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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
COMUNICAÇÃO
LÍDIA HELENA DA SILVA FERREIRA
As Memórias de Bento:
Representações pela nostalgia no jornal A Sirene
– Para não Esquecer
Mariana (MG)
2018
Lídia Helena da Silva Ferreira
As Memórias de Bento: representações pela nostalgia no jornal A Sirene
– Para não Esquecer
Dissertação apresentada à banca examinadora como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de
Ouro Preto.
Área de concentração: Comunicação e Temporalidades.
Linha de Pesquisa: Práticas comunicacionais e tempo social.
Orientadora: Profa. Dra. Hila Rodrigues
Mariana (MG)2018
Aos meus avós: Vovô Vicente e Vovó Júlia, por me ensinarem a beleza e a
importância da saudade. Por me mostrarem que o afeto permeia passado,
presente e futuro, sem se importar com lugares e distâncias. Por
permanecerem ao meu lado através da fé, das ternas lembranças e do amor.
Todo meu carinho a vocês.
AGRADECIMENTOS
Agradecer é reconhecer a partilha durante a caminhada. Mais ainda, é saber valorizar cada um que
se dispôs a me ajudar, a ouvir e me apoiar durante os dois anos tão intensos. Por isso, começo
agradecendo aos meus pais, Helena e Antônio, os responsáveis pela minha conquista. Eles foram
meu abrigo, meu canto no mundo, minha segurança, minha força e toda minha proteção. Obrigada!
Agradeço ao meu irmão Heitor, por ser sempre um aconchego nas horas difíceis e um parceiro de
vida.
À minha querida orientadora Hila, toda a minha gratidão não cabem em linhas. Agradeço por me
estender a mão e seguir comigo durante toda a pesquisa. Agradeço pelo afeto e ternura com que
abraçou meus tempos, respiros, minhas dúvidas, meus anseios. Por ser uma inspiração profissional
e de vida. Obrigada por acreditar na minha pesquisa e não permitir que eu deixasse de acreditar.
Agradeço o encontro e a partilha! O que aprendi nesses dois anos passa pelo seu carinho e sua
forma de deixar o mundo mais leve.
À minha família sempre tão presente e afetuosa. Agradeço as orações e todo amor. Obrigada as
minhas madrinhas Iria e Naná, à Tia Ice, Tia Nanã, Tia Rita, Tia Marcinha. As minha cunhada
Flávia pelo apoio, e ao meu Tio Osório e Tia Cris pelas conversas inspiradoras.
À Antonela e Marinna por serem meu respiro e descanso.
Ao Luan por seguir do meu lado em todos os momentos, pelo apoio, amor e paciência. Por me
acompanhar até Bento Rodrigues e por não me deixar desistir de seguir em frente.
Ao Luiz Abreu por comprar a ideia e desenvolver um projeto gráfico tão lindo. Obrigada pela
paciência em cada esboço, por ouvir e abraçar o que eu queria, por tanta gentileza. Obrigada por
tonar belo os afetos.
Ao Saulo Rios pela partilha profissional e de vida.
Aos amigos do mestrado, Lorena, Thainá, Pedro, Alejandra, Mariana. Obrigada por tanta partilha,
por seguimos juntos nesses anos.
Aos amigosVirgínia, Mari, Íris, Ana Carolina, Tayrine, Júlia, Izabella, Letícia Naves, Letícia
Cabral, Aline, Thaís, Lorena, Bárbara, Rafaela, Eduardo, Tatá e a Nananda. Obrigada por todo amor
e paciência nesses anos. Agradeço ao apoio, a torcida e ao incentivo.
À Universidade Federal de Ouro Preto e ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação.
Ao professor Frederico Tavares, por ser parte da minha formação e por cada contribuição tão
valiosa. Ao professor Cláudio Coração por caminhar sempre por perto e nos ensinar as belezas da
vida. A professora Juçara Brittes por tanta gentiliza ao me ajudar no trajeto da pesquisa. E a Renata,
por ser tão paciente e prestativa.
A Giulle da Mata pelas conversas sempre tão atenciosas e inspiradoras para construção do projeto.
Por lembrar-me que é preciso paixão para que a escrita se torne bela. Talvez por issoescolhi falar de
afetos.
Ao grupo Quintais pelas trocas.
Aos professores André Carvalho e Flávio Vale pelo carinho que me receberam no estágio docência.
Obrigada pela confiança e aprendizado.
Ao Jornal A Sirene e ao Rafael Drummond, Gustavo Nolasco e Marília Mesquita por me ajudarem
a conhecer o jornal.
Aos atingidos Mônica Santos, Manoel Muniz, Cristiano Gomes, Mônica Gomes, Terezinha
Quintão, por serem tão gentis nas trocas, por me acolherem na visita a Bento Rodrigues e por me
deixarem conhecer um pouco mais de suas histórias.
Por fim,ao Lincon Zarbietti, Bruno Arita, Lucas Godoy e Elvis Barbosa, fotógrafos que cederam
suas fotos para composição do trabalho.
- A gente só conhece bem as coisas que cativou – disse a raposa. – Os
homens não têm mais tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo já
pronto nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não
têm mais amigos.
O Pequeno Príncipe – Antoine de Saint-Exupéry
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo demonstrar como se revelam as recordações e de que forma
a nostalgia é representada e transportada para as páginas do jornal A Sirene – Para não Esquecer.
Partimos dos estudos sobre a contemporaneidade até chegar às reflexões sobre a cidade e suas
lembranças e a compreensão da memória individual e da memória coletiva. Elegemos a nostalgia
como ferramenta analítica para compreender os processos plurais que nos levam a formação de
sentimentos sobre um lugar, um objeto, uma pessoa, um momento. Como metodologia, tomamos
como base a Cartografia dos Afetos e propomos uma Cartografia das Recordações, com o intuito
de viabilizar a passagem dos afetos e, a partir da análise das narrativas, criar uma nova linguagem
para falar dessa experimentação afetiva. A partir da cartografia proposta criamos dois mapas
nostálgicos: A Permanência e O Atravessar, que nos permitiram maior compreensão da relação do
homem com o tempo, das diferentes formas de se falar do passado e, principalmente, entender o
jornal como elemento de transformação e resistência.
Palavras-chaves:Nostalgia; jornal A Sirene; Memória; Narrativas; Bento Rodrigues.
ABSTRAT
This study treats nostalgia and its plurality of affections. We start from the contemporaneity, we
have arrived to the city until the comprehension of individual memory and collective memory.
Therefore, we examine the memories that allowed us to map and understand how nostalgia makes
presence in photographic and textual narratives from the local newspaper "A Sirene - Para não
Esquecer" (The Siren - Not to Forget). Our aim is to demonstrate how these memories are revealed
and in which ways nostalgia is represented and transported to the pages of the newspaper. As a
methodology, we take Affection Cartography as a base to propose a Memory Cartography, with the
purpose of opening passages for the affections and, after the narrative analysis, to create a new
language, based on nostalgia, to speak of that affective experimentation. We propose the creation of
two nostalgic maps: The Permanence and The Throught. The analyzes has allowed us to increase
the comprehension of mankind's relationship with time, the different ways of speaking about the
past and, mainly, to understand the newspaper as a transformation element.
Key-words:Nostalgia; A Sirene newspaper; Memory; Narrative; Bento Rodrigues
LISTA DE TABELAS
TABELA 1- NOSTALGIA RESTAURADORA E REFLEXIVA ................................................................................... 25
TABELA 2 -– PERCENTUAL DE OPINIÃO SOBRE OS MAIORES INCÔMODOS PROVOCADOS PELA
MINERAÇÃO ......................................................................................................................................................... 37
TABELA 3 - DEMONSTRATIVO DO CORPUS DE ANÁLISE................................................................................... 67
TABELA 4 - CARTOGRAFIA DAS RECORDAÇÕES ................................................................................................. 72
TABELA 5 - A PERMANÊNCIA .................................................................................................................................... 76
TABELA 6 - O ATRAVESSAR ...................................................................................................................................... 81
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FIGURA 1 - ESCRITOS NOS ESCOMBROS DE BENTO RODRIGUES ......................................................................................... 32
FIGURA 2 - IGREJA DE SÃO BENTO EM BENTO RODRIGUES .................................................................................................. 35
FIGURA 3 - BENTO RODRIGUES ANTES DA TRÁGEDIA ........................................................................................................... 38
FIGURA 4 - BENTO RODRIGUES ANTES DA TRÁGEDIA ........................................................................................................... 38
FIGURA 5 - FESTA DO PADROEIRO DE SÃO BENTO .................................................................................................................. 39
FIGURA 6 - DISTRITO DE BENTO RODRIGUES ANTES DE SER DEVASTADO PELA LAMA. .............................................. 39
FIGURA 7 - DISTRITO DE BENTO RODRIGUES ANTES DE SER DEVASTADO PELA LAMA. .............................................. 40
FIGURA 8 - DISTRITO DE BENTO RODRIGUES ANTES DE SER DEVASTADO PELA LAMA. .............................................. 41
FIGURA 9 - BENTO RODRIGUES DOIS ANOS APÓS A TRAGÉDIA ........................................................................................... 42
FIGURA 10 - BENTO RODRIGUES DOIS ANOS APÓS A TRAGÉDIA ......................................................................................... 43
FIGURA 11 - BENTO RODRIGUES DOIS ANOS APÓS A TRAGÉDIA ......................................................................................... 44
FIGURA 12 - ESCRITOS NOS ESCOMBROS DE BENTO RODRIGUES ....................................................................................... 47
FIGURA 13 - MAPA ILUSTRATIVO DAS RUAS ATINGIDAS EM BENTO RODRIGUES .......................................................... 53
FIGURA 14 - LEGENDA ..................................................................................................................................................................... 54
FIGURA 15 - O CAMINHO DOS REJEITOS ..................................................................................................................................... 55
FIGURA 16 - 5 DE NOVEMBRO DE 2015 ......................................................................................................................................... 56
FIGURA 17 - BAR DA SANDRA ANTES E DOIS ANOS APÓS O ROMPIMENTO ..................................................................... 57
FIGURA 18 - PRIMEIRA REUNIÃO DE PAUTA JORNAL A SIRENE – ICSA/UFOP. .................................................................. 62
FIGURA 19 - PROTESTO #UMMINUTODESIRENE, DISTRIBUIÇÃO DO PRIMEIRO EXEMPLAR DO JORNAL A SIRENE62
FIGURA 20 - CAPAS JORNA A SIRENE ........................................................................................................................................... 65
FIGURA 21 - PRIMEIRO ESBOÇO CARTOGRAFIA DAS RECORDAÇÕES ................................................................................ 74
FIGURA 22 - MAPA 1: A PERMANÊNCIA ....................................................................................................................................... 80
FIGURA 23 - MAPA 2: O ATRAVESSAR .......................................................................................................................................... 85
LISTA DE ANEXOS
ANEXO A - O QUE QUEREMOS DO VELHO NO NOVO BENTO? ........................................................................ 92 ANEXO B - BELEZAS DE BENTO .............................................................................................................................. 93 ANEXO C - SABORES DA MEMÓRIA ....................................................................................................................... 94 ANEXO D - PAPO DI CUMADI .................................................................................................................................... 96 ANEXO E - A LAVOURA PERTO DE BENTO ........................................................................................................... 97 ANEXO F - NOSSA HISTÓRIA DEBAIXO DO DIQUE ............................................................................................. 99 ANEXO G - ACABOU-SE O QUE ERA DOCE .......................................................................................................... 100 ANEXO H - SEU FILOMENO: A FESTA DENTRO DE UM HOMEM .................................................................... 102 ANEXO I - ACOLHIDA, ESPERANÇA E RESISTÊNCIA ........................................................................................ 104 ANEXO J - DIVERSIDADE QUE NOS CONVIDA A ACOLHER ............................................................................ 105 ANEXO K - NEM NA MINHA CASA EU MANDO MAIS ....................................................................................... 106 ANEXO L - AFETADOS PELA LAMA ...................................................................................................................... 107 ANEXO M - A ÚLTIMA NOITE ................................................................................................................................. 108 ANEXO N - 1 ANO DE ATINGIDO ............................................................................................................................ 109 ANEXO O - POR QUE TOMBOU? ............................................................................................................................. 112 ANEXO P- O DIA QUE DORMIMOS NO BENTO DE NOVO ................................................................................. 114 ANEXO Q - MUROS ANTIGOS DE BENTO ............................................................................................................. 115 ANEXO R - MEMÓRIA E ESPAÇO ........................................................................................................................... 116 ANEXO S - FAMÍLIA SILVA, DE BENTO RODRIGUES ........................................................................................ 117 ANEXO T - O ÚLTIMO CASAMENTO DE BENTO RODRIGUES ......................................................................... 119 ANEXO U - AS RUAS QUE SOBRARAM ................................................................................................................. 120 ANEXO V - PRIMEIRA MISSA .................................................................................................................................. 121
SUMÁRIO
PRÊAMBULO ........................................................................................................................ 13
O DIA EM QUE FUI A BENTO ................................................................................................................ 13
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 16
CAPÍTULO 1.......................................................................................................................... 20
A NOSTALGIA E SEUS AFETOS ...................................................................................... 20
1.1 A origem do conceito ............................................................................................................................ 20
1.2 Nostalgias restauradora e reflexiva ........................................................................................................ 24
1.3 Os Afetos ............................................................................................................................................... 30
2 A CIDADE COMO TESSITURA DA MEMÓRIA ......................................................... 35
2.1 Bento Rodrigues .................................................................................................................................... 35
2.2 A memória urbana ................................................................................................................................. 45
2.3 Memórias coletiva e individual ............................................................................................................. 47
3 A SIRENE: A SUBMERSÃO – UM CONTO INACABADO ........................................ 52
3.1 - 5 de novembro de 2015 ....................................................................................................................... 53
3.2- O surgimento do Jornal A Sirene – Para não Esquecer ........................................................................ 58
3.3- ANO I ................................................................................................................................................... 60
3.4 - ANO II ................................................................................................................................................ 62
3.5 CAPAS .................................................................................................................................................. 64
3.6 - Corpus da Pesquisa: ............................................................................................................................ 66
4. UMA CARTOGRAFIA DAS RECORDAÇÕES ............................................................ 68
4.1 Propostas de uma Cartografia das Recordações .................................................................................... 70
4.2 Um primeiro olhar ................................................................................................................................. 73
4.3 A Permanência ....................................................................................................................................... 75
4.4 O Atravessar .......................................................................................................................................... 81
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 86
Referências Bibliográficas ..................................................................................................... 89
13
PRÊAMBULO
O DIAEM QUE FUI A BENTO
“Não se faz um mapa sem conhecer o território” – frase dita pelo professor Frederico
Tavares, na banca de qualificação deste trabalho, em 01 de setembro de 2017. Na manhã de
domingo, 21 de janeiro de 2018, finalmente consegui viabilizar minha ida a Bento Rodrigues.
Passada a placa que sinaliza o trajeto rumo à cidade, ainda no asfalto, o caminho até o subdistrito é
vazio. Cruzamos apenas com um carro da Defesa Civil de Minas Gerais. Sinalizações em fitas
brancas, amarradas nas árvores ao longo da estrada de terra, indicam o local onde será construído o
Novo Bento.
Ao ver aproximar a região do antigo Bento, encantei-me com o que parecia ser um imenso
lago de águas claras, sem qualquer indício de lama – pelo menos para quem contempla de fora.
Uma vista bonita, cercada de verde. Ao chegar, descobri que eram os diques S3 e S41. Logo na
entrada, onde há uma guarita, o guarda me impediu de entrar. “Sem o acompanhamento de um
morador, você não tem a autorização para andar aqui dentro”. Expliquei que já havia combinado
com a Mônica (moradora que retorna ao distrito nos finais de semana), mostrei nossa conversa no
aplicativo do WhatsApp, contei que era uma visita de campo para uma pesquisa acadêmica,
apresentei-me e mostrei a carteirinha da UFOP, que comprovava meu vínculo com a Universidade.
“Apenas se Mônica vier até aqui (na guarita) te buscar, mas acho que ela saiu bem cedo”.
Outro carro de fiscalização se aproxima. Explico novamente minha situação, mostro
novamente a conversa e digo que o celular da Mônica está sem área, só por isso não consigo falar
com ela. O motorista pensa, olha para o outro guarda e diz que vai até a casa da moradora. Vinte
minutos de espera e Mônica chega. Acha estranha a situação e diz que nunca precisou buscar
ninguém que quisesse entrar. Contou que só naquele dia – o de minha visita – havia um carro da
Defesa Civil andando por lá.
Chegamos, então, à casa de D. Terezinha Quintão. Fomos recebidos com a cordialidade
mineira. Já se aproximava a hora do almoço e todos estavam na varanda. Mônica me apresentou aos
1 Os diques S3 e S4 foram construídos pela mineradora Samarco para a contenção de minérios no córrego Santarém —
um acima da comunidade de Bento Rodrigues, chamado S3, e outro abaixo, o S4. O segundo alagou um terço da
comunidade.
14
amigos, contou sobre minha pesquisa e explicou o motivo de minha visita. Todos se sentaram ao
redor de uma grande mesa e começamos a falar. Deixei que a conversa fluísse e me dispus a ouvir o
que eles queriam me contar. Sem muitas perguntas, a conversa sempre perpassava o dia 52.
Uma hora depois e o “macarrão x-tudo”, feito de maneira improvisada, chega à mesa. Uma
panela dessas grandes. Fomos logo avisados de que, em casa de mineiro, não se faz cerimônia nem
se recusa comida. Almoçamos e o assunto continuou. Todos me contavam como sobreviveram à
tragédia. Diante da lama, cada um tem sua história. Descreveram com detalhes os momentos que
antecederam o rompimento da barragem, os pedidos de ajuda, o ônibus que levou muitas pessoas
para fora do subdistrito, a noite que se seguiu. Emocionaram-se ao relembrar os momentos em que
descobriam que mais um estava vivo, que a lama não o havia levado. Tentei direcionar algumas
perguntas para o passado. Afinal, eu queria saber mais sobre o Bento Rodrigues que antecedeu a
tragédia: suas particularidades, suas memórias. As respostas vinham, mas, junto com elas, a lama –
que insistia em permanecer na conversa.
Comemos a sobremesa – um rocambole de chocolate Prestígio. Perguntei se poderia
caminhar pelo distrito e, rapidamente, Manoel e Cristiano (moradores de Bento Rodrigues que
estavam na casa de D. Terezinha Quintão, no dia da visita) se colocaram à disposição para me
acompanhar. Era um dia de sol forte e, por volta de 14h, atravessei o coração do subdistrito.
Imaginei que veria lama nas ruas, mas os caminhos já estavam livres dela. Ainda assim a destruição
era completa. Vi escombros em meio ao verde das plantas que cresceram. Vi a marca da lama ao
longe, nas árvores, e vi de muito perto a marca da lama que cobriu as casas. Vi as janelas e portas
saqueadas. Vi as paredes escritas com lama. Vi o que restou da Escola Municipal Bento Rodrigues.
Vi o marco que Maanoel fez antes da construção do dique, para saber exatamente onde era a sua
casa.
Vi, em todos os locais, as sinalizações para a evacuação da área caso a sirene tocasse.
Perguntei se agora havia uma sirene. Eles apontaram para uma torre ao longe e responderam:
“Dizem que é lá, mas nunca tocou, né?”. Havia um tom de ironia, misturado à indignação.
Caminhamos até onde era a Igreja de São Bento. Cristiano me mostra, no celular, uma imagem de
como era o lugar onde estávamos. Ali era o lugar que eu havia usado como referência para meu
2O dia 05 de novembro de 2015 refere-se à data de rompimento da Barragem de Fundão (Samarco), submergindo o
subdistrito de Bento Rodrigues a lama.
15
primeiro mapa das recordações. Ali eu me emocionei. Não havia mais a igreja. Ali eu entendi muito
das narrativas que li no Jornal A Sirene.
