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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA HOSPITAL UNIVERSITÁRIO PROGRAMA DE RESIDÊNCIA INTEGRADA MULTIPROFISSIONAL EM ATENÇÃO HOSPITALAR ANA CAROLINA DO NASCIMENTO RODRIGUES REFLEXÕES CRÍTICAS SOBRE O SERVIÇO SOCIAL CLÍNICO ENQUANTO PROJETO DE PROFISSÃO: uma análise de seus fundamentos históricos e suas expressões na atualidade JUIZ DE FORA 2020

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

    HOSPITAL UNIVERSITÁRIO

    PROGRAMA DE RESIDÊNCIA INTEGRADA MULTIPROFISSIONAL EM ATENÇÃO

    HOSPITALAR

    ANA CAROLINA DO NASCIMENTO RODRIGUES

    REFLEXÕES CRÍTICAS SOBRE O SERVIÇO SOCIAL CLÍNICO ENQUANTO

    PROJETO DE PROFISSÃO: uma análise de seus fundamentos históricos e suas

    expressões na atualidade

    JUIZ DE FORA

    2020

  • ANA CAROLINA DO NASCIMENTO RODRIGUES

    REFLEXÕES CRÍTICAS SOBRE O SERVIÇO SOCIAL CLÍNICO ENQUANTO

    PROJETO DE PROFISSÃO: uma análise de seus fundamentos históricos e suas

    expressões na atualidade

    Trabalho de Conclusão de Curso

    apresentado ao Departamento de Política

    de Ação do Serviço Social da Faculdade

    de Serviço Social da Universidade Federal

    de Juiz de Fora, como parte dos requisitos

    necessários para obtenção do grau de

    Especialista na modalidade Residência

    Integrada Multiprofissional em Atenção

    Hospitalar - área Serviço Social.

    Orientadora: Luciana Gonçalves Pereira

    de Paula.

    JUIZ DE FORA

    2020

  • 1

    RESUMO: O presente artigo traz algumas reflexões acerca do Serviço Social Clínico

    enquanto projeto profissional no Brasil, entendendo que o mesmo está no rol de

    projetos conservadores que disputam hegemonia com o chamado Projeto Ético-

    Político. Para isto, são tratados alguns temas como os elementos históricos do

    surgimento e desenvolvimento do Serviço Social no Brasil, passando pela

    construção do Projeto Ético-Político de vertente crítica e os valores por ele

    defendidos. Posteriormente são abordados os fundamentos históricos do Serviço

    Social Clínico, assim como suas principais tendências na atualidade. Por fim, são

    traçadas algumas reflexões a partir dos registros audiovisuais do “II Seminário

    Serviço Social Clínico – Um Debate Inadiável”, promovido pelo SASERS em 2018.

    Tais reflexões realizadas à luz da produção acadêmica crítica e consolidada no

    Serviço Social nos permitem afirmar que o Serviço Social Clínico expressa uma

    corrente da profissão que retoma o passado, desconsiderando o que foi produzido

    coletiva, histórica e democraticamente pelas vanguardas da categoria. Nas

    considerações finais, reforça o Projeto Ético-Político como estratégia fundamental e

    coerente com os rumos trilhados pela profissão no Brasil.

    PALAVRAS-CHAVE: Serviço Social Clínico; Serviço Social; Projeto Profissional; Projeto Ético-Político; Assistente Social.

    INTRODUÇÃO

    A compreensão de Netto (2006) que versa sobre os projetos profissionais,

    afirmando que estes, necessariamente, se vinculam a projetos de sociedade é

    crucial para o ponto de vista que desenvolveremos no decorrer deste trabalho. Ainda

    segundo o autor, o projeto profissional hoje hegemônico no Serviço Social se

    relaciona com a superação da ordem do capital e para tanto, deve disseminar os

    valores necessários à construção de uma nova sociabilidade, como: democracia,

    liberdade, justiça social e outros.

    Porém, ainda segundo Netto (2006), tendo o pluralismo como um de seus

    princípios, o projeto de vertente crítica marxista no Serviço Social convive com

    outros projetos que, alicerçados em matrizes teóricas e concepções de sociedade

    distintas, disputam com ele sua hegemonia. O Serviço Social Clínico é uma das mais

    importantes expressões de projeto conservador no âmbito do Serviço Social

    brasileiro na atualidade (PAULA, 2016). Nossos estudos nos mostram que tal projeto

    reatualiza e retoma as referências e objetivos profissionais já superados pela

    profissão em sua trajetória histórica (IAMAMOTO, 2014). Além disso, observamos

    que o mesmo está amparado no completo ecletismo e em visões importadas da

  • 2

    profissão ao redor do mundo, que desconsideram a particularidade da formação

    sócio-histórica brasileira e o desenvolvimento do Serviço Social conectado a ela.

    Uma consideração fundamental é a histórica e reiterada defesa do Serviço

    Social Clínico no campo da saúde como busca por legitimação frente à equipe

    multiprofissional. Tal dado é importante para explicitar nosso ponto de partida: este

    trabalho é fruto das reflexões construídas a partir da experiência no Programa de

    Residência Integrada Multiprofissional em Atenção Hospitalar do Hospital

    Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora. O desenvolvimento do

    trabalho profissional no ambiente hospitalar e as leituras no campo da saúde,

    utilizadas em muitos momentos para reflexão da prática profissional, levaram a

    percepção da necessidade da discussão e produção acadêmica com vistas a

    contribuir com a crítica ao Serviço Social Clínico e à defesa do Projeto Ético-Político

    hegemônico.

    Feitas estas colocações, partiremos para a explicitação dos procedimentos

    metodológicos realizados para a execução da pesquisa. Inicialmente, buscou-se nas

    revistas renomadas1 do Serviço Social brasileiro pelos descritores “Serviço Social

    Clínico”, “Práticas Terapêuticas e Serviço Social”, entretanto não foram encontradas

    publicações. Pode-se pensar na hipótese de que os defensores de tal vertente não

    estejam realizando produções teóricas nas revistas consolidas da categoria por

    possuírem uma autoimagem da profissão que difere da que se elegeu hegemônica e

    é sustentada pelas entidades representativas, unidades de ensino etc.

    Dessa forma, realizou-se pesquisa com as mesmas palavras-chave em sites

    de busca em geral, quando se teve acesso ao registro audiovisual do “II Seminário

    Serviço Social Clínico – Um Debate Inadiável”, promovido pelo Sindicato de

    Assistentes Sociais do Rio Grande do Sul em 24 de maio de 2018. Optou-se pela

    análise de tal documento por entender que por tratar-se de um evento acadêmico,

    organizado por uma instância de representação da categoria, o mesmo expressaria

    claramente a prática clínica enquanto um projeto de profissão, apresentando seus

    1 A saber: Serviço Social em Revista, do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Política

    Social da Universidade Estadual de Londrina; Revista Katálysis, do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Curso de Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina; Revista Ser Social, do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade de Brasília; Revista Serviço Social e Sociedade, da Cortez Editora; Revista Praia Vermelha, do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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    objetivos, referências teóricas, imagem de profissão e outros elementos. Além disso,

    apesar de se tratar de um evento regionalizado, o mesmo contou com a fala de

    profissionais de diversos estados do país e também de Assistentes Sociais Clínicos

    que atuam em outros lugares do mundo como Estados Unidos e Espanha, sendo um

    importante meio para a compreensão dessa vertente, de forma mais geral. Outro

    dado que cabe mencionar é o número de visualizações na plataforma audiovisual

    que o documento encontra-se disponibilizado, que ultrapassa 1.600, tendo

    alcançado um número significativo de profissionais e estudantes da área.

    Após análise criteriosa do material, foram realizadas anotações divididas em

    eixos. Essas anotações refletem indagações e problematizações que foram

    desenvolvidas à luz de produções teóricas consolidadas na categoria, resoluções do

    CEFESS, Código de Ética e Lei de Regulamentação da Profissão.

    Este trabalho está dividido da seguinte forma: Construção Sócio-Histórica do

    Serviço Social no Brasil – onde resgatamos a institucionalização da profissão no

    país, o projeto do Serviço Social Tradicional, passando pelo Processo de Renovação

    e a construção do chamado Projeto Ético-Político; Projeto Profissional do Serviço

    Social: Correntes em Disputa – aqui trazemos as transformações no mundo do

    trabalho e no processo formativo, e a forma como rebatem no projeto profissional do

    Serviço Social, fortalecendo a existência de vertentes conservadoras que fazem

    frente ao Projeto Ético-Político hegemônico; Apontamentos Históricos Sobre o

    Serviço Social Clínico – discorremos sobre o surgimento da profissão na Inglaterra,

    o modelo franco-belga, o Serviço Social de Casos e demais tendências que

    influenciaram e influenciam tal corrente; Reflexões Teóricas Sobre a Defesa do

    Serviço Social Clínico na Atualidade – trabalhamos neste tópico as referências

    teórico-metodológicas e o objeto de intervenção do Serviço Social Clínico, assim

    como apontamos alguns argumentos que desmascaram a fragilidade de tal proposta

    como projeto de profissão. A última sessão – Análise do II Seminário Serviço Social

    Clínico – é composta pelos seguintes subeixos: Considerações sobre os Sindicatos

    de Assistentes Sociais; Características da formação dos Assistentes Sociais Clínicos

    e o Serviço Social Clínico como realidade no mundo; A prática clínica como busca

    por legitimidade no campo da saúde; Principais referências e concepções de

    profissão para o Serviço Social Clínico. Nas Considerações Finais, reafirmamos

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    nosso compromisso com o Projeto Ético-Político hegemônico de vertente crítica e

    marxista e sua defesa perante os projetos conservadores.

    CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO SERVIÇO SOCIAL NO BRASIL

    Segundo Iamamoto e Carvalho (2014), o Serviço Social surge enquanto

    profissão socialmente determinada por um contexto histórico. A inserção dessa

    profissão se dá no processo de reprodução das relações sociais, sendo chamada

    pela burguesia para atuar no controle da classe trabalhadora. Tal controle se

    expressa no âmbito material – na condução de políticas sociais que garantem

    condições básicas para que a classe subalternizada esteja apta a produzir para o

    capital -, e também na reprodução ideológica de valores que são necessários à

    manutenção da ordem burguesa.

    Porém, tal fundamento não exclui a possibilidade da execução de uma prática

    profissional do Serviço Social que seja redirecionada aos interesses históricos da

    classe trabalhadora, pois como apontam Iamamoto e Carvalho (2014, p.81), o

    Serviço Social “responde tanto a demandas do capital como do trabalho e só pode

    fortalecer um ou outro polo pela mediação de seu oposto”. Ou seja, para que um

    trabalho profissional crítico seja pensado, é necessário refletir que através das

    mesmas ações, o Assistente Social atende a interesses conflitantes e antagônicos.

    No Brasil, o Serviço Social surge como profissão com a expansão do

    capitalismo industrial e da urbanização, na década de 1930. Neste chão histórico, há

    um acirramento da questão social e com ele, manifesta-se a necessidade de um

    profissional técnico capaz de responder às suas expressões. Dessa forma, a

    institucionalização do Serviço Social possui estreita relação com a criação e

    desenvolvimento das políticas sociais administradas pelo Estado e com os serviços

    sociais ofertados pelas empresas privadas aos seus trabalhadores.

    Ainda conforme Iamamoto e Carvalho (2014), nesse período a profissão

    esteve muito próxima da Igreja Católica e de seus valores, que impregnavam o

    Serviço Social de uma doutrina cristã que colocava a cientificidade em segundo

    plano. Durante as décadas de 1940 a 1960, tais valores eram hegemônicos na

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    profissão, caracterizando o que ficou conhecido como Serviço Social Tradicional,

    alicerçado nas metodologias de Caso, Grupo e Comunidade2.

    Por volta da metade da década de 1960, desponta na América Latina o

    chamado Movimento de Reconceituação3, que se opõe a lógica do Serviço Social

    Tradicional em suas dimensões teóricas e práticas. As ideias desse movimento

    chegaram ao Brasil estimulando um processo de renovação do Serviço Social que

    não se constituiu de forma homogênea. Durante tal processo coexistiram três

    perspectivas que Netto (2005) denominou: Perspectiva Modernizadora4,

    Reatualização do Conservadorismo5 e Intenção de Ruptura. As duas primeiras,

    apesar de distintas, de forma geral, buscavam uma modernização da profissão,

    principalmente nos âmbitos teórico e técnico. Todavia, não questionavam a raiz das

    2 Na década de 1940, a institucionalização da profissão constitui-se referenciada no Serviço Social

    norte-americano, na qual os "problemas sociais" seriam de responsabilidade dos indivíduos, o que caracterizou Serviço Social de Caso. Na mesma época, também surgiram intervenções do chamado Serviço Social de Grupo, com fins terapêuticos de atuação nas relações interpessoais. Ambos tinham por base teórico-metodológica o pensamento positivista, apesar de se apresentarem como neutros. Já na década de 1950, o capitalismo monopolista avança e com ele surge a ideologia desenvolvimentista. Esse movimento influencia a prática do Serviço Social que irá atuar mobilizando comunidades na busca pela melhora de suas condições de vida e harmonia social, pautando-se pela ideia da “ajuda mútua” (PAULA, 2016).

    3 Esse movimento que se iniciou por volta de 1965 faz parte do processo internacional de denúncia do

    conservadorismo profissional. Influenciou, no Brasil a renovação do Serviço Social, na perspectiva da Intenção de Ruptura, momento em que houve o questionamento das bases teórico-práticas da profissão, aproximação com a teoria social crítica de Marx, inserção de parte da categoria em movimentos sociais e sindicais. 4 Emerge no Encontro de Porto Alegre em 1965 e se expressa nos Seminários de Araxá (1967) e

    Teresópolis (1970), promovidos pelo CBCISS. Representava uma adequação do Serviço Social ao projeto econômico, político e social da autocracia burguesa, onde a tônica era o desenvolvimento subordinado aos ditames das organizações internacionais que propagavam os interesses dos países de capitalismo central. O Serviço Social deveria atuar junto aos indivíduos com desajustamentos familiares e sociais. Seus postulados éticos derivavam do neotomismo, sendo abstratos e a-históricos, e seu referencial teórico era o estrutural-funcionalismo.

    5 Surge nos Seminários de Sumaré (1978) e Alto da Boa Vista (1984). Segundo Netto (1991, p. 203),

    esta vertente deveria “deter e reverter a erosão do ethos profissional tradicional e todas as suas implicações sóciotécnicas e, ao mesmo tempo, configurar-se como uma alternativa capaz de neutralizar as novas influências que provinham dos quadros de referência próprios da tradição marxista”. Reatualizando o conservadorismo com uma nova roupagem, esta perspectiva recusava os padrões teórico-metodológicos da tradição positivista e se relacionava então, ao método fenomenológico. Há também a negação de um aporte teórico asséptico, definindo seus valores profissionais sob influências cristãs e da transformação social.

  • 6

    expressões da questão social e dessa forma, fortaleciam o capitalismo e o Regime

    Civil-Militar iniciado em 1964, que Netto (1991) denominou “autocracia burguesa”6.

    Já, a vertente chamada pelo autor de Intenção de Ruptura contestava o modo

    de produção capitalista na sua essência e criticava a forma como o Serviço Social

    atuava predominantemente na manutenção de tais interesses.

    O primeiro marco histórico da Intenção de Ruptura no cenário do Serviço

    Social brasileiro foi o Método BH (1972-1975)7, acompanhado pela inserção política

    dos Assistentes Sociais no âmbito sindical – impulsionado pelo “novo sindicalismo

    do ABC Paulista”8, que resultou no Congresso da Virada em 19799 (COELHO,

    2013). É na década de 1980 que a Intenção de Ruptura se fortalece na academia e

    começa a se expandir para a base da categoria profissional, o que só foi viável

    porque é nesse período que o regime ditatorial entra em decadência e é iniciado o

    processo de redemocratização no país. Nessas circunstâncias, o coletivo da

    categoria, através de suas entidades representativas, passou a repensar o projeto

    profissional do Serviço Social e gestou-se o chamado Projeto Ético-Político.

    Importante expressão material desse processo de renovação crítica da

    profissão na década de 1980 é a reformulação do Código de Ética, em 1986.

    Segundo Paula, (2013, p.138) o documento “surge como uma estratégia político-

    profissional para que se possam efetivar, em meio à categoria profissional, os

    6 Iniciada com o golpe de Abril de 1964, fez parte de uma contrarrevolução preventiva patrocinada em

    diversos países pela potência imperialista norte americana. Os resultados foram a consolidação de um padrão de desenvolvimento dependente de interesses externos, um discurso e uma prática coercitiva anticomunista, e articulação de organizações políticas capazes de eliminar protagonistas comprometidos com projetos progressistas (NETTO, 1991). 7 Experiência ocorrida na Escola de Serviço Social da Universidade Católica de Minas Gerais, no

    período entre 1972 e 1975. O método se caracterizou como uma alternativa às intervenções profissionais de caso, grupo e comunidade. Deixou como legado a necessidade de aprofundamento da discussão da relação entre teoria e prática e ainda pode contar com a participação dos trabalhadores em todas as suas fases. O "método BH", não sem equívocos, teve um importante papel para a perspectiva da intenção de ruptura, inaugurando esta vertente e trazendo para o Brasil as influências da Reconceituação (COELHO, 2013).

    8 “Surgido no final da década de 1970, significou um avanço político e organizativo para os

    trabalhadores e alimentou a luta pela democratização das instituições em todo país. Essa realidade de grandes mobilizações e greves gerais rebateu no Serviço Social, estabelecendo laços de uma articulação orgânica entre assistentes sociais e militâncias político-sindicais” (PAULA, 2016, p.135). 9 “O questionamento que vinha à tona direcionava-se aos fundamentos teórico-metodológicos do Serviço Social alinhado aos interesses da burguesia e suas práticas correspondentes” (COELHO, 2013, p.106).

  • 7

    valores consoantes com a concepção ideológica defendida pelos assistentes sociais

    vinculados à intenção de ruptura”. Apesar do inegável avanço que o Código de Ética

    de 1986 representa para a história do Serviço Social no Brasil, especialmente no

    que se refere à negação da neutralidade da prática profissional do Assistente Social

    e à defesa dos interesses históricos da classe trabalhadora, não podemos deixar de

    mencionar que por conta da ainda recente, apreensão das bases teórico-filosóficas

    da tradição marxista, tal documento apresentava concepções equivocadas. Paula

    (2016), afirma que um Código de Ética deve assumir compromisso com

    determinados valores e não com uma classe, como se essa fosse detentora do bem

    e assim acabar por incorrer em um militantismo que ultrapassa as barreiras

    profissionais.

    Conforme Paula (2016), a década de 1990 representa a consolidação da

    hegemonia do Projeto Ético-Político, com grande avanço sobre a discussão da

    dimensão ético-política da profissão, tendo como grandes expressões o Código de

    Ética de 1993, a Lei de Regulamentação da Profissão (1993) e as Diretrizes

    Curriculares (1996). Ainda segundo a autora, é nos anos 1990 que o Serviço Social

    avança na discussão teórica sobre a ética na intervenção profissional e dessa

    maneira, o Código de Ética de 1993 representa um grande amadurecimento da

    profissão neste sentido, em relação ao documento anterior. É também sobre estas

    bases que ganha destaque a produção de conhecimento na profissão, o que se

    deve em grande parte ao desenvolvimento dos programas de pós-graduação, que

    contribuíram para consolidar a teoria marxista como referencial teórico-metodológico

    hegemônico na formação em Serviço Social. As Diretrizes Curriculares (1996), foram

    fundamentais para fortalecer o processo formativo na direção do Projeto Ético-

    Político, apontando e aperfeiçoando a questão do estágio supervisionado como

    crucial na relação teórico-prática. Porém, apesar de todo esse avanço, no contexto

    político e econômico do país, a profissão esbarra com a realidade do neoliberalismo,

    pelo qual a estratégia governamental de retirada dos direitos conquistados pela

    classe trabalhadora é aprofundada.

