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73 Artigos A COLEGIALIDADE EPISCOPAL À LUZ DO VATICANO II Leandro Manoel de Souza * RESUMO: No século XIX, o Concílio Vaticano I definiu solenemente o primado de jurisdição do Romano Pontífice e sua infalibilidade quanto a questões de fé e moral, quando se pronuncia ex cathedra, porém, faltava uma elaboração mais consistente acerca das relações entre o bispo de Roma e os demais bispos. Se, por um lado, o primado e a infalibilidade papal são afirmados pela Revelação, por outro, também o episcopado o é. De fato, a definição do primado e da infalibilidade de magistério do Romano Pontífice, separada do restante da doutrina concernente à Igreja, podia dar a impressão de ser ele considerado como separado do colégio episcopal, ou, ao menos, de ser este deixado na sombra. Coube ao Vaticano II avançar na reflexão e promover o progresso doutrinal neste ponto. Na esteira do que foi promulgado pelo Vaticano I, o Vaticano II irá apresentar a doutrina acerca do episcopado. Seu progresso consiste justamente na unificação dos dois termos ou das duas componentes do mesmo colégio: cabeça e membros. O que pretendemos é explicitar as contribuições do Concílio acerca do episcopado em geral, e da colegialidade episcopal, em particular. PALAVRAS CHAVE: Vaticano II. Colegialidade. Episcopado. Primado. RESUMEN: En el siglo XIX, el Concilio Vaticano I proclamó solemnemente el primado de jurisdicción del Papa y su infalibilidad en materia de fe y moral, cuando se pronuncía ex cathedra, pero carecía de una reflexión más coherente sobre las relaciones entre el obispo de Roma y los demás obispos. Si, por un lado, el primado y la infalibilidad papal son confirmados por la Revelación, por el otro, es también el episcopado. De hecho, la definición de lo primado y de la infalibilidad del Magisterio del Romano Pontífice, separada del resto de la doctrina sobre la Iglesia, podría dar la impresión de que él es como algo separado del colegio de los obispos, o al menos que esto se queda en la sombra . Le correspondió a la reflexión del Vaticano II fomentar y promover el progreso de la doctrina sobre este punto. En la secuencia de lo que ha sido promulgado por el Concilio Vaticano I, el Concilio Vaticano II presenta la doctrina sobre el episcopado. Su progreso es, precisamente, la unificación de los dos términos o dos componentes de la universidad: la cabeza y los miembros. Queremos aclarar la contribución del Concilio sobre el episcopado en general, y sobre la colegialidad episcopal, en particular. PALABRAS CLAVE: Vaticano II. Colegialidad. Episcopado. Primado. * Graduado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

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Artigos

A COLEGIALIDADE EPISCOPAL À LUZ DO VATICANO II

Leandro Manoel de Souza *

RESUMO: No século XIX, o Concílio Vaticano I definiu solenemente o primado de jurisdição do Romano Pontífice e sua infalibilidade quanto a questões de fé e moral, quando se pronuncia ex cathedra, porém, faltava uma elaboração mais consistente acerca das relações entre o bispo de Roma e os demais bispos. Se, por um lado, o primado e a infalibilidade papal são afirmados pela Revelação, por outro, também o episcopado o é. De fato, a definição do primado e da infalibilidade de magistério do Romano Pontífice, separada do restante da doutrina concernente à Igreja, podia dar a impressão de ser ele considerado como separado do colégio episcopal, ou, ao menos, de ser este deixado na sombra. Coube ao Vaticano II avançar na reflexão e promover o progresso doutrinal neste ponto. Na esteira do que foi promulgado pelo Vaticano I, o Vaticano II irá apresentar a doutrina acerca do episcopado. Seu progresso consiste justamente na unificação dos dois termos ou das duas componentes do mesmo colégio: cabeça e membros. O que pretendemos é explicitar as contribuições do Concílio acerca do episcopado em geral, e da colegialidade episcopal, em particular.

PALAVRAS CHAVE: Vaticano II. Colegialidade. Episcopado. Primado.

RESUMEN: En el siglo XIX, el Concilio Vaticano I proclamó solemnemente el primado de jurisdicción del Papa y su infalibilidad en materia de fe y moral, cuando se pronuncía ex cathedra, pero carecía de una reflexión más coherente sobre las relaciones entre el obispo de Roma y los demás obispos. Si, por un lado, el primado y la infalibilidad papal son confirmados por la Revelación, por el otro, es también el episcopado. De hecho, la definición de lo primado y de la infalibilidad del Magisterio del Romano Pontífice, separada del resto de la doctrina sobre la Iglesia, podría dar la impresión de que él es como algo separado del colegio de los obispos, o al menos que esto se queda en la sombra . Le correspondió a la reflexión del Vaticano II fomentar y promover el progreso de la doctrina sobre este punto. En la secuencia de lo que ha sido promulgado por el Concilio Vaticano I, el Concilio Vaticano II presenta la doctrina sobre el episcopado. Su progreso es, precisamente, la unificación de los dos términos o dos componentes de la universidad: la cabeza y los miembros. Queremos aclarar la contribución del Concilio sobre el episcopado en general, y sobre la colegialidad episcopal, en particular.

PALABRAS CLAVE: Vaticano II. Colegialidad. Episcopado. Primado.

* Graduado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

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INTRODUÇÃO

Segundo José Comblin, “no Concílio (Vaticano II) falou-se muito dos

bispos. Porém, na questão principal, que era a relação entre os bispos e o Papa,

houve pouco avanço. Afinal, falou-se com tanta insistência do poder do Papa

que, como comentou o teólogo protestante Oscar Cullmann, o Vaticano II insistiu

mais nos poderes do Papa do que o Vaticano I” (LORSCHEIDER, A. et. al. Vaticano

II 40 anos depois. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2006). Nosso objetivo ao longo deste

trabalho é averiguar até que ponto tal afirmação corresponde com a realidade, ou

seja, com a eclesiologia proposta pelo Concílio, sobretudo a partir da Constituição

Dogmática Lumem Gentium.

