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  • 7/22/2019 Ana Alencar

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    XI Congresso Internacional da ABRALICTessituras, Interaes, Convergncias

    13 a 17 de julho de 2008USP So Paulo, Brasil

    Raymond Roussel : Grito ou canto?

    Ana Maria Amorim de Alencar - UFRJ

    RESUMO

    No fossem alguns grandes leitores (Foucault, Butor, Robbe-Grillet, Duchamp), Raymond Rousselseria rapidamente esquecido. A comunicao apresenta alguns aspectos da obra desse autor emsuas implicaes com a teoria literria contempornea.

    Palavras-chave : mquina, narratividade, estilo, restrio.

    Com Raymond Roussel, um primeiro paradoxo poderia ser formulado: Como explicar que umescritor, no avesso do que se chamaria de um bom escritor, tenha sua obra reconhecida como

    primordial, nessa entrada do sculo XX francs, e seja capaz de exercer tamanho fascnio sobregeraes inteiras de escritores e artistas? De Marcel Duchamp1, (que assistira adaptao teatral de

    Impressions d'Afrique,recebendo ali uma parte do impulso para o seu Grande Vidro), ao Oulipo2(com suas oficinas de escrita sob restrio), passando por grandes autores cuja obra foi marcada porele, como Michel Leiris, Georges Perec e Leonardo Sciascia, a leitura e a vida de Rousselimpressionam. Sem ele, talvez no se pudessem ler to bem Proust, Joyce ou Mallarm com suas"subdivises prismticas da ideia", nem compreender o vazio que a literatura instala na linguagem.Roussel tem, no entanto, uma prosa que passa da monotonia mais descritiva e monocrdica paraengenhosos emaranhados narrativos, tudo detalhadamente servido em uma cacofonia no limite dolegvel. De uma frase inicial, decomposta em expresses homfonas, que nascem os enredos. Aarmadura da obra seu ponto de partida, a trama construda mecanicamente, escolhe-se ao acaso:um calembur, um acalanto, um verso de Victor Hugo...

    Carregada de mquinas, de inventos, de gestos e de objetos invariavelmente descritos com

    uma preciso difcil de acompanhar, a trama enrola-se em si prpria, tornando cada vez maisminuciosos os episdios que variam pouco, entre peripcias psicolgicas, rituais "primitivos",sacrifcios, ilustrando sempre, no sentido mais banal e desgastado, valores como redeno, amorfilial, grandeza de esprito, etc. Originais so os tais "procds" na construo da obra: A trama

    procede por deslizamento - semntico (entre diferentes acepes de palavras) ou fontico (porparonmia ou homofonia). Uma palavra puxa outra, e se encadeiam micro-acontecimentos ouanedotas, dentro de um texto em que s h diferenas, entre palavras quase semelhantes, e outras,iguais, mas tomadas em sentidos diferentes. Exclusivamente no registro da visualidade e do

    pormenor, o contorcionismo silbico impressiona pela capacidade dessa narrativizao desvairada.

    1 Michel Carrouges escreveu um interessante estudo que compara artistas que teriam encenado em

    suas produes o mito da mquina celibatria. Em uma leitura atenta dos elementos constitutivos das obras,o autor aproxima as mquinas de Locus Solus, de Roussel, s de la Marie mise nu par se s clibataires,mme... de Duchamp. As analogias, feitas ainda entre livros de outros escritores como Kafka e Lautramont,so traadas com convico por Carrouges.

    2 OULIPO: Oficina de Literatura Potencial foi fundado nos anos 60 por escritores e matemticos, em tornoda obra de Raymond Queneau, e sob a influncia direta de Raymond Roussel, Bourbaki e da Patafsica. Ogrupo pretendia realizar experimentaes de estilo a partir de antigas prticas retricas, mas tambm inventarnovas restries, as famosas contraintes, que pudessem guiar o esforo de criao. Em encontros marcadossobretudo com o humor, explorar as potencialidades da linguagem, os oulipianos se diziam "ratos que cons-troem eles prprios os labirintos de que propem sair".

