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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
A AMBIGUIDADE DO DISCURSO RETRICO: CAMINHOS E DESCAMINHOS
DA PERSUASO (PEITH) COMO INSTRUMENTO PARA A FILOSOFIA NO
GRGIAS, DE PLATO
MAURCIO ALVES BEZERRA JNIOR
NATAL RN
2016
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MAURCIO ALVES BEZERRA JNIOR
A AMBIGUIDADE DO DISCURSO RETRICO: CAMINHOS E DESCAMINHOS
DA PERSUASO (PEITH) COMO INSTRUMENTO PARA A FILOSOFIA NO
GRGIAS, DE PLATO
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Filosofia, do
Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, como requisito para obteno do ttulo de Mestre em
Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Markus Figueira da Silva
NATAL RN
2016
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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas SISBI
Catalogao de Publicao na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes - CCHLA
Bezerra Junior, Maurcio Alves. A ambiguidade do discurso retrico: caminhos e descaminhos da persuaso (Peith) como
instrumento para a filosofia no Grgias, de Plato / Maurcio Alves Bezerra Junior. - 2016.
79f.: il.
Dissertao (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Cincias
Humanas, Letras e Artes. Programa de Ps-graduao em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Markus Figueira da silva.
1. Filosofia - retrica. 2. Scrates. 3. Plato. 4. Persuaso (Retrica). I. Silva, Markus
Figueira da. II. Ttulo.
RN/UF/BS-CCHLA CDU 1:808
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Dedico essa dissertao a
minha filha, Sofia, que pelo
brilho de seus olhos e a
franqueza de seu sorriso me
faz perceber que todo dia
vale a pena.
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AGRADECIMENTOS
Obrigado,
Ao meus pais, por serem aqueles que me conduziram a essa existncia.
Incentivaram sempre minha intelectualidade, fomentando minha pesquisa .
Sofia, por garantir minha eternidade.
Ao professor Markus, pela pacincia e ateno, sempre dando bons conselhos e
pela preocupao em sempre orientar em boas ideias para o procedimento dessa
dissertao.
professora Monalisa, pelos estimosos apontamentos durante o processo e
construo dessa dissertao, com indicaes de textos e ajudas que puderam aprimorar
esse trabalho.
o professor Lourival, pelos grandes apontamentos, pela orientao, respeito e
pelo cuidado.
Ribamar, um irmo que a natureza no deu, mas que foi escolhido pela alma.
Paulinha, que entre as idas e vindas dessa vida, sempre esteve ao meu lado na
concecusso desse trabalho, no comeo no meio e no final.
Plato, que o mestre do meu barco.
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Autoritrias, paralisadoras, circulares, s vezes elpticas, as frases de efeito,
tambm jocosamente denominadas pedacinhos de ouro, so uma praga maligna, das
piores que tm assolado o mundo. Dizemos aos confusos, Conhece-te a ti mesmo, como
se conhecer-se a si mesmo no fosse a quinta e mais dificultosa operao das aritmticas
humanas, dizemos aos ablicos, Querer poder, como se as realidades bestiais do
mundo no se divertissem a inverter todos os dias a posio relativa dos verbos,
dizemos aos indecisos, Comear pelo princpio, como se esse princpio fosse a ponta
sempre visvel de um fio mal enrolado que bastasse puxar e ir puxando at chegarmos
outra ponta, a do fim, e como se, entre a primeira e a segunda, tivssemos tido nas mos
uma linha lisa e contnua em que no havia sido preciso desfazer ns nem desenredar
estrangulamentos, coisa impossvel de acontecer na vida dos novelos e, se uma outra
frase de efeito permitida, nos novelos da vida.
Jos Saramago, A Caverna, p. 71.
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SUMRIO
1. INTRODUO------------------------------------------------------------------------- 9
2. A RETRICA E A PERSUASO NO DILOGOGRGIAS-------------- 15
2.1 RETRICA SOFSTICA: TECHNOUEMPEIRIADALISONJA
(KOLAKIA)?------------------------------------------------------------------------- 15
2.2 AS DUAS ESPCIES DE PERSUASO----------------------------------------- 36
3. CAMINHOS E DESCAMINHOS DA PERSUASO NO DILOGO
GRGIAS---------------------------------------------------------------------------------------- 42
3.1 CAMINHOS DA PERSUASO--------------------------------------------------- 42
3.1.1 KAIRS----------------------------------------------------------------------- 43
3.1.2 HOMOLOGHIA-------------------------------------------------------------- 49
3.1.3 PHILIA-------------------------------------------------------------------------- 54
3.2 DESCAMINHO DA PERSUASO: RECALCITRNCIA-------------------- 57
4. GRGIAS: UM DILOGO SEM PERSUASO-------------------------------- 62
4.1 MITO COMO POSSIBILIDADE DE PERSUASO---------------------------- 64
4.2 DILOGO SEM DILOGO----------------------------------------------------------- 67
5. CONSIDERAES FINAIS-------------------------------------------------------------- 70
REFERNCIAS------------------------------------------------------------------------------- 73
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RESUMO
Esta dissertao apresenta um estudo sobre o dilogo Grgias, de Plato,
interpretandoque essa obra uma reflexo sobre a crtica platnica retrica sofstica,
desenvolvendoa ideia de que ela empeiria, produtora de lisonja ().
Encontramos elementos ambguos que revelam que, apesar de criticar a persuaso
(), Scrates a reconhece como um requisito essencial para conduzir
oelenchos(). No dilogo, Scrates v-se diante de trs interlocutores, Grgias,
Polo e Ccicles. Este ltimo sendo o seu algoz principal. Reconhecemos o dilogo em
seu contexto histrico-cultural, visto que a Retrica, e seu elemento de persuaso, eram
insumos constitutivos da cultura grega. Consideramos que o intuito de Plato repensar
os elementos retricos e persuasivos dos sofistas a fim de alhures, expor a verdadeira
retrica, ou seja, a Filosofia. Para isso, Plato faz uma anlise da retrica persuasiva,
colocando frente ao seu mestre um expoente da sofstica, Grgias; e procura desvelar
suaarte (). Contudo, apesar de podermos reconhecer nele os elementos necessrios,
o dilogo finaliza sem dilogo, uma vez que no h persuasode nenhumdos lados.
Consideramos que todos esses pontos sero relevantes para compreendermos a
persuaso () como um dos elementos basilares na oralidade grega e da dialtica
platnica.
Palavras-chave: Ambiguidade; Persuaso; Retrica; Scrates; Plato; Grgias.
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ABSTRACT
This essay presents a study about the Gorgiasdialogue, by Plato, expounding that this
piece is a reflection on the Platonic criticism to sophist Rhetoric, developing the idea
that it is empeiria, producer of flattery (). We find ambiguous elements that
show that despite criticizing persuasion (), Socrates recognizes it as an essential
requisite to conduct the elenchos (). In the dialogue, Socrates sees himself
before three interlocutors, Gorgias, Polo and Callicles. The latter being his one chief
tormentor. We acknowledge the dialogue in its historical-cultural context, since
Rhetoric and its element of persuasion were Greek culture's constitutive inputs. We
consider that Plato's intent is to rethink the sophists rhetorical and persuasive elements
in order to expose the "true rhetoric", that it, Philosophy. For this, Plato makes an
analysis of the persuasive rhetoric, placing before his master an exponent of the
sophistry, Gorgias; and seeks to unveil its art (). However, although we can
recognize in it the necessary elements, the dialogue ends without a dialogue, since there
is no persuasion on either sides. We consider that all these points will be relevant to
understand persuasion () as one of the basic elements of Greek orality and
Platonic dialectics.
Key-words: Ambiguity; Persuasion; Rhetoric; Socrates; Plato; Gorgias.
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9
1. INTRODUO
O ensejo de compreender a persuaso como elemento na dialtica platnica, e
refletir sobre a anlise que Plato desenvolve sobre a retrica delineada pelos sofistas,
o ponto de partida deste trabalho. Considerado como a ossatura do pensamento
ocidental, o pensador grego Arstocles, conhecido pela alcunha de Plato, foi o inventor
da Filosofia; o definidor do que a cultura entender como razo; o construtor dos
valores ocidentais que sero alicerces de todo o seu progresso1. O gnio de Plato ser
estimulado, ao passo que o pensador, ainda jovem, conhece um [...] tipo singular, um
velhote de nariz chato e olhos saltados, filho, segundo dizia, dum estaturio, Sofronisco,
e de uma parteira, Fenreta. O nome Scrates, pronunciavam uns com venerao, outros
com despeito [...]. (BRUNA, 1987, p. 13).
Plato viveu numa Atenas que se orgulhava em ter na Democracia sua veia
central de organizao poltica. O que vai permitir um estabelecimento de uma
determinada relao entre liberdade poltica e filosofia do tipo dialtico o aspecto de
liberdade de pensamento e de expresso que os atenienses chamaro de princpios de
Isonomia () igualdade perante a lei - e Isegoria ( ) igual direito
palavra nos comcios pblicos (BERTI, 2010, p. 393.), exortando a todos os cidados
que fossem partcipes diretos da organizao e da elaborao de suas vidas na Plis
(). Tal liberdade era alegada pelo prprio Plato, ao considerar Atenas como a
cidade que amava os discursos2. Era, assim, um terreno ideal para o florescimento de
altercaes filosficas.
Havia um soberano nessa Democracia: a Assembleia Popular3. Contudo, o
perodo vivenciado por Plato foi um perodo de conturbao democrtica, o qual
1 Platon a inventlaphilosophie: il a dfinice que l aculture dsormaisvaentendre par raison. De la sorte,
il a dessinlecadre lintrieurduquellapense mditerranenne-occidentale construir ases valeurs et
dvelopperasonprogrs. [...] (CHTELET, 1965, p. 243). Concordando com Chtelet, por sua vez,
Richard Kraut (2013, p. 15). afirma que Plato fez da Filosofia um assunto distinto, pois, embora os
temas versados por ele j fossem debatidos, ele foi o primeiro a reuni-los e a dar-lhes um tratamento
nico. Embora concordemos com Chtelet e com Kraut, uma vez que Plato claramente destoava da
abordagem discursiva do poeta Homero, interessante notar que Lara (1999, p. 101) coloca Plato em
segundo lugar no que tange cultura helnica, ao afirmar que Plato tornou-se, pois, o segundo grande
formador da conscincia cultural helnica e, por meio dela, o grande educador do Ocidente. O primeiro
foi Homero. 2 No Grgias, fica evidenciada essa posio platnica, ao considerar Atenas o lugar onde a licena para
falar se faz mais premente (461e-1-3). 3.[...] Sansdoute y a-t-ilunsouveraindansladmocratie: lAssemblepopulaire. [...]. (CHTELET, 1965,
p. 75).