À luz do Vaticano II, da teologia e da prática eclesial pós-concliar,

pretendemos analisar a relação entre o Colégio dos Bispos e o primado do

Romano Pontífice. Ao longo dos séculos, parece ter havido sempre uma espécie de

confronto entre os defensores da colegialidade episcopal e o poder centralizador

de Roma, cuja expressão máxima se manifesta na explicitação do primado de

jurisdição do Romano Pontífice e na definição dogmática de sua infalibilidade,

realizadas pelo Vaticano I. Neste sentido, conseguiu o Concílio Vaticano II realizar

um verdadeiro equilíbrio de forças, ou é justa a afirmação de que ainda que tenha

acenado para a questão da colegialidade episcopal, acabou por afirmar com mais

veemência o primado do Papa? Será que tal interpretação do Concílio tem razão

de ser? É justo dizer que o Concílio, mesmo tendo lançado luzes sobre a dimensão

colegial da vida, do ministério e da missão dos bispos, tenha supervalorizado o

poder pontifício, colaborando com o processo de centralização da Igreja Universal?

O que disse, a respeito disso, a teologia pós-conciliar? Na prática eclesial pós-

Vaticano II, o que se fez para favorecer a vivência da colegialidade episcopal? Que

organismos foram “criados” para facilitar tal colegialidade e garantir a condução

“colegiada” da Igreja Universal? Ou, pelo contrário, que sintomas percebemos da

centralização romana?

Para alguns teólogos, a colegialidade episcopal foi um avanço do

Vaticano II, contudo, a tarefa conciliar ficou incompleta. E mais: o centralismo

da Cúria Romana no pós-concílio seria um forte sintoma de que ainda não se

compreendeu corretamente o conceito de colegialidade. Resultado disso seria a

pouca influência das Conferências Episcopais junto à Santa Sé, sobretudo no que

se refere às nomeações de bispos, à criações de dioceses, às tomada de decisões

nos âmbitos litúrgico e teológico.

Mais do que nunca, faz-se necessário levar a sério as palavras do Cardeal

Suenens, “importa compreender até que ponto primado e colegialidade estão

interligados, e situá-los um em relação a outro” (1969).

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Ao longo do nosso estudo, veremos, primeiramente, a questão do primado

de jurisdição do bispo de Roma, do modo como foi proposta pelo Vaticano I.

A seguir, partindo da Lumen Gentium, e de alguns teólogos, analisaremos os

textos conciliares mais importantes que tratam do episcopado: sua origem,

sacramentalidade e, principalmente sua colegialidade.

O CONCÍLIO VATICANO I E O PRIMADO DO ROMANO PONTÍFICE

Antes de adentrarmos na questão da colegialidade episcopal

propriamente dita, faz-se necessária uma rápida visita ao Concílio Vaticano I, mais

precisamente à Constituição Pastor Aeternus, acerca da Igreja. Em tal constituição

reflete-se, sobretudo, a questão do Primado do Romano Pontífice e propõe-se,

como verdade de fé, a infalibilidade papal. Sem uma reflexão sobre o episcopado,

a eclesiologia do Vaticano I voltou-se totalmente para a figura do Papa e colaborou

para que o processo de centralização da Igreja em Roma se tornasse ainda mais

forte. Buscar um “equilíbrio de forças” entre papado e colégio episcopal será

uma das tarefas do Vaticano II. Por isso, antes de entrarmos em contato com o

tema proposto para nossa pesquisa – a colegialidade episcopal à luz do Vaticano

II – é conveniente tomar consciência da teologia acerca do Primado Pontifício,

apresentada pelo Vaticano I.

Após trezentos anos da conclusão do Concílio de Trento (o mais longo da

história, 1545 – 1563), mais precisamente no ano de 1864, o Papa Pio IX anunciava,

a um restrito grupo de cardeais da Cúria Romana, seu desejo de convocar um

concílio ecumênico.

Como afirma G. Alberigo:

El contexto se presentaba difícil desde diversos puntos de vista: la cuestión romana suscitada por la erosión del poder temporal, era sumamente complicada; la nostalgia de una ‘cristianidad’ protectora de la fe y de la Iglesia se mantenía viva en muchos espíritus; los teólogos, polarizados en torno a la escuela romana por um lado y a la alemana por otro, estaban divididos en fuertes conflictos doctrinales, mientras que se seguía teniendo miedo – quizás sin fundamento – a un galicanismo eclesiológico. El denomiador común de estos problemas era, a los ojos del pontificado romano, la amenaza que constituía para el cristianismo la ‘civilización moderna’, como señalaba la LXXX proposición del Silabo de los errores modernos, publicado por el mismo Pío IX.1

1 ALBERIGO, G. Historia de los concilios ecuménicos. Salamanca: Sígueme, 1993. p. 315

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A convocação do I Concílio do Vaticano se deu, de fato, a 26 de maio de

1867, quando em Roma se celebrava um grande consistório para comemorar

os 1800 anos do martírio dos Apóstolos Pedro e Paulo. Finalmente, no dia 8 de

dezembro de 1869 foi celebrada a solene sessão de abertura.

Dois temas dominariam as reflexões conciliares:“a explicação da fé católica

face aos erros da época e a doutrina a respeito da Igreja de Cristo” (Denzinger-

Hünermann, 2007, p. 643). Devido a acontecimentos políticos – a tomada da

cidade de Roma pelo exército italiano e o fim do poder temporal do Papa (1870)

– o Concílio foi interrompido por Pio IX sine die, através da Bula “Postquam Dei

munere, de 20 de outrubro de 1870. Puderam ser votadas duas constituições:“Dei

Filius”, sobre a fé católica, e “Pastor Aerternus”, sobre a Igreja de Cristo.

Interessa-nos, no momento, a Constituição Pastor Aerternus, na medida em

que, através dela, o Concílio se expressou, dogmaticamente, acerca do Primado do

Romano Pontífice e de sua Infalibilidade“quando fala ex cathedra – isto é, quando,

no desempenho do múnus de pastor e doutor de todos os cristãos, define com

sua suprema autoridade apostólica que determinada doutrina referente à fé e à

moral deve ser sustentada por toda a Igreja” (DH 3074).