Em meio aos escombros da capela, foi erguida uma lona branca, sustentada por armações de
ferro. No chão havia tablados de madeira. Na entrada, uma placa enorme explica que as ruínas da
Igreja são parte do Patrimônio Histórico de Minas Gerais. Ao fundo, um banner com a foto do altar.
Um ato de resistência. Permaneci naquele lugar por alguns minutos, contemplando o banner, sem
saber o que dizer a Manoel e Cristiano, que me perguntaram: “Difícil, não é?”. Eu realmente não
sabia o que dizer a eles. Não era difícil. Era impossível.
Entendi, naquele momento, porque não é possível separar a história de Bento Rodrigues da
lama de rejeitos. Entendi que o Bento que eu queria pesquisar e descrever não seria legítimo se eu
ignorasse o dia 5. Talvez soe óbvio, mas estar ali me permitiu compreender que todos os afetos em
relação àquele lugar atravessam a tragédia. Hoje posso dizer que, nesse trabalho, falo de Bento
Rodrigues a partir das particularidades descritas e compartilhadas por muitas pessoas nos dias e
anos que antecederam o tsunami de lama – mas também a partir das lembranças que essas pessoas
construíram, tendo a própria tragédia como referência. Se pareço dar demasiada atenção a essa
“descoberta” é porque, de todos os momentos da pesquisa, esse foi o que mais me aproximou das
narrativas que li e busqueinas páginas do jornal A Sirene, nesse exercício de mapear a nostalgia. O
que vi ali não é o que mostro nos mapas, mas, como jornalista e ser humano, tento me aproximar
das lembranças de cada um que se dispôs a compartilhar sua história comigo. Assim, falo sobre um
Bento derecordações e memórias.
Voltamos para a casa de D. Terezinha, onde escuto mais histórias sobre o dia 5. Eles
precisam falar e nós precisamos ouvir. Despeço-me de todos e prometo um reencontro. Em tom de
brincadeira, D. Terezinha diz que era uma pena que, justo naquele dia, o Bar da Sandra estivesse
fechado. Dou-lhe um abraço apertado e agradeço mais uma vez.Chego em casa e tiro dos sapatos a
poeira da lama. Olho para o primeiro mapa que fiz antes da visita e redescubro seus sentidos e
afetos. Verdade. “Não se faz um mapa sem conhecer seu território”.
16
INTRODUÇÃO
Tradicionalmente, o termo saudade é utilizado para falar de lembranças, de algo de que
sentimos falta. Normalmente relaciona-se à perda e está diretamente ligada ao tempo passado. É
comum, no nosso cotidiano, ouvir expressões do tipo “como isso era bom na minha época” ou
“aquele tempo bom não volta mais”. Ambas simbolizam um apego a tempos idos. Atualmente, falar
de saudade ganhou certa amplitude devido à aceleração do tempo. Essa pesquisa surge da
curiosidade sobre a maneira como as pessoas olham com afetuosidade para o passado, sobre como
tendem a resgatar objetos, reviver a moda e tantos outros processos.
Inicialmente procuramos entender como esse olhar se manifesta e como pode ser
representado no âmbito do jornalismo.Ao mesmo tempo, caminhamos pelos estudos sobre a
memória e também sobre a modernidade e sua velocidade característica. Nessa busca por elementos
que falassem do passado, descobrimos a nostalgia.Estudar a nostalgia é mais que entender o
significado de saudade: é compreender os processos plurais que nos levam à formação de
sentimentos sobre um lugar, um objeto, uma pessoa, um momento. Por isso escolhemos falar desse
sentimento tão particular.
Os estudos sobre anostalgia em si não são fartos – e a bibliografia sobre o tema se divide em
diferentes campos do saber. Desta forma, no capítulo inicial procuramos traçar uma genealogia do
conceito norteador desse trabalho. Discutimos o surgimento da palavra, que se dá em um contexto
médico, com o suíço Johannes Hofer, em 1688, até seu entendimento nos dias atuais como emoção
social. Recorremos aos dois tipos de nostalgia apresentados pela pesquisadora russa Svetlana Boym
(2001) – a reflexiva e a restauradora –, que usaremos como eixo operador no percurso
metodológico. Propomos também, nessa etapa inicial, uma reflexão sobre os afetos baseada nas
perspectivas de autores como Denilson Lopes (2016), Didi –Huberman (2016) e Muniz Sodré
(2006).
O segundo capítulo traz a história de Bento Rodrigues – desde sua fundação até o dia da
tragédia de 5 de novembro de 2015, quando o colapso da Barragem de Fundão, no subdistrito de
Bento Rodrigues, a 35 km de Mariana (MG), tornou-se a maior tragédia ambiental do Brasil e o
mais grave acidente da história da mineração mundial. Exatamente às 16h20, 60 milhões de metros
cúbicos de lama invadiram a região, submergindo a comunidade. A gigantesca barragem de rejeitos
de minério de ferro era propriedade da Samarco e suas controladoras – a brasileira Vale S.A. e a
anglo-australiana BHP Billiton. O município de Barra Longa e os subdistritos Paracatu de Baixo,
17
Paracatu de Cima, Campinas, Borba, Pedras e Bicas, pertencentes a Camargos, também foram
atingidos pelo mar de rejeitos. Nenhum sinal sonoro foi emitido para alerta a população e permitir a
evacuação das pessoas que transitavam naquele momento pelo lugar. A tragédia se estendeu por
650 quilômetros, de Minas Gerais até o litoral do Espírito Santo. A lama seguiu o curso do Rio
Doce e encontrou o mar, afetando um total de 39 cidades de formas direta e indireta, além das
comunidades ribeirinhas. Foram registradas 19 mortes, entre trabalhadores, terceirizados da
mineradora e moradores das comunidades. Além dos óbitos, aproximadamente um milhão de
pessoas foram prejudicadas, segundo informações da Defesa Civil de Minas Gerais.
De maneira concomitante, procuramos mostrar o subdistrito antes e depois da destruição,
destacando os efeitos do mar de rejeitos e das perdas ocasionadas pelo rompimento da barragem.
Foi com esse intuito que realizamos a visita de campo do dia 28 de janeiro de 2018 (exposta e
detalhada no preâmbulo deste trabalho). Após essa contextualização, a pesquisa convoca os estudos
de Halbwachs (1990), Michael Pollack (1989), Ecléa Bosi (1994) e Jô Gondar (2016)–
especialmente as abordagens acerca dos trabalhos de rememoração e suas relações com o lugar –
para discutir o papel central da cidade e sua relação com a memória afetiva e com a memória social.
Nossa intenção é tomar a cidade como parte constituinte da memória, entendendo que a relação
sujeito e lugar é parte importante na construção da memória coletiva – que, uma vez inscrita em
documentos e outros registros, será também memória social (GONDAR, 2008).
Essa primeira parte do estudo nos proporciona o arcabouço conceitual para entender as
nuances de Bento Rodrigues e propor uma metodologia de estudo. A segunda parte – constituída
dos capítulos três e quatro – busca delinear e contextualizar nosso objeto de pesquisa, o jornal A
Sirene e, a partir de uma leitura atenta, cartografar as recordações de Bento Rodrigues que
subsistem. O terceiro capítulo apresenta o jornal, seu surgimento e o corpus da pesquisa. Buscamos
compreender o crescimento do jornal, suas particularidades na escrita, sua importância e sua
posição frente ao acontecimento. No capítulo quatro propomos uma Cartografia das Recordações,
tendo como escopo o prisma da afetividade e da nostalgia a partir das categorias propostas por
Boym. A constituição de dois mapas afetivos nos permitiu estabelecer uma relação entre o
subdistrito e a nostalgia – e que mantém vivo o antigo lugar na memória dos habitantes daquela
região atingida pela lama.
18
Assim, o objetivo deste estudo é identificar e cartografar as representações3 da nostalgia
presentes no jornal A Sirene. Para melhor compreensão dos procedimentos e do objeto de estudo, os
escritos que compõem nosso corpus de análise foram anexados ao final do documento, de forma a
permitir um acompanhamento do método cartográfico e da análise empreendida.
Svetlana Boym, estudiosa das relações entre memória e modernidade, ressalta que pessoas
nostálgicas são normalmente indivíduos com os sentidos – tato, audição, olfato, paladar e visão –
mais apurados. A nostalgia em si é perpassada por afetos efêmeros, como sabores, aromas e
lembranças sonoras. Assim, pretendemos, a partir das memórias individual e coletiva, mapear as
narrativas orientadas por essas sensações.
Mas além de perpassada por múltiplas sensações,a nostalgia é também marcada por sentidos
que se cruzam e por afetos como o vazio, a saudade, a melancolia. Propomos, assim, um caminho
ao reverso: recorrer à nostalgia cartografada como ferramenta analítica para a percepção de um
espaço de resistência e memória. Nessa perspectiva, a da nostalgia, torna-se, assim, um instrumento
para compreender como as representações do passado são recriadas no presente e expressas no
jornal A Sirene – e como os múltiplos afetos constituidores desse sentimento nostálgico, motivados
pelo afastamento do lugar, 4podem intervir nas representações configuradas tanto pela memória
individual quanto pela memória coletiva.
A presente dissertação abre caminhos para reflexões sobre a importância da compreensão do
nosso passado, da história do nosso lugar de origem. Permite-nos discutir como se configura nossa
experiência frente a grandes perdas. Por que valorizamos tanto o passado quando não temos mais
acesso a ele? Construímos um passado idealizado para lidar com o que perdemos? Como a cidade é
importante na formação de indivíduos e porque o exílio geralmente é tão doloroso?
A nostalgia cartografada nesse trabalho permitiu visualizar os afetos que pulsam dessas
reflexões e ampliou nossos questionamentos quanto à compreensão da relação do homem com o
tempo. Frente a uma comunidade completamente devastada pela lama, é possível elencar inúmeras
indagações sobre essa relação. A conexão dos moradores de Bento Rodrigues com o lugar marcava
3Representações – de origem latina representare significa “tornar presente”, fazer presente alguém ou alguma coisa
ausente. Neste trabalho optamos por utilizar a definição do termo que diz respeito às expressões que simbolizam e
caracterizam os afetos relacionados à nostalgia.
4Neste trabalho o conceito de lugar está associado à relação de afetividade que os indivíduos desenvolvem com o
espaço. Nas palavras de Buttimer (1985, p. 228) “lugar é o somatório das dimensões simbólicas, emocionais, culturais,
políticas e biológicas.”.
19
uma temporalidade diferente daquela vivenciada em grandes metrópoles. Tinha suas peculiaridades.
O que a nostalgia cartografada pode revelar desse processo de transição perpassado pelo trauma?
Esse trabalho é inspirado, sobretudo, nos afetos – e falar sobre afetos é aceitar a dimensão
subjetiva do tempo. Assim é que a nostalgia nos convoca hoje a falar não apenas de recordações,
lembranças e memórias, mas também de partilha e resistência.
20
CAPÍTULO 1
A NOSTALGIA E SEUS AFETOS
Ah! indiscreta! ah! ignorantona! Mas é isso mesmo que nos faz
senhores da terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a
instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos.
Machado de Assis
O que é a nostalgia? Apenas aquele sentimento que nos aproxima da saudade, mas a partir
de um passado idealizado? Refletir sobre o que é a emoção social que chamamos de nostalgia e
compreender, principalmente, as mudanças de entendimento e de percepção que atravessam a
formação desse conceito – pensando as relações que se estabelecem na sociedade contemporânea –
constituem elementos impulsionadores para a realização deste trabalho. A nostalgia nos parece
híbrida e capaz de abarcar inúmeros afetos e emoções para além da saudade – e compreendê-la
exige uma viagem às origens do termo.
1.1 A origem do conceito
Voltar. Vir ou ir. Regressar, retornar. O afeto que elegemos como desejo de retorno é o que,
na contemporaneidade, denominamos nostalgia. Entretanto, o sentimento doloroso é a conjunção
das palavras gregas nostos (voltar para casa) e algos (sofrimento, uma condição dolorosa). Foi
inventada pelo médico suíço Johannes Hofer, em 1688, para nomear o que ele considerava uma
entidade clínica, isto é, uma enfermidade já reconhecida como tal. A nostalgia surge, portanto,
como uma doença mental aparentemente curável, mas perigosa, e, por vezes, mortal.
Os sintomas da nostalgia incluíam falta de apetite, febre, insônia, suspiros frequentes,
palpitação do coração e perda de força física. Após a concepção precursora de Hofer sobre a
nostalgia, a lista de sintomas se ampliou e passou a incluir problemas respiratórios, pressão alta,
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interrupção do fluxo menstrual nas mulheres, distúrbios glandulares, distúrbios de digestão e
secreção, vômito, diarreia e convulsão, além do principal sintoma psicológico: uma dificuldade de
concentração em qualquer coisa que não seja a lembrança em si (NATALI, 2006).
Em meados do século XVIII, o médico suíço Johann Jakob Scheuchzer relacionou a
nostalgia a uma diferença significativa de pressão atmosférica que causava pressão corporal,
diminuindo a circulação e comprometendo o fluxo sanguíneo para o coração e para o cérebro,
causando um sentimento de angústia. O tratamento para todos esses sintomas era regressar com o
doente à sua terra natal, caso o diagnóstico não fosse tardio. Se o retorno não fosse possível, os
médicos recomendavam que o paciente fosse induzido a acreditar que retornaria, já que era preciso
alimentar a esperança de um retorno em breve. Em casos extremos, a doença poderia levar à morte
ou desencadear atos de extraordinária violência.
É importante ressaltar, nesse ponto, que a nostalgia surge na condição de doença em um
contexto em que a mobilidade social não era comum. As pessoas nasciam, cresciam e morriam em
sua terra natal. Casos de imigração aconteciam por eventos extraordinários, como guerras e
epidemias. Assim, aqueles que não estavam longe do lar não contraíam a nostalgia – o que explica o
grande número de homens afetados pela doença, já que a mobilidade feminina era ainda mais
restrita. No entanto, um psiquiatra inglês, no século XVIII, registrou o acometimento da doença em
uma menina, filha de um casal que havia passado longa temporada fora de casa (NATALI, 2006).
Esse registro marca uma transformação no entendimento da doença: “a distância da terra natal e do
lar já não é um requisito para o seu aparecimento, sendo suficiente que o lar seja transformado de
forma radical” (NATALI, 2006, p. 27).
Posteriormente, na primeira metade do século XIX, o conceito é novamente atualizado: a
nostalgia deixa de ser apenas “um sofrimento causado pela separação física, seja da terra natal ou de
um ente querido” e passa a ser reconhecida, também, como “uma dor provocada pela distância
temporal, isto é, pela passagem do tempo” (NATALI, 2006, p. 28). É nesse contexto que o conceito,
até então associado a uma doença, começa a ganhar contornos de uma emoção social. Não era mais
preciso se afastar de alguém ou de algo para se sentir nostálgico, bastava apenas querer reviver o
passado no presente. A partir dessa concepção, não era mais possível sugerir que o indivíduo
regressasse ao passado, como era indicado, que ele retornasse à sua terra natal.
Em 1830, a Academia Francesa passa a aceitar a palavra nostalgia em seu sentido duplo – “o
anseio por algo distante no espaço e no tempo” (NATALI, 2006, p. 29). É a partir daqui que esse
apego excessivo ao passado passa a se tornar um problema moderno. Como salienta Boym (2001), a
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nostalgia não é antimoderna, mas contemporânea, é resultado de uma nova percepção do tempo e
do espaço. Nesse viés, ela pode ser mais que retrospectiva, pode ser também perspectiva, e, de certa
forma, a utopia do futuro. Assim, reflexão e saudade podem caminhar juntas. O sentimento
nostálgico reaparece inevitavelmente, por exemplo, “como um mecanismo de defesa a um tempo de
mudanças drásticas ou em ritmos acelerados de vida” (BOYM, 2001, p. 5).
No final do século XIX, a palavra inventada por Hofer passa a ser usada não mais como
diagnóstico de uma doença ou com pretensões científicas, mas migra para outros discursos e
esferas, nos quais continua a determinar formas de se relacionar com o passado, mas agora se
referindo a questões ligadas à política e ao empirismo. De acordo com Natali (2006), que retorna
aos escritos de Marx para explicar os novos contornos da nostalgia e seu lugar na cartografia
política moderna, o termo começa a ser empregado para denunciar o apego ao passado. Esse apego
é tomado como uma aberração, pois poderia facilmente se transformar em obstáculo ao progresso,
ao desenvolvimento e à justiça social. Segundo o autor, essa perspectiva transformou a nostalgia
“em uma espécie de crime político” (NATALI, 2006, p. 49).
Mas a nostalgia moderna é mesmo paradoxal – pois embora a “universalidade da saudade
possa aumentar nossa empatia pelos seres humanos”, como observa Boym (2001), acabamos nos
distanciando dos outros sempre que “tentamos reparar essa saudade”, retornando a lugares que
possam assegurar um pertencimento particular. “Algia (saudade) é o que partilhamos, e nostos (ou
voltar para casa) é o que nos divide” (BOYM, 2001, p. 4). No começo do século XX a nostalgia
institucionalizou-se, por exemplo, “em museus nacionais e provinciais, instituições patrimoniais e
monumentos urbanos” (BOYM, 2001, p. 7). Nessa perspectiva, Herman Lubbe e Odo Marquard
foram precursores ao promoverem uma discussão sobre a construção de uma cultura de recordação,
sensibilização e conservação. Citados por Huyssen, os filósofos alemães mostraram como a
“musealização já não era mais ligada à instituição do museu no sentido estrito, mas tinha se
infiltrado em todas as áreas da vida cotidiana” e, como diagnóstico, “assinalaram o historicismo
expansivo da nossa cultura contemporânea e afirmaram que nunca antes o presente tinha ficado tão
obcecado com o passado como agora” (HUYSSEN, 2004, p. 29).
É nesse sentido que Andreas Huyssen percebe, por exemplo, uma associação entre esse
fenômeno cultural e político da “emergência da memória” e a crítica cultural da musealização do
passado. O autor discorre sobre o surgimento desses discursos de memória na década de 1960 – no
rastro da descolonização e dos novos movimentos sociais – e sua aceleração na Europa e nos
Estados Unidos, no começo da década de 1980, impulsionados pelo debate sobre o Holocausto.
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Nessa perspectiva, Hyussen (2004, p. 13) explica que, “no movimento transnacional dos discursos
de memória, o Holocausto perde sua qualidade de índice do evento histórico específico e começa a
funcionar como metáfora para outras histórias e memórias”.
Refletindo sobre essa relação entre passados presentes, o autor aponta para o que chama de
“obsessão pela memória e pelo passado”, isto é, para uma cultura da memória decorrente de certa
neurose para com o tema (HUYSSEN, 2004, p. 16). Essa “cultura da memória”, segundo o autor, é
alimentada, na verdade, pelo medo do esquecimento – especialmente no cenário contemporâneo
marcado por novas tecnologias, novas políticas midiáticas e por um consumo desenfreado. O ritmo
acelerado da industrialização e da vida cotidiana mudou drasticamente a nossa forma de nos
relacionar com o passado. Nessa perspectiva, Hugo Achugar, através de uma leitura de Walter
Benjamin, define o que chamamos de velocidade moderna:
A velocidade, hoje, é uma das formas como se apresenta o contemporâneo e
parece caracterizar, de um modo peculiar, os tempos que se chamam
modernamente pós-modernos. Uma distinção contemporânea – no sentido
bourdienanoe distinção – que pode implicar, tanto no pertencimento, como
na exclusão, em função da sua relação com a velocidade (ACHUGAR, 2009,
p. 15-16).
