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Américo Pereira
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Índice
Introdução 9
Capítulo IEssência e substância do tempo, na relação com o absoluto do ato 21
Capítulo IITempo e pensamento: a consciência 39
Capítulo IIITempo e espaço 50
Capítulo IVTempo e ação humana 59
Capítulo VAto e ser 70
Bibliografia� 88Fontes 88Siglárioparaasfontes 88Auxiliares(citadosouusadosduranteoestudo) 89
Anexo: Obras de Lavelle 91
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Introdução
Desde osmais remotamente antigos tempos humanosde que há humanamemóriaqueotempotemconstituídomotivodereflexão,variegada,sempreprofundanoqueaosgrandes textosdahistóriadaculturadiz respeito.Nanossatradição,ditaocidental–nãodiscutimos,aqui,estetipodequestões–,osmaisantigostextosrefletemumapreocupaçãohumanafundamentalcomo tempo.
Desdeaauroradahumanidadequeestaprocuraperceberoqueéissoquecorrespondeàtransição,constante,incoercível,dosatos,consubstanciadanadiferenciaçãodetudo:oraassim,logo,não-assim.Estemovimentoinexorável,dealgummodo–quenuncaseráconhecido–,feznascerissoque,apartirdecertomomento,passouaserreferido–poisconhecidonãopodeser–como«tempo»,nasdiferentesculturasecivilizações,comváriosmodosdeapropria-çãonocionaledesignaçãolinguística.
Noentanto,osentidofundamentalparaotempoécomum,universalmentecomum,salvoasimensasvariaçõesdepormenor,queconstituem,nestetemacomoemtodososgrandestemas,issoquedádiferençaaosatoshumanoscoletivos e permite, assim e só assim, a cultura, na forma de «culturas».
Ora,formulandoaquestãonegativamente,emqueéquedostestemunhoshumanosde semprenãohámarcasquaisquerdeumaqualquer noçãodetempo,de«temporalidade»,parausarumtermomaismoderno,sebemqueredundantenoquedizrespeitoaosentidoprofundodaexperiênciahumana,quefoisempre,precisamente,de«temporalidade»?
Édifícilencontraralgodemonumentalindiscutivelmentehumanoemquenãohajaumaqualquermarcaqueaponteparaumanoçãodetempo.Mesmonoquehádemaisantigo,porexemplo,asinumaçõesderestosmortaishu-manos,emqueoscadávereshumanossãoacompanhadosporutensíliosemateriaisdiversos,cujapresençasófazsentidonumfundotranscendentalde
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tempo.Nasditasrepresentações–quemaisserãopropriamenteincarnaçõesrituaisdeentidadesmíticas,oqueédiverso–queseencontramemLascaux,em Altamira, para mencionar apenas estes dois exemplos cimeiros europeus, que sentido fazem tais «representações» sem um fundo transcendental detempo, sema noçãodeque nomomentoda feitura se consubstancia, dealgummodo,oquefoieoquepoderáser?
QuesignificadofundamentalrestariadeumaEpopeia de Gilgamesh sem opanodefundo,maisumaveztranscendentalatodaanarrativa,detempo?Quesedizquerer–desejar,talvez,apenas?–oprotagonistasenãoexatamen-teescaparàusuraaniquiladoradotempo,istoé,domovimentoqueacarretamanifesta«entropia»,mesmoqueotextolhenãopossachamarassim?NãoéGilgamesh,emsuaepopeiafalhada,oprimeiroquesabedaentropiaecontraelaprocuralutar?Lutaqueperde.
Nestaluta,nãoécontraotempo,maispoderosodoquetodososdeuses,queGilgameshluta?Nãoéopânicodosdeuses,foradotempo,quelançaes-tescontraessequequervencerotempoe,assim,sercomotaisdeuses?Noentanto, como vencedor do temponãoseriaelemaispoderosoaindadoqueosoutros?Nãoéestesentido,talveztãoantigoquantoaprópriahumanidade,deessequelutacontraaentropiaqueéosentidofundamentaldarelaçãodecadaserhumanocomotempo?