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10
contribui para que uma mente tenaz questione as bases e a constituio desse sistema;
assim como sua justeza e sua corrupo4. Durante as ltimas dcadas do sculo V a.C.,
as sucessivas guerras levaram para Atenas constantes crises, que denegriram, aos
poucos, aquela forma de pensar, baseada na igualdade de leis e de fora. O ideal de
justia, chave do sistema democrtico, deu lugar violao por parte de alguns grupos
polticos que sucumbiam a lei sua ambio, subjugando os dbeis, subordinando-os
aos seus ditames, como aponta Meza (1999, p. 116). Plato ser testemunha das crises
pelas quais a democracia ateniense vai passar, atingindo o ponto de culminncia
degenerativa quando for anunciada a sentena de seu mestre, por ele considerado o mais
justo () dos homens5, mas que ter que ceifar sua prpria vida ao ser
condenado, dentre outras razes, por corrupo dos efebos.
Aquele soberano, ento, como a prpria experincia mostra, incapaz de
comandar, pois incompetente e inconstante. E por esta incompetncia se mostra
incapaz de demonstrar estabilidade, ficando sujeito s deliberaes escusas daqueles
que so versados em demagogia. No conseguindo, assim, reconhecer quem lhe preza;
deleitando-se com os que dominam a palavra independente da justia6. As armadilhas
que podiam surgir dos discursos nos encontros pblicos, relegando s pessoas justas a
sofrimentos injustos, contriburam para que Plato se tornasse um crtico ferrenho e
astuto do sistema que era sempre exaltado como o justo.
4 Irwin (2013), em seu ensaio intitulado Plato: o pano de fundo intelectual argumenta que, por mais que
Plato fizesse vrias objees Democracia de Atenas, ele assumia que ela era estvel, e que dificilmente
haveria alternativa factvel a lhe ser superior. Ele tambm observa que o regime democrtico de Atenas,
restaurado em 405 a.C., vai perdurar durante toda a vida de Plato, fornecendo, assim, inmeros
elementos para ele elaborar uma profcua reflexo. 5 Alm disso, um amigo meu, mais velho, Scrates, que eu certamente no me envergonharia de dizer
ser ento o mais justo de todos, mandaram-no com outros contra um dos cidados, conduzindo-o fora
para a morte, a fim de que fosse cmplice dos negcios deles, querendo ou no. Mas ele no se deixou
persuadir e arriscou-se a suportar tudo, em vez de se tornar cmplice deles em atos mpios.
Considerando ento todas essas coisas e ainda outras tais no pequenas, desgostei-me e afastei-me dos
males de ento (PLATO, Carta VII, 324 e 325 a). 6 [...] Mais surtout, dansla mesure ou elle est incapable dlaborer une ligne politique stable, elle se
laisseprendrepratiquementauxflatteries ds dmagoguesquisontcommedes frelons aiguillon. La
contamination est double, dailleurs, et le mal ne cesse de saggraver. [...] Et lepeupleshabitue
cettesituation: lorsquumcitoyensage et honnteveutluidonner dautresconseils, il fait duvacarme et refuse
de lcouter. Si bien que desjeuneshommes, biendous, que veulentfairecarrire, sontcontraints, quel que
soitleurdsintressement premier, de jouerlejeu de La dmagogie. Ilssont, leur tour, contamins; Le bom
naturelquilspossdaient se perd et leurstalentsservent promouvoirlinjustice (CHTELET,1965, p.
76.). O estudioso Chtelet deixa claro, neste trecho, que os corruptores do sistema democrtico ateniense
so os retricos e os sofistas, que no se preocupam com a justeza do objeto de seu ensino. Ademais,
relevante notar que, para Guthrie, o prprio Plato determina que os sofistas no deveriam ser
responsabilizados por tal vexao, visto que [...] no eram eles que deviam ser declarados culpados por
infeccionar os jovens com pensamentos perniciosos, pois nada mais faziam do que refletir os prazeres e as
paixes da democracia existente [...] (GUTHRIE, 1995, p. 25).
-
11
Essa questo fica mais problemtica quando surge, na democracia grega, um
conjunto de indivduos estrangeiros, sobretudo que vo alegar ser detentores da arte
dos discursos em si. Apresentar-se-o como condutores de uma educao () que
tem como escopo fornecer aos seus discpulos o domnio persuasivo sobre uma
infinidade de discursos, sejam eles individuais ou sociais, podendo produzir pontos a
favor e contra qualquer questo, deliberando as paixes () e articulando tempos
oportunos (). Falar desse grupo de homens como uma unidade no argumento
coerente, uma vez que no se pode ver neles uma escola filosfica, homognea. Melhor
ento consider-los como mestres cujo contedo variava, dependendo de quem
ensinavam. Recebiam remunerao em troca de sua sabedoria (), como observa
Untersteiner(2012, p. 21), com a concordncia de Cardoso (2006, p. 34). Assim, em fins
do sculo V a.C., Atenas era dominada pelos discursos persuasivos, esculpindo a moral
e a poltica de seus cidados, organizando sua vida prtica. As narrativas heterogneas
advindas das pessoas que tinham contato com outros povos sugeriram a um grupo de
homens que as regras e ditames sociais eram produtos de convenes e no de regras
indelveis, como afirma Tarnas (2008), o que dava ao discurso e persuaso um poder
a ser utilizado por quem queria coadunar com aquela sociedade. Surgiram, assim, os
mestres do discurso.
O nome dado a esses mestres do discurso o de sofistas, que so historicamente
reconhecidos como antifilsofos e, em geral, algozes do pensamento platnico, mas
que, segundo Cassin (2005), apareceram num momento necessrio Filosofia7. Ao
perceber justamente a protuberncia dos discursos sofsticos em sua Atenas, Plato
rega-lhes certa reverncia e admirao. Ele no podia prescindir tambm do prprio
discurso, uma vez que tambm a Filosofia se vale do discurso para se desvelar. A
questo era refletir sobre em que tipo de discurso deveria ancorar-se a Filosofia,
desprendendo-se daquele oferecido pela sofstica.
7 Os sofistas Grgias ento bastante prximo de Protgoras so um momento necessrio da histria
da Filosofia: eles refutam a abstrao vazia do ser eletico pela considerao das coisas efetivas, da
realidade do mundo sensvel e vivo, pluralidade, movimento, subjetividade (CASSIN, 2005, p. 14).
Sobre a relevncia dos sofistas em seu tempo, Guthrie (1995, p 25)afirma que se os sofistas foram
produtos de seu tempo, por sua vez tambm ajudaram a cristalizar suas ideias. Mas seu ensino pelo menos
caiu em terreno bem preparado.
-
12
O sofista Grgias, no dilogo homnimo de Plato que estudaremos neste
trabalho8 , ao ser questionado por Scrates sobre que tipo de arte detinha o poder,
responde que alberga a Retrica9. Tomando para si a adjetivao de um bom rtor logo
em seguida (449a-b). Adiante, quando convidado a responder qual o cerne do
conhecimento da Retrica, o grande sofista prontamente responde que esta tem poder
sobre os discursos (449d-e). E, mais frente, Grgias afirma que os discursos aos quais
a Retrica abarca so aqueles capazes de produzir persuaso ()10
, sobretudo no
ambiente das altercaes pblicas (452e-453a)11
. Podemos, assim, compreender que, de
acordo com a definio do sofista, a Retrica a arte dos discursos persuasivos qual
ele detinha com maestria. Guthrie (1995, p. 253) expe que Grgias [...] viu o poder de
persuaso como o principal em todo campo, no estado da natureza e em todos os
assuntos filosficos, no menos que nos tribunais e na arena poltica, ampliando o raio
de ao da Retrica.
Casertano (2010) denota que, no dilogo Grgias, Scrates detentor dos altos
valores que figuram o pensamento de Plato, que pe em questo a Retrica apresentada
como arte pelos sofistas12
, apresentando-a como mera adulao (),
enfileirando-a com outras pretensas artes que versam sobre um saber que no sabem.
Todavia, no podendo deixar de reconhecer a necessidade da persuaso tambm para a
Filosofia, Scrates e, por conseguinte, Plato, reconhece nela um poder ao qual no
pode prescindir, como observa Casertano:
8As citaes do Grgias utilizadas nesta dissertao so retiradas da traduo de Daniel R. N. Lopes
(2011), em lngua portuguesa. Ao julgarmos relevante, podemos utilizar outras tradues a serem
explicitadas em notas de rodap. 9Grgias, 449a. bastante conhecida a proposio de Schiappa (1999, p.14.)sobre o passo 448d, no qual
aparece, pela primeira vez, a palavra retrica no dilogo, aduzida pelo estudioso como a primeira vez que
ela utilizada, sendo, com isto, uma cria do gnio platnico. 10
Para Aristteles, a Retrica , em livro homnimo, a faculdade de observar, em cada caso, o que este
encerra de prprio para criar persuaso. Nenhuma outra arte possui tal funo (1355b25-30). 11
[...] GOR: A meu ver, ser capaz de persuadir mediante o discurso os juzes no tribunal, os conselheiros
no Conselho, os membros da Assembleia na Assembleia e em toda e qualquer reunio que seja uma
reunio poltica. Ademais, por meio desse poder, ters o mdico como escravo, e como escravo o
treinador. Tornar-se- manifesto que aquele negociante negocia no para si prprio, mas para outra
pessoa, para ti, que tens o poder de falar e persuadir a multido.
SOC: Agora sim, Grgias, tua indicao parece-me muito mais propnqua qual arte consideras ser a
retrica, e se compreendo alguma coisa, afirmas que a retrica artfice da persuaso, e todo o seu
exerccio e cerne convergem a esse fim. Ou tens algo mais a acrescentar ao poder da retrica, alm de
incutir na alma dos ouvintes a persuaso?
GOR: De forma alguma, Scrates; essa definio me parece suficiente, pois esse seu cerne. [...]. 12
Tambm no Grgias, em aparncia, e por hbito interpretativo, Scrates considerado o portador de
altos valores que, ao confrontar-se com as teorias e as prxis sofsticas, postas em ato no tanto pelo
personagem Grgias quanto seus discpulos e admiradores Polo e Clicles, no final encontram a sua
afirmao e o seu reconhecimento: se no aos olhos dos prprios personagens, que, com efeito,
permanecem impermeveis s demonstraes e refutaes socrticas [...] (CASERTANO, 2010, p. 56).