Nesse sentido, não é possível ignorar que vivemos em tempos de aceleração, diferente
daqueles aos quais as gerações do século XX estavam adaptadas. Hoje, estamos em busca do novo –
mas um novo que mais nos parece permanecer do que, de fato, inovar. Trata-se de uma ideia
presente nas reflexões cotidianas dos sujeitos – e que, não por mero acaso, é frequentemente
expressada nos campos da literatura, do cinema e da música. No final da década de 1980, emergia,
por exemplo, na canção do cantor e compositor Cazuza, que via “o futuro repetir o passado”, dando
forma ao que chamou de “um museu de novidades”, antes de asseverar que “o tempo não para”5.
Lidamos com o presente e com o futuro como mulheres e homens modernos e, ao mesmo tempo,
nos ancoramos no passado para preservar o tradicional, evocar um tempo perdido. Desejamos
segurança. E, de fato, a nostalgia – desde sua condição de doença, nos séculos XVIII e XIX, até a
5 Trata-se da canção O Tempo não para, sexta faixa do quarto álbum solo do cantor brasileiro de rock
Cazuza. Foi o último registro ao vivo do cantor, gravado durante a turnê do disco Ideologia, em outubro de
1988, no Canecão, no Rio de Janeiro. A canção, composta por Cazuza em parceria com Arnaldo Brandão,
baixista e vocalista da banda Hanói-Hanói, e o dramaturgo e letrista norte-americano Howard Ashman, foi
originalmente lançada pela Hanói-Hanói no álbum Fanzine, de 1988.
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tradução contemporânea de melancolia (passando pela dimensão política no pensamento de Marx) –
, está certamente ancorada aos tempos idos, e a essas diferentes formas de lidar com o que já não é.
1.2 Nostalgias restauradora e reflexiva
Com base nessa genealogia e na compreensão da nostalgia como um elemento da cultura
global, que não pertence a nenhuma disciplina em particular, Svetlana Boym – na obra intitulada O
Futuro da Nostalgia – apresenta uma tipologia que esclarece alguns dos mecanismos de sedução e
manipulação presentes no sentimento melancólico. Para isso, diferencia dois tipos básicos de
nostalgia: a restauradora e a reflexiva, que usaremos como norte metodológico nesse trabalho. De
modo genérico, é possível dizer que a primeira carrega a intenção de reestruturar o passado em sua
origem, sem alterações. Em algumas circunstâncias, portanto, significa rejeitar o presente em
função de um certo conservadorismo. Por sua vez, a nostalgia reflexiva tomará elementos do
passado para repensar e renovar o presente.
De maneira mais precisa, a perspectiva de Boym (2001) salienta, na nostalgia restauradora,
o nostos (a casa) – e diz de uma reconstrução histórica da terra perdida. Está, assim, “no cerne do
revivamento nacional e religioso recentes”. Para compreendê-la, “é preciso distinguir entre os
hábitos do passado e os hábitos de restauração do passado” (p. 12). Boym (2001) explica que
quanto mais rápida e devastadora é a aceleração na escala da modernização, “mais conservadoras e
imutáveis tendem a ser a novas tradições” (p. 16). Restauração, aqui, significa um retorno à
harmonia original, restaurar e reconstruir uma terra natal com persistência insana.
De maneira distinta, a nostalgia reflexiva se fomenta com a algia (o próprio anseio) e retarda
esse desejo de retorno ao lar de forma melancólica. Ela reside na “ambivalência do pertencimento e
na saudade, características da humanidade” (BOYM, 2001, p. 9). Tende à criação da
individualidade estética, preocupando-se com o tempo histórico, mas também com o individual. O
foco não é a recuperação do passado, nem daquilo que, em um outro tempo, foi tomado como
verdade absoluta, mas com a consideração sobre a história e a passagem do tempo. A nostalgia
reflexiva valoriza fragmentos esparsos da memória, temporaliza o espaço, coloca a verdade absoluta
em dúvida, “trata de viver o tempo fora do tempo e de aproveitar o presente fugaz” (BOYM, 2001,
p. 10). Refletir é sinônimo de flexibilidade. Não há o restabelecimento da harmonia. Boym (2001)
caracteriza esses nostálgicos como pessoas que “resistem às pressões externas por eficiência e
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experimentam o prazer sensível na tessitura do tempo não mensurável por relógios e calendários”
(p. 11).
A nostalgia reflexiva, assim, é crítica, e abre inúmeros campos de consciência, “nomes de
lugares abrem mapas mentais e o espaço desdobra-se em tempo” (BOYM, 2001, p. 10).
Diferentemente da nostalgia restauradora, a reflexiva tem como atributo a luta pela resistência da
memória do lugar perdido, e não o desejo de reconstruí-lo. Embora os tipos nostálgicos possam
coexistir em um mesmo objeto, são, entretanto, contraditórios. Nas palavras de Boym (2001),
“podem usar os mesmos símbolos e disparadores de memória” (p. 12).
De forma resumida:
Tabela 1- Nostalgia Restauradora e Reflexiva
Nostalgia restauradora Nostalgia Reflexiva
Toma a si própria muito a sério.
Acentua o nostos (lar). Prospera no
algia (o desejo em si). Objetiva uma
reconstrução trans-histórica do lar
perdido.
Pensa a si mesma como verdade e
tradição.
Protege a verdade absoluta.
Está no cerne dos recentes revivals
nacionais e religiosos.
Sua retórica não é sobre o passado,
mas sobre valores, família, natureza,
terra natal e verdades universais.
Apresenta um pretexto para
“melancolias de meia-noite”.
Ligada à memória nacional, baseada
numa simplificada versão de
identidade nacional.
Conhece dois principais esquemas: 1)
Pode ser irônica e bem-humorada,
inconclusa e fragmentária.
Atrasa a volta para casa.
Pensa na ambivalência do desejo e
pertencimento humanos.
Põe em dúvida a verdade absoluta.
Está preocupada com o tempo
histórico e individual, com a
irrevocabilidade do passado e a
finitude humana.
Sua retórica é sobre retirar o tempo
do tempo e compreender a fuga
presente.
Pode apresentar um desafio ético e
criativo.
Ligada à memória social, que consiste
em quadros coletivos que marcam,
mas não definem a memória
individual. Adora detalhes, e não
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A restauração das origens; 2) A
Teoria da conspiração: revela o
simples conceito pré-moderno entre o
bem e o mal.
Retorna e reconstrói a terra natal com
determinação paranoica.
símbolos.
Não segue um único padrão, mas
explora modos de habitar muitos
lugares ao mesmo tempo e imaginar
diferentes zonas temporais.
Teme o retorno com a mesma paixão.
Fonte: Oliveira (2015, p. 105-106), elaborado a partir de Boym (2001).
Um relato ficcional que exemplifica essa coexistência é o filme Nostalgia, de Andrei
Tarkovski (1983). Nele, o diretor conta a história do poeta russo Andrei Gorchakov e sua viagem à
Itália. A narrativa traz questões como o exílio e impedimentos políticos, assim como a
impossibilidade de retornar ao passado, o silêncio diante das lembranças e o poder das recordações
de nortear nossas escolhas. Para Tarkovski, a desorientação define sua obra:
Meu tema é um russo totalmente desorientado pelas impressões com que é
bombardeado, e, ao mesmo tempo, a sua dramática incapacidade de compartilhar
suas impressões com as pessoas que lhe são mais caras, e também a impossibilidade
de incorporar a nova experiência ao passado a que está preso desde o nascimento. Eu
mesmo passei por algo semelhante quando me ausentei da minha pátria durante
algum tempo: meu encontro com outro mundo e com outra cultura, e o princípio de
uma ligação com eles provocaram uma irritação, quase imperceptível, mas incurável
— algo como um amor não correspondido, um sintoma da impossibilidade de tentar
apreender o que é ilimitado, ou de unir o que não pode ser unido; um indicador de
quão limitada, quão restrita, deve ser a nossa experiência na terra; como um sinal
das limitações que predeterminam a nossa vida, impostas não por circunstâncias
exteriores (com as quais seria fácil lidar!), mas pelos nossos próprios "tabus”
interiores (TARKOVSKI, 1998, p. 242).
No filme, os diferentes tipos de nostalgia estão presentes na relação diretor e personagem.
Tarkovski reflete em seu personagem a “impossibilidade de incorporar a nova experiência ao
passado”, uma experiência vivida por ele e colocada sob o ponto de vista reflexivo na produção de
Nostalgia. O diretor tem um anseio crítico sobre o passado, compreende a impossibilidade de
retorno e da reconstrução do lar, mas projeta o desejo paranoico no poeta russo, que protagoniza as
cenas do seu longa-metragem para descrever, em outras palavras, essa sensação de não se adequar
ao novo lugar e tempo.
Outro exemplo dessa coexistência é o gênero musical Fado Português, que, nascido nos
contextos populares da Lisboa oitocentista, traz a nostalgia em melodia. José Tadeu Arantes para o
27
site da Agência FAPESP, onde comenta o livro Trago o fado nos sentidos, organizado por Heloísa
de Araújo Duarte Valente, ressalta o caráter nostálgico do gênero:
[...] Mas há também outra causa, muito mais profunda, que é a própria natureza
predominantemente sentimental, melancólica e nostálgica do fado. Essa “dor da alma” vem
a calhar com o sentimento da pessoa que está fora de seu contexto de origem. Não que
todos os fados sejam tristes. Existem também os alegres. Mas poucos gêneros souberam
cantar tão bem a saudade (ARANTES, 2013).
Nessa perspectiva, o fado, que hoje é reconhecido pela UNESCO como Patrimônio Oral e
Imaterial da Humanidade, é, em sua melodia e melancolia características, uma forma de expressão
da nostalgia e de suas emoções genuínas. Na voz de Amália Rodrigues, um dos ícones do gênero a
partir dos anos 50 do século XX, o fado ganhou protagonismo nacional e internacional. Uma das
letras compostas por Alberto Janes, e que ganhou os holofotes no canto de Amália, é Vou dar de
beber à dor6, que, assim como o filme de Tarkovski, traz questões como recordações particulares do
lugar de origem, aliadas à consciência dolorida de que a casa onde vivia Mariquinhas não mais será
a mesma.
“Foi no domingo passado que passei
À casa onde vivia a Mariquinhas
Mas está tudo tão mudado
Que não vi em nenhum lado
As tais janelas que tinham tabuinhas
Do rés-do-chão ao telhado
Não vi nada, nada, nada
Que pudesse recordar-me a Mariquinhas
E há um vidro pregado e azulado
Onde havia as tabuinhas
Entrei e onde era a sala agora está
À secretária um sujeito que é lingrinhas
Mas não vi colchas com barra
Nem viola, nem guitarra
Nem espreitadelas furtivas das vizinhas
O tempo cravou a garra
Na alma daquela casa
Onde às vezes petiscávamos sardinhas
Quando em noites de guitarra e de farra
Estava alegre a Mariquinhas
6 Primeira faixa do álbum Vou dar de beber à dor, lançado no ano de 1969 pela fadista, cantora e atriz portuguesa
Amália Rodrigues (1920-1999).
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As janelas tão garridas que ficavam
Com cortinados de chita às pintinhas
Perderam de todo a graça
Porque é hoje uma vidraça
Com cercadura de lata às voltinhas
E lá pra dentro quem passa
Hoje é pra ir aos penhores
Entregar ao usurário umas coisinhas
Pois chega a esta desgraça toda a graça
Da casa da Mariquinhas
Pra terem feito da casa o que fizeram
Melhor fora que a mandassem pras alminhas
Pois ser casa de penhores
O que foi viveiro d'amores
É ideia que não cabe cá nas minhas
Recordações do calor
E das saudades o gosto
Que eu vou procurar esquecer
Numas ginginhas
Pois dar de beber à dor é o melhor
Já dizia a Mariquinhas
Pois dar de beber à dor é o melhor
Já dizia a Mariquinhas”7
A música é lembrança, recordação, recupera uma raiz e descreve particularidades da casa de
Mariquinhas. Ao mesmo tempo, “dar de bebida à dor” é uma tentativa de esquecimento, uma busca
por refúgio para lidar com o que já não é. A canção legitima o exílio e a vontade de reviver, por
meio daquele lugar, um passado que hoje foi transformado em um cenário contemporâneo: “entrei
e, onde era a sala agora, está, à secretária, um sujeito que é lingrinhas”. É, mais uma vez, a sensação
de não se adaptar ao lugar ou ao tempo.
Na concepção de Boym, há a percepção de que a nostalgia e a sensação de aceleração do
tempo caminham juntas no cenário contemporâneo e nos seus espaços sociais. A aceleração
contemporânea produz um sentimento de efemeridade e, com a incessante necessidade de
movimento, é como se corrêssemos em círculos: nada permanece, mas também nada de essencial
muda. E o indivíduo que quer se inserir nessa configuração social precisa ser capaz de multitarefas.
Na cultura da urgência é primordial realizar funções simultâneas. Vivemos o tempo das máquinas,
no qual as formas de marcar o tempo são cada vez mais precisas e presentes, e definem uma
temporalidade artificial, abstrata, em contraponto aos tempos biológicos, regidos pelos ciclos da
7 Canção Vou dar de beber à dor, de autoria de Alberto Janes, também conhecida por “Casa das Mariquinhas”, editada
em EP em 1968 e faixa principal do álbum homônimo, de 1969.
29
natureza, das colheitas, das estações do ano. É notório, portanto, como essa aceleração pós-
industrial inerente a homens e mulheres modifica as relações sociais, as vivências individuais e
coletivas. Nesse sentido, a jornalista Eliane Brum, em sua coluna para a edição online do jornal El
País, de 4 de julho de 2016, diria que “estamos exaustos e correndo. Exaustos e correndo. Exaustos
e correndo. E a má notícia é que continuaremos exaustos e correndo, porque exaustos-e-correndo
virou a condição humana dessa época” (BRUM, 2016).
A mudança de percepção do tempo, aliada à insegurança diante do futuro compartilhada por
todos nós, resulta em um olhar afetuoso para o passado. Como assinala Huyssen (2004, p. 32),
“quanto mais rápido somos empurrados para o futuro global que não nos inspira confiança, mais
forte é o nosso desejo de ir mais devagar e mais nos voltamos para a memória em busca de
conforto”. A nostalgia torna-se um refúgio cômodo, seguro, palpável. Temos, portanto, uma
sociedade que olha com romantismo para o passado, com saudades, como contrapartida das
urgências do presente.
A nostalgia é, portanto, em um cenário contemporâneo, um afeto plural. Quando tomamos o
passado como base de nossa narrativa, fazemos isso com o objetivo de interferir num acontecimento
do presente, desencadeando reações nostálgicas e, por conseguinte, interferindo no processo de
construção social da realidade. Essas reações podem ser acionadas por diferentes afetos, como a
dor, a saudade, o apego, a tristeza, ou a simples lembrança de um momento feliz. Ao ser acionado
em cada indivíduo, o processo nostálgico torna-se individual.
É sintomático, nesse sentido, o sucesso, nos dias atuais e entre os jovens, de bandas como
The Beatles e Mamonas Assassinas. Embora nesse trabalho seja observada a experiência nostálgica
do sujeito em relação ao lugar e suas memórias, há de se observar o fenômeno em uma perspectiva
mais ampla. Um exemplo é o sucesso do Canal Viva, um canal de televisão por assinatura
brasileiro, que faz parte do grupo Globosat. O foco da emissora são as reprises, e, para isso, exibe
minisséries, seriados, filmes dublados, novelas e programas de variedades que não estão no ar e
foram produzidos pela Rede Globo e pelo canal GNT. O canal já atingiu grandes picos de audiência
ao reprisar a célebre telenovela Vale Tudo, com o inesquecível mistério de “quem matou Odette
Roitman?”.
As redes sociais também têm se apropriado das hashtags #tbt e #fbfpara falar da saudade do
passado. A hashtag #tbt é a sigla para a expressão em inglês Throwback Thursday, que, em uma
tradução livre, seria como a quinta-feira do passado ou, literalmente, do retrocesso. Trata-se de um
dia destinado à recordação de memórias com pessoas que também as dividiram com você. É comum
30
que, através dessa hashtag, sejam lembrados acontecimentos que ocorreram no passado e também
passagens pessoais, como, por exemplo, a recordação de quando se esteve com um amigo em
determinado lugar. Em todas as quintas-feiras, nas redes sociais, essa hashtag se faz presente,
especialmente no Instagram e no Twitter, onde milhões de pessoas compartilham memórias e
acontecimentos do seu passado. A hashtag #fbf surgiu como uma derivação da #tbt, e é utilizada
como complemento ou extensão da anterior. A sigla em inglês significa Flashback Friday, e, em
português, a sexta-feira do flashback, como uma referência direta à hashtag anterior.
Temos, portanto, disponível no mercado, um passado real e experimentado, e outro
construído – representações da nostalgia restauradora e da reflexiva. Viver o passado no presente
abre possibilidades, requer contemplação, duração e coragem. É preciso pausar para rever, para
experimentar.
Assim, a nostalgia pode ser considerada não apenas um sentimento individual, mas também
algo compartilhado entre os indivíduos, manifestado em narrativas. Por isso acreditamos que pensar
a nostalgia nas páginas do jornal A Sirene é uma forma de não esquecer o rompimento da barragem,
de não esquecer Bento Rodrigues. É, de certa maneira, reforçar uma voz que luta por
reconhecimento em um território de disputas políticas, econômicas e sociais.
1.3 Os Afetos
Para introduzir a análise proposta, é preciso, aqui, refletir sobre os afetos. Os críticos da
modernidade e da pós-modernidade os tomam como “autônomos e impessoais”, em detrimento das
sensações e experiências vivenciadas coletivamente na atualidade, tais como essa acentuada
valorização do presente, a preocupação com o agora, a aceleração dos tempos (LOPES, 2016). Uma
nova forma de pensar os afetos – que se convencionou chamar de “virada afetiva” (affective turn) –
marcou o começo do segundo milênio “não só para enfatizar uma dimensão existencial e da
experiência do pesquisador na reflexão teórica [...], mas também formas de pertencimento,
multidões e comunidades, um regime estético e ampliado” (LOPES, 2016, p. 34). Mas o que
delimita o afeto? É importante defini-lo e relacioná-lo à nostalgia, de maneira a proporcionar
melhor compreensão da cartografia dos afetos adotada aqui como metodologia de análise.
Denilson Lopes, a partir da leitura de Deleuze e Guattari (1992), explica o afeto como um
elemento social, de “forma anterior à separação dos indivíduos” (LOPES, 2016, p. 35). Desse ponto
31
de vista, o afeto guardaria relação com uma “memória corpórea constituída por uma temporalidade
não linear” (idem). Nesse sentido, o afeto, segundo o autor, não é de domínio do indivíduo, mas
“emerge da relação entre os sujeitos” (idem).
Nessa mesma perspectiva, Toni Nigro, no livro Exílio – em que trabalha o valor afetivo sob
a perspectiva capitalista – define o afeto como potência expansiva:
Significa que trata de uma potência de liberdade, de abertura ontológica, de
difusões multidirecionadas. [...] Se, efetivamente o afeto constrói o valor “a
partir de baixo”, se o transforma na dinâmica do “que é comum”, se apropria
das condições materiais de sua própria realização, é mais do que evidente que
ele (o afeto) mobiliza uma potência de expansão (NIGRO, 2001, p. 67).
Ambos os autores trabalham a dimensão social do afeto, de algo compartilhado, que só
existe na relação com o outro. É algo que atinge o todo, é da natureza da emoção, como bem explica
Didi-Hubermam: “a emoção não diz ‘eu’: primeiro porque, em mim, o inconsciente é bem maior,
bem mais profundo e mais transversal do que o meu pobre e pequeno ‘eu’” (DIDI-HUBERMAM,
2016, p. 30). O autor também ressalta, assim como Lopes (2016), a esfera social: “Depois porque,
ao meu redor, a sociedade, a comunidade dos homens, também é muito maior, mais profunda e mais
transversal do que cada pequeno ‘eu’ individual” (DIDI-HUBERMAM, 2016, p. 30).
