variação do que você tá fazendo”.

Em virtude dessa busca por “novos parâmetros de variação”, a música poderia ser improvisada, mas não a introdução de mais um músico em uma apresentação. Como escolher entre tantos músicos possíveis? Felipe afirmou que “vai por afinidade pessoal e por afinidade musical. É sempre uma mistura das duas coisas.”. Rafa ressaltou a importância de se tocar com um músico no qual se acredita e se tem “entrosamento”. E Manso explicou que “a gente chama sempre alguém que tem uma abertura com a linguagem.”. A metáfora da conversa tornava claro que, ainda que a provocação trazida por um elemento externo ao grupo fosse necessária, sem “diálogo” o impro-viso não teria qualidade. O motivo era óbvio para todos: improvisar não era apenas tocar, mas ouvir. Tocar apenas para si, sem escutar os outros, era uma das portas que se abriam para o “qualquer coisa”:

Qual músico tá improvisando com você faz toda diferença. Porque às vezes cai no qualquer coisa, entendeu? Às vezes você junta vários nomes e aí vai improvisar e fica ‘tô aqui no meu barulhinho, você tá aí no seu’... (Rafa - Rabotnik).

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Como disse Marcos, da banda Chinese Cookie Poets, “Improviso é atenção” e “quanto maior o grupo mais atento você tem que estar, eu acho, pelo menos tentar ficar mais atento. [...] se você se preocupa em escutar o que tá acontecendo, você vai sempre seguir um caminho novo, agora se você não escuta, você vai cair sempre nos mesmos lugares”. Ao escutar, o improvisador poderia perceber propostas de caminhos musicais e segui-las ou rompê-las. Também a partir da escuta ele poderia escolher os momentos de fazer silêncio. Como afirmou Fernando Torres, dono do hoje extinto Plano B Lapa - espaço precursor da cena “underground” e “experimental” do Rio de Janeiro:

[...] achar que tem a obrigação de estar tocando o tempo inteiro [...] acaba criando uma certa futilidade. É que nem um monte de bêbado numa mesa de bar. Cada um fica falando mais alto que o outro, achando que estão conversando e não estão conversando nada (Fernando – Plano B Lapa).

Assim, era essencial saber a hora de “calar a boca”, de ficar em “silêncio”. Era importante dar espaço para a música “respirar” e por vezes somente escutar. Mas, sobretudo, aquele que calava acrescentava seu silêncio àquilo que se construía. O silêncio, mais do que o som, parecia ser o elemento decisivo para que o improviso ganhasse o caráter de conversa. A comuni-cação das ideias musicais do grupo, por outro lado, dependia da habili-dade dos músicos com os instrumentos.

Não seria necessário ser um virtuose, mas era necessário “trabalhar” para saber que sons se conseguiria produzir. Era assim que Estevão enca-rava seu clarinete: “Você tem que pesquisar... eu não toco clarinete, mas eu posso tocar um pouco daquele clarinete que nem ‘matando um bicho’. Aí aquilo é um timbre, é uma linguagem para aquilo ali.”. Ora, é bastante provável que muitos de nós, mais ou menos fortuitamente, fossemos capazes de extrair do clarinete este som que nem “matando um bicho”. Mas quantos de nós poderíamos efetivamente conhecê-lo e desejá-lo? Seria isso suficiente para distinguir o som do clarinete de Estevão de um barulho qualquer que ele fazia? Era bastante que apenas Estevão tivesse conhecimento dessa diferença? Ou era necessário que os outros membros da banda também o soubessem? E a audiência? Essa distinção teria alguma importância para ela? Faria alguma diferença na sua escuta? Responder

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essas perguntas, a partir da experiência desses músicos, era o único modo de procurarmos entender por onde passavam os limites entre o “tudo” e o “qualquer coisa”.

3. Som: para além da intenção Mas seria precipitado reduzir “qualquer coisa” a uma releitura da clás-

sica oposição som/ruído. Nas sessões de improvisação há outro fantasma, ainda mais temido que o som aleatório produzido pelo músico inepto: é a “repetição”. Em uma performance que valoriza o “momento”, o “agora”, cujo critério de sucesso é o “funcionamento”, a repetição é uma ameaça, tanto estética quanto moral.