    A entrada dos anos 2000 aprofundou a tônica neoliberal no Brasil, tendo sido

    marcada por políticas de austeridade fiscal e contrarreformas. Esse cenário irá

    rebater diretamente no Serviço Social e apresentar novos desafios à profissão.

    Paula (2016) aponta que a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder no

  • 8

    início da década e sua reformulação para uma direção reformista, impacta em

    parcelas numerosas de nossa categoria profissional que passam a ter na política

    social, em especial na Assistência Social e nos programas de transferência de renda

    (carro-chefe dos governos PT), o seu horizonte final. Além disso, o avanço do

    pensamento pós-moderno10 compromete significativamente a perspectiva de classe

    no interior da profissão, o que destoa fortemente do que propõe nosso Projeto Ético-

    Político.

    Como ficou evidente neste tópico, a história do Serviço Social não está

    descolada da história da sociedade brasileira, de forma geral. As tendências

    apontadas acima irão rebater na categoria, alimentando correntes diversas que irão

    competir entre si por hegemonia. É este assunto que será problematizado na

    próxima sessão, onde traremos considerações sobre o chamado Projeto Ético-

    Político do Serviço Social e os processos que com ele se defrontam, fortalecendo

    outros projetos de profissão.

    PROJETO PROFISSIONAL DO SERVIÇO SOCIAL: CORRENTES EM

    DISPUTA

    Para Ortiz (2015), “projeto” é algo essencialmente humano, pois planejar uma

    ação antes que essa se realize pressupõe competência teleológica. Entretanto, na

    realidade, as ações nem sempre se concretizam exatamente como as projetamos,

    pois existem mediações que atravessam o processo. Dessa forma, é preciso ter

    clareza do objetivo final para que possam ser criadas estratégias que considerem os

    limites e possibilidades postos na realidade. Baseado na análise de Cardoso (2013),

    podemos afirmar que todo projeto coletivo é um projeto ético e político, pois

    pressupõe escolhas e estas estão sempre pautadas por valores, mesmo que não se

    tenha clareza disso.

    10

    “O pensamento pós-moderno refuta qualquer possibilidade de conhecimento totalizante porque defende a singularidade e especificidade dos fenômenos sociais como expressões isoladas e fragmentadas, sem inter-relação entre si. As teorias pós-modernas não se debruçam sobre o processo de constituição do real; não estão interessadas na apreensão do movimento efetivo do objeto, e sim no modo como esse objeto é assimilado pelas consciências - o centro da questão passa a ser as formas simbólicas de como o real é percebido por cada um dos indivíduos” (PAULA, 2016, p.155).

  • 9

    Netto (2006), afirma que todo projeto profissional está vinculado a um projeto

    societário, no caso do chamado Projeto Ético-Político do Serviço Social, os valores

    que o conformam – liberdade, igualdade, cidadania, democracia, justiça social - se

    relacionam com a superação da ordem capitalista. Nesse aspecto reside uma das

    complexidades do Serviço Social, pois apesar de receber o estatuto de profissional

    liberal, a profissão, no Brasil, se desenvolveu através do trabalho assalariado

    (IAMAMOTO; CARVALHO, 2014). Essa contradição marca o exercício profissional

    do Assistente Social, pois, nenhum trabalhador assalariado possui completa

    autonomia sob o processo de trabalho em que está inserido, uma vez que depende

    dos meios ofertados por uma instituição para a execução das suas ações. Contudo,

    no caso do Serviço Social, alguns elementos apontados pelos autores garantem

    relativa autonomia aos profissionais, como: a Lei de Regulamentação da Profissão,

    o Código de Ética, a formação acadêmica de nível superior, entre outros. Tais

    aparatos permitem que a categoria possa, coletivamente, defender princípios que se

    contrapõem à hegemonia burguesa.

    Entendendo que o projeto profissional é um direcionamento para a categoria,

    Netto (2006), aponta que nele existem dois elementos: o imperativo e o indicativo.

    Imperativo porque existem um conjunto de regulamentações como o Código de Ética

    e outras legislações que são expressões materiais desse projeto e as quais o

    profissional deve, sob penas jurídicas, se submeter. No entanto, ele também é

    indicativo, pois, por ser plural e hegemônico, convive democraticamente com outras

    correntes a ele alheias com as quais está em constante disputa ideológica.

    Ramos e Santos (2016, p. 209-210), nos trazem uma importante lembrança

    ao afirmar que “é fundamental o entendimento de que a ruptura com o

    conservadorismo significa, de fato, um processo histórico e, como tal, permeado de

    contradições, limites e desafios que se atualizam todos os dias”. As autoras apontam

    ainda, que as transformações que o capitalismo vem operando nas últimas

    décadas11, tem sido cruciais para entender o movimento no interior do Serviço Social

    que impõe o pragmatismo12 e a negação da cultura profissional crítica.

    11

    Crise do modo de produção que se inicia no final da década de 1960, após 30 anos de Estado de Bem-Estar Social, nos países de capitalismo central. Substituição do fordismo por um padrão de acumulação flexível, o que gerou rebatimentos nas relações de trabalho e consumo, com incremento da tecnologia. Como parte desta lógica, refuncionaliza-se também o papel do Estado sob a óptica

  • 10

    A onda conservadora no interior do Serviço Social ganha força também no

    processo formativo que não está imune às mudanças operadas pelo capital. Temos

    visto o aceleramento do tempo de graduação e um novo reforço ao pragmatismo,

    que dificultam a produção e disseminação de um conhecimento crítico (RAMOS;

    SANTOS, 2016). Tal tendência encontra espaço e força na falácia disseminada por

    setores de nossa profissão, que afirmam não haver interlocução entre teoria e

    prática no Serviço Social e por conta disso defendem a necessidade de uma

    formação tecnicista, orientada para e pelos interesses do mercado de trabalho,

    asséptica e desprovida de criticidade. Em última instância, essa tendência se choca

    ao que o Projeto Ético-Político se propõe enquanto projeto de profissão,

    contrariando seus valores, sua matriz teórica, seu posicionamento político.

    Ramos e Santos (2016), também evidenciam que as transformações no

    mundo do trabalho, como a precarização dos vínculos empregatícios, baixos

    salários, perda de direitos e demais fatores que impactam negativamente nas

    condições objetivas e subjetivas para a organização política da classe trabalhadora

    no geral, são processos inerentes à situação dos Assistentes Sociais. Segundo as

    autoras, a dificuldade da base da categoria profissional em se organizar

    coletiva/politicamente também é uma das mediações necessárias para compreender

    o avanço de projetos profissionais que disputam hegemonia com o Projeto Ético-

    Político.

    Netto (1996 apud PAULA 2016) aponta a existência de alguns projetos

    profissionais que disputam hegemonia com o Projeto Ético-Político. Um deles é

    legado da Perspectiva Modernizadora aperfeiçoado pelo neoliberalismo, em que se

    neoliberal, que passa a ser mínimo para o trabalhador, através da retirada de direitos e proteção social. 12

    ”Como qualquer visão de homem e mundo, o pragmatismo constitui-se em um tipo de pensamento que sustenta a práxis cotidiana, já que incorpora uma determinada racionalidade que consiste no modo de pensar a realidade na sua imediaticidade e de agir sobre ela. Disso resulta uma determinada forma de conceber a relação teoria e prática, influenciando a apropriação que os assistentes sociais fazem das teorias sociais, em especial, do marxismo, muitas vezes se confundindo com ele. [...] Constatamos que o pragmatismo é responsável pelo profundo empirismo de que a profissão se nutre e por uma determinada maneira de conceber a relação teoria e prática. Nesta abordagem, assim como no Serviço Social, há uma supervalorização da prática, identificada como pura experiência, dos hábitos e costumes que serão verdadeiros se bem-sucedidos e se servirem à solução imediata de problemas. O pragmatismo é também responsável pelo profundo desprezo que, em geral, alguns profissionais sentem por uma teoria crítica, não por qualquer saber, não pelo saber prático-instrumental, mas por aquele que efetivamente busca os fundamentos e, por

    isso, nem sempre se reverte em respostas imediatas.” (GUERRA, 2013, p.42).

  • 11

    defende uma desresponsabilização do Estado na resposta às expressões da

    questão social, transferindo-as para o chamado “Terceiro Setor”. Há também, um

    projeto descendente da perspectiva reatualização do conservadorismo em que o

    aporte teórico se referencia na fenomenologia. O pensamento pós-moderno

    influencia ainda a existência de um projeto profissional neoconservador. Existem

    outros tantos, como aqueles pautados em valores cristãos e ainda, os que defendem

    um “possibilismo” alicerçado nas configurações das políticas sociais na atualidade.

    Netto (2016) aponta a necessidade de uma elaboração teórica acerca da

    história recente do Serviço Social no Brasil, inclusive de forma a contribuir para o

    fortalecimento da direção social assumida hegemonicamente pela profissão. Nessa

    produção, o autor traz uma importante reflexão para o debate, pois segundo ele, o

    que vem se observando são atuações e defesas de concepções que contrariam os

    valores do Projeto Ético-Político sem, no entanto, se confrontar diretamente com ele.

    Sinaliza ainda, que em nome do pluralismo, equivocadamente, correntes

    conservadoras justificam a coexistência de inúmeras matrizes teóricas divergentes

    para o direcionamento da profissão, resvalando em um completo ecletismo. Dessa

    forma, fica evidente que conhecer as correntes ideológicas em disputa com o Projeto

    Ético-Político se faz urgente e necessário, uma vez que é comum incorrer em

    equívocos quando não se tem clareza das bases teórico-metodológicas e ético-

    políticas que sustentam determinadas análises e práticas.