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    Os encadeamentos so feitos por aproximao, produzem ligaes veladas, tornando possvel(gramaticalmente, visualmente ) o impossvel. O significado transparente demais se junta a umatotal opacidade. Como no h nunca nada alm da coisa descrita, o olhar se v logo obrigado a pararna prpria superfcie das coisas, como em um desfile de marionetes.3

    O "procedimento" de Roussel consiste em partir no da presena reencontrada das coisas, mas

    na distncia que lhes imposta no entrelaamento teimoso das palavras que s repetem a simesmas. Linguagem sem origem, linguagem que nada precede alm de si mesma, deriva depalavras que inventam um vazio vertiginoso e artificial, em todo caso; estamos longe da serenidadeclssica com que se encarava o uso dos signos.

    Por certo, o formalismo hermtico de Roussel aparece como saussuriano (duplamente, o dosAnagramas e o do CLG) e lacanianoavant la lettre. Por isso fascina no s a arte moderna, comotambm o pensamento filosfico contemporneo, Michel Foucault en tte. No toa, apesar de tolonge, fechado em sua loucura e em sua compulso escrita, fechado em seu sculo XIX

    positivista, e munido de seu arsenal de convenes literrias, Roussel nos parece to perto. Estaapresentao tentar circunscrever alguns aspectos desse paradoxo.

    Nascido em 1877, em Paris, noBoulevard Malherbes, de um pai agente financeiro e uma me

    herdeira de uma famlia colossalmente milionria da alta burguesia, Roussel tem uma infnciamarcada pela mais "perfeita felicidade". Seu av materno, fundador e presidente, em 1854, daCompagnie Gnrale des Omnibus (ancestral da RATP), est na origem da fortuna da famlia. Os

    pais de Roussel eram amigos da famlia Leiris, ricos negociantes e antiqurios. Roussel no teria otempo de vida necessrio para se dar conta de toda a influncia que iria exercer sobre o jovem filhode seu homem de negcios, esse Michel Leiris, que aos 18 anos levou Raymond Roussel aossurrealistas.

    Mas voltando a uma outra famlia: So os gostos e aspiraes de sua me, MargueriteMoreau-Chalson, que mais influenciam Raymond Roussel. Muito mundana, s l os autores damoda, ama o teatro, recebendo em sua casa, suntuosamente, celebridades do meio artstico.Excntrica, limtrofe, "rica demais para ser internada"4, tem manias e rituais sintomticos (em

    torno da limpeza e da fobia da decomposio), sintomatologia que passar para seu filho. Esbanjavadinheiro sem contar, e, em trs dcadas, quase todo o patrimnio deixado pelo seu pai, ezelosamente administrado pelo esposo, Eugne, dilapidado . Marguerite leva sua filha e seus doisfilhos (Raymond o caula) a todos os espetculos, concertos, exposies, etc. Da talvez o cartersempre artificial e um tanto music-hall de tudo, nos cenrios de Roussel, inclusive do continenteafricano, que ele nunca chegou a visitar. Consta que os parisienses podiam assistir toda noite, nofamoso cabar Folies-Bergres, danarinos zulus, ou em uma exposio "etnogrfica" no Jardind'Acclimatation, mulheres, homens e crianas provenientes da frica desfilando em uma caravana.

    Nessa poca tambm, o carnaval de Nice pe em cena "esplndidos negros com seus anis de cobreresplandecentes e seus olhos a revirarem ferozmente"5. [...] Assim, foi nesse ambiente que Rousselteve a revelao da arte negra (que, alis, no estava em nenhum outro lugar na Europa, nessapoca), ou seja, atravs de seus fetiches e enquanto curiosidade extica. Apodera-se desse

    imaginrio de uma arte ritualstica e coletiva, aclimatando-o a seus prprios mitos e rituais. Com 13anos, Raymond retirado por sua me do ensino secundrio para dedicar-se ao Conservatrio,exclusivamente msica. Desde cedo, Raymond Roussel compe melodias e escreve em versoscom muita facilidade Aos 17 anos, j herdeiro de uma fortuna imensa aps a morte de seu pai,abandona a msica e resolve se dedicar, de corpo e alma, escrita, o que far obsessivamentedurante toda sua vida, mesmo nas longas viagens que empreendia.