A Constituição Pastor Aeternus, consta de uma introdução e quatro

capítulos, concluídos sempre com um cânon definitório. O preâmbulo, ou

introdução, como chamamos acima, trata da instituição e do fundamento da Igreja

(DH 3050-3052). “Afirma que Cristo instituiu em Pedro um princípio perpétuo e

um fundamento visível da unidade do episcopado e da Igreja” (CODINA, V. 1993.

p. 153).

O primeiro capítulo (DH 3053-3055) reflete sobre a instituição do primado

apostólico em S. Pedro; o segundo (DH 3056-3058), apresenta a perpetuidade do

primado de S. Pedro nos Romanos Pontífices; o terceiro (DH 3059-3064), versa

sobre a natureza e o caráter do primado do Pontífice Romano. Sobre ele, assim se

expressa V. Codina:

O capítulo terceiro talvez seja o mais denso. Centra-se na natureza do primado do romano pontífice. Afirma-se que este primado não só é de direção e inspeção, mas goza de plena e suprema potestade de jurisdição sobre toda a Igreja; não só sobre a fé e os costumes, mas também em questões de regime e disciplina; não só possui uma parte principal, mas a plenitude da suprema potestade; esta potestade é ordinária (não somente extraordinária ou delegada) e imediata (não só mediante a mediação conciliar); esta potestade é verdadeiramente episcopal, isto é, concerne ao papa enquanto bispo de Roma.2

2 CODINA, V. Para compreender a eclesiologia a partir da América Latina. São Paulo: Paulinas. 1993. p. 154.

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Quanto ao quarto capítulo (DH 3065-3075), trata do Magistério infalível do

Romano Pontífice. Contra Bossuet3 e os galicanos4, que exigiam“o consentimento

prévio da Igreja como condição jurídica para a validez do exercício do magistério

pontifício” (CODINA, 1993. p. 154), o Concílio definiu dogmaticamente a

infalibilidade papal. Na prática, isso significa que, como já vimos:

Quando o papa fala ex cathedra, isto é, como mestre e supremo pastor, em assuntos de fé e costumes (não sobre outros temas como ciência, política...) possui a infalibilidade que o Senhor quis que tivesse toda a Igreja, e isto por si mesmo (ex sese), sem necessidade de contar com o consentimento da Igreja.5

SegundoV. Codina, a infalibilidade pontifícianãocausoutantos problemas

no pós-concílio como se previa. Afora o problema com os veterocatólicos6, “em

mais de um século, só Pio XII exerceu-a em 1950, ao proclamar a assunção de

Maria aos céus como dogma de fé, antes do que consultou todos os bispos da

Igreja universal” (CODINA, 1993. p. 155).

O mesmo, contudo, não se pode dizer sobre a questão da jurisdição

plena e universal do primado pontifício. Um dos frutos dessa definição conciliar

foi a “grande centralização no governo da Igreja e uma diminuição do poder

episcopal dos bispos do orbe” (CODINA, 1993. p. 155). É sintomático o modo

como o chanceler do Império alemão, Otto von Bismarck, recebeu e interpretou

as decisões conciliares. Em Despacho Circular, datado de 1872, mas publicado

em 1874, a Chancelaria alemã deixa transparecer que “as relações entre o

Império alemão e o Papa foram gravemente hipotecadas pelo Concílio Vaticano

I, porque na constituição sobre o bispo de Roma o Concílio teria fixado como

ponto de doutrina a centralização romana e o totalitarismo papal” (DENZINGER-

HÜNERMANN, 2007. p. 662). Esse Despacho do governo da Alemanha provocou

uma “Declaração Comum” por parte do episcopado daquele país, na qual a

interpretação de Bismarck quanto à questão do primado do Papa é reprovada

e tida como falsa. Pio IX, como era de se esperar, endossou a Declaração do

episcopado germânico através da Carta apostólica Mirabilis illa constantia, de 4

de março de 1875.

3 Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704), bispo e teólogo francês, foi um dos primeiros a defender a teoria do absolutismo político e o direito “divino” dos reis. Formulou a ideologia gaulesa ou galicana, que estabelecia certos direitos do rei contra o Papa.

4 Chamou-se galicanismo a tendência separatista da Igreja Católica da França em relação a Roma e ao Papa. A origem do nome provém de Gália, antigo nome da França.

5 CODINA, V. op. cit., p. 154. 6 Os primeiros grupos veterocatólicos se organizaram a partir de 1870, quando vários intelectuais,

sacerdotes e bispos católicos na Áustria, Suíça e, principalmente, na Alemanha rejeitaram as decisões do Vaticano I sobre a infalibilidade do Romano Pontífice.

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Segundo J. Comblin,

Depois do Vaticano I, o episcopado viu suas atribuições sendo cada vez mais reduzidas. (...) Havia, em várias regiões, tentativas de reconciliação com o mundo moderno. Tudo isso foi implacavelmente reprimido, e Pio IX iniciou um movimento de nomeações episcopais com o critério da total submissão à Cúria Romana. A partir dele começou a tendência de concentrar todas as nomeações episcopais nas mãos do Papa, e essa concentração de poder entrou no primeiro Código de Direito Canônico (1917) sem resistência por parte do episcopado – por sinal totalmente absorvido pela Guerra Mundial. Desde Pio IX os bispos foram ficando cada vez mais controlados pela Cúria e esse movimento atingiu o auge no pontificado de Pio XII [1939-1958].7

O espírito de hostilidade no debate com o mundo moderno, a visão

juridicista da Igreja, as perturbações políticas na Europa – sobretudo na campanha

militar para a unificação da Itália, que resultou no fim do Estado Pontifício e

do poder temporal do Papa - influenciaram as discussões conciliares e muito

contribuíram para que a eclesiologia do Vaticano I ficasse incompleta. De fato, ao

lado da doutrina sobre o primado pontifício fazia-se necessária a promulgação

de uma correspondente doutrina sobre o Episcopado8. Caberá ao Vaticano II,

quase um século depois, retomar as discussões e trazer à luz princípios como,

subsidiariedade, co-responsabilidade e colegialidade.

