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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
LUCIANE ROCHA FERREIRA
A ECONOMIA SOLIDÁRIA ENQUANTO ESTRATÉGIA DE
EMANCIPAÇÃO POLÍTICA:
O “OLHAR” FENOMENOLÓGICO QUE O GRUPO MUDAR LANÇA
SOBRE SEU PROCESSO DE FORMAÇÃO
Cuiabá - MT
Dez/2011
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
LUCIANE ROCHA FERREIRA
A ECONOMIA SOLIDÁRIA ENQUANTO ESTRATÉGIA DE
EMANCIPAÇÃO POLÍTICA:
O “OLHAR” FENOMENOLÓGICO QUE O GRUPO MUDAR LANÇA
SOBRE SEU PROCESSO DE FORMAÇÃO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito final para obtenção do título de Mestre em Educação na Área de Concentração Educação, Cultura e Sociedade, na Linha de Pesquisa Trabalho e Educação.
Orientador: Prof. Dr. Edson Caetano
Cuiabá - MT
Dez/2011
Dados Internacionais de Catalogação na Fonte
F383e Ferreira, Luciane Rocha.
A economia solidária enquanto estratégia de emancipação política :
o “olhar” fenomenológico que o Grupo MUDAR lança sobre seu
processo de formação / Luciane Rocha Ferreira. -- 2011.
186 f. ; 30 cm.
Orientador: Edson Caetano.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso,
Instituto de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação,
Cuiabá, 2011.
Inclui bibliografia.
1. Economia solidária – Educação. 2. Política – Educação. 3.
Fenomenologia. 4. Grupo MUDAR. 5. Emancipação política. I. Título.
CDU 37.035:316.423.6
Ficha Catalográfica elaborada pelo Bibliotecário Jordan Antonio de Souza - CRB1/2099
Permitida a reprodução parcial ou total desde que citada a fonte
LUCIANE ROCHA FERREIRA
LUCIANE ROCHA FERREIRA
_______________________________________________ Examinador Externo: Prof. Dr. Danilo Romeu Streck Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS
________________________________________________ Examinador Interno: Prof. Dr. Luiz Augusto Passos Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT
_______________________________________________ Orientador: Prof. Dr. Edson Caetano Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT Aprovada em: 19 de dezembro de 2011.
DISSERTAÇÃO APRESENTADA À COORDENAÇÃO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DA UFMT
Agradeço
e dedico este trabalho
a Deus, primeiramente,
e, com especial “olhar”,
à dedicação e exemplo de minha mãe, Francisca Ferreira dos Santos,
à paciência e compreensão de minha filha Luany Ferreira de Carvalho
e do meu filho Wendell Ferreira da Cruz,
à incondicional presença e apoio do meu companheiro Márcio Pielke,
ao meu orientador, Prof. Dr. Edson Caetano,
e ao Prof. Dr. Luiz Augusto Passos,
que foram fundamentais nesta caminhada!
A educação tem sentido porque o mundo
não é necessariamente isto ou aquilo,
porque os seres humanos são tão
projetos quanto podem ter projetos para o
mundo. “A educação tem sentido porque
mulheres e homens aprenderam que é
aprendendo que se fazem e refazem,
porque mulheres e homens se puderam
assumir como seres capazes de saber, de
saber que sabem, de saber que não
sabem”.
(FREIRE, 2000, p. 63)
RESUMO Esta pesquisa de Mestrado em Educação trata de algumas experiências de enfrentamento a determinadas “situações-limite” que estão sendo construídas de forma coletiva e autogestionária por atrizes e atores da dita “Baixada Cuiabana”. A centralidade é compreender como algumas pessoas que participam do Movimento Social da Economia Solidária percebem seu próprio processo de formação política e de produção do conhecimento construídas em mediação no e pelo trabalho. Trabalhamos com a idéia de que a Economia Solidária se configura enquanto uma estratégia política e pedagógica, que acolhe em si diversos significados, tanto objetivos e materiais quanto subjetivos e imateriais, visando possibilidades de melhoria na qualidade de vida das/os envolvidas/os. A postura diante desta realidade é dialético-fenomenológica, segundo Maurice Merleau-Ponty em diálogo com a Educação Popular de Paulo Freire. A participação em vários momentos de Formação, seja nas Oficinas, Seminários e Conferências, Encontros e Feiras Regionais, Estadual e Nacional de Economia Solidária, seja em reuniões do Fórum Estadual de Economia Solidária (FEES), no Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES) ou da Rede Matogrossense de Educação e Sócioeconomia Solidária (REMSOL), nos possibilitaram uma determinada inserção à realidade pesquisada, que pode ser considerada suficiente para uma pesquisa qualitativa fenomenológica participante. Assim sendo, consideramos a Etnografia e a Descrição Densa, conforme Geertz, as ferramentas mais adequadas para termos condições teórico-metodológicas de conduzir as interpretações. A visão da pesquisadora faz parte significativa na compreensão histórica, política, cultural e social sobre o fenômeno em questão. É ela também uma destas pessoas que busca, através de uma comunhão necessária ao processo de “pari” uma nova forma de se estabelecer relação na sociedade, um outro mundo possível.
Palavras chave: Economia Solidária; Emancipação Política; Educação & Trabalho;
Fenomenologia.
ABSTRACT This research of Masters in Education deals with some experiences of confrontation labeled as “limit-situation” that are being constructed in a collective and self-managing way by actresses and actors at the so called "Baixada Cuiabana" area. It's central to understand how some people who participate of the Social Movement of the Solidary Economy perceive their own politic formation process and their production of knowledge built by and for the work itself. We work with the idea that the Solidary Economy is set as a political and pedagogical strategy, which has diverse meanings built in itself, both objective and material as much as subjective and incorporeal, aiming at possibilities of improvement in the quality of life of the people involved. The posture assumed towards this reality is one dialectic-phenomenological, according to Maurice Merleau-Ponty in dialogue with the Popular Education by Paulo Freire. Taking part in several moments of the schooling process, either in the Regional Workshops, Seminars and Conferences, Meetings and Fairs, in the State and Country's Solidary Economy, either in meetings of the State Forum of Solidary Economy (FEES), in the Brazilian Forum for Solidary Economy (FBES) or of the Mato Grosso's Network for Socio-economy & Education (REMSOL), made possible for a definitive insertion into the studied reality, that can be considered sufficient for a qualitative phenomenological research. Thus, we consider the Ethnography and the Dense Description, according to Geertz, the best tools for having theoretical-methodological conditions to lead the interpretations. The vision of the researcher is a significant part in the political and historical, cultural and social understanding of the phenomenon. She is one of those people who search, through a necessary communion to the process of “giving birth”, a new form of establishing relationships in society, a different and possible world.
Key words: Solidary Economy; Political Emancipation; Education & Work;
Phenomenology.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABONG Associação Brasileira das Organizações não Governamentais
AF Agricultura Familiar
AMAMT Associação de Mulheres em Ação do Mato Grosso
AMAR Associação Mato Grossense de Artesãos
ANTEAG Associação Nacional de Trabalhadores em Empresas de Autogestão
ATER Assistência Técnica e Extensão Rural
CCU Carta de Concessão de Uso
CEES Conselho Estadual de Economia Solidária
CFES Centro de Formação em Economia Solidária
CONAES Conferência Nacional de Economia Solidária
CONSEA Conselho de Segurança Alimentar
CPR/FEES Comissão Provisória de Reestruturação do Fórum Estadual de Economia Solidária
CUFA Central Única de Favelas
CUT Central Única dos Trabalhadores
DAP Declaração de Aptidão ao PRONAF
ECOSOL/ES Centro Público de Economia Solidária do Espírito Santo
EES Empreendimentos Econômicos Solidários
EJA Educação de Jovens e Adultos
EMESOL Encontro Matogrossense de Educação e Socioeconomia Solidária
FBES Fórum Brasileiro de Economia Solidária
FEES Fórum Estadual de Economia Solidária
IMS Instituto Maristas de Solidariedade
IOV Instituto Ouro Verde
LAU Licença Ambiental Única
MAB Movimento dos Atingidos por Barragens
MGLBT Movimento de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transsexuais
MMC Movimento das Mulheres Camponesas
MS Movimento Social
MST Movimento dos Sem Terra
MTE Ministério do Trabalho e Emprego
MUDAR Mulheres Unidas Determinadas na Ação pelo Reconhecimento
NUEPOM Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Organização das Mulheres
PAA Programa de Aquisição de Alimentos
PNAE Programa Nacional de Alimentação Escolar
PRONAF Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
RECID Rede Cidadã/Talher: estrutura do Programa FOME ZERO
REMSOL Rede Matogrossense de Educação e Socioeconomia Solidária
SECITEC Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia
SEDRAF Secretaria Estadual de Desenvolvimento Rural e Agricultura Familiar
SEDUC Secretaria de Estado de Educação
SENAES Secretaria Nacional de Economia Solidária
SPG Sistema Participativo de Garantia
SIES Sistema Nacional de Informação em Economia Solidária
TICs Tecnologias de Informação e Comunicação
UNISOL Brasil Central Nacional de Cooperativas e Empreendimentos da Economia Solidária
UNITRABALHO Incubadora de EES
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 11
1 REFERENCIAL TEÓRICO E METODOLÓGICO ............................................... 23
1.1 ORIENTAÇÃO SULEADORA DA PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA
DO OBJETO ..................................................................................................... 23
1.2 MEMÓRIAS DE UMA VIDA: DE ONDE FALA A PESQUISADORA ................ 27
2 A PESQUISA ....................................................................................................... 40
2.1 PERCURSOS INICIAIS DA PESQUISA ........................................................... 40
2.2 GRUPO MUDAR: PASSEIO PELA HISTÓRIA DO GRUPO E DAS
MULHERES QUE O FAZEM ............................................................................ 42
2.3 UMA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO SOBRE GÊNERO: PELO DIREITO
DE SER MULHER ............................................................................................. 51
2.4 ECONOMIA SOLIDÁRIA E O PAPEL DA MULHER NESTA CONSTRUÇÃO:
EXPERIÊNCIA DA “BAIXADA CUIABANA” NA PERSPECTIVA DE
GÊNERO ........................................................................................................... 53
3 A ECONOMIA SOLIDÁRIA ................................................................................. 58
3.1 O PROBLEMA EM QUESTÃO ......................................................................... 58
3.2 ECONOMIA SOLIDÁRIA: EXPERIÊNCIA DA “BAIXADA CUIABANA” ........... 62
3.3 A ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DA ECONOMIA SOLIDÁRIA NO MATO
GROSSO HOJE ................................................................................................ 69
4 COMERCIALIZAÇÃO E FORMAÇÃO: ESTRATÉGIA DE ORGANIZAÇÃO
POLÍTICA ............................................................................................................. 75
4.1 PARTICIPAÇÃO NAS FEIRAS PANTANEIRAS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA,
AGROECOLOGIA E AGROEXTRATIVISMO ..................................................... 75
4.1.1 Idéias Destacadas .......................................................................................... 76
4.1.2 Algumas Discussões ...................................................................................... 78
4.2 O SEMINÁRIO ESTADUAL DE COMERCIALIZAÇÃO SOLIDÁRIA:
DISCUTINDO A COMERCIALIZAÇÃO COM OS EES DO CAMPO E
DA CIDADE ....................................................................................................... 90
4.2.1 Comercialização como Estratégia de Construção Coletiva ............................ 93
4.2.2 Espaço de Comercialização ........................................................................... 96
4.2.3 Relações de Confiança ..................................................................................100
4.2.4 Intercâmbios de Tecnologias ..........................................................................103
4.2.5 Pistas de Estratégias Possíveis .................................................................... 107
4.3 SEMINÁRIO REGIONAL DE ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA PERSPECTIVA
POSSÍVEL DA COMERCIALIZAÇÃO DOS EES NA REGIÃO CENTRO-
OESTE ............................................................................................................. 109
4.3.1 Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário (SNCJS) .......................... 115
4.3.2 Apresentação da Experiência da Associação dos Produtores Orgânicos
do Mato Grosso do Sul (APOMS) .................................................................. 118
4.3.3 Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA-PNAE):
Territórios da Cidadania ................................................................................. 121
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: DIFERENTES PERSPECTIVAS E
HORIZONTES SEMELHANTES EM DIÁLOGOS E CONVERGÊNCIAS ......... 124
5.1 A AUTONOMIA E AUTO ORGANIZAÇÃO DAS MULHERES ......................... 127
5.1.1 Depoimentos ................................................................................................. 127
5.1.2 Debates ......................................................................................................... 130
5.1.3 Discussões na Plenária ................................................................................. 131
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 140
ANEXOS ................................................................................................................ 144
Formação e Comercialização: A Autogestão em Empreendimentos Econômicos
Solidários em Discussão durante a I Feira de Economia Solidária em Colíder/MT.145
Marketing em Empreendimentos Econômicos Solidários........................................151 Estratégias na Composição de Custos em Empreendimentos Econômicos Solidários:
Uma Experiência de Pedagogia da Alternância-Escola Do Campo em Diálogo com a
AAFERG................................................................................................................154
Reflexões sobre a X Reunião da Coordernação Nacional do Fórum Brasileiro de
Economia Solidária – FBES: Uma Perspectiva Regional.........................................165
Diálogos e Convergências: Carta de Salvador.........................................................177
11
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa de Mestrado é fruto de uma história de luta e resistência. Ela
pretende observar e compreender como se dão algumas experiências e vivências de
determinados Grupos que estão se organizando de forma coletiva e que buscam,
orientados por princípios da solidariedade defendida pelo Movimento Social (MS) da
Economia Solidária (ES), enfrentar algumas “situações-limites”1 que estão presentes
no cotidiano destas pessoas.
Nesta oportunidade, o processo de formação pelo qual estas pessoas
participam é o fenômeno privilegiado como foco central de nosso “olhar”
compreensível. Em determinados momentos estarão presentes outras dimensões
que dialogam com a perspectiva central, como por exemplo, a questão de gênero.
Porém, sem nenhuma pretensão de aqui serem aprofundadas, cabendo sim uma
pesquisa própria para tais dimensões, dadas suas amplitudes e relevâncias neste
contexto.
Segundo o Sistema Nacional de Informações em Economia Solidária (SIES),
a Economia Solidária é compreendida como o conjunto de atividades econômicas –
de produção, distribuição, consumo, poupança e crédito – organizadas e realizadas
solidariamente por trabalhadores e trabalhadoras sob a forma coletiva e
autogestionária (BRASIL, 2007).
Durante a IV Plenária de Economia Solidária, alguns grupos de produção, ou
Empreendimentos Econômicos Solidários (EES), militantes, Assessorias e Gestores
Públicos reunidos para um trabalho de grupo chegaram ao consenso de que ela
também pode ser compreendida ”enquanto um MS que é constituído por diversos
Fóruns, Conselhos, Redes e Cadeias, como estratégia para o desenvolvimento
sustentável de um novo tecido social por meio da Educação em todos os seus
níveis” (GT na IV Plenária da ES, 2008).
Nesta oportunidade será feito um esforço teórico-metodológico na tentativa de
se compreender fenomenologicamente como algumas pessoas que compõem um
EES veem, na prática do seu cotidiano, o seu próprio processo de formação, o qual
se dá em vários momentos fomentados pela dinâmica organizacional da ES. Ela é
1 “Situações-limites” são constituídas por contradições que envolvem os indivíduos, produzindo-lhes
uma aderência aos fatos e, ao mesmo tempo, levando-os a perceberem como fatalismo aquilo que lhes está acontecendo (OSOWSKI, 2008, p. 384 – Dicionário Paulo Freire).
12
composta fundamentalmente por três segmentos: EES, Assessorias (Universidades,
ONGs, Igrejas...) e Gestores Públicos.
Acompanham de perto também militantes que são pessoas de outros MS ou
não, mas que não fazem parte de nenhum destes segmentos. Cada uma possui
características distintas, isto não quer dizer que uma necessariamente anule a outra,
ou seja, é possível que uma pessoa integrante de um EES também pode, em
momentos diversos, ser uma multiplicadora frente à formação (assessorar outros
grupos). Durante as plenárias ela está pela sua representatividade maior.
A Educação Popular, nesta perspectiva, é a metodologia privilegiada dentro
dos processos políticos e pedagógicos da formação dentro da ES; assim sendo, esta
prática de formação continuada intergrupos é comum e muito estimulada entre os
grupos que participam deste MS enquanto estratégia de empoderamento político e
socialização de saberes.
Durante nosso diálogo, por vezes, será retomado sobre as competências e
características destes segmentos formados pelas atrizes e atores que ora fazem e
refazem esta história. Em muitos momentos eminentemente formativos destes
coletivos foram abordadas questões específicas da organização dos mesmos.
Assim, formação e organização caminham de mãos dadas durante os processos
instituintes da ES.
Durante este processo a identidade coletiva dos grupos muitas vezes é
estimulada/provocada a estabelecer diálogo, ao mesmo tempo, com as
subjetividades individuais de cada membro, e também com diversas outras
identidades coletivas e individuais dos outros grupos de EES, Assessorias e
Gestores Públicos, o que faz com que muitas “situações-limites” se apresentem
enquanto desafios a serem enfrentados e, na medida do possível, superados.
Neste percurso, acreditamos que o primeiro movimento a se considerar é o
intersubjetivo, enquanto base das relações. O diálogo intersubjetivo intrínseco ao
processo de “fazimento” de identidades e pertencimentos, das gentes e de suas
capacidades de reinvenção do próprio cotidiano, é o ponto mais melindroso, pode-se
dizer, de todo este empreendimento coletivo, uma vez que o movimento que se dá a
nível da construção perceptual entre o “eu” e o “outro” exige determinado esforço
intra e interpessoal, pois:
13
Quando me volto para minha percepção e passo da percepção direta ao pensamento dessa percepção, eu a re-efetuo, reencontro um pensamento mais velho do que eu trabalhando em meus órgãos de percepção e do qual eles são rastro. É da mesma maneira que compreendo outrem. Aqui, novamente, só tenho o rastro de uma consciência que me escapa em sua atualidade e, quando meu olhar cruza com um outro olhar, eu re-efetuo a existência alheia em uma espécie de reflexão. Aqui não há nada como um ”raciocínio por analogia”. Scheler o disse muito bem, o raciocínio por analogia pressupõe aquilo que ele devia explicar. A outra consciência só pode ser deduzida se as expressões emocionais de outrem e as minhas são comparadas e identificadas, e se são reconhecidas correlações precisas entre minha mímica e meus “fatos psíquicos”. (...) Entre minha consciência e meu corpo tal como eu vivo, entre este corpo fenomenal e aquele de outrem tal como eu o vejo do exterior, existe uma relação interna que faz outrem aparecer como acabamento do sistema. A evidência de outrem é possível porque não sou transparente para mim mesmo, e porque minha subjetividade arrasta seu corpo atrás de si (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 471-472).
É interessante, ainda, destacar que em meio a todo este movimento, intra e
interpessoal, que está acontecendo entre as pessoas e o mundo que as cercam,
existe toda uma problemática a se considerar a respeito das construções coletivas
dos sentidos e significados, identidades e pertencimentos, onde o movimento é
muito complexo.
Como veremos no decorrer da leitura que se seguirá, os processos aqui
propostos e pretensamente construídos de forma coletiva se deparam com muitas
condições, situações e variantes sociais que precisam ser consideradas em uma
perspectiva aberta e de “estar sendo”, caso contrário não seria possível dar conta de
uma aproximação que pudesse expressar minimamente a realidade vivida nesta
experiência.
Este é um processo que possui muitas possibilidades, uma vez que, ao
fazermos o ensaio desta arquitetura social, a incompletude e a ambiguidade são
algumas das certezas que nos acompanham. Portanto, para pensar no mundo vivido
e tê-lo como fenômeno a se contemplar, é preciso antes de tudo um esforço pessoal
de se despir dos conceitos do pronto e acabado, de certo e de errado, de verdade e
mentira, enfim, é preciso que se perceba a impossibilidade de marcar o mundo
objetivo do subjetivo de forma fragmentada, uma vez que são co-relacionados.
Este movimento complexo, não linear, por vezes contraditório pela própria
dinâmica que lhe é a característica social, perpassa por dimensões de ordem ora
pessoal (individual) e ora interpessoal (coletiva), mundo objetivo e subjetivo em um
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movimento dinâmico que também recebe muitas energias (desejos) da relação
intrapessoal, consciente e inconsciente. Tudo isso onde o mundo material e imaterial
coexistem em um movimento dialético e não presumido.
Estas conexões e interconexões ocorrem simultaneamente, não há a
possibilidade de se perceber este emaranhado de “coisas” acontecendo uma por
vez, como em câmara lenta dos filmes de época. E sobre esta aparente contradição,
Berger e Luckmann citam e refletem sobre esta similitude, reportando-se à teoria
Sociológica defendida por Durkheim e Weber:
Durkheim diz-nos: “A primeira regra e a mais fundamental é: Considerar os fatos como coisas”. E Weber observa: “Tanto para a sociologia no sentido atual quanto para a história o objeto do conhecimento é o complexo de significados subjetivo da ação”. Estes dois enunciados não são contraditórios. A sociedade possui na verdade facticidade objetiva. E a sociedade de fato é construída pela atividade que expressa um significado subjetivo. [...] É precisamente o duplo caráter da sociedade em termos de facticidade objetiva e significado subjetivo que torna sua realidade sui generis [...] como é possível que significados subjetivos se tornem facticidades objetivas? Ou, em palavras apropriadas às proposições acima mencionadas: Como é possível que a atividade humana (Handeln) produza um mundo de coisas (choses)? (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 33-34).
É complicado dizer, diante desta situação contraditória e ao mesmo tempo
intrinsecamente co-relacionada, como são o mundo objetivo e o subjetivo, que o
esforço empreendido no processo de construção por uma nova forma de se
estabelecer relação no seio da sociedade capitalista realizada por estas pessoas,
por exemplo, é algo simples, natural ou que seja possível afirmar este um processo
sem rupturas, linear e predeterminado.
Entendendo o quanto estas questões são complexas, nos cabe considerá-las
enquanto mais um desafio ao “olhar” compreensivo, tomando o cuidado para não
nos perdermos no relativismo, e ainda assumir uma postura aberta para as
possibilidades que se abrem diante de tal constatação: a realidade se faz neste
processo contínuo e, portanto, inacabado.
Outra questão apresentada e que precisa ser levada em consideração é o
fato de o Grupo MUDAR (Mulheres Unidas Determinadas em Ação pelo
Reconhecimento) ter toda a sua constituição formada por mulheres. Assim, se
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colocam estas duas dimensões tão distintas e complexas, além de serem muito
amplas, o Gênero e a Formação.
São questões emergentes do MS da ES, que estão ao mesmo tempo inter-
relacionadas e em diálogo constante, o que configura em mais desafios a serem
enfrentados. É importante lembrar aos leitores que nesta experiência o fenômeno
principal a ser compreendido é o processo de Formação através do “olhar”
fenomenológico de um EES.
Será considerada a dimensão de gênero mais como uma proposta da
necessária retomada mais minuciosa sobre esta questão. Seria por demais ousadia
dizermos que aqui esta questão seja transversal para o diálogo que ora trazemos,
devido à amplitude e importância destas reflexões e discussões. Temos consciência
de sua importância que com certeza nos é cara, porém impossível de darmos conta
neste momento.