Entretanto, estar junto também tem a ver com uma “sintonia sensível das singularidades”,
como afirma Sodré (2006, p. 69), para quem essa ligação humana se dá na pluralidade do comum:·.
Quanto ao comum (instaurador do vínculo), é precisamente esse plural manifestado na
totalidade das veiculações humanas, que não se deixa definir nem como uma unidade
abstrata, nem como uma centrifugação de diferenças. Não se trata, portanto, de um mero
estar-juntos, entendido como um aglomerado físico de individualidades, e sim da condição
de possibilidade de uma vinculação compreensiva. O comum é a sintonia sensível das
singularidades, capaz de produzir uma similitude harmonizadora do diverso (SODRÉ,
2006, p. 69).
Em uma definição da Biblioteca Virtual em Saúde, da Organização Mundial de Saúde
(OMS), é o “tom emocional que acompanha uma ideia ou representação mental. É o derivado
psíquico mais direto do instinto e o representante das várias transformações corporais através do
qual os instintos se manifestam”. O que se faz importante, nesse ponto, é compreender que o afeto
se origina no sujeito e, a partir dele, transforma-se em ação. O sujeito é quem põe o afeto em
circulação, é quem reage ao externo emocionalmente.
32
Sob esse prisma, é possível pensar a relação lugar-afeto-sujeito,uma perspectiva em que o
afeto se manifesta de forma integrada, como parte de um todo – um todo que se coloca em relação
ao outro, ao ambiente e às sensações, mas sem lugar específico. Como aponta Nigro, o afeto é
universal porque constrói “uma comunidade entre os sujeitos” (NIGRO, 2001, p. 66). Na concepção
do autor, “o ‘não-lugar’ do afeto fica no cerne dessa comunidade, porque essa comunidade não é
um nome, mas uma potência, porque não é uma comunidade de coerção, mas um desejo” (idem).
Desejo e emoção emergem, portanto, como movimentos. Mas, como observa Didi-Hubermam
(2016), “se a emoção é um movimento, ela é, portanto, uma ação: algo como um gesto ao mesmo
tempo exterior e interior, pois, quando a emoção nos atravessa, nossa alma se move, treme, se
agita” (p. 30).
Esses movimentos permitem a percepção do afeto também em seu aspecto diverso,
multifacetado. Nesse estudo, a nostalgia é concebida como um afeto plural e ambíguo. Plural,
porque abarca sensações como raiva, dor, tristeza, saudade, alegria e satisfação, entre tantas outras.
Ambíguo, justamente porque pode abrigar opostos – como a tristeza e a alegria contidas em uma
mesma lembrança. O desafio é compreender a coexistência desses afetos. A foto a seguir nos dá
uma dimensão dessa manifestação:
Figura 1 - Escrito nos escombros de Bento Rodrigues
Foto: Lincon Zarbietti (2016)
No registro acima, datado de 2016, nas ruínas de Bento Rodrigues, um ano após o
rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), o afeto é expresso como forma de
33
demarcar a relação com o lugar, uma utopia entrecruzada de passado e futuro. A nostalgia é
representada pela saudade e exibe as marcas da lama, em um ato carregado de simbolismo. O que
significa utilizar a lama para escrever “Bento Rodrigues Saudades”? O que significa escrever com
lama nas paredes de uma escola (destruída também pela lama) para manifestar um afeto em relação
a esse lugar? Trata-se de um discurso de permanência através do sentir. E é esse sentir, tão presente
nos afetos em relação a Bento Rodrigues, que nos interessa.
Nesse ponto, é preciso considerar que toda imagem (no caso desse estudo, as imagens e
recordações que dizem respeito a Bento) possui variadas e diversas representações e leituras. Nessa
pesquisa, optamos por assimilar a imagem e a comunicação em um sentido mais profuso, de
comunhão, como sugere Muniz Sodré (2006) em As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política.
Significa que procuraremos perceber os sentidos presentes na fotografia e em escritos que dizem
respeito a Bento como um elemento singular dentro de um contexto, ou seja, em toda a sua
particularidade. Nesse processo, passaremos a utilizar o afeto como ferramenta analítica. Na
concepção de Sodré, o afeto está presente na totalidade dos pensamentos, e isso se estende à
dimensão corpórea, além de dizer sobre o cognitivo e as interações humanas.
Em suma, o afeto será tomado, neste trabalho, não apenas em seu aspecto social, mas
também em sua singularidade e em sua relação com as esferas corpórea e coletiva. Consideramos o
afeto a partir do seu lugar comum, das suas relações cotidianas e da sua relação com o outro.
Destacamos a importância e o vínculo com o externo – como, por exemplo, uma cidade – e
partimos disso para entender a relação de Bento Rodrigues com suas memórias coletivas e
individuais.
Cidades e afetos se entrelaçam para desenhar histórias de vida e memórias que se movem e
se tornam suportes imateriais do subdistrito destruído. Aqui, como já se mencionou, esses afetos são
múltiplos, carregados de medo sobre o futuro e permeados de emoções sobre o passado
(drasticamente modificado pela tragédia). Raiva, revolta e saudades se manifestam no mesmo
campo em que se toma consciência da importância de se compreender certos sentimentos de
pertencimento e resistência.
No capítulo a seguir, buscamos apreender essa relação do lugar com o indivíduo, para
melhor compreender o subdistrito e sua relação com a memória. A cidade desempenha um papel
central na relação do sujeito com a memória afetiva e social. Pressupomos que a relação com Bento
Rodrigues e a constituição de memórias guardam uma correlação com os gestos cotidianos e se
34
aprofundam a partir dos espaços materializados, como as casas. Mas para melhor apreender essas
correlações, examinaremos e mapearemos o distrito de Bento – antes e depois da tragédia.
35
2 A CIDADE COMO TESSITURA DA MEMÓRIA
“Na praça, há o murinho dos velhos que veem
a juventude passar; ele está sentado ao lado
deles. Os desejos agora são recordações.”
As cidades invisíveis – Ítalo Calvino
2.1 Bento Rodrigues
Na tarde do dia 5 de novembro de 2015 a lama que se rompeu da Barragem de Fundão
transformou em ruínas o subdistrito Bento Rodrigues, de Santa Rita Durão, da cidade de Mariana,
em Minas Gerais. Atualmente, o que se vê é um amontoado de escombros marcado pelos rejeitos,
misturado ao verde do mato que cresceu entre os destroços. Só de perto percebe-se que são casas.
Parte do lugarejo foi submerso pela construção do Dique S4 (obra que, de acordo com a mineradora
Samarco, impede que a lama continue a seguir até o Rio Doce).
ManoelMuniz, morador8 de Bento Rodrigues, tentou manter um registro de onde ficava sua
casa. Com ajuda de amigos fez um marco em material plástico e madeira e enterrou entre os
rejeitos. Hoje é possível ver apenas a parte superior do marco, que também foi alagado pelo dique.
“Eu preciso chegar aqui e saber onde ficava minha casa, preciso dessa referência, mesmo que minha
casa não exista mais9”.
A casa da dona Terezinha Quintão, situada na parte mais alta do lugarejo, não foi atingida
pela lama. Apesar de ter sido saqueada logo após a tragédia, o lugar é hoje o ponto de encontro dos
moradores de Bento, que insistem em visitar o local. A sensação de pertencimento dessas pessoas
não foi inteiramente quebrada. Na casa, o chuveiro é improvisado, assim como fogão. Há
bandeirinhas de festa junina espalhadas na varanda, amarradas nas lonas, que substituem o telhado.
Em um dos quartos, há uma colcha de retalhos e uma imagem de Nossa Senhora Aparecida.
É difícil falar sobre Bento Rodrigues e não relembrar o dia 5 de novembro. A lama ainda
escoa nas falas, naquele desânimo produzido pela mente como forma de evitar a dor e outros
8 Optamos por utilizar o termo “morador” e não “ex-morador”, atendendo ao pedido dos entrevistados que contribuíram
com a pesquisa. 9 Entrevista concedida à pesquisadora em 21 de janeiro de 2018, na região de Bento Rodrigues.
36
sofrimentos. No rosto de alguns moradores, ainda se vê uma expressão de medo e de preocupação.
Também é possível notar os olhos marejados nos momentos de recordação do lugar que deixou de
existir após o rompimento.
Ao lado da casa de Dona Terezinha, está a cooperativa onde era produzida a geleia artesanal
de pimenta biquinho. O doce era fabricado no tacho por mulheres da comunidade e a matéria prima
era plantada e colhida ali. De acordo com dados do relatório da Força Tarefa10
, do Governo do
Estado de Minas Gerais, a empresa era um dos destaques da comunidade. O relatório apresenta
dados da Junta Comercial de Minas Gerais (JUCEMG), onde estão registradas as empresas que, em
sua maioria, pertenciam ao setor do comércio varejista – responsável, portanto, pela venda de
produtos diretamente ao comprador final, caso dos hortifrutigranjeiros, alimentos e algumas
bebidas. Há ainda o registro de uma pequena de pequeno porte, voltada para atividades de
consultoria empresarial especializada.
De acordo informações da Fundação Renova11
, o povoamento de Bento Rodrigues teve
início com a mineração, no século XVIII. A comunidade, fundada em 1708 pelo bandeirante
paulista Bento Rodrigues, tinha aproximadamente 600 moradores. De acordo com Maurício Viana
Borato (2012), em um estudo12
sobre o índice de sustentabilidade da mineração, 74% desses
moradores residiam no lugarejo há mais de 20 anos. Bento fazia parte da Estrada Real, a 35 km da
sede Mariana, e a 124 km da capital mineira, Belo Horizonte. Em sua tese, Viana registra que 72%
dos moradores mantinham uma relação – seja direta ou indireta – com as mineradoras Samarco e
Vale. Desses, 44% eram ex-empregados ou subcontratados. É sob esse aspecto que o autor
considera “interessante” o fato de que, ainda em 2012, quase dois terços dos entrevistados de Bento
Rodrigues temerem que seus imóveis fossem “desapropriados ou adquiridos pelas empresas de
mineração” (VIANA, 2012, p.216). Outro dado importante está na tabela a seguir. Ela indica que
10
Trata-se de um relatório desenvolvido pela Força-Tarefa intitulado Avaliação dos efeitos e desdobramentos do
rompimento da Barragem de Fundão em Mariana-MG, publicado no dia 20 de novembro de 2015 pelo Governo de
Minas Gerais, em resposta ao rompimento da Barragem de Fundão. Disponível em:
http://www.agenciaminas.mg.gov.br/ckeditor_assets/attachments/770/relatorio_final_ft_03_02_2016_15h5min.pdf.
Acesso em 1º de fev. de 2018. 11
A Fundação Renova surgiu do após a assinatura do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) e foi
criada para reparação e compensação dos danos causados pela tragédia. Disponível em:
http://www.fundacaorenova.org/reassentamentos/bento-rodrigues/. Acesso em 1º de fev. de 2018 12
Trata-se da tese de doutorado intitulada Avaliando Minas : índice de sustentabilidade da mineração (ISM), que
apresenta um sistema de avaliação para a construção do Índice de Sustentabilidade da Mineração (ISM) com base na
proposição e agregação de certos indicadores econômicos, sociais e ambientais, bem como sua aferição em unidades
operacionais minerárias. Disponível em: http://www.repositorio.unb.br/handle/10482/10542. Acesso em 1º de fev. de
2018.
37
68% da população demonstrava receio em relação à possibilidade de rompimento da barragem. Três
anos depois o medo concretiza-se em fatos.
Tabela 2–Percentual de opinião sobre os maiores incômodos provocados pela mineração
Fonte: VIANA (2012, p. 215)
No centro de Bento Rodrigues havia a Igreja de São Bento. O senhor Filomeno, de 82 anos,
era o “guardião do templo” desde os 13 anos de idade. Hoje, é possível ver apenas uma lona
branca, partes dos muros de pedra que cercavam a Igreja e um amontoado de escombros. A lápide
que indica o jazigo do Major Camillo de Lelis Ferreira (1823-18970), no interior da capela, está
quase intacta debaixo dos tapumes de madeira improvisados para a cerimônia de celebração da
Festa de São Bento, em julho de 2017. Em Bento Rodrigues, o calendário religioso local era
extenso, como registra a edição do jornal A Sirene, em julho de 2016: “Festa de São Sebastião, de
São José, de Nossa Senhora das Dores, de São Bento, de Maria Concebida, do Sagrado Coração de
Jesus, de São Benedito, de Nossa Senhora das Mercês e do Menino Jesus” (p.13). O destaque era
para a cerimônia do padroeiro, ou seja, para a Festa de São Bento, sempre no último final de
semana do mês de Julho.
Figura 2 - Igreja de São Bento em Bento Rodrigues
Fonte: Imagem cedida pelo morador Manoel Muniz. Foto: Luciano Almeida
38
À direta da Igreja ficava o Bar da Sandra, famoso pelas coxinhas saborosas e por abrigar os
torcedores para os clássicos de Cruzeiro x Atlético. O bar era uma herança do seu pai. De acordo
com dados disponibilizados pelo site da Prefeitura Municipal de Mariana, o subdistrito, assim como
a sede, tinha o relevo ondulado, com a presença de montanhas, além de um clima tropical de
altitude úmida e temperatura média anual de 19ºC. De acordo com os moradores, o subdistrito era
tranquila no dia a dia, e tinha certa agitação nos finais de semana. As crianças brincavam nas ruas e
as cachoeiras eram pontos turísticos importantes.
Figura 3 - Bento Rodrigues antes da tragédia
Foto: Bruno Arita
Figura 4 - Bento Rodrigues antes da tragédia
Fonte: Imagem cedida pelo morador Manoel Muniz
39
Figura 5 - Festa do Padroeiro de São Bento
Fonte: Imagem cedida pelo morador Manoel Muniz
Figura 6 - Distrito de Bento Rodrigues antes de ser devastado pela lama.
Fonte: DigitalGlobe e Globalgeo Geotecnologias
40
Figura 7 - Distrito de Bento Rodrigues antes de ser devastado pela lama.
Fonte: Imagens cedidas pela moradora Monica Gomes
41
Figura 8 - Distrito de Bento Rodrigues antes de ser devastado pela lama
Fonte: Imagens cedidas pela moradora Monica Gomes
42
Figura 9 - Bento Rodrigues dois anos após a tragédia
Foto: Lídia Ferreira - Imagens feitas na visita de campo em 21 de jan.2018.
43
Figura 10 - Bento Rodrigues dois anos após a tragédia
Foto: Lídia Ferreira - Imagens feitas na visita de campo em 21 de jan.2018.
44
Figura 11 - Bento Rodrigues dois anos após a tragédia
Foto: Lídia Ferreira - Imagens feitas na visita de campo em 21 de jan.2018.
45
2.2 A memória urbana
A memória de uma cidade se faz da memória de seus moradores? O que significa, de fato,
falar sobre a memória de uma cidade? Qual a importância de se resgatar a memória de Bento
Rodrigues? Tudo isso está estreitamente relacionado aos processos de construção de memórias
afetivas, e também da memória social.
É sob essa perspectiva que decidimos recorrer às reflexões de Ecléa Bosi em Memória e
Sociedade: Lembranças de Velhos, seu trabalho de livre docência. Nele, a autora, apresenta um
estudo singular e poético sobre memórias de velhos, feito a partir de entrevistas com oito idosos
com idade superior a 70 anos – e que tinham como espaço social em comum a cidade de São Paulo.
Recorrendo a autores como Bergson, Halbwachs, Bartlett e Stern, Bosi apresenta a história da
cidade por meio da memória social de sujeitos que participaram de sua construção.
No trabalho de Ecléa, não há preocupação com a autenticidade dos fatos contatos pelos
idosos, mas, sim, com a escolha das lembranças – aquilo que livro algum de história poderia contar.
Embora saliente que não pretendeu escrever sobre memória ou a velhice, Ecléa admite que se
manteve “na intersecção dessas realidades” ao colher “memórias de velhos” (BOSI, 1994, p. 39).
Inspirado nessa maneira de olhar, esse trabalho busca percorrer um caminho parecido: apresentar
Bento Rodrigues e sua história através da memória dos sujeitos que constituíram o subdistrito.
Entretanto, diferentemente de Bosi (1994), nosso olhar se direciona para um espaço que não apenas
sofreu modificações urbanas, mas que foi completamente devastado por rejeitos de mineração.
Como ponto de partida, é preciso relembrar o lugar. E relembrar o subdistrito é relembrar
como ele cresceu e construiu vínculos com seu cenário natural, ou seja, com sua arquitetura
singular. É nesse sentido que Pinheiro e Silva (2004), ao descreverem a simbologia das cidades,
argumentam que os textos produzidos pelas povoações não são os únicos elementos responsáveis
pela fixação dessa memória. Para eles, “a própria arquitetura urbana cumpre esse papel”
(PINHEIRO E SILVA, 2004, p.21).
Nessa perspectiva, preservar um lugar é também preservar, muitas vezes, aquilo que se
considerada sagrado. É como observa Ruskin (2008), teórico da preservação na Inglaterra do século
XIX, quando aponta o caráter de santidade que cada casa deveria ter:
Há positivamente em toda casa do homem de bem, uma grande santidade que não poderá
ser renovada em outra habitação que se levante sobre suas ruínas, creio que os homens de
bem a sentirão. Tendo vivido felizes e veneráveis, se entristeceriam ao fim de seus dias
diante da idéia de que sua morada terrestre, que foi testemunha de sua honra, de suas
46
alegrias e de seus sofrimentos, que a moradia cheia de recordações e cheia de objetos
amados expressando um zelo próprio, deva ser demolida enquanto esteja descendo ao seu
tumulo; se entristeceria diante de idéia de que nenhum respeito lhe foi reservado, nenhuma
afeição, que seus filhos não tiraram nenhum proveito. Ante a idéia de que há um
monumento em toda igreja e que não haverá para eles nenhum monumento de afeição nem
em seus corações nem em suas moradas; que tudo que amaram será depreciado, e que o teto
que os abrigaram e consolaram seriam convertidos em poeira (...). Se os homens viveram
verdadeiramente como homens suas casas seriam templos, templos que apenas ousaríamos
tocar e senti-los. (RUSKIN, 2008, p.56).
Para o autor, é notório que a sociedade não valoriza suas construções, suas memórias,
embora os lares sejam lugares onde o homem tem a maioria das suas experiências:
Quando os homens não amam seus lares, nem reverenciam a soleira de suas portas, é um
sinal que desonram a ambos, e de que nunca se deram conta da verdadeira universalidade
daquele culto cristão que deveria de fato superar a idolatria do pagão, mas não sua devoção.
Nosso Deus é um Deus do lar, tanto quanto do céu; Ele tem um altar na morada de cada
homem; (RUSKIN, 2008, p.58).
Para nós, compreender a importância do lar na construção das memórias afetivas é o
caminho para entender como essas memórias foram modificadas com a destruição dos lares em
Bento Rodrigues, e, principalmente, como essas memórias se reescrevem a partir das lembranças
desses lares. É simbólico caminhar entre os escombros de Bento Rodrigues e decifrar o subdistrito
entre passado e presente. Até o 5 de novembro de 2015, as memórias espaciais em Bento se
configuravam dentro de sua geografia e suas construções. Hoje, a memória em relação à geografia
de Bento possui um marco: a configuração que a lama construiu. Entretanto, como observam
Pinheiro e Silva (2004), mesmo que se perca a referência espacial, a memória pode ser resgatada em
lugares de inscrição nostálgica, como é o caso da escrita.