A COLEGIALIDADE EPISCOPAL SEGUNDO A LUMEM GENTIUM

O tema da colegialidade episcopal no concílio Vaticano II foi abordado no

terceiro capítulo da Constituição Lumem Gentium sobre a Igreja. Nesse capítulo,

que traz como título A constituição hierárquica da Igreja, apresentou-se a doutrina

acerca do episcopado, completando, de certa forma, o que faltava ao Vaticano I.

Assim se expressam os padres conciliares:

Este sagrado Sínodo reafirma, para a fé de todos os fiéis, a doutrina sobre a instituição perpétua, alcance e natureza do sagrado primado do Romano Pontífice e do seu magistério infalível e, prosseguindo a matéria começada, pretende declarar e manifestar a todos a doutrina sobre os bispos, sucessores dos Apóstolos, que, com o sucessor de Pedro, vigário de Cristo e cabeça visível de toda a Igreja, governam a casa de Deus vivo (LG 18).

7 COMBLIN, J et al. Vaticano II 40 anos depois. São Paulo: Paulus, 2006. p. 60. 8 RATZINGER, J. A colegialidade dos bispos, desenvolvimento teológico. In: BARAÚNA, G.

(org.). A Igreja do Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1965. p. 763.

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Percebe-se pela formulação do texto conciliar que o objetivo não é apenas

acolher o que já havia sido proposto pelo Vaticano I, mas, além disso, alargar-lhe a

visão eclesiológica, na medida em que, ao lado da doutrina acerca do primado e

da infalibilidade papal, seria expressa a doutrina sobre o episcopado.

Na verdade, ainda que trate da constituição hierárquica da Igreja, o terceiro

capítulo da Lumen Gentium foca sua atenção no episcopado. Sobre os presbíteros

e diáconos trata-se somente nos últimos números (28 e 29). Vale recordar que

o diaconado permanente como o conhecemos foi “restaurado” pelo Concílio no

número 29 da Lumen Gentium. Porém, o grande objetivo dos padres conciliares é

expor, como dissemos acima, a doutrina sobre o episcopado.

Após uma rápida introdução (n.18), o concílio aborda a questão da

instituição dos Doze Apóstolos (n. 19) por parte de Cristo; a questão da sucessão

apostólica presente no ministério episcopal (n. 20); da sacramentalidade do

episcopado (n. 21) – outro avanço do Vaticano II, sobre o qual falaremos mais

adiante; e da colegialidade episcopal (n. 22); trata, também, das relações dos bispos

no Colégio (n. 23); no n. 24 reflete sobre o ministério dos bispos e nos números

seguintes, a saber, do 25 ao 27, apresenta o tríplice múnus do episcopado: ensinar,

santificar e governar.

Detenhamo-nos, por hora, sobre aquilo que nos interessa: a colegialidade

episcopal, na forma como foi definida pelo Vaticano II. Para A. J. de Almeida,

A Lumen Gentium recuperou a colegialidade episcopal, firmando- se em quatro argumentos: a) o chamamento e o envio dos doze por Jesus Cristo na forma de um ‘colégio’ ou grupo estável, tendo como cabeça Pedro; b) a permanência do ofício confiado por Cristo aos apóstolos na sagrada ordem dos bispos, que, sucedendo o grupo apostólico no magistério e no pastoreio, prolonga também a estrutura colegial; c) assim como Pedro, escolhido dentre os Doze, foi colocado por Cristo como cabeça do colégio apostólico, da mesma forma o bispo de Roma, sucessor de Pedro é posto, por vontade de Cristo, como cabeça do colégio episcopal; d) é em virtude da consagração sacramental, e na comunhão hierárquica com a cabeça e os membros do colégio, que fica alguém constituído membro do corpo episcopal9.

Levando em consideração esses quatro argumentos e um texto de J.

Ratzinger, publicado logo após a promulgação da Lumen Gentium, pretendemos,

agora, acenar para as enunciações do Concílio sobre a colegialidade dos bispos.

9 ALMEIDA, A. J. Lumen Gentium: a transição necessária. São Paulo: Paulus, 2005, p. 95.

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ENUNCIAÇÕES DO CONCÍLIO SOBRE A COLEGIALIDADE DOS BISPOS

A ATIVIDADE DE JESUS COMO ORIGEM DA IGREJA, DO COLÉGIO APOSTÓLICO E,

ATRAVÉS DA SUCESSÃO APOSTÓLICA, DA COLEGIALIDADE EPISCOPAL

Nos nn. 18 e 19 da Lumen Gentium, ao refletir sobre o episcopado, o

Concílio procurou lançar um olhar sobre a atividade de Jesus, conforme descrita

pelos Evangelhos, para dali extrair o fundamento sólido que justificasse, por um

lado a sucessão apostólica dos bispos e, por outro, sua colegialidade.

No Novo Testamento, a escolha dos Apóstolos aparece como fruto da

livre vontade do Senhor (cf. Mc 3,13), do mesmo modo a constituição do grupo

(colégio) dos Doze. Segundo o Concílio, “Jesus Cristo, pastor eterno, edificou a

Igreja, tendo enviado os Apóstolos, como ele fora enviado pelo Pai (cf. Jo 20,21);

e quis que os sucessores deles, os bispos, fossem pastores na sua Igreja até o fim

dos tempos” (LG 18). A figura de Pedro ganha destaque aqui, como aquele que foi

colocado pelo Senhor à frente do grupo dos Doze, a fim de tornar-se “princípio e

fundamento perpétuo e visível da unidade de fé e comunhão” (LG18). Podemos

dizer que, assim como o Senhor instituiu os Doze Apóstolos como grupo ou

colégio e os enviou em missão, tendo Pedro à sua frente, da mesma forma quis

que os sucessores dos Apóstolos continuassem sua missão como grupo estável

ou colégio, tendo o sucessor de Pedro (o bispo de Roma) como ponto de unidade

e cabeça do colégio episcopal. Resumindo, poderíamos dizer:

Chamados pelo Senhor como Apóstolos, Cristo organizou os Doze, assim diz o texto, ‘à maneira de um colégio ou grupo estável’. Colocou Pedro, escolhido do meio deles, como seu chefe. Essa frase já contém, em germe, o pensamento fundamental em que todo o mais se baseia: A forma primitiva da função espiritual, estabelecida pelo próprio Senhor, - ‘os Doze’, como a Escritura, repetidas vezes, simplesmente os chama (por exemplo, Mt 11,1; 20,17; 26,14.30; Mc 3,14.16; 4,10; 11,11; 14,10.17.20.43; Lc 8,1; 9,1; 18,31; 22,3; Jo 6,67- 71; 20,24; At 6,2; 1Cor 15,5) – é colegial; um dos Doze – Pedro – está, todavia, em realce, achando-se à frente dos restantes, mas assim que ainda pertença ao colégio, isto é, aos Doze.10

A atividade do Jesus histórico é, isso fica claro no documento conciliar,

geradora da Igreja, fonte da missão (e da colegialidade) dos Apóstolos e de seus

sucessores. Desse modo, a Lumen Gentium explicita não apenas o princípio da

colegialidade episcopal, mas também da sucessão apostólica presente nos bispos.

“Que os bispos são sucessores dos apóstolos é uma declaração fundamental da

10 RATZINGER, J. op. cit., pp. 763-764.

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teologia católica, confirmada expressamente pelo Vaticano I e sobre a qual não

pode haver nenhuma séria contestação” (Ratzinger, 1965. p. 766).

O EPISCOPADO COMO SACRAMENTO

Conforme a ordem dos “argumentos” propostos por A. J. de Almeida, deveríamos tratar agora – tendo visto anteriormente a questão da constituição

do grupo dos Doze e a sucessão apostólica – do primado de Pedro. Porém, para

seguir o esquema proposto pela Lumen Gentium (cf. n. 21), abordaremos o tema

da sacramentalidade do episcopado. Não é nosso objetivo, contudo, seguir essa

questão nos seus pormenores; “queremos unicamente focalizá-la nos limites do problema da colegialidade, para o que ela de fato exerce um papel significativo”11.

Segundo Almeida,

A afirmação solene da sacramentalidade do episcopado (LG 21) coroa a doutrina conciliar sobre o episcopado, cujo fundamento não é, como se acreditou por muitos séculos por causa da ‘opinio Hieronymi’, um mero acréscimo de jurisdição conferido pelo papa ou imediatamente por Deus, mas verdadeiro sacramento, ápice sacramental da comunicação do ministério ordenado.12

Sobre a sacramentalidade do episcopado, assim se expressa o texto

conciliar:

“Ensina, porém, o santo Sínodo que, pela consagração episcopal, se confere a plenitude do sacramento da ordem que, precisamente, na tradição litúrgica e nos santos Padres, é chamada sumo sacerdócio e suma do sagrado ministério”.13

Ao afirmar a sacramentalidade do episcopado (LG 21), o texto final da

Lumen Gentium emoldurou-a, por um lado, com o tema da instituição do múnus

episcopal na função dos Doze e com o princípio da sucessão apostólica (LG 20) e,

por outro, com a exposição propriamente dita do conceito de colegialidade (LG

22)14. Ao olharmos para esses três números do documento conciliar, podemos perceber a apresentação de “um único curso de ideias, firmemente conexas e

inseparáveis” (RATZINGER, 1965. p. 767). A constituição, pelo Senhor, do grupo

dos Doze exige a sucessão como critério para a permanência da missão; a

11 Id. 12 ALMEIDA, A. J. op. cit., p. 96. 13 LG 21. 14 Cf. RATZINGER, J. op. cit., p. 766

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sucessão supõe a comunicação da graça recebida (imposição das mãos – graça

sacramental); pela graça (sacramento) recebida, além da participação na missão

do Senhor e dos Apóstolos, se é inserido no colégio episcopal.

Podemosperceberaforçadessasafirmaçõesconciliaresseascompararmos

com o esboço De ecclesia, apresentado em 1962. Tal esboço

tinha esclarecido, relativo à participação no colégio episcopal, que são suo iure membros desse colégio os bispos residenciais que vivem em paz com a Sé Apostólica. Como verdadeiras e únicas raízes da colegialidade episcopal apareceu assim a jurisdição episcopal sobre uma determinada diocese. Com isso estava por completo separada a colegialidade do plano sacramental e deslocada para o campo exclusivamente jurídico.15

As consequências desse raciocínio são funestas. Continua J. Ratzinger:

Visto que na atual praxe da Igreja latina a jurisdição é efetivamente consignada aos bispos pelo Papa, tornou-se evidente a dedução de considerar o colégio dos bispos, por fim, como uma simples criação do direito papal, e assim, novamente dissolver, na base, a grande ideia antes que fosse pensada até o fim.16

Contudo, tal ideia foi rechaçada pelos padres conciliares. O texto final

elenca duas raízes da colegialidade, que na verdade formam uma unidade inseparável. Segundo a Lumen Gentium (22), é “em virtude da sagração episcopal

e pela comunhão hierárquica com a cabeça e os membros do colégio que alguém

é constituído membro do corpo episcopal”.

Na prática, isso significa que:

a) A sagração episcopal, entendida como plenitude do sacramento da

Ordem, não se refere somente ao indivíduo como indivíduo, mas é inserção

num todo, numa unidade de serviço: o colégio dos bispos. “Como demonstra

o chamamento para o apostolado no simbolismo dos ‘Doze’, que forma uma

parte imprescindível da missão apostólica, assim é a sagração episcopal, em sua essência, inserção na comunidade do ministério episcopal” (Ratzinger,

1965. p. 768). Manifesta-se aqui um grande desafio para o epíscopo: vencer o

individualismo e participar numa tarefa comum.

b) Daí resulta, por si, a segunda condição para pertencer ao colégio

episcopal: a efetiva comunhão com o chefe e com os demais membros desse

15 Ibdem., p. 767. 16 Id.

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colégio. Essa comunhão com o Papa e com os outros bispos não é um acréscimo

exterior ao sacramento da Ordem, é “seu desenvolvimento essencial”, segundo

Ratzinger. Vale lembrar que tal comunhão deve ser recíproca e que não significa

comunhão somente com o bispo de Roma, mas com todos os demais bispos:“em

comunhão hierárquica com a cabeça e os membros do colégio episcopal” (LG 21).