Decertomodo,aprópriaepopeiaaquiemcausarespondeaestaques-tão,masapartirdeumaoutraperspetiva,pois tal narrativa transportanãoapenas um sentido de derrota do ser humano perante o tempo – evidente e inescapávelnocasodeGilgamesh–,masétambémportadoradeumaoutramensagem,precisamenteadavitóriadedoissereshumanos,especiais,sobreo tempo, essesqueganharama vidaeterna,Utanapishti e a suaMulher –equivalentesdocasalbíblicoNoéesuaMulher–que,tudofazendo bem para contrariarausuradotempo,deleselibertaram,ganhandoavidaeterna.
Nesteprimeirograndetextodahumanidadedequedispomosmonumen-toememória, jáo tempona sua relaçãocomoeterno, aparecede formamuitoclaraeapontandoparaasquestõesfundamentais:oabsolutodoato,o«eterno»;arelaçãoentreoabsolutodosatos,precisamenteomovimento,dequeotempoéanoçãousurária,entrópica,inimigadetudo,sobretudodahumanidade.
Noentanto,amesmaepopeiafornecearespostateóricaparaaanulaçãodaentropia, atravésdoacertodaaçãohumana:omesmomovimentoque
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Introdução
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corrói pode ser utilizado, enquanto houvermovimento, paramanter omo-vimentohumanocorreto.Nasce, aqui, o sentidodaordem,daortótesedaagênciahumana,dapossibilidadehumanadelutacontraoque,semacorretaaçãohumana,éalgodetendencialmentecaóticoedestruidordamesmahu-manidade e do seu mundo, com ela.
Doqueficoudito,podearriscarafirmar-sequejánaEpopeia de Gilgamesh háuma «metafísicado tempo», claramentenãoem termos filosóficos,masexpressapoeticamente,numapoesiadeumespantosorigornocionalmetafí-sico,aindaquesem“ciência”paraodizer.Masodizê-loassimpoeticamentetalvezsejaoprimeirograndepassoparaaconstituiçãodetodaaciência,poistodaeladependedaconceçãometafísicaquerdomovimentoquerdotempoquer,ainda,doabsolutodoatoqueaambossustenta.TudoistoseencontrajáemGilgamesh.
Noseiodamesmagrandetradiçãopróximo-oriental,comoentenderessaoutraepopeiahumana,consubstanciadanafiguraparadigmáticadoJobbí-blico,semareferênciatranscendentalaotempo,sobretudonasuaformademedidadomovimentodosváriosatosfundamentaisqueanarraçãoapresen-ta, na sua diferença, mas, especialmente, no seio dessa mesma diferença, de medida–comonocasodocasalqueganhouavidaeterna,naEpopeia de Gilgamesh–dapresençadoquenãomuda,quandotudomuda,a ordem que é a fidelidade?
Comocompreenderarelaçãoentrepessoas,semestaordenaçãodotem-po,dasucessãodosatos,noabsolutoquesão,narelaçãoentresi?
Em Job,háotempodocaosdetodos,mesmododivinoemsuaprimeiraapresentação,ehá,único,otempodaordem,odeJob,quenuncasedesviadoquedásentidoaomovimento,assim dominando o tempo, assim se situan-donumabsolutoquenada,nemsequerDeus,podeanular,desviar,perverter:osentidodoabsolutodecadaatoedetodososatosqueobedecemaummesmo fim.
Eisencontradaaformahumanadevenceraentropia,nãocontraotempo,massegundootempo:oquenãosepodeanularousequercontrolar,porquerequereriaumato infinito–precisamente,oqueanulao tempo–podeserassumidonoabsolutodoqueé:ofinitoJob,submetidoaomovimentoeaotempo,convoca issoquenãoestásubmetidoao tempopara reconheceroabsolutopresentenorelativo.OqueJobé.É-o,noqueé,absolutamente:nãohátempoquevençatal.