    Atualmente, um projeto de profissão que vem ganhando destaque no Brasil é

    o Serviço Social Clínico, objeto de análise desse trabalho. Northen (1984 apud

    PAULA 2016, p.166), aponta que nessa perspectiva o Serviço Social atua com

    “problemas” no âmbito das interações interpessoais. Dessa forma, o objetivo da

    profissão seria o “fortalecimento psicossocial dos seus clientes”. No tópico seguinte,

    traremos alguns elementos históricos sobre essa corrente, de forma a compreender

    melhor os seus fundamentos e assim entender tal tendência no interior da profissão.

    APONTAMENTOS HISTÓRICOS SOBRE O SERVIÇO SOCIAL CLÍNICO

    Bravo (2013) aponta que o Serviço Social surge na Inglaterra, no final do

    século XIX, para responder a uma necessidade histórica de institucionalização da

  • 12

    assistência prestada aos trabalhadores. Octávia Hill foi protagonista deste processo

    e “Acreditava no valor da influência pessoal, através do aconselhamento às famílias,

    pelas visitadoras, para obter uma melhor preparação para o trabalho, respeitarem-se

    a si próprios e preocuparem-se com a educação dos filhos” (BRAVO, 2013, p.45).

    Importante destacar que nesse período, o empirismo é que norteia a ação das

    Assistentes Sociais que emergiam. Posteriormente, as influências que marcam a

    profissão são o humanismo e o neotomismo, onde prevalecia a ideia do bem comum

    (BRAVO, 2013).

    Dentro desse espectro conservador que marcou o surgimento do Serviço

    Social, podemos apontar a perspectiva clínica na profissão, a qual Scheffer (2017)

    relaciona com o modelo franco-belga, diretamente ligado à medicina social, na qual

    os condicionantes sociais são considerados no processo saúde-doença, porém as

    expressões da questão social são encaradas como desvios, desajustes, algo

    patológico e, portanto, passível de diagnóstico e tratamento. Ao mesmo tempo em

    que exigia uma intervenção técnica, também carregava traços caritativos e

    benevolentes.

    Outra referência importante para análise do Serviço Social Clínico vem dos

    Estados Unidos, onde segundo Scheffer (2017), um movimento higienista avançava

    e encontrava suporte no protestantismo e no darwinismo social. Mary Richmond se

    destaca como vanguarda intelectual ao sistematizar o que ficou conhecido como

    Serviço Social de Caso. Havia disputas de projetos entre o Serviço Social de Caso

    (conservador) e a proposta de Jane Addams de um Serviço Social reformador que

    visava ações coletivas, críticas e educativas. Enquanto Richmond defendia a

    filantropia para atuar junto às sequelas da questão social, Addams atuava de modo

    a propagar valores no intuito de responsabilizar o Estado para a formulação de

    políticas sociais públicas.

    Um fator interessante apontado por Scheffer (2017) na produção de

    Richmond é que a intelectual se pautou no modelo biomédico como forma de

    legitimar a cientificidade do Serviço Social no campo da saúde. Dessa forma,

    utilizava-se da clínica para justificar e analisar as expressões da questão social

    pautadas por padrões biológicos, incorrendo assim, inclusive, em preconceitos de

    raça e gênero, por exemplo. Concebe-se ainda, o meio social como produtor de

  • 13

    desajustes, sendo a “família desestruturada” e o ambiente em que se vive

    considerados como fatores que causam “problemas” aos indivíduos na convivência

    em sociedade. Tais posicionamentos trazem uma falsa neutralidade à profissão, pois

    não consideram a pobreza como produto da estrutura da sociedade capitalista, mas

    como resultado das escolhas individuais/particulares dos sujeitos. “A ênfase da

    mudança é nos hábitos, atitudes, comportamentos. Tem-se uma visão estereotipada

    da classe trabalhadora, que é apresentada como população negligente, precisando

    ser orientada, com baixo nível de consciência e não participativa” (BRAVO, 2013,

    p.97).

    Hamilton (1982) sistematiza em sua obra sobre o que seria o Serviço Social

    de Casos, trazendo importantes contribuições para entender a relação dessa

    metodologia com a perspectiva clínica da profissão. O autor aponta o caso como

    sendo um processo psicossocial que possui fatores internos e externos, isso

    significa que sob esta óptica a profissão deveria atuar junto às condições objetivas

    de manutenção da vida dos sujeitos e também na forma subjetiva com que os

    “clientes” lidam com as privações, “problemas” etc. Inclusive, o grande mérito que

    Hamilton (1982) atribui à teoria e prática do Serviço Social de Casos é o seu caráter

    “interpessoal”, afirmando que sobre esta configuração a profissão está muito além

    de meramente atender às necessidades materiais de seus “clientes”. Essa

    intervenção no âmbito interpessoal se dá a partir do aconselhamento e da terapia

    que visam o ajustamento, e, portanto, a necessidade de vasto conhecimento no

    campo psicológico é mencionada inúmeras vezes pela autora.

    Um dos valores que Hamilton (1982), traz a respeito do Serviço Social de

    Casos é o “respeito à pessoa humana”, porém sob uma perspectiva muito mais

    humanística do que profissional, menciona inclusive a “ajuda” que o Assistente

    Social deve fornecer ao “cliente” na busca por sua espiritualidade e felicidade. Outro

    aspecto importante de tal literatura é a referência feita à questão da autonomia, que

    na realidade, soa muito mais como uma forma de responsabilizar os sujeitos pelas

    situações degradantes e estruturais as quais estão submetidos.

    Sabe-se que o progresso individual depende, em primeiro lugar, de obter meios de subsistência, de aproveitar as oportunidades e, finalmente, de encarar a realidade imediata, de aceitar responsabilidades e trabalhar não somente contra as limitações, mas também com elas e apesar delas (HAMILTON, 1982, p.24).

  • 14

    As limitações apontadas por Hamilton (1982) são compreendidas como algo

    patológico e as técnicas de ajustamento apontadas anteriormente, “aplicadas” pelo

    Serviço Social na óptica clínica funcionariam como tratamento.

    Após a Segunda Guerra Mundial, o Serviço Social norte-americano absorve

    mais fortemente as influências da psiquiatria e da psicanálise, profissionais com os

    quais atuava em equipe nas clínicas e consultórios, como forma de responder a uma

    necessidade do mercado, que demandava profissionais habilitados a lidar com os

    traumas dos soldados sobreviventes do conflito (SCHEFFER, 2017). A ideia era

    reabilitar os mesmos, para que pudessem voltar a produzir para o capital.

    Bravo (2013, p. 67) aponta que na década de 1950, nos países centrais,

    “defende-se que o bem-estar pode ser alcançado no plano individual, desde que

    cada aspecto da vida seja regulado, cabendo esta missão ao profissional de saúde”.

    Nesse período, emerge o Desenvolvimento de Comunidade13, do qual o Serviço

    Social foi parceiro. Porém, apesar de um caráter mais coletivo, esse tipo de

    intervenção se apresentava como neutra e apolítica, cortinando as expressões da

    questão social, por pautar-se em preceitos funcionalistas. Dessa forma, a sociedade

    era compreendida como um todo que se organizava a partir de sistemas, que

    precisavam funcionar em harmonia e para a qual os indivíduos deveriam se

    direcionar (BRAVO, 2013). Apesar dessas experiências, a autora aponta que a

    participação dos Assistentes Sociais da saúde na época, esteve muito mais

    vinculada à prática clínica, propriamente dita, onde o propósito era o

    desenvolvimento da personalidade.

    É também neste momento, segundo Bravo (2013), que ocorre o

    estabelecimento das comunidades terapêuticas14 no mundo da psiquiatria, onde a

    principal função dos Assistentes Sociais era a realização de trabalhos com as 13

    Na entrada dos anos de 1950, há o avanço do capitalismo monopolista e com ele o surgimento da ideologia desenvolvimentista. Nesse momento, há forte entrada de capital estrangeiro no Brasil, com o intuito de alavancar a industrialização e efetuar a dominação política, uma vez que o capitalismo necessitava se consolidar nos países periféricos diante da ameaça socialista no contexto pós-Segunda Guerra Mundial. As principais estratégias para superar o subdesenvolvimento eram políticas pautadas no Desenvolvimento de Comunidade (PAULA, 2016).

    14 Segundo Sabino e Cazenave (2005, p.168), são instituições que possuem como objetivo ”dar uma

    resposta aos problemas provenientes da dependência de drogas, possuindo assim um ambiente que necessariamente é livre das mesmas e uma forma de tratamento em que o paciente é tratado como o principal protagonista de sua cura. [...] Os objetivos das CT não são só os resultados do tratamento, mas também as consequências de uma reabilitação social envolvendo intervenção também em outros locais fora do espaço da CT.”

  • 15

    famílias e com os pacientes no sentido de integrá-los à instituição e posteriormente,

    à comunidade, sempre na perspectiva da adaptação à ordem posta.

    Northen (1984, p.27), menciona que na década de 1960 despontavam

    intelectuais que defendiam que “os objetivos profissionais do ensino em serviço

    social deviam ser os de formar um clínico e um especialista em bem-estar social”.

    Nessa lógica do bem-estar social, ganha destaque a preocupação com o contexto

    social, mas sempre tendo como pressuposto de intervenção uma prática clínica de

    diagnóstico e tratamento.

    Na produção de Northen (1984, p.15), fica clara a influência da perspectiva

    funcionalista, quando afirma que

    A principal orientação teórica é a dos sistemas sociais, que incorpora a

    compreensão de um indivíduo como um sistema biopsicossocial,

    interagindo com uma rede de indivíduos e sistemas sociais. Enfatiza as

    relações psicossociais entre pessoas e a interdependência entre as

    pessoas e seus ambientes.