Por outro lado, pelo fato de o Grupo MUDAR, em muitos momentos, ter
deixada explícita a necessidade de problematizar a situação do trabalho e das
responsabilidades femininas nesta sociedade e, em contra partida, sua participação
na construção desta contra-proposta por outra sociedade possível, acreditamos ser
imprescindível um trabalho minucioso sobre estes processos de ressignificação do
que está posto.
A discussão de gênero, nesta perspectiva, estará presente em nosso diálogo
mais como elemento de base, por entendermos que as relações estabelecidas em
meio às discussões durante as reuniões do Fórum Estadual de Economia Solidária
(FEES/MT) e, em encontros diversos, durante a produção e comercialização,
formam um conjunto significativo de conhecimento que colabora para a
problematização da situação das mulheres e dos homens, situações estas que
foram delineadas historicamente, de forma a minimizar a imagem de um em
detrimento do outro.
É importante destacar que esta situação apresentada reflete a urgência da
necessidade de ações integralizadoras entre as Políticas Públicas (PP), para que
haja fomento visando a promoção e estímulo às iniciativas que, porventura, partam
dos coletivos de EES organizados ou dos grupos de Assessorias que os
16
acompanham, para que se contribua significativamente com o empoderamento2 das
pessoas envolvidas nestas experiências sócio econômicas.
Sabemos que há uma infinidade de pluralidades sócio-culturais presentes na
sociedade como um todo, identidades e culturas singulares de pessoas que estão
dentro deste processo que ora está sendo construído e que precisam ser
consideradas, valorizadas e colocadas no centro de reflexões mais amplas, como
estratégia de se buscar superar toda uma cultura heteroconstruída, vislumbrando
nos momentos de formação e organização, e no próprio cotidiano, espaços
potencialmente férteis para tal problematização.
Buscar-se-á, enquanto estratégia/postura metodológica e epistemológica para
reflexão e discussão, um diálogo estreito com Freire e Merleau-Ponty, a partir de
uma pesquisa qualitativa com viés dialético-fenomenológico, por acreditar que tais
leituras só alcançarão determinada legitimidade pela possibilidade de irem além das
evidências, em uma relação com o objeto de estudo, em questão de forma aberta,
“antidualista e antireducionista”.
Neste sentido, esta proposta tem o processo de formação em seus aspectos
teórico-prático e metodológico, ou seja, no âmbito da formação política, técnica e
ética como tema principal, tendo de forma privilegiada algumas experiências do
Grupo MUDAR, enquanto base para reflexões e compreensão dos aspectos
intrínsecos aos processos instituintes da ES, organização que se apresenta com
projeto político-pedagógico diferenciado de visão de mundo e de sociedade.
Desta forma, acredita-se que tal processo possa contribuir significativamente
para com a melhoria da qualidade de vida das pessoas envolvidas direta e/ou
indiretamente nesta caminhada, e abre possibilidades de construção e legitimação
de um mundo melhor.
Entre as várias possibilidades de ação, algumas que colaboraram para o
alcance de determinado acúmulo de informações, para posterior análise
compreensiva, foram fazer um levantamento parcial da formação oferecida nos
espaços da Economia Solidária na experiência de Cuiabá-MT, principalmente nos
2 Parafraseando Leila Kaas, Empowerment, embora seja um termo utilizado pela língua inglesa
significando “dar poder” a alguém para realizar uma tarefa sem precisar da permissão de outras pessoas, é uma ação que denota doação/benevolência; o conceito de Empoderamento em Paulo Freire segue uma lógica diferente. Para o educador, a pessoa, grupo ou instituição empoderada é aquela que realiza, por si mesma, as mudanças e ações que a levam a evoluir e se fortalecer; pressupõem transformação (...). Implica conquista, avanço e superação por parte daqueles e daquelas que se empoderam (sujeito ativo do processo).
17
que integrante(s) do Grupo MUDAR tenham participado, e sistematizar algumas
contribuições significativas ocorridas em meio à coletividade durante os momentos
das reuniões do FEES/MT, do FBES, Encontros, formações e comercialização nas
Feiras de ES e durante a produção deste EES.
Para tanto, acompanhar o Grupo para compreender as mudanças, caso
houvessem, que a formação proposta e vivida tivesse, porventura, promovido, foi
fundamental para com o desejo de poder colaborar com a construção da história do
movimento em Cuiabá-MT com base em uma experiência concreta.
Percurso da Organização dos Capítulos
O caminho a ser trilhado por esta Dissertação está organizado em quatro
Capítulos que, apesar de distintos, se correlacionam, dialogam e se complementam,
tanto que por vezes algumas repetições sobre determinadas dimensões ou
categorias podem ocorrer.
Eles tecerão algumas considerações a respeito dos condicionantes históricos,
culturais e sociais, com argumentações nos campos teóricos e empíricos, com base
na dimensão do “olhar” do Grupo MUDAR sobre o processo de Formação que
participa dentro da dinâmica organizacional privilegiada pela ES no MT, concebendo
este como parte significativa neste processo de compreender a realidade.
Tomando todas estas considerações como ponto de partida, na primeira parte
estarão conceitos chave que ancoram nossa perspectiva de mundo, de homem, de
cultura, de sociedade e de conhecimento. Percebendo a indubitável relação
dialógica e antidualista na produção e reprodução das vidas, sem, no entanto,
buscar verdades, mas possibilidades do “estar sendo”.
Assim sendo, no primeiro Capítulo estarão algumas das contribuições de
Merleau-Ponty (1994), principalmente frente à compreensão da Fenomenologia,
enquanto Ciência e Metodologia de aproximação e compreensão da realidade
vivida; na compreensão de dimensões fundamentais como a visão - o “olhar” - de
mundo e do mundo, a partir da percepção na perspectiva de horizonte: “ver é
sempre ver de algum lugar”; a intersubjetividade e suas implicações nesta
experiência: o poder estesiológico; na postura antidualista: nem Empirismo nem
Intelectualismo e na impossibilidade de apreensão total da realidade: “o mundo é um
mundo de perspectivas”.
18
Nosso trabalho traz Paulo Freire para o diálogo, entre suas contribuições as
mais expressivas estarão nos dando a base necessária à compreensão da
importância da formação dialógica e dialética para a emancipação e o
empoderamento; do poder e da importância da inserção lúcida das pessoas em seu
processo de formação política e humana; na valorização da “palavra” enquanto
estratégia de retomada da consciência: antes, consciência para Freire; na utilização
das categorias que suleam3 a construção continuada e “inacabada” do ser e do
conhecimento: “inédito viável”, “situações-limites”, “empoderamento”, “ser mais” e a
importância da “imersão” e “emersão” enquanto processos contínuos que são, ou
não, desdobramento da praxes, da capacidade de engajamento político.
Utilizaremos como instrumento privilegiado as Histórias de Vida e a
Etnografia, na configuração da descrição densa de Clifford Geertz (1989). Esta foi
nossa ferramenta metodológica durante todo o percurso desta experiência. Também
nos deu suporte teórico crítico sobre o conceito de cultura, sua co-participação neste
empreendimento, juntamente com Merleau-Ponty e Freire, foi preciosa pela postura
aberta diante de determinados condicionantes.
Outros estudiosos, como Gutiérrez (1993) e Berger e Luckmann (1985),
também foram convidados a colaborar com o percurso de compreensão da realidade
pesquisada, como também pesquisadores que discutem a temática da Economia
Solidária no cenário brasileiro, como Zart (2004), Singer (2000) e Adams (2007).
E se tratando do tema que nos desafia sobre a questão de gênero que,
apesar de não aprofundarmos, será impossível não discutir, convidamos
pesquisadoras que têm orientação teórica crítica, que discutem a questão de
gênero, entre elas Louro (1997) e Del Priore (1997), além de outros materiais
organizados pelo Movimento dos Sem Terra (MST).
Alguns materiais produzidos pelo Fórum Brasileiro de Economia Solidária
(FBES), em conjunto com a Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) e
a Lei Estadual de Economia Solidária nº 8.936, de 17 de Julho de 2008, nos deram
suportes estatísticos e legais a respeito de algumas dimensões deste MS.
3 O termo “sulear” tem sido utilizado, de modo explícito, por Freire no livro Pedagogia da Esperança
(1994, p. 218-219). [...] Como contraponto ao “nortear”, cujo significado é a dependência do Sul em relação ao Norte, “sulear” significa o processo de autonomização desde o Sul, pelo protagonismo dos colonizados, na luta pela emancipação (STRECK et al., 2008, p. 396 - Dicionário Paulo Freire).
19
É importante que se compreenda o sentido fenomenologicamente pensado e
vivido desta pesquisa. Assim, a raiz metodológica ou o referencial metodológico, que
permeiam toda a nossa proposta, estarão também aqui a partir de elementos
essenciais que ajudarão na compreensão das condições sócio-culturais que levaram
a militante e pesquisadora, ou vice-versa, a privilegiar como dimensão social o MS
da ES em lugar de qualquer outra Organização Social.
Seguindo este raciocínio, o porquê de se verificar as experiências de um
Grupo de Mulheres em lugar de um Grupo Misto, ou ainda um formado somente por
homens; o Grupo MUDAR em um município como Cuiabá, que possui, segundo o
último mapeamento da ES, 66 EES (Brasil, 2006), só na zona urbana; enfim, afinal,
de onde a pesquisadora está falando.
Dizer das mulheres que compõem o Grupo é fundamental, inclusive pensando
em dar vida à “fala” delas foi que assumimos o viés fenomenológico, e é esta lente
que acompanha toda esta pesquisa. Assim propomos, enquanto desdobramento
deste segundo momento, de onde fala a pesquisadora, percorrer uma breve viagem
através das Histórias de Vida através da descrição densa, conforme Clifford Geertz
(1989), verificando o contexto social destas mulheres, onde moram e o que
produzem.
Buscando perceber como elas vêem o processo de formação do qual elas
participaram e como se organizam dentro da dinâmica do cotidiano do Movimento da
ES em Mato Grosso, nossa proposta é justamente tecer um diálogo a partir de
momentos ímpares vivenciados por integrantes do Grupo, tentando apreender o
“olhar” delas sobre este que estamos chamando de processo de formação política.
Em destaque serão tomadas, enquanto ponto de partida, as falas
significativas das e dos protagonistas desta experiência. No momento em que
falarmos da ES na experiência do Mato Grosso, a partir das vivências de integrantes
do Grupo MUDAR particularmente, mas não exclusivamente, o faremos a partir de
sistematizações construídas durante o percurso da militância e da pesquisa (2003-
2006).
Também será considerado o material produzido durante o período de 2007 a
2010, resultado de um trabalho realizado por nós, iniciado ainda durante a
Graduação, enquanto Bolsista PIBIC do Grupo de Pesquisa em Movimentos Sociais
e Educação (GPMSE).
20
Para além de todo este material, serão utilizados alguns depoimentos do
Grupo MUDAR, registrados durante os momentos já mencionados, momentos estes
onde a formação se confunde, por vezes, com a organização destas mulheres.
Nesta perspectiva, também é importante compartilhar o que entendemos por
ES a partir de leituras realizadas em alguns espaços de organização política deste
MS, com isso verificando quais são seus princípios suleadores, e breve panorama
em termos de Brasil, de Região Centro-Oeste, no Mato Grosso e mais precisamente
no município de Cuiabá que, por vezes, se confunde com a história da “Baixada
Cuiabana” e do próprio estado, pela sua trajetória de ação.
No segundo capítulo a discussão traz consigo um momento que
consideramos como o percurso inicial da pesquisa. Aqui será compartilhada parte da
trajetória de criação do Grupo MUDAR que, no primeiro capítulo, nos processos
metodológicos, já foi iniciada. O passeio pela história do Grupo e das mulheres que
o fazem será aqui destacado.
Nesta oportunidade também estarão algumas discussões breves, mas
provocativas, a respeito de Gênero. A intenção é fazer uma espécie de
problematização desta questão dentro da experiência da “Baixada Cuiabana”, com
base nas “leituras” e discussões que o Grupo vivenciou dentro do processo de
formação circulado dentro da ES.
A participação política e pedagógica dos EES, com seus limites e
possibilidades, se fez em situações como estas, bem como em outros vários
momentos significativos, momentos estes decisivos, que contribuíram com
discussões sobre vários aspectos tratados pelos coletivos da ES em âmbito
estadual, regional e nacional, e que foram registrados nesta oportunidade.
Assim sendo, estas discussões estarão organizadas no terceiro e quarto
capítulos, onde daremos espaço para algumas discussões e reflexões sobre
algumas sistematizações feitas durante reuniões, eventos diversos, como
Seminários e Conferências, além das Feiras de ES e da Agricultura Familiar (AF).
Estes são alguns dos espaços onde o Grupo MUDAR se fez presente.
No terceiro capítulo o problema estará em questão a partir de algumas
leituras e discussões sobre a história do movimento em nossa experiência (estadual)
e a situação desta PP em nível local e estadual. A experiência da “Baixada
Cuiabana” será compartilhada através da colaboração de um conjunto de pessoas
(EES, Assessorias e Gestores Públicos) que fazem parte da Comissão Provisória de
21
Reestruturação do Fórum Estadual de Economia Solidária do nosso estado
(CPR/FEES-MT).
No quarto capítulo serão compartilhadas as vivências e discussões realizadas
entre os processos de comercialização e formação. Estão presentes alguns
elementos que apontam este processo enquanto uma estratégia de organização dos
EES e, consequentemente, da ES em nossa região.
Nesta oportunidade, as idéias tecidas sobre alguns elementos destacados a
partir da compreensão de que são fundamentais para o Grupo MUDAR, fruto dos
momentos de comercialização e formação durante as Feiras Pantaneiras, estarão
aqui de forma descentralizada, ou seja, não necessariamente respeitando-se a
ordem cronológica de realização das Feiras em questão.
Também será feita a socialização de algumas discussões e reflexões sobre o
processo de organização da comercialização dos EES do estado e da Região
Centro-Oeste a partir da participação nos Seminários de Comercialização Solidária.
Neste ponto também teremos elementos que indicam que a organização e a
formação se “plasmam” como uma estratégia de fortalecimento destes coletivos, e o
Grupo MUDAR está muito próximo de todas estas complexas construções.
Estas reflexões estão no conjunto deste empreendimento, de forma mais ou
menos organizada, segundo este pretenso roteiro, ou seja, há alguns
questionamentos e percepções acerca de vários temas que compõem as bandeiras
de luta da ES em vários momentos, no decorrer dos quatro capítulos e nas nossas
considerações finais. Por isso, a percepção de idas e vindas no texto e contextos
pode acompanhar o leitor através de sua leitura.
As nossas considerações finais serão compartilhadas em uma perspectiva de
reflexão e continuidade. As dimensões do diálogo e de uma perspectiva aberta
diante das estruturas sociais darão o tom ao fechamento deste trabalho
pretensamente coletivo.
Estarão presentes elementos de discussões que, em certa medida, fazem um
balanço a respeito das vivências, angústias, desejos, sonhos/utopias e esperança
das pessoas envolvidas em torno da tentativa de se construir um outro mundo
possível. Nestes “diálogos e convergências”, entre desafios e oportunidades,
encerramos este trabalho, ao mesmo tempo em que um encontro nacional dos MS
acontece. O que nos brinda para um fechamento com uma perspectiva ou
provocação para a continuidade das lutas diárias.
22
Em anexo estarão alguns materiais que trazem um pouco das discussões
travadas no espaço do I Encontro Nacional de Diálogos e Convergências, como
também materiais outros que fazem parte de um conjunto importante da
sistematização da história da ES no Estado de Mato Grosso e na Região Centro-
Oeste.
São momentos de diálogos, de parcerias, de denúncia e anúncio, e de
organização e formação, que aconteceram com a participação direta ou indireta de
integrantes do Grupo MUDAR, por isso mesmo é também um material interessante
para ser visitado.
Espera-se que a leitura deste material possa abrir leques de possibilidades
acerca do tema tratado. A intenção deste trabalho foi de buscar, na medida do
possível, colaborar abrindo espaço para as vozes de pessoas que historicamente
foram silenciadas na sociedade do Capitalismo.
Abrem-se, nesta perspectiva, muitas possibilidades além das já mencionadas,
entre elas a de ouvir a “palavra” das pessoas que tentam tomar para si a história de
suas próprias vidas.
A legitimação destas práticas e lutas perpassa pelo crivo da Academia e,
apesar disso, acreditamos que o simples fato da ação em si ter nascido da fala e
interesse das/os protagonistas de sua própria história, por si só já é uma vitória, já é
legítima.
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1 REFERENCIAL TEÓRICO E METODOLÓGICO
1.1 ORIENTAÇÃO SULEADORA DA PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA DO
OBJETO
Como o fenômeno social em questão privilegia as experiências sócio-
históricas e culturais construídas coletivamente dentro do Movimento da ES, MS,
que possui por base e princípios as dimensões da Solidariedade, da Autogestão,
Cooperação e Sustentabilidade Econômica, reafirmamos que a postura
epistemológica diante destes dois aspectos, cogito e cogitatum, conteúdos e atos,
conhecimentos teóricos e experiência sensível, se darão a partir de um olhar
qualitativo fenomenológico.
O campo da vida social que ousamos aqui compartilhar acontece em uma
dinâmica complexa e contraditória, onde as objetivações das consciências e das
intencionalidades se dão na concretude da vida, e é na arena da vida onde me
percebo e sou percebido, em um movimento não linear, confuso por vezes e repleto
de contradições. Conforme Merleau-Ponty (1994, p. 26):
Construímos a percepção com o percebido. E, como o próprio percebido só é evidentemente acessível através da percepção, não compreendemos finalmente nem um nem outro. Estamos presos no mundo e não chegamos a nos destacar dele para passar à consciência do mundo.
Nesta perspectiva, “não é preciso perguntar-se se nós percebemos verdadeiramente
um mundo, é preciso dizer, ao contrário: o mundo é aquilo que nós percebemos”
(op. cit., p. 13-14). Assim, compreendendo que a Fenomenologia é a Ciência das
essências dos fenômenos, e que considera não as “coisas” em si, mas o processo
como elas se dão e o “olhar” subjetivo dos sujeitos em correlação ao referido
processo, foi o que nos convenceu ser esta a postura mais adequada a ser
assumida nesta compreensão de como algumas pessoas que participam da ES
estão tecendo sua relação com o mundo, com o outro e consigo mesmas, dentro
dos processos de legitimação deste “inédito viável4”.
4 O inédito viável não é uma simples junção de letras ou uma expressão idiomática sem sentido. É
uma palavra na acepção freireana mais rigorosa. Uma palavra-ação, portanto práxis, pois não há
24
O “olhar” que se lança aos processos como se dão, não somente no momento
presente, mas considerando-se toda uma trajetória de vida das/os envolvidas/os em
conjunto com o da construção dos mecanismos de superação das “situações-limites”
que se apresentam para estes grupos, é fundamental para esta percepção. Não nos
interessa explicar tal fenômeno e sim, perceber suas possibilidades e limites
enquanto um processo histórico.
É justamente esta dimensão que delineia toda nossa visão de processo
contínuo e infinito, pois “o inacabamento da fenomenologia e o seu andar incoativo
não são o signo de um fracasso, eles eram inevitáveis porque a fenomenologia tem
como tarefa revelar o mistério do mundo e o mistério da razão” (MERLEAU-PONTY,
ibid., p. 20).
Neste processo não descartamos as contribuições das investigações
qualitativas de cunho sócio-histórico, que conforme Bogdan e Bliken (1994, p. 11)
afirmam que:
... um campo que era anteriormente dominado pelas questões da mensuração, definições operacionais, variáveis, testes de hipóteses e estatísticas alargou-se para contemplar uma metodologia de investigação que enfatiza a descrição, a indução, a teoria fundamentada e o estudo das percepções pessoais. Designamos esta abordagem por Investigação Qualitativa.
Mesmo por que suas implicações estão nas teias dos fenômenos sociais mais
amplos, que são para os amantes da fenomenologia sua escola da vida no seio da
sociedade. Interessa-nos, como também interessa aos pesquisadores de cunho
sócio-histórico, as dimensões da história e da cultura, que considera a conduta
humana não apenas como produto da evolução biológica, graças à qual se formou o
tipo humano com todas as suas funções psicofisiológicas a ele inerentes, mas
também o produto do desenvolvimento histórico e cultural (VYGOTSKY, 1996).
Porém, a esta perspectiva epistemológica interessa avançar os limites da
descrição e compreensão dos processos, chegando à explicação dos fenômenos
observados, pois acreditamos que esta atitude também é uma das metas da
pesquisa, o que na fenomenologia não se persegue; a questão central, como já foi
dito, é como estes processos se dão.
palavra verdadeira que não seja práxis, daí, quer dizer a palavra verdadeira seja transformar o mundo (FREIRE, 1975, p. 91; 2008, p. 231).
25
Para tanto, a descrição densa, conforme Geertz (1989, p. 07) é uma das
ferramentas fundamentais para a compreensão empírica dos fatos:
A etnografia é uma descrição densa. O que o etnógrafo enfrenta, de fato – a não ser quando (como deve fazer, naturalmente) está seguindo as rotinas mais automatizadas de coletar dados – é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar. E isso é verdade em todos os níveis de atividade do seu trabalho de campo, mesmo o mais rotineiro: entrevistar informantes, observar rituais, deduzir os termos de parentesco, tratar as linhas de propriedade, fazer o senso doméstico... escrever seu diário. Fazer a etnografia é como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura de...”) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado.
O percurso trilhado para a construção deste empreendimento precisou
exercitar este “olhar” durante todo o seu processo de constituição. Nem por isso foi
simples. Muito pelo contrário, mas foi tomada enquanto procedimento metodológico
a descrição densa pelas possibilidades de aproximação à compreensão do
fenômeno em questão. Apostando em “construir uma leitura” da visão dos sujeitos
sobre seu processo de formação dentro do MS da ES.
Inclusive pensando que esta abordagem perpassa uma condição
instrumental-metodológica, “porque essa não é uma questão de métodos”, pois,
considerando o grande esforço de emersão e imersão à realidade pesquisada, bem
como junto aos seus fazedores, são estabelecidas relações e são estas que podem
fazer a diferença ao ato de desvelar a realidade.
Em nosso trabalho é importante dizer qual a definição de cultura e,
consequentemente, qual o papel que desempenha na vida dos homens, conceito
que nos acompanha; sendo assim, reportamo-nos mais uma vez a Geertz, quando
em sua obra lança duas idéias fundamentais, nas quais nos suleamos:
A primeira delas é que a cultura é melhor vista não como complexos de padrões concretos de comportamento – costumes, usos, tradições, feixes de hábitos –, como tem sido o caso até agora, mas como um conjunto de mecanismos de controle – planos, receitas, regras, instruções (o que os engenheiros de computação chamam de “programas”) – para governar o comportamento. A segunda idéia é que o homem é precisamente o animal mais desesperadamente dependente de tais mecanismos de controle, extragenéticos, fora da
26
pele, de tais programas culturais, para ordenar seu comportamento (GEERTZ, p. 32, 1989).
Ao buscar compreender como as integrantes do Grupo MUDAR veem seu
processo de formação dentro da dinâmica organizada pela ES e por elas mesmas é,
nesta perspectiva, impossível de se verificar de forma pré-determinada as diversas
falas, ações e projetos que as mesmas formulem a este respeito ou qualquer outro.