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Dadaagrandezadoqueestáemcausanadimensãosubstantivadaprópriaobra,nãonosdeteremosno restantedaBíblia, no entanto, nada dos textos bíblicos faria sentido sem a transcendentalidade metafísica do tempo como su-porteda relaçãonarradaentreodivinoeohumano.Tal relaçãodecorreemcontínuomovimento,énestemovimentoqueodivinoemsisemanifestaaonão-divinoemsi,énoseiodomovimentoprofanoqueosagradosepõe,seimpõe,comomarcoabsoluto,precisamenteessequepermitequesemeçaemsentidoabsolutoadiferençaentreosatos,istoé,quepermite,assim,otempo.
Semamarcadivina,qualquer,nãohátempo,háapenasumcaosdemo-vimento,semsentido,pordefinição.OtempomíticodaEscrituraBíblicamo-vimenta-se,assimseassumenoprópriomito,entreo«alfa»dacriaçãoeo«ómega»deumanão-destruição,antes,deumanovacriação.
É este sentido do novo –queéoquemarcacadaumadashierofania--teofanias–quedáaotempobíblicoeatodaacivilizaçãoqueneleseergue,osentidodeumtemponão-circular,reto,talvezmelhor,espiralado,emqueoabsolutodadiferença,semanularasemelhançaparadigmáticacomomode-lodivino, impedequepossahavercircularidadeplana:onovoésempreumpassoemfrente,mesmoquereferidoaumeixo,nocaso,aProvidência,comopresença do criador na criatura.
Estemovimentoassimconcebidometafisicamente implicaquenuncasevivanotempo,poisnãoháanterioridadedotempo–lógicaouontológica–relativamenteaoquesemovimenta,sediferencia,masquesevivacomotem-po,quesevivamesmo«otempo»,mascomonoçãodoabsolutodadiferençae do movimento.
Ocontributopropriamentehelénicoedascivilizaçõesdequeahelénicadependeu para a reflexão acerca do tempo é famoso.O velho «Khronos»,esfomeadodefuturoparaconverternorealdoseupresente,poisnãopodiarealizar passado ao não poder aniquilar os filhos, é figura incontornável dacultura universal.
Estafigura,noentanto,escapaaosentidocomumqueselheatribui.Oquesurgecomoassimilávelaopassadoédadonaestranhaformadosrepresen-tantes do futuro – possíveis e atuais – que são os filhos;mas estes filhosadquiremoseu lugarpróprioporquesãovomitadospelopai.Nestevómitocronológico,asubstânciapostaemliberdade–livredainterioridadeimpossi-bilitadoradeatoaqueaprisãonoventredotempoobrigava–é,nummesmoato, o passado, o presente, o futuro.
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Introdução
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Oquesucede,então,équeotempovomita,liberta,não“coisas”detem-po, mas todo o movimento que constrói isso que é o cosmos.
Ora,oque«Khronos»vomitasãoosseusprópriosfilhos,istoé,éaindaasuasemente,asuaessência.Então,oquesaidoventredoTempoéoabsolu-todomovimento,naformadopossível,dasuarealização,dasuaatualidade,dasuamemóriaemonumento,e,destemodo,saitambémissoqueacompa-nha tudo isto, o tempo.
Dealgummodo,otempovomita-seasipróprio,naformadosseusfilhos.Talsignificaque,afinal,nãohá,nuncahá,nocosmos, libertaçãodotempo:estevomitasempreasuaformatranscendentalmente,tudomanchando.Nadasuperaotempo.Nadaescapaaotempo.
Enadaescapaaotempo,porqueesteé,ainda,umaformaevoluídado“avô”«Khaos»,atravésdeEros,daTerra,doCéu.Otempoé,assim,ainda,amarcada presença da desordem no seio da ordem. A sua presença é indelével: por issosimbolicamenteengoleosfilhosenelespermanececomomarcagenéticaemarcaimperial-depredatória.Todaarealidadeéassim,toda a realidade, por maislivre–ordenadaeautónoma(filhosvomitados)–quepareçaser,é sempre escrava do caos.É,ainda,avelhanoçãodaentropiaqueaquiencontramospoeticamenteformulada,masdeumaformamarcanteesemilusão.