-
13
Na verdade, a relao entre saber, crena e persuaso no pode ser a
de uma ntida distino, e, portanto, uma contraposio, justamente
porque, admitindo que a retrica no faz outra coisa seno persuadir
os que no sabem, tambm a cincia pe em ato mecanismos de
persuaso, logo de convico, de crena. [...] Por outras palavras, a
persuaso e a crena pertencem quer cincia, quer opinio
(CASERTANO, 2010, p. 58).
A ambivalncia da persuaso para Plato, se evidencia nas contraposies
explcitas e implcitas entre retrica e justia, que se refina contraposio entre
retrica e filosofia, se desvelando em contraposio entre opinio e cincia
(CASERTANO, 2010, P. 56)13
. A persuaso se faz assim como prerrogativa tanto da
retrica sofstica opinio - quanto da Filosofia - cincia. Partindo desse pressuposto
ambguo da persuaso, pretendemos, nesta dissertao, estudar os mecanismos que
delinearemos como caminhos necessrios para que ela ocorra, desde o campo
psicolgico ao poltico e social. Veremos as querelas disputadas por Scrates com os
interlocutores na tentativa de persuadi-los com seus apontamentos. Procuraremos
refletir sobre as barreiras que se colocam para que ocorra o processo de persuaso, bem
como compreender a persuaso que s oferece como escopo a complexa articulao da
palavra sem almejar conduzir o interlocutor verdade, to pretendida por Plato.
Perfilhando a riqueza do dilogo, lanaremos olhares sequiosos nas altercaes
impressas nele, a fim de oferecermos esclios relevantes para a anlise da retrica
persuasiva perpetrada por Plato.
Na presente dissertao, portanto, objetivamos fazer uma apresentao dessa
leitura do Grgias. Para isso, apresentamos o trabalho do seguinte modo. No primeiro
captulo, tentaremos compreender os conceitos conflitantes de Retrica e persuaso
expostos no dilogo. Para isso, comearemos com as incurses feitas por Plato ao
descrever a arte da retrica sofstica, e veremos a crtica feita por Scrates ao tipo de
persuaso que a Retrica pretendida por Grgias oferece, procurando exortar seu
interlocutor de que sua arte pretendida no passa de lisonja, adulao. Em seguida,
veremos que espcies de persuaso podemos reconhecer no tempo do dilogo. No
13
Casertano (2010, p. 58) observa que o termo crena (), que bastante utilizado no Grgias, verossimilmente a opinio (). Embora no esteja explcito nesta obra em si, est confirmado pelo corpus platnico. Destarte, consideraremos tambm a verossimilhana existente entre cincia e conhecimento (), ancorado na abordagem platnica que denota haver apenas conhecimento verdadeiro, como vemos em Grgias 454c-455a (sobre a distino entre crena e conhecimento); Mnon 85b-86b (opinio e cincia); Repblica 476c-480a (sobre a ignorncia, opinio e o conhecimento). mister perceber que Brisson e Pradeau em seu Vocabulrio de Plato colocam os termos Cincia, conhecimento e episteme como sinnimos (2010, p. 25-36).
-
14
segundo captulo, propomos reconhecer os elementos traados por Plato, no dilogo,
que se apresentam, segundo nossa compreenso, como caminhos para o processo de
persuaso, discutindo algumas noes, a saber, o kairs, a homologia e a philia. No
deixaremos de lado um elemento impugnante para que ocorra a persuaso, a
recalcitrncia, bastante evidente no decorrer da obra, sobretudo comClicles, partcipe
tenaz do debate. No terceiro captulo, estimamos analisar a obra como um dilogo onde
no ocorreu persuaso, dado alguns elementos que se apresentaram como infrutferos.
Iremos propor tambm o mito como ltima tentativa de Scrates para exortar seus
algozes, ancorado no princpio da verossimilhana. Em seguida, vamos refletir sobre a
relao da persuaso com a verdade, objetivo primaz do pensamento platnico. Por fim,
nas consideraes finais, no somente apresentaremos uma reviso geral das questes
discutidas nesta dissertao, bem como lanaremos propostas de reflexes posteriores
sobre como Plato se utiliza da persuaso para a sua filosofia.
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15
2. A RETRICA E A PERSUASO NO DILOGOGRGIAS
2.1 RETRICA SOFSTICA: TECHNOUEMPEIRIADALISONJA
(KOLAKIA)?
Seguindo a clssica catalogao atribuda Trasilo e mencionada por Digenes
Lartios14
, o Grgias tem por subttulo: sobre a Retrica ()15
. Entretanto,
esse subttulo, per si, no abarca todas as nuanas que podem se desvelar com uma
leitura rigorosa da obra. Contudo, objetivamos concordar com alguns comentadores que
afirmam ser a retrica o eixo central da obra16
, com o intuito de, nessa primeira parte,
partindo de uma anlise detalhada, refletir sobre aideia de retrica exposta no Grgias,
bem como compreender as altercaes encetadas no dilogo, permeadas pela constante
indagao feita pelo Scrates platnico em relao arte (tekhn) que ela comporta.
Para desenvolver essa primeira questo, sobre a tekhnda Retrica, devemos
partir da compreenso da importncia da Retrica para o contexto cultural grego e,
particularmente, ao vivenciado por Plato.
Reboul (2004), em concordncia com Plebe (1978), argumenta que a Retrica,
com o uso alm de sua utilidade pragmtica, ter seu bero em regio grega, no sculo
V a.C. Com isto, as primeiras preocupaes em deliberar sobre tcnicas e teorias de
utilizao da Retrica surgiram no contexto em que as necessidades prticas dos
helenos, com o fortalecimento da vida urbana, iam confrontando-se cada vez mais com
questes de ordem filosfica. E ainda, a Retrica, em seus primeiros anos, era mais de
origem jurdica, no incorrendo numa abordagem literria, educacional ou mesmo de
cultura geral17
. A mudana de enfoque para esses ltimos vai ocorrer quando os sofistas
puseram a Retrica a seus servios.
14
Vidas e Doutrinas dos filsofos ilustres, III, p. 59. 15
Segundo Digenes Lartios, a obra platnica dividida em nove tetralogias, nas quais cada dilogo
seguido por um ttulo e um subttulo, que diz respeito ao seu tema. O Grgias est inserido na sexta
tetralogia. 16
CROISET, Alfred. Grgias, p. 90-92; DODDS, E. R. Plato, Gorgias, p. 2-5; MAcCOY, Marina.
Plato e a Retrica de filsofos e sofistas, p. 95. importante notar que MacCoy argumenta que,
geralmente, compreendido como o objetivo na obra no s analisar a Retrica em si, mas tambm
demarcar a sua inferioridade em relao Filosofia. 17
Manuel Alexandre Jnior(2005, p. 19), em sua introduo Retrica de Aristteles, nos relata como
surgiu a necessidade de uso da Retrica no mbito jurdico: Por volta de 485 a.C., dois tiranos sicilianos
- Glon e Hiero -, povoaram Siracusa e distriburam terras pelos mercenrios custa de deportaes,
transferncia de populao e expropriaes. Quando foram destronados por efeito de uma sublevao
democrtica, a reposio da ordem levou o povo instaurao de inmeros processos que mobilizaram
grandes jris populares e obrigaram os intervenientes a socorrerem-se das suas faculdades orais de
-
16
Ortega (1989) observa que o fortalecimento da Democracia, em detrimento das
tiranias, se tornou o campo ideal para o engrandecimento da Retrica18
. A Grcia inteira
era amante das dissertaes orais, mas foi nas plis democrticas que a Retrica
encontrou um terreno mais frtil. Como os princpios democrticos retiraram da
aristocracia a exclusividade de deliberar sobre os assuntos pblicos, o caminho estava
aberto para o poder da persuaso. Desse modo, os sofistas, que se apresentavam como
professores de Retrica, passaram a gozar das oportunidades educacionais no campo
democrtico19
. Reboul (2004, p. 10) afirma que, por finalidade, a retrica sofstica no
objetivava o verdadeiro, o saber, mas sim a dominao por meio da palavra, para a
manuteno do poder. Reboul ainda aponta que os sofistas sero os primeiros
pedagogos a principiar uma educao voltada para a capacitao para o poder.
Ao participar do esprito democrtico de Atenas, os sofistas no encontraro
apenas anseios para usufruir de sua labuta. Vo se deparar com atitudes contrrias sua
presena. Sobre isso, aponta-nos Guthrie:
A atitude do pblico ateniense era ambivalente, refletindo a situao
transitria da vida social e intelectual ateniense. Os sofistas no
tinham nenhuma dificuldade de encontrar alunos para pagar suas altas
taxas, ou auditrios para suas conferncias e exibies pblicas.
Todavia, alguns dos mais velhos e conservadores desaprovavam
fortemente a eles (GUTHRIE, 1995, p. 40-41).
Irwin, em consonncia com Guthrie, argumenta que a atividade proposta pelos
sofistas, no seio da democracia em Atenas, vo despertar-lhes algozes de uma base
aristocrtica da sociedade, com receio que os sofistas fomentem a ao de corruptores
dos escopos morais atenienses:
A prpria sofstica despertou suspeitas, especialmente entre pessoas
que pensavam que o bero, a famlia, e uma educao distinta lhes
davam o direito de ser ouvidos. Ora, desse ponto de vista conservador,
o treinamento sofstico podia parecer fazer as pessoas
comunicao. Tal necessidade rapidamente inspirou a criao de uma arte que pudesse ser ensinada nas
escolas e habilitasse os cidados a defenderem as suas causas e lutarem pelos seus direitos. E foi assim
que surgiram os primeiros professores da que mais tarde se viria a chamar retrica.Reboul (2004, p. 2)
relata que Corax, discpulo de Empdocles, junto com Tsias, que dar a primeira definio de Retrica
no mbito judicirio, ao consider-la produtora de persuaso. Era, sobretudo, utilizada na Siclia, mas
como Atenas mantinha estreitos laos com essa regio da Magna Grcia, a Retrica tambm foi por ela
adotada. 18
[...] la Retrica, que ensealos modos y tcnicas de exposicin, em sums radical sentido tiene vida e
historiacomm com la Democracia, como parte integrante de la vida pblica y de laformacin intelectual,
sobre todo em la antiga Atenas democrtica de lossiglos V y VI anteriores a nuestra era. (ORTEGA,
Alfonso. Retrica: el arte de hablar em publico. Madri, Espanha: IdeasCulturales, 1989. p. 19) 19
Ver nota 6.
-
17
consideravelmente mais inteligentes, e os sofistas podiam ser
acusados de ensinar a pessoas inescrupulosas as habilidades de que
elas necessitavam para obter um sucesso que no mereciam (IRWIN,
2013, p. 91).