Às vezes você não consegue ser criativo o tempo todo, então tem mo-mentos que você... é como se você tivesse uma carta na manga “eu tenho aquele negócio que eu faço que eu sei que funciona. Vou fazer aquilo agora.”. Isso eu não acho legal. [...] não é positivo, é você apelar para uma coisa que você sabe que funciona numa hora que você tá sem imaginação (Felipe – Chinese Cookie Poets).

Na fala dos músicos, a repetição seria uma das formas do qualquer coisa. Mas, do ponto de vista empírico, é praticamente impossível distin-guir com clareza os limites entre inovação e repetição na improvisação--experimental. E, às vezes, ela parece necessária. Como conta Rafa: “Às vezes vem uma ideia e aí eu repito aquela ideia, aí o cara sacou que eu tô repetindo, aí aquilo vira um ciclo. Depois a gente viu que aquilo já rolou, as pessoas já pegaram aquela ideia, a gente já vai para outra”. Então, o que de início poderia ser simples repetição do que é “cômodo”, recurso a uma “carta na manga”, opera aqui como facilitador da interação. Aqui também a escuta seria decisiva, pois o que soa como repetição pode ser um sinal emitido aos companheiros, um convite à procura por novos caminhos: “se você se preocupa em escutar o que tá acontecendo, você vai sempre seguir um caminho novo, agora se você não escuta, você vai cair sempre nos mesmos lugares”, disse Marcos. A novidade que nasce da escuta, da atenção, tem mais valor que a inovação em si. A repetição deixa de ser uma “carta na manga”, um recurso fácil ao já sabido, quando os demais integrantes a “captam” como um sinal.

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A atenção despontaria como aquilo que protege as intenções dos músicos dos riscos do “qualquer coisa”. Como na conversa, o problema não seria recorrer a palavras ou frases que se usa frequentemente, mas falar para o nada, falar sem intenção de integrar aquele presente e aquela troca. No entanto, essa resposta logo se mostraria insatisfatória por um simples motivo: não era apenas daquilo que intencionalmente se serviam os músicos que se fazia a improvisação. Não era apenas de intenções que se fazia seu (bom) funcionamento.

Bartolo, por exemplo, faz questão de destacar os “desencontros, ruídos de comunicação que podem acontecer muito facilmente quando tá todo mundo interagindo, fazendo sons e se comunicando por uma linguagem não verbal, estritamente sonora, musical”. Esses desencontros podem sugerir novos caminhos para a música que está sendo criada ali: “você tá sempre arriscando, só que os riscos, eles são pescados pelo outro músico e aquilo se transforma”, sugere Rafa. Por outro lado, nem todo desencontro seria acidental:

Eu tô tentando [...] levar sempre uma parada que eu não possa con-trolar direito, assim, que eu não saiba o que vai acontecer. A mesa ligada no input, sabe? A saída da mesa ligada na entrada da mesa, ela realimenta e gera um monte de ruído, mas é muito aleatório, as-sim. É um negócio que você pode até aprender a mexer ali na coisa, que você sabe mais ou menos como funciona, mas dependendo do dia, dependendo da energia, dependendo de tudo, vai mudando (Estevão).

A despeito da atenção, da escuta, do trabalho e da intenção, há sempre a introdução de um elemento que escape ao controle do músico, e cujos resultados seriam imprevisíveis. Vai “funcionar”? Não haveria como sabê-lo antecipadamente. Quanto mais o tema da intenção era trazido para as conversas, mais perdia força como chave explicativa dos limites daquela experiência. Um músico produzia um som involuntariamente e aquilo funcionava. Um não entendia o outro, havia um desencontro, mas ainda assim aquilo podia gerar novos caminhos para a música. Um músico atento, escutando, produzia exatamente o som que desejava produzir, mas isso não garantia que funcionasse, por falta de resposta. A intenção era o que importava, mas, às vezes, não. O aleatório, o não intencional, também

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podia funcionar. Assim como a relação entre inovação e repetição, tudo começava a parecer uma questão de grau. Esse, por sua vez, era contextual, não dispondo de fórmulas ou ponderação prévia.