Sentimos a necessidade de ir um pouco mais além neste campo conceitual,
pelo fato de que a cultura está em nós como nós estamos nela. Ouve-se muito, em
meio às práticas sociais, que a cultura introjetada é uma força maior até que as
ideias, mas as ideologias estão nesta tanto quanto se é possível imaginar; é preciso,
por outro lado, que se perceba as armadilhas do discurso neoliberal, que incutem
ideias diversas sobre a “resistência” do povo, lembrando que:
Não haveria cultura nem história sem inovação, sem imaginação, sem curiosidade, sem liberdade sendo exercida ou sem liberdade pela qual, sendo negada, se luta. Não haveria cultura nem história sem risco, assumido ou não, quer dizer, risco de que o sujeito que o corre se acha mais ou menos consciente. Posso não saber agora que riscos corro, mas sei que, como presença no mundo, corro risco. É que o risco é um ingrediente necessário à mobilidade sem a qual na há cultura nem história. Daí a importância de uma educação que, em lugar de negar o risco, estimule mulheres e homens a assumi-lo. É assumindo o risco, sua inevitabilidade, que me preparo ou me torno apto a assumir este risco que me desafia agora e a que devo responder (FREIRE, 2000, p. 16).
Esta é uma construção coletiva de sentidos e significados culturais, é um
campo onde o que temos de subjetivo necessariamente dialoga com o objetivo e é
partindo deste processo dialógico e dialético que podemos construir ideias novas,
reelaborando as que já são ou estão legitimadas, desafiando-nos continuadamente a
ir além do que está posto.
Buscando verificar, neste movimento, possibilidades de abertura para os
diferentes sentidos e significados, uma possível superação da resistência frente aos
conjuntos polissêmicos dos processos sociais e culturais existentes. Assim sendo, a
abertura ao novo, ao diferente, ao diverso e criativo, à “inteligência coletiva”5, enfim,
aos infinitos modos de fazer-se no mundo e com o mundo podem ser respeitados.
5 Dimensão discutida por Paul Singer durante uma palestra feita no lançamento do Ponto de Cultura
assumido pela CUFA em MT.
27
Outra dimensão privilegiada pela postura fenomenológica versa sobre a
possibilidade de dar a devida valorização à voz, a “palavra” e ao “olhar” dos sujeitos
e de onde os mesmos estão falando. Merleau-Ponty (1994) diz que “ver é sempre
ver de algum lugar”, o ponto de partida é o “lugar” onde estamos (perspectiva), e a
visão (horizonte) é sempre parcial.
Isso nos remete à questão de que não apreendemos a totalidade da
realidade, a não ser em correspondência com os outros, em diálogo e correlação
apoiados pelos “olhares” dos demais que fazem parte do contexto: o “olhar do outro”
complementa o nosso e, consequentemente, nossa visão de mundo.
Por isso a impossibilidade de apreensão do real, inclusive é essa
impossibilidade que dá ao “olhar” um lugar de destaque, de único e singular. De
possibilidades de legitimação de uma vivência. Pode-se dizer, assim sendo, que
esta pesquisa, ora socializada, é uma das muitas visões possíveis acerca do
processo de Formação dentro da ES na experiência de Mato Grosso, a partir de
algumas experiências/vivências construídas na trajetória do Grupo MUDAR.
Neste sentido, considera o “olhar” de uma pesquisadora que também faz
parte de um EES urbano, como parte significativa na compreensão do fenômeno em
questão, apoiando-se e sendo apoio em um movimento simultâneo de empatia que
pôde contribuir sobremaneira com este processo de desvelar a realidade conforme a
contribuição da percepção de um Grupo de EES da capital do Mato Grosso.
É importante dizer que a fenomenologia é uma ciência que nos dá a
possibilidade do transcender as aparências das coisas mesmas, podendo assim
chegar à compreensão mais próxima da realidade. Quando baseamos toda nossa
percepção diante do fenômeno aqui apresentado a partir da postura dialética
fenomenológica, foi pela possibilidade de transcender as evidências, o que está
posto de forma pronta e acabada.
1.2 MEMÓRIAS DE UMA VIDA: DE ONDE FALA A PESQUISADORA
Considerando-se todas as construções conceituais acima colocadas e dando
continuidade à trajetória científica deste empreendimento, será possível
compreender, a partir das leituras a seguir, por quais caminhos a metodologia,
privilegiada em diálogo com a postura epistemológica, colaborou com o percurso
durante a pesquisa.
28
Traremos a trajetória militante da pesquisadora através de uma espécie de
memorial que pode oferecer subsídios para a compreensão dos percursos
metodológicos e de que maneira se apresenta a possibilidade de se ter uma leitura
significativa da realidade pesquisada.
Quando se pensa em trajetória de vida, a primeira coisa que se precisa definir
é por onde começar, e isso não é um processo simples. As experiências são muitas
e vividas em épocas distintas, as idas e vindas das lembranças se embaralham, não
permitindo uma reflexão que contemple de fato o vivido. É importante também que
se considere que este não é um processo que acontece isolado, ele é forjado em
meio à coletividade:
A priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa. Mas Maurice Halbwachs, nos anos 20-30, já havia sublinhado que a memória deve ser entendida também, ou sobretudo, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes (POLLACK, 1992, p. 02).
Ao organizar as ideias é possível este repensar as memórias, contribuindo
com o processo de fortalecimento e valorização de quem somos, fazendo com que
as identidades pessoal e profissional sejam melhor delineadas, e com isso a
possibilidade de se tornar pessoas mais seguras diante da realidade vivida.
Esta organização pode ser considerada já um ato de formação, de construção
de conhecimento, uma vez que perpassa pela reflexão, pois “estar em formação
implica um investimento pessoal, um trabalho livre e criativo sobre os percursos e os
projetos próprios, com vista à construção de uma identidade, que é também uma
identidade profissional” (NÓVOA, 1995, p. 25).
Nesta perspectiva, o refazer os caminhos da trajetória de vida através das
memórias nos leva por caminhos onde a experiência que foi vivida, mesmo pelo
movimento dinâmico que acontece nos períodos subsequentes entre os atos do
“imediatamente passado e o futuro imediato”, confunde-se com os que se estão
vivendo:
Cada presente funda definitivamente um ponto do tempo que solicita o reconhecimento de todos os outros, o objeto é visto portanto a partir de todos os tempos, assim como é visto de todas as partes e pelo mesmo meio, que é a estrutura de horizonte. O presente ainda conserva em suas mãos o passado imediato, sem pô-lo como objeto, e, como este retém da mesma maneira o passado imediato que o
29
precedeu, o tempo escoado é inteiramente retomado e apreendido no presente. O mesmo acontece com o futuro iminente que terá, ele também, seu horizonte de iminência. Mas com meu passado imediato tenho também o horizonte de futuro que o envolvia, tenho portanto o meu presente efetivo visto como futuro deste passado. Com o futuro iminente, tenho o horizonte de passado que o envolverá, tenho portanto o meu presente efetivo como passado deste futuro. Assim, graças ao duplo horizonte de retenção e de protensão, meu presente pode deixar de ser um presente de fato, logo arrastado e destruído pelo escoamento da duração, e tornar-se um ponto fixo e identificável em um tempo objetivo (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 106).
A complexidade deste movimento do tempo, conforme Merleau-Ponty, por
vezes impede uma reconstrução tal qual foi vivida. A correlação existente entre as
vivências e experiências significativas, considerando os fatores espaciais e
temporais, impede a retenção do vivido em sua plenitude.
Pensando nesta impossibilidade, pode-se compreender que a visão é sempre
parcial, não se apreende a totalidade de uma realidade, ela é sempre uma
correspondência interrelacionada com outros olhares, como que em um diálogo de
horizontes sempre aberto, indefinido e inconcluso.
Esta é uma dimensão forte que também influencia os processos da
constituição identitária, forjada no e pelo indivíduo e grupo social, e como tal precisa
ser considerada neste processo de construção pessoal e profissional, onde os
processos formativos possuem papel fundamental:
A formação não se constrói por acumulação (de cursos, de conhecimentos ou de técnicas), mas sim através de um trabalho de reflexividade crítica sobre as práticas e de (re)construção permanente de uma identidade pessoal. Por isso é tão importante investir a pessoa e dar um estatuto ao saber da experiência (NÓVOA, 1995, p.25).
Partindo deste pressuposto, que propõe o recorte das memórias, do “lugar de
onde fala”, ou de “onde vem” a pesquisadora e militante, ou vice-versa. Sendo
assim, acredita-se que é a partir do momento em que se interessa pela vida em seus
processos de produção, ou seja, pela vida comunitária e os processos de formação
como instrumento de emancipação e ressignificação de identidades, que começa
toda esta história de pertença:
A identidade não é um dado adquirido, não é uma propriedade, não é um produto. A identidade é um lugar de lutas e conflitos, é um
30
espaço de construção de maneiras de ser e de estar na profissão. (...) A construção de identidades passa sempre por um processo complexo graças ao qual cada um se apropria do sentido da sua história pessoal e profissional (DIAMOND, 1991). É um processo que necessita de tempo. Um tempo para refazer identidades, para acomodar inovações, para assimilar mudanças (NÓVOA, 1995, p. 16).
Esta também é uma estratégia de buscar, nas memórias de uma vida,
elementos materiais e imateriais suficientes para subsidiar determinada
emersão/imersão à realidade vivida, em diálogo com a teoria, e desta forma poder
colaborar efetivamente para com o desvelar do que está posto.
Nesta perspectiva, inicia-se em 2003 nossa caminhada, onde já formada, com
o 2º Grau em Magistério, no 2º casamento e com 02 filhos, na época um com 13 e a
outra de 03 anos, buscando dar sentido mais propositivo, criativo e prático no
sentido de práxis para a vida de dona de casa, aceito o convite da Presidente da
Associação de Mulheres do Bairro onde resido para lecionar aulas a duas turmas
com 20 alunos, na Alfabetização de Jovens e Adultos (EJA), como voluntária no
bairro onde morava, em uma comunidade localizada na periferia de Cuiabá, no
Bairro Nova Esperança I.
Há de se dizer um pouco também sobre esta comunidade, pois dela há muito
em cada pessoa que trabalha, estuda, enfim, que lá convive. Inclusive pelo fato de
considerarmos “o lugar” como ponto de partida para se fazer toda uma leitura de
mundo. Este lugar diz respeito também ao contexto, por isso a relevância de
descrever a Comunidade onde a pesquisadora estava inserida. Guardaremos para
tanto uma parte deste empreendimento, para a devida descrição.
O cenário político no momento era de efervescência para os MS, pois pela
primeira vez um representante legítimo do povo, um operário, havia sido eleito para
governar o país. Este foi o primeiro ano do mandato do Presidente Lula e, entre as
muitas medidas e programas lançados, o FOME ZERO foi um que se destacou por
ter em suas metas sociais o slogan de “ensinar as pessoas a pescarem e não
somente dar o peixe”.
Vislumbra-se nesta proposta uma alternativa viável de enfrentamento das
dificuldades de vida das pessoas que sobrevivem com quase nada, uma
possibilidade de renda e de acesso aos bens culturais - materiais e imateriais - e
sociais, enfim, da possibilidade de melhoria da qualidade de vida das pessoas.
31
Este, com certeza, foi um marco, considerado um divisor de águas, pois de
uma vida antes sem perspectivas, sem muitos sonhos ou possibilidades, nasce o
desejo de buscar algo a mais, o “olhar” já era outro sobre os processos de
construção da própria vida e realidade. O ponto de partida foi o da situação como ela
se apresentava, uma vida sem estímulos, oportunidades, meios ou caminhos que
pudessem de fato conduzir a fatos significativos, momentos de realizações
emancipatórias.
Por realizações emancipatórias compreendemos estar em um movimento
constante de construção em conjunto com outras pessoas que anseiam por uma
liberdade negada, um coletivo que comunga de um intenso desejo de se ver e ver os
outros bem, com uma vida digna, com respeito à biodiversidade, às mulheres, às
questões de gênero, às comunidades campesinas, enfim, aos “diferentes” dentro
das diversidades, com perspectivas de melhoria da qualidade de vida, de maneira
propositiva e participativa:
Homens e mulheres, ao longo da história, vimo-nos tornando animais deveras especiais: inventamos a possibilidade de nos libertar na medida em que nos tornamos capazes de nos perceber como seres inconclusos, limitados, condicionados, históricos. Percebendo, sobretudo, também, que a pura percepção da inconclusão, da limitação, da possibilidade não basta. É preciso juntar a ela a luta política pela transformação do mundo. A libertação dos indivíduos só ganha profunda significação quando se alcança a transformação da sociedade (FREIRE, 1993, p. 100).
Este “olhar” diferenciado, crítico, possibilitou a percepção de como as coisas
no mundo são todas engendradas por teias de significações. Assim, a vida que mais
parecia um todo sem significados, um amontoado de acontecimentos desconexos e
sem sentido, depois da inserção lúcida na realidade vivida, através da participação
ativa junto com outras pessoas que também não se sabiam, não se conheciam, foi
transformada.
Em meio a estes processos de construção pessoal/individual e
coletiva/comunitária percebemos o quanto estas dimensões estão inexoravelmente
correlacionadas ao exercício pleno da liberdade, sendo esta condição sine qua non
para este processo de “fazimento”, na verdade, este só pode se dar se houver
aquela:
32
É por isso que a nossa liberdade não deve ser procurada nas discussões insinceras em que se afrontam um estilo de vida que não queremos pôr em questão e circunstâncias que nos sugerem um outro estilo de vida: a escolha verdadeira é a escolha de nosso caráter inteiro e de nossa maneira de ser no mundo. Mas ou esta escolha total nunca se pronuncia, ela é o surgimento silencioso de nosso ser no mundo, e então não se vê em que sentido ela poderia ser dita nossa, essa liberdade desliza sobre si mesma e é o equivalente de um destino – ou então a escolha que fazemos de nós mesmos é verdadeiramente uma escolha, uma conversão de nossa existência, mas então ela supõe uma aquisição prévia que ela se aplica a modificar e funda uma nova tradição, de forma que precisamos perguntar-nos se o arrancamento perpétuo pelo qual no início nós definimos a liberdade não é simplesmente o aspecto negativo de nosso engajamento universal em um mundo, se nossa indiferença em relação a cada coisa determinada não exprime simplesmente nosso investimento em todas, se a liberdade inteiramente pronta da qual partimos não se reduz a um poder de iniciativa que não poderia transformar-se em fazer sem retomar alguma proposição do mundo, e se enfim a liberdade concreta e efetiva não está nesta troca (...). Portanto, precisamos retomar a análise da Sinn-Gebung e mostrar como ela pode ser ao mesmo tempo centrífuga e centrípeta, já que está estabelecido que não existe liberdade sem campo (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 587-588).
Não era possível esta percepção da liberdade naquela situação. Nossas
escolhas eram circunscritas ao mundo dos cuidados de casa, dos filhos e do marido,
sem muito relacionamento com a sociedade como um todo. Por isso a “disposição
para” não aconteceu assim rápido, de uma só vez.
O movimento “centrífugo e centrípeto”, as relações entre o “eu“ e o “mundo”,
de dentro para fora e de fora para dentro acontecia como em convulsões
descontroladas. Havia sim todo um movimento que despertava sentimentos e
sensações incompreensíveis, mas que foram fundamentais para começar a
perceber as “coisas” de forma diferenciada.
Ainda assim, o ato de aceitar o desafio foi mais percebido como uma
possibilidade de sair de um estado de apatia ou da “mesmice”, que um passo de
liberdade. Mesmo porque tal atitude me trouxe muitos outros desafios: teve este um
espaço considerável do meu tempo, que precisaria conviver com os demais
cuidados domésticos costumeiros e isso, consequentemente, abalou as estruturas
de poder frente ao trabalho dentro de casa, colocando em xeque-mate a relação
homem versus mulher.
Diante desta situação, e considerando todo o movimento “centrífugo e
centrípeto” entre o meu “eu” e este “mundo”, amplia-se ainda mais nosso interesse
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pelas construções coletivas, o que nos convenceu da necessidade de “olhar” mais
detidamente sobre questões pertinentes para a vida das mulheres, de forma mais
ampla às relações de gênero dentro destes emaranhados sociais, culturais e
políticos.
O processo desencadeado a partir das oportunidades enquanto professora
voluntária, de unir-me às/aos outras/os tantas/os que se interessaram pela idéia de
“ensinar a pescar”, foi aos poucos exigindo mais e mais a participação e, por
conseguinte, o engajamento político, até mesmo porque havia muitas outras
questões se abrindo, como a questão da formação e a questão das mulheres.
Este processo foi o início de todo um movimento que posteriormente culminou
com a efetiva constatação da situação de exploração e violência doméstica à qual
vinha sendo submetida já por algum tempo. E é interessante hoje poder refletir sobre
como o movimento de emersão/imersão da situação concreta de vida que funcionou,
e funciona, na prática, como dinamizador para o enfrentamento necessário através
do efetivo engajamento:
Se a mudança faz parte necessária da experiência cultural, fora da qual não somos, o que se impõe a nós é tentar entendê-la na ou nas suas razões de ser. Para aceitá-la ou negá-la devemos compreendê-la, sabendo que, se não somos puro objeto seu, ela não é tampouco o resultado de decisões voluntaristas de pessoas ou de grupos. Isto significa, sem dúvida, que, em face das mudanças de compreensão, de comportamento, de gosto, de negação de valores ontem respeitados, nem podemos simples-mente nos acomodar, nem também nos insurgir de maneira puramente emocional. É neste sentido que uma educação crítica, radical, não pode jamais prescindir da percepção lúcida da mudança que inclusive revela a presença interveniente do ser humano no mundo (FREIRE, 2000, p. 17).
Com esta reflexão pode-se dizer que o ato de emergir e imergir da realidade
vivida é um exercício que continuadamente precisa ser feito. Não houve nesta
trajetória momentos totais de uma e de outra, estes “estados” de “consciência” e
“conscientização” se deram mais ou menos de forma contínua. Tanto que, por
vezes, me via em situação de insegurança doméstica e ficava sem reação
momentânea, em momentos outros tomava posse da vida novamente, e assim foi
continuadamente.
Ao caminhar nas memórias desta experiência/vivência, outra idéia que se
associava com a de “ensinar a pescar” era a “Fome de Beleza”. Sim, era importante
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que as pessoas, as famílias soubessem “pescar” para saciar a fome que sentiam, ou
seja, garantir sua sobrevivência, mas a proposta era (é) bem maior do que viver para
dar conta das necessidades básicas que o capital nos permitia(e).
A fome de Beleza significava, e ainda significa no imaginário da maioria das
pessoas co-partícipes desta história, que neste movimento a questão colocada era
mais do que saciar tais necessidades. Esse conceito era o diferencial do Programa,
é a busca pelo que Paulo Freire chama de condição ontológica do homem de “ser
mais”, esse era um chamamento às pessoas para virem tomar ciência de que
poderiam ser mais do que lhes disseram a vida toda que podiam ser:
É por estarmos sendo assim que vimos nos vocacionando para a humanização e que temos, na desumanização, fato concreto na história, a distorção da vocação. Jamais, porém, outra vocação humana. Nem uma nem outra (...) são destinos certos, dado dado, sina ou fato. Por isso mesmo é que uma é vocação e outra, distorção da vocação (FREIRE, 1994, p. 99).
É essa vocação que o tempo todo ecoou dentro da pesquisadora e militante,
como um chamamento latente, e que acredita ser necessário inundar o ser, a mente
e o corpo das pessoas que buscam a felicidade neste mundo.
A partir desta postura diante das complexas teias de ressignificação da vida
como um todo intensificou-se o desenhar de um “olhar” diferenciado por sobre sua
realidade. Complementamos esta reflexão dizendo do sentido antropológico que
precisamos assumir diante do fenômeno da vida humana onde:
A desumanização, que não se verifica apenas nos que têm sua humanidade roubada, mas também, ainda que de forma diferente, nos que a roubam, é distorção da vocação do ser mais. É distorção possível na história, mas não vocação histórica. Na verdade, se admitíssemos que a desumanização é vocação histórica dos homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de total desespero (FREIRE, 1993, p. 30).
A transformação só pode acontecer se cada uma e cada um tomar para si
esta responsabilidade, que só é possível a partir da participação efetiva em espaços
de discussão e reflexão, de estudo e pesquisa. Através de uma centena, ou mais, de
experiências problematizadas pelos coletivos, pela comunidade de forma contínua.
Dentro desta perspectiva, a “inteligência coletiva” foi uma dimensão presente
que se colocou em diversos momentos como diferenciadora no processo político
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pedagógico que se deu, de forma intencional, através da mobilização orientada pelo
desejo e interesse de produzir uma relação de vida diferente da que está dada em
determinados contextos.
No caso do Mato Grosso, estes espaços comumente eram e são organizados
por algumas Instituições como a UNEMAT, a UFMT, o SEBRAE, outros MS do
Campo e da Cidade (Associações, Cooperativas, Redes), o CONSEA e CONSADs,
a Rede Cidadã (RECID), as Associações de Mulheres, Sindicatos, a Igreja (CEBIS),
juntamente com outras/os parceiras/os e por alguns EES.
A maioria dos encontros eram mais que momentos de trocas, eram espaços
onde havia conhecimentos sendo construídos por intercâmbios de vivências
significativas. Durante estes momentos, um hábito, fortalecido pela influência da
formação inicial em docência, foi o de sistematizar os Encontros e reuniões diversas,
tanto organizadas pelo FEES quanto pela REMSOL.
Através do registro dos conhecimentos que por entre as discussões
circulavam, as falas significativas, as construções subjetivas e intersubjetivas do
coletivo iam dialogando com a nossa, e disso ia sendo tecida toda uma história de
luta e resistência que perpassava a vida de cada uma e cada um, e “é precisamente
este “conhecimento” que constitui o tecido de significados sem o qual nenhuma
sociedade poderia existir” (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 30).
Desta forma foi sendo construída toda uma intensa relação de pertença, de
empatia, onde, para além da apropriação das falas (discursos), havia tentativas reais
de aproximação do bem viver de forma justa e solidária no seio de uma sociedade
que é manipulada por valores tão antagônicos a estes.
Neste ponto, a emersão da militante, com postura de pesquisadora, era uma
só, que se “plasmara” na praxe do cotidiano de um fazer reflexivo e repleto de
contradições. O percebido durante todo este processo gestacional é que o interesse
do coletivo estava delineando, efetivamente, o interesse em se construir uma nova
forma de se estabelecer relação com o outro e com a natureza:
Perceber não é experimentar um sem-número de impressões que trariam consigo recordações capazes de completá-las, é ver jorrar de uma constelação de dados um sentido imanente sem o qual nenhum apelo às recordações seria possível. Recordar-se não é trazer ao olhar da consciência um quadro do passado subsistente em si, é enveredar no horizonte do passado e pouco a pouco desenvolver suas perspectivas encaixadas, até que as experiências que ele
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resume sejam como que vividas novamente em seu lugar temporal. Perceber não é recordar-se (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 47-48).