Nesse contexto, Plato se apresenta como verdadeiro algoz dos sofistas, para
quem eles no passavam de professores de erstica (uso dos discursos com o intuito de
vencer), recebendo dinheiro pelo servio escuso (O Sofista, 226a)20
. Plato, que tambm
se interessa pela educao por meio da Filosofia, vai se interessar demasiadamente em
analisar o projeto pragmtico dos sofistas, escrevendo considerveis dilogos nos quais
estes se mostram presentes. Como descreve McCoy (2010, p. 19), a mentalidade na
poca de Plato vai se interessar bastante pela natureza e pelo poder do logos, fazendo
com que termos como filosofia e retrica sejam utilizados como armas de batalha.
Grgias21
de Leontino era considerado o maior sofista de todos. Nascido por
volta de 485 e 480 a.C., viveu at idade avanada, o que permitiu que ele observasse as
mudanas no jogo social e poltico das cidades gregas, participando de algumas delas
com profcuo interesse. Plebe afirma que Grgias foi o primeiro teorizador formal de
uma arte retrica como disciplina independente, construindo uma ponte entre a Retrica
da Magna Grcia e a da Grcia Continental (1978, p. 12). Jaeger vai mais alm, ao
situar Grgias como o criador da Retrica na forma como ela vai se pautar a partir dos
ltimos decnios do sculo V a.C., e sendo, para Plato, a prpria personificao dessa
20
interessante notar o comentrio de Terry Penner (2013, p. 183), em seu ensaio Scrates e os
primeiros dilogos, acerca da relao dos pensadores atenienses sobre os sofistas e os retricos: para
Scrates, como para Plato, no h dvida de que o principal inimigo filosfico, sejam os sofistas ou os
retricos, uma forma de educao que proporciona tcnicas neutras para progredir na vida particular e
na vida poltica neutras uma vez que so indiferentes a todo e qualquer bem na vida humana que no
seja o que o indivduo escolhe pensar que bom os valores do indivduo (como costumamos dizer).
Os sofistas e retricos pretendem pr meios persuasivos nas mos de seus alunos para que estes alcancem
objetivos que paream melhores para eles [...] sobre o que as pessoas fazem para chegar a seus fins [...].
Endossando o raciocnio de Penner, Lygia Arajo Watanabe (1995, p. 76) aponta: so os sofistas que
representam, para Plato, o perigo maior para a Filosofia, pois com eles a noo da realidade da verdade
que est em jogo. 21
Colocar Grgias como um sofista levanta uma problemtica, pois ele no se proclamava como
professor de Arete (virtude), que era a forma regular com a qual Plato situava os sofistas (Mnon95b-c).
Guthrie (1995, p. 41) aponta que Grgias se concentrou apenas na Retrica, por v-la como a arte mestra.
Grgias at admite que os alunos aprendero dele os princpios do justo e do injusto (Grgias, 460a), caso
eles j no os conheam, mas antes isenta o mestre do mal uso das artes pelos discpulos (Grgias 457a-
c). MacCoy ( 2010, p. 21) argumenta que se h uma diferena no uso que Plato faz dos termos sofista e
retrico, que o primeiro frequentemente tem uma conotao pejorativa, enquanto o segundo pode ser
positivo ou negativo dependendo do contexto. Contudo, na obra Grgias, embora Scrates faa uma
pequena diferenciao entre sofstica e retrica (465c), logo adiante ele afirma que as duas so
praticamente idnticas (520a). Conscientes de tal problemtica e apoiados em Reboul (2004, p. 5-6) e
Guthrie (1995, p. 251), intentamos colocar o nome de Grgias com o sentido tcnico de sofista, como
professor que cobrava para ensinar.
-
18
arte (1994, p. 649). No de se espantar que, dado a sua importncia, Plato ir versar
sobre a arte retrica do Leontino em algumas obras e, em especial, no Grgias, para
esmiuar sobre o caro tema da Retrica22
.
Mas antes de dar continuidade a nossa reflexo acerca da Retrica e de sua
techn, no podemos perder de vista a compreenso de que o Grgias exposto na obra
platnica no condiz necessariamente pessoa histrica, reconhecido por obras como
Elogio de Helena, Defesa de Palamedes e o Tratado do No-ser. Trata-se de um
personagem, cria do gnio platnico, tal qual outros personagens expostos na obra, tais
como Scrates, Polo, Clicles e Querofonte23
. Indubitavelmente, a perspiccia da prosa
platnica permeia e influenciada pelos espritos dos contrapartes histricos, mas, para
centralizar nossa reflexo, quando nos referirmos ao carter e sapincia dos
supracitados, estamos analisando o retrato que Plato faz deles24
. Nosso objetivo, com
isto, apresentar a crtica platnica feita aos retores e aos sofistas. Como podemos
observar no passo 449a, Grgias se apresenta no dilogo como um bom rtor, j
representando a jactncia que o personagem tem em relao a ser mestre do saber.
Scrates, por sua vez, recrudesce o valor filosfico em detrimento da Retrica,
coadunando com os princpios platnicos, se valendo sempre de certa humildade. Sobre
esse assunto, McCoy argumenta o seguinte:
[...] No entanto, Grgias coloca a prtica filosfica de Scrates acima
daquela de seus oponentes sofsticos e polticos. Em primeiro lugar,
Plato sugere que Scrates possui os traos de benevolncia,
responsabilidade por seu prprio discurso e um compromisso com o
conhecimento que Clicles afirma pelo menos em palavras, mas
Clicles, Grgias e Polo no possuem algumas dessas caractersticas.
Em segundo lugar, Scrates est disposto a autocriticar sua prpria
22
Plato faz meno a Grgias em sete de seus dilogos. Em quatro deles (Apologia de Scrates, Hpias
Maior, O Banquete e Filebo), as menes so passageiras e irnicas, mas no desrespeitosas. Na obra que
leva seu nome, Grgias o personagem em torno do qual giram todas as discusses. 23
Kahn (1998, p. 126) delimita as caractersticas dos interlocutors de Scrates da seguinte forma: The
first interlocutor, Gorgias, is the famous writer, orator, and teacher, who boasts of the power that oratory
can achieve but would prefer to decline moral responsibility for any use that is made of it. His pupil,
Polus, is an outspoken admirer of those who gain political power by immoral or even by criminal means.
Callicles, finally, is a product of the new Enlightenment, an ambitious young politician willing to attack
the very notion of justice and morality as Socrates understands it. [] Faced with such opponents,
Socrates must defend not only his moral principles but his whole way of life. 24
Embora no seja o escopo desta dissertao, achamos relevante considerar que, para alguns
comentadores, no apenas Scrates que colocado como porta-voz do gnio platnico, sendo os outros
apenas caminhos para o objetivo socrtico, mas, sim, toda a gama de personagens expressa o pensamento
de Plato, como aponta Lopes (2011, p. 30-31) e Cooper (1999, p. 66). Entretanto, concordamos com
Kraut (2013), em seu artigo intitulado Introduo ao estudo de Plato, no que tange afirmao sobre o
papel desempenhado especificamente por Scrates nos dilogos platnicos. Embora os outros
interlocutores sejam tambm porta-vozes do gnio platnico, Scrates encarna, com maior afinco, a
proposta filosfica de Plato.
-
19
prtica de uma maneira que outros, quando diante do desafio da
filosofia s suas vises de mundo, no esto embora afirmem o valor
dessa abertura. [...] (MCCOY, 2010, p. 21).
Lopes, no ensaio introdutrio do Grgias, sobre o mesmo assunto, observa
ainda: Como vemos no Grgias, Scrates representado por Plato como o novo
senhor da arte do discurso (tekhnlogn), em substituio figura do rtor
(GRGIAS, 2011, p. 163).
Jaeger (1994, p. 652) denota que o Grgias se estrutura em trs atos, sendo que
o aparecimento de cada personagem recrudesce a discusso sobre o plano terico da
Retrica. J principiando o primeiro ato, Scrates elabora uma questo que vai
determinar o desdobramento de todo o dilogo, como observa Arajo (2008, p. 21). A
questo sobre a arte () da Retrica de Grgias25
. Nesta parte do captulo, vamos
discorrer sobre a crtica que Plato desenvolve em relao arte da Retrica na
abordagem do Grgias. Seria a Retrica uma arte?
Para responder a tal questo, vamos confrontar a resposta de Grgias e seus
seguidores sobre sua arte e a anlise seguinte desenvolvida por Scrates. Nos passos
452e 453a, fica mais evidente a qual arte Grgias afirma ter o domnio, a saber, a dos
discursos. Esta a arte da Retrica. J nesse ponto, podemos notar uma definio
genrica, problemtica para Scrates, que esperava uma resposta mais especfica, visto
que outras artes dizem respeito a discursos (, 449e1). Para Scrates, a
condio para se estabelecer uma teknh ter um domnio especfico de um objeto
determinado. Para termos uma ideia de quanto a compreenso do termo teknh pode ser
complexa, Jaeger denota a diferena existente em nosso conceito de arte daquele
referenciado pelos gregos:
A palavra teknh tem, em grego, um raio de ao muito mais extenso
que a nossa palavra arte. Designa toda profisso prtica baseada em
determinados conhecimentos especializados e, portanto, no s a
pintura, a escultura, a arquitetura e a msica, mas tambm, e talvez
com maior razo ainda, a medicina, a estratgia militar ou a arte da
navegao. Aquela palavra que estas tarefas prticas ou estas
25
[...] SOC: [...] Pois quero saber dele qual o poder da arte do homem e o que ele promete e ensina; o
resto da exibio. Deixemos para outra ocasio, como dizes [...] 447c. O complemento e a resposta
podemos ver em: [...] SOC: [...] dize-me agora, de modo semelhante, que arte essa e por qual nome
devemos chamar Grgias! Ou melhor: dize-nos tu mesmo, Grgias, como devemos te chamar e de que
arte tens conhecimento! GOR: Da retrica, Scrates. SOC: Portanto, devemos te chamar de rtor? GOR:
De um bom rtor, Scrates, se queres me chamar, como diz Homero, daquilo que rogo ser. SOC: Mas eu
quero cham-lo. GOR: Ento chama! [...] 449a.
-
20
atividades profissionais no correspondem a mera rotina, mas
baseiam-se em regras gerais e conhecimentos slidos; neste sentido, o
grego teknhcorresponde frequentemente, na terminologia filosfica
de Plato e Aristteles, moderna palavra teoria, sobretudo nos
passos em que se contrape mera experincia [...] (JAEGER, 1994,
p. 653).