Mesmo quando a demolição (ou desconstrução) gerada pela ambiciosa fúria do “progresso”
determina o apagamento da memória urbana traçada na escrita das pedras e tijolos de suas
construções, é possível resgatar essa memória através do livro, lugar de inscrição nostálgica
do passado, frente ao que se vai transformando em ruínas. A cidade é teatro por excelência
dos literatos. (PINHEIRO E SILVA, 2004, p.22)
Nossa intenção, ao propor uma cartografia das recordações neste trabalho, é justamente ser
esse “lugar de inscrição nostálgica do passado” que os autores propõem como opção para o resgate
da memória.
47
Figura 12 - Escritos nos escombros de Bento Rodrigues
Foto: Lídia Ferreira - Imagens feitas na visita de campo em 21 de jan.2018.
2.3 Memórias coletiva e individual
Nos estudos sobre memória, Maurice Halbwachs (1990) é quem inaugura a categoria
“memória coletiva”. Na perspectiva do sociólogo francês, os contextos sociais que influenciam o
trabalho de memória devem ser levados em consideração para uma análise dos fenômenos de
recordação e localização da lembrança. O indivíduo que lembra está inserido naquilo que o autor
define como grupos de referência: um grupo do qual o sujeito faz parte e com quem estabeleceu
uma comunidade de pensamentos. Nesse sentido, Halbwachs (1990) defende que a memória é
construída em grupo, mesmo considerando o trabalho de um sujeito. A permanência em uma
comunidade e o apego afetivo dá consistência às lembranças. Assim, a memória é esse trabalho de
reconhecimento e reconstrução.
O austríaco Michael Pollack (1989), em Memória, Esquecimento, Silêncio, retoma os
estudos iniciados por Halbwachs para trabalhar os conceitos de memória coletiva e individual. O
autor trabalha não apenas o processo de formação das lembranças, mas também os conflitos
presentes nesse processo – todos eles decorrentes da coexistência das memórias hegemônicas e
“subalternas”.13
Essas memórias subalternas, quando reprimidas por muito tempo (como no caso do
13
As memórias hegemônicas são representadas pelas instituições de memórias, os museus e seus profissionais
(bibliotecários, arquivistas historiadores) e pelas políticas oficiais de patrimonialização do Estado. Já as memórias
subalternas são aquelas que não correspondem ou que não se adaptam/enquadram no que é representativo da memória
oficial.
48
Holocausto), podem apresentar aspectos traumáticos e sobrevivem marcadas pela oralidade, ou seja,
por canais informais de transmissão. O que desejamos destacar, a partir dessa concepção de Pollack,
é a forma como a história oral se apresenta: ela pode ser entendida como um método para a
construção do conhecimento e entendimento de um determinado passado, a partir de memórias
individuais, e como caminho para a reconstrução de uma memória coletiva. É sob esse aspecto que
Ecléa Bosi (1994) percebe a memória com elemento organizador, e não com elemento passivo. Por
isso é importante que sejam respeitados os caminhos escolhidos pelos recordadores durante a
evocação das lembranças – porque esse é o mapa afetivo de sua própria experiência e da
experiência de seu grupo (em determinado tempo e lugar, como é o caso do distrito de Bento
Rodrigues).
Também apoiado na discussão de Halbwachs, Nora e Pollak sobre a memória coletiva e sua
relação com o lugar, Abreu (1998) ressalta que, para se constituir a memória de uma cidade, não
devemos ter como base apenas as “formas materiais herdadas de outros tempos” (p.86), mas sim
tentar abarcar “aquilo que não deixou marcas nas paisagens, mas que pode ainda ser recuperado nas
instituições de memória.” (idem). O autor explica ainda que várias memórias podem coexistir sobre
uma mesma cidade, e que nem todas são registradas. Exatamente por isso, “é impossível recuperar a
memória de uma cidade, se isto quer dizer a totalidade das memórias coletivas que tiveram aquela
cidade como referencial” (ABREU, 1998, p.87). A memória de uma cidade é composta, na verdade,
de fragmentos, como um enorme quebra-cabeça de memórias coletivas, individuais e registros
históricos.
Especificamente em Bento Rodrigues, encontramos poucos registros do povoado. A história
e as características de Bento foram incorporadas à história do minério em Minas Gerais, o garimpo
do ouro, e a posição do lugarejo como caminho da Estrada Real. Os registros fotográficos são
poucos – a maioria é de arquivo pessoal de moradores e registraram as manifestações da cultura
local. Um dos maiores desafios desta pesquisa relaciona-se ao levantamento das fotos para a
constituição dos mapas, pois, como observa Jô Gondar, falar memórias é falar daquilo que é
“simultaneamente, acúmulo e perda, arquivo e restos, lembrança e esquecimento.” (GONDAR,
2016, p.19).
Outro importante aspecto trabalhado por Gondar é o conceito de memória social em seu
caráter ético e político. A recordação, nesse modo de ver, não é apenas uma interpretação do que já
foi experimentado. É, antes, “a escolha sobre o que vale ou não ser recordado” (idem, p.24) e, nesse
sentido, opera como uma garantia daquilo que se busca para determinada trajetória de vida. Nas
49
palavras de Gondar, “funciona como um penhor e, como todo penhor, diz respeito ao futuro”
(idem).
Por isso o recorte definido para esse trabalho é a memória de Bento Rodrigues, embora não
expressa em sua totalidade – até porque essa pretensão não existe. É nessas circunstâncias que
destacamos os afetos sobre uma determinada perspectiva: a nostalgia. Estamos conscientes do alerta
que Gondar nos faz: “seja qual for a escolha teórica em que nos situemos, estaremos
comprometidos ética e politicamente” (GONDAR, 2016, p.25). Há, em nossa opção por representar
Bento Rodrigues, uma preocupação com o registro e com a valorização da memória local após o
rompimento da barragem. Motivo que nos coloca inúmeros desafios, como o entendimento de sua
memória perpassada pelo trauma.
Um exemplo que se aproxima da nossa escolha é o livro Hiroshima, de Jonh Hersey. A
cidade de Hiroshima, no sul do Japão, é mundialmente conhecida por ter sofrido o primeiro ataque
atômico da história. Era uma manhã de segunda-feira do dia 6 de agosto de 1945, quando um avião
dos Estados Unidos da América, o B-29, denominado “Enola Gay”, sobrevoava a cidade de
Hiroshima, no Japão. Pilotado pelo coronel Paul Warfield Tibbets Jr, o bombardeiro lançou a
primeira bomba atômica da história da humanidade às 8h15, de uma altitude de 9 mil metros.
Apelidada ironicamente de “Little Boy” (garotinho), a bomba atômica de 4,5 toneladas foi detonada
a 580 metros do solo. A explosão não gerou praticamente nenhum som, apenas uma intensa
luminosidade e uma imensa nuvem de fumaça que tomou todo o céu da cidade japonesa. Em
instantes Hiroshima tornou-se escombros e chamas, e cerca de 80 mil pessoas morreram
instantaneamente.
Os relatos históricos contam sobre corpos carbonizados entres os prédios em ruínas e
milhares de pessoas pedindo por socorro. Com o corpo em chamas, muitos corriam para o rio Ota
(cujos seis canais dividem a cidade em ilhas) para tentar apagar o fogo de si mesmos. A água dos
rios foi radiotivamente contaminada, peixes morreram, vidros e metais derreteram. Até uma
distância de dois quilômetros do epicentro da explosão, praticamente tudo foi reduzido a pó e
construções foram seriamente danificadas até uma distância de quatro quilômetros. Na manhã
seguinte, uma chuva preta com grande quantidade de poeira radioativa contaminou áreas mais
distantes do epicentro da explosão. Em números gerais a “Little Boy” matou cerca de 140 mil
pessoas, feriu outras 60 mil, em uma população de 400 mil pessoas na época do ataque. Três dias
depois, em 9 de agosto de 1945, o cenário se repetiu em Nagasaki, onde o bombardeiro B-29
50
Bokscar lançou a “Fat Man” (Homem Gordo) às 11h20 e devastou a cidade, deixando 74 mil
mortos e 25 mil feridos.
A quantidade inferior de vítimas em relação a Hiroshima é justificada pelas condições
climáticas e pela geografia (o local da explosão era cercado por montanhas, o que reduziu o raio de
devastação). A bomba de plutônio foi lançada a cerca de três quilômetros do centro de Nagasaki,
onde se localizava o maior número de moradores. Os Estados Unidos eram comandados pelo
presidente Harry S. Truman (1945-1953), que autorizou os lançamentos das bombas atômicas, as
únicas na história até os dias de hoje. Os dois bombardeios forçaram a rendição do Japão seis dias
depois, em 15 de agosto de 1945, colocando fim à Segunda Guerra Mundial.
A reportagem publicada pelo jornalista Jonh Hersey, em 31 de agosto de 1946, na revista
The New York, é uma das publicações mais humanizadas sobre o evento. Hersey permaneceu 17
dias no Japão coletando os relatos de seis sobreviventes para compor a matéria, que teve como
inspiração o livro A ponte de São Luís Reis, de Thornton Wilder. A publicação original de
Hiroshima apresenta um relato minucioso de como, em minutos, uma cidade e quase 250 mil
pessoas foram devastadas. O autor não se ocupou somente com questões técnicas e, embora não
tenha revelado qualquer informação nova, apresentou os reaisefeitos da bomba através da história
de seis indivíduos, um ano depois da explosão e quarenta anos mais tarde.
Hiroshima trabalha elementos como a voz autoral e o uso de símbolos e metáforas, aliado à
precisão de dados e informações. Na construção da narrativa, Hersey evidencia a perspectiva
humana de forma perene, com profundidade e consistência nos relatos, entendendo que os
personagens apresentados são muito além do que simples fontes. Hiroshima traz o passado para o
presente através de um trabalho de memória. As “memórias subterrâneas” de que fala Pollack estão
em Hersey quando ele dá voz a essas recordações que não tiveram lugar em grande parte dos meios
tradicionais de comunicação. A matéria, ao ser publicada na revista The New Yorker, em 1946,
rompeu com o discurso oficial dos Estados Unidos sobre o ataque. Nesse caso, o registro de
memórias individuais potencializa o entendimento de uma memória coletiva. O livro possibilita
inúmeras leituras e releituras sobre o acontecimento histórico, que tem expressão e complexidade
suficientes para embasar um esclarecimento sobre o passado, onde cada memória individual é um
ângulo da memória coletiva. Hiroshima representa, assim, um lugar de diálogo, onde o
esclarecimento exige a desnaturalização dos fatos e promove um campo de reflexão ao se pensar o
acontecimento.
51
Lembranças, memórias, histórias individuais e coletivas caminham juntas na compreensão
do tempo. Ao nos dedicarmos ao estudo do passado, precisamos compreender a sua relação
tensionada com o presente e futuro. Entendemos a memória nesse sentido amplo, que abraça
diferentes esferas do nosso cotidiano, desde acontecimentos mais simples aos mais complexos. É
nessa intercessão – entre a memória de acontecimentos corriqueiros de Bento Rodrigues e a tragédia
– que nosso trabalho se encontra. Em diálogo com o entendimento sobre os afetos, salientamos a
importância de compreender a subjetividade e singularidades da memória que se pretende analisar:
narrativas e depoimentos sobre a vida no lugarejo, intensificados pela saudade do local e a
impossibilidade de retorno. Como nos lembra Pinheiro e Silva (2004), “cada cidade tem sua
história, sua individualidade, sua fisionomia, ainda que muito elementos se repitam entre elas”
(p.24).
Nesse sentido, o próximo capítulo trará o histórico do Jornal A Sirene e o contexto do seu
surgimento: a tragédia do dia 5 de novembro de 2015, com o rompimento da Barragem de Fundão.
Apresentaremos o corpus de análise da pesquisa e os critérios de seleção das matérias.
52
3 A SIRENE: A SUBMERSÃO – UM CONTO INACABADO
A Sirene é um jornal feito pelos atingidos para os atingidos. Mais uma
ferramenta de apoio para que a comunicação e a preservação as suas
memórias se tornem seus patrimônios. Um convite a todos para não
esquecer.
Coletivo #UmMinutodeSirene – Editorial da Edição O
Fevereiro de 2016
A lembrança transmutada em palavra procura nexos, reconstrói sentidos, vai ao íntimo da
memória e, pela sua natureza, compartilha. Dessa maneira, foi escrevendo sobre as memórias das
localidades afetadas e sobre a tragédia14
que os atingidos pela Barragem de Fundão (Samarco)
criaram o Jornal A Sirene – Para não Esquecer. O periódico se tornou, entre as múltiplas
possibilidades, um lugar de fala, memória, resistência e partilha de informações. Os escritos
presentes no jornal transformam o íntimo em comum, joga com os sentimentos e afetos. Aquilo que
se guardava no registro individual do cotidiano, nas recordações de um dia festivo, tornam-se um
jogo de passado e presente decifráveis pela linguagem comum: a nostalgia.
O jornal A Sirene é elemento fundamental na construção da realidade dos atingidos. Por
isso, examinar o papel do jornal, concebido exatamenteem função da tragédia de 5 de novembro de
2015, exige a contextualização de certos acontecimentos, de forma a assegurar melhor compreensão
dos sentidos postos em circulação no periódico. Afinal, entender todo o processo de idealização e
construção do jornal nos permitirá identificar e cartografar a nostalgia como elemento que atravessa
as narrativas trabalhadas.
14
Optamos nesse trabalho pelo uso do temo tragédia para referenciar ao acontecimento do dia 5 de novembro de 2015,
por respeitar a posição dos atingidos frente ao desastre que é de natureza criminal e civil.
53
3.1 - 5 de novembro de 2015
A data marca a maior tragédia ambiental do Brasil e o mais grave desastre da história da
mineração mundial. De acordo com o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis - IBAMA, uma força destruidora de 40 milhões de metros cúbicos de lama
invadiu o vilarejo de Bento Rodrigues, submergindo a comunidade. A gigantesca barragem de
rejeitos de minério de ferro era propriedade da Samarco e suas controladoras – a brasileira Vale
S.A. e a anglo-australiana BHP Billiton. O município de Barra Longa e os subdistritos Paracatu de
Baixo, Paracatu de Cima, Campinas, Borba, Pedras e Bicas, pertencentes a Camargos, também
foram atingidos pelo mar de rejeitos. Não foi emitido qualquer sinal sonoro para a evacuação das
pessoas que estavam na região. Com base em informações do IBAMA, 82% das edificações foram
atingidas pela lama em Bento Rodrigues, impossibilitando a reconstrução no local.
Figura 13 - Mapa ilustrativo das Ruas Atingidas em Bento Rodrigues
Fonte: Prefeitura de Mariana – Relatório Governo do Estado de Minas
54
Figura 14 - Legenda
Fonte: Prefeitura de Mariana – Relatório Governo do Estado de Minas
A tragédia se estendeu por 650 quilômetros, de Minas Gerais até o litoral do Espírito Santo.
A lama seguiu o curso dos rios Gualaxo do Norte e Rio do Carmo, chegando até o Rio Doce. De lá
encontrou o mar, afetando dois estados e 40 munícipios oficialmente reconhecidos, de formas direta
e indireta, além das comunidades ribeirinhas. Foram registradas 19 mortes e um aborto entre os
trabalhadores, os terceirizados da mineradora e os moradores das comunidades. Além dos óbitos,
aproximadamente cinco milhões de pessoas foram prejudicadas, segundo informações da Defesa
Civil de Minas Gerais.
De acordo com o Relatório do Governo do Estado de Minas Gerais, por meio da Força
Tarefa, disponível no site da Agência Minas, foram 256 feridos, 280 enfermos e mais de 1.200
pessoas desabrigadas. Cerca de 120 afluentes foram afetados, pelo menos 20 deles ainda recebem
lama e aproximadamente 1.469 ha da vegetação foram devastados. Segundo o relatório do governo,
a lama foi a responsável pela morte pelo menos 11 toneladas de peixes e pela extinção de algumas
espécies, considerando todos os impactos na fauna, na flora, nas áreas marítimas e de conservação.
A isso, agregam-se os danos causados ao patrimônio, o comprometimento das atividades pesqueiras
e os prejuízos nos setores da agropecuária, do turismo e do lazer nessas regiões.
55
Figura 15 - O caminho dos rejeitos
Fonte: Samarco 15
De acordo com a denúncia do Ministério Federal – um arquivo de 272 páginas –, a barragem
de Fundão já apresentava problemas estruturais desde sua inauguração, em 2008. Em 2009, drenos
mal construídos ocasionaram uma grave erosão, deixando a barragem inativa até março de 2010.
Em entrevista ao jornal O Tempo, em sua edição online de 2 de novembro do ano de 2016, o
procurador da república José Adércio Leite, um dos autores da denúncia, aponta que a Samarco deu
prioridade aos lucros ao garantir a manutenção das operações, de forma a manter o repasse às suas
controladoras: "Houve um sequestro da segurança em busca do lucro. Foi uma decisão deliberada
de se priorizar os lucros em detrimento da segurança, com 'esparadrapos estruturais'"16
.
15
Disponível em: http://www.samarco.com/rompimento-de-fundao/ 16
A entrevista faz parte da reportagem intitulada Um problema desde sempre, de autoria de Aline Diniz, Bárbara
Ferreira, Bernardo Miranda e Luciene Câmara, veiculada na edição online do jornal O Tempo em 2 de novembro de
2016, um ano após a tragédia. O material está disponível em http://www.otempo.com.br/cidades/um-problema-desde-
sempre-1.1394031
56
Figura 16 - 5 de novembro de 2015
Fonte: Site O Globo (G1)
A moradora Tereza Custódio Quintão17
relembra o dia 5 de novembro e o barulho
assustador que a onda de rejeitos produziu. Ela estava no bar de sua irmã, Sandra, e, no momento
em que foi avisada, imaginou que se tratasse apenas de uma nuvem de pó – a mesma que, de
tempos em tempos, sempre cobria o subdistrito por causa das atividades da Samarco. Quando se
deu conta da iminência e da dimensão da destruição que se aproximava, tentou avisar a todos que
podia e correr, em um intervalo de aproximadamente dez minutos, para a parte mais alta da cidade.
Os olhos ficam marejados sempre que se fala do distrito e da tarde daquela quinta-feira. “Eu nunca
vou esquecer aquele dia. Eu corria e olhava para trás e via a lama destruindo Bento”.
A construção dos Diques S3 e S4 alteraram o cenário da destruição. As ruas estão limpas,
mas as marcas da lama permanecem. Casas e uma parte da comunidade foram submersas pela
construção dos diques. A vegetação cresceu e cobriu partes dos escombros que se misturam a lama
e ao verde. Entretanto, ao caminhar pelas antigas ruas do subdistrito, é notória a presença dos
rejeitos, na fala dos moradores, nos escombros das casas, no pé de manga que ficava próximo a
Igreja de São Bento e ao Bar da Sandra.
17
Entrevista concedida presencialmente a Lídia Ferreira, em 21/01/2018.
57
Figura 17 -Bar da Sandra antes e dois anos após o rompimento
Fonte: Imagem cedida pelo morador Manoel Muniz/ Foto: Lídia Ferreira
A Samarco, durante o processo de negociação para tentar solucionar as demandas cíveis
relacionadas ao rompimento da Barragem de Fundão, assinou o chamado Termo de Transação de
Ajustamento de Conduta(TTAC)18
, dando origem à Fundação Renova. A instituição, criada em 30
de junho de 2016, com início das atividades em 2 de agosto do mesmo ano, responde hoje pelas
18
O Termo de Transação de Ajustamento de Conduta (TTAC) é um acordo, assinado em 2 de marco de 2016, entre
Samarco, com o apoio de suas acionistas, Vale e BHP Billiton, e o Governo Federal, os Estados de Minas Gerais e do
Espírito Santo, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Instituto Chico
Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a Agência Nacional de Águas (ANA), o Departamento Nacional
de Produção Mineral (DNPM), a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Instituto Estadual de Florestas (IEF), o
Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM), a Fundação Estadual de Meio Ambiente (FEAM), o Instituto Estadual
de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (IEMA), o Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo
(IDAF) e a Agência Estadual de Recursos Hídricos (AGERH).