NaIlíada,otempoqueencontramos,apesardeestarmosemplenomito,éjáumtempoperfeitamentecronológico,emsentidomoderno.Osaconteci-mentossucedem-seunsaosoutrossegundoummodoetiológicoeetiológicoemtermosdapreeminênciadoquefoisobreoqueéeoquepodeviraser.Há,manifestamente,umdestino,masnãocomoalgoteleológico,antespre-determinadopelaestruturacósmicaemqueésempreaeróticadaadveniênciadosermarcadaindelevelmentepelocaosoriginárioquedomina.
Éummundonecessariamenteentrópico,desucessivadegradação,apar-tir dealgoquenemsequer teve vezalgumauma idadedeouro:omundocomeçoumal e irá acabarpior.As sequências, que surgem retratadasnasobrastragediográficas,comexceçãodasEuménides,deÉsquiloedoÉdipo em Colono,deSófocles,demonstramcomoadegradaçãoontológicaprosse-gueeseadensa.
Otempodestemundoéumtempoplenamentecronológico,nosentidomoderno jáaludido,masé tambémcronológiconosentidoontologicamen-temaisprofundodadonamíticanoçãodomovimentoquesucessivamenteprocuraaniquilarofuturoeliminandoosfrutosprópriosdetodoomovimento.
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Noentanto,háumaexceçãonoquedizrespeitoàmíticageralda Ilíada: nãoéumqualquerseupormenor insignificante;pelocontrário,é todaumanova e profundamente diversa epopeia: é a própria Odisseia.
Note-sequenestasuperiorobrasedigladiamprecisamenteduasconce-çõescosmológicasprofundamenterelacionadascomasduasformasdetem-pohumanamentepensáveis:porumlado,enasequênciamítico-metafísicadaconceçãodetempodaIlíada, encontramos o ato, o movimento do mundo eanoçãodetempoassociadaaosentidodadegradaçãoonto-cosmológica,consubstanciadaemtodasasforçasqueseesforçamdenodadamenteparaevitarqueOdisseuregresseaoseu«topos»ontológicopróprio,oquerepre-sentaria uma vitória manifesta da ordem contra a desordem, personificada no movimentotirânicodoshomensqueseapoderaramdeseupalácioeque-remsubstituirUlissescomo,precisamente,princípioontológicodaordememÍtaca.
Poroutrolado,encontramosomovimento,consubstanciadonafiguradopróprioOdisseu–nistoprotegidomaternalmenteporAtena,adeusado«lo-gos», da ordem, dametamorfose pro-lógica, cuja ação parece sempre serefetuadaem tópicaeterna,não-temporal–,constantementeem lutacontraaentropiaontológicaemtodososlugaresemquepassa.Noentanto,quempensouestaepopeiasabiabemquehásempreumapresençapro-caóticaemtudo,peloque,devezemquando,põeopróprioUlissesaserviradesordem,agindoirracionalmente,oquesetraduzemperdadesentidodomovimentológicoderegresso,istoé,emperdadetempo:oregresso,tãodesejadoetãoquerido,demoradezanos.
Mas Odisseu vence tudo e todos e completa o ciclo de vinte anos de movi-mentoderetorno,assimvencendotempo,nãocomocoisalinear–estámaisvelho–,mascomocoisacircular;perdeutempo,masnãoseperdeunotem-poeAtenametamorfoseia-oemalgodeontologicamentejovem.Ociclodotemponãoanulouoabsolutodoato,domovimento–oquejásesabeserimpossível–mastransformouUlisses(ePenélope,ofimdanostalgia)emalgodemaissábio.
Com a Ulisseia, Homero instala o sentido da linearidade do ato em atos sucessivosposto,sempredirigidoaumfim,fimqueanulaosentidoantrópicodo tempo. Homero transforma o tempo em escola de sabedoria; a entropia empoéticaonto-antropológicae,porviadestaonto-antropologia,empoéticaonto-cosmológica.