    Nessa produção teórica, publicada originalmente nos EUA em 1982, Northen,

    fez um esforço sistemático para defender sua tese de que a prática do Serviço

    Social Clínico poderia ser aplicada a todas as modalidades até então desenvolvidas:

    Caso, Grupo e Comunidade. Falava-se então sobre um Serviço Social Genérico,

    pois através do entendimento da sociedade como todo composto por sistemas que

    se inter-relacionam, seria necessário a análise e intervenção junto aos “clientes” no

    aspecto individual, grupal/familiar e na sua relação com o meio/comunidade em que

    viviam. Na busca de uma identidade profissional comum, pautava-se em visões

    holísticas, respaldadas em conhecimentos psicológicos: “Neste modelo de prática, o

    objetivo é efetuar mudanças positivas nas interações e transações entre pessoas,

    mais especificamente definido como o fortalecimento psicossocial e a prevenção e

    tratamentos dos problemas nas relações psicossociais” (NORTHEN, 1984, p. 29).

    Merece destaque a questão da prevenção em Northen (1984), em que

    trabalha a importância de ações a serem realizadas com os sujeitos considerados

    “normais”, mas que por alguma razão, estejam inseridos em um grupo considerado

    de risco, para que sejam evitados “desajustamentos”. Pauta-se na ideia de atender

    às necessidades antecipadamente, para que não se tornem problemas e possa-se

    promover o desenvolvimento “normal e harmonioso” de

  • 16

    indivíduos/grupos/comunidades. A autora menciona que essa ideia da prevenção foi

    incorporada ao Serviço Social Clínico por influência da saúde pública e da

    psiquiatria, de onde foram copiados os modelos de prevenção baseados nos

    aspectos biológicos/orgânicos. É importante mencionar que novamente, como uma

    forma de se legitimar socialmente, o Serviço Social vai buscar nas discussões

    promovidas no âmbito da saúde em geral, referências para a sua atuação. A

    inserção do aspecto da prevenção coincide e pode ter sido influenciada pelas

    discussões que passam a conceber a multicausalidade no processo de

    adoecimento, que inclusive vão modificar o conceito de saúde no mundo, após a

    realização da Primeira Assembleia da Organização Mundial da Saúde em 1948

    (BRAVO, 2013). Todavia, dessa “importação” de conceitos e ideias, sem a reflexão

    sobre a natureza da profissão, resulta um equívoco, de que a prevenção dos

    “problemas sociais” deveria ser trabalhada via alteração de comportamento dos

    indivíduos/grupos/comunidades atendidos pelo Serviço Social.

    No Brasil, nos primórdios da institucionalização do Serviço Social, a profissão

    foi demandada na saúde para intervir em questões de higiene e propor medidas

    educativas, essa prática recebeu o nome de Serviço Social Médico (BRAVO, 2013).

    As funções exercidas pelos profissionais eram: triagem socioeconômica, elaboração de fichas informativas sobre o cliente para ajudar o médico no tratamento, distribuição de auxílios financeiros para possibilitar a ida do cliente à instituição médica, conciliação do tratamento com os deveres profissionais do cliente mediante entendimentos com o empregador, cuidado com relação aos fatores emocionais e psicológicos do tratamento, adequação do cliente à instituição com a obtenção de sua confiança (BRAVO, 2013, p.156).

    Diante do que a autora relata, podemos observar que a atuação na área da

    saúde pelo Serviço Social, naquela época, deu-se majoritariamente, sob uma

    perspectiva clínica, pois os aspectos emocionais, psicológicos e de adaptação à

    ordem posta sobressaem no discurso e ação da profissão, aliados às respostas

    fragmentadas, parciais e imediatistas às demandas relacionadas às condições

    materiais da vida dos sujeitos.

    No período de 1945 a 1964, o contexto nacional, influenciado pelo que

    acontecia em escala mundial, desencadeou mudanças no mercado de trabalho e no

    processo de inserção do Serviço Social no mesmo. O fim da Segunda Guerra

    Mundial reordenou o panorama econômico e social, demandando do Estado maior

  • 17

    intervenção na reprodução da força de trabalho e este por sua vez buscou no

    Assistente Social o profissional responsável pelo disciplinamento e ajustamento

    psicossocial dos trabalhadores (BRAVO, 2013). É também neste espaço temporal

    que o Serviço Social norte-americano ganha enorme destaque no Brasil e que suas

    referências teórico-metodológicas influenciam decisivamente na formação e prática

    do Serviço Social brasileiro. Expressões importantes dessa influência foram os dois

    Congressos Brasileiros de Assistentes Sociais realizados nessa época, o primeiro

    em 1947 e o segundo em 1961. Em ambos os encontros da categoria, houve o

    grupo de discussão chamado “Serviço Social Médico” e o que se pode destacar é

    que no geral, a perspectiva clínica impregnou o discurso dos profissionais envolvidos

    de forma bastante incisiva. Como objetivo da ação profissional dos Assistentes

    Sociais aparece “relacionar a doença aos aspectos emocionais, psicológicos e

    sociais [...] O conhecimento da personalidade é salientado como a grande

    contribuição do Serviço Social à Medicina” (BRAVO, 2013, p. 163-164).

    Esses breves apontamentos sobre a história do Serviço Social Clínico nos

    permitem observar que tal movimento no Brasil, foi influenciado por processos

    históricos que ocorreram nos países centrais. Além disso, foram importados

    referenciais teóricos e metodologias de intervenção sem se considerar as

    particularidades históricas da formação social brasileira e isso tem rebatimentos para

    nossa profissão até os dias atuais, como iremos evidenciar no tópico posterior. Após

    o processo de renovação do Serviço Social brasileiro, fica menos evidente em nossa

    literatura a existência do projeto clínico na profissão, porém isso não significa que

    ele tenha se extinguido. A seguir traremos algumas reflexões a respeito.

    REFLEXÕES TEÓRICAS SOBRE A DEFESA DO SERVIÇO SOCIAL

    CLÍNICO NA ATUALIDADE

    No Brasil, podemos afirmar que o Serviço Social Clínico, na atualidade,

    possui interferências da corrente fenomenológica que sustentava a renovação

    conservadora, enquanto corrente do Processo de Renovação do Serviço Social

    (SCHEFFER, 2017). Tal aproximação com a fenomenologia não ocorreu isenta de

    equívocos, havendo certa vulgarização da teoria. O elemento central do trabalho do

    Assistente Social, nessa perspectiva passa a ser a ajuda psicossocial, por meio da

  • 18

    qual ouve e dialoga com o “cliente”. Ainda segundo Scheffer (2017), o elemento da

    ajuda presente nessa corrente encontra forte traço na formação sócio-histórica

    brasileira, marcada pelo elemento do favor, sobressaindo à lógica do direito.

    Bonfim (2015) vai buscar no processo de colonização, no período da

    escravidão e na transição para o capitalismo, as razões para a persistência do

    autoritarismo disfarçado de ajuda na sociedade brasileira e consequentemente em

    alguns setores do Serviço Social na atualidade. Não menos importante que os

    elementos já citados, é necessário lembrar também do papel da Igreja Católica e de

    sua contribuição à construção da moralidade brasileira.

    Outro valor questionado pelo pensamento conservador é a autonomia dos sujeitos. Aqui aparece a ideia de que os homens precisam ser tutelados, devendo suas vontades ser subordinadas àqueles que conduzem a sociedade [...]. No que se refere à laicização do Estado, nem mesmo esse princípio conseguiu se consolidar no Brasil. Isso pode ser verificado tanto no peso dos valores cristãos na sociedade brasileira quanto na atual presença, no Congresso Nacional, de partidos ligados a religiões. Por todas essas características é que afirmamos que a moral brasileira se constitui predominantemente por valores conservadores. Esses podem ser evidenciados nas mais diferentes ações: na naturalização, moralização e criminalização da “questão social” [...]; na persistência da lógica do favor; e na sua expressão mais cotidiana “o jeitinho brasileiro” (BONFIM, 2015, p 96-97).

    O lugar do Brasil na dinâmica do capitalismo internacional, como sendo um

    país periférico e economicamente dependente, é fator determinante para que

    historicamente haja uma importação das ideias e valores dos países de capitalismo

    central, sem, no entanto, vivenciar os mesmos processos que estes (BONFIM,

    2015). Ou seja, existe uma tentativa sistemática de aplicar na realidade brasileira

    modelos que não fazem sentido na dinâmica das relações sociais aqui existentes,

    como é o caso, por exemplo, do próprio Serviço Social Clínico.

    Paula (2016) nos mostra que essa imagem/autoimagem de profissão

    defendida pelos representantes do Serviço Social Clínico é problemática porque

    despolitiza circunstâncias objetivas da vida dos sujeitos, que são produzidas e

    reproduzidas de forma estrutural na sociedade burguesa. Ou seja, tal projeto de

    profissão, se propõe a um diagnóstico/tratamento social no campo da adaptação à

    ordem posta, colocando os sujeitos como disfuncionais a ela. É como também

    aponta Bravo (2013, p.47): “O aconselhamento volta-se para a mudança na maneira

    de ser, de sentir, de ver e de agir dos indivíduos, buscando sua adesão aos valores

    dominantes”.

  • 19

    Os apontamentos críticos trazidos pelas autoras mencionadas acima, ficam

    explícitos quando Northen (1984) apresenta o que seria o objetivo do Serviço Social

    numa perspectiva clínica. Inúmeras vezes em sua produção, Northen (1984) reitera

    que o âmbito da atuação do Serviço Social deve ser o funcionamento psicossocial,

    as relações humanas interpessoais e as relações com o seu ambiente. Segundo ela,

    os “problemas sociais” vivenciados pelos clientes são produto de vivências

    relacionais anteriores que o impediram de realizar o seu potencial.

    O desenvolvimento do serviço social como uma prática profissional resultou do reconhecimento de que as necessidades para as quais os serviços sociais foram originalmente criados, tais como as de manutenção da renda ou da assistência institucional, eram mais do que necessidades de renda adequada, alimento, moradia, ou assistência médica, por mais importantes que fossem. Grace Coyle disse que “o momento decisivo no desenvolvimento do serviço social surgiu com o reconhecimento que, acompanhado de tais necessidades, algumas vezes como causa e outras como efeito, estavam os problemas nas relações psicossociais”. O termo “relações psicossociais”, como foi usado por Coyle, refere-se não somente às relações intrapsíquicas dos indivíduos em suas relações com as outras pessoas, mas também às condições ou situações sociais que contribuem para a infelicidade ou disfunção social (NORTHEN, 1984, p.30).