As percepções foram sendo tecidas em meio às discussões e reflexões junto
aos coletivos e a cada encontro de formação a inserção da militante pesquisadora
nos MS era mais forte. Em 2004 foi possível começar a devolver para o grupo ao
qual pertencia tudo o que estava sendo discutido nestes espaços de formação, pois
acreditava ser importante, era e é seu compromisso social esta devolutiva.
Neste momento estamos falando das turmas de EJA que eram
acompanhadas por nós, de início como voluntária e, logo após, pelo Projeto do
Letração (SEDUC). Em seguida, dando continuidade ao processo de organização
deste coletivo, foi possível articular um Curso de Formação em Cidadania, Auto
Estima e Gênero com o Grupo do NUEPOM/UFMT para as mulheres desse Grupo
de alunas/os.
Ao final do Curso algumas mulheres se reuniram e, animadas, decidiram dar
continuidade à organização, ali iniciada, pelo processo de formação política e, então,
nasceu o Grupo MUDAR – Mulheres Unidas Determinadas na Ação pelo
Reconhecimento.
Esta experiência na EJA precisa ser aqui destacada, pois foi fundamental
para toda esta caminhada. O aprendizado compartilhado de vidas, sofrimento, fome,
medo, mas também de conquistas, de resistência e superação, de alegria, de
vontade de viver, foram e ainda são determinantes.
É emocionante pensar sobre as contribuições daquelas pessoas para a
construção identitária do coletivo e de cada uma em particular, de forma significativa,
e é essa a possibilidade que pode se apresentar enquanto potencialmente
transformadora:
Tem de ser regulação no campo da ação cotidiana, do reconhecimento da “outreidade”, isto é, do “outro” como portador de direitos advindos do seu status como membro da espécie humana, seres com identidade e destino comum, intra-históricos, que definem interdependentemente um estatuto que não está dado pela natureza ou por uma “lei natural” (PASSOS, 1994, p. 105).
Neste processo de engajamento político e social, ver-se enquanto
protagonistas não foi um processo estanque da consciência das dificuldades que a
realidade traduzia na imensa distância existente entre o querer e o fazer. Para
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aquele coletivo que nascia de um desejo, ou de um sonho de “ser mais”, lutar contra
tal realidade, que se apresentava como pronta e acabada, era quase impossível.
Porém, com tudo isso efervescendo em suas mentes e corações, em 2004
começa a participação na ES. Dentro desta havia a articulação das Feiras para
comercialização dos produtos; então, o Grupo MUDAR, que é composto por 08 (oito)
Mulheres, na sua maioria mães chefes de família, sempre que possível expunha e
comercializava seus produtos.
O Grupo produz diversos trabalhos artesanais além da produção de bolos e
biscoitos. Nesta pesquisa será dada a palavra a estas mulheres, em um momento
particular, mesmo porque elas são as protagonistas desta história.
Em 2006 uma conquista pessoal e profissional foi a aprovação no vestibular
da UFMT no Curso de Pedagogia. Logo após o primeiro semestre, já como Bolsista
Trabalho do Grupo de Pesquisa em Movimentos Sociais e Educação (GPMSE), a
primeira atividade foi junto à equipe do SEMIEDU 2006, coordenada pelo Professor
Luiz Augusto Passos.
Nesta oportunidade, já com a participação ativa dentro dos processos
dialógicos de articulação e mobilização dentro do MS da ES, foi possível realizar a I
Feira Estadual de Economia Solidária em parceria com o GPMSE/UFMT durante o
Seminário de Educação - SEMIEDU/2006.
Assim, se considera esta participação na academia uma oportunidade de
poder valorizar toda uma história de luta, partindo do Grupo MUDAR e indo além,
podendo socializar toda uma discussão: conquistas, avanços e retrocessos de um
coletivo maior.
Perceber também alguns desafios que podem ser considerados fundamentais
para a compreensão de determinados processos sociais e culturais destas
experiências, bem como de legitimação das ações que vêm sendo forjadas por estas
pessoas em MT.
É nesta perspectiva que se considera esta uma contribuição de nível
Estadual, pois a participação militante e pesquisadora em vários espaços e
momentos desta construção, seja em âmbito local, estadual, regional, nacional ou
internacional, formou uma grande teia de sentidos e significados que, por ter sido
construída junto com um grande coletivo, de forma representativa, acredita-se que
possa refletir, ao menos em certa medida, uma realidade parcial deste MS no
Estado de Mato Grosso frente às discussões referentes à ES.
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Lembrando que não há aqui a pretensão de apresentar uma discussão morta,
fechada e determinada sobre esta história na experiência do Mato Grosso. Mesmo
porque nossa postura privilegia a polissemia dos variados sentidos que esta
experiência pode provocar.
A ideia é compartilhar um dos possíveis olhares sobre este processo, mesmo
porque sua legitimação necessita da ação e das contribuições de todas e todos.
Esta é tão somente uma das muitas leituras que podem ser compartilhadas.
Retomando nossa intenção primeira, ensaia-se precisar o fenômeno em
questão entre os momentos que a pesquisadora militante, sendo integrante de um
EES, do Grupo MUDAR, pôde participar direta e indiretamente das ações formativas
em variados momentos, bem como de processos de articulação e mobilização para
construção de PP.
Assim sendo, o material que será compartilhado com olhar dialético-
fenomenológico são algumas vivências que ocorreram dentro da experiência da ES
em determinados momentos onde, ora a nível local e estadual, e ora a nível regional
e nacional, o Grupo MUDAR pôde se fazer presente através de suas integrantes.
No repertório de momentos significativos será feito um esforço de trazer
elementos para reflexão desde a sua criação, na participação de alguns Encontros,
Feiras, Reuniões, Seminários e Conferências em que o Mato Grosso se fez presente
a partir da representação deste Grupo, que foram sistematizados e que serviram de
aportes suleadores para o trabalho de Educação Popular que foi feito em
momentos específicos:
O exercício de pensar o tempo todo, de pensar a técnica, de pensar o conhecimento enquanto se conhece, o para quê, o como, o em favor de quê, de quem, o contra quê, o contra quem, são exigências fundamentais de uma educação democrática à altura dos desafios do nosso tempo (FREIRE, 2000, p. 46).
Nesta perspectiva desafiadora, a metodologia assumida busca privilegiar
vivências e construções objetivas e subjetivas em um constante buscar exercitar o
distanciamento que é necessário neste processo. A inserção militante da
pesquisadora, com este cuidado diante do fenômeno, foi uma das condições que, de
forma privilegiada, colaborou com a aproximação adequada para as leituras
realizadas.
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Este não foi um processo simples, ora com avanços ora com retrocessos, na
medida do possível, pôde colaborar para com a necessária aproximação do objeto
de pesquisa, oferecendo suporte para uma compreensão o mais legítima possível de
alguns aspectos da complexa teia de sentidos, significados e pertencimentos, ou
não, que as vivências das pessoas envolvidas neste processo produziram,
produzem e reproduzem.
Por este motivo este também foi o seu maior desafio, pois falar de algo assim
tão próximo, o cuidado para não interferir significativamente nas interpretações, de
maneira a alterar algumas dimensões, mesmo que redobrado, foi quase impossível.
Em contrapartida, a postura aberta diante das complexas nuances que permeiam as
relações interpessoais nesta construção pretensamente coletiva foi fundamental.
Enfim, é partindo desta dinâmica plural e polissêmica que se tenciona “olhar”
desde o lugar social que pertence à pesquisadora, do chão de onde fala, da
identidade que a inscreve e que é inscrita continuadamente, compreendendo
fenomenologicamente como este processo político pedagógico contribuiu, ou não,
com a formação política, técnica e ética deste segmento na experiência de Cuiabá-
MT, o que se configura em uma possibilidade de legitimar o fazer empírico de mãos
dadas com a teoria em meio à produção de VIDAS.
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2 A PESQUISA
2.1 PERCURSOS INICIAIS DA PESQUISA
É importante destacar que o MS da ES é considerado um espaço de
convergência de vários outros MS, que buscam incessantemente pela efetivação
dos Direitos Humanos dos povos, das mulheres e dos homens que, historicamente,
foram negados e silenciados pelo Sistema Capitalista.
Nesta perspectiva, ao longo do tempo ela foi se encorpando e, na medida do
possível, se delineando enquanto mais um espaço político pedagógico de
resistência de grupos diversos, onde a denúncia, o planejamento, a organização, a
construção e reconstrução, a afirmação e a reafirmação, com proposição
diferenciada de relações e de sociedade frente ao que está posto.
Podemos apontar alguns dos MS que, por vezes, somam sua luta junto à ES
sem, no entanto, perderem suas identidades próprias: o Movimento dos Sem Terra
(MST), o Movimento pela Agroecologia, Movimento dos Atingidos por Barragens
(MAB), Movimento das Mulheres Campesinas (MMC), Associações de Mulheres, o
Movimento Negro, o Movimento Indígena, o Movimento de Gays, Lésbicas,
Bissexuais e Transexuais (GLBT), a luta pela Educação do e no Campo, a Educação
de Jovens e Adultos (EJA), entre outros.
Todos estes espaços políticos possuem suas bandeiras de luta definidas que
se integraram às da ES pelo fato de que, de uma forma ou de outra, os princípios
suleadores desta organização vão ao encontro de cada uma delas.
Cada um destes MS possui sua identidade própria, mas uma dimensão é
comum entre todos: a luta pelo direito a uma vida digna, com a devida valorização
das diferenças nas diversidades, preservação do meio ambiente e o respeito às
especificidades de cada povo, região e cultura. Por isso é que a ES vem se tornando
gradativamente um espaço de interlocução dos diferentes atores que pensam e
lutam por um mundo diferente.
O Grupo MUDAR pode-se dizer que é fruto destas conexões, lembrando o
contexto e lugar de onde vem o Grupo que nasceu de uma articulação por um
espaço de educação, da EJA e de discussões de um grupo de mulheres que
resolveram se juntar para enfrentar situações semelhantes de vulnerabilidade
econômica e social.
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Para dar conta destas realidades, a metodologia de enfrentamento e
resistência aos processos de exclusão e expropriação da dinâmica mercadológica,
assumida nesta proposta, se organiza através da Educação Popular, com a
constante e árdua busca pela re-significação do mundo e de mundo, partindo do
lugar onde estamos, a começar pela pessoa, ou seja, por mim e minha família.
Acreditamos que o Sistema Capitalista promoveu e promove constantemente
um movimento de abdução de identidades. Ele, através de seus aparelhos
ideológicos, construiu e legitima toda uma identidade e cultura que lhe serve e
alimenta como que automaticamente. A estratégia é o individualizar as relações,
supervalorizar o global em detrimento do local e estimular a competição.
Partindo deste pressuposto, entendemos que para o enfrentamento de tais
condições “(...) um certo saber (é) absolutamente indispensável inclusive a quem
reacionariamente pretende imobilizar a História. Refiro-me à constatação de que
mudar é difícil mas é possível” (FREIRE, 2000, p. 42). Em outras palavras, os MS,
com toda afirmação identitária e cultural, precisam repensar sua atuação e talvez
percebam que sozinhos não darão conta da complexidade existente nestes espaços.
As várias dimensões defendidas pela ES expressam, de forma dialogada
entre si e com a co-participação dos sujeitos que a estão inscrevendo durante o
processo de sua produção, justamente algumas dimensões que podem contribuir
para com o enfrentamento político pedagógico necessário.
O resultado de toda esta construção/proposta se desdobra em dez princípios
que tentam, minimamente, se aproximar do que as necessidades da vida apontam
enquanto direitos inalienáveis do bem viver em sociedade.
Estes princípios são a autogestão, a democracia, a cooperação, a
centralidade do ser humano, a valorização da diversidade, a emancipação, a
valorização do saber local, a valorização da aprendizagem e da formação
permanente, a justiça social na produção e o cuidado com o meio ambiente. Destas
dimensões as principais características são a autogestão, a solidariedade, a
cooperação e a viabilidade econômica (BRASIL, 2007).
Este conjunto de dimensões amplas convive em cenários caóticos e
contraditórios. As mesmas formam as bandeiras de lutas da ES; sua amplitude e
densidade contemplam, em certa medida, as lutas e anseios de muitos outros MS
que, integrando forças entre si, pensam e repensam, definem e redefinem,
constantemente, conceitos e práticas em busca da construção e efetivação de PP
42
que correspondam às reivindicações dos coletivos que estão tentando fazer uma
sociedade diferente da que está posta, com mais justiça social e solidária.
Talvez esta seja uma utopia demasiado distante da realidade de muitos
grupos do campo e da cidade que investem seu tempo e esperança nesta idéia, mas
ao mesmo tempo, como o próprio Grupo MUDAR, que resistem em mentes e
corações, trabalham e acompanham este movimento, cada um da forma como pode,
ou como a situação concreta de vida lhes permite este acompanhar:
É difícil esta situação de não ter muitos meios de estar presente nas reuniões, nas oficinas, nas feiras e até no Centro de Comercialização, mas o que mais nos deixa triste é por causa disso mesmo às vezes sermos apontadas como mulheres ou um grupo que não querem participar... a gente tem filhos pequenos que não temos com quem deixar, nossa produção não é suficiente para manter a gente e nossa família, daí tirar dinheiro para pagar ônibus, comprar às vezes água ou um lanche prás crianças... fica impossível. Mesmo assim somos o grupo MUDAR, e quem pode participar, participa e traz as notícias do que tá acontecendo e assim a gente fica informado, mesmo não podendo fazer muito, mas estamos ouvindo, vendo e esperamos uma hora poder fazer mais para alcançarmos nossas metas de viver melhor produzindo do jeito que a gente escolheu produzir... que é juntas (CN, Grupo MUDAR).
Pensar nesta mobilização encarnada no desejo de estar “juntas” é o que
percebemos enquanto possibilidade de força propulsora que pode mover a
engrenagem motriz deste MS, e isso nos mostra, ao menos parcialmente, que os
limites são muitos diante desta realidade “sem escolhas” que o capitalismo impõe a
estas pessoas que desejam fazer diferente sua relação com este mundo.
Ao passo que, paralelamente, também demonstra certa reação no
enfrentamento, onde caminha outra força, a da intenção encarnada no poder do
desejo que nasceu, ou que já existia, nestas mulheres, de quererem uma outra
realidade para si, que não esta, que há muito tempo já não lhes serve mais.
2.2 GRUPO MUDAR: PASSEIO PELA HISTÓRIA DO GRUPO E DAS MULHERES
QUE O FAZEM
O Grupo MUDAR nasceu no início de 2004, ao final de uma capacitação
oferecida pela UFMT através do Grupo do NUEPOM – Núcleo de Estudos e
Pesquisas para a Organização das Mulheres, no Bairro Nova Esperança I, Cuiabá-
MT.
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Esta capacitação foi feita por um grupo de estudantes do Curso de Serviço
Social, que ministrou várias oficinas e palestras com algumas mulheres desta
comunidade, sendo que, ao final, a maioria delas se reuniu e decidiram criar o Grupo
MUDAR. A partir de então o trabalho de Formação e Organização do Grupo não
parou mais.
Após este momento inicial de formação política houve uma mobilização
comunitária para a alfabetização em Educação de Jovens e Adultos (EJA) de 20
(vinte) pessoas, entre mulheres e homens, adolescentes, adultos e idosos. O público
maior era feminino, havia 16 (dezesseis) mulheres.
Hoje a maior parte das integrantes do Grupo MUDAR (05 mulheres) ainda
vive no Bairro Nova Esperança I, comunidade situada na região Sul e a outra parte
(03 mulheres) reside na região do grande CPA (ambas são periferias de Cuiabá-
MT). São dois extremos que dificultam, mas não inviabilizam sua mobilização,
comunicação, produção e formação.
Antes de formarem o Grupo viviam da renda dos maridos e as mães chefe de
família trabalhavam como empregadas domésticas, babás, ou mexiam com vendas
de produtos diversos (perfumes, roupa íntima). Algumas faziam tudo isso ao mesmo
tempo e ainda lavavam e passavam roupa “para fora”.
O Bairro Nova Esperança I é o resultado do desmembramento de uma grande
fazenda que existia nesta localidade há mais ou menos 40 anos. Os lotes foram
comercializados e assim, aos poucos, o lugar foi ganhando vida. Por não ter sido
uma iniciativa pública, possui todos os problemas estruturais que uma ocupação não
projetada pode ter.
A maior deficiência está na infraestrutura sanitária, pois não possui rede de
tratamento de esgoto. Outros desafios comunitários estão na ausência de espaços
de lazer para os jovens e há somente uma Escola Pública, que atende as séries
iniciais, e EJA para atender a população do próprio bairro e de outras cinco
comunidades no entorno.
Não há organizações comuns em diversas comunidades da capital, como
Clube de Mães, de Idosos, entre outros. O atendimento ambulatório é precário. A
Igreja ainda é o local mais visitado, o único meio de lazer e de estar em contato
comunitário entre os moradores. Este quadro foi o que mais estimulou as mulheres a
se unirem em prol de algo melhor.
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Na única escola pública da comunidade, a modalidade de EJA foi fruto da
mobilização e articulação de muitas integrantes do grupo, que se organizaram em
torno da necessidade dos adultos de voltarem a estudar. A partir de então
perceberam que realmente a união poderia fazer a diferença.
O Grupo começou a participar, desde então, com estas mulheres em espaços
de formação e organização fomentados pela ES. A participação nas reuniões do
FEES foi significativa a partir da presença de uma representante, tanto que se
desdobrou na inserção do Grupo MUDAR em espaços de articulação, como a Rede
REMSOL, onde hoje estão representantes dos EES da “Baixada Cuiabana” no seu
Colegiado.
Hoje o Grupo MUDAR está à frente de muitos espaços de acompanhamento
e controle popular, representado por uma de suas integrantes, que faz parte da
Coordenação do FEES/MT, que hoje está em fase de reestruturação.
Ainda como desdobramento da atuação delas no Estado, foram indicadas
enquanto representantes estaduais dos EES da zona urbana no FBES em 2009,
integrando, em setembro de 2011, a equipe da Secretaria Executiva na Suplência
deste espaço político.
Além disso, há algumas integrantes que atuam frente à formação de outros
EES, especialmente na organização de oficinas práticas e teóricas do processo de
tratamento e confecção de peças de biojoias (colares e brincos de sementes), papel
reciclado, salgados e bolos, cuidados com a preparação de alimentos, questão de
gênero e ES, Economia Solidária, Educação do Campo e Juventude, entre outros
temas.
O Grupo, neste percurso de tempo, realizou algumas atividades produtivas,
entre elas o artesanato a partir do reaproveitamento, primeiramente das garrafas
Pet, na produção de artigos de decoração, e hoje estão iniciando uma tentativa de
trabalhar com caixas Tetra Pak (caixinhas de leite/suco), transformando-as em
embalagens para presente, porta canetas, entre outros.
A produção de papel reciclado na confecção de cartões e agendas; o
reaproveitamento de vidros de conservas, na confecção de artesanatos com
apliques em biscuit; reaproveitamento de retalhos de tecidos na confecção de
tapetes de amarradinho; confecção de biojoias (colares e brincos de sementes) e,
por fim, bolos e biscoitos diversos, são algumas das atividades feitas pelo Grupo. A
comercialização se dá por encomendas e é um dos grandes desafios deste EES.
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Durante toda a história do Grupo MUDAR, em sua participação frente à
produção, comercialização e formação, as dificuldades foram e são as mais
diversas. A própria dinâmica da vida das integrantes, que são donas de casa,
algumas mães chefe de família em situação de vulnerabilidade social, associado ao
fato de alguns maridos, que não entendiam o processo e não apoiavam ou
compreendiam as atividades desenvolvidas pelas mulheres, enfim, fizeram com que
do grupo inicial de 16 (dezesseis) mulheres resistissem apenas 8 (oito).
Desde então o Grupo vem atuando preferencialmente de forma coletiva,
porém, mesmo com a comercialização a partir de algumas encomendas locais e a
participação em Feiras, entre outros eventos organizados pela ES e outros órgãos
de apoio, esta atividade produtiva ainda não oferece segurança econômica.
Uma dimensão, que elas indicam como sendo limitadora nesta perspectiva,
diz respeito à própria estrutura do Grupo, que é informal, e devido a isso não possui
condições legais para participar dos editais lançados pelo Governo Federal e/ou
Instituições outras que apóiam grupos da ES. Acreditam que este acesso poderia
colaborar com a obtenção de capital de giro necessário para garantir uma produção
em escala.
Outro desafio, segundo elas, é a própria qualidade do design das peças, no
que se refere à arte de agregar valor às peças produzidas, inserindo elementos
regionalizados, a identidade e a marca dos produtos MUDAR. Estes elementos são
apontados em destaque quando necessário, mas não se sentem com preparo
técnico, situação financeira e nem outro tipo de apoio (assessoria) para isso.
O interesse em fortalecer a dimensão da produção e comercialização para o
melhoramento da renda familiar é o grande desafio econômico destas mulheres;
mesmo para que as outras integrantes, que por motivos diversos tiveram que se
ausentar, possam retornar ao Grupo, para “juntas” conseguirem uma “vida melhor”:
Estar no grupo é acreditar na participação popular, com crescimento para todos, pois podemos interagir com pessoas com interesses parecidos com os nossos, que nesse caso são mulheres que buscam crescimento sem perder o contato familiar, fazendo e gerando renda para a casa, ensinando valores para seus filhos, buscando condições de vida digna e feliz (Integrante JGC).
Esta fala demonstra que a intenção deste coletivo é que mais famílias possam
ser contempladas pelo trabalho ora articulado, com vistas a um desenvolvimento
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comunitário. Em todas as falas, durante os momentos de produção e formação
política, esteve presente o desejo de que mais pessoas pudessem se unir para o
trabalho coletivo e, assim, poderem melhorar de vida.
Dentre os diversos desafios do Grupo, o fato de não possuir uma sede não foi
dimensão limitadora para a realização das atividades desenvolvidas pelo MUDAR,
pois, quando é necessário, se encontram: por vezes na casa da coordenadora, em
outros momentos nas varandas de uma ou de outra integrante do Grupo, para
realizar a produção, as reuniões, informes, formações e as confraternizações.
A produção de papel reciclado é realizada na residência da coordenadora do
Grupo, devido à estrutura que é necessária para esta atividade (área espaçosa,
tanques relativamente grandes, ...). As produções do biscuit, do amarradinho, da
biojoia e dos biscoitos acontecem mediante algumas pequenas encomendas e são
feitas em conjunto, por vezes na casa de algumas delas.
Esta organização informal é escolha do grupo, que não possui estrutura
suficiente para pagar os custos de sua formalização, ou seja, os encargos de uma
micro e pequena empresa. A insegurança econômica ainda se sobrepõe ao desejo
de oficializar o empreendimento:
Como fazer um compromisso financeiro, se não temos certa a saída de nossos trabalhos? Toda encomenda vem sem uma contrapartida das clientes, daí é preciso fazer um investimento que não temos. Tirar do bolso foi o que fazíamos de início, ou muitos materiais vinham de doações, só que agora não há mais estas possibilidades... Renda mesmo ainda não tivemos, mesmo porque nossa estrutura é pouca (Integrante EB).
Diante desta realidade, a comercialização, que inicialmente fora feita nas
feiras e eventos, sempre com a participação de duas ou mais integrantes, tornou-se
mais frequente por encomendas isoladas. Nesta perspectiva e pela própria dinâmica
da vida das participantes, a maioria se identifica mais com a produção, enquanto
que uma minoria se coloca para realizar a comercialização.