Para deslindar os conceitos de arte que esto em conflito no Grgias, temos que
observar a compreenso do que ela significa no contexto dos personagens. Na primeira
parte da obra, quando Querofonte interpela para saber a que arte Grgias pertence,
partindo de uma analogia com outras artes, Polo responde que as descobertas das artes
so feitas por meio da experincia experimentalmente ( ), e que seu
mestre Grgias participa da mais bela das artes (448c). Observamos, assim, que Polo
considera que teknhe empeiria esto necessariamente coadunados, como aponta
Arajo:
Para Polo, as artes nascem da experincia e pela experincia. Diante
dessa afirmativa nos necessria certa ateno, para que o termo no
nos seja tomado como algo que no requeira maiores explicaes.
Alm da preposio em, que indica em, dentro, o termo formado
pela palavra pera, justamente a que Grgias utilizava antes da
interveno de Polo. Pera tentativa, ensaio, prova, o termo que,
em latim, dar origem a peritus (perito) e a periculum (perigo)
(ARAJO, 2008, p. 61).
A associao que Polo faz entre arte e experincia exposta no Grgias,
provavelmente, influenciou Aristteles em sua definio de teknh(). Diz o
estagirita, em sua Metafsica, que a experincia parece um pouco semelhante cincia
e arte. Com efeito, os homens adquirem cincia e arte por meio da experincia. A
experincia, como diz Polo, produz a arte, enquanto a inexperincia produz o puro
acaso (981a 1-5). O mais interessante de se notar, sobre a citao de Aristteles, a
posio de destaque dada experincia () em relao teknh(). Para ele,
como nos mostra na Metafsica, a experincia um caminho para chegar teknh e a
epistm. Todavia, no passo 463b do Grgias, Scrates nos diz que a Retrica no
uma teknh, mas uma mera empeiria() e uma rotina (). Assim, Scrates
no coloca a empeiria como caminho para a teknh, fazendo, na verdade, uma oposio
clara entre ambas. Onde Aristteles enxerga derivao, Polo v que uma fruto da
outra. Por sua vez, Scrates, e, por conseguinte, Plato, as v como diametralmente
-
21
opostas26
. Grgias coadunar com a posio de Polo, aceitando a empeiriacomo prpria
fonte sopha.
A definio qualitativa de Polo, ao afirmar que a teknhde Grgias a melhor
dentre as tais, no suficiente para Scrates, que d uma lio de lgica ao afirmar que
um julgamento de valor no serve para definir a arte (DODDS, 1980, p. 193)27
. O que
Scrates vai querer saber por parte de Polo ser sobre o que a Retrica, e o que a
diferencia de outras artes28
.
Cabe nossa observao para o passo 447c-d, no qual Scrates associa a questo
dateknhde Grgias ao prprio ser do sofista. Sendo assim, ao intencionar compreender
a arte do retrico, Scrates quer saber o que o prprio retrico29
. Por isso, mais uma
vez, a apresentao de Polo, que procura definir a arte de seu mestre como a mais bela
(448c), dada a Querofonte, sequer corresponde ao sentido pretendido por Scrates,
quando projetou tal indagao. Na continuidade desse debate, o prprio Scrates
observa que a definio de Polo um encmio, ou seja, um argumento de carter
elogioso, que visa adjetivar positivamente a arte da Retrica, como se algum estivesse
negativando a priori, mas no respondeu que arte , qual sua definio e escopo. Ao
26
Renehan (1995, p. 71) tambm aponta essa contrariedade entre Plato e Aristteles em relao teknhe
a empeiria. 27
Em concordncia com esse raciocnio, Arajo (2008, p. 36) nos diz: [...] Portanto, alegar que a retrica
perlgouse e encontrar nisso o que a distingue de outras artes no basta, preciso tambm dizer o per
ti desse logos [...]. 28
O professor Dinucci argumenta que o prprio Scrates, a despeito dos escopos de seus prprios
questionamentos, no oferece definies de suas proposies, o que para si admissvel. [...] A resposta
socrtica tambm recorrente: ao longo dos dilogos aporticos, Scrates, ao ser indagado sobre a sua
questo o que ?, jamais explicita o estatuto ontolgico e epistemolgico de seu modo de
questionamento. De certa forma, esse procedimento admissvel, pois Scrates no dispe de uma
ontologia e uma epistemologia explcitas. Porm, pode tornar-se enganador caso o interlocutor
inadvertidamente tenha de se comprometer com princpios ontolgicos e epistemolgicos que
conscientemente no admitiria. Ademais, os esclarecimentos de Scrates sobre seu questionamento
parecem inconsistentes, se levarmos em conta seus prprios critrios: ele nada faz seno dar exemplos de
perguntas semelhantes e suas respectivas respostas. Tal procedimento sempre rechaado por Scrates
quando um interlocutor, ao invs de oferecer uma definio como resposta questo o que isto ou
aquilo, se limita a dar exemplos de coisas que so isto ou aquilo. Scrates, tambm no Grgias, se limita
a dar exemplos e no nos informa sobre o que h de mais importante em seu questionamento, ou seja,
seus fundamentos. (DINUCCI, Aldo. Scrates versus Grgias. In: ANAIS DE FILOSOFIA CLSSICA,
vol. 02, n. 4, 2008). 29
[...] CAL: Nada como tu a indag-lo, Scrates! Alis, esse era um dos pontos de sua exibio: h
pouco mandou aos presentes que lhe perguntassem o que desejassem, e afirmou que responderia a todas
as perguntas.
SOC: Bem dito. Querofonte, interroga-o!
QUE: Sobre o que devo interrog-lo?
SOC: Quem ele .
QUE: Como dizes?
SOC: Por exemplo: se ele fosse artfice de sapatos, ele decerto te responderia que sapateiro; ou no
entender o que digo? [...]
-
22
passo que Polo, sem compreender aonde Scrates queria chegar, refora o que dissera
anteriormente, dizendo que a arte de seu mestre a mais bela (448e). Nos passos
seguintes, veremos a definio da Retrica advinda do Grgias em si, mas j no
princpio podemos ver a retomada da qualificao da Retrica, o que ser destoante do
objetivo do questionamento socrtico. Ao ser questionado a respeito do que concerne
aos discursos retricos, Grgias afirma que concerne s melhores e s mais importantes
coisas humanas (451d). Logo em seguida, Scrates vai problematizar reiteradamente o
argumento elogioso de Grgias e Polo.
Como observa Lopes:
Depois de Scrates mostrar a Grgias que a sua definio de retrica
no era vlida [...], Grgias tenta esclarecer o que diferencia a retrica
dessas outras artes com relao ao objeto especfico de seu discurso.
Todavia, nessa segunda definio proposta, ele acaba incorrendo no
mesmo tipo de equvoco, segundo as regras dialgicas estabelecidas
por Scrates, cometido por Polo no prlogo (448c). A uma pergunta
de definio objetiva do domnio especfico do discurso retrico,
Grgias oferece uma resposta encomiasta: como Scrates disse
naquela ocasio a Polo, a pergunta no se refere valorao do objeto
em questo, mas sua definio. Scrates lhe mostra que a sua
resposta no satisfatria porque as melhores e mais importantes
coisas humanas [...] uma assero polmica, na medida em que h
igualmente outros artfices [...] que reivindicam para sua arte o mesmo
ttulo. A propenso ao elogio de si mesmo ou de seu ofcio um dos
traos do personagem Grgias no dilogo, que corresponde, por sua
vez, a um dos elementos fundamentais do modo de discurso retrico
(Grgias, nota 16, p. 186).
Havemos agora de discorrer sobre o fato de, reiteradas vezes, tanto Polo, quanto
Grgias, procurarem qualificar a Retrica para determin-la como a arte sobre as outras.
Irwin (1979) afirma que o atributo de qualidade dado por Polo Retrica suficiente
para dar uma definio da mesma, uma vez que se trata de um atributo mormente dela,
apesar de Scrates no corroborar com tal caminho. Podemos, ento, partir para a
compreenso que estamos nos deparando com ideias primevas divergentes em relao
ao mesmo objeto. Para Grgias, a prpria teknhvem da empeiria, sendo assim, no ser
preciso conhecer a definio de uma coisa para dizer o que ela , mas a prpria
definio vem a partir da descrio dos dados sensveis, que podem ser comparados
com outros e, por isto mesmo, qualific-los a partir deles. Assim, dizer que bela e tem
maior poder faz sentido para Grgias. Tal ponto pode ser observado quando, no passo
452d, Grgias afirma que o domnio da Retrica sobrepor-se aos outros em sua
-
23
prpria cidade, claramente colocando a sua teknh em carter superior30
. J no passo
seguinte (452e), Grgias afirma que seu ofcio tem, por meio da persuaso (), o
poder de falar e persuadir a multido ( ),
transformando os outros artfices em escravos de suas palavras31
. Sendo assim, diz
Arajo:
Mas, para Grgias, justamente o que diz Scrates que no faz
sentido. De modo algum a retrica seria excluda de uma reunio que
queira decidir sobre o saber, e isso porque s a retrica sabe, pois s
ela capaz de dizer o melhor, entenda-se, s a retrica realiza o
necessrio em uma reunio, o discurso. Sempre que uma arte manual
precisa decidir o que fazer, ela precisa da retrica para dizer por ela,
para lhe dar um sentido [...]. (ARAJO, 2008, p. 52-53).
A Retrica, ento, seria, reforando mais uma vez a viso de Grgias, e a de
Polo, a teknhmelhor e mais bela. O professor Aldo Dinucci (2010) tambm aponta que,
embora reconhea as variadas formas de discursos, Grgias no fenece de seu mister
uma superioridade em relao aos outros tipos32
. Vemos claramente, com isto, que os
personagens Grgias e Scrates discordam diametralmente em relao ao conceito de
teknh.
A partir do pressuposto que Grgias possui, dentre sua gama de
intencionalidades, a preocupao em denotar a superioridade dialgica socrtica frente
aos seus interlocutores, vamos observar que Scrates procura impor sua prpria noo
de teknh, estabelecendo nuances divergentes inclusive daquelas que estavam
disponveis nos contextos sociais dos personagens. No obstante, apontaremos a
30
[...] GOR: Aquele que , Scrates, verdadeiramente o maior bem e a causa simultnea de liberdade
para os prprios homens e, para cada um deles, de domnio sobre os outros de sua prpria cidade. No
dilogo Mnon, Plato coloca, nos lbios desse personagem, que a definio da virtude maior do homem,
que a virtude sobre a cidade, a capacidade de comandar os homens. Interessante perceber que, antes
dessa afirmao de Mnon, Scrates afirma que o pensamento de seu interlocutor est coadunado com o
de Grgias (Mnon, 73c-d). 31
No Filebo, podemos notar o seguinte do personagem Protarco: Da minha parte, Scrates, ouvi, muitas
vezes, Grgias repetir que a tcnica da persuaso ultrapassa em muito todas as outras, pois a ela
submetem-se todas as coisas no por violncia, mas de bom grado por ser ela, de longe, a melhor
dentre todas as tcnicas. No gostaria, por isso, de me opor, agora, nem a ti nem a ele. Com essa
afirmao, vemos que as deliberaes qualitativas em relao ao mister pretendido por Grgias eram
comumente aceitas no contexto vivido por Scrates e demais personagens do Grgias. 32
Portanto, Grgias distingue diversos tipos de discurso, diferenciando-os de acordo com a matria
tratada e a persuaso exercida. Alm disso, podemos dizer que, do ponto de vista da retrica, todos os
discursos supem (como condio para que existam) o conhecimento da linguagem e o consequente
reconhecimento de que a retrica subjaz a todos eles como sua condio de possibilidade. Assim, desse
ponto de vista, a definio apresentada pelo personagem Grgias no seria ampla em demasia, mas to
somente revelaria o fato de que toda e qualquer techn tem de fazer apelo retrica, arte que concerne
s palavras, na medida em que for preciso tratar discursivamente de algum aspecto seu [...]. (O que nos
faz pensar, n. 28, dez. 2010, p. 220).