    3 de 1963 o belo ensaio de Alain Robbe-Grillet "Enigmas e transparncia em Raymond Roussel", ao qual esta apre-sentao deve um aliviado reconhecimento.4 Nos termos de Franois Caradec, autor oulipiano que consagrou uma biografia a R.R. (ed. Fayard, 1997)5Le petit Niois, 13 fevereiro de 1893, noticiando o carnal de Nice, citado por Thiphaine Samoyault, p. 20.

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    Seus trs grandes autores : Victor Hugo, Pierre Loti e Jules Verne que encontrarapessoalmente. A marca deixada por esse encontro transparece em uma passagem de Comment j'aicrit certains de mes livres..., espcie de livro tcnico e autobiogrfico que Roussel deixou para quefosse publicado aps sua morte programada:

    Desejava tambm nestas notas prestar homenagem ao homem de incomensurvel

    gnio que foi Jules Verne.A admirao que tenho por ele infinita.

    Em certas pginas de Viagem ao Centro da Terra, Cinco semanas em Balo,...Vinte mil lguas submarinas...(...) da Ilha misteriosa [ etc.] ele ergue-se aospontos mais altos do Verbo humano.

    Tive a felicidade de ser por ele recebido uma vez, em Amiens, onde prestavao meu servio militar, e de poder apertar a mo que tinha escrito tantas obrasimortais.

    mestre incomparvel, bendito sejais pelas horas sublimes que passei a ler-

    vos e a reler-vos durante toda a minha vida. (ROUSSEL, 1988, p.131)

    Esse deslumbramento do discpulo pelo mestre d tambm idia de certa literatura muitopopular6 poca, que introduzia no romance realista burgus, todo um imaginrio mtico e certasfiguras arque-tpicas da fico cientfica. Encontramos, no romance Solus Locus (1923), espcie de

    passeio pela residncia de um milionrio excntrico inventor chamado Martial Canterel, elementosdos contos de fadas, o cientista louco ocupando o lugar do mgico, que ir tornar, numa espcie deritual de puberdade, algum capaz de alguma coisa. Apesar de sua estranheza absoluta, de no se

    parecer com absolutamente nada, algo na escrita de RR faz ecoar a prosa de Jules Verne. Talvezvenha tambm dessa leitura, o gosto pela viagem nesse viajante to singular, que percorreu a China,

    ndia, Japo, foi Nova York, andou pela Europa toda, mas sempre "fechado em sua cabine", ou nocarro-trailer de luxo que fez construir com banheira, veludos e quarto para os serviais. Viajanteque se desloca sem sair do lugar, trancado em si e na maquinao infernal de seu escrever. Suacorrespondncia confirma certa incuriosidade de Roussel e, no j referido Como escrevi alguns demeus livros, o autor faz questo de confirmar nunca ter retirado nada de suas longas viagens paraseus livros. Consta que rumo ndia em companhia de sua me, nossa Marguerite levava consigoum caixo e tudo que fosse preciso para ser embalsamada a bordo.7

    Em vida, todas suas publicaes foram auto-financiadas, bem como as adaptaes para oteatro de algumas de suas obras, tendo vendido, at sua morte, apenas 500 exemplares ao todo doconjunto publicado.

    Dia 11 maio de 1912 foi um dia importante para a histria das idias artsticas na Europa. Na

    reprise da adaptao teatral de Impressions d'Afrique, Guillaume Apollinaire, Francis Picabia e

    6 Como os escritos de Gaston de Pawlowski, Voyage la quatrime dimension que tanto impressionouDuchamp.7 Cf. em Franois Caradec, "Raymond Roussel - Un excentrique trs raisonnable" Magasine. Littraire. , p.18-20.

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    Marcel Duchamp descobrem juntos, o mundo de Raymond Roussel como um continentedesconhecido: "Roussel me mostrou o caminho" dir Duchamp8.