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Introdução
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OsentidoqueLavelletemquerdoabsolutodoatoquerdarealidadeco-criadoradaaçãohumanajáaquiestápresente,nãocomoantecipaçãoaLa-velle,nãocomoilusãoretrospetiva,mascomocoincidêncianoacertointuitivocomamatrizfundamentalda«energeia»doser,docosmos,domundo.
Ao transformar as Erínias, as deusas verdadeiramente supremas da míti-cahelénica,perantecujo indefetívelpoderZeusfazfiguradeimpotente,em Euménides,Ésquilomuda radicalmenteosentidocosmológicodaculturaecivilizaçãoemquenasceu.Ora, talsignificaanularosentidopró-caóticodotempo,quepassa,então,deuma inexoráveldegradaçãoontológica,entró-pica,aalgoquemaisnãoé,já,doqueamedidadopossíveldaontopoieseantropotópica, istoé,amedidadopossíveldaaçãohumananosentidodamanutençãodaordemoumesmodacriaçãodeformassuperioresdeordemdocosmos,napartequedependedoserhumano.
Semcaráterdenecessidade,noentanto,poiso tempopodecontinuar,assimaaçãohumanaodite,aseramedidadadegradação:mas jánãooénecessariamente.Ora,oquetalsignificaéalibertaçãodoserhumanodanecessidadedodestino:atransformaçãodasEríniasemEuménides é a ne-gaçãodanecessidadedodestino.Abenevolênciaéfrutodeumaorto-onto--praxia,deuma«agatho-praxia»,deumaaçãococriadoradoserhumanoque,ainda que talvez apenasmomentaneamente, impõe ordem anticaótica nãoapenas «no» mundo, mas, verdadeiramente, «como mundo». Este é o tempo dapossibilidadeteleológicadobemonto-práxico,poroposiçãoaotempodanecessidadeétio-práxicadeummovimentoquecondenavanecessariamenteporqueestavamarcadoporumadinâmicasemprepró-caótica,porum«eros»tendencialmentealógico.
Sófocles,homemmaduro,percebeuquetinhadeanularomovimentoon-to-cosmo-perversoraniquilandoahereditariedadedeZeusmanifestana–einfestanteda–famíliadosLabdácidas:assim,matouAntígona,matou,comela,o«anti-logos»quetalpoluiçãogenéticaprovocava.Masasuagenialidadeobrigou-oadeixarpresenteissoquesabiabemquehabitariaparasempreomovimentoantropológiconoseiodomaisvastomovimentodocosmos: Is-mene,airmãcobarde,permaneceuvivae,comela,atendênciacaóticaparaa humana necedade. O tempo caótico foi profundamente diminuído em sua grandezaôntica,maspermaneceuvivo.
MasomovimentodomundopermitiuqueoSófoclesmadurosetransfor-massenoSófoclessábio,noplenosentidodotermo:aquelepercebeuque
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hásempreumapossibilidadeantropológicadesuperaçãodosentidodomo-vimentoedotempocomocoisadegradante:pelasuaação,pelatotalmeta-morfosedasuarealidadeantropológica–sóonomepareceterpermanecidoomesmo:os«pés-inchados»,sinalda«hybris»eróticaprimeira,sãomarcadelimitação,masnãodedestino–atravésdalongaexpiaçãoéticaepolíticaqueoperou.
Nofimdasuacaminhadacósmica,temporal,recebeordemdeAtenaparaserefugiarjuntodasErínias.Ora,estas,mesmocomoEuménides,sãoasqueguardamaordemdomovimento,dotempo;elassãosem-tempo.Sófoclesresolve anular o tempo mundano anulando o efeito de tal tempo em Édipo, elevando-oaoatosemtempo.EÉdiposaidomundopelaportadasdeusasqueguardamomundo.
Nasceumtempohumanoqueextravasaomundo,otempodoabsolutodosentidodaaçãohumana.Otempodoatoquesuperaotempo.Otempoqueecoanoeternoesetransformaemnadamaisdoqueessemesmoeco.Equeecoaránoeternodepoisdeomundoeoseutempocronológicoteremsidoanulados pela entropia, a cósmica e a humana, acrescentada.