    Conforme foi possível observar no fragmento acima, percebemos que nessa

    perspectiva de profissão, considera-se que as condições objetivas têm um impacto

    para a saúde mental dos sujeitos, e até aí estamos de acordo. O que é necessário

    pontuar é que, em primeiro lugar, existe um profissional com competência técnica

    para atuar diretamente na dimensão subjetiva que as condições objetivas impõem

    para a vida dos sujeitos, e esse profissional é o Psicólogo. O que podemos e

    devemos, enquanto Assistentes Sociais é contribuir para que a análise da condição

    da vida material dos sujeitos seja considerada como rebatimento para a produção de

    adoecimentos, não só no que se refere à saúde mental, mas também em outros

    aspectos.

    Nossa intervenção está ainda, na possibilidade de orientar/informar/viabilizar

    direitos, que minimamente possam produzir acesso a condições mais dignas de

    sobrevivência nessa sociabilidade. Também, nunca é demais lembrar que nossa

    formação em Serviço Social nos permite fazer a análise desses fenômenos da vida

    material que aparecem de forma fragmentada no cotidiano do público que

    atendemos, como expressões de uma dinâmica estrutural, que é a forma como o

    capital se apropria do trabalho alheio, produzindo e reproduzindo desigualdades. Por

    último, e não menos importante, por fazermos essa leitura de realidade, pautada

  • 20

    numa perspectiva marxista, não podemos compreender que as

    dificuldades/precariedades pelas quais passa a classe trabalhadora são resultado de

    seus traumas emocionais, como sugerem os Assistentes Sociais alicerçados no

    projeto do Serviço Social Clínico.

    Um dado trazido por Rodrigues (2009 apud PAULA 2016) é de que os

    defensores dessa prática clínica, em geral, são Assistentes Sociais de formação que

    buscaram especializações nas áreas da psicanálise, terapia familiar e outras do

    gênero. Nesse sentido o CEFESS publicou uma resolução após ampla discussão

    com a categoria (569/2010), vedando as práticas clínicas/terapêuticas vinculadas ao

    título de Assistente Social, por não haver na formação graduada elementos que

    ofereçam competências técnicas para tal. Conforme Paula (2016), o CEFESS não

    nega a dimensão da subjetividade no trabalho profissional do Serviço Social, apenas

    corrobora que não é este nosso objeto e, portanto, não é atribuição da profissão a

    realização de práticas terapêuticas.

    Scheffer (2017) relata que os defensores do Serviço Social Clínico no Brasil

    utilizam em sua defesa as experiências em outros países, onde as práticas

    terapêuticas no Serviço Social são reconhecidas e ainda, o histórico de intervenção

    com as famílias. Falta considerar, no entanto, as particularidades da formação sócio-

    histórica brasileira e ainda, a forma como o Movimento de Reconceituação da

    América Latina rebateu na Renovação do Serviço Social, reconfigurando a profissão

    no Brasil de forma incompatível com o Serviço Social Clínico.

    Faleiros (2009) defende que não há na Lei de Regulamentação da Profissão

    (Lei 8662/1993), impedimentos diretos à realização de práticas terapêuticas no

    Serviço Social, e dessa forma, entende que a ementa de resolução sobre vedação

    de utilização de práticas terapêuticas por parte do CFESS, que depois viria a se

    tornar a resolução CEFESS nº 569/2010 seria incompatível com o que se preconiza

    no Art. 1º da legislação que rege o exercício profissional do Assistente Social “É livre

    o exercício da profissão de Assistente Social em todo o território nacional,

    observadas as condições estabelecidas nesta lei” (BRASIL, 1993).

    Cabe refletir, no entanto, que a escolha por uma prática clínica no âmbito da

    intervenção do Assistente Social se choca com aquilo que a profissão elegeu como

    referencial teórico-metodológico e com os compromissos éticos e políticos

  • 21

    assumidos, de forma histórica e coletiva. Não têm sido raras as compreensões

    equivocadas em torno do pluralismo que nosso projeto profissional hegemônico

    garante, como se em nome dele qualquer defesa teórica fosse válida, mesmo que

    seja contrária aos seus próprios valores. É urgente ressaltar que apesar de plural, o

    Projeto Ético-Político não é eclético e que tal confusão acaba por enfraquecê-lo em

    sua essência. Como já dito no decorrer desse trabalho, deslocar para os sujeitos

    usuários dos serviços a responsabilidade por suas condições de vida é

    desresponsabilizar o modo de produção capitalista pela reprodução estrutural das

    desigualdades.

    Há, além disso, em Faleiros (2009), outros elementos que, ainda que não

    tenham sido muito explorados pelo autor, são utilizados para questionar a proibição

    da prática clínica no Serviço Social. São mencionados como impactos negativos a

    não ampliação do mercado de trabalho para os Assistentes Sociais e prejuízos para

    os usuários. Precisamos analisar com cautela tal ponto de vista, pois não seria

    responsável investir numa ampliação do mercado de trabalho sem possuir de fato a

    formação para atuar no âmbito que se pretende. Diferente do que defende Faleiros

    (2009), pensamos que o usuário não perde com a vedação da prática terapêutica

    vinculada ao exercício profissional dos Assistentes Sociais. É pensando

    principalmente na qualidade do atendimento prestado a ele, que o CEFESS

    compreende que existem outros profissionais que possuem competência técnica

    para atuar nos aspectos subjetivos, emocionais e mentais da vida dos sujeitos, como

    a Psicologia, por exemplo.

    O que justifica a existência da profissão de Serviço Social é exatamente o que

    ela possui de conhecimento específico, que é a atuação no âmbito do acesso aos

    direitos, promovendo impactos nas condições objetivas no que tange à reprodução

    da vida da população usuária dos serviços. Não é desconsiderado que a atuação do

    Serviço Social também perpassa os aspectos subjetivos de como esses sujeitos se

    relacionam com o mundo, seu território, sua família, mas este não é o nosso objeto

    de intervenção. Pautar a prática profissional em uma perspectiva clínica é, além de

    tudo, privar o usuário do acesso às intervenções que de fato são matéria do Serviço

    Social.

  • 22

    Outro ponto problemático na argumentação de Faleiros (2009) é a questão da

    formação generalista. Defende que neste tipo de formação, os profissionais têm o

    direito de escolher se especializar em determinada área, e a clínica seria uma delas.

    Ora, é preciso ter cautela ao tratar deste assunto, uma vez que o direito à

    especialização em determinada área ou política, deve ser pensado de forma que

    não se choque com a formação generalista em si. A formação em Serviço Social

    fornece a capacidade de leitura e análise da realidade sob uma determinada óptica e

    as competências éticas e técnicas para intervenção nessa realidade. Esse é o

    pressuposto básico, porém sabe-se que cada espaço sócio-ocupacional tem suas

    especificidades e por isso, o profissional pode e deve se apropriar de leituras, cursos

    de aperfeiçoamento e até mesmo especializações que permitam o aprofundamento

    em temáticas presentes na sua prática e/ou que sejam de seu interesse. Mas cabe

    pontuar que a defesa feita por Faleiros (2009) é a possibilidade de um

    aprofundamento teórico e consequentemente, uma intervenção profissional que vai

    à contramão da matriz teórica que a profissão elegeu como referência, a tradição

    marxista.

    Em suma, o que podemos extrair como elemento central sobre o debate é

    que a utilização da técnica da terapia/clínica pelo Serviço Social é totalmente alheia

    à formação profissional que tem como centralidade a questão social e as suas

    expressões (MOREIRA, 2014). Tendo feito esse destaque imprescindível em nossa

    discussão, no próximo tópico traremos nossas impressões acerca do “II Seminário

    Serviço Social Clínico - Um Debate Inadiável”.

    ANÁLISE DO II SEMINÁRIO SERVIÇO SOCIAL CLÍNICO

    Para análise do Serviço Social Clínico enquanto uma defesa de projeto

    profissional, tivemos acesso aos registros audiovisuais do “II Seminário Serviço

    Social Clínico - Um Debate Inadiável” promovido pelo Sindicato de Assistentes

    Sociais do Rio Grande do Sul (SASERS) no dia 24 de maio de 2018. Sendo assim,

    traremos algumas observações sobre tal material apresentadas em subeixos para

    melhor desenvolvimento da discussão.

  • 23

    Considerações sobre os Sindicatos de Assistentes Sociais

    Um dado que merece destaque é o fato de os Sindicatos de Assistentes

    Sociais serem um dos principais defensores do Serviço Social Clínico, tendo como

    uma de suas justificativas centrais a ampliação do mercado de trabalho para a

    profissão. Porém, conforme nos aponta Paula (2016), a própria organização de

    Assistentes Sociais em sindicatos é um ponto problemático para a profissão na

    atualidade. Em sua obra, a autora sinaliza o papel que hoje cumpre a FENAS

    (Federação Nacional dos Assistentes Sociais), criada em 2000 com o objetivo de

    reorganizar a categoria no âmbito político e sindical. Essa instituição contraria uma

    decisão tomada pela categoria em 1989, momento no qual se optou pela

    organização por ramo de atividade, com o intuito de fortalecer a luta coletiva da

    classe trabalhadora, o que corrobora com o objetivo final de nosso Projeto Ético-

    Político, que é a superação da ordem capitalista.

    A polêmica em torno da organização político-sindical dos Assistentes Sociais

    reside no fato de que a Central Única dos Trabalhadores (CUT), central sindical

    ligada ao Partido dos Trabalhadores (PT), que no fim da década de 1980 eram

    importantes intelectuais orgânicos da classe trabalhadora e possuíam como princípio

    a revolução socialista, passaram por uma mutação relacionada com sua busca e

    chegada ao poder, que redirecionou totalmente a essência do partido e da central

    sindical. O PT e a CUT então, em nome de uma governabilidade, se

    institucionalizam, se burocratizam e perdem seu potencial revolucionário presente no

    sindicalismo de base (PAULA, 2016).