Sempre que se buscava, com o auxílio dos participantes da cena impro-visada experimental do Rio de Janeiro, estabelecer os limites da música que ali se fazia, algo escapava. Por mais que soubéssemos que ao improvisar os músicos deviam escutar, fazer silêncio, interagir, algo sempre escapava. Os músicos podiam determinar quem participava ou não da improvisação, que som emitir, e que elementos aleatórios introduzir, mas o que definia se aquilo que faziam funcionava ou não escapava às suas escolhas. Para todos efeitos, tanto estéticos quanto éticos, tratava-se algo em constante reconfiguração.

4. Em busca do som qualquer“Vale tudo só não vale qualquer coisa”. Talvez a solução deste terrível

paradoxo não esteja, como os próprios músicos imaginavam – e nós, com eles –, na determinação daquilo que caracterizaria certo som ou perfor-mance como “qualquer coisa”. Mas, mergulhando no enunciado, tal como ele ocorre, naquilo que distingue o “tudo” do “qualquer coisa”. Nesse caso, talvez devamos enfrentá-lo em sua própria natureza paradoxal. Imagi-nemos, por exemplo, que o enunciado não seja restritivo, isto é, que não se trate da exclusão de um conjunto específico de quaisquer coisas deste amplo universo que nos habituamos a chamar “tudo”. Quem sabe se trata exatamente do contrário. Isto é, da especificação de algo que é “tudo” – como ocorrência contingente e singular – em um universo ilimitado de tudo o mais que poderia ser chamado de “qualquer coisa”.

Nesse sentido, isso que pode ser “tudo”, mas nunca é “qualquer coisa”, corresponderia àquilo que em “qualquer coisa” é apenas “qualquer” (sem ser coisa). Tal possibilidade é que nos sugere a reflexão de Agamben sobre “ser qualquer” como o “ser que vem”, em tudo diferente deste qualquer ser que pode ser qualquer coisa:

O ser que vem é o ser qualquer. Na enumeração escolástica dos transcendentais (quodlibet ens est unum, verum, bonum, seu per-fectum, seja qual for o ente é uno, verdadeiro, bom ou perfeito), o termo que, permanecendo impensado em cada um, condiciona o

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significado de todos os outros é o adjetivo quodlibet. A tradução corrente, no sentido de ‘qualquer um, indiferentemente’, é certa-mente correcta, mas, quanto à forma, diz exactamente o contrário do latim: quodlibet ens não é o ‘ser, qualquer ser’, mas ‘o ser que, seja como for, não é indiferente’; ele contém, desde logo, algo que remete para a vontade (libet), o ser qual-quer estabelece uma rela-ção original com o desejo.

O Qualquer que está aqui em causa não supõe, na verdade, a singu-laridade na sua indiferença em relação a uma propriedade comum (a um conceito, por exemplo: ser vermelho, francês, muçulmano), mas apenas no seu ser tal qual é (AGAMBEN, 1993, p.11, grifos do autor).

Na improvisação o som pode ser tudo pois seu ideal é o som qual-quer, no sentido preciso que lhe atribui Agamben: aquele que não é o ‘som, qualquer som’, mas o ‘som que, seja como for, não é indiferente’. A distinção, aparentemente sutil, é de fato radical. O som que ‘seja como for, não é indiferente’ é aquele que pode ser tudo, pela virtude de não ser qual-quer coisa: “a singularidade exposta como tal é qual-quer, isto é, amável” (p.12). Amável como aquilo que se ama enquanto o que é, e não por essa ou aquela característica. Assim, amar um som “tal qual é”, seria amá-lo enquanto aquilo que se expõe na sua própria condição, na sua própria “existência como possibilidade ou potência”: o “qualquer é o ser que pode não ser, que pode a sua própria impotência” (1993, p.38; 33).