    O fascnio que Raymond Roussel exerceu sobre um artista como Marcel Duchamp muitosignificativo. Essa curiosa afinidade eletiva nasce de um gosto comum por vrios objetos e modosde existncia: o jogo de xadrez, as maravilhas da cincia (da tica, em particular), as mquinas,

    imaginrias e verdadeiras, os trocadilhos como em Rrose Slavy, os delrios ready-made, osaxiomas pseudo-cientficos9. O clima o das feiras populares onde se apresentavam, nasbarraquinhas, "manequins, [vestidos] como noivos na festa nupcial, [que] se ofereciam para seremdecapitados graas destreza dos lanadores de bola" no tiro ao alvo10. Em entrevista de 1946,

    perguntado sobre como seria sua biblioteca ideal, Duchamp declara :" Ma bibliothque idaleaurait contenu tous les crits de Roussel, Brisset, peut-tre Lautrmont, et Mallarm. Mallarmtait un grand personnage..." Poderamos acrescentar lista: Apollinaire, Laforgue, Jarry,Pawlowski.11

    Mas, para alm de uma sociologia dos autores, o que nos importa : A lngua rousseliana ouvida, em seu volume estrondoso, e , de mais a mais, o significante levado altura de puroestilhao sonoro iluminando a nudez referencial da linguagem. Como se o artista - pintor - artfice -

    produtor, o poeta enfim, tivessem que atacar o dado natural, se libertar do parasita linguageiro, ecriar uma lngua outra, reduplicada em sua fico musical e matemtica.12

    Cabe, aqui, aproximar o "procd" rousseliano da reflexo de Saussure s voltas com osAnagramas. Leiamos um rpido comentrio de Claudine Normand:

    Saussure se esmerou em demonstrar uma hiptese pessoal a partir de um setor dapoesia latina; ele buscava nela a aplicao de um cdigo secreto que teria impostoaos poetas a disseminao, em um poema, do nome de um deus ou de umpersonagem importante, por meio de uma espcie de "parfrase fnica" [...]Bruscamente, ele renunciou a essa investigao que, sabe-se por suacorrespondncia, apaixonava-o, quando lhe pareceu que no s toda a poesia latina,mas qualquer texto em prosa de toda a literatura indo-europia poderia ser lidadessa forma, crivada de anagramas, que no se podiam mais acreditar deliberados.

    Longe do que ele buscava provar, no teria ele encontrado uma confirmao

    8 Ver no belo ensaio introdutrio intitulado "Raymond Roussel - source de rayons rels,ma roue, mon sel,mon aile" (pp15-61), de Annie Le Brun, organizadora com Jean Jamin da completssima edioRoussel &Co. Fayard, 1998. Ainda nessa introduo, um comentrio maior de Duchamp a Roussel: " Era formidvel,havia na cena um manequim e uma cobra que mexia ligeiramente. Era absolutamente a loucura e o inslito"Entrevista a Pierre Cabanne, 1967, p. 56. Em 46, em outra entrevista a James Johnson Sweeney - retomadoemMarchand du sel: "Foi fundamentalmente Roussel o responsvel pelo meu vidro: La Marie mise nupar ses clibataires, mme. Dans sesImpressions d'Afrique, j'ai trouv la faon de m'y prendre [...].Rousselm'a montr le chemin."

    9 A ttulo de exemplo: "Por condescendncia , um peso mais pesado na descida que na subida" . Dada adifcil traduo, encurtei: "grande oferta de quincaillerie preguiosa : apreciem nossas torneiras que param

    de pingar quando paramos de escut-las."10 Clair, Jean ( p. 133).11 . [L'uvre de Marcel Duchamp - catalogue raisonn de Jean Clair. Paris, 1977, Mus National d'ArtModerne, Centre National d'Art et de Culture George Pompidou. p. 172 ]

    12 Esther Tellerman , em "Igitur : pur semblant ou expansion totale de la lettre":Le signifiant, port ici lahauteur de pur clat sonore, souligne la nudit rfrentielle, ce " hors-sens ", " creux nant musicien ", "aboli bibelot d'inanit sonore ". S'agit-il de se librer " du parasite langagier ", de crer une langue unitairepremire, intransitive, sans adresse, replie sur sa fiction, musicale et mathmatique ?http://www.freud-lacan.com/articles/article.php?url_article=etellermann280297