    Dessa forma, a organização por ramo de atividade foi algo que se perdeu

    durante o caminho, ficando inconclusa, de fato. A FENAS defende que a

    organização dos Assistentes Sociais em sindicatos da categoria é necessária, dada

    a precarização das relações/condições/organização do trabalho a que estes

    profissionais estão submetidos e contra a qual é preciso lutar. Acontece que a

    FENAS possui como objetivo profissional um outro projeto que não é aquele

    defendido hegemonicamente pela categoria. Diretamente ligada ao PT, – que esteve

    no governo federal até o Golpe de 201615 - cooptado pelo reformismo, a FENAS

    15

    Michel Temer (PMDB) foi reeleito vice-presidente em 2014 através da chapa formada por ele e Dilma Rousseff (PT), então presidente. Tal processo eleitoral foi marcado por uma disputa bastante acirrada entre a

  • 24

    enquanto representante dos Sindicatos de Assistentes Sociais pauta a atuação

    profissional do Serviço Social no objetivo da política social, em especial na política

    de Assistência Social, com destaque para o Programa Bolsa Família (PAULA, 2016).

    Aqui é necessário ter a clareza de que apesar de ser principalmente através das

    políticas sociais que se dá o trabalho dos Assistentes Sociais no Brasil, elas não se

    confundem com o Serviço Social. Uma vez que a política social possui uma

    dimensão contraditória de atendimento das necessidades do capital e do trabalho,

    visando a manutenção da existência da ordem burguesa e o Serviço Social no

    Brasil, apesar de também atender a interesses antagônicos, optou, coletivamente,

    por direcionar a profissão para o atendimento dos interesses históricos da classe

    trabalhadora.

    Após tal panorama a respeito dos Sindicatos de Assistentes Sociais no Brasil,

    pontuamos que a defesa da prática clínica enquanto ampliação do mercado de

    trabalho para a profissão é irresponsável e rasa. Entendemos, dessa maneira,

    porque como já foi dito no decorrer deste trabalho, a psique não é o objeto de

    trabalho do Serviço Social e entende-se que tal defesa é, antes de tudo,

    corporativista, pois visa um suposto “benefício” para a categoria sem refletir sobre os

    danos que tal projeto traz à história, legado e imagem do Serviço Social. É por essa

    razão que o CEFESS, por meio da resolução 569/2010, não proíbe que os

    Assistentes Sociais se especializem na área clínica, apenas veda que tais terapias

    estejam vinculadas à prática e ao título de Assistente Social, uma vez que essas

    intervenções fazem parte de um projeto que descaracteriza o papel político, teórico e

    operacional que a profissão assume na realidade brasileira. Nas palavras de

    Iamamoto (2014, p.227):

    [...] o projeto profissional (crítico) não foi construído numa perspectiva meramente corporativa, voltada à autodefesa dos interesses específicos e imediatos desse grupo profissional centrado em si mesmo. Não está exclusivamente voltado para a obtenção da legitimidade e status da categoria na sociedade inclusiva – e no mercado de trabalho em particular – de modo a obter vantagens instrumentais (salários, prestígio, reconhecimento de poder no

    referida chapa e a liderada por Aécio Neves (PSDB). O governo Dilma já se encontrava abalado, desde as manifestações de 2013, quando multidões foram às ruas de forma apartidária reivindicar por melhorias nas políticas públicas e criticar os gastos governamentais com os eventos das Copas das Confederações e do Mundo, sediadas no Brasil. O ano de 2015 também foi marcado por intensas manifestações contra o governo Dilma por parte das classes médias e altas. Temer e seu partido se articularam aos setores mais conservadores do Congresso e Senado e em 31/08/16, a presidente Dilma sofreu impeachment, sob a acusação de pedaladas fiscais.

  • 25

    conceito das profissões). Ainda que abarque a defesa das prerrogativas profissionais e dos trabalhadores especializados, o projeto profissional os ultrapassa porque é histórico e dotado de caráter ético-político, que eleva esse projeto a uma dimensão de universalidade.

    A citação da autora traz a clareza necessária para tratar de nossas

    reivindicações enquanto categoria: a percepção de que elas devem estar articuladas

    ao conjunto de lutas sociais da classe trabalhadora, uma vez que é com este avanço

    coletivo que nosso Projeto Ético-Político se compromete.

    Características da formação dos Assistentes Sociais Clínicos e o

    Serviço Social Clínico como realidade no mundo

    Um apontamento importante é de que os profissionais chamados a proferir

    suas falas no “II Seminário Serviço Social Clínico - Um Debate Inadiável” possuem

    pós-graduações em áreas distintas ao Serviço Social e ainda, formações em outros

    países, onde o Serviço Social Clínico e as práticas terapêuticas são intervenções

    hegemônicas e consolidadas como, por exemplo, Estados Unidos e Espanha. Esses

    dados corroboram o que evidenciamos anteriormente sustentados em Rodrigues

    (2009 apud PAULA 2016) e Scheffer (2017), demonstrando que tal projeto de

    profissão se alicerça em um emaranhado de teorias conflitantes entre si e que

    desconsideram as características da formação sócio-histórica brasileira, assim como

    as especificidades do desenvolvimento histórico da profissão no país.

    Dito isto, não surpreende o fato de que dentro do próprio Serviço Social

    Clínico existam contrassensos. Alguns setores argumentam que as práticas

    terapêuticas podem e devem coexistir com o Projeto Ético-Político hegemônico e

    pautam essa defesa na pluralidade que esse projeto assegura sem compreender, no

    entanto, que a convivência desta corrente dentro do campo crítico, além de eclética,

    vai contra aos valores defendidos por ele. Nas palavras de Coutinho (1991, p.13):

    [...] no terreno da ciência, natural ou social, o pluralismo não pode implicar o ecletismo ou relativismo [....]. É através da troca de ideias, da discussão com o diferente, que podemos afirmar nossas verdades, fazer com que a teoria se aproxime o mais possível do real. Não há ciência que esgote o real, pois a ciência é sempre aproximativa. Então é absolutamente necessário o debate de ideias [...], mas isso, a meu ver, não implica e não pode implicar no ecletismo. Isto é: não se pode pensar em conciliar pontos de vista inconciliáveis, em nome do pluralismo. Não é isso que o pluralismo tem a nos oferecer no terreno da ciência.

  • 26

    Outro equívoco em relação ao pluralismo, apontado no material analisado, é

    que alguns profissionais entendem que não é possível que o mesmo coexista com

    uma corrente hegemônica, demonstrando ausência de compreensão do que seja a

    hegemonia sob uma perspectiva gramisciana. Alicerçados em Coutinho (1992),

    compreendemos que a hegemonia, no aspecto aqui elencado, funciona como uma

    direção intelectual e moral. E, portanto, a corrente teórica que norteia o Serviço

    Social não representa uma imposição ou a vontade da maioria, mas o

    direcionamento de aspectos valorativos e princípios que estão ligados a um projeto

    de sociedade que é progressista e que vem influenciando ideologicamente as

    vanguardas da profissão nos últimos 40 anos, após a “virada” crítica a qual se

    submeteu. Iamamoto (2014, p. 227) aponta:

    [...] o pluralismo propugnado não se identifica com sua versão liberal, na qual todas as tendências profissionais são tidas como supostamente paritárias, mascarando os desiguais arcos de influência que exercem na profissão e os vínculos que estabelecem com projetos societários distintos e antagônicos, polarizados seja pelos interesses do grande capital, seja pela construção da unidade política dos trabalhadores enquanto classe.

    Na primeira mesa do evento, é realizado um panorama do Serviço Social em

    diversos países, com o objetivo de convencer os participantes de que a prática

    clínica é uma realidade no mundo todo e que, portanto, não haveria razões para que

    no Brasil, ela não pudesse ser aplicada na intervenção profissional dos Assistentes

    Sociais. A palestrante, em dado momento, afirma que a essência de uma profissão é

    algo universal e que dessa forma, vedar a prática do Serviço Social Clínico no Brasil

    seria uma espécie de autossabotagem que o CFESS vem cometendo.

    São mencionadas experiências de países da América do Sul, América do

    Norte e Europa, cada qual com suas especificidades e exigências próprias para a

    prática dos Assistentes Sociais Clínicos. É possível observar que o cenário é

    extremamente diverso: há países como os EUA, onde o Serviço Social Clínico se

    organiza em associações e atende em consultórios particulares credenciados por

    planos de saúde, mas há também a experiência do Chile onde não há uma ideologia

    hegemônica e “nenhuma prática particular é censurada”, nas palavras da

    profissional. Enfim, nota-se que apesar da gênese da profissão ser a mesma e

    possuir como objeto a questão social em suas variadas expressões, cada país, ao

    longo de sua história, requisitou intervenções diferenciadas dos Assistentes Sociais.

    Além disso, a profissão não se realiza deslocada da realidade, o contexto

  • 27

    econômico, social e político de cada lugar do globo terrestre, e a forma como

    profissão se organizou e se desenvolveu em cada espaço é própria e única. Importar

    metodologias sem considerar a realidade local, é algo sobre o qual a profissão já se

    debruçou criticamente e superou como aponta Iamamoto (2014) em relação às

    tendências regressivas no interior da profissão.

    A prática clínica como busca por legitimidade no campo da saúde

    Em determinado momento do vídeo em questão, a prática clínica é

    mencionada como uma saída para o lugar de subalternidade que o Serviço Social

    ocupa nas equipes multiprofissionais de saúde. É utilizado como argumento que nas

    chamadas “reuniões clínicas”16, o Assistente Social não tem contribuições teóricas e

    técnicas a oferecer, ficando relegado às atividades menos especializadas como

    contactar familiares, passar recados etc. Façamos uma breve reflexão sobre essa

    colocação.