Apesar da participação em formação política ser uma dimensão fomentada e
estimulada a partir das parcerias que o Grupo construiu em sua caminhada,
principalmente com a AMAMT (Associação de Mulheres em Ação de Mato Grosso),
a REMSOL, o Projeto Brasil Local, a RECID e a UNEMAT/INCUBESS, esta
dimensão é apontada por algumas participantes do Grupo como constantemente
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necessária, através de um processo continuado, considerando-se a produção e
comercialização.
Isso nos coloca a intensa necessidade pelo conhecimento de forma ampla e
integral que estas mulheres possuem, uma característica forte que, de alguma
forma, as aproximou dos processos de formação da ES, que considera alguns
princípios que perpassam as dimensões técnicas e práticas, econômicas,
adentrando no mundo da família, da escola, da política do bem viver e da política do
“fazer”.
O processo de produção de conhecimento é percebido enquanto uma
possibilidade de se vislumbrar na ação e atuação de resistência destas mulheres
diante de situações tão adversas quanto as que se apresentam em sua trajetória de
vida, antes e depois do Grupo MUDAR, um fazer diferenciado, criativo e de
renovação de muitos preconceitos:
Mulheres e homens, somos os únicos seres que, social e historicamente, nos tornamos capazes de aprender. Por isso, somos os únicos em quem aprender é uma aventura criadora, algo, por isso mesmo, muito mais rico do que meramente repetir a lição dada. Aprender para nós é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito. Creio poder afirmar, na altura destas considerações, que toda prática educativa demanda a existência de sujeitos, um que, ensinando, aprende, outro que, aprendendo ensina, daí o seu cunho gnosiológico; a existência de objetos, conteúdos a serem ensinados e aprendidos; envolve o uso de métodos, de técnicas, de materiais; implica, em função de seu caráter diretivo, objetivo, sonhos, utopias, ideais. Daí a sua politicidade, qualidade que tem a prática educativa de ser política, de não poder ser neutra (FREIRE, 1996, p. 69-70).
Pensando nesta intencionalidade da educação, da produção do aprender, dos
conhecimentos objetivos e subjetivos, enfim, é preciso uma breve reflexão sobre a
história da educação de nossa sociedade. Para tanto, apesar de neste momento não
ser nossa pretensão adentrarmos com propriedade nesta discussão, é necessário
este relembrar das intenções desta sociedade de consumo, do Mercado.
A escola, neste cenário, foi e é o lócus de reprodução do que está posto.
Neste sentido, refletir sobre a função social das instituições escolares públicas no
Brasil, que deveriam problematizar a realidade e colaborar com aprendizagens
significativas, articulando as dimensões éticas e estéticas: conhecimentos
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conceituais, procedimentais e atitudinais, conforme Paulo Freire afirma, enquanto
necessário à prática educativa, é preciso, pois o que se vê é que:
(...) negando à prática educativa qualquer intenção desveladora, reduzem-na à pura transferência de conteúdos „suficientes‟ para a vida feliz das gentes. Consideram feliz a vida que se vive na adaptação ao mundo sem raivas, sem protestos, sem sonhos de transformação (FREIRE, 1995, p. 27).
Esta educação bancária, que ainda hoje testemunhamos nas escolas, tanto
públicas como privadas, nos campos, nas florestas e nas cidades, somadas a toda
uma complexa situação sociocultural, multiplica inimaginavelmente o distanciamento
da população de poder colocar em prática todo seu potencial criador e, além disso,
também de ter acesso às dimensões emancipatórias, propositivas, prazerosas e
transformadoras que a produção de conhecimento em si pode representar.
Este ato de negação a uma aprendizagem significativa em muitas realidades
continua a ser perpetuado pela legislação, muitas vezes engessada, que não
instrumentaliza com PPs de impacto revitalizador, por exemplo, no investimento à
Educação Pública: a Educação Infantil, a Educação Especial, a Educação no
Campo, a EJA, a Educação Prisional, o plano de cargos e carreiras dos profissionais
da educação, entre outras dimensões.
Diante de realidades como esta, a construção do empoderamento de grupos
que por toda a história foram relegados à margem da sociedade, oprimidos pela
condição sócio-cultural-econômica-política, precisa ser um movimento constante e
continuado. É necessário, no entanto, que parta das pessoas este desejo, esta
necessidade, não como um ato de transferência ou transmissão, mas pelo
reconhecimento embasado em suas vivências.
Disso depende a apropriação/conhecimento destas pessoas do cenário
político mais amplo, da importância de sua participação na construção de PPs que
efetivamente contemplem as diferenças dos diferentes dentro das diversidades.
Contudo, veja quão desafiadora é a tarefa de pessoas que, em sua simplicidade,
buscam seu lugar nesta “areia quente” que é o capitalismo!
Neste sentido, ao dar prosseguimento ao nosso diálogo aberto durante
momentos de reunião e/ou de produção junto ao MUDAR, ao serem questionadas
como elas vêem o processo de formação do qual elas participaram, muitas foram as
49
colocações, porém foi consenso a opção por selecionarem algumas participações de
integrantes do Grupo que consideraram significativas:
Acreditamos que a participação num movimento social fez com que se abrisse uma visão real do país em que vivemos e o qual queremos construir; fez com que víssemos que podemos mudar, com luta, debate, participação. Por isso, ao falar de coisas que foram construídas junto com outras pessoas fica mais ampla a idéia do que pretendemos enquanto grupo e movimento social (JGC).
Segundo elas, tais momentos destacados são considerados os mais
significativos, pelo fato de terem sido construídos junto com outros Grupos e
retomados posteriormente, em momentos específicos de formação/conversação
interna do Grupo:
Como é difícil estar indo em todos os encontros de formação, ou feiras e reuniões, eu acho que estes seminários, onde foi possível uma ou duas irem e depois trazerem prá nós o que foi discutido, mostram um pouco melhor onde nós estamos neste movimento da ES, porque, de uma forma ou de outra a gente está participando, do jeito nosso, do jeito que dá (JFN, Grupo MUDAR).
Essa fala explicita a situação do “lugar” de onde estão falando, mesmo por
que somente algumas participaram destes momentos, mesmo porque não era
possível a participação de todas ao mesmo tempo, devido às condições concretas
da vida (filhos pequenos, maridos intolerantes, serviços domésticos,
escola/faculdade, entre outros fatores), isso sem contar a falta de recurso para a
logística necessária ao deslocamento.
Entre os Encontros, Formações, Feiras, Reuniões e Eventos em geral elas
destacaram os seguintes:
Uma Experiência de Formação sobre Discussão de Gênero: neste ponto a
reflexão se deu em forma de uma roda de conversa a partir de uma experiência
durante o IV EMESOL;
A participação nas Feiras Pantaneiras de Economia Solidária, Agroecologia e
Agroextrativismo. No histórico destas Feiras, sabemos que foram realizadas
quatro edições, em nossa pesquisa serão socializadas algumas reflexões de três
destas, a saber: da 1ª, 3ª e 4ª Feira;
50
O Seminário Estadual e Regional de Comercialização Solidária: devido à grande
fragilidade econômica percebida pelo Grupo frente aos intercâmbios realizados,
que voltaram como um espelho da necessidade deste coletivo também;
X Encontro da Coordenação do FBES: Organização e Formação;
Encontro Nacional de Diálogos e Convergências (Fechamento).
Partes destas experiências serão compartilhadas ainda neste capítulo e as
demais serão discutidas no capítulo que se segue. Algumas estarão disponíveis nos
anexos, por entendermos que são importantes para a compreensão da trajetória do
Grupo e entendimento de alguns processos da ES no Mato Grosso, mas que não
estão ligadas diretamente ao tema central do nosso “olhar”, que versa sobre a
questão da formação política destas mulheres.
Será feito um esforço de trazer elementos que possam dar conta de
compartilhar algumas percepções; sabemos que muito mais foi fermento para a
produção de conhecimentos destas mulheres dentro e fora do MS da ES, mas neste
empreendimento serão estes os momentos privilegiados por elas, e buscaremos
através do diálogo trazer a voz de suas protagonistas:
É verdade que não conseguimos participar como gostaríamos de todas as reuniões do FEES, da REMSOL, das Feiras ou do Centro de Comercialização de Economia Solidária, por exemplo. Nem mesmo frente a algumas reuniões importantes, como a da composição do Comitê de Organização do Conselho Estadual de Economia Solidária, ou de efetivamente contribuirmos para o levantamento das assinaturas para a proposição da Lei popular que cria a Lei Nacional de Economia Solidária, mas também é verdade que o trabalho é feito de forma a multiplicar os saberes, onde uma das participantes repassa às outras os conhecimentos, as capacitações: discussões e resultados são importantíssimos e fazem o Grupo MUDAR se fortalecer e não desistir de uma certa mobilização. Daquilo tudo que é repassado muitas coisas são multiplicadas, tipo assim: são feitas outras reinterpretações e reflexões, o que acreditamos ser muito significativo para todas nós, isso é o que eu penso (JN, Grupo MUDAR).
Este é um retrato breve do Grupo MUDAR que, com certeza, possui muito
mais ingredientes, e estes estarão de forma explícita e implícita nas entrelinhas do
percurso das reflexões tecidas no decorrer deste processo. Elas são algumas
mulheres da periferia de Cuiabá que um dia se reuniram em torno de um sonho de
viver melhor, com dignidade, com o cuidado com o meio ambiente e muito amor pelo
próximo e, principalmente, por si mesmas.
51
2.3 UMA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO SOBRE GÊNERO: PELO DIREITO DE
SER MULHER
Esta discussão trazida pelo MUDAR faz parte de um dos desdobramentos de
uma atividade formativa, a qual algumas delas propuseram, enquanto processo de
discussão durante o IV EMESOL. Durante esta edição o Encontro Matogrossense de
Educação e Socioeconomia Solidária aconteceu em setembro de 2009, no município
de Tangará da Serra.
Nesta oportunidade 2 (duas) integrantes participaram do encontro. Uma das
“coisas” que fizeram com que elas discutissem este tema durante este encontro foi o
conhecimento do resultado do último mapeamento nacional da ES, realizado pela
SENAES6.
O mesmo observava que o número de mulheres que fazem a ES em Mato
Grosso é expressivamente maior se comparado à média nacional, uma vez que “no
conjunto dos participantes associados aos EES, a participação relativa dos homens
é superior à das mulheres (63% e 37%, respectivamente) (...), na Região Centro-
Oeste, a participação das mulheres é superior à média nacional (42%)” (BRASIL,
2009, p. 38).
Em relação à composição de EES constituídos exclusivamente por mulheres
e homens, “há cerca de 3.900 empreendimentos constituídos exclusivamente por
mulheres (18%), cerca de 2.100 empreendimentos cujos sócios são exclusivamente
homens (9%) e os demais (73%) são empreendimentos formados por homens e
mulheres” (op. cit., p. 39).
Estes são números do mapeamento realizado entre 2005 e 2007. Há
informações e indícios de que, pela própria participação em espaços próprios
organizados pelo movimento de acompanhamento, intercâmbios e assessorias
evidenciam que estes números não correspondem à realidade de participação do
número de mulheres em muitas realidades.
Mesmo nos EES considerados mistos (mulheres e homens), a presença
feminina, na base, é expressivamente maior. Tais indícios fomentaram discussões e
debates sobre essa realidade, provocaram e contestaram essa estatística, de tal
forma que no terceiro mapeamento (2010 - 2011 em curso) dos EES, Assessorias e
6 Secretaria Nacional de Economia Solidária.
52
Políticas Públicas no país, foi construído um instrumento específico para mapear os
EES constituídos exclusivamente por mulheres.
Tomando esse contexto por base, associado às experiências possíveis
durante esta pesquisa junto a alguns grupos de EES no estado, inclusive
considerando o interesse em particular do Grupo MUDAR, se acredita na pertinência
de se verificar, neste processo histórico, qual é o papel da mulher nesta construção
coletiva.
Compreendemos a urgência de se colocar estas discussões no centro do
debate, a partir do momento que se desenha uma proposta de projeto de
desenvolvimento diferenciada para nosso país. Para tanto, perceber se as
formações oferecidas nestes espaços da ES de fato privilegiam uma discussão
significativa das questões mais amplas de gênero, que possa colaborar para com a
desconstrução do que está posto e emergente.
As realidades das mulheres do Grupo MUDAR trazem em sua bagagem um
pouco da urgência em se pautar o tema da violência doméstica, a invisibilidade do
trabalho feminino, a discriminação nas relações do mundo do trabalho e as diversas
formas de exploração às quais as mulheres em situação de prostituição são
submetidas diariamente em todo o Brasil.
Discutir gênero necessariamente passa pelo reconhecimento de que temas
como estes ainda não estão resolvidos. A naturalização destas questões é um
mecanismo da negação do problema que é fato, que existe. Algumas mulheres
ainda hoje precisam se expor aos desmandos de homens e mulheres que lhes
privam a liberdade do ir e vir, de viver com dignidade.
Apesar de considerarmos esta pertinência, é preciso novamente dizer que
esta problematização não tem a pretensão de ser aprofundada, mas sim, colocada
enquanto fator que necessita de muita leitura “de mundo e do mundo”, onde se faz e
refaz estes enfrentamentos. Merece, por isso mesmo, um trabalho amiúde nesta
direção.
Aqui, no entanto, contribuir para com discussões e reflexões mais amplas
nesta realidade pode permitir um pensar crítico sobre a realidade vivida por estas
mulheres, possibilitando, desta forma, ações práticas e metodológicas que
colaborem, ou não, para com a desconstrução de estigmas e estereótipos que
inferiorizam, invisibilizam a imagem da mulher.
53
A intenção maior precisa ser de poder vislumbrar, nos momentos de produção
de conhecimento, a partir da formação política e no próprio cotidiano destes grupos,
independente de sua constituição (mistos, de homens e de mulheres), espaços
potencialmente férteis para tal construção/desconstrução a partir da
problematização.
Este exercício pôde colaborar com algumas integrantes do MUDAR, que
trouxeram seu testemunho de enfrentamento e superação de situações de
constrangimento, de humilhação e violência física que sofreram pelos maridos. Ao
passo que iam vendo que esta era parte da realidade de outras mulheres, e elas
puderam trocar experiências, muitas barreiras foram rompidas:
O medo e a vergonha eram sentimentos que me acompanhavam. A culpa também, porque eu acreditava que a culpa era minha. Até que a gente começou a participar dos encontros de formação na ES, e foi quando ouvi tantos casos até piores que os meus. E elas diziam que tinham conseguido superar quando descobriram que não estavam sozinhas - o grupo delas deu suporte emocional e até financeiro... Nosso Grupo também foi importante para dar esta força e esperança contra aquela situação que eu vivia (Integrante LRF).
A constante busca por reconhecimento e valorização sócio-cultural pela
mulher nos espaços sociais é uma das inquietações que foram encontradas no
decorrer desta pesquisa. As falas das mulheres vão nesta direção. Tal
problematização pode representar tão somente uma gota diante de um oceano de
desafios, porém é uma que se junta com outras muitas ações, que estão juntas em
uma corrente de esperança e fé pelo que chamamos do direito de ser Mulher!
2.4 ECONOMIA SOLIDÁRIA E O PAPEL DA MULHER NESTA CONSTRUÇÃO:
EXPERIÊNCIA DA “BAIXADA CUIABANA” NA PERSPECTIVA DE GÊNERO
A estatística da segunda fase do mapeamento da ES, como foi visto
anteriormente, revela, apesar de muitas controvérsias, um número expressivo da
participação das mulheres organizadas em grupos de empreendimentos que
comumente estão presentes, mais efetivamente nos setores de produção e
comercialização, e também nos momentos de formação.
Como se tem bem definido que um dos processos privilegiados da ES é a
dimensão educacional, ou seja, a formação política a partir da Educação Popular
54
freireana, há todo um trabalho sendo desenvolvido, que tem como objetivo o
estímulo à inserção das mulheres na discussão política a partir de suas realidades,
enquanto trabalhadoras, mães chefes de família que buscam sua cidadania, que a
lei de fato não garante.
A educação é, nesta perspectiva, um poderoso instrumento que pode
interferir, positivamente ou não, efetivamente nesta transformação ideológica que a
ES busca promover, pois se acredita que:
A educação tem sentido porque o mundo não é necessariamente isto ou aquilo, porque os seres humanos são tão projetos quanto podem ter projetos para o mundo. A educação tem sentido porque mulheres e homens aprenderam que é aprendendo que se fazem e refazem, porque mulheres e homens se puderam assumir com seres capazes de saber, de saber que sabem, de saber que não sabem. De saber melhor o que já sabem, de saber o que ainda não sabem. A educação tem sentido porque, para serem, mulheres e homens precisam de estar sendo. Se mulheres e homens simplesmente fossem não haveria porque falar em educação (FREIRE, 2000, p. 63).
Perceber essa dimensão fundante dos saberes, da educação e do constante
devenir, conforme FREIRE, que é fundamental se verificar por que a questão de
gênero se apresentou como um desafio nesta pesquisa, e precisa ser retomada em
outro momento, de forma mais ampla,
Isso porque as informações oficiais insistem em demonstrar que essa
dimensão não apresenta tanta expressividade como estudiosos e a própria prática
registram. Tal circunstância aponta para a invisibilidade feminina nesta perspectiva.
Toda a nossa cultura foi embasada em pressupostos heteroconstruídos,
assim, é fundamental refletir sobre a história dos conceitos em uma perspectiva do
que fazer diante deste horizonte já instituído, positivista e patriarcal, pois não há nele
neutralidade.
Conceituação se dá com apropriação, assim sendo, fica a questão: as
mulheres se apropriaram destes conceitos ou é necessária a reinvenção dos
saberes e da tradição? A cultura é dinâmica, não é um processo fechado ou pronto e
acabado. Tomamos como ponto de partida para a discussão o seguinte conceito de
gênero:
O termo gênero é usado para indicar a construção social do ser homem e do ser mulher. É uma categoria social, ou seja, um instrumento de análise capaz de explicar uma determinada face das
55
relações sociais, assim como classe/etnia (...) indica os traços típicos, os papéis que culturalmente foram atribuídos a homens e mulheres, estabelecendo um determinado padrão de relações sociais (MST, 2003, p. 28).
É preciso problematizar mais ainda este conceito e, consequentemente, a
consciência crítica: revendo conceitos, agregando as discussões sobre a
sexualidade e a homofobia; pensar criticamente sobre a vitimização da mulher,
cruzando-a com a história política da sociedade, verificando até onde as políticas
indenizatórias e/ou compensatórias de fato assumem sua função social de formação
para a cidadania.
O conceito de gênero, pelo prisma político, transforma o sentido do
conhecimento e da própria ação política em relação com o mundo ocidental, onde se
percebe um mundo bissexuado, em contraponto ao universalismo europeu. Neste
processo tem-se afirmado tanto a igualdade como a diferença. Negar e afirmar, em
um mesmo movimento, é paradoxalmente contraditório:
É do reconhecimento da igualdade essencial de todos os indivíduos da espécie humana que se nutriram as teses dos direitos universais da pessoa humana e, por decorrência, as teorias da cidadania, da democracia e da postulação de uma autoridade internacional. E desse reconhecimento substancial e universal se pode ter como horizonte as relações nacionais, internacionais, entre grupos sociais e pessoas, todas sempre marcadas por diferenças individuais, culturais, grupais, sociais e nacionais (CURY, 2005, p. 59).
Tomando esta discussão sob uma ótica onde não se pode admitir uma
estrutura cultural fechada, estática, sem a possibilidade de questionar e transformar
para melhor contemplar as diferenças, lembrando que estas não são sinônimas de
diversidades, afinal a cultura não é algo dado a priori. A diversidade pressupõe
recortes extraídos dos fluxos culturais, é uma espécie de seleção de “conteúdos”
previamente estabelecidos e estratificados.
Neste sentido, e como está sendo exigido do próprio movimento contraditório
da sociedade e demandas sociais, é preciso que se busque rever posturas e os
conceitos-chave para a construção de uma nova cultura, que respeite de fato as
diferenças, as quais inclusive a própria ES precisa acompanhar de perto, e
acreditamos que o faz, uma vez que tais discussões também integram o repertório
de bandeiras e lutas deste movimento.
56
Em cada etapa da trajetória de discussão e construção do Movimento da ES
no Estado, até sua implementação em política pública estadual, pôde-se perceber e
vivenciar toda uma complexa relação entre os atores envolvidos imersos nestes
processos. Lembrando que esta nossa percepção se dá à luz de discussões e
reflexões feitas por um grande coletivo, mas que, através do “olhar” que o Grupo
MUDAR trouxe para nós, como compreensão deste todo.
Dentro da organização e composição desta proposta, mais que contra-
hegemônica, os critérios de coletividade, autogestão, democratização dos fazeres,
dos proventos e acessos, a solidariedade e equidade, o cuidado com o outro e com
a natureza (a sustentabilidade do planeta), as relações comerciais, financeiras e
administrativas justas e solidárias, a formação e educação para a vida e com a vida,
tecnologias sociais e políticas públicas formaram um conjunto constante de reflexão
e discussão.
O diálogo travado com o poder público foi estabelecido, mas ainda é
incipiente diante das grandes demandas. Apesar disso o coletivo persiste. Acredita
que, como o próprio homem, este processo é um eterno “vir a ser”. O inacabamento
do ser e do fazer é o que alimenta as forças destes heróis da resistência. Acredita-
se nesta inconclusão enquanto possibilidade, uma vez que:
Entre nós, mulheres e homens, a inconclusão se sabe como tal. Mais ainda, a inconclusão que se reconhece a si mesma, implica necessariamente a inserção do sujeito inacabado num permanente processo social de busca. Histórico-sócio-culturais, mulheres e homens nos tornamos seres em quem a curiosidade, ultrapassando os limites que lhe são peculiares no domínio vital, se torna fundante da produção do conhecimento. Mais ainda, a curiosidade é já conhecimento. Como a linguagem que anima a curiosidade e com ela se anima, é também conhecimento e não só expressão dele (FREIRE, 2000, p. 23).
É na busca pela tomada de consciência, onde cada um vivencia estes
processos, que todo o trabalho de educação e formação em ES centra esforços. Na
produção contínua dos diversos saberes. É na e pela inserção lúcida deste sujeito
histórico nos engajamentos que dizem respeito ao bem comum, em forma de luta
pela transformação, que se pode pensar na possibilidade de um novo mundo:
A diferença em participar de qualquer grupo é o crescimento que temos como pessoa, mas participar do grupo MUDAR fez com que experiências boas e ruins fossem compartilhadas e o crescimento fosse maior. Assim, como sofri violência doméstica e algumas
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mulheres sofreram discriminação, partilhamos isso e tivemos a chance de construir maneiras de lidar com situações semelhantes, nos defendendo, assim como tivemos experiências boas que foram partilhadas por todas, trazendo para o grupo um número de contatos profissionais e pessoais que nos ajudaram para além do nosso grupo (Integrante JGC).
E necessariamente passa por este sentir, refletir, interpretar/reinterpretar e
compreender, e mostrar que o papel da mulher nesta construção vai muito além do
que as estatísticas apontam. É preciso que esta contribuição seja compreendida
enquanto elemento de provocação.