-
24
posio socrtica em relao Retrica, no excluindo o foco de que ela faz parte de
uma empeiria, mas que no produz a epistm, sendo seu escopo a mera adulao
(). Dinucci (2010) assim argumenta sobre essa concepo socrtica de
teknh, que destoa de seus pares:
preciso reconhecer que Scrates impe suas prprias premissas na
argumentao. A retrica afirmada uma empeiria e no uma techn
por Scrates devido sua singular concepo de techn, que ao
mesmo tempo epistm (j que pressupe o conhecimento da
definio de seu objeto), praxis (j que implica uma prtica de acordo
com esse conhecimento, sendo o erro, para Scrates, devido
ignorncia) e poisis (j que a techn tem como fim a produo de
eudaimonia). Essa concepo radicalmente distinta no somente
daquela de Grgias como de todos os seus contemporneos, que
tendiam a ver uma estreita ligao entre techn e empeiria,
desconsiderando a possibilidade de um carter epistemolgico da
techn. Porm, simplesmente afirmar que o argumento de Scrates
invlido por impor ao adversrio certos conceitos e noes perder de
vista o ponto em questo e o sentido histrico da argumentao
socrtica e platnica como um todo. No podemos deixar de notar, em
primeiro lugar, que Scrates, por meio de sua argumentao, est
apresentando aos seus contemporneos sua prpria noo de techn,
que ser desenvolvida de diferentes formas por Plato nos dilogos da
juventude, da maturidade e da velhice. [...]. (DINUCCI, 2010, p. 229-
230).
Delinearemos, a partir de agora, os passos que sustentam a crtica socrtica
Retrica, que a coloca como mera adulao. Ao nos debruarmos no passo 453a,
relembramos que Grgias anuiu compreenso socrtica que coloca como maior poder
() da Retrica a capacidade de incutir na alma dos ouvintes a persuaso ().
No passo seguinte, Scrates estabelece que a persuaso plural, ao questionar a que tipo
de persuaso Grgias afere ser utilizada em sua Retrica, embora ele j suspeite qual
dever ser a resposta33
. No passo 453d, o prprio Grgias concorda que, quem ensina,
qualquer que seja a arte, persuade.
Conduzindo a compreenso e tendo a anuncia de Grgias em relao ao fato de
a persuaso no ser objeto exclusivo da Retrica, Scrates almeja saber de qual
persuaso alberga exclusivamente a Retrica, visto que no faz jus s demais34
. A
33
[...] SOC: Passo a te dizer agora. Que persuaso essa proveniente da retrica qual te referes e a que
coisa concerne a persuaso, saibas bem que no o sei claramente, mas suspeito, presumo eu, de que
persuaso falas e a que ela concerne. Todavia, no deixarei de perguntar a ti que persuaso provm da
retrica qual te referes e a que coisa ela concerne [...]. (453b). 34
McCoy (2010, p. 98) sugere que, nessa parte do dilogo com Grgias, Scrates procura mostrar
aparentemente a insuficincia da retrica, visto que no se ancora em nenhum conhecimento especfico.
-
25
resposta de Grgias delimita como cerne as deliberaes acerca do justo () e ao
injusto () em tribunais e demais assembleias (454b5-7)35
.
A partir dessa parte do dilogo, Scrates conduz Grgias ideia de que existem
dois tipos de persuaso, a saber: uma, que incute na pessoa a quem se pretende
persuadir uma crena falsa, e a outra, que incute uma crena verdadeira. Em outros
termos, a primeira produz a crena sem conhecimento, e no uma cognio, ou seja,
uma cincia () (454d-e)36
. Ao consentir que a persuaso produzida pela
Retrica nos tribunais geradora de crena, e nada ensina sobre o justo e o injusto,
Grgias demonstra a inpcia de sua pretensa arte37
. Ao menos sob o escrutnio
perpetrado por Scrates, que, como j vimos, associa a tcnica ao conhecimento
pretendido por ela38
. Sobre este aspecto, infere-nos Casertano (2010, p. 57-58) que [...]
o fato de induzir nos outros uma crena separada do conhecimento, isto , privada de
, na realidade coloca imediatamente a retrica no campo no de uma tcnica, mas
de uma empiria enganadora [...]. McKirahan (2013, p. 619-620) vai reforar esse
Como ela mesmo diz: Scrates apresenta a posse de conhecimento tcnico como o fundamento da boa
persuaso. 35
Faz-se interessante observar o comentrio de Arajo (2008, p.48-49) em relao a essa definio de
Grgias: A ideia de Grgias deve ser compreendida como a transmisso, pela persuaso do discurso, do
saber que s o retrico tem acerca do que o bem segundo a determinao das circunstncias. Em outras
palavras, a retrica transmite pela persuaso a determinao do poder em termos de vontade e permisso,
e a partir da que ela pode dizer o justo, como o que respeita essa ordem, e o injusto, como a prpria
insolncia. Dizer o justo e o injusto fazer jus ao discurso, submeter o discurso gide de um bem,
fazendo ocultar que ele muito mais poderoso que o bem. Um pouco mais acima, a prpria autora j
observara que, mais uma vez, essa resposta de Grgias foge novamente ao intento do questionamento
socrtico, que busca o per ti, ou seja, o que . O que ele faz com essa nova resposta fornecer outra
perspectiva (p.48). Vamos observar que Scrates vai utilizar essa nova linha de raciocnio para refutar seu
interlocutor. 36
Mais frente, no subitem 1.2 deste captulo, retornaremos com uma anlise mais prolfica sobre as duas
espcies de persuaso. Por hora, suficiente a ns esta distino apenas para observarmos que esse um
dos passos dados por Scrates para argumentar sobre a Retrica e seu carter lisonjeiro. No obstante,
achamos importante observar, ancorados em DODDS (1980, p. 206), que a distino entre crena ()
e conhecimento (), elementos importantes para a filosofia de Plato, aqui formalmente exposta
pela primeira vez: Ele modificou sua terminologia depois: do Mnon em diante, a palavra normal para
opinio doxa, enquanto, na Repblica (511e1), pistis se torna o nome para uma subdiviso da doxa. A
doutrina da presente passagem [do Grgias] reafirmada em nova linguagem no Teeteto (201a8) [...] Mas
Plato no rigoroso em seu uso dos termos: numa famosa sentena do Timeu (pois, assim como o ser
est para o vir-a-ser, assim est a opinio para a verdade 29c3), pistis equivale ao termo mais usual
doxa. 37
[...] SOC: Qual , ento, a persuaso que a retrica produz nos tribunais e nas demais aglomeraes, a
respeito do justo e do injusto? A que gera crena sem o saber ou a que gera o saber?
GOR: deveras evidente, Scrates, que aquela geradora de crena.
SOC: Portanto, a retrica, como parece, artfice da persuaso que infunde crena, mas no ensina nada a
respeito do justo e do injusto.
GOR: Sim. [...] 454e8-455a3. 38
Arajo (2008, p. 51) observa que Grgias decide dar a resposta que Scrates quer, ao anuir que a
Retrica gera a crena sobre o justo e o injusto. Grgias havia constatado que Scrates no aceitaria mais
uma vez o discurso como resposta.
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26
argumento ao aduzir que ser neste ponto que Scrates virar o jogo contra os sofistas,
retirando no s o pretenso carter universal da tcnica da Retrica, como tambm
negando-lhe o atributo de arte, por no ter um cerne determinado.
Tomando como pressuposto a ideia de que as decises tcnicas em uma cidade
devem ser tomadas pelos artfices mais aptos, Scrates retira dos retricos o poder de
deliberar corretamente sobre as decises da cidade, como aponta Irwin (1979, p. 119):
Scrates supe que deve haver experts polticos que tenham conhecimentosobre o que
justo e injusto, e estes oradores no so estes experts. Ou seja, em relao ao poder
(455b). O retrico, por no ser detentor de um saber especfico, nada teria de decidir
sobre a cidade, como observa Arajo (2008, p. 52). Entretanto, Grgias procura mostrar
o poder da Retrica aolembrar a Scrates que algumas das principais obras de Atenas
no foram conselhos de artfices especficos, mas de oradores como Temstocles e
Pricles (455d6-e3). A seguir, e tomando como referncia a prpria inferncia de
Grgias, Scrates, mais uma vez, indaga sobre o poder () da Retrica, pois, tal
como o sofista expe, faz parecer sua arte um elemento divino (456a). Adiante, Grgias
afirma que, em meio multido, no h assunto em que o retrico no seja mais
persuasivo que qualquer artfice (456c). Lopes (Grgias, 2011, p.202) argumenta que
Grgias leva a ideia de que a Retrica no se apresenta como uma arte com o domnio
especfico, mas sim como detentora de um saber sobre os diversos saberes, inclusive
sobre os que tenham uma tcnica especfica39
. Observamos aqui que, mais uma vez,
Grgias prope ser a Retrica uma panaceia aos discursos, reforando o elogio que ele
procurou determinar desde o princpio do dilogo40
.
Ao elaboraruma analogia entre a Retrica e a luta () (456d1), o
personagem Grgias estabelece o carter agonstico comum s duas, encerrando-as em
processos de profundas altercaes, como aponta Lopes (Grgias, 2011, p. 203, nota
29). E como comparativo direto, Grgias afirma que, assim como o que apreende a arte
da luta no deve utiliz-la de forma injusta, o que apreende a Retrica, em todo o seu
poder tambm no o deve faz-lo. Todavia, se o rtor e o lutador utilizarem suas artes
39
Interessante observar que Aristteles, na abertura de sua Retrica, coloca a Retrica no estatuto de uma
arte genrica, sem um saber especfico. A retrica a contraparte da dialtica. Ambas igualmente dizem
respeito a estas coisas que se situam, mais ou menos, no horizonte geral de todos os indivduos, sem ser
do domnio de nenhuma cincia determinada [...]. (1354a1-4). 40
De acordo com essa ideia, esclarece Arajo (2008, p. 53): A retrica tem em si o poder de todas as
outras artes. Sempre que uma deciso tiver que ser tomada, ser o retrico o escolhido, e o que ele quiser
ser sempre realizado [...].