Estaentropiaacrescentada,estetempoqueinsisteemdevorarosfilhoséafiguradomal.
AquestãodotempoemPlatãoseráaludidanocorpodestaobra.Noen-tanto,hátrêsnotasfundamentaisquetêmdeserintroduzidasnestaintrodu-ção,paraquesepossapercebermelhoragrandezada reflexãodeLavelleacercadotempo.Aprimeiradizrespeitoaosentidofundamentalqueotemporecebe a partir da metafísica do bem, da Politeia:oabsolutodoatonãoconhe-ce o tempo, isto é, o bem é alheio ao tempo. O absoluto do possível relativo a cadarealidade,asideiaseasrelaçõesdesconhecemtambémotempo.Seráo tempo a depender do absoluto do possível.
Otemposurgeapenasnoquedizrespeitoàobjetualidademundana,tem-porealcomosucessãocinéticadosobjetos,e,aquiilusório,noquedizrespei-toà«penumbra»domundoemmovimento,àsmerasaparências.Comonofundodacaverna,oprópriotempopodeconstituirumaaparênciademundo,dadoque,noreinodassombras,pareceapenasnadamaishaverdoquetem-po:movimentoinsubstantederealidadesinapreensíveissenãocomoimagensem movimento.
Ora,segundoponto,éotempodoTimeuqueaquisurge,otempoilusóriodomundo,quenadamaisédoqueafamosa«imagemmóveldaeternidade»
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(mais adiante, há uma referência em nota à sua tópica na obra platónica).O tempo do Timeu é ao modo do tempo mítico retratado por Hesíodo, sem amesmagangamítica.Masanoçãoéamesma:a ilusãoquedevoraumarealidadequenuncachegaaserporqueéretiradadecenaantesmesmodepodermostrar-se.Afenomenologiaémanifestaçãodeumcadávernuncadeum ato vivo.
Terceiroponto:háumarelaçãofundamentalentreaaçãohumanaeotem-po,nãocomoatoqueseinserenumtempopreexistente,mascomocriadordeumaontologiaquecria,porsuavez,umanovaformadetempo,estereal,o tempo ético e político.
Overdadeiro«topos»ontológicoecosmológico–aqui, literalmente–dotempoparaPlatãoéacidade,a«polis»,opalcocénicododramaantropoló-gico,emquesepodecriaratoentrópicoouatoantrópico:atoqueacresçacaoticidadeaummundo jácaótico–PlatãonuncaesqueceuaAtenasematoquematouoMestreSócrates,assimsematandoaprazo–ouatoqueacresçacosmicidadeaocosmos:essa«polis»quefosse,nãogovernadapor«filósofos»,formamenor,masessaquefosseconstituídaporfigurassábiaseantropologicamentepró-cósmicas,comoSócratesouoCéfalo–figurahistóri-ca–quenosapresenta,precisamentecomosábio,noiníciodaPoliteia.
Énaantropia,istoé,nacosmicidadedehumanaorigempraxiológicaecomfinalidadedeordenaçãodapartedomundohumanamenteordenável,quePla-tãosituaotempo,comorealidadequesecriacomomedidadaaçãohumana,nestecaso,positivo,daaçãohumanasegundoobem-comum.Otempoé,assim,nãoaimagemmóveldoeterno,deummodoqualquer,masasuaima-gemmóvelcomosucessãológicadosatoshumanossegundoobemcomum.
Ora, este sentido cairótico do tempo como criação humana através daeleiçãodospossíveisnosentidodobem-comuméoqueconstituiocernedateoriadotemponafilosofiadeLavelle.Lavelleé,inegavelmente,umplatónico,tambémnesteâmbito1.
UmoutrointrínsecoplatónicotevegrandeimportânciaparaLavelle,SantoAgostinho.NãoépossívelentenderLavelleeasua reflexãosobreo temposemqueseentendaqueháumaprofundaconsonânciacomosentidodo
1 Nãopodemosnãorecordar,comcarinhoegratidãoepistemológica,aimperiosasugestãodoPe.ProfessorDoutorJoaquimCerqueiraGonçalves,aquandodonosso tempode reflexãocomafinalidadedeescolherAutorparatrabalharemdoutoramento:«TrabalheoLavelle,queéoPlatãodoséculoxx!». Certíssimo.