Uma provocação que nesta oportunidade se materializa na possibilidade que
há de elas falarem de suas próprias experiências, ou seja, não se trata de outros
falando por elas ou delas, mas elas mesmas falando de dentro de toda essa
complexidade.
58
3 A ECONOMIA SOLIDÁRIA
3.1 O PROBLEMA EM QUESTÃO
Neste capítulo trazemos uma problematização sobre a construção da ES em
âmbito nacional e regional, posteriormente sobre sua história na experiência do Mato
Grosso, com dados do mapeamento da ES disponibilizados pelo SIES, a partir de
nossa pesquisa in loco, considerando-se os relatos das vivências de algumas
integrantes do Grupo MUDAR que fazem parte do FEES/MT e da REMSOL.
Neste contexto, a crise econômica, política e ética que se estabeleceu no
mundo do capital é fato; assim, por vezes, estratégias de superação e de resgate da
porção humana se destacam em determinadas experiências e em espaços
específicos. A exclusão em massa das trabalhadoras e trabalhadores do acesso aos
bens de consumo, seja ele cultural, social, político ou econômico, associado ao fato
destas pessoas, em sua trajetória de vida, terem sido silenciadas durante toda a
história da humanidade, é algo que não tem mais condição de ser aceito ou
esquecido, é preciso ser enfrentado para, na medida do possível, ser superado.
A participação destas pessoas no processo de construção e produção da vida
em sociedade precisa ser estimulado/ensinado/provocado. Esta é uma das
condições fundamentais para qualquer proposta de transformação social, pois esta
dimensão, enquanto elemento de destaque pode muito mais que envolver estas
pessoas, transformando-as em protagonistas deste processo de construção:
A necessidade humana de participação, ou de ser protagonista de sua própria história é, neste sentido, uma das necessidades não-materiais reconhecidas como condição e resultante de um processo de transformação dirigido ao aumento de qualidade de vida de uma população. A participação real da população nas decisões que afetam a vida cotidiana supõe o reconhecimento de outras necessidades associadas que são, por sua vez, condição e resultante de um processo participativo: autovalorização de si e da cultura do grupo a que pertence, capacidade reflexiva sobre os efeitos da vida cotidiana, capacidade de criar e recriar não somente objetos materiais, mas também e fundamentalmente criar e recriar formas novas de vida e de convivência social (GAJARDO e WERTHEIM, 1981; apud BRANDÃO, 1990, p. 107-108).
Essa participação não é um dado a priori do ser humano, somente na vivência
é que se pode cultivá-la. É em meio ao cotidiano que os grupos sociais criam e
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recriam significados e conhecimentos, “é precisamente este “conhecimento” que
constitui o tecido de significados, sem o qual nenhuma sociedade poderia existir”
(BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 30).
Os espaços instituídos dentro da sociedade do capital pouco ou nada fizeram
ou fazem para o estímulo deste exercício, mesmo porque sua ideologia é alienante e
apolitizada, pois suas funções são dar continuidade ao que está posto.
Nesta perspectiva, se faz necessário que em espaços distintos de
organização comunitária e social esta prática precise ser estimulada para, somente
então, no ato do exercício ser vivenciada. A ES se apresenta enquanto um destes
espaços organizados pelo povo, que possui em sua dinâmica estrutural e
estruturante ações que visam mobilizar, fomentar, articular, estimular e provocar
todo um envolvimento, de forma integradora, das chamadas “minorias”, que sempre
estiveram à margem das políticas públicas essenciais.
Estamos aqui ousando fazer uma leitura compreensiva, através de um olhar
fenomenológico, de algumas experiências que estão acontecendo no estado,
principalmente em alguns municípios da chamada “Baixada Cuiabana”, organizadas
a partir da orientação político pedagógica da ES.
Diante da realidade como ela se apresenta, lembrando que é no cotidiano que
ela é forjada nas e pelas relações sociais, o pesquisador muitas vezes coloca
questões que podem provocam rupturas no processo vivido, daí a necessidade de
se estabelecer um recorte da realidade; desta forma o pesquisador pode se voltar às
demandas do próprio fenômeno pesquisado, a partir da vida vivida no cotidiano,
A análise fenomenológica da vida cotidiana, ou melhor, da experiência subjetiva da vida cotidiana, abstém-se de qualquer hipótese causal ou genética, assim como de afirmações relativas ao status ontológico dos fenômenos analisados. É importante lembrar este ponto. O senso comum contém inumeráveis interpretações pré científicas e quase científicas sobre a realidade cotidiana, que admite como certas ((BERGER e LUCKMANN, op. cit., p. 37).
São tomadas estas colocações de Berger e Luckmann para dar base ao
nosso entendimento de que a realidade vivida não é estática e que, portanto, está
em constante movimento; que, mesmo se destacando determinado recorte, ao
voltar-se ao fenômeno pesquisado com postura fenomenológica é preciso a
compreensão de que sua abordagem é tão somente uma possibilidade diante do
todo desta ou daquela experiência.
60
Assim posto, desafia-nos compreender qual a percepção, ou o “olhar” que o
Grupo MUDAR lança sobre o processo de formação pelo qual participa dentro de um
MS que herda bandeiras de luta de muitos outros MS, devido sua amplitude política,
que converge com os muitos interesses destes. Este é o centro de nossas
discussões e reflexões com vistas à compreensão desse fenômeno social.
Para tanto, se partiu de alguns questionamentos suleadores, como: quais os
temas tratados; qual dimensão é mais trabalhada (formação política,
comercialização, produção, crédito, finanças, PP); quais são as maiores
preocupações dos grupos que participam deste MS; como acontece a participação
dos grupos e segmentos no processo de construção das oficinas, seminários e
conferências específicas da ES em seus diversos âmbitos?
Enfim, quais dimensões a formação oferecida neste espaço pode delinear: “a
que tipo de projeto de classe serve o trabalho de educação, ou seja, ele reforça a
hegemonia do poder estabelecido ou, dentro dos seus limites, contribui para a
formação de uma nova hegemonia popular?” (BRANDÃO, 1990, p. 117). Lembrando
que:
A grande generosidade está em lutar para que, cada vez mais, estas mãos, sejam de homens ou de povos, se estendam menos, em gestos de súplica. Súplica de humildes a poderosos. E se vão fazendo, cada vez mais, mãos humanas, que trabalhem e transformem o mundo. Este ensinamento e este aprendizado têm de partir, porém, dos “condenados da terra”, dos oprimidos, dos esfarrapados do mundo e dos que com eles realmente se solidarizem (FREIRE, 1983, p. 34).
A compreensão dessas questões poderá possibilitar um maior entendimento
dos desdobramentos que esta proposta mais que contra-hegemônica pode produzir.
Tem-se o entendimento de que se vive em uma sociedade capitalista e como tal a
ideologia que lhe favorece está fortemente enraizada nos costumes e modo de vida.
Nesta perspectiva é interessante verificar o que Geertz entende por esta ideologia
vigente:
Como a política que apóia, ela é dualista, opondo o puro nós ao perverso eles e proclamando que aquele que não está comigo está contra mim. Ela é alienante pelo fato de desconfiar, atacar e trabalhar para destruir instituições políticas estabelecidas. É doutrinária pelo fato de reclamar a posse completa e exclusiva da verdade política e abominar o diálogo. É totalista em seu objetivo de ordenar toda a vida social e cultural à imagem dos seus ideais, futurista pelo fato de
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trabalhar por um fim utópico da história, no qual se realizará tal ordenação (GEERTZ, 1989, p. 168).
Muitos são os espaços de iniciativa popular que promovem a participação
política das pessoas que participam deste movimento, com o intuito de se construir
um projeto de sociedade que vem de encontro a esta postura. Assim, Feiras de
Economia Solidária, Agroecologia, Agroextrativismo, Agricultura Familiar;
Conferências; Seminários; Assembléias Populares, Audiências Públicas; Fóruns e
Conselhos, Redes e Cadeias são organizados por este coletivo, na tentativa de
enfrentamento e superação desta ideologia que impede a cidadania plena do povo.
A I Conferência Estadual de Mato Grosso (2006), por exemplo, fomentou
muitas discussões sobre estas questões e colocava, enquanto proposta para
superação das situações diversas às quais os Grupos de EES estavam expostos, a
formação política dos envolvidos neste processo, uma vez que a “ES colabora com o
desenvolvimento, pois promove o processo educativo – sensibilização, consciência e
prática solidária; promove mudança de consciência; promove interação e
cooperação; promove união; promove comércio justo” (I CONAES, 2007).
Assim sendo, é preciso todos os esforços para a construção/organização de
esquemas e políticas que oportunizem uma nova postura ideológica, social, política,
econômica e cultural, mesmo por que:
(...) a perspectiva de que a ação social é fundamentalmente uma luta interminável pelo poder leva a uma visão indevidamente maquiavélica da ideologia como forma de uma grande astúcia e, consequentemente, a negligenciar suas funções sociais mais amplas e menos dramáticas (GEERTZ, 1989, p. 173).
Discutir e refletir sobre os condicionantes sócio-históricos que legitimam a
ideologia dominante são estratégias que podem colaborar com este desafio. Em
meio ao caos do capitalismo, com sua decadência e incompetência diante das
contradições que ele mesmo alimentou por décadas e ainda nutre ferozmente,
ressurge o antigo costume da solidariedade. Diz-se antigo, por ser um costume que
vem de muitas décadas atrás, em um tempo anterior ao auge do capitalismo.
Essa é a solidariedade proclamada e defendida por Paulo Freire e seus
discípulos, percebendo, na constante batalha entre opressores e oprimidos, uma
realidade que só pode ser transformada a partir da práxis, com o protagonismo dos
sujeitos em cada etapa do processo de exorcisação. Para tanto:
62
É necessário que a liderança revolucionária descubra esta obviedade: que seu convencimento da necessidade de lutar, que constitui uma dimensão indispensável do saber revolucionário, não lhe foi doado por ninguém, se é autêntico. Chegou a este saber, que não é algo parado ou possível de ser transformado em conteúdo a ser depositado nos outros, por um ato total, de reflexão e ação. Foi a sua inserção lúcida na realidade, na situação histórica, que a levou à crítica desta mesma situação e ao ímpeto de transformá-la (FREIRE, 1987, p. 54).
Pensar nesta dimensão é um dos fatores que move o interesse por esta
pesquisa. Compreender se a inserção lúcida à realidade dos envolvidos neste
processo existe, se realmente parte do interesse das pessoas que participam da ES
e se é fomentada, verificando, na medida do possível, como nesta experiência se
apresentam as possibilidades e os limites desta construção.
É poder ver, mesmo em meio ao cenário caótico da mercantilização da vida,
com esperança, confiança, fé e amor, possibilidades no “inédito viável” que a ES traz
em seu bojo, em um movimento que alimenta continuadamente nosso ânimo em
acreditar no ser humano como agente transformador.
3.2 ECONOMIA SOLIDÁRIA: EXPERIÊNCIA DA “BAIXADA CUIABANA”
Tudo aqui discutido faz parte das vivências dos grupos de EES e das
Assessorias e Gestores Públicos, organismos/instituições parceiras/os que apóiam a
organização das atrizes e atores da ES. Neste momento, estavam presentes 3 (três)
integrantes do Grupo MUDAR.
Verifica-se o quanto a luta destas/es trabalhadoras/es é árdua, pois nadar
contra a correnteza do capitalismo que promove o individualismo, incentiva o
competitivismo e estimula o consumismo desenfreado, é, no mínimo, uma
empreitada desafiadora.
Apoiadas pelos relatos de vidas percebemos que cada realidade possui seus
limites e possibilidades, de região para região, e de localidade para localidade,
porém, apesar das especificidades locais, os desafios muitas vezes são
semelhantes.
Na experiência de Cuiabá-MT, que é o espaço delimitado desta pesquisa,
alguns fatores são desafios locais e outros são regionais e nacional - estes em sua
maioria se referem à produção, comercialização, consumo, crédito, assistência
63
técnica e a formação para a autogestão com equidade de gênero e com respeito à
natureza.
O trabalho compartilhado, participativo e democrático é uma postura que se
estimula na prática, porém, como o homem pode ser considerado um “subproduto”
gerado pela cultura do capitalismo, estas prerrogativas não são naturais, uma vez
que não estão nas relações sociais estabelecidas na e pela sociedade.
Esta história de luta em Mato Grosso se materializou com a efetivação do
Fórum Estadual de Economia Solidária (FEES), que se deu em 26.08.2004, tendo
como marco o I Encontro Nacional de Empreendimentos de ES em Brasília, que
reuniu cerca de 2.000 empreendimentos.
Algumas datas e eventos fazem parte, direta e indiretamente, da construção
deste espaço político e de todas as atividades que ele realiza, bem como das ações
desenvolvidas pelas pessoas envolvidas no processo (EES, Assessorias, Gestores
Públicos e militantes). É importante destacar, ao menos sinteticamente, alguns
passos dados, afinal foram decisivos para a história da ES em MT e, mais
especificamente, em Cuiabá.
Desta forma, a seguir será feito um relato pontual das principais atividades
que marcaram esta caminhada histórica existente há mais de sessenta e cinco anos:
1979 – Pastoral da Terra inicia seus trabalho em Mato Grosso.
1981 – Gleba Prata - grupos de produção solidária com o Padre José Ten Cat
em toda a região de Diamantino, Rosário Oeste, Paranatinga, Nobres e
Arenápolis, que resultou nos mais antigos projetos de produção coletiva,
pensadas em molde socialistas, com o Senhor Armandinho (em Rosário Oeste).
1982 – Criação da Pastoral da Juventude na Comunidade de São Benedito, em
Poconé; realização do Curso de Cooperativismo em Cáceres/UNEMAT.
1983 – Organização do Grupo de Mulheres Farinheiras pela Irmã Dalila/CEBI;
organização de associações no Araguaia.
1984 – Inicia-se a caminhada do MST no Brasil.
1986 – Acontece o I Seminário de formação do Grupo da Pastoral da Juventude
em Poconé e Nossa Senhora do Livramento; discussão sobre Educação no
Campo.
64
1988 – Centro de Desenvolvimento do Menor (CIDEN), experiência em Campo
Grande-MS, coordenada em conjunto com as Irmãs da Igreja Nossa Senhora
Auxiliadora.
1993 – CEBIs: Comitê Contra Miséria pela Vida; trabalho concentrado pela
geração de renda com Padre José Ten Cat.
1994 – Geração de renda e Economia Popular/UNEMAT; inaugurada a
CONTRAPUC com a ajuda da Paróquia do Rosário.
1995 – Início de uma experiência produtiva: MIGUE CONFECÇÕES; formação
de Associações, Cooperativas: COMPRUP, com apoio do Padre Joaquim.
1996 – UFMT: Pensando Alternativas/Coorimbatá, com Prof. Nicolau.
1997-2000 – Curso de cooperativismo com companheiros da Nicarágua;
1999 – ONG Moradia e Cidadania; organização de grupos de produção/
cooperativas.
2000 – Reuniões de discussão à luz da teoria de Paulo Freire (grupo de estudo);
2002 – Lula eleito; GTBEs (Grupos de Trabalho Brasileiro em ECOSOL).
2003 – 1ª Plenária Nacional de Economia Solidária; criação da SENAES; 2ª
Plenária Brasileira de ECOSOL em conjunto com vários Movimentos Sociais e
Empreendimentos (Fórum Brasileiro de ECOSOL); Comitê Natal sem Fome;
Seminário REMSOL: I EMESOL; Comunidades Indígenas iniciam a experiência
em seus grupos de produção; é criado o TALHER (Rede Cidadã), Programa
FOME ZERO; Curso de Cidadania e Gênero/UFMT/NUEPOM – Grupo MUDAR
começa a ser pensado.
2004 – É criado o Grupo MUDAR; começa a formulação e efetivação do Fórum
Estadual de Economia Solidária em 26/08/2004; o Marco do I Encontro Nacional
de Empreendimentos de ECOSOL em Brasília reuniu cerca de 2.000
empreendimentos; II EMESOL.
2005 – Movimento para construção de projeto da ECOSOL na Secretaria
Nacional de Economia Solidária; aprovada em dezembro a Lei Municipal no
2.460, que regulariza a ECOSOL em Tangará da Serra; o Centro Público
funciona pela primeira vez por ocasião do Natal; DRT e Universidades realizam o
Mapeamento; III EMESOL.
2006 – I Conferência Estadual de Economia Solidária; I Conferência Nacional de
Economia Solidária; projeto do Centro Público ganha força; é criado o Conselho
65
Nacional de ECOSOL; I Encontro Municipal de Economia Solidária; I Feira
Estadual de Economia Solidária.
2007 – Inauguração do Centro de Comercialização; São realizadas muitas
Audiências Públicas de apoio; I Encontro de Formação de Formadores de
Economia Solidária; Encontro Regional de Reestruturação do Fórum Brasileiro
de Economia Solidária da Região Centro-Oeste; Participação expressiva dos
EES da ES na I Feira Panamazônica de Economia Solidária; II Feira Estadual de
Economia Solidária.
2008 – IV Plenária de Economia Solidária (encontros e desencontros); Lei
Municipal de Cuiabá tramita na Câmara; Lei Estadual é aprovada; I e II Feira
Pantaneira de Agroecologia, Agroextrativismo e Economia Solidária; IV
EMESOL.
2009 – Fórum Social Mundial, primeiro com participação representativa dos EES
do Mato Grosso; inauguração do CFES (Centro de Formação em Economia
Solidária) da Região Centro-Oeste; III Feira Pantaneira de Agroecologia,
Agroextrativismo e Economia Solidária; V EMESOL; primeiro ano de
funcionamento do Centro de Formação em Economia Solidária do Centro-Oeste
(CFES-CO); renovação de alguns membros do Conselho Nacional de Economia
Solidária. Um dos integrantes é representante do FEES/MT no Fórum Brasileiro
de Economia Solidária (FBES); início da Formação Política das Comunidades da
Morraria, que compreendem dois municípios de MT, Nossa Senhora do
Livramento e Poconé – realizada pela UNEMAT/INCUBESS; início da construção
da indústria de beneficiamento da banana, de uma rádio comunitária e do Centro
de Informática que atenderá a região da Morraria – localizada na Comunidade
Quilombola de Capão Verde/Poconé; chegada da UNISOL Brasil junto aos EES
do MT.
2010 – Fórum Social Mundial/Fórum Mundial de Economia Solidária Santa
Maria/Porto Alegre/Canoas-RS; I Seminário Estadual de Comercialização
Solidária de MT, Cuiabá-MT; I Seminário Regional/CO de Comercialização
Solidária, Bonito-MS; Encontro Regional do FBES. Campo Grande-MS; Lei
Estadual de Economia Solidária é regulamentada com veto na criação do
Conselho Estadual; início do 3º Mapeamento da ECOSOL realizado pela
ANTEAG; I Feira Regional de Agricultura Familiar e Economia Solidária do Norte
do Estado – Colíder.
66
2011 – Eleição da primeira Mulher na Presidência do Brasil; Lei Municipal de
Economia Solidária de Colíder nº 2.436/2011 é aprovada; XI Fórum Social
Mundial; I Seminário Estadual de Comércio Justo e Solidário; IV EMESOL;
Decreto do Conselho Estadual de ECOSOL/MT; Marcha das Margaridas; X
Reunião da Coordenação Nacional do FBES; I Encontro Nacional de Diálogos e
Convergências; Avaliação dos CFES e início da construção de um novo edital
para reformulação deste Centro de Formação.
São mais de 65 anos de história construídos pelas atrizes e atores da ES em
Cuiabá com a participação de alguns representantes de EES dos outros municípios
da “baixada cuiabana”. Esta reconstrução foi feita em um encontro de formação
articulado entre a RECID e o FEES, que objetivava reunir o maior número de
integrantes: EES, Assessorias, Gestores e militantes, em torno da retomada e
fortalecimento da articulação do Movimento no Estado.
O exercício possibilitou a partir das trocas um ato reflexivo entre o coletivo,
que se desdobrou em um momento de elucidação das conquistas e do quanto ainda
se é preciso articular para desvelar, uma vez que “o diálogo crítico é libertador, por
isto mesmo que supõe a ação, tem que ser feito com os oprimidos, qualquer que
seja o grau em que esteja a luta por sua libertação” (FREIRE, 1989, p. 58).
Tem-se o entendimento da importância e força de todas estas ações que
promoveram e fortaleceram o movimento em Cuiabá, percebendo em cada etapa
desta caminhada atitudes fortalecidas pela participação de cada sujeito, de cada
protagonista e escritoras/es de sua própria história revelam traços de autonomia em
suas bases. Uma autonomia ainda tímida, com avanços e retrocessos, mas esse é o
movimento da própria vida, uma construção social onde:
É o saber da História como possibilidade e não como determinação. O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre, mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História, mas seu sujeito igualmente. No mundo da História, da cultura, da política, constato não para me adaptar, mas para mudar (FREIRE, 1996, p. 76-77).
No momento em que se tem tranquilidade sobre esta dimensão do estar
sendo, de que, ao sujeito se inscrever, é inscrito em um movimento dialético entre
67
tais categorias, abre-se um leque de possibilidades que, correlacionadas à
autonomia aqui mencionada, dimensão que é buscada como elemento fundante em
cada evento, reunião, articulação, formação e reconstruções, potencializam o fazer
enquanto estratégia de superação destes protagonistas.
Em conjunto à autonomia, a fé, a alegria, a confiança, a esperança e o amor
pelo que é humano. Como também a resistência, a inconformação, a indignação
contra a negação do homem como objeto caminha no mesmo compasso. No interior
deste processo, a identidade formativa que o mesmo assume, é co-responsável por
esta conquista, mesmo porque:
A desconsideração total pela formação integral do ser humano e a sua redução a puro treino fortalecem a maneira autoritária de falar de cima para baixo. Nesse caso, falar a, que na perspectiva democrática é um possível momento de falar com, nem é ensaiado. A desconsideração total pela formação integral do ser humano, a sua redução a puro treino fortalecem a maneira autoritária de falar de cima para baixo a que falta, por isso mesmo, a intenção de falar com (FREIRE, op. cit., p.115-116).
Essa é uma característica que os atores da EES estão aprendendo, em cada
encontro, feira, seminário, conferência, trocas, enfim, em cada trabalho proposto e
construído por este coletivo, há esse cuidado, sensibilidade e interesse a partir dos
pressupostos da Educação Popular em falar com os parceiros, as companheiras e
companheiros. É um espaço de contradições e conflitos, mas que, nem por isso, ou
exatamente por isso, se estimula o exercício da cidadania.
Uma das conquistas do Movimento frente às demandas de Formação foi a
criação, em 05 de março de 2009, do Centro de Formação em Economia Solidária
(CFES), cuja coordenação pedagógica e administrativa funciona em Goiânia-GO. A
Escola da CUT (ECOCUT) participou do edital nacional e foi a selecionada para
gerenciar as atividades do Centro, onde três pessoas são responsáveis pela
consecução das atividades pedagógicas, administrativas e financeiras em conjunto
com um Conselho Gestor composto por 6 (seis) pessoas: 4 (quatro) representantes
de cada Estado e 2 (dois) representantes da CUT.