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    inquietante de sua prpria viso do objeto-lngua, portador em sua prpriamaterialidade de uma proliferao irracional e indomvel de significaes?(NORMAND, 2000, p.156)

    Proliferao irracional e indomvel, no surpreende que o primeiro livro publicado porRoussel seja intitulado La Doublure (o forro de uma vestimenta, a duplicao, mas tambm a fala

    que vem da coxia para ajudar o ator, a voz que dita ao psictico). O livro, redigido em grandeexaltao culminando em uma longa crise nervosa, aos 19 anos, consiste apenas na descriofastidiosa de mscaras e de carros no Carnaval em Nice e alude a um personagem do meio teatral.Roussel teve uma sensao de "glria universal" como relatado por seu psiquiatra Pierre Janet, em

    De L'Angoisse l'Extase, trata-se clinicamente do "caso Martial". Leiamos os detalhes dessaespcie de entusiasmo, na voz de Janet emprestando voz a seu paciente:

    Eu tinha a glria, dizia ele...o que eu escrevia estava cercado de irradiaes: eufechava as cortinas, de medo que a menor abertura deixasse escapar para fora osraios luminosos que saam de minha pena, eu queria retirar o vu de repente eiluminar o mundo. Deixar soltos esses papis seria provocar raios de luz quechegariam at a China, e a multido fascinada se abateria sobre a casa. Mas por

    mais que eu tomasse precaues, alguns raios de luz escapavam de mim eatravessavam as paredes, eu trazia o sol em mim e no podia impedir aquelaformidvel fulgurao de mim mesmo...13

    Para alm do biografismo psicanaltico, que no foi a inteno aqui, podemos refletir sobreesse Orgasmo de luz que faz figura de emblema, no espelhamento do encontro entre vida e criao,entre escrita e destino. A maquinao dos escritos de Roussel, marcados pelo signo da repetio(dos objetos, dos sons, dos episdios narrados, da temtica, enfim...), pode ser compreendida comotentativa de reencontrar essa sensao de "sol moral" para sempre perdida: "Eu daria todos os anosde vida que me restam, para reviver, por um instante, aquela glria", diria ele ainda. freqente otema da salvao, da cura, da libertao, provocados pela repetio exata de alguma coisa: repetioda cifra correta para que algo se liberte, repetio no prprio procedimento de inveno que uma

    rima explodida e levada ao extremo.

    14

    Os modos de advir do sujeito do inconsciente so da mesmanatureza que os da poesia. "O sujeito do inconsciente se encontra no achado potico"15. Dosaparelhos macabros de Solus Locus e deImpresses de frica, Foucault dir, aludindo profusode mquinas : "elas no falam, elas trabalham serenamente em uma circulao de gestos onde seafirma a glria silenciosa de seu automatismo".16

    Como um autmato, Roussel escreve, ou melhor, descreve imagens minimalistas: umafotografia de um balnerio, incrustada em uma caneta tinteiro e ampliada por uma lente emLa Vue ,uma etiqueta de garrafa de gua mineral em La Source, a vinheta de um papel de carta em LeConcert.L'Etoile au fronttoma uma lista de objetos de um brech como pretexto para uma srie deanedotas; enquanto La Poussire de Soleils encena um enigma que levar descoberta de umtesouro; finalmente,Les Nouvelles Impressions d'Afrique, cuja arquitetura expandida por meio de

    parnteses e notas de p de pgina, umas dentro das outras, e que nada tm a ver nem com a frica,nem com as Impressions d'Afrique, seriam apenas meditaes a respeito de quatro atraestursticas do Egito moderno.O leitor que no tenha ainda um longo hbito das operaesrousselianas poderia imaginar a riqueza do lugar que ocupam, na recorrncia descritiva de tantasfestas, sacrifcios, rituais, os termos execuoereproduo com sua multiplicidade de isotopias a

    13Citado por Michel Butor ( 1974), p. 12414 Butor (1974), p. 121.15 Lacte (1998), p.92.16 Foucault (2004), p.182.