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absoluto,único,dopresente.Comosepodedepreenderdasuaobra,A pre-sença total,énoabsolutodoatodopresenteque tudo, infinitamente,estádado,natridimensionalidade,tipicamenteagostiniana,dapresençasimples-mente memorial do passado, da presença simplesmente como absoluto do possível, a que se chama futuro, nesta estranha realidade, que assume asoutrasduaseemqueelassedão,desteatoquenoserguee,connosco,tudo,infinitamente–nuncaédemaisrepetir-se.
Otempo,assim,comoquedesaparece.Ontologicamente,arealidadedotemponadamaisédoquederivadadoabsolutodadiferenciaçãoquesevaidandonaformadacontinuidadedeumpresentequenuncaéestático,mas,heracliteanamente–éareferênciasemprepresente,massilenciosacomoomestre era obscuro – sempre em movimento, no entanto, sempre referida a umpólounificadorsemoqualnadahaveriasenãoumcaosdeentre-irreferen-ciáveisatosatómicos.
EsteéecodotempoqueAgostinhotambémentrevêcomométricahuma-nadamanifestaçãododomdeDeus,masquenuncasabeousaberádefinir.
NãoháDescartessemametafísicaagostinianaemquesoubetãodiscre-tamenteinspirar-se.Numuniversometafísico–nãoconfundircomomundocomosistema,derivado,emquetudodependedeumareferênciaàintuição,necessária,deuma realidadeeminentequesustenta todaessoutra realida-deobjetivadetodososconteúdosdopensamento,otempo,emDescartes,metafisicamente,éindiscerníveldeissoquefazacoerênciainternadopensa-mento,nãocomoalgodecaótico,dispersoein-contíguo,mas,precisamentecomonecessáriacontiguidadedosdiferentes–e,assim,nãodiversos–atosdepensamentoconsubstanciadosemtodasasrealidadesobjetivas–ideias–quesãoasubstânciadomesmopensamento.
Éestacontiguidadequeconstituiabasemetafísicadepossibilidadeparaoque «eu»,qualquer, seja.Ora,estacontiguidadeéasseguradaporDeus.Otempo, tambémemDescartes,maisnãoédoquealgodederivado, istoé,éarealidadeobjetiva–a ideia–dasucessão internadetodasasoutrasrealidadesobjetivas.
Nãotem,assim,realidadeprópria irredutível.Nãoé ilusório,é,comoLa-velletambémafirma,derivadoefinito,limitadopelaquantidadederealidadesobjetivas.
Kantpercebeperfeitamenteacondiçãoontológicaprópriadotempocomoalgoque,precisamente,nãotemontologiaprópriaautónoma.Sabequesem
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Introdução
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quepossahaverehajaefetivamentemaisdoqueumaintuiçãoequeentrees-saspossahaverehajamesmoumaqualquerligação,nãopodehavertempo.Tambémnãopodehaverqualquer“coisa”comoum«mundo».Mais,issoquesurgirácomoreferênciastranscendentais fundamentaisnaarquiteturatrans-cendentalgeral (euniversal),«mundo»e«alma»nãopodemserconstituídossemquehajaalgoquepossaeventualmenteligarpelomenosduasquaisquerintuições,que,ligadas,deixamdeser«quaisquer»epassamaseromínimoquerde«mundo»querde«alma»,nãojáapenascomo«ideiastranscendentaisdaRazão»,mascomopossibilidadesdequeataisideiaspossacorresponderalgoquenãosejameramentedoestofoontológicodotranscendental,istoé,quepossasereventualreferênciaaummundoeaumaalma,emsiignotos,mas transcendentalmente referíveis.