Lembra o teólogo da Baviera que, “não se pode jamais ter comunidade com o

Papa somente, mas estar em comunidade com ele se chama necessariamente ser

‘católico’, isto é, estar em relação de comunhão com todos os outros bispos que

pertencem a Catholica” (Ratzinger, 1965. p.768).

PODER COLEGIAL E PODER PRIMACIAL: AS RELAÇÕES ENTRE COLÉGIO EPISCOPAL

E SEU CHEFE, O BISPO DE ROMA

O tema da colegialidade episcopal, sua origem, natureza e fundamentos,

está exposto, sobretudo no n. 22 da Lumen Gentium. Nesse número, o Concílio

recorda que,“assim como, por instituição do Senhor, S. Pedro e os demais Apóstolos

formam um colégio apostólico, assim igualmente estão unidos entre si o Romano

Pontífice, sucessor de Pedro, e os bispos, sucessores dos Apóstolos”. Argumenta

também que, “a natureza colegial da ordem episcopal (...) manifesta-se já na

disciplina primitiva, segundo a qual os bispos de todo o orbe comunicavam entre

si e com o bispo de Roma no vínculo da unidade, da caridade e da paz”. Recordam

ainda, os padres conciliares, que a colegialidade episcopal se manifesta ao longo

da história na celebração de Concílios Ecumênicos e na antiqüíssima prática

de tomarem parte nas ordenações episcopais diversos bispos pertencentes à

mesma região do neo-eleito. Por fim, como vimos acima, são explicitadas as duas

raízes da colegialidade: a sacramentalidade da sagração episcopal e a comunhão

hierárquica com o Papa e os demais bispos.

Contudo, após essas explanações acerca da constituição do colégio

episcopal, chega-se à segunda parte do número 22 da Lumen Gentium,

“provavelmente a parte mais discutida do texto” (Ratzinger, 1965. p 777). Talvez J.

Comblin estivesse pensando nesse texto conciliar quando afirmou:

No Concílio falou-se muito dos bispos. Porém, na questão principal, que era a relação entre os bispos e o Papa, houve pouco avanço. Afinal, falou-se com tanta insistência do poder do Papa que, como comentou o teólogo protestante Oscar Cullmann, o Vaticano II insistiu mais nos poderes do Papa do que o Vaticano I. No concreto, os bispos não se viram atribuídos de direitos novos. Não houve modificação na relação entre os bispos e a Cúria [Romana]17.

17 COMBLIN, J. op. cit., pp. 61-62.

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De modo semelhante, inicia Ratzinger sua interpretação do referido texto

conciliar. Afirma nosso teólogo que

O texto começa com uma constatação negativa: o colégio episcopal não tem nenhuma autoridade, se não é compreendido em união com sua cabeça, o sucessor de Pedro, cujo Primado sobre todos os pastores e fiéis permanece inviolável. Com isso deve ser afastada uma oposição do poder colegial e primacial, como se o colégio episcopal pudesse constituir-se num poder concorrente com o Primado: não se realiza de modo algum como colégio sem o bispo da prima sedes e pode daí operar sempre só a seu favor, nunca contra ele. Então se cumpre a contraprova: enquanto o colégio episcopal é apenas juntamente com o Papa verdadeiro colégio (a modo da Igreja Universal), o Papa é também pastor da Igreja universal sem o colégio e pode exercer livremente o seu poder sem que se deva deixar primeiramente autorizar para isso pelo colégio. A relação não é, portanto, reversível: o Papa pode agir sem o colégio, mas não o colégio sem o Papa (1965, p. 777).

Não viria essa “constatação negativa” do Vaticano II, confirmar e fortalecer

os críticos do Vaticano I e do processo de centralização da Igreja em Roma? Teria

razão José Comblin, citando Oscar Cullmann, que o Vaticano II insistiu mais nos

poderes do Papa, em detrimento dos bispos, do que o Vaticano I? Afirmações

como, “o colégio ou corpo episcopal, porém, não tem autoridade a não ser em

união com o Romano Pontífice, sucessor de Pedro, entendido como sua cabeça,

permanecendo inteiro o poder de seu primado sobre todos, quer pastores quer

fiéis” (LG 22), não apenas confirmam aquilo que já havia sido promulgado pelo

Vaticano I, mas, de certa forma ofuscam a “colegialidade” da Igreja, centralizando

todo o poder nas mãos de uma única pessoa? Se uma afirmação, como a acima

citada,nãoforbemcompreendida,podedarmargemainterpretaçõesequivocadas,

cujas conseqüências práticas podem resultar em prejuízo para a própria Igreja

e para sua missão evangelizadora. Ratzinger procura chamar a atenção para o

fato de que “essas declarações repousam sobre um plano puramente jurídico

e descrevem exclusivamente a autorização existente ou ausente para decisões

válidas” (1965, p. 777). Em outras palavras, poderíamos dizer que, por se tratar de

um documento conciliar, todo rigor de linguagem e doutrina faz-se necessário

para que a fé seja transmitida corretamente. Todavia, segundo nosso teólogo,

Um modo de ver que respeitasse mais o aspecto moral dos fatos levaria sem dúvida a bem outros resultados: de um lado o Papa nunca deverá deixar sem atenção a opinião dos bispos e com eles a opinião da Igreja inteira. De outro lado deverá haver iniciativas realmente independentes do episcopado18.

18 RATZINGER, J. op. cit., p. 777.

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Com essas afirmações negativas está explicitado o duplo limite da

colegialidade episcopal: a dependência do colégio da cooperação do Papa e a

independência do Papa da cooperação do colégio19.

Na seqüência o texto conciliar se volta para o lado positivo da questão.