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    remeter para a msica, a sexualidade, a morte e a mquina. Mquina de mastigar palavras,mquinas de repetir cenas, maquinao contra a morte.

    Na noite do dia 13 para 14 de julho de 1933, em Palermo, s vsperas de uma viagemmarcada para um novo tratamento de desintoxicao, Roussel morre envenenado por um excesso de

    barbitricos; seu quarto contguo ao de sua governanta-amiga, Charlotte Dufrne, no

    estabelecimento com este nome curioso, bem rousseliano alis: o Grande Hotel e das Palmas.Mudara-se para essa cidade na Siclia, uma das entradas para a frica, sabendo que no retornaria aParis. Seu corpo encontrado, em estado de extrema fraqueza, como se tivesse tentado chegar at a

    porta, que sempre permanecia aberta, do quarto de algum o protegesse de si mesmo. Porta fechadano limite do segredo da morte, morte obstinadamente desejada, encenada em suas alucinantesnarrativas, e sempre recuada no inacabamento da obra.

    Das mscaras - com olhos e bocas mveis - do carnaval de Nice, s mquinas de fazercadveres mostrar seu instant dsicif, passando pelo crnio de Danton em imerso, desossado eeletrocutado pelo toque de um gato raspado para que repetisse a cada vez seus discursos, como sea voz apagasse o rosto. Aqui, no h mais rosto. Mas a voz, ela, ela insiste em um grito que, nolimite entre doena e achado potico, canto se possa fazer. Em Como escrevi alguns de meuslivros... , nessa "narrativa geminada de sua loucura e de seus processos de escrita, (identifica-se) umestranho parentesco entre aquilo que, durante tanto tempo, foi temido como grito, e aquilo que,durante tanto tempo, ficou sendo esperado como canto."17

    Em Roussel, a linguagem, reduzida ao vazio atravs de um acaso sistematicamente agenciado,reduplica indefinidamente a morte e o enigma das origens. Mortal escrita que Roussel paga com suavida, como para melhor fazer corpo com sua obra. 18 O espao da escrita de Roussel, o vazio deonde ele fala, essa prpria ausncia atravs da qual a obra e a loucura se comunicam e seexcluem.

    Referncias bibliogrficasRoussel, Raymond. Comment j'ai crit certains de mes livres. Paris, Pauvert, 1963. (A. Lemerre,

    1935).Roussel, Raymond. Novas impresses de frica e Como escrevi alguns de meus livros. TraduoLuza Neto Jorge. Lisboa, Fenda, 1988.

    Roussel, Raymond. Solus Locus. Paris, Flammarion, 1965 (A. Lemerre, 1914).

    Roussel, Raymond.Impressions d'Afrique. Paris, GF Flammarion, 2005.

    Butor, Michel.Repertrio. So Paulo Perspectiva, 1974.

    Leiris, Michel.Roussel L'Ingnu. Paris, Fata Morgana, 1987.

    Leiris, Michel Roussel & Co. dition tablie par Jean Jamin, prsente et annote par Annie leBrun. Paris, Fata Morgana, Fayard1998.

    Robbe-Grillet, Alain. Por um novo romance. So Paulo, Nova Critica, Ed. Documentos, 1969.Foucault, Michel. Philosophie Anthologie col. Folio Essais, Gallimard, 2004.

    Foucault, Michel. Raymond Roussel. Paris, Gallimard, 1963, Folio/Essais, 1992.

    Magazine Littraire-Raymond Roussel et les excentriques , n 410, Paris, juin 2002.

    Clair, Jean.Marcel Duchamp ou le grand fictif. Paris, Galile, 1975.

    17 Foucault (2004), p. 138.18 Foucault ( 1992), p. XXVIII.

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    Lacte, Christiane.L'Inconscient. Paris, Dominos/Flammarion, 1998.

    Normand, Claudine, Saussure. Paris, Les Belles Lettres, 2000.

    Ana Maria Amorim de Alencar, Professora, DoutoraUniversidade Federal do Rio de JaneiroDepartamento de Cincia da [email protected]