-
27
de forma injusta, nem o mestre que o ensinou tal arte nem as prprias artes devem ser
responsabilizadas, pois seus princpios so guiados pela justa ao (456d-457c).
Observamos, apoiados em Lopes (Grgias, 2011, p. 205) e Arajo (2008, p. 54), que,
para Grgias, a utilizao correta de uma arte de responsabilidade do prprio agente,
que deve responder por suas aes, e no de quem ensinou, que mantm a medida41
.
Essa declarao ser focal na consumao do elenchos por parte de Scrates, uma vez
que ser um ponto crucial em sua refutao, como ficar claro na sequncia da
discusso.
Observamos que, almejando a refutao ao argumento de Grgias, Scrates
procura manter seu interesse na discusso, afirmando ser ele um homem que se compraz
com a possibilidade de ser refutado, com o escopo da busca da verdade (458a)42
. E
indaga a Grgias se ele tambm esse tipo de homem, que assente com presteza (458b).
Podemos notar, nesse passo, a tentativa de Grgias em se desvencilhar do dilogo com
Scrates, para evitar ser refutado, ao aludir aos demais presentes um desgaste de
contedos dados43
. Entretanto, sua tentativa no logra xito, uma vez que a prpria
audincia, na pessoa de Clicles, se mostra sequiosa pela continuao do debate
(458d)44
.
O Leontino assente o interesse do pblico e pede que Scrates continue a
indagao principiada (458e1-2). Como desenvolvimento, Scrates questiona Grgias
41
O professor Dinucci (O que nos faz pensar, n. 28, dez. 2010, p. 225-226) observa que, para Grgias, o
mau uso da teknh, ou seja, ao ser utilizada injustamente, no possibilidade exclusiva da Retrica, mas
tambm das demais artes. Citao? 42
Sobre esse passo, Lopes (Grgias, 2011, p. 206-207) argumenta que Scrates demonstra uma
preocupao sobre o que vir, uma vez que ele teme que Grgias considere que a motivao socrtica seja
de carter pessoal e no de busca de esclarecimento sobre o tema aduzido. Scrates procura se justificar
antecipadamente, por j saber que, diante de alguns interlocutores, seu processo de elenchos , muitas
vezes, confundido com a mera prtica da erstica, cujo objetivo apenas a vitria. Como vimos acima,
nota 21, essa prtica era tpica dos sofistas e no de filsofos como Scrates, ao qual Plato pressupunha
deter uma benevolncia. 43
[...] GOR: Mas ao menos eu, Scrates, afirmo ser um homem do tipo ao qual aludiste; mas talvez
devssemos pensar tambm na situao dos aqui presentes. Pois, muito antes de vs chegardes, eu j
havia lhes exibido inmeras coisas, e talvez agora nos estendamos em demasia, se continuarmos a
dialogar. Assim, devemos averiguar tambm a situao dessas pessoas, a fim de que no nos
surpreendamos se parte delas queira fazer alguma outra coisa(458b). Tambm se faz mister perceber que
Polo, no prlogo do dilogo, afirmara que o prprio Grgias estava exausto depois de sua apresentao
sobre diversos assuntos (448a). 44
De acordo com Lopes (2011, p. 210, nota 34), a manifestao dos ouvintes representa, sutilmente, a
derrota de Grgias para Scrates, uma vez que se inverte o jogo de foras. Na chegada, Scrates se depara
com um ambiente desconhecido, cheio de discpulos de Grgias, e consegue impor sua modalidade
dialgica, tendo o pblico ao seu favor. Utilizando Arajo (2008, p. 56) como referncia, podemos
argumentar que, provavelmente, o pblico presente intenta que o dilogo d continuidade para ter
conhecimento de um vencedor. Embora saibamos que Scrates intenciona d prosseguimento em respeito
questo proposta, como ele mesmo afirma reiteradas vezes.
-
28
sobre a possibilidade de este transformar algum que o procure num rtor; num artfice
cujo poder possa persuadir, no ensinar, a multido. A essa turba de incautos, que no
goza de conhecimento especfico, o rtor se apresenta como mais convincente em
relao sade, por exemplo, que o mdico, detentor de conhecimento especfico45
.
Grgias assente as indagaes socrticas com presteza, concordado com a conduo.
Entretanto, faz-se mister a compreenso que Scrates conduz a anuncia de Grgias a
considerar que o sucesso da empreitada do rtor depende da ignorncia da audincia,
sendo que, se fosse em meio aos que tivessem conhecimento, a persuaso retrica seria
infrutfera46
. Somos levados a perceber, ento, que a persuaso dos retores influi
diretamente na ignorncia do pblico. E por no deter o conhecimento sobre o que
ensina, o rtor se mostra tambm ignorante, que em meio a ignorantes detm maior
poder47
. A partir da assuno de Grgias sob o escrutnio de Scrates, este mostra a
retrica no como uma arte, detentora de um saber, mas sim como uma contrafao,
uma aparncia incutida aos ignorantes, perpetrada por ignorantes48
. Grgias anui
concluso socrtica, entretanto, interpretando como vantagem e superioridade a
caracterstica da Retrica delineada por Scrates 458c3-549
. No comentrio sobre o
Grgias, Lopes interpreta esse passo como sendo mais uma evidncia de que os
45
A utilizao da medicina como exemplo de teknh em Plato referencia a importncia dessa arte na
cultura grega, como nos diz Jaeger: Ainda que no tivesse chegado at ns nada da antiga literatura
mdica dos gregos, seriam suficientes os juzos laudatrios de Plato sobre os mdicos e a sua arte, para
concluirmos que o final do sculo V e o IV sculo a.C. representam na histria da profisso mdica um
momento culminante do seu contributo social e espiritual. O mdico aparece aqui como representante de
uma cultura especial do mais alto grau metodolgico e , ao mesmo tempo, pela projeo do saber num
fim tico de carter prtico, a personificao de uma tica profissional exemplar, a qual por isso
constantemente invocada para inspirar confiana na fecundidade criadora do saber terico para a
edificao da vida humana [...]. (Paideia, 1995, p. 1001). Ainda sobre este aspecto da medicina em
detrimento das pretensas artes, nos diz Penner (2013, p.184): [...] Como a medicina olha para o que
objetivamente melhor para a sade (e no apenas para o que parecemelhor aos pacientes no que tange
sua sade), assim a cincia da virtude olha para o que objetivamente melhor para os homens (no s
para que os homens pensam ser melhor para eles) [...]. 46
Grgias, 459a. 47
Grgias, 459b6-8. 48
SOC: Assim, no tocante a todas as demais artes, o rtor e a retrica se encontram na mesma condio:
a retrica no deve conhecer como as coisas so em si mesmas, mas descobrir algum mecanismo
persuasivo de modo a parecer, aos ignorantes, conhecer mais do que aquele que tem conhecimento
(459b10-459c2). 49
Interessante observar o comentrio de McCoy (2010, p. 100) sobre a assuno de Grgias. O que nos
faz entender que at aqui o elenchos socrtico est coadunado com o que pensa o Leontino: [...] O
conhecimento tcnico sobre um assunto particular no qual algum est persuadindo desnecessrio. Em
vez disso, o retrico sabe como produzir convico parte de qualquer conhecimento especializado, tanto
por parte do falante quanto do persuadido. Se o mdico e o retrico convencem, o efeito prtico o
mesmo em seu pblico de fato, at o efeito epistemolgico o mesmo do ponto de vista do paciente,
pois, seja quem for convencido, a pessoa que toma o remdio somente ter mudado suas opinies. A
diferena que o retrico mais eficiente em atingir o objetivo de persuaso. Grgias no nega que o
conhecimento tcnico existe, mas que haja uma ligao necessria entre conhecimento e a boa persuaso
[...].
-
29
personagens debatedores at agora tm suas prprias convices em relao Retrica,
que se excluem mutuamente50
.
J tendo sinalizado que a Retrica um engodo aos incautos, Scrates conduz
seu elenchos para uma encruzilhada da qual Grgias no consiga sair. Voltando a
questo do cerne do justo e do injusto, alegados como escopos da Retrica pelo prprio
Grgias (454b5-7), que considera que o rtor deva se guiar pela justia, mas que, se ele
se guiar pela ao injusta, no se deve culpar o mestre que o ensinara (457b), Scrates
indaga ao seu interlocutor se a relao do retrico com o justo e o injusto encontra-se a
respeito do justo como se encontra a respeito da sade. Ou seja, ignora o saber da
justia, mas, por meio da persuaso (), conduz os ignorantes de modo a parecer
conhecer, mais que aqueles que, de fato, conhecem (459d). Ou se necessrio que o
pretendente a rtor saiba previamente sobre o justo e o injusto, ou sendo Grgias um
mestre da Retrica (), ele possa ensinar-lhe esse cerne (459e).
Grgias, por sua vez, assente que acaso no conhea, o aprendiz poder ter com ele as
coisas referentes ao justo e ao injusto. Scrates, ento, encerra seu raciocnio
completando que, quer seja previamente, quer por ensinamento, ser necessrio que o
rtor conhea acerca do justo e do injusto (460a)51
.
Como prximo passo, Scrates utiliza o argumento por analogia entre arte
() e virtude (), comum nos primeiros dilogos de Plato, como sustenta
Lopes (Grgias, 2011, p. 216), no qual bastaria saber sobre certa arte para reproduzi-la.