Neste sentido, há o entendimento entre os coletivos de que o
acompanhamento e a avaliação das atividades desenvolvidas pelo CFES precisam
ser feitos de forma compartilhada, integrada, respeitando as diferenças culturais de
cada região. Acreditam que isso só será possível com a participação efetiva dos
68
FEES em articulação com os Fóruns Municipais, através das reuniões e formações
necessárias para um trabalho que venha ao encontro das necessidades de cada
Estado, Município e Comunidade, pois é a base que precisa ser fortalecida e
empoderada através das atividades deste CFES.
Como vem sendo discutido que um dos processos privilegiados da ES é a
dimensão educacional, ou seja, a formação política a partir da educação popular
freireana, há todo um trabalho que tem como objetivo o estímulo à inserção das/os
militantes na discussão política a partir de suas realidades, enquanto
trabalhadoras/es, mães e pais chefes de família que buscam por melhores
condições de vida através do resgate de sua cidadania, que a lei de fato não
consegue garantir.
Sendo assim, os militantes da ES, ao refazerem suas memórias através deste
exercício aparentemente simples, que foi o Túnel do Tempo, perceberam o quanto
caminharam, tantas foram as conquistas que precisam ser nomeadas, mas que, com
certeza, não estão todas aqui registradas. Entendem que, para efetivá-las, é preciso
o acompanhamento e a avaliação constante destes espaços e Políticas Públicas
pelos seus propositores.
A apropriação se dá com a vivência, mediada pelo diálogo. E estes não são
processos autônomos, ou seja, são dimensões dialéticas que precisam estar
constantemente sendo experimentadas. É preciso muito mais articulação de ações
que continuadamente exerçam o papel de animação, uma vez que a cultura
assistencialista ainda inunda nosso cotidiano: eis um constante desafio.
E é exatamente neste ponto que a cultura da autogestão nos desafia,
inclusive sua definição, que em meio às práticas é compreendida de diferentes
formas. Mas a autogestão entendida no âmbito de que “os trabalhadores não são
mais subordinados a um patrão e tomam suas próprias decisões de forma coletiva e
participativa” (BRASIL, 2007) que, ao serem verificadas nas práticas
problematizadas, percebe-se que ultrapassam estes termos.
Toda essa dinâmica envolve uma construção de dimensões que são
indispensáveis ao sujeito e à comunidade na qual está inserida. Insisto que a
dimensão da autonomia é tão importante quanto o conjunto de outras tantas, como a
liberdade, a participação e a democracia, o empoderamento pela ação-reflexão-
ação, as subjetividades e intersubjetividades, o trabalho e a educação, entre outras.
69
É importante que se perceba que essas dimensões são interligadas como em
rede e que a ausência de uma pode inviabilizar o exercício da outra:
Deve fazer parte de nossa formação discutir quais são estas qualidades indispensáveis, mesmo sabendo que elas precisam ser criadas por nós, em nossa prática (...). É preciso que saibamos que, sem certas qualidades ou virtudes como amorosidade, respeito aos outros, tolerância, humildade, gosto pela alegria, gosto pela vida, abertura ao novo, disponibilidade à mudança, persistência na luta, recusa aos fatalismos, identificação com a esperança, abertura à justiça, não é possível a prática pedagógico-progressista, que não se faz apenas com ciência e técnica (FREIRE, ibid., p. 120).
Trazer essa constatação para as relações que ora estão se estabelecendo
nesta experiência da “Baixada Cuiabana” demonstra o quanto cada participante
(mulher, homem, jovem, idoso) precisa se envolver e abstrair de si mesmo
preconceitos, despir-se das idéias impregnadas pela ideologia vigente que os impele
ao imobilismo, e a dificuldade de ver algo novo e diferente como uma possibilidade
para as transformações necessárias.
A autonomia, neste contexto, é algo a ser praticado em cada etapa deste
processo, e em todos os momentos da vida. Não é uma empreitada fácil, não é
natural. É vivência, sendo assim, levando-se em conta que não é estimulada em
nenhum espaço específico, inclusive nem mesmo discutida pelos aparelhos
ideológicos disponíveis, é de se ter em mente que dependerá do interesse e esforço,
tanto individual quanto coletivo.
A proposta político-pedagógica da ES é justamente respaldada na Educação
Popular, pelo fato de que não há nenhuma proposta pronta e acabada, se faz no
processo, fazendo juntos. É esse o objetivo, afinal: construirmos juntas/os uma nova
proposta de sociedade e de vida. Esse é um testemunho de busca e construção da
autonomia, de uma possibilidade possível diante de realidades tão adversas que
constantemente insistem em nos colocar que não há saída.
3.3 A ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DA ECONOMIA SOLIDÁRIA NO MATO GROSSO
HOJE
Hoje a organização deste espaço de representação política no Mato Grosso,
como em alguns estados, está fragilizada. O FEES/MT está mais uma vez em
processo de reestruturação, devido a várias atenuantes, algumas delas referindo-se
70
a sua expressiva expansão territorial e a inexistência de apoio ou projeto logístico
para sua articulação e mobilização, mesmo assim há o desejo de que esta
reorganização aconteça:
Minha participação no Grupo Mudar teve início quando eu já estava perdendo a esperança na consolidação de um Fórum de Economia Solidária que viesse atender as necessidades e os sonhos de cada um e cada uma, em um mundo melhor. Eram tantos os relatos que esse mundo melhor seria possível, que nos enchia de esperança e não tinha outra alternativa senão se apaixonar pelo movimento (Integrante MN).
Há que se considerar neste processo algumas questões de ordem política. O
distanciamento do acompanhamento de algumas Assessorias de apoio também é
uma das dimensões que pesaram para este quadro atual, outro fator é a questão de
que os próprios EES não estão conseguindo se articular em prol desta organização,
apesar do interesse.
A falta de comunicação e de elementos estruturantes (condições materiais e
imateriais) são elementos destacados durante o último encontro do coletivo que vem
tentando a reorganização deste espaço político em Tangará da Serra-MT.
Em virtude desta realidade, desde meados do ano de 2010 as reuniões deste
coletivo estão, via de regra, acontecendo, na maioria das vezes movidas por pautas
de nível regional ou nacional; como por exemplo, em nível estadual, o Seminário
Estadual de Comercialização; em nível regional, sobre a Comercialização Solidária e
o Encontro Regional do FBES/CO; e nacional, oriundas da construção do Projeto da
Lei Geral de Iniciativa Popular da ES (PL 856).
Esta é a situação hoje do FEES/MT, que apesar de desestruturado pode ser
rearticulado a partir de suas bases, devido às mobilizações, articulações e diálogo
realizado através do coletivo da REMSOL e da RECID no interior do estado. Temos
no estado a Lei nº 8.936, de 17 de Julho de 2008, que institui a Política Estadual de
Fomento à Economia Popular Solidária no Estado de Mato Grosso. Neste primeiro
momento o governador em exercício, Blairo Maggi, vetou a constituição do Conselho
Estadual de ES.
Hoje a política estadual de ES foi tramitada da SETECS para a SEDRAF –
Secretaria Estadual de Desenvolvimento Rural e Agricultura Familiar. Nesta última
foram criadas duas Comissões para discutir e construir este Conselho de forma
tripartite (EES, Assessorias e Gestores Públicos). O Conselho Estadual de ES foi
71
regulamentado, após toda uma construção representativa - participativa, através do
Decreto de nº 598/11, sancionado no dia 15 de agosto de 2011.
No estado a ES está organizada em 09 (nove) regionais e existem hoje 05
(cinco) Fóruns Municipais ativos, sendo que 03 (três) atuam em âmbito Regional:
Cuiabá e Rondonópolis (regional), Tangará da Serra (regional), Cáceres e Colíder
(regional), sendo que, destes, 03 (três) já possuem Leis de Incentivo e Fomento da
Economia Solidária.
Outros municípios possuem a Lei (São José dos Quatro Marcos e Apiacás),
porém não há notícia de Fóruns, mas há um coletivo organizado pela REMSOL; os
demais já realizaram discussões e propostas de leis municipais onde algumas foram
vetadas e outras ainda estão em discussão pelo coletivo:
1) Lei Municipal nº 2.460/2005 que regulariza a ECOSOL em Tangará da Serra. O
Fórum é de nível Regional;
2) Lei Municipal nº 1.210/2009, institui em fevereiro de 2009 a Política Municipal de
Fomento à Economia Popular Solidária em São José dos Quatro Marcos;
3) Lei Municipal nº 615/2009, institui a Política de Fomento à Economia Popular
Solidária no Município de Apiacás;
4) Lei Municipal de Economia Solidária de Colíder, nº 2.436/2011;
5) Lei Municipal de Economia Solidária na Região de Cáceres em projeto;
6) Poconé: a política pública está sendo tramitada pela Câmara dos Vereadores, foi
amplamente discutida e nasceu de uma articulação nascida no meio campesino
da Região da Morraria (municípios de Nossa Senhora do Livramento e Poconé).
É importante destacar que a maioria destas conquistas nasceu a partir de um
movimento de formação política articulada e mobilizada pela REMSOL e está
fazendo a diferença no trabalho de muitos EES do interior do estado, principalmente
junto à AF. Por outro lado, a RECID também colaborou estabelecendo diálogo com
etnias indígenas, quilombolas e ribeirinhos por todo o estado e, de forma mais
presente, na “Baixada Cuiabana”, com EES da cidade e do campo.
O CFES é um dos Projetos do Governo Federal que, em parceria com
algumas instituições (ONGs, Universidades), foi criado como resposta a uma
demanda por formação política, técnica e ética dos segmentos que compõem a ES
no Brasil. Foram ao todo 05 (cinco) CFES (Sul, Sudeste, Centro-Oeste, Norte e
Nordeste).
72
Uma de suas responsabilidades era fortalecer os coletivos a partir da parceria
com os FEES dos estados, para que a formação desenvolvida pudesse política e
tecnicamente instrumentalizar os EES, Assessorias e Gestores Públicos. Porém, em
nossa experiência este foi um sonho que se transformou em uma prática
desarticulada com o Movimento, o diálogo entre este e o FEES foi inexistente, suas
ações de formação não tiveram retorno objetivo de fortalecimento político ou técnico
do movimento da ES no MT.
Com certeza as ações de formação através do CFES-CO estão acontecendo,
mas através de algumas experiências isoladas, em parceria com determinadas
instituições governamentais e não governamentais, mas que o coletivo de EES,
Assessorias e Gestores Públicos, que atualmente estão comprometidos com a
Reestruturação do FEES/MT (CPR/FEES-MT), desconhecem.
O Grupo MUDAR, através de uma de suas integrantes, participa de perto
destes processos, mesmo porque são representantes do estado frente a esta
política dentro do FBES. O fato do Grupo em sua totalidade não ter participação in
loco em alguns espaços articulados pela ES no estado gera algumas situações de
conflitos e contradições diante deste cenário político:
A produção e a comercialização insipiente, a dificuldade de estarmos presentes no Centro Público de Comercialização da ES, as muitas situações que invibializam a presença da maioria das mulheres e a quase inexistência de retorno financeiro do nosso empreendimento são alvo de discussões e rusgas entre nossa organização e alguns EES e Assessorias que insistem em nos apontar como um não grupo de ES. Este é um fator que escancara uma realidade cruel entre nós, pessoas que, contra muita dificuldade, tentam fazer uma relação diferente nesta sociedade, mas a realidade da perversa subversão do indivíduo a um modelo fechado para outras possibilidades nos impede. Nós estamos mobilizadas em torno de uma idéia: uma forma de produzir juntas sem que seja preciso deixar a família de lado, muito pelo contrário, trazendo a família para trabalhar junto com a gente. É neste ponto que eu acho que as Assessorias precisavam trabalhar, no apoio às idéias ou iniciativas, como esta nossa, mas o que percebemos neste caminho é que não importa o quanto conhecemos, ou o quanto queremos conhecer para poder dar conta de nossas limitações, buscando sempre melhorar nossa produção e, mesmo enquanto pessoas, mas se você não corresponde à expectativa dos “outros”, você pode ser muito questionado e exposto a uma série de situações muitas vezes constrangedoras (JFN, Coordenadora Grupo MUDAR).
Esta fala da coordenadora do Grupo MUDAR nos chama muito a atenção
sobre este processo de atuação dos três segmentos das pessoas e instituições que
73
compõem a ES. Percebe-se aí uma indiscutível tensão/contradição entre o fazer e o
dizer, com outras palavras, entre o discurso e as práticas dentro do processo de
organização/formação da ES nesta experiência.
No momento em que foi trazida a discussão sobre a situação política do MS
da ES hoje na experiência do Mato Grosso, a partir das experiências de participação
do Grupo, visto a ativa circulação deste nos processos políticos local, regional e
nacional, surgiu esta questão como algo que empresta ao Grupo uma posição de
incerteza diante da permanência/resistência do mesmo nestes espaços.
Muito embora as mulheres percebam uma melhoria na sua qualidade de vida
no concernente aos acessos a determinados conhecimentos, à motivação de dar
continuidade aos estudos, onde metade das integrantes, após a criação/participação
no Grupo, voltou a estudar e já tem concluído o Ensino Superior; diante destas
forças desmobilizadoras sentem-se enfraquecidas:
Pode até parecer bobagem, e muito provavelmente é, mas nós estamos nos sentindo como o FEES/MT, em constante processo de rearticulação, sem acompanhamento técnico adequado, minadas pelo descrédito e a desvalorização de muitas pessoas que em nome ou não do movimento insistem em não reconhecer que existimos e que precisamos do apoio de todas e todos para permanecermos ativas neste processo (JFN, Coordenadora, Grupo MUDAR).
Quando trouxemos a experiência deste Grupo para dar “carne” ao processo
de formação que circula dentro da proposta da ES, o fizemos pela possibilidade
traduzida na expressão que o desejo destas mulheres trazem para dentro desta
construção. Tanto que no decorrer desta dissertação estão discussões e reflexões
tecidas com base na esperança delas (e de outros) por um “outro mundo possível”.
Estes testemunhos estão traduzidos/presentes em cada ponto de fala, de
forma mais ou menos coletiva, em articulação com outros “olhares”. O desejo fez
com que acreditassem em algo que elas nunca haviam sido estimuladas a perceber
ou crer: que elas podem fazer a diferença!
A desarticulação do Grupo hoje de fato é algo que incomoda muito estas
mulheres, que não desistem da idéia e do sonho de serem donas de seu próprio
“negócio”. Do sonho de, ao conquistar o poder, se aventurar em uma forma diferente
de produzir e de viver bem, também podem sonhar com a real possibilidade de
colaborar para com a construção de uma sociedade melhor para as futuras
gerações, enfim, onde sonhos possam se tornar realidades:
74
Minha participação no Grupo MUDAR juntamente com algumas companheiras que estiveram presentes nos momentos de trocas e formação, tentamos sugerir uma mudança de vida por meio da idéia e do movimento de Economia Solidária, na tentativa de fazer com que o nosso grupo venha a sentir a maravilha que é sonhar e ver que é possível um mundo melhor através de nossas ações (Integrante MN).
75
4 COMERCIALIZAÇÃO E FORMAÇÃO: ESTRATÉGIA DE ORGANIZAÇÃO
POLÍTICA
4.1 PARTICIPAÇÃO NAS FEIRAS PANTANEIRAS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA,
AGROECOLOGIA E AGROEXTRATIVISMO
Esta conversa coloca em discussão algumas reflexões que são resultados
dos trabalhos de Formação que aconteceram em meio à Comercialização, Produção
e Consumo durante as Feiras Pantaneiras de Economia Solidária, Agroecologia e
Agroextrativismo. A I, II e III Edições aconteceram no município de Cáceres-MT, a IV
Feira aconteceu no município de Tangará da Serra-MT.
A primeira delas aconteceu entre os dias 22 e 24de junho de 2007 e a quarta
e última entre os dias 05 e 09 de setembro de 2009, durante a EXPOSERRA - Feira
Agropecuária de Tangará da Serra, sendo que o tema compartilhado com o V
EMESOL, nesta oportunidade, foi o I Seminário Estadual de Redes e Cadeias de
Colaboração Solidária.
Os encontros geralmente eram organizados por alguns coletivos articulados
em torno da discussão e fortalecimento da ES no Estado. Entre eles o do FEES/MT,
da REMSOL, da AMAMT, do SINTEP/CUT, do MST, Comissão Permanente da
Mulher, ABONG (Associação Brasileira das Ongs), Pré-Fórum da Juventude/
Cáceres, Sindicato dos Trabalhadores Rurais/Cáceres, alguns EES de vários
municípios de Mato Grosso, em conjunto com a UNITRABALHO/INCUBESS/
UNEMAT.
Estes encontros foram destacados pelo Grupo como uma das oportunidades
de comercialização e formação que oportunizou muitos intercâmbios e trocas de
conhecimentos. Nas quatro edições das Feiras Pantaneiras o Grupo MUDAR pôde
estar presente.
Neste sentido, serão trazidas algumas discussões e reflexões tecidas pelos
coletivos durante a formação trabalhada nestes espaços de Feira. A intenção é fazer
uma releitura de algumas idéias que foram tratadas, de forma mais ou menos
descentralizada, ou seja, sem uma ordem cronológica determinada.
Buscar nas memórias do Grupo as dimensões que mais se destacaram para
elas neste processo educativo pode ser uma maneira de novamente poder
problematizá-las, verificando o quanto elas têm relação com o cotidiano.
76
A metodologia utilizada nestes espaços tentou fazer uma ponte direta entre a
formação (produção de saberes) e a comercialização, com o objetivo de estimular o
fazer intelectual e o fazer prático, em um ato de ação-reflexão, pois “o enfrentamento
dialético ação-reflexão é o que dá origem à mudança, tanto do nível de consciência,
como da estrutura social” (GUTIÉRREZ, 1993, p. 28).
4.1.1 Idéias Destacadas
Cuidado com o meio ambiente: consumo versus lixo, agrotóxico versus alimentos
saudáveis, cuidado versus exploração, gente versus politicagem, vida versus
morte;
Políticas Públicas para os setores da EE, Agroecologia e Agroextrativismo:
construir com a participação da base - é extremamente urgente e necessário
conhecer as que já existam, para reivindicar como base;
Diferença entre PP e Programas e Projetos: Leis, Conselhos, CFES, Sistema
Nacional de Comércio Justo e Solidário, PAA, PNAE;
Processo do Mapeamento: construção e apropriação do SIES; no Mato Grosso
foram confirmados aproximadamente 747 e visitados em todo o Brasil cerca de
22.000 empreendimentos. O mesmo aponta a predominância de 75% no meio
rural e de 70% formados pela população feminina, os quais resistem sem
nenhum apoio;
Agroecologia e Agroextrativismo: valorização dos saberes populares, a luta
contra o monopólio da monocultura como estratégia de desenvolvimento,
transgenia e os agrotóxicos, valorização dos bancos de sementes crioulas, luta
pela liberdade do uso da biodiversidade;
Articulação entre os diversos MS em prol de integração de agendas para
fortalecimento destes setores produtivos: organização é a palavra chave aqui;
Educação problematizadora como instrumento de emancipação política:
processo de consciência e conscientização contínuos e necessários; valorização
da escola pública: do campo e da cidade, a política de inclusão, de cargos e
carreira, salarial e a destinação de recursos públicos para a educação;
Organização Territorial com o cuidado às Territorialidades: é preciso mais
conhecimento sobre estes temas até para apropriação dos MS;
77
Cuidado com as gerações, neste caso a juventude é uma preocupação frente à
continuidade do fortalecimento de espaços como o meio campesino;
Economia Solidária e Agricultura Familiar juntas pela construção de uma outra
sociedade possível: o intercâmbio precisar continuar se fortalecendo,
principalmente para consolidar o diálogo entre as pessoas do campo e da cidade:
“o desenvolvimento da agricultura familiar considera o meio ambiente como fator
fundamental da sustentabilidade da propriedade produtiva” (DERKOSKI, 2004, p.
314);
Parcerias entre os EES podem fortalecer os processos de produção de saberes e
comercialização solidárias;
O diálogo entre os EES, as Assessorias e os Gestores Públicos se dá em um
processo de disputa, enfrentamentos e contradições;
Inclusão digital e acesso às Tecnologias da Comunicação e Informação:
Tecnologia Social como meio de acesso a uma produção social diferenciada;
É necessário ter o conhecimento da conjuntura política no Brasil e na América
Latina: leitura de mundo e do mundo que é muito difícil de fazer;
Exploração do “mundo do trabalho”: trabalho escravo, exploração sexual
comercial infanto-juvenil, trabalho infantil, desigualdade de gênero,
competitivismo e o individualismo;
É preciso que se problematize a naturalização das violações e dos preconceitos,
pois esta situação ajuda a promover a banalização dos direitos humanos, sendo
assim, contra o ser humano como um todo;
Aproximação das Universidades como estratégia política e pedagógica para
“qualificar” as discussões dos militantes e dos universitários: necessidade de
construir conceitos a cerca de temas relevantes como estes, para abrir mais as
possibilidades dentro dos limites conceituais de cada espaço de produção de
conhecimentos; continuidade na escolarização;
Valorização das identidades culturais e saberes populares: quilombolas,
ribeirinhos, caiçaras, assentados, quebradeiras de coco, agricultores familiares,
indígenas, pessoas que tentam fazer de forma diferenciada a vida;
Percepção do movimento dialético da vida: “eu” e o “outro” no mundo, e com o
mundo, podendo agir juntos para transformá-lo;
Participação como instrumento de poder: acompanhamento através do controle
social relativo;
78
Comércio Justo e Solidário: revisão do consumo, do acúmulo, das relações
comerciais, dos contratos sociais estabelecidos, necessidade de uma profunda
transformação na base de uma sociedade tão capitalista;
Feira de Trocas: Moeda Social, trocas de produtos materiais e imateriais;
Redes e Cadeias Produtivas: leitura de processos diferenciados, mas que se
comunicam, ou precisariam se comunicar;
Muitas construções significativas dentro dos processos do Grupo MUDAR, da
REMSOL, da AMAMT, dos EMESOL, do FEES, do Brasil Local e do FBES.
4.1.2 Algumas Discussões
Os coletivos reunidos em torno destas reflexões demonstram que têm a
compreensão de que essa é apenas uma das discussões onde é preciso que os
grupos envolvidos na organização destes espaços políticos estejam preparados para
discutir as realidades e proporem estratégias, dar sugestões, trocar ideias e assim
colaborar com a dinamização da Economia Solidária, da Agroecologia e do
Agroextrativismo.
Nestes momentos é preciso que se ressalte aqui a participação dos atores
sociais em cada etapa deste processo dialógico, o Grupo MUDAR sempre retorna a
este ponto da participação, sendo percebido por elas, na medida do possível, como
o diferencial vivenciado nestas Feiras de ES.
Para o Grupo MUDAR estas discussões fazem parte de uma preocupação
frente à produção das biojoias e do papel reciclado. Como, ou em que medida a
produção delas estaria de acordo com a forma adequada do trato com as sementes
e com a produção dos papéis? Partiram destas dúvidas para a compreensão mais
ampla de algumas aproximações sobre estas questões.