Amar um som tal qual, amar um som Qualquer, é amá-lo, assim, sendo um som que pode ou não ser música. Pois aquilo que apenas pode, esgota--se ali, acaba. Aquilo que apenas pode já tem um fim definido. Um som que somente pode ser música é um som “qualquer coisa”. É um som que já é música antes mesmo de ser som. É aquele que padece da condição a priori de ser música, antes mesmo de encontrar os outros sons junto aos quais poderia ou não ser música. Trata-se, portanto, desde sempre, da “potência suprema” do som:

Só uma potência que tanto pode a potência quanto a impotência é, então, a potência suprema. Se toda potência é simultaneamente potência de ser e potência de não ser, a passagem ao acto só pode

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acontecer transportando (Aristóteles diz ‘salvando’) no acto a pró-pria potência de não ser (AGAMBEN, 1993, p.34).

O som Qualquer, aqui, é aquele que leva consigo a potência de não ser música. Mas também a potência de sê-lo. O som qualquer coisa, é aquele que já deve ser música antes mesmo de ser som (ou, desde sempre, jamais sê-lo). “Funcionar” é ser música para aquela música, e não antes daquela música. Não é mais possível pensar de fora para dentro aqui. A diferença entre o som Qualquer e o som qualquer coisa será sempre imanente.

Tornar-se “músico experimental” é ser a própria maneira, é gerar-se nas escolhas, no movimento. É arriscar-se nelas. E se era virtualmente impossível escolher antecipadamente se certos sons seriam ou não música, estava ao alcance do músico escolher ali permanecer. Escapava ao músico se aquilo funcionava ou não, mas não lhe escapava a possibilidade de esco-lher jogar esse jogo em que algo sempre escapa. Disso decorre a força da “conversa” como analogia a que sempre recorrem para se referir ao que fazem. Uma conversa peculiarmente sem assunto. Uma conversa onde nada se comunica, a não ser a própria comunicabilidade.

Nós podemos nos comunicar com outros somente através do que em nós – assim como nos outros – permaneceu potencial, e qualquer comunicação (como Benjamin percebe para a linguagem) é antes de tudo comunicação não de algo em comum, mas da comunicabili-dade ela mesma (AGAMBEN, 2000, p.10, grifo nosso).

A condição dessa comunicação é esse resto. É esse poder (não) ser música do som que sempre escapa a cada um dos músicos individual-mente, sua dimensão impessoal que só encontra seu lugar nisso a que chamam “conversa”: no abrir-se de cada músico para sons que podem ou não ser música para aquela música. Ao escolher assim jogar-se na comu-nicação, os músicos arriscavam-se como músicos na geração desses sons. Ele se arriscavam nos seus gestos.

Se chamarmos de gesto o que continua inexpresso em cada ato de expressão, poderíamos afirmar então que [...] o autor está presente no texto apenas em um gesto, que possibilita a expressão na mesma medida em que nela instala um vazio central (AGAMBEN, 2007, p. 59).

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Aquele que experimenta não pode furtar-se a expor-se nos seus gestos, no “corpo-a-corpo” com a linguagem (idem, ibidem): “O gesto é [...] a comunicação de uma comunicabilidade. Este não tem propriamente nada a dizer, porque aquilo que mostra é o ser-na-linguagem do homem como pura medialidade.” (AGAMBEN, 2008, p.13). A conversa que é comuni-cação da comunicabilidade se faz música da musicabilidade.

5. Considerações finaisO filósofo belga Thierry de Duve tem proposto reler a terceira crítica

de Kant “após Duchamp”. Sua premissa pode ser assim resumida: no âmbito fundamental do estético, tal como formulado por Kant, colocava--se a pergunta “isto é ou não é belo?”; hoje, depois de Duchamp, a validade da terceira crítica dependeria de uma pergunta um pouco diferente: “isto é ou não é arte?”. Para exemplificar sua perspectiva, imagina um diálogo entre dois visitantes da Tate Modern, diante do Equivalente VIII de Carl Andre – uma pilha de blocos de tijolo. A pessoa A diria que aquilo que vê é arte e a pessoa B diria ser simplesmente uma pilha de blocos de tijolo. De Duve afirma então:

Seus vereditos são lançados na forma binária que se tornou para-digmática sempre que uma obra de arte, como A Fonte de Marcel Duchamp, ao invés de demandar de seus observadores a apreciação de suas qualidades segundo as convenções de um meio, convida-os a decidir a respeito de sua admissibilidade absoluta no domínio da arte como um todo (DE DUVE, 2008, p.144).