58
ações de reparação das áreas e compensação dos danos que afetaram as comunidades atingidas pelo
rompimento.
Depois de dois anos após da tragédia, as famílias permaneciam reassentadas em imóveis na
cidade de Mariana, aguardando a reconstrução das estruturas que darão forma à nova comunidade.
Esse grupo de pessoas enfrentou e enfrenta dificuldades para se readaptar a novas rotinas do
cotidiano. Os atingidos ainda lutam pelas indenizações e por justiça. Na edição de 5 de novembro
de 2017, o jornal A Sirene, em seu editorial, acusa a morosidade dos processos que envolvem o bem
estar das pessoas afetadas: “Dois anos de reuniões, dois anos de audiências, de atrasos em projetos
de vida. Dois anos e a lama ainda escoa”.19
Em 13 de novembro de 2017, a Justiça Federal de Ponte Nova, em Minas Gerais, deu
prosseguimento ao processo suspenso desde julho contra a Samarco – e que envolve 21 diretores e
ex-diretores da empresa e suas controladoras, a Vale e BHP Billiton. Os réus respondem pelos
crimes de homicídio com dolo eventual (quando se assume o risco de matar), inundação,
desabamento, lesões corporais graves e crimes ambientais em decorrência da tragédia.
Há que se considerar, ainda, as perdas identitárias. Pelo menos 600 histórias de vida foram
soterradas pela lama. Troféus, fotografias, brinquedos, documentos, cartas e todo emaranhado de
particularidades biográficas subsistem, hoje, apenas nas lembranças que constituem as memórias. É
desse aspecto que, acreditamos, decorre a relevância do registro da memória em narrativa impressa
– e é essa a narrativa que nos permite identificar e mapear a nostalgia nas histórias que preenchem
as páginas do jornal A Sirene. A seguir, apresento o surgimento do jornal e sua construção durante
os dois anos de publicações.
3.2- O surgimento do Jornal A Sirene – Para não Esquecer
A tragédia de 5 de novembro, em Bento Rodrigues, determina o surgimento do nosso objeto
de análise, o jornal A Sirene. Desde as primeiras informações sobre o rompimento da barragem de
rejeitos, na tarde daquela quinta-feira, em 2015, as mais diversas instâncias midiáticas nacionais,
entre jornais impressos, sites de notícias, rádio e televisão passaram a acompanhar, quase em tempo
real, os desdobramentos do acontecimento. A imprensa internacional também noticiou amplamente
19
Editorial da edição número 20, datada de 5 de novembro de 2017, página 3. Disponível em:
https://issuu.com/jornalasirene/docs/a_sirene_-_ed.20
59
a tragédia em Mariana – caso, por exemplo, do New York Times, jornal norte-americano, do site
Telegraph e do jornal The Guardian, da Inglaterra, entre outros.
Discursos midiáticos misturam-se aos discursos da mineradora, do governo e de outras
instituições diretamente envolvidas. A fala dos atingidos era reescrita por meio de narrativas
jornalísticas construídas por grandes veículos de imprensa. Diferentemente da mineradora Samarco
e do poder público – que contavam com suas respectivas assessorias de imprensa, habilitadas em
construir discursos políticos e empresariais demandados em processos de gerenciamento de crise –,
os atingidos não possuíam um veículo oficial e, portanto, não possuíam uma estrutura de
comunicação que falasse por eles e para eles.
Nessa perspectiva, com o intuito de alterar a lógica do discurso e dar visibilidade aos
atingidos, foi criado, em fevereiro de 2016, o jornal A Sirene – Para Não Esquecer, cujo nome faz
referência à sirene que não tocou no dia 5 de novembro. O projeto, idealizado pelo jornalista
Gustavo Nolasco, da empresa Nitro Imagens, teve o apoio do coletivo #UmMinutoDeSirene, da
Arquidiocese de Mariana e do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA/UFOP). Frente à
repercussão positiva da edição número 0 e das demais que se seguiram,A Sirene tornou-se um jornal
de circulação mensal, com 3.000 exemplares distribuídos gratuitamente todo dia 5 de cada mês,
junto às atividades do coletivo #UmMinutoDeSirene. Em fevereiro de 2018, completou dois anos
de circulação.
Atualmente, o jornal20
é produzido com o apoio de grupos técnicos da Universidade Federal
de Ouro Preto (UFOP), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e de assessorias
direcionadas aos atingidos, movimentos sociais e coletivos, somando um total de 70 pessoas, entre
organizadores e colaboradores. Seu conselho editorial é composto atualmente por Angélica Peixoto,
Cristiano José Sales, Genival Pascoal, Lucimar Muniz, Manoel Marcos Muniz, Milton Sena,
Mônica dos Santos, Padre Geraldo Martins, Rafael Drummond, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio),
Simone Maria da Silva. Editor chefe: Milton Sena. Tem como jornalista responsável a profissional
Silmara Filgueiras.
20
A fonte de recursos do jornal é determinada pelo Termo de Ajustamento de Conduta entre Arquidiocese de Mariana
(TAC) e Ministério Público de Minas Gerais (2ª Promotoria de Justiça de Mariana). É impresso pela Sempre Editora em
formato standard e, atualmente, todas as edições estão disponíveis online pela plataforma ISSU. Disponível em:
https://issuu.com/jornalasirene. De acordo com o site do Conselho Nacional do Ministério Público: “O termo de
ajustamento de conduta é um acordo que o Ministério Público celebra com o violador de determinado direito coletivo.
Este instrumento tem a finalidade de impedir a continuidade da situação de ilegalidade, reparar o dano ao direito
coletivo e evitar a ação judicial.” Disponível em: http://www.cnmp.gov.br/direitoscoletivos/index.php/4-o-que-e-o-
termo-de-ajustamento-de-conduta Acesso em 20 fev. de 2018.
60
O periódico possui características que, no campo dos estudos da Comunicação, remetem ao
jornalismo comunitário. Na concepção de José Marques de Melo (2006), uma mídia pode ser
considerada comunitária “quando se estrutura e funciona como meio de comunicação autêntico de
uma comunidade. Isto significa dizer: produzido pela e para a comunidade”. (MARQUES DE
MELO, 2006, p.126). O jornalismo comunitário diz, assim, do cotidiano, das familiaridades. De
acordo com Serqueira e Bicudo (2007, p.9), algumas particularidades desse tipo de jornalismo é que
garantem certa personalidade e autenticidade à prática. São elas “(a) a valorização da realidade
local; b) a participação da comunidade durante todo o processo de produção; c) consagração das
ideias da mobilização e da transformação; d) resgate de um viés pedagógico e educativo; e)
articulação com a produção independente e de resistência” ( SERQUEIRA; BICUDO, 2007, p.9)
O objeto de análise em questão diz sobre passado e presente, ambos marcados pelo
rompimento da Barragem. Diz sobre uma rotina que era própria e marcada por uma cronologia
orgânica, mais próxima da relação com a terra, com o relógio marcado por ciclos mais intrínsecos.
Mas diz também sobre esse rompimento (literal) da Barragem e do tempo, marcando um
deslocamento de percepção da esfera espacial – o distanciamento do lugar/da casa – para se falar de
uma esfera temporal, do presente para o passado.
Apesar de não ser produzido apenas por jornalistas, A Sireneé o meio de comunicação
oficial da comunidade e apresenta dimensões comunitárias, com uma regulação específica e
acompanhamento de um jornalista profissional.
3.3- ANO I
De acordo com o jornalista Gustavo Nolasco, idealizador do jornal, a ideia era “criar um
grande veículo de comunicação, que nascesse forte, bonito e impactante para que eles (os atingidos)
se sentissem orgulhosos de aquilo representar a voz deles.” 21
A primeira edição do jornal, que
circulou 90 dias depois da tragédia, traz no editorial essa vontade e a expectativa de promover a
autonomia e o empoderamento da comunidade através da comunicação – e de se colocar como mais
uma ferramenta de apoio para a preservação da memória. As matérias seguem um tom nostálgico,
(re)construindo Bento Rodrigues e as demais comunidades através de memórias que vão além da
materialidade. Rememora-se o dia 5 de novembro, a dor, as particularidades, as emoções e, ao
21
Entrevista concedida, por e-mail, pelo jornalista Gustavo Nolasco por e-mail à pesquisadora, em 24 de fevereiro de
2017.
61
mesmo tempo, fala-se sobre o futuro, os anseios, as incertezas e, principalmente, apresenta-se como
uma forma de resistência frente as demandas da Samarco e do poder público.
Gustavo lembra, entretanto, que, apesar de a ideia ter sido bem recebida pela comunidade, a
participação direta dos atingidos na produção do jornal era pequena. Desde as primeiras edições,
participavam do jornal aproximadamente 30 ex-moradores das regiões afetadas. O jornal foi, então,
dividido em equipes compostas pelos atingidos, por jornalistas, fotógrafos e voluntários.
A produção da primeira edição, segundo Marília Mesquita22
– uma das voluntárias do jornal
logo no início das produções – foi atípica. O exemplar foi inteiramente construído em apenas um
final de semana, quando também foi definido o nome do jornal. A reunião de pauta foi feita no
sábado pela manhã e, na segunda-feira, o jornal já rodava na gráfica. Marília ressalta que houve
uma troca de conhecimentos e um comprometimento intenso e mútuo com o projeto por parte de
todos os envolvidos.
Durante o primeiro ano de A Sirene, foi desenvolvida, através do coletivo MICA23
, uma
série de oficinas de texto e fotografia com os atingidos. A ideia era repassar a todos os envolvidos
algumas noções acerca das técnicas jornalísticas implementadas no processo de produção dos
jornais impressos. Gradualmente, esse processo ganhou maturidade e, já na edição nº 6 do jornal,
possibilitou a apresentação, ao público leitor, do primeiro Conselho Editorial formado por
representantes das entidades envolvidas. Os textos trabalhados seguem uma linha de rememoração
e, ao mesmo tempo, de atualização de dados, cenários e situações frente às novas circunstâncias que
envolvem a tragédia. Alguns espaços de caráter informativo tornaram-se fixos, tais como as seções
“Agenda”, “A Gente Explica” e “Direito de Entender”. Por outro lado, o jornal apresenta, em suas
páginas, detalhes do cotidiano perdido no convívio em Bento Rodrigues. Os atingidos materializam,
nas narrativas, um saudosismo em relação aos tradicionais festejos locais. Para além do sentimento
de perda do espaço, há também um anseio por manter as tradições locais vivas.
O Ano I, para o qual, mais adiante, vamos direcionar nosso olhar de maneira mais
aprofundada, tem como eixo esse trabalho de memória, de registro e de um retorno mais explícito
ao passado. Por isso revela-se mais apropriado ao estudo aqui proposto.
22
Entrevista concedida por Marília Mesquita àpesquisadora na cidade de em Ouro Preto, em 13 fevereiro de 2017. 23
“O Coletivo Mídia, Identidade, Cultura e Arte - MICA foi criado em 1º de junho do ano de 2015 por ex-alunos do
curso de jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto, que integraram o projeto de pesquisa e extensão Nos
Bastidores da Notícia: midia e democracia, cujo tema central é o direito à comunicação, desde seu início em 2014”.
Tem como missão” contribuir para a emancipação humana por meio de ações ligadas à arte, à cultura e à comunicação
social; o fomento a valores identitários e culturais, incluindo o patrimônio histórico, artístico, material e imaterial; a
consolidação da cidadania, dos direitos humanos e da democracia.” Disponível em:
https://www.coletivomica.org/sobre Acesso em: 20 fev. de 2018.
62
Figura 18 - Primeira reunião de pauta Jornal A Sirene – ICSA/UFOP.
Foto: Lucas Godoy
Figura 19 - Protesto #UmMinutoDeSirene, distribuição do primeiro exemplar do jornal A Sirene
. Foto: Lucas Godoy
3.4 - ANO II
No segundo ano de publicação, o jornal passou por um processo de reestruturação e ganhou
contornos mais políticos. A Sirenepassa a integrar, assim, uma assessoria de comunicação –
resultado de um projeto ampliado – que também inclui, agora, uma redação consolidada na cidade
de Mariana, na Rua Wenceslau Braz, com uma equipe fixa de seis estudantes de jornalismo da
UFOP e cinco atingidos (dois moradores de Bento Rodrigues, um de Ponte do Gama e dois de
Barra Longa).
A partir do processo de amadurecimento do jornal, observamos, nas páginas das edições
mais recentes, uma preocupação especial em dotar os atingidos também de informações sobre as
63
ações atuais e os processos de reparação da Samarco, promovidos pela Fundação Renova. Além
disso, evidencia e compartilha a posição da comunidade atingida em relação a essas decisões da
Samarco, por meio da Fundação – como, por exemplo, a resolução que permitiu a construção dos
“Diques S3 e S4” 24
, as promessas de reassentamento e a escolha do terreno para a construção do
“Novo Bento”.
No editorial do nº 22 – de janeiro de 2018 – destaca-se, entre outros temas, a insatisfação
dos atingidos com as ações da Samarco, com o próprio trabalho da Fundação Renova e com a
insegurança que permeia o cotidiano. A preocupação com o futuro incerto é misturado as memórias
que permanecem nas narrativas do jornal – e essa insistência em trabalhar a memória e as
recordações é também uma forma de ocupar os espaços “perdidos”. Significa resistir. O jornal
evoca essas memórias e o sentimento nostálgico como um processo de conscientização que deve ser
entendido como um objetivo a ser alcançado.
É sob essa perspectiva que a expressão “Para não Esquecer”, que acompanha o nome do
jornal, consolida-se como forma de resistência – e essa resistência emerge como um pedido de não
esquecimento. Notamos a influência do contexto (o rompimento da barragem) na produção de
sentidos do jornal, assim como o uso da memória não só como acionamento das informações, mas
como movimento de permanência. As recordações presente nas páginas do jornal A Sirene realizam
um duplo movimento nesse jogo de linguagem. Por um lado permanece no luto e na melancolia, por
outro estabelece um lugar de fala e de rememorações – logo, de resistência. Importante destacar,
nesse ponto, que o jornal mantém o rompimento da Barragem de Fundão em pauta – o que a mídia
tradicional faz somente em datas de aniversário da tragédia.
O que percebemos é que o jornal é um recurso utilizado para que o “lugar” subsista, e para
que suas memórias e tradições não sejam também apagadas pela lama. Seja em nome bens que
foram perdidos, das recordações e heranças de família ou do desejo de reforçar a identidade local, a
representações de Bento Rodrigues se fazem presentes a partir dos relatos de quem resiste.
24
De acordo com a Samarco, o Dique S4, que está sendo construído em Bento Rodrigues, integra o sistema emergencial
de retenção de sedimentos no Complexo Minerário de Germano, em Mariana (MG). A estrutura é considerada uma obra
emergencial em função do período chuvoso.
64
3.5 CAPAS
Uma das singularidades do jornal A Sirene está no conjunto de capas trabalhadas. Em geral
são fotografias focadas em detalhes para representam fragmentos de cada edição. As imagens
cuidadosamente produzidas, assim como a linguagem acessível, possibilitam uma abordagem que
resulta de um olhar especialmente humanizado para a tragédia. Entre uma edição e outra, a
fotografia registra percepções variadas e, nesse sentido, capta um olhar bastante particular para tudo
aquilo que a edição pretende destacar.
Sob esse aspecto, merecem destaque as capas das edições nº 8 (que registra a passagem de
um ano após tragédia) e a nº 20 (que lembra a passagem de dois anos do acontecimento). Na
primeira, a capa não apresenta nenhum conteúdo, nenhuma palavra: traz apenas o nome do
periódico em branco, em cima de uma página inteira na cor da lama. No editorial, os dizeres: “O
que escolhemos dizer nesta edição – histórias de luto e de luta – nos ajuda a reconstruir memórias e
esclarecer fatos que ainda precisam de atenção”. A memória é, portanto, o fio condutor dos textos
trabalhados. Já na edição de novembro de 2017, a capa é inteiramente branca. Vazia. Na página,
apenas o nome do jornal, em um marrom claro. O editorial explica: “No desejo de dizer tanta coisa,
de exprimir tanto sofrimento, optamos pelo silêncio. Chegamos, nesse mês, sem capa, sem
manchete, sem cor. Sobre esse branco-amarelado do papel-jornal, há de vir um futuro sobre o qual
pouco sabemos, apesar de tanto deseja-lo”. Aqui, a insegurança e as incertezas norteiam as
narrativas seguintes.
65
Figura 20 - Capas jornal A Sirene
Fonte: Jornal A Sirene - ISSU
66
3.6 - Corpus da Pesquisa:
Diante das muitas e possíveis articulações decorrentes da tragédia que deu origem ao jornal
aqui examinado, propomos, neste trabalho, compreender como a nostalgia se constrói e cria certas
representações observadas em A Sirene – Para não Esquecer. Selecionamos 22 escritos dispostos
em 12 edições que foram publicadas entre fevereiro de 2016 e fevereiro de 2017. Como critério de
seleção, elegemos a relação com Bento Rodrigues. A escolha do distrito – entre outras regiões
afetadas – deu-se por ter sido ele o mais atingido pela lama, e também em função da
impossibilidade de ser reabitado, mantendo-se apenas nas memórias de quem o conheceu.
A delimitação do corpus de análise deu-se a partir da observação das narrativas sempre
atravessadas por afetos diversos. Definimos o lugar (Bento Rodrigues) como ponto de partida para a
compreensão desses afetos. Examinamos, em especial, a frequência da descrição dos detalhes
perdidos, considerando sempre a subjetividade dessas exposições. Os depoimentos presentes em
grande parte das publicações, principalmente no Ano I, são moldados pela saudade. Embora a
natureza das falas seja muito marcada pelo trauma, notamos que o sentimento não é apenas de dor
ou tristeza, mas também de certas alegrais decorrentes de lembranças de um tempo bom naquela
comunidade. Essa pluralidade afetiva é a inquietação que move essa pesquisa.
Percebemos, no processo de análise, como certas falas se entrecruzam, como o lugar é
constante no lembrar, como a cidade é parte constituinte da identidade, como as memórias são
construídas e reafirmadas no cotidiano. Damo-nos conta, ao folhear o jornal, de que a verdadeira
origem das emoções está no compartilhamento com o outro. E esse outro pode ter diferentes
formas: pode ser um lar, um riso, a imagem de um santo ou a foto da avó na parede de casa.
Considerando o recorte escolhido para pesquisa, optamos por um método que nos permitisse
olhar para essa pluralidade de afetos, tornando-os visíveis. A cartografia nos permitiu localizar
esses afetos tão peculiares e múltiplos, e analisá-los como um processo – por vezes um processo
dolorido, mas que guarda a importância do registro e da resistência.
67
Tabela 3 - Demonstrativo do corpus de análise
EDIÇÃO MÊS ANO TÍTULO PÁGINA
0 Mar 2016 ‘O que queremos do velho no Novo Bento?’ 16
1 Abr 2016 “Belezas de Bento”
“Sabores da Memória”
3
8 e 9
2 Maio 2016 “Papo de Cumadi” 16
3 Jun 2016 “A Lavoura perto de Bento” 8 e 9
4 Jul 2016
“Nossa história debaixo do dique”
“Acabou-se o que era doce”
“Seu Filomeno: a festa dentro de um homem”
3
8 e 9
12 e 13
5 Ago 2016 “Acolhida, esperança e resistência” 13
6 Set 2016 “Diversidade que nos convida a acolher” 12
7 Out 2016 “Nem na minha casa eu mando mais” 16
8 Nov 2016
“Afetados pela lama”
“A última noite”
“1 ano atingido”
“Por que tombou?”