Podemos resumir o que foi promulgado da seguinte maneira: 1) O colégio

episcopal, junto com seu chefe, o Papa, é, do mesmo modo (como este), sujeito

do poder mais elevado e pleno sobre a Igreja inteira; 2) por ser composto por

muitos, representa a variedade e a universalidade do povo de Deus; 3) devido ao

fato de estar unido sob um chefe, expressa a unidade do rebanho de Cristo; 4) é

graças à ação do Espírito Santo que o colégio, unido a sua cabeça, pode exercer

seu “poder” em favor dos fiéis e de toda a Igreja e é confirmada sua “estrutura

orgânica e concórdia”; por fim, 5) são lembrados dois modos de como se realiza

na prática, a colegialidade: o Concílio Ecumênico e outros atos “extraconciliares”,

ambos carecendo da aceitação ou aprovação do bispo de Roma para serem cridos

como verdadeiros “atos” do colégio episcopal.

CONCLUSÃO

A eclesiologia ganhou, no século XX, novos enfoques e foi, sobretudo

pelo Vaticano II, impulsionada a alçar novos vôos. A redescoberta da teologia

dos Santos Padres, os movimentos pré-conciliares (bíblico, litúrgico, ecumênico),

o espírito de abertura, diálogo e renovação promovido pelo Concílio fizeram

com que a teologia voltasse seu olhar para novos horizontes. A prática da Igreja

indivisa do primeiro milênio e a abertura ao mundo moderno contribuíram

para a elaboração de “eclesiologias” mais coerentes com o Evangelho e com a

realidade mesma da Igreja: Povo de Deus, Mistério de Comunhão. Estas novas

(porém, antigas!) perspectivas eclesiológicas favoreceram uma análise e, por fim,

uma reformulação de antigos conceitos. A releitura do dogma – e aqui aludimos,

sobretudo, ao Primado do Romano Pontífice e à Infalibilidade Papal – possibilitou

novas interpretações da fé eclesial e, consequentemente, novas abordagens na

prática da Igreja. Contudo, para muitos, apesar dos avanços, muito há que se fazer

no campo da eclesiologia, tanto no referente à interpretação do dogma sobre a

Igreja, quanto à prática eclesial – o modo como é conduzida, a co-responsabilidade

de todos os fiéis, a vivência do discipulado e da missionariedade por parte dos

batizados.

19 Cf. id.

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Diante da realidade de novos horizontes que se abrem à Igreja de Cristo,

compreender a relação existente entre o colégio dos bispos e o primado do

Romano Pontífice é importantíssimo, na medida em que tal relação diz respeito à

condução (ou pastoreio) do Povo de Deus a Deus e de processos importantíssimos

no interior da Igreja mesma, a saber, a participação ativa de todos os fiéis nos

destinos da Igreja, o respeito às Conferências Episcopais, às culturas e povos

diversos que compõem a Igreja Universal, entre outros. Sem falar que centralismo

e autoritarismo, infelizmente presentes na prática eclesial, são contrários ao

Evangelho, oferecendo ao mundo um verdadeiro contra-testemunho.

Garantir a unidade da Igreja em todo o mundo é fundamental; contudo,

faz-se necessário também salvaguardar a primazia da Igreja Particular quanto

ao processo de evangelização daquela porção do Povo de Deus que a compõe.

A unidade da fé não necessita tanto de um poder centralizador, que tudo vê e

comanda, mas de pessoas que, congregadas pelo Pai e pelo Filho e pelo Espírito

Santo, num determinado espaço territorial ou sociocultural, formam comunidades

vivenciais no amor e mantêm-se unidades umas às outras pela ação do Santo

Espírito, pelo Evangelho, pela Eucaristia e pelo pastoreio de seu bispo, com o qual

coopera o presbitério (cf. Christus Dominus 11).

E mais. Vale lembrar que:

O bispo representa a Igreja universal perante a Igreja local, e a Igreja local em face da Igreja universal. Deste modo ele serve à unidade. Não permite que a Igreja local se feche sobre si mesma, mas se abra para o todo, para que as forças vivificantes dos carismas possam circular livremente. Da mesma forma que ele abre a Igreja local em face da Igreja universal, assim também leva à Igreja universal a voz particular de sua diocese, seus dons particulares, suas realizações e seus sofrimentos. Tudo pertence a todos. Cada órgão é importante, e a contribuição de cada um é necessária para o todo. Por isso o sucessor de São Pedro deve entender seu ofício de tal maneira que não sufoque os dons particulares de cada Igreja local, não as submeta a uma falsa uniformidade, mas permita que atuem num intercambio vital do todo. Estes imperativos valem para o bispo em seu lugar e valem com tanto mais razão para a direção comum que os bispos exercem por meio do sínodo ou da conferência episcopal.20

A partir do Vaticano II, mas, sobretudo depois do Sínodo dos Bispos de

1985, tem-se dado muita ênfase na chamada eclesiologia de comunhão. Alguns a

criticam. Comblin, por exemplo, afirma que tal eclesiologia foi “patrocinada” pela

Cúria Romana, num desejo de abafar a força da teologia da Igreja Povo de Deus

20 RATZINGER, J. Compreender a Igreja hoje: vocação para a santidade. Petrópolis: Vozes, 2006. p. 55.

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(conceito-chave na Lumen Gentium). Outros, a celebram com esperança, uma vez

que,

Esta eclesiología de comunión es la que lleva a ver al colegio episcopal, en el que se integra el papa como su presidente, como el reflejo y la expresión de la comunión de las iglesias. El colegio de los obispos es el que tiene la potestad suprema en la Iglesia, sea que actúe representado singularmente por su cabeza, el obispo de Roma, o cuando actúa corporativamente como ocurre en los concilios. Tenemos así un gobierno corporativo de la Iglesia, con un primado que preside el colegio episcopal cuyas competencias sólo están limitadas por el derecho natural y la constituición divina de la Iglesia. La potestad papal se convierte así en un factor de unidad y de comunión, que se usa para la‘edificación’de la Iglesia y no en absoluto para conculcar los derechos de cada obispo, que por el mero hecho de serlo tiene ya solicitud universal por todas las iglesias y forma parte del colegio episcopal. Es lo que litúrgicamente se expressa en la ordenación de cada obispo por otros obispos vecinos.21

Esta eclesiologia, que se desenvolveu amplamente no pós-concílio, leva

consigoumaprofundamodificaçãodaestruturaorganizativadogovernocentralda

Igreja. Neste sentido, poderíamos destacar como seus possíveis frutos: 1) a reforma

da Cúria e das competências de Roma – atualmente profundamente arraigadas

num modelo monárquico do papado, no qual se pretende centralizar o poder, em

detrimento das Igrejas particulares; 2) um saudável processo de descentralização,

guiado pelo princípio de subsidiariedade; 3) uma desburocratização, que devolva

às Igrejas locais (e hoje, também às conferências episcopais) alguns direitos que

desfrutaram há séculos; 4) a necessária revisão, em profundidade, da legislação da

Igreja, que leve em conta a legitimidade das diferenças e da pluralidade sempre

que esta não ataque a fé e a unidade essencial.