O argumento de De Duve pode ser útil a nosso estudo. Uma vez que a música experimental não deve mais ser apreciada em função de códigos conhecidos pelos ouvintes ou convenções claras ligadas a um ou outro gênero, a nova pergunta também ecoaria aqui: “afinal, isto é ou não é música?” Uma vez, instigado a produzir uma definição do gênero que praticava, Felipe afirmou: “Na verdade, música experimental é isso: na verdade, quem diz que é uma música é quem tá ouvindo”. Tal como os visitantes idealizados por De Duve, aqui também a audiência é compelida a julgar. É o ouvinte, em última instância, quem diz se é ou não música aquilo que está ouvindo.

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O Equivalente VIII, de Carl André, nunca se dispõe totalmente à contemplação porque é indissociável de uma certa performatividade, porque seu acontecimento como obra só tem lugar na contingência de sua exibição. A música improvisada-experimental parece conectar-se à performance de maneira ainda mais decisiva. O gesto de colocar-se em exposição é infinitamente dilatado, exponencialmente multiplicado a cada som que se lhes escapa.

Como sugere Brasil (2011), a performance nunca é desprovida de tensão, uma vez que o gesto em que se arrisca é tanto exibição da media-lidade, que torna visível o meio como tal, quanto mise-en-scène: “uma ocupação do espaço, um ordenamento no interior do qual o gesto só pode aparecer de maneira mais ou menos tensa, mais ou menos harmônica ou apaziguada” (2011, p.6)

Já não se trata mais de um puro gesto (mesmo porque, todo gesto é impuro, desde o início, misto de espontaneidade e encenação). No entanto, não se trata ainda de um gesto adequado a um orde-namento. A performance é o gesto diante de um ordenamento: ele está em vias de se inserir em uma ordem; ou de transfigurá-la na mesma medida em que se transfigura a si mesmo. Nesse sentido, a performance é o gesto em vias de se colocar em cena, mas que, nes-se “em vias de”, reinventa a cena sem, finalmente, se reduzir a ela. Trata-se de uma força do gesto em composição – instável – com o espaço (BRASIL, 2011, p.6-7, grifo nosso).

`Performance. Os músicos postam-se diante do público, colocam-se em jogo, arriscam-se nos seus gestos impuros. Tudo ali deve permanecer suspenso: em vias de ser música ou não ser música; em vias de encenar ou exibir-se como medialidade. Toda precipitação em um desses polos – precipitação fatal e necessária – deixa um resto que a audiência recolhe. Um resíduo que, na falta de melhor nome, os músicos chamam conversa.

Quando é que essa música deixa de ser experimental? Precisamente quando a resposta às perguntas sobre a música e a performance não deixam mais resíduo. Quando essas perguntas deixam de ser imanentes ao gesto que as coloca em jogo e deixam-se assentar nos dispositivos trans-cendentais do código, do rótulo, da marca. Pois essas perguntas devem ser os vetores de desorganização da própria música em forma de pergunta.

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Do seu vigor, da sua vigência, depende a suspensão do ser Qualquer, sua frágil e efêmera sobrevivência, antes que ele decaia em Coisa.

Amar o ser Qualquer, amar o som Qualquer é colocar-se sempre em risco, pois é colocar-se ao lado do insustentável. É assumir-se como aquele que, afinal, não pode. Pois aquele que tudo pode não se comu-nica, uma vez que comunicar-se é carregar consigo em cada ato algo que resta. É ser, em cada decisão, ainda uma interrogação: posso? É naquilo que não podemos que nos vinculamos uns aos outros. É também no que não podemos que nos vinculamos ao mundo. Aquele que tudo pode está sempre na iminência de transformar tudo em qualquer coisa.