10
14
16 a 19
20
9 Dez 2016 “O dia em que dormimos no Bento de novo” 6
10 Jan 2017
“Muros atingidos de Bento”
“Memória e espaço”
“Família Silva de Bento Rodrigues”
“O último casamento de Bento”
6
7
8 e9
10
11 Fev 2017 “As ruas que sobraram”
“Primeira Missa”
19
30
68
4. UMA CARTOGRAFIA DAS RECORDAÇÕES
Cartografar significa operar a ciência, a técnica e a arte a partir do olhar – um olhar que
permitirá a elaboração de mapas, cartas e outras formas de representar objetos, ambientes e
fenômenos, entre tantos outros elementos. Os lugares, por exemplo – ou os lugares e os escritos
sobre esses lugares25
. O geógrafo Marcello Martinelli afirma que “à cartografia deveria interessar
mais os processos do que as formas, padrões, fatos passíveis de observação imediata”
(MARTINELLI, 2005, p.55). Nessa perspectiva, devemos valorizar e identificar os processos,
explorar os movimentos e, nas palavras do autor, “tentar resolver cada vez melhor a representação
dessas dinâmicas” (idem).Para Martinelli, o tempo e o espaço são fatores fundamentais a serem
considerados na elaboração de uma cartografia e, por isso mesmo,não devemos nos deter a visões
estáticas – até porque seria “cômodo abordar temas que não mostram grande dinamismo, mostrando
a realidade como se fosse estática e imutável” (idem, p.58).
Inspirada nessas noções, nossa proposta metodológica será orientada pela Cartografia dos
Afetos, uma técnica cartográfica que surge a partir de um diálogo entre Félix Guattari e Gelles
Deleuze no livro Mil Platôs (1995).
A cartografia como instrumento metodológico não estabelece um conjunto de regras e
procedimentos preestabelecidos, mas compreende o objeto como um elemento singular, propondo,
assim, uma estratégia flexível. Mais que um mapeamento físico, a técnica “trata de movimentos,
relações, jogos de poder, enfrentamento entre forças, lutas, jogos de verdade, enunciações, modos
de objetivação e subjetivação, de estetização de si mesmo, práticas de resistência e liberdade”
(FILHO; TETI, 2013, p. 47). No entanto, não se trata de uma ação sem direcionamento. Por mais
que o cartógrafo não tenha métodos anteriormente definidos, o percurso da pesquisa é orientado.
Nesse sentido, a cartografia propõe conhecer a realidade e seus processos, o que exige do
cartógrafo uma imersão e sensibilidade para com o objeto de análise e de certa forma, um construir
e constituir-se no caminho da pesquisa. Kastrup (2015), recorrendo a Freud, e também a Bergson e
à pragmática fenomenológica, define quatro gestos da atenção cartográfica: o rastreio, o toque, o
25
De acordo com o IBGE, o conceito mais aceito de cartografia foi estabelecido pela Associação Cartográfica
Internacional em 1966 e, nesse mesmo ano, certificado pela UNESCO. Foi assim inscrito: A Cartografia apresenta-se
como o conjunto de estudos e operações científicas, técnicas e artísticas que, tendo por base os resultados de
observações diretas ou da análise de documentação, se voltam para a elaboração de mapas, cartas e outras formas de
expressão ou representação de objetos, elementos, fenômenos e ambientes físicos e socioeconômicos, bem como a sua
utilização. Disponível em https://ww2.ibge.gov.br/home/geociencias/cartografia/manual_nocoes/indice.htm. Acesso
em: 6 fev. 2018.
69
pouso e o reconhecimento atento. A autora parte, primeiro, de uma ideia de concentração sem
focalização, em que o “rastreio é um jeito de varredura de campo” – não uma simples busca pela
informação, mas uma atitude de concentração pelo problema e no problema. Nesse ponto inicial, o
cartógrafo se dispõe a descobrir o terreno, sem grandes preocupações com possíveis redundâncias,
até que algo o toque.
O toque é a sensação, um ponto de partida que aciona o processo de seleção. É a percepção
de que algo aconteceu e merece atenção. O cartógrafo é quem se abre para o campo e nota o “signo
de que há um processo em curso, que requer uma atenção renovadamente concentrada”.
(KASTRUP, 2015, p.42). O relevo perceptível ao toque é independente do pesquisador e, portanto,
não é de natureza subjetiva. A atenção ao toque permite que a cartografia assegure o rigor do
método, sem abrir mão da imprevisibilidade do processo de produção do conhecimento
(KASTRUP, 2015).
Parte-se então para o pouso – um recorte e uma espécie de zoom da pesquisa. É quando o
campo se fecha e se reconfigura para determinar, enfim, um campo de atenção. A autora ressalta
que o zoom não deve ser confundido com um gesto de focalização. Trata-se de “um trabalho fino e
preciso, no sentido de um acréscimo na magnitude a na intensidade, o que concorre para a redução
do grau de ambiguidade da percepção” (KASTRUP, 2015, p.44).
O quarto e último gesto é o reconhecimento atento, que pode ser definido como o ato de
acompanhar o processo – e não de apenas representar o objeto. É a partir desse gesto que o
cartógrafo, de acordo com Bergson, olha para o objeto, a fim de destacar seus contornos singulares.
De forma geral, o “fenômeno do reconhecimento é entendido como uma espécie de ponto de
interseção entre a percepção e a memória”, quando “o presente vira passado, o conhecimento,
reconhecimento”. (KASTRUP, 2015, p.46).
O cartógrafo é, nesse sentido, guiado pelas apropriações que faz pelo caminho. É a partir da
concepção de Kastrup queFilho e Teti (2015) observam, por exemplo, que o pesquisador não deve
ser confundido com uma espécie de colonizador que traz na bagagem mapas e valores
preestabelecidos, mas sim “como alguém aberto a percorrer e descrever novos trajetos e caminhos
que se apresentam como possíveis, munido de um olhar estrangeiro” (p.56). Desse ponto de vista, a
técnica permite a singularização do sujeito:
A cartografia coloca-se o desafio de conduzir as heterotopias: espaços outros, novos
mundos, novas paisagens, novas relações, também novas formas de existência e de
subjetividade, novos modos de relação do sujeito consigo mesmo que possibilitem
exercício de liberdade – não liberdade como ideal abstrato, posto a priori, mas como prática
70
concreta, como linha de fuga. A estratégia cartográfica permite escapar ao decalque, à
cópia, à reprodução e à repetição de si mesmo, tornando possível a singularização, a
produção de si mesmo a partir de novas estéticas da existência. (FILHO; TETI, 2015, p.57)
Propomos, para a presente pesquisa, uma Cartografia das Recordações. Nosso intuito é criar
uma cartografia própria de Bento Rodrigues a partir das narrativas textuais e imagéticas do jornal A
Sirene. A proposta é “mapear as afetividades”, tendo como norte metodológico a nostalgia.
Articulada com os conceitos trabalhados até aqui, a cartografia passa ser um caminho a ser
experimentado e percorrido a partir de procedimentos específicos. Abrimo-nos ao campo, e
“rastreamos” memórias e recordações nas páginas do jornal. Fomos tocados pelas narrativas, pelas
imagens, pelas ausências não ditas, pelos indícios de afetos que não constam de maneira explicita,
mas estão em um olhar por detrás do texto. Basicamente, nossa Cartografia irá compor-se pelo olhar
atento aos ditos e não ditos do texto, e que direta e indiretamente compõem o sentimento nostálgico.
4.1 Propostas de uma Cartografia das Recordações
Se existem diferentes formas de se relacionar com o passado, a nostalgia, de fato, é uma
delas. O sentimento, apesar de se aproximar do que conhecemos como saudade, envolve uma
pluralidade de afetos e pode ser acionada por diferentes e singulares formas, como um cheiro, a
lembrança de um riso, ou o caminhar por um trajeto que nos traz rememorações.
Ao ler as páginas do jornal local A Sirene, identificamos narrativas que possuem como norte
a nostalgia. Entretanto, o sentimento é expresso com certa variedade de discursos e em conjugações
diferentes. As trajetórias sentimentais que embasam os escritos26
do jornal evidenciam as diversas
formas de preencher um vazio ou a busca por um retorno ao lar.
Há um movimento em relembrar o subdistrito e transpor essas recordações para as páginas
do jornal, assim como há formas de representar e reviver esse passado. Temos, portanto, uma
comunidade “reconstruída” por memórias, recordações e lembranças. Na identificação da
reconstrução discursiva do lugar e na intenção de procurar pistas para compor nosso mapa,
identificamos a presença de manifestações diferentes da nostalgia. Como norte orientador,
baseamo-nos na distinção de Svetlana Boym em “The Future of Nostalgia” – que classifica o termo
26
Optamos nesse estudo por chamar de “escritos” todas as narrativas analisadas no jornal A Sirene. Fizemos essa
escolha por compreender que a palavra abarca os diferentes discursos, como depoimentos, entrevistas, “bate-papos”,
comentários, reportagens, etc.
71
em dois tipos: a nostalgia restauradora e a reflexiva. A primeira tem como característica a
ingenuidade e o conservadorismo. Preocupa-se em restaurar, no presente, um passado. Já a reflexiva
procura ultrapassar o limiar da história, centra-se na perda e na lamentação, carrega elementos do
luto e da melancolia, imerge em sonhos de outro lugar ou tempo, e, portanto, é crítica, tem a
consciência da impossibilidade de ressuscitar o passado. Nessa perspectiva, propomos um
mergulho na geografia dos afetos. Nossa intenção é reconstruir Bento Rodrigues a partir dos afetos,
das recordações, das lembranças, das impressões, dos cheiros, dos sabores e das suas relações.
Tendo como escopo o prisma da afetividade e da nostalgia – e recorrendo à definição de
Boym –, sugerimos a criação de dois mapas afetivos: o primeiro mapa traria as representações da
nostalgia restauradora e seria denominado “A permanência”. Já o segundo apresenta as
representações da nostalgia reflexiva, que chamaremos de “O atravessar”. Os mapas relacionam a
cidade e a nostalgia quemantém vivoesse lugar na memória dos habitantes de Bento Rodrigues. O
corpus da pesquisa é composto por 22 escritos produzidos pelos atingidos durante o primeiro ano de
publicação do jornal, de fevereiro de 2016 a fevereiro de 2017, totalizando 12 edições. (Tabela 3 -
Demonstrativo do corpus de análise. A seleção das narrativas se deu a partir de critérios específicos,
que consideraram a presença dos seguintes elementos: questões relacionadas à comunidade de
Bento Rodrigues, lembranças e recordações do lugar, desassossego com a condição atual em
decorrência do desejo de retorno à terra natal e saudosismo.
Ambos os mapas possuem, como horizonte perceptível o novo convivendo com o passado.
No processo de análise das narrativas, demosdestaque a elementos que indicam a presença da
nostalgia, tais como o vazio, a tristeza, a busca incessante pelo passado, o desgosto frente ao
presente. Consideramos também as recordações da cidade, como a descrição dos lugares, das
celebrações típicas, das minúcias do cotidiano que se perderam. Longe de propor um mapeamento
absolutamente dominado pela expressão do sentimento nostálgico em relação a Bento Rodrigues,
buscamos formas plurais de construção da afetividade no subdistrito.
A identificação desses elementos, depois de categorizados e ordenados, levou-nos à
formação de imagens do subdistrito. Estas imagens e a dimensões afetivas, que sustentam as
memórias locais, apontam-nos caminhos para compreender o lugar da nostalgia na tragédia que
submergiu Bento Rodrigues. A Cartografia das Recordações, nesse trabalho, tem por objetivo
demonstrar como se revelam as lembranças e de que forma a nostalgia é representada e transportada
para as páginas do Jornal A Sirene. Entendemos, com base nesse exercício cartográfico, que nossa
tarefa é viabilizar a passagem dos afetos que se encontram em curso e, que, justamente por isso, o
72
plano de uma cartografia se mostra adequado, uma vez que oferece essa mobilidade. Nessa
perspectiva, nossa intenção é, a partir da análise dos escritos, criar uma nova linguagem, com base
na nostalgia, para discutir essa experimentação afetiva.
De forma resumida:
Tabela 4 - Cartografia das Recordações
Cartografia das Recordações
Mapa 1 – A permanência Mapa 2 – O atravessar
Elementos nostálgicos
Recordações do subdistrito Tristeza
Descrição dos lugares Vazio
Descrição de celebrações locais Saudade
Minúcias do cotidiano perdido Consciência de que o passado não vai
retornar
A tabela apresenta os elementos a serem identificados e cartografados. O mapa 1 busca
identificar com base nas categorias descritas no quadro, quais as ferramentas discursivas
evidenciam as recordações do lugar e como os moradores descrevem esse lugar. Compreender as
celebrações locais é peça fundamental para entender as relações da cidade, assim como as minúcias
do cotidiano. Tais elementos foram definidos com base na leitura do jornal, na compreensão de
como os dois tipos de nostalgia se configuram e principalmente, com base nas relações dos
atingidos com o subdistrito.
Para definir as categorias a serem cartografadas no mapa dois, nos atentamos aos afetos que
emergiram da tragédia. Percebemos que esses sentimentos como a tristeza, o vazio, a saudade e a
consciência da perda eram representativos nas páginas do jornal, e que depois desse primeiro mapa,
debruçados sobre o subdistrito, era preciso um olhar mais atento à multiplicidade de sentimentos
expressos pelos atingidos.
73
4.2 Um primeiro olhar
A partir de uma atenta observação das narrativas textuais e imagéticas, extraímos os
elementos que nos permitiram compor um primeiro esboço da Cartografia das Recordações. O
trabalho tipográfico tem como imagem referencial o anúncio “alltype”, que se utiliza apenas de
palavras para formação de imagens.
Inicialmente, analisamos os escritos presentes na edição 11 do Jornal A Sirene. Destacamos,
como indicado na imagem, expressões que indicam elementos nostálgicos. O que queremos
evidenciar, nessa abordagem, é a reconstrução de Bento Rodrigues como possibilidade
deconstituição de uma nova história. As lembranças destacadas no escrito indicam a presença da
nostalgia reflexiva, em que há memórias e, simultaneamente, a consciência do lugar perdido. As
recordações das ruas de Bento Rodrigues se diluem na rememoração do dia da tragédia,
metamorfoseando-se em um novo território.
74
Nesse sentido, pensar a cidade, suas ruas ou o entorno imaginário que hoje a compõem é
pensar em reconstrução da memória. Examinamos, a princípio, apenas um escrito, e já notamos que
o espectro das ruas aparece, por si só, em expressões como: “o canto sereno dos pássaros”, “é muito
triste olhar a rua onde sua infância realmente foi vivida, onde as pessoas caminhavam calmamente e
as crianças faziam bagunça e se divertiam”.
As palavras e fragmentos textuais tais como “aceitar”, “rota da lama”, “o tempo passa”,
“quem viu”, “impotência”, “sensação”, “dor no coração”, “triste”, “foi vivida”, “manutenção”,
“memória”, “lutaremos”, “apagar nossa história”, “destruição”, “cruel”, “casas que sobraram”,
também farão parte de uma composição do mapa. Os demais fragmentos, como “ruas”,
“moradores”, “histórias”, “vida”, “gerações”, “canto sereno”, “memória”, “raiz”, “comunidade”
irão constituir, conjuntamente, o trabalho tipográfico como exemplo do nosso primeiro esboço:
Figura 21 - Primeiro Esboço Cartografia das Recordações
Projeto Gráfico: Estúdio Luiz Abreu
75
Mesmo que o distrito de Bento Rodrigues não possua uma arquitetura marcada e
amplamente conhecida, a intenção é justamente que as cenas, ruas e lugares sejam reconstruídos
pelas recordações. Nesse sentido, a tipografia trará certas particularidades presentes nas matérias. A
figura acima será um ponto de partida para a construção de uma Cartografia de Bento Rodrigues.
Nossa Cartografia das Recordações terá como suporte conceitual as reflexões apresentadas nos
capítulos anteriores.
A princípio, os dois tipos de nostalgia – a restauradora e a reflexiva – foram a base para a
categorização e ordenação das palavras que irão compor o mapa. Posteriormente, recorremos ao
conjunto das informações apresentadas no capítulo 2 – a história de Bento Rodrigues e as imagens
do subdistrito – para imergir na geografia e nas especificidades do subdistrito que nos permitiram
conhecer a topografia da região e embasar nossa construção visual.
A leitura de todo texto se dá de maneira particular, de acordo com a forma como se
apresenta. Por isso optou-se, aqui, pelo uso de uma Cartografia das Recordações composta por
palavras que estejam em destaque e que, ao mesmo tempo, tragam elementos de Bento Rodrigues.
Isso assegura a legibilidade dos afetos que gostaríamos de evidenciar. A interpretação visual do
mapa permitirá ao leitor deste trabalho perceber a relação direta do lugar com seus afetos.
4.3 A Permanência
Permanecer é continuar, durar, é manter-se, conservar. Nessa primeira proposta de análise,
detivemos nosso olhar sobre tudo aquilo que, de certa maneira, permanece. As recordações do
subdistrito, onde se colocava “a mesa na rua” em dias de celebração, a descrição dos lugares, como
“o banco de pedra da praça”, a descrição das celebrações locais, onde as “danças varavam a
madrugada”, e as minúcias do cotidiano perdido, como “as brincadeiras de rua”. O desejo de reviver
tudo isso é permanente, não cessa. Relembrar cada um desses elementos é reviver, de certa maneira,
o passado no presente.
Na Tabela 5 apresentamos 107 expressões ou palavras inicialmente identificadas no jornal
como elementos que expressam esse desejo de se permanecer representado pela nostalgia.
Recorrendo às fotografias coletadas, às conversas com os moradores e à visita de campo, olhamos
76
atentamente para tudo o que fazia relembrar o lugar. Buscamos também aquilo que nem sempre é
passível de registro – como os afetos.
Tabela 5 - A permanência
A permanência
Elementos nostálgicos
Recordações
do subdistrito
Descrição dos
lugares
Descrição de celebrações
locais
Minúcias do cotidiano
perdido
“eu que
plantei tudo
ali”
“riquezas dali” “na cozinha comunitária” “peço a Deus para ter isso
de volta”
“o prato de
casa”
“pontes” “isso não pode ser destruído” “a casa precisa ter cheiro de
doce”
“a mesa na
rua”
“engenho” “o rejeito não levou tudo” “fartura”
“lá na horta” “cachoeiras” “na época dos festejos” “o ranca na quadra”
“do mesmo
jeito”
“muito mato” “as festas eram marcadas por
reencontros”
“a brincadeira de rua”
“lembranças
do lugar”
“tinha uma horta” “eram momentos de reflexão
sobre a vida”
“vida livre”
“onde sempre
ia na
infância”
“as igrejas” “danças que varavam a
madrugada”
“nosso modo de vida”
“cheia de
afeto”
“o banco de pedra da
praça”
“havia um calendário
religioso da cidade”
“todo mundo unido”
“guardião do
patrimônio de
Bento”
“a praça” “(a festa de São Bento) tinha
um lugar especial”
“eu ia nadar num rio”
“o respeito e
o afeto”
“a escola tinha um
gramado”
“a festa do padroeiro” “a gente brincava muito na
rua”
“sua união” “tinha um monte de
cachoeira”
“havia a novena
preparatória”
“a minha vó catava lenha”
“tinha bingo
e um monte
de coisa”
“tinha a igreja” “pelo som da banda local” “jogava no campo, com
meus irmãos”.
“era tudo
muito
simples”
“a beleza dos altares
e das imagens”
“o povo se juntava em frente
a igreja”
“soltava pipa lá”
“lá no Bento,
todo mundo
se reunia”.