    Em primeiro lugar, apoiados na análise de Bonfim (2015), temos que apesar

    de a legislação que norteia a política de saúde no Brasil ser bastante crítica e estar

    alicerçada nos princípios da Reforma Sanitária que considera os determinantes

    sociais como aspectos condicionantes no processo saúde-doença, ainda hoje

    predomina no cotidiano dos serviços de saúde o projeto privatista e o modelo

    biomédico. Dessa forma, o conhecimento biológico, centrado na doença e a análise

    do indivíduo fora do seu contexto social, tende a ser a máxima das reuniões de

    equipe multiprofissional que se dedicam, especialmente, a discutir as comorbidades

    sem analisar sua relação com o processo de trabalho, território, acesso a serviços e

    outros fatores que impactam na vida dos sujeitos que adentram os serviços de

    saúde. Dessa forma, devemos nos lembrar que o movimento a ser feito pelos

    Assistentes Sociais precisa ser contrário ao que se propõe o Serviço Social Clínico.

    As tarefas burocráticas mencionadas pela profissional como as razões para a

    subalternidade do Serviço Social são de fato, demandas equivocadas para a

    profissão. A demanda real para o Serviço Social no campo da saúde deve ser

    16

    Termo utilizado pela palestrante. Por nossa experiência no campo da saúde, supomos se tratarem de reuniões voltadas às discussões de caso pelas equipes multiprofissionais, compostas por diversas áreas como: Medicina, Enfermagem, Serviço Social, Fisioterapia, Psicologia e outras.

  • 28

    exatamente o que ele traz de diferencial, o que acrescenta na discussão dos

    determinantes sociais em saúde, e que nenhum outro profissional das demais áreas

    possui formação acadêmica para fazê-lo de forma tão qualificada. Para sair do lugar

    de subalternidade que muitas vezes o Serviço Social ocupa nas equipes de saúde, é

    preciso mostrar a identidade da profissão, elucidar e reafirmar aos nossos colegas

    de que o que fazemos é imprescindível e insubstituível, e isso se faz quando nos

    capacitamos e nos aprofundamos no que de fato é nosso, e não quando buscamos

    absorver demandas alheias ao objeto da profissão.

    Principais referências e concepções de profissão para o Serviço Social

    Clínico

    A principal referência citada pelos Assistentes Sociais Clínicos presentes no

    evento é Sigmund Freud, conhecido como o pai da Psicanálise. Coutinho (1991, p.

    13), produziu um trecho brilhante sobre a incompatibilidade teórico-metodológica da

    análise dos fenômenos sociais sob uma perspectiva Freudiana e Marxista

    concomitantemente:

    Se dizemos que é verdade que a história se explica pela luta de classes, não podemos dizer que é também verdade, como diz Freud, que os conflitos decorrem do aumento da repressão sexual, e como tal, do aumento da agressividade. São posições absolutamente incompatíveis.

    Desse fragmento, tiramos a nossa compreensão já afirmada e reafirmada ao

    longo deste trabalho de que não se pode explicar a origem das expressões da

    questão social sob um ponto de vista subjetivo ao mesmo tempo em que as explica

    sob um viés que é estrutural. Um posicionamento anula o outro. Assim como

    Coutinho (1991), não estamos dizendo que a obra de Freud sob diversos aspectos

    da subjetividade humana não é relevante, muito pelo contrário. O que demarcamos

    aqui é que o Serviço Social brasileiro direcionou todo o seu projeto profissional e

    formativo para uma perspectiva marxista, por entender, coletivamente, que ela

    explica como nenhuma outra, a realidade, desvelando os fenômenos e a raiz das

    desigualdades sobre a qual a profissão atua. Dessa forma, utilizar-se de fontes

    como Freud e outras citadas no evento, como Mary Richond, Virginia Satir e Clare

    Winnicott, para explicar a pobreza, o conflito e a violência, enquanto fenômenos

  • 29

    sociais é incoerente frente ao projeto de profissão que se defende

    hegemonicamente.

    Algumas falas ao longo do Seminário chamaram nossa atenção em especial,

    por apresentarem uma autoimagem de profissão que colide diretamente com o que

    se propõe o Serviço Social brasileiro na atualidade. Merece destaque um

    apontamento feito de que o Serviço Social Clínico se destina às pessoas que lutam

    por uma vida digna e fracassam, como se a ausência do que se tem construído pela

    imagem de uma vida bem sucedida na sociedade capitalista fosse culpa dos sujeitos

    que pela própria organização das relações sociais estão privados de acessar

    posições privilegiadas. Como aponta Netto (2007, p.45), “ao naturalizar a sociedade,

    a tradição em tela é compelida a buscar uma especificação do ser social que só

    pode ser encontrada na esfera moral [...] - e eis que se franqueia o espaço para a

    psicologização das relações sociais”.

    Além disso, há em vários momentos da explanação, a afirmação de que o

    Serviço Social precisa intervir na subjetividade humana porque todo homem é um

    ser biopsicossocial. É consenso, especialmente em se tratando das legislações que

    regem a política pública de saúde que os aspectos biológico, psicológico e social de

    todos os usuários que atendemos são inseparáveis de sua história e, portanto,

    compõem o processo saúde-doença. Mas é também por isso, que já está

    consolidada na literatura da área, que o trabalho em saúde se faz de forma

    multiprofissional, pois se entende que cada formação possui um conhecimento

    específico capaz de contribuir para a análise e intervenção na vida dos sujeitos.

    Dizer que a necessidade de considerar além do aspecto social da vida dos usuários

    é uma razão para que o Serviço Social atue na subjetividade, é como dizer que a

    profissão também deve atuar no aspecto biológico, o que é totalmente incompatível

    com seu objetivo e papel na divisão social e técnica do trabalho.

    Outro momento emblemático do evento é a referência de que o Serviço Social

    deve lidar com o equilíbrio e não com a miséria e “outros fenômenos que não tem

    solução”17. A incompreensão histórica e teórico-metodológica que essa afirmação

    17

    Expressão utilizada pela palestrante. Cabe mencionar que pautados pela perspectiva crítica, a saber, o materialismo histórico-dialético, que orienta a concepção de realidade apresentada neste trabalho, não concebemos a miséria como “um fenômeno que não tem solução”. Compreendemos

  • 30

    carrega em si é extremamente preocupante. O Serviço Social não lida com o

    equilíbrio, harmonia e a coesão social, porque é exatamente do conflito entre as

    classes sociais e das reivindicações políticas que dele surgem que o Estado vai

    intervir, através das políticas sociais, na questão social e demandar um profissional

    especializado para atuar nelas, que é o Assistente Social (IAMAMOTO; CARVALHO,

    2014). Além disso, se a miséria é algo que nos incomoda e nos choca em nosso

    cotidiano profissional, não é razão para ignorá-la e reivindicarmos um campo de

    atuação “mais confortável”. É exatamente nas precárias condições de vida da classe

    trabalhadora que somos chamados a atuar. Possuindo como estratégia da categoria

    o Projeto Ético-Político hegemônico, de viés crítico, como bem nos lembra Paula

    (2016), devemos expressar seus princípios em nosso trabalho profissional,

    cotidianamente, a fim de progressiva e coletivamente tencionarmos os valores

    impostos pela sociabilidade burguesa e contribuirmos com a possibilidade de

    construção de uma sociedade para além do capital e de suas mazelas.

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Diante de tudo o que tratamos no decorrer deste trabalho, algumas retomadas

    são importantes para corroborar o que pensamos representar a vertente clínica no

    interior do Serviço Social. A primeira delas é a de que o Serviço Social Clínico se

    apresenta como um dos muitos projetos que, no campo conservador, estão em

    constante atualização e disputa com o projeto crítico, hoje hegemônico. Afirmar que

    o Serviço Social Clínico se situa no campo conservador significa dizer precisamente

    que, diferente do Projeto Ético-Político, ele contribui para velar as contradições e os

    conflitos de classe na sociedade capitalista. Ou seja, por meio de tal prática, tendo

    ou não consciência disso, o profissional fortalece a reprodução das desigualdades

    típicas da sociabilidade burguesa, porque opta por não utilizar do potencial que seu

    trabalho profissional possui para questioná-la.

    O segundo apontamento está diretamente relacionado ao primeiro,

    entendemos que por todo o conhecimento acumulado por nossa profissão ao longo

    dos mais de 80 anos de história no Brasil, a escolha por reproduzir cotidianamente

    que a mesma é expressão inerente do modo de produção capitalista, que é mais um dos modelos de sociedade possíveis na história da humanidade, mas não o único.

  • 31

    na intervenção profissional e por difundir valores em nível de representação da

    categoria que possam tencionar, ainda que em longo prazo, a lógica perversa do

    capital, é uma estratégia acertada. Cabe-nos então, reafirmar conforme Guerra

    (2014), a possibilidade histórica do Projeto Ético-Político, pois ele não surge do nada

    ou é imposto de maneira autoritária, como irresponsavelmente sugerem alguns

    profissionais. Tal projeto foi gestado, maturado e consolidado, em paralelo às

    mudanças que ocorreram não só na profissão, mas na sociedade brasileira, das

    quais a categoria participou fortemente.

    Por fim, buscamos em Netto (2016), a sustentação de que é preciso conhecer

    a história de nossa profissão, assim como estudar as tendências neoconservadoras

    que vem se atualizando no cenário de acirramento da questão social, onde suas

    expressões assumem formas cada vez mais diversas e as requisições profissionais

    também vão se modificando. Entendemos que não se pode enfrentar aquilo que não

    se conhece, pois é preciso reunir argumentos sólidos na defesa cotidiana do Projeto

    Ético-Político, de forma a viabilizar uma adesão cada vez mais consciente dos

    profissionais aos seus princípios.

    Apesar de hegemônico no Serviço Social, a opção de cada profissional no seu

    cotidiano de intervenção pelo Projeto Ético-Político exige coragem,