Amar o som qualquer é amar o som que virá. É abrir-se a ele, favo-recer-lhe, dar-lhe passagem, acolhê-lo. Mas é, sobretudo, arriscar-lhe um ligeiro deslocamento. Em A Comunidade que vem, Agamben recorre a uma parábola chassídica que Benjamin teria ouvido de Gershom Scholem:

Os chassidim contam uma história sobre o mundo por vir que diz o seguinte: lá, tudo será precisamente como é aqui; como é agora o nosso quarto, assim será no mundo que há-de-vir; onde agora dor-me o nosso filho, é onde dormirá também no outro mundo. E aqui-lo que trazemos vestido neste mundo é o que vestiremos também lá. Tudo será como é agora, só que um pouco diferente (BENJAMIN apud AGAMBEN, 1993, p.44).

Para Agamben, essa diferença é resultado de um “pequeno desloca-mento” que “não diz respeito ao estado das coisas, mas ao seu sentido e ao seus limites “ (p. 54) Tal deslocamento conferiria às coisas uma auréola, pois “ele não tem lugar nas coisas, mas na periferia delas, no espaço adja-cente entre cada coisa e si mesma”. Um suplemento que acrescentaria às coisas uma vibração, uma “zona na qual possibilidade e realidade, poten-cialidade e atualidade, tornam-se indistinguíveis” (56). Um tremor que borraria os limites.

Amar o qualquer é sustentar este tremor. E arriscar esse gesto de deslo-camento na expectativa de que os sons se mantenham suspensos na inde-cidibilidade até que tudo, sendo como agora, mas sem os limites que lhe impõem quaisquer coisas, tenha finalmente lugar.

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ÍNDICE DOS AUTORES

BENJAMIM PICADO é Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e é docente permanente do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da mesma instituição. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, é autor de O Olho Suspenso do Novecento  : plasticidade e discursividade visual no fotojornalismo moderno (Rio  : Azougue/FAPERJ, 2014) e organizou, junto com Carlos Magno Camargos Mendonça e Jorge Carodos Filho, a coletânea Experiência Estética e Performance (Salvador : EDUFBa, 2014).

CARLOS MAGNO CAMARGOS MENDONÇA é Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e é docente do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais, mesma instituição em que é membro do corpo docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação. É autor de E o Verbo se Fez Homem: corpo e mídia

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(São Paulo: Intermeios/Casa de Artes e Livros, 2012) e organizador de inúmeras coletâneas sobre os enlaces entre comunicação e experiência estética. É bolsista de Produtividade em Pesquisa no CNPq.

CESAR GUIMARÃES é Doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais, é Professor Titular do Departamento de Comunicação Social e membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da mesma instituição. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, organizou, em conjunto com Bruno Souza Leal e Carlos Camargos Mendonça, as coletâneas Comunicação e Experiência Estética (Belo Horizonte : UFMG, 2006) e Entre o Sensível e o Comunicacional (Belo Horizonte : Autentica, 2010).

CIRO MARCONDES FILHO é Doutor em Sociologia da Comunicação pela Universidade Johann Wolfgang Goethe, na Alemanha e Professor Titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, além de membro docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da mesma instituição. É autor de extensa obra com mais de 40 livros sobre temas fundamentais da epistemologia e da pesquisa em Comunicação e responsável pela coleção «  Filosofia e Comunicação  » da Editora Paulus. É Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.

EDUARDO ANTONIO DE JESUS, Doutor em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, é Professor Titular do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais e membro docente permanente do Programa de Pós-Graduação na mesma instituição. É autor de Estratégias da Arte em uma Era de Catástrofes (Rio de Janeiro: Cobogó, 2017) e organizador de diversas coletâneas versando sobre temas da Comunicação e da arte contemporânea, com especial foco sobre os estudos das imagens em movimento.

ÉRICO ARAÚJO LIMA é Doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense, com tese defendida em 2019, sob o titulo “Casa e Vizinhança: modos de engajamento, cinema brasileiro contemporâneo e

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práticas moradoras”, sob a orientação de Cezar Migliorin.