“cada pedaço me
lembra quem somos”
“a festa (de São Bento)
estava bonita e cheia”
“sempre chegava com uma
sacolinha cheinha de
jabuticaba”
77
“o rejeito não
chegou nas
memórias”
“foram tombados
como núcleos
históricos de
Mariana”
“há várias festas dentro
desse homem”
“amava o seu cantinho”
“as memórias
estão vivas”
“diversos muros de
pedra seca no
entorno da Igreja de
São Bento”
“ a comunidade se envolvia
nos preparativos”
“renasceu o desejo de
pertencimento”
“centenas de
palavras
amigas”
“eram cheios de
história”
“o rejeito não soterrou
nossas memórias”
“continuamos indo a
Bento”
“pessoas
simples”
“neles nascia
labrobró”
“manter nossa história viva” “toda diversão era estar
com a família”
“raízes
profundas”
“era um prédio
bonito”
“celebrar como fazíamos
antes”
“me lembrar dos belos
momentos”
“a igreja e
tudo nos
fazia sentir
uma ligação”
“possuía o teto todo
pintado com florões”
“nossas brincadeiras eram
guerra de balão”
“um ótimo
lugar para
conexão com
a natureza”
“o Curral de Pedra,
uma construção
diferente”
“fazíamos piqueniques”
“pegamos
uma folha de
papel e
desenhamos
as ruas e as
casas”
“era um espaço
bonito”
“amávamos ir a cachoeiras
e rios”
“a
naturalidade
de sempre”
“era espaçosa (a
igreja)”
“poder colher frutos no
quintal da vovó”
“um elo que
nos une”
“o cheiro da Igreja
continua o mesmo”
“comida no fogão de lenha”
“nossas
lembranças”
“sempre gostamos de
festejar”
“ali, os
sabores eram
únicos”
“adorávamos ficar
reunidos”
“valorizar
ainda mais o
que sempre
nos
pertenceu”
“acordar com o canto dos
pássaros”
“moramos
durante os
nossos 35
anos de
“o cheiro do café”
78
casado”
“as festas
entre os
filhos e netos,
sempre em
épocas
festivas”
“colhia e comia com angu”
“todo mundo
conhecia todo
mundo”
“crianças faziam bagunça e
se divertiam”
“todos iam
para
comemorar
com os
noivos”
“nossas ruas”
“onde sua
infância foi
vivida”
“manutenção
da nossa
memória
como
comunidade”
“jamais irão
tirar o Bento
de nós”
“nada vai
apagar a
memória do
que vivi ali”
Importante dizer que a distribuição, na tabela, é um ponto de partida para a análise e
constituição dos mapas. Contudo, as expressões podem se encaixar ou transitar entre os diferentes
elementos nostálgicos norteadores.
A princípio, é notória a idealização da cidade como lugar de refúgio, de sossego. Os escritos
frequentemente revelam Bento Rodrigues como um subdistrito tranquilo, religioso, festivo e
aconchegante. Por meio da leituras dos textos, é possível enxergar a beleza das celebrações
religiosas e a proximidade entre os moradores da comunidade, por exemplo. É quase como ler sobre
um cartão postal imaginado.
A própria tabela evidencia particularidades próprias de cidades interioranas mineiras: “tinha
a igreja”, “a escola tinha um gramado”, “diversos muros de pedra seca no entorno da Igreja de São
79
Bento”, “possuía o teto todo pintado de florões”, “o banco de pedra na praça”. São elementos
textuais que reconstroem o subdistrito e nos permitem identificar características de Bento para
constituição visual dos mapas.
A partir dos escritos, é possível imaginar Bento Rodrigues, seu cotidiano, seus lugares, suas
minúcias e celebrações. Aqui a nostalgia é restauradora, tem como função recompor, recondicionar
as lembranças e permanecer no passado. Isso é expresso no tempo verbal: os escritos estão, em sua
grande maioria, no passado. Neste quadro, apenas sete verbos estão no presente – e fazem
referência ao rejeito.
Também podemos perceber o sentimento de pertencimento da comunidade em relação
àquele lugar. A descrição dos espaços é predominante na maioria das frases, sempre construídas no
plural para falar de laços e de aspectos associados a lembranças coletivas: “nossa memória”, “como
fazíamos antes”, “nossa história”, “nossas brincadeiras”, “sempre gostamos de festejar”. São apenas
alguns exemplos da legitimação desse processo de pertencimento em relação à Bento Rodrigues –
algo partilhado por todos.
Curioso observar que, se isolarmos as frases do contexto – e retirarmos as expressões que
possuem o nome de “Bento”, assim como as que falam do rejeito – seria até possível imaginar
qualquer outra cidade do interior, não fossem as memórias e os afetos, elementos reveladores das
particularidades de cada lugar. É aqui que a nostalgia traz visibilidade aos afetos relacionados a
Bento Rodrigues e caracteriza o jornal A Sirene.
Categorizamos os escritos e tomamos, como norte visual, as imagens apresentadas no
capítulo 2 e a descrição dos lugares, feitas pelos moradores. Construímos, desta forma, um primeiro
mapa visual: “O Permanecer”. As frases em destaque representam a permanência em Bento
Rodrigues pelas recordações e pela nostalgia. Ressaltamos que não há, aqui, uma preocupação em
ser rigorosamente fiel à arquitetura de Bento Rodrigues. Importa, nesse ponto, a atenção à descrição
dos lugares e afetos que representam esse lugar. Nosso primeiro mapa é pautado, portanto, nas
recordações, nas descrições dos lugares e das celebrações locais, nas minúcias do cotidiano perdido.
80
Figura 22 - Mapa 1: A Permanência
Projeto Gráfico Estúdio Luiz Abre
81
4.4 O Atravessar
Atravessar é passar para o outro lado, seguir, continuar. Assim como permanecer, é um
movimento, um processo. Pautado na nostalgia, trata-se de um processo dolorido. O entendimento
de que o passado não retorna, e de que o lugar agora éapenas um arcabouço de lembranças, indica
que tomar consciência da impossibilidade do retorno gera sentimentos como a saudade, o vazio e a
tristeza. Identificamos nos escritos, 121 palavras e expressões que, representadas pela nostalgia,
apontam-nos esse atravessar pelos atingidos.
A condição de atingidos intensifica a lembranças. A imagem do distrito como era antes se
mistura às recordações da tragédia, e essa coexistência nos leva a constituição do segundo quadro: o
atravessar.
Tabela 6 - O atravessar
O Atravessar (121)
Elementos nostálgicos
Tristeza Vazio Saudade Consciência que o passado não
vai retornar
“frustações” “abandonado” “como era bonito” “ruínas”
“só a manga
sobreviveu”
“hoje resta
pouco”
“sinto falta de tudo” “se quiser tem que comprar”
“que tristeza” “foi tudo
embora”
“faz muita falta” “não tem mais cozinha”
“tanto de gente
que tá doente”
“é doença do
corpo e da
cabeça”
“o que colhi lá” “já não reúne o pessoal”
“entrou barro
nos meus
sonhos”
“como que a
gente gostava de
Bento”
“na mesma rota do
antigo”
“importante era ficar próximo ao
Bento”
“foi onde eu
fiquei com
medo”
“convive com
histórias de
perdas e
reconstrução”
“viver num cantinho
sossegado”
“nos lugares que a gente ia
antes”
“não dormi
preocupada”
“faz um apelo a
todos por união”
“como a gente sente
falta um do outro”
“não ia ser mais um distrito”
“estudar aqui é
horrível”
“o silêncio nos
enfraquece”
“era tipo irmão
mesmo”
“a gente não queria ser bairro de
Mariana”
“aqui a gente “restam pedaços “era melhor porque “ninguém é obrigado a morar
82
não brinca na
quadra”
do templo e sua
história”
eu não era tão
presa”
onde não queria”
“foram todos
levados pela
lama”
“o que o tempo
tratou de levar”
“o cuidado com o
antigo templo”
“o terreno do Novo Bento”
“parece que até
sabiam que
estavam se
despedindo”
“se foi o mistério
em torno das
imagens”
“pensando em
reeditar a festa do
padroeiro”
“é uma escolha que vai pro resto
das nossas vidas”
“resta um
cenário triste e
desolador”
“se foram os
altares”
“tomamos as ruas
que não eram
nossas”
“o rio hoje só existe em
fotografia”
“há certa
tristeza no seu
olhar”
“se foi a
esperança”
“direito de
sepultamento na
comunidade de
origem”
“lutar pela preservação cultural
de Bento Rodrigues”
“este ano é
muito difícil”
“uma capela
emprestada”
“mostrar a quem
pertence aquele
chão”
“eliminará todos os resquícios
materiais da história da região”
“a minha vida
mudou
repentina e
completamente”
“uma imagem
doada”
“manifestações de
esperança,
resistência e força”.
“precisamos nos manter fortes”
“tristezas” “não escolhi
viver com a
perda”
“saudade” “agora não pode brincar na rua”
“desconforto” “a falta dos meus
animais”
“me acostumar com
a falta”
“ela não existe mais como antes”
“sentimento de
impotência e
muito medo”
“insegurança” “sem ter meu
quintal cheio de
plantas e animais”
“mas sabe que nada será mais
como antes”
“palavras
rudes”
“não ter onde
brincar”
“senti falta da
liberdade”
“pedimos a Deus coragem para
prosseguir”
“há muito o que
lamentar”
“cobrir com mais
lama nossos
sentimentos”
“ainda posso tocá-
las”
“nossa luta cotidiana”
“transformaram
nossos sonhos
em pesadelo”
“tentam apagar
nossa memória”
“ocupar aquilo que é
nosso”
“formas de continuar uma
tradição”
“em meio ao
caos que
vivemos”
“tem sido difícil
engolir mais essa
perda”
“saudou o velho
companheiro
deitando-se sobre
seu corpo de pedra”
“sempre convivendo com o
novo”
“nunca senti
tanto medo”
“a ausência que
hoje fica”
“a cada pedra que
achávamos que
eram bancos, ela
chorava”
“me acostumar com outra casa”
“nosso paraíso “impotência” “manutenção” “muitos julgamentos”
83
tinha sido
destruído”
“uma tristeza
que persiste até
hoje”
“foi vivida” “uma mistura de
sentimentos”
“conviver com o novo é
desafiador”
“um amanhecer
triste”
“apagar nossa
história”
“um misto de
emoção”
“a minha história estou
reconstruindo”
“tudo arrasado” “casas que
sobraram”
“não é tão simples”
“conservar o
que restou da
vida”
“sei que não será mais possível
passar nossas férias lá”
“dor no
coração”
“que a gente sabe que não volta
mais”
“triste” “é possível começar o
reassentamento”
“cruel” “no lugar que escolhemos para
recomeçar”
“luta de poderes”
“recuperar nossas vidas
dignamente”
“os sabores de cada momento
não voltam mais”
“pedimos proteção e força para
prosseguir”
“o Bento acabou”
O segundo quadro revela a tristeza da tragédia de forma latente. Os escritos são pautados na
dor, no vazio e na saudade. Recordações do que foi perdido coexistindo com o mal-estar do
presente. Há um esvaziamento da esperança de reviver aquele passado, tão presente no quadro
anterior.
Os afetos descrevem as “frustações”, as “tristezas”, o “desconforto”, a “insegurança” “o
sentimento de impotência e muito medo”, e as constantes “manifestações de esperança, resistência e
força”. O esvaziamento das expectativas quanto ao lugar caracteriza a compreensão da
impossibilidade de retorno, característica principal da nostalgia reflexiva. Expressões que
evidenciam o convívio com a perda e a saudade inundam as páginas do jornal, e se tornam mais
evidentes a cada edição.
Os escritos que descrevem o presente são melancólicos, especialmente quando se baseiam
em comparações entre o que se vê agora e o que foi experimentado em Bento. “Estudar aqui é
horrível”, “não escolhi viver com a perda”, “tomamos as ruas que não eram nossas”, “era melhor
84
porque não era tão presa”, “precisamos nos manter fortes” são indícios da não adaptação dos
atingidos ao novo cotidiano. Essas descrições mais negativas indicam reações de resistência. Bom
exemplo está no fragmento de uma frase bastante presente nas narrativas: “recuperar nossas vidas
dignamente”
Aqui os escritos estão no verbo presente, dando forma à relação estabelecida entre as
temporalidades após a tragédia. O segundo mapa traz esses elementos perdidos, como o banco de
pedra, a árvore ao lado da Igreja de São Bento e “ as casas que sobraram”.
85
Figura 23 - Mapa 2: O Atravessar
Projeto Gráfico Estúdio Luiz Abr
86
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Cartografia das Recordações a partir do Jornal A Sirene – Para não esquecer nos
conduziu a uma discussão sobre o tempo, invocando a nostalgia como instrumento para falar dos
afetos. O lugar e a memória foram nosso fio condutor para a compreensão de como a nostalgia se
manifesta e, nesse sentido, o mapeamento das recordações nos permitiu identificar a simultaneidade
dessas emoções. A intensidade com a qual um lugar pode transformar suas memórias e afetos não
está no tempo, mas no convívio, nos detalhes, nas particularidades, nos acontecimentos, nas
lembranças. O tempo é o fio condutor dessa intensidade, mas não a define. A nostalgia é o que
chamamos hoje de emoção social. Pode ser individual e coletiva, assim como a memória.
Bento Rodrigues era um subdistrito da cidade de Mariana com 600 moradores, comum
calendário religioso extenso, famílias que se conheciam de muitos anos. Hoje restam apenas
escombros. Como identificar tantos afetos em relação a um lugar completamente devastado pela
lama? Os sentimentos são híbridos, assim como o processo nostálgico. O exercício de caminhar
entre passado, presente e futuro evidenciou a forma como percebemos, lidamos e valorizamos os
tempos. O passado é seguro, o presente é inquieto e o futuro inseguro. Pela natureza humana,
vivemos sempre no transitar desses tempos, entre lembranças e anseios.
As representações de Bento Rodrigues configuradas pela nostalgia nos mapas propostos é a
expressão dessa transição que vivem os atingidos. O movimento da narrativa contribui para a
consciência gradativa da perda, seja a palavra falada ou escrita. O jornal A Sireneé um desses
lugares de fala, é onde se descreve com detalhes tudo que foi levado pela lama, e também todos os
anseios existentes entre presente e futuro. Refazer o caminho das recordações de Bento Rodrigues
antes, no dia e depois da tragédia é o que alimenta a memória da comunidade.
Propor uma Cartografia das Recordações nos permitiu fazer parte desse caminho. A
cartografia nos permitiu o toque, o olhar para o passado entendendo-o como a origem da nostalgia.
Permitiu-nos identificar, nas páginas de um jornal, o lugar como parte fundamental na constituição
das memórias e, principalmente, nos permitiu entender o jornal como elemento de transformação.
Os escritos e as imagenssão representativos, deixam clara a certeza da destruição. Nesse trabalho
desempenham um papel fundamental na tentativa de tornar visíveis os afetos. Ajudam-nos a
caracterizar como o lugar foi transformado e como o crime da Samarco devastou uma comunidade
inteira.
A nostalgia – compreendida neste trabalho como um afeto plural – foi nossa ferramenta
analítica para entender a sobrevivência dos atingidos. Sobreviventes da lama, da impunidade, da
readaptação no nosso espaço, do preconceito, do caminhar com a esperança de um novo Bento. Ao
observar os dois mapas construídos, o subdistrito de Bento Rodrigues parece hibridamente formado
por sentimentos ambíguos. A leitura da Cartografia das Recordações realça a coexistência das
formas de nostalgia e suas contradições. Está ali a nostalgia projetada no passado – e descrita pelo
acervo de recordações do subdistrito, pela partilha de referências do lugar, por afetos ternos e
amáveis em relação ao ambiente –, até que os sentimentos perpassados pela tragédia começam a
transformar a narrativa. Há um lento e doloroso processo de distanciamento do lugar e uma
adaptação ao presente que se deixa representar por afetos pautados na melancolia e no luto.
Esse processo e essa pluralidade foi o que procuramos evidenciar na construção dos mapas,
sem a pretensão de abarcar a totalidade dos afetos em relação a Bento Rodrigues. Os afetos
nostálgicos do mapa “A Permanência” possuem um tom mais otimista e esperançoso, ao passo que
as palavras que dão formas ao mapa “O Atravessar” relatam a experiência de readaptação ao novo,
aqui descrita com palavras mais penosas, duras, difíceis.
É nessa linha, que mais uma vez, destacamos o lugar da memória como um espaço
importante para a comunidade de Bento – eo jornal A Sirene como local disponível e seguro para a
fala dos atingidos. São nesses escritos presentes no jornal que o exílio é enunciado, que os
sentimentos são registrados e partilhados, que os discursos são formulados em função de um novo
agora. O lugar frágil da escrita, onde a memória é projetada e compartilhada, torna visíveis os
afetos. A estrutura que o jornal oferece aos atingidos proporciona a reflexões de si e do outro e não
permite que essas recordações se dissipem. Estamos falando da importância do registro histórico
como espaço de resistência. Nesse sentido, as temporalidades da cartografia construída nos permite
entender como a nostalgia e seus afetos perpassam o individual, o coletivo, a cidade, as tradições, as
imagens, as histórias, a arquitetura, os grandes e pequenos acontecimentos, e, principalmente, como
a nostalgia está ancorada nos processos da memória.
Uma das principais características presente nos mapas é a identificação do jornal como
caminho para manter a nostalgia viva, e como consequência, uma forma de permanecer resistindo.
O espaço físico já não existe mais e por isso os escritos se concretizam em ferramenta de luta. A
memória perpassada pelo luto e descrita nas edições do jornal amplia as possibilidades da
lembrança, da resistência através do exercício de lembrar e ser ouvido.
Percebemos no processo de leitura da Cartografia das Recordações, como o espaço, com
suas particularidades, reaproximam os indivíduos em situações de perda. Do vilarejo com uma
rotina marcada e própria até a reconfiguração da rotina em um novo ambiente, imposta pelo
rompimento da barragem, aproximam os sujeitos pelas recordações. Recordar, portanto, é resistir, é
lutar pela preservação das lembranças, pelo direito de fala, pelo direito de um canal de informação
consciente e crítico.
Mais do que escrever e registar essas lembranças, A Sirenetem o papel de unir os atingidos
pelo afeto, pelo sentir, pela permanência. Ainda que essa permanência seja um processo individual,
necessariamente ela é importante para o coletivo, pois é uma ferramenta de persistência e esperança
de que a justiça seja alcançada. É na comunhão dessa afetividade em relação ao lugar, que a
nostalgia se torna um caminho de resistência.
Em comum nos dois mapas é a narrativa sobre o lugar. A representação de Bento Rodrigues
– seja ela marcada pelo luto ou pela esperança – é sempre recorrente. É o que permanece de todo o
processo: os escritos como forma de não esquecer. A narrativa do jornal A Sirene habita esse espaço
hibrido que inclui a memória do subdistrito e a memória do trauma. Os escritos dos atingidos
fazem, assim,um trajeto preciso: passam pela lembrança, depois pela permanência, o exílio, a
consciência do trauma, o luto, a pressão pela superação do passado e a transferência de esperança
para o “novo Bento”. Depois é o atravessar. Para lidar com a perda.
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ANEXOS
ANEXO A - O que queremos do velho no Novo Bento?
ANEXO B - Belezas de Bento
ANEXO C - Sabores da Memória
ANEXO D - Papo di Cumadi
ANEXO E - A Lavoura perto de Bento
ANEXO F - Nossa história debaixo do dique
ANEXO G - Acabou-se o que era doce
ANEXO H - Seu Filomeno: a festa dentro de um homem
ANEXO I - Acolhida, esperança e resistência
ANEXO J - Diversidade que nos convida a acolher
ANEXO K - Nem na minha casa eu mando mais
ANEXO L - Afetados pela lama
ANEXO M - A última noite
ANEXO N - 1 ano de atingido
ANEXO O - Por que tombou?
ANEXO P- O dia que dormimos no Bento de Novo
ANEXO Q - Muros antigos de Bento
ANEXO R - Memória e espaço
ANEXO S - Família Silva, de Bento Rodrigues
ANEXO T - O último casamento de Bento Rodrigues
ANEXO U - As ruas que sobraram
ANEXO V - Primeira Missa
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