Assim, bem como o detentor da arte de carpintaria o carpinteiro, e o detentor da arte
da medicina o mdico, quem detm a justia justo (460b). A partir do passo (460c-e)
Scrates infere a Grgias, de certa forma ardilosa, que o rtor sendo justo, jamais
50
A diferena de juzo entre Scrates e Grgias sobre o poder da retrica mostra como, do ponto de vista
da construo das personagens, elas possuem valores absolutamente diferentes, refletindo, portanto, o
abismo entre filosofia e retrica: enquanto para Scrates ela consiste numa prtica irracional e num saber
aparente, na medida em que o rtor no precisa conhecer aquilo sobre o que discursa, mas somente
parecer conhecer multido para a qual discursa (razo suficiente para no consider-la uma techn,
embora Scrates no explicite essa tese nesse momento do dilogo), para Grgias justamente esse
aspecto que a torna superior s demais tekhnai, pois parecer conhecer condio suficiente para
persuadir uma multido ignorante daquilo sobre o que se discute. O domnio do aparente no tem
qualquer valorao negativa por parte da personagem Grgias, enquanto para Scrates, inversamente, a
busca pelo conhecimento tem como fim a supresso do aparente (Grgias, p. 212. Nota 36). 51
MacCoy (2010, p.99) argumenta que aqui Scrates que estabelece a ideia de haver uma ligao
necessria entre a retrica e o conhecimento da justia. At ali, Grgias apresentara a retrica e o
conhecimento da justia como separveis. Segundo a autora, no mximo, Grgias associara levemente a
retrica com a justia (454b). Concomitantemente, embora possa aduzir que Grgias cometeu um deslize
conquanto a ligao necessria estabelecida por Scrates, ele no demonstra que a posio original de
Grgias sobre a natureza da retrica seja incoerente. Dodds (1980), por sua vez, aponta que Grgias no
deveria simplesmente ter afirmado que ensina justia, podendo, assim, escapar do argumento.
-
30
querer cometer injustia, ao passo que o sofista anui. Por fim, fazendo Grgias entrar
em contradio, Scrates o relembra quando o disse que se um rtor utilizar a Retrica
injustamente, a culpa deve cair para ele, e no para quem o ensinou. Ora, se quem
conhece o justo, querer ser justo, como pode um rtor cometer injustia?52
Entretanto,
faz-se mister reconhecer que essa concluso do elenchos socrtico vai de encontro ao
prprio pensamento de Plato j exposto no Mnon (95c), no qual este profere que
Grgias jamais professou ser mestre da virtude ( ), e sim prometeu
ensinar apenas a tcnica dos discursos, como j observamos acima53
.Contudo, temos
que concordar com Nichols JR. (2016, p. 59), que argumenta que, apesar de os temas
em Plato perpassarem por vrios dilogos, cada um deles deve ser visto como
unilateral e parcial, buscando uma abordagem especfica ou um ponto de vista especial
para um problema.
O processo encerrado por Scrates, que deixa Grgias em contradio, abrir
caminho para a entrada repentina de Polo na questo (461b3), que acusar de ardilosa a
maneira como Scrates havia conduzido a discusso54
. Por isto mesmo, passa a colocar-
se como defensor da Retrica, retomando e renovando o debate. Com a entrada de Polo,
Scrates reconhece a oportunidade de, por si mesmo, estabelecer o que entende por
Retrica. Este fato fica evidente ao nos depararmos com a inverso de papis conduzida
por Scrates, ao permitir que seu interlocutor saia da condio de inquirido para a
condio de inquiridor55
.
52
Vemos aqui a contradio pela qual passa a personagem Grgias frente ao elenchossocrtico.
Entretanto, podemos notar a contra-argumentao de Robinson (1966, p. 23), alegando que sequer
Grgias entrou em contradio, mas sim, houve uma inconsistncia de seu pensamento sob as premissas
estabelecidas por Scrates. 53
Tambm interessante observar o comentrio de Lopes acerca desse assunto: Ao acrescentar na
concluso do argumento indutivo que a pessoa que conhece o justo, alm de ser justa, que age de modo
justo [...], Scrates introduz, na discusso, uma tese sobre a motivao moral que ultrapassa os limites da
analogia entre arte e virtude [...] (Grgias, p. 217, nota 39). De forma igualmente relevante, MacCoy
(2010, p. 99) alega o seguinte: a assuno de Scrates de que Grgias deve ou saber sobre a justia e
ensin-la, ou ser responsabilizado por seus alunos parecerem saber quando no sabem, questionvel.
claro que h alternativas. Uma pessoa pode saber sobre a justia em si, mas ser capaz de ensin-la a
outros: considere o exemplo da falha de Scrates em ensinar qualquer um presente de que a vida justa
melhor do que a vida injusta nesse dilogo. Sobre a dificuldade de ensinar que a vida justa melhor que
a injusta, versaremos com afinco no captulo 02 desta dissertao. 54
Apoiados em Lopes (2011, p. 220. Nota 44), observamos aqui que, segundo Polo, Scrates estabeleceu
premissas que colocaram seu mestre em posio de vergonha, ao ter que admitir que ensinava a justia.
Para o jovem Polo, a anuncia de Grgias se d no por ele concordar com as premissas de Scrates, mas
sim, pelo fato de, como estrangeiro naquela cidade, ter que corroborar com os valores morais assentados
nela, mesmo que no condissesse com sua prtica de rtor. Assim, teria que admitir para os que ali
estavam que ensinava qualquer assunto a quem quisesse, inclusive em relao ao justo e ao injusto. 55
SOC: E agora, cumpre a parte que te aprouver: pergunta ou responde! (462b1). Lopes (2011, p. 222.
Nota 47) observa que essa inverso de papis rara nos primeiros dilogos de Plato.
-
31
De pronta celeridade, Polo alberga a condio de questionador e, sem demora,
pergunta a Scrates o que para ele a Retrica. Compreendemos aqui que Scrates j
imaginara qual pergunta Polo lhe dirigiria, uma vez que, desde o comeo desta
interveno, Polo mostrava-se afetado e jactante em relao derrota de Grgias. Por
isso, podemos observar o passo 462a1-3, no qual Scrates adverte sobre a possibilidade
de ele ser refutado, como o prprio Grgias o fora56
. Posto isso, e de forma direta,
Scrates vai afirmar que, segundo seu parecer, a Retrica no nenhuma arte (462b).
De fato, Scrates coloca a Retrica como certa experincia ( )
(462c3). Arajo (2008, p. 77) observa que, at ento, essa definio da Retrica como
experincia no seria um contraponto ideia de Polo, a no ser pelo fato de,
efetivamente por esta caracterstica, Scrates no considerar a Retrica uma arte
(). No obstante, temos aqui uma definio no qualitativa, como aquelas aduzidas
por Grgias e Polo, e partiu de Scrates, que procurar definir os meandros da retrica
sofstica. Polo, at ento ignorando as pretenses de Scrates, quer ouvir deste o eco de
sua prpria definio, perguntando que tipo de experincia a Retrica (462c7).
Quando Scrates afirma que uma experincia de produo de deleite e prazer
( ) (462c8), Polo novamente entra na perspectiva
qualitativa, querendo que seu interlocutor reconhea ento, na Retrica, a mais bela das
artes. Scrates se esquiva e pede que, para continuar com sua definio do cerne da
Retrica, Polo pergunte que tipo de arte lhe a culinria57
. Vejamos, ento, essa parte
da argumentao:
SOC: Pergunta-me agora que arte me parece ser a culinria!
POL: Pergunto sim: que arte ela ?
SOC: Nenhuma, Polo.
POL: Mas o qu, ento? Fala!
SOC: Falo sim: certa experincia.
56
No ensaio introdutrio do Grgias, Lopes (p. 44-45) argumenta que, em sua apresentao, Polo se
mostra como futuro mestre de Retrica, seguindo os passos de Grgias, ao pretender educar os regentes
da democracia de Atenas. Entretanto, posto que Plato o representa no decorrer do dilogo como um
personagem impaciente e dbil (), o que vai, inclusive, permitir que Scrates seja mais incisivo em
seu processo de refutao. Em concordncia com Lopes, Alfred Croiset, em sua nota de abertura do
Grgias, assim apresenta Polo: Polos, plusjeune, plustranchant, um peuridicule par soninfatuaton, mais
quireculedevantlesconsquencesdangereuses de ss thories. [...]. 57
Como j apontamos acima, o personagem de Polo posto por Plato como inbil no conhecimento
dialgico de Scrates, o que faz este conduzir o dilogo com o efebo a seu bel prazer, como observa
Arajo (2008, p.77-78): Vale a pena notar o quanto Scrates se diverte com a satisfao inicial de Polo
pela concordncia que ele teria feito surgir e com o seu espanto, ao ver essa concordncia resultar em algo
to bizarro quanto a comparao da melhor das artes com a culinria [...].
-
32
POL: Qual? Fala!
SOC: Falo sim: de produo de certo deleite e prazer, Polo.
POL: Portanto, a culinria e a retrica so a mesma coisa?
SOC: De forma nenhuma, mas partes da mesma atividade. [...] (462d8-462e3).
Com efeito, Scrates procura delimitar a Retrica fora do eixo de uma teknh,
conduzindo sua argumentao para encerr-la como uma ferramenta de prazer e deleite
destituda de conhecimento tcnico. O comparativo, nesta parte da Retrica, com a
culinria, serve como princpio para que Scrates estabelea uma esquematizao do
que ele vai chamar de tcnicas e de suas partes em contrafao, a saber, de adulaes ou
lisonjas58
. Contudo, antes de sedimentar sua proposio acerca do aspecto lisonjeiro da
Retrica, Scrates, com certa indulgncia, se mostra preocupado em no ser rude por
dizer uma verdade que parea a Grgias um gesto de tripudiar. Entretanto, Grgias se
mostra sequioso em dar continuidade e pede que Scrates no se preocupe (463a4).
Posto isto, Scrates sentencia que a Retrica uma atividade como outras, que longe de
ser arte, apropriada alma ligada a conjecturas, com capacidade de se relacionar com
os demais e que tem como seu cerne a lisonja () (463b1). Sendo assim, o
nome dado ao grupo de ocupaes empricas como a Retrica lisonja, sendo esta
delineada pela experincia e pela rotina. No Filebo, podemos notar uma definio de
no tcnicas feita por Scrates que se aproxima dessa definio de Retrica enquanto
lisonja. Quando Protarco, o interlocutor de Scrates no Filebo, procura saber como
distinguir os conhecimentos puros que podemos tomar como verdadeiros dos
impuros que tomaremos como falsos , Scrates diz que, tirando do conhecimento
suas tcnicas, o que teria sobrado depois disso seria a conjectura, o exerccio dos
sentidos pela experincia e por certa rotina, utilizando-se ainda as potncias de
adivinhao que muitos denominam tcnicas cuja eficcia produzida pelo exerccio e
pelo trabalho rduo (55d-56a1).
Estabelecido o cerne da Retrica e destituindo-a do altar de uma teknh, Scrates
agora vai traar que tipo de lisonja a Retrica. De pronto, ao ser perguntado por Polo
em que parte da lisonja colocaria a Retrica, Scrates argumenta que ela um simulacro
da poltica e, como tal, m e vergonhosa (463d). Entendemos o simulacro como uma
58
Casertano (2010, p. 63) vai argumentar que, antes de estabelecer esta esquematizao, Scrates no faz
nada mais que brincar com as palavras, dizendo e no dizendo.
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contrafao, ou seja,
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