FERNANDA BRUNO é Doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde atua como docente do Instituto de Psicologia, assim como nos Programas de Pós-Graduação em Comunicação e de Psicologia da mesma instituição, como membro do seus respectivos corpos docentes permanentes. É autora de Máquinas de Ver, Modos de Ser: vigilância, tecnologia, subjetividade (Porto Alegre: Sulina, 2013) e de diversas coletâneas organizadas sobre temas das tecnologias da Comunicação e suas implicações estéticas, sociais, políticas e psicológicas. É membro-fundadora da Rede Latino-Americana de Estudos em Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits) e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq

FREDERICO VIEIRA é Doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais, com tese defendida em 2018 sobre “Pensar a Imagem Outramente: à escuta ética do rosto e o porvir da política”. Integra o Grupo de Pesquisa Lévinas e a Alteridade, da Faculdade Jesuítica de Filosofia e Teologia em Belo Horizonte.

ÍCARO FERRAZ VIDAL JUNIOR é doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e em “Cultural Studies in Literary Interzones” pelas Université de Perpignan Via Domitia e Università degli studi di Bergamo. Realizou estágio pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná e atualmente é bolsista de pós-doutorado PNPD-Capes no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

ISABELA PAES é atriz profissional e Doutora em Performance pelo Institut Mines-TELECOM, Escola de Administração e Pesquisadora Associada da mesma instituição, na qual coordena projetos sobre o estudo da performance no contexto das organizações empresariais e sociais.

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JEAN-LUC MORICEAU é Doutor em Comunicação e Organizações, com habilitação para dirigir teses doutorais pela Univerisdade de Paris IX, Dauphine, e é membro permanente do Institut Mines-TELECOM, Escola de Administração, na qual explora temas associados ao estudo das organizações empresariais e sociais, na perspectiva crítica da Estética e da Ética, assim como da filosofia pós-estruturalista associada com os estudos da performatividade.

JULIA CAPOVILLA LUZ RAMOS é Doutora em Comunicação pela Universidade do Vale dos Sinos (UNISINOS) e cumpre estágio pós-doutoral (com bolsa PNPD/CAPES), na Universidade Federal de Santa Maria, como membro do corpo docente do Programa de Pós-Graduação da mesma instituição. É autora do livro Fotojornalismo e Identidade: a nação brasileira pelas lentes de Pierre Verger (Curitiba: Appris, 2017)

LAAN MENDES DE BARROS é Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e docente da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista, assim como docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da mesma instituição. É autor de diversos livros na área no Brasil e no exterior, dos quais se destaca Discursos Mediáticos: representações e apropriações culturais (São Bernardo do Campo: UMESP, 2011).

MARIA FANTINATO SIQUEIRA é Mestra em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com dissertação sobre “A Própria Maneira: bandas experimentais e musica improvisada no Rio de Janeiro”, sob orientação de Mauricio Lissovsky.

MAURÍCIO LISSOVSKY é Doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e docente do Departamento de Expressões e Linguagem da Escola de Comunicação, assim como membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação na mesma instituição. É pesquisador associado e professor convidado do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. É membro efetivo do Centro de Estudos Visuais Ibero-

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Americanos do Birkbeck College, em Londres. Foi Coordenador da área de “Comunicação e Informação” da CAPES, no período de 2014 a 2018 e é bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. É autor de Máquina de Esperar: origem e estética da fotografia moderna (Rio de Janeiro: Mauad, 2008) e de Pausas do Destino: teoria, arte e história da fotografia (Rio de Janeiro: Mauad, 2014).

RENATA PITOMBO CIDREIRA é Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia. Docente do Centro de Artes Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e membro docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da mesma instituição, no qual ainda atua como Coordenadora. Tem uma extensa obra sobre os enlaces entre moda, estética e comunicação, dos quais se destacam A Sagração da Aparência: o jornalismo de moda na Bahia (Salvador: EDUFBa, 2011) e Os Sentidos da Moda (São Paulo: Annablume: 2005)

RICARDO LESSA FILHO é doutorando em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, com pesquisa sobre “Sair da Escuridão: notas sobre as imagens emergidas à luz”, sob a orientação de Ângela Prysthon.

THALES VILELA LELO é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, com tese defendida em 2019 sobre “Representações Produtivas no Mundo do Trabalho dos Jornalistas: precariedade, tecnologia e manifestaçnoes de idantidade profissional”, orientada por José Roberto Montes Heloani. É docente da Universidade do Estado de Minas Gerais, em Divinópolis, onde atua no Departamento de Comunicação.

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