Ora, como forma a priori da estrutura da faculdade transcendental sensibi-lidade,otemposerveprecisamentecomoelementológicodeligaçãoentreodiversodasensibilidade,istoé,entre,pelomenos,duasintuições–intuiçõesaomododeHume.O tempo é, assim, a forma lógica universal de toda asensibilidadeparaapossibilidadedasucessão.No limite,o temposubstituitranscendentalmente,comopólounitáriododiversodaintuição,oquetradi-cionalmente era a alma.
Nestesentido,otempoganhaforosdeontologiaprópria:é,emsimesmo–o«topos»ontológiconãomeramentelógicodeste“entelógico”ficaporescla-recer–,umaformalógica.Pertenceaumâmbitológicoquesópodeserdito«transcendental».Atranscendentalidade,quenãoépropriamenteummundo,sópodeserditacomocondição lógica–nãoontológica,poiséelamesmacondiçãodetodaaontologiaecair-se-ianumciclovicioso–deconhecimento.Mais nada.
O tempo possui, assim, uma ontologia própria,mas que não pode serdenominadade«ontologia»segundooprópriosistema filosóficoemcausa.Estesistemainterditatodaaontologia–nãoapenasametafísicaemsentidotradicional,nãokantiano-transcendental –quenãoseja transcendental, istoé,puramente lógica.Correspondeaumexercíciodeatividade lógicacomo«colheitadepossívelsentido»–daetimologiade«logos»–desipróprioporsipróprio,comosedeumaimpossívelalmalógicasetratasse,quesepensaasimesmacomoformalógicapura.
Éosubstitutodamal-explicadaalmacartesiana,que,porsi, jáeraumatentativa falhada de compreender o sentido espiritual da inteligência como
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Américo Pereira
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Agostinho,maisdoqueaentendeu,aviveu.MasquernesteúltimoqueremDescarteso,chamemos-lheassim,«logospensante»era,ainda,umacriaturadivinafeitaàimagemesemelhançadeDeus.Erasubstantivaelidavasubstan-tivamente com um mundo também, pelo menos hipoteticamente, substantivo, cujasubstânciahaviaqueintuir,atravésdaintuiçãodeessências.
Nadadistoacontecena filosofiaque tomouDavidHumeasério.EKantlevou-oa sério.O tempo, tendo realidade transcendental –oque faltavaàtabuinhavirgemdeceradeHume–,nãotemoutrarealidade,peloqueasuarealidadeéderivadadanecessidadelógicadehaveralgona«tabuinha»quepossaligarodiversodaoutrossimatomicidadeabsolutadasintuições.
A metafísica do tempo pensada por Lavelle e brevemente exposta neste nossolivrodialogacomtodosestesautores,queassumecomopressupostos.
NumprimeiroCapítulo, trabalhamosaessência e substânciado tempo,narelaçãocomoabsolutodoato,aquesesegue,noCapítuloII,umarefle-xãoacercade tempoepensamentocomoatodeconsciência, emsentidoepistemológico-gnosiológico.Dedica-seoterceiroCapítuloapensaromodocomotempoeespaçosearticulam,aquesesegueumquartoCapítuloemquetempoeaçãohumanasãoperspetivadosnasuacolaboraçãoontológica.Porfim,noCapítuloV,conclui-secomarelaçãofundamentalentreatoeser,âmbitoontológicopróprioparaosurgirdotempo.
Queroautoragradecertodoomagníficoapoioinstitucionaldadopelasen-tidadesquetornarampossívelaediçãodestaobra.Sobrelevooapoiopessoalmanifestado pelo Senhor Professor Carlos Aurélio VenturaMorujão, DiretordoCentrodeEstudosdeFilosofiadaUniversidadeCatólicaPortuguesa,bemcomo o empenho da Diretora da Universidade Católica Editora, Dr.ª Anabela Antunes, napessoadequem tornoextensivoo agradecimento a todososseus colaboradores.
EstelivroédedicadoàMemóriadoPadreProfessorDoutorManuelBarbo-sadaCostaFreitas,diletoMestre,nobreCientistaeHomemdeCultura,quefezofavordemeapresentaraobradeLouisLavelleedemeorientarnoseuestudo.
Metafísica do tempo na obra de LL_3as provas.indd 20 11/05/18 10:27