Tendo diante dos olhos este modelo eclesial, não apenas a estrutura

central de governo da Igreja deve passar por reformas profundas, mas a própria

configuração da imagem sacerdotal precisa ser renovada. Há que se buscar

ministros mais integrados com suas comunidades, capazes de promover a ação

evangelizadora a partir da participação e colaboração dos fiéis, ou como nos

lembra a clássica expressão de Puebla, a partir da comunhão e participação. Ao

tratar deste ponto,

Hay que destacar la importancia de la participación comunitaria en la elección de los ministros. Sabemos que ésta ha sido la tradición durante más de un milenio y desde el punto de vista teológico no hay problemas que impidam una mayor autonomia y aplicación del principio de subsidiariedad en la elección de los ministros. Esto se

21 ESTRADA, J. A. La Iglesia: Instituición o carisma? Salamanca – Esp.: Sigueme, 1984. p. 241.

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podría aplicar a escala de Iglesia universal. De hecho la práctica según la cual el papa tiene el monopólio del nombramiento de obispos solo se há impuesto universalmente a partir del siglo XIX. No hay ningún obstáculo para que la elección y nombramiento de obispos recaiga sobre las conferencias episcopales y tenga en cuenta el parecer de las diversas instancias de las iglesias locales. La praxis atual es legítima en cuanto que el papa tiene esa competencia y debe ejercela en bien de la Iglesia. Pero eso no quiere decir que hoy sea la praxis más adecuada y favorecedora tanto de la comunión eclesial como de la vida y autonomia de las iglesias locales.22

Por fim, faz necessária também uma profunda retomada dos dois concílios

do Vaticano, ambos “inacabados”, na expressão de A. J. de Almeida. Segundo este

teólogo,

Três são os principais limites do conceito de colegialidade tal qual foi elaborado pelo Vaticano II: 1) a cisão, aceita pela Lumen Gentium, entre o colégio dos bispos e a comunhão das Igrejas; 2) a concepção da colegialidade segundo um esquema binário (papa/bispos), é muito redutiva diante da mais rica e articulada realidade das Igrejas; 3) o conceito de colégio elaborado pelo Vaticano II é extremamente redutivo no nível canônico.23

Contudo, apesar destes limites,

a categoria da colegialidade trouxe alguns ganhos tanto para a Igreja Católica quanto para o ecumenismo: a) pondo a origem da exousía de cada bispo no sacramento da ordenação, operou- se uma rearticulação de princípio entre poder de ordem e poder de jurisdição, o que constituiu um progresso importante na possibilidade de pensar conjuntamente colegialidade dos bispos e comunhão das Igrejas; b) esta visão mais clara da origem da sacra potestas provocou a substituição do moderno sistema de concessão de faculdades pelo sistema atual da reserva papal; c) surgiram novas instituições que consentem uma melhor expressão da comunhão das Igrejas no interior da Igreja Católica; apesar das limitações e das reticências, tanto o sínodo dos bispos como as conferências episcopais acabaram por promover na prática uma eclesiologia de orientação ecumênica.24

Segundo A. J. de Almeida, graças ao Espírito Criador, restam-nos boas

esperanças, pois

22 Ibid., 1984, p. 246. 23 ALMEIDA, A. J. Igrejas locais e colegialidade episcopal. São Paulo: Paulus, 2001. p. 83. 24 Ibid., pp. 89-90.

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o Vaticano II oferece alguns elementos decisivos para uma abordagem mais comunional do primado e do colégio dos bispos. Três pontos de superação – uma espécie de autocorreção do Vaticano II nesta matéria e que parecem abrir-se para o futuro – podem ser individuados e devem ser valorizados no Vaticano II: 1) a superação do binômio primado/colegialidade pelo esboço de uma teologia das Igrejas regionais, que permita desenvolver uma concepção ternária da comunhão: papa-Igrejas regionais-bispos (cf. LG 23; OE 2; 3; 5); 2) a superação da problemática do duplo sujeito, inadequadamente distinto, da suprema e plena potestade na Igreja, por uma reinterpretação do Vaticano I; 3) a revisão dos títulos habituais do papa. 25

Como podemos perceber, resta-nos um longo caminho pela frente. Muito

mais do que ponto de chegada, o Concílio Vaticano II apresenta-se para nós como

ponto de partida. A teologia em geral, e a eclesiologia em particular, tem muito

que aprender deste grande acontecimento eclesial do século passado. Porém, em

alguns aspectos, até mesmo o Concílio, cujos documentos parecem estar sempre

à nossa frente, é fruto de um tempo determinado, por isso, carente de constante

revisão e aprofundamento teológico. Ninguém consegue escapar disso. O ser

humano é, na expressão de Guimarães Rosa,‘travessia’. Surge daqui, a necessidade

de não esmorecer frente aos novos desafios que se impõem à Igreja e à sua prática

evangelizadora. Ainda que a fé e a salvação sejam ofertas feitas definitivamente

pelo Senhor, somos seres contingentes, marcados por nosso contexto vital, por

nossas escolhas, erros e acertos. À luz da fé, tendo como meta vivenciá-la melhor,

temos de submeter nossas estruturas, sem temor, a um belo processo de revisão.

Abandonar práticas ultrapassadas e levar avante a tarefa da renovação da vida

eclesial, promovendo, como nos pede Aparecida, uma verdadeira conversão

pastoral, deve ser nossa meta. Somos convidados a viver o presente, olhando para

o passado e para as lições que dele podemos extrair, sem nos descuidar, contudo,

do futuro, que humildemente confiamos a Deus.

25 Ibid., pp. 90-91.

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