A ES tem, na perspectiva dos EES aqui representados, no trabalho e no
investimento em espaços de formação política para a construção de uma nova
realidade cultural e política - uma importante colaboração, pois o individualismo que
impera nesta cultura capitalista impede todo o avanço e concretização deste “inédito
viável”:
Os olhos das pessoas brilhavam e conseguíamos sonhar de forma coletiva, isso era impressionante. Mas para mantermos esse brilho, tínhamos que caminharmos juntas/os, em busca dessa consolidação,
79
que nem sempre era possível. Na maioria das vezes a ganância e o próprio egoísmo nos distanciavam, não pelo Grupo, mas por “aqueles” que, de alguma forma, tentavam se autoafirmar donos do movimento e dos espaços que havíamos conquistado juntos. A falta de união entre os empreendimentos e grupos faziam com que fossemos perdendo a esperança nesse tão sonhado mundo melhor (Integrante MN).
Nesta perspectiva, entender como uma história de resistência pode se dar em
meio a tantos conflitos e, ainda assim, haver superação, fazendo com que o Grupo
permaneça unido em torno desta possibilidade, onde somente com base em
relações solidárias pode-se vislumbrar a construção de uma vida digna:
Desde o começo mesmo da luta pela humanização, pela superação opressor-oprimidos, é preciso que eles se convençam de que esta luta exige deles, a partir do momento em que aceitam, a sua responsabilidade total. É que esta luta não se justifica apenas em que passem a ter liberdade para comer, mas “liberdade para criar e reconstruir, para admirar e aventurar-se”. Tal liberdade requer que o indivíduo seja ativo e responsável, não um escravo nem uma peça bem alimentada da máquina. Não basta que os homens não sejam escravos; se as condições sociais fomentam a existência de autônomos, o resultado não é o amor à vida, mas o amor à morte. Os oprimidos que se “formam” no amor à morte, que caracteriza o clima da opressão, devem encontrar, na sua luta, o caminho do amor à vida, que não está apenas no comer mais, se bem que implique também e dele não possa prescindir (FREIRE, 1987, p. 55).
Enquanto um processo de “formação” política, é preciso todo um cuidado
frente aos discursos e práticas que apóiam sua fundamentação. Esta leitura das
entrelinhas das intenções políticas por trás de cada “ideia” é uma espécie de
filtragem complexa, difícil de decifrar por pessoas comuns.
É por isso que se retoma continuadamente a necessidade da educação
problematizadora como estratégia para a construção de PPs que possam quebrar
esta cultura historicamente paternalista/assistencialista.
Talvez assim, acreditam, a voz das milhares de pessoas que ora fazem e
refazem suas vidas, confiando na possibilidade da construção de uma nova forma
de estabelecer relação entre si e com a natureza, alcançaria determinado patamar
de organização e então conseguiria a visibilidade necessária e a conquista dos
direitos civis negados.
O diferencial dos processos de formação e comercialização das Feiras
Pantaneiras estava na correlação que existia entre os temas abordados e a história
80
de vida de cada uma e cada um. Percebia-se nos semblantes e nas intervenções
feitas em muitos momentos, durante os processos de estudo e comercialização, que
este foi o ponto chave para as trocas significativas, além de terem sido
determinantes para os encaminhamentos.
É muito interessante o movimento interno e externo, que acontece entre as
pessoas quando se pára para ouvir o “outro”, muito acontece conosco e com cada
um(a), pois as diferenças encontradas nos preenchem com algo que
desconhecemos de nós mesmos, mesmo que muitas vezes isso seja negado:
A diferença nos incomoda, nos descentra, porque afeta nossas certezas, nossa segurança. Nós procuramos resolver o incômodo atribuindo-a ao outro, localizando-a no outro, responsabilizando o outro pela “desordem”, pelo “desequilíbrio” que ela traz à nossa visão de mundo, aos nossos valores, aos nossos conceitos (BANDEIRA, 1995, p. 21).
Assim fica o percebido que sem o “outro” o “eu” pode ficar incompleto, pois
somos como em uma ciranda onde um, por vezes, está no outro e esta constatação
pode fazer a diferença em nossa busca pela humanidade perdida.
Esta relação dialética de busca pela alteridade permeia a ideia da vida como
uma arte, a arte de se viver bem e é esta ideia que ajuda a dar base à ES que, por
sua vez, privilegia fundamentalmente o trabalho coletivo, como uma chance em mil
dos homens se fazerem na luta pela produção e manutenção da vida:
Todo aprendizado resulta de uma abertura para o outro. Existe uma mestiçagem no processo educativo. Só é realmente instruído aquele que consegue adquirir uma outra cultura que não a sua. Como diz Michel Serres: “todo aprendizado exige essa viagem com o outro em direção à alteridade (1993:60)” (GADOTI, 1993, p. 21).
A questão da educação para todas as etapas da vida foi considerada
primordial, tanto para o campo quanto para a cidade. Sabe-se que a realidade do
povo quanto média de escolaridade formal é baixíssima, e quando se considera a
classe, cor/raça, gênero o quadro é ainda pior.
A discussão de muitos MS por uma Escola Pública de qualidade é grande,
uma vez que seu acesso é restrito, inclusive e principalmente quando se fala do
Nível Superior. Quando se fala de educação para todas/os, é importante que seja
pensado em quais princípios se pauta, pois:
81
Certamente a primeira exigência é de ser uma educação inclusiva, com orientação, portanto, para o desenvolvimento de processos de inclusão. Esta deverá ser desenvolvida em duas perspectivas: pela inclusão daqueles e daquelas que já estão sendo atendidos e atendidas. Parece uma contradição afirmar a necessidade de incluir aqueles que, de uma certa forma, já foram incluídos. Mas não se caracteriza como contradição quando se avalia que o sistema educacional não leva em conta características e aspectos da vida dos sujeitos que vivem em condições bem diferenciadas, que são, portanto, características próprias de determinados grupos sociais, como os grupos sociais do campo, por exemplo (BOFF, 2004, p.125).
Boff em sua fala destaca a necessidade “da necessidade” de se construir uma
educação de qualidade, inclusiva e apropriada às diversidades das diferenças
culturais e sociais. Na tentativa da leitura e releitura das memórias do Grupo
MUDAR, nossa proposta foi de buscar o que mais significou para a vida delas neste
caminhar.
A dimensão da educação foi realmente um ponto marcante, dadas as
experiências que ambas tiveram em suas trajetórias de vida, ao acesso ou não que
tiveram oportunidade no decorrer da vida. Além disso, a oportunidade que tiveram a
partir da participação no Grupo e na ES:
Já tínhamos conquistado tantos espaços, tantas formas de agregar ideias através dos encontros de formação ou até mesmo nas visitas que fazíamos nas comunidades, que por sua vez já viviam de suas ações coletivas, uma cultura invejável, tínhamos certeza que a idéia da construção desse novo modelo de viver seria possível, principalmente através dos relatos de cada empreendimento (Integrante MN).
A “participação ativa” através dos intercâmbios e nos processos de formação
política colaboraram para fortalecer a idéia da produção coletiva e do fazer diferente
dentro dos processos de produção, comercialização e consumo neste modelo
capitalista.
Outra forma de participação destacada foram os diversos Fóruns e
Conselhos. Estes são espaços onde o povo pode buscar determinado “controle
social”. É bem limitado, sabe-se, considerando-se que poderia vir a ser o povo
exercendo a “democracia”, porém é uma conquista que precisa ser continuadamente
pautada, inclusive como marca de resistência contra mecanismos que tentam
imobilizar a ação popular:
82
Por essa razão, é preciso que demos um passo adiante no sentido de deixarmos de falar por eles e passarmos a dialogar com eles, incluindo-os nos processos de elaboração e formulação das propostas e políticas públicas de educação, ou de qualquer proposição de ações educativas e na construção de seus currículos (BOFF, 2004, p. 125).
Assim sendo, se coloca a importância dos processos educativos formais e
não formais. A articulação necessária entre os saberes empíricos e científicos. Esta
discussão abre muito mais incertezas do que certezas em uma estrada que, de mão
dupla, pouco se vê.
É complicado dizer que a ES, neste cenário, seria a salvadora da situação.
Ela, em suas Redes, cresce com o fortalecimento do terceiro setor enquanto uma
economia social fundada no ideário de respeito, na solidariedade, no exercício da
autogestão, na prática da autonomia, na busca pela democracia.
Com afirmação e reafirmação da sua identidade política cultural, que
aparentemente está bem definida, onde se busca reconhecer e valorizar os saberes
locais e regionais, tudo isso com um profundo respeito às diferenças e diversidades.
Em se tratando desta dimensão, é importante salientarmos que esta proposta
exige todo um esforço entre seus participantes e da sociedade como um todo, para
que o respeito com as diferenças seja percebido enquanto um processo pedagógico,
para que de fato um dia aconteça, pois é imprescindível esta condição para que se
concretize o “inédito viável” de uma sociedade mais justa e de possibilidades diante
dos imensos desafios que é viver nestas realidades:
Para me resguardar das artimanhas da ideologia não posso nem devo me fechar aos outros nem tampouco me enclausurar no ciclo de minha verdade. Pelo contrário, o melhor caminho para guardar viva e desperta a minha capacidade de pensar certo, de ver com acuidade, de ouvir com respeito, por isso de forma exigente, é me deixar exposto às diferenças, é recusar posições dogmáticas, em que me admita como proprietário da verdade (FREIRE, 1996, p. 134).
Assim, fica a compreensão de que a construção coletiva exige determinada
abertura ao “outro”, o respeito diante dos fenômenos sociais, pois não há a
possibilidade de se ter uma só percepção sobre o vivido. Na verdade, quanto mais
ouvimos e refletimos partindo sim de nossa realidade, mas transcendendo para além
do nosso “eu”, adentrando nos limites invisíveis do mundo do “outro”, mais corremos
o risco de nos aproximarmos da realidade como ela pode vir a ser ao se desvelá-la:
83
O cogito de outrem destitui meu próprio cogito de qualquer valor e me faz perder a segurança que eu tinha, na solidão, de ter acesso ao único ser para mim concebível, ao ser tal como ele é visitado e constituído por mim. Mas na percepção de individual nós aprendemos a não realizar nossas visões perspectivas à parte umas das outras; nós sabemos que elas escorregam umas nas outras e são recolhidas na coisa. Da mesma maneira, precisamos aprender a reconhecer a comunicação das consciências em um mesmo mundo. Na realidade, outrem não está cercado em minha perspectiva sobre o mundo porque esta mesma perspectiva não tem limites definidos, porque ela escorrega espontaneamente na perspectiva de outrem e porque elas são ambas recolhidas em um só mundo do qual participamos todos enquanto sujeitos anônimos da percepção (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 473).
Esta situação pode nos remeter a alguns questionamentos. Por exemplo,
como tantas bandeiras de luta se integram às da ES? E como a luta da ES se funde
com muitas outras? Esta realidade de convergência demonstra tão somente que
todos querem algo em comum: uma vida com dignidade.
Na essência das “coisas”, esta é uma dimensão básica pela qual o MS da ES
propõe toda uma mobilização popular que possa denunciar e anunciar ao mesmo
tempo, enfrentar e superar através da busca de estratégias contra as situações de
expropriação dos processos sociais, culturais, políticos e econômicos.
Acreditamos que uma das estratégias que pode colaborar para com a
desmistificação da realidade como ela se apresenta, seja através de um processo de
educação problematizadora, por exemplo, da Educação Popular, seja no interior das
escolas, seja na roça ou no chão das fábricas. É uma possibilidade que não possui a
chave das respostas mais procuradas, mas pode ser um caminho a ser trilhado em
busca da construção de uma nova forma de ver o mundo e de fazer-se nele:
Na verdade, só ideologicamente posso matar as ideologias, mas é possível que não perceba a natureza ideológica do discurso que fala de sua morte. No fundo, a ideologia tem um poder de persuasão indiscutível. O discurso ideológico nos ameaça de anestesiar a mente, de confundir a curiosidade, de distorcer a percepção dos fatos, das coisas, dos acontecimentos (FREIRE, 1996, p. 132).
Entendemos, em contrapartida, que este processo não poderia se dar sem
um intenso trabalho de reflexão, de doação e desejo. A conscientização destes
processos necessita de ações que sejam capazes de motivar a necessária
confluência entre a percepção e a problematização da realidade, pois a ideologia
84
tem o poder de fazer parecer que “o mundo encurta, o tempo se dilui: o ontem vira
agora; o amanhã já está feito. Tudo muito rápido” (FREIRE, op. cit., p. 139).
São muitas as discussões que precisam ser levadas em consideração. Muito
foi feito, porém muitas coisas ainda precisam ser feitas, mas mais do que nunca os
MS estão construindo o entendimento de que este é um processo histórico, no qual
a participação e o protagonismo são os elementos que podem fazer a diferença,
pois:
Todavia, a reinvenção e o avanço da economia solidária não dependem apenas dos próprios desempregados e não prescinde do apoio do Estado e do fundo público, como também de várias agências de fomento. Cumpre afirmar que, para uma ampla faixa da população, construir uma economia solidária depende primordialmente dela mesma, de sua disposição de aprender e experimentar, de sua adesão aos princípios da solidariedade, da igualdade e da democracia e de sua disposição para seguir estes princípios na vida cotidiana (SINGER apud NASCIMENTO, 2004).
Nesta perspectiva, tal construção precisa se dar com base no desejo e
esforço pessoal de cada um. Se considerarmos as realidades e suas implicações
diretas nas pessoas e no coletivo, é preciso que se construa todo um aparato que dê
subsídios concretos às pessoas que tentam fazer parte deste grande e ousado
movimento.
Sabendo que, nesta experiência, o desafio constante de trazer os diversos
segmentos que compõem a ES para este novo caminhar, novo “olhar”, o processo
não está dado, está sendo forjado, na medida do possível, exigindo de cada um o
comprometimento necessário para o enfrentamento das estruturas sociais
tradicionais.
Neste contexto, as Universidades, ao se aproximarem, estão sendo cada vez
mais exigidas a darem sua parcela de responsabilidade no compromisso para com
sua função social, que é a de colaborar para a transformação da realidade posta,
através da formação inicial e continuada de seus acadêmicos:
A permanente interpretação e reinterpretação da sociedade, justamente porque ela não é estática, possibilitando uma reflexão sobre o que está acontecendo no processo social global, é tarefa vital de docentes e alunos. Mesmo partindo de pontos de vista, de visões de mundo distintas (até porque a Universidade deve abarcar esta diversidade), essa constante interpretação e reinterpretação é valiosa para a formação da consciência crítica e para a consolidação
85
de uma sociedade democrática que convive respeitosamente, mesmo que firmemente com o dissenso (BIZ, 2004, p. 20).
Aqui fica um apelo pela revisão das grades curriculares de vários cursos,
inclusive cabe aqui destacar que os Currículos das Instituições Públicas precisam
ser todos revistos, problematizados, inclusive com a presença dos MS para que
possa se ter determinada aproximação da vida para uma possível desconstrução, ou
não, dos moldes capitalistas que colaboram para a manutenção das desigualdades
sociais.
Esta afirmação coloca em evidência o quanto as Universidades Públicas
devem ter o compromisso para com a comunidade e a sociedade em geral e, em
relação a isso, esta experiência demonstra que algumas destas instituições
superiores estão se articulando nesta direção, apesar de todos os entraves de uma
instituição que sofre as influências das elites academicistas:
O envolvimento das universidades tem sido importante na construção e no apoio às iniciativas da economia solidária, em vista da sua capacidade de pesquisa e extensão, e, portanto, na elaboração teórica e de atividades práticas executadas por meio de ações desenvolvidas nas Incubadoras Universitárias, com envolvimento de professores, pesquisadores, técnicos e acadêmicos. As incubadoras são espaços de aprendizado e também de observação e reflexão sobre essa nova economia solidária que ressurge (CULTI, 2009, p. 49).
A Universidade envolvida, ou melhor, aberta ao necessário intercâmbio entre
os diversos saberes, como estratégia do processo de formação acadêmica e política
para o empoderamento das comunidades e do fazer acadêmico, pode ser o início de
uma articulação significativa, onde as ideias de uma educação que implica o
comprometimento social e político entre os diversos atores, fundado no diálogo, de
fato se concretize.
A PP, neste sentido, é fundamental para efetivação das propostas vindas da
base, para tanto as lideranças precisam atuar como multiplicadores em suas
comunidades, bem como através das articulações entre as esferas públicas, estas
ações são condição sine qua non para a superação do que está posto.
No que diz respeito à formação e (re)construção dos conhecimentos, temos
na figura deste articulador uma peça fundamental em um processo que é de suma
importância; para tanto é preciso se ter a clareza da relação existente entre
86
opressores e oprimidos e do papel fundamental neste recorte educacional que a
”liderança revolucionária” (articulador) possui.
Entende-se que, para toda transformação acontecer, não se pode, a partir da
transmissão das experiências/vivências, transferir conhecimento, por isso
acreditamos que:
A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são os produtores desta realidade e se esta, na “invasão da práxis”, se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens. (...) esta realidade é funcionalmente domesticadora. Libertar-se de sua força exige indiscutivelmente, a emersão dela, a volta sobre ela. Por isto é que, só através da práxis autêntica, que não sendo “blábláblá”, nem ativismo, mas ação e reflexão, é possível fazê-lo (FREIRE, 1987, p. 20-21).
Seria interessante que esta dimensão pudesse permear toda a prática de
formação defendida pela ES, uma vez que a autonomia é uma construção tanto
individual quanto coletiva. O movimento de emersão/imersão de uma situação
cotidiana de exploração pode ser estimulado durante os momentos de discussão
sobre as vivências, em um processo dialógico e dialético, partindo da vida mesma e
do seu modo de produção.
Assim sendo, entendemos que no processo de formação para a autogestão
com princípios permeados pela solidariedade, estes podem ser pontos chave nesta
proposta diferenciada de organização da sociedade. Em cada encontro salienta-se
“a importância do aprender sempre” (ADAMS, 2007):
A economia solidária começa a existir quando grupos organizados se unem em torno de alguma necessidade, problema e desejo comum, em busca de soluções para seus problemas comuns. A união do grupo exige o cultivo e a integração das três dimensões: atividades do corpo (trabalho físico), da razão (trabalho da mente que inclui a reflexão, o pensar sobre o trabalho, sobre a vida) e do coração (atividade espiritual que inclui as emoções, os sentimentos, valores, as crenças, relações de amizade e de bondade, etc.). Se algum destes aspectos for esquecido, a gente fica capenga. Portanto, para sermos homens e mulheres realizados/as é fundamental aprender através da sensibilidade, do pensamento e do espírito. Este cultivo da mística de lutar por uma vida boa acontece pela dedicação individual, mas também pelo esforço coletivo (ADAMS, op. cit., p. 06).
87
Este é um processo um tanto complexo uma vez que as relações
estabelecidas têm muito do individualismo, interesses que se contrapõem no coletivo
em que, através desta articulação entre formação técnica e política e o diálogo entre
a base e o poder público, pode-se vislumbrar a possibilidade de chegar à construção
de um interesse comunitário, uma vez que ao cuidar do “outro” se estará cuidando
do “eu”:
O coração da economia do trabalho, da solidariedade e da sustentabilidade da vida é o ser-relação que nós somos, o ser multidimensional, capaz de atos de liberdade, de generosidade, de partilha e de mutualidade. Estas são as relações que viabilizam a passagem do homo consumens ao homo convergens (ARRUDA, 2005, p. 58); da economia popular para a economia solidária; (...) Este desafio se destina não apenas aos trabalhadores da economia popular, mas também a nós educadores (ARRUDA, 2006, p. 6).
A sistematização da caminhada da ES é um ponto importante, que é preciso
ser destacado. Referir-se sobre conceitos, sobretudo a partir de uma linguagem que
precisa ser apreendida, ser apropriada pelos protagonistas desta história, é parte
constituinte deste processo.
Esta idéia precisa ser colocada em discussão e evidência com o intuito de
promover esta construção coletiva sob bases/princípios éticos e solidários de fato.
Diferentemente da globalização, a ECOSOL não possui em seu arcabouço
instrumental equipamentos ideológicos poderosos, como a mídia, a escola, a igreja,
etc. É por este motivo, entre outros, que o processo de instituição desta nova forma
de pensar as relações é lento.
Cada região possui seu ritmo próprio, é natural que nas diversas realidades
este processo aconteça de forma diferenciada. Entre os EES também existem suas
especificidades, como, por exemplo, quanto a sua natureza, uns são formais e
outros informais, e esta por si só já gera grandes diferenças frente ao processo de
produção, comercialização e gestão do EES.
O ritmo de organização de cada um é muito complexo. A não linearidade
configura este emaranhado de situações, relações, experiências e vivências tão
distintas e únicas, não tendo condições de alguma espécie de rotulagem:
Nós somos um grupo formado por mulheres mães, com afazeres domésticos e com muitas cobranças em nosso redor, e manter a idéia de cooperação não é fácil, principalmente pelos companheiros das nossas mulheres, que nem sempre estão dispostos a viver do
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movimento, ou de acordo com ele. A Economia Solidária é bastante presente no nosso grupo e fez muita diferença em minha vida pessoal e profissional (Integrante MN).
É nesta perspectiva que insistimos em dizer que os momentos de trocas são
espaços fundamentalmente políticos e de formação (política/ética e técnica/
profissional), dimensões que dão sentido aos participantes e base ao movimento e a
toda sua lógica, é a partir destas experiências que se legitimam as práticas e se
coloca em evidência a proposta de sociedade que se acredita e ora se propõe.
É importante ter atenção à relação simbólica e cultural que está representada
através do processo de produção, pois envolve toda uma interação do sujeito com
seu meio e suas vivências (valores). Levar em conta que todas as relações
legitimadas na sociedade onde o “mercado de trabalho” possui bases heterônomas
e que, portanto, precisam ser repensadas neste processo, é importante.
Uma dimensão que precisa ser reavivada/reanimada nesta caminhada é o
comprometimento político do movimento, ou seja, retomar o trabalho de luta dos MS
é fundamental, refazer as forças para os enfrentamentos que estão sendo exigidos
atualmente. As pessoas que fazem estes precisam se sentir animadas/confiantes
para este renovar.
São as interações e trocas que envolvem os participantes durante os
processos constitutivos dos encontros que, de fato, funcionam como espaço
potencial de formação. O EMESOL é um destes espaços privilegiados de discussão,
debates, trocas de idéias, que possibilitam a articulação e a potencialização da
construção de um movimento que possui interesse por uma nova proposta de
sociedade, com políticas de e para inclusão das minorias:
Minha vida pessoal ganhou mais vida e a minha vida profissional se afirmou melhor, me fazendo sentir e deixando que as pessoas ao meu redor percebessem que nem sempre vale a pena ir em busca de recursos materiais, se o seu sonho na verdade é viver bem, bem de forma coletiva, com cooperação. Sendo que a união entre as pessoas e o amor regido pelas forças dessa união é que faz a diferença em nossas vidas (Integrante MN).
A mudança na vida destas mulheres é percebida por elas frente a variados
setores de suas vidas. Todas deram testemunhos de mudança, como o feito pela
“MN”, que destacou ganhos em sua vida profissional e pessoal. Algumas
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destacaram a perda do medo de colocar suas opiniões frente a determinados
assuntos em determinados espaços:
Antes eu tinha medo de tudo. Nas reuniões na escola dos meus filhos eu nunca questionava nada. Às vezes não concordava com algumas atitudes das professoras, ou atividades que mandavam de tarefa, mas não dizia nada, porque achava que eu era muito burra e estava errada, afinal não tenho nem estudo. Depois de começar a participar com o Grupo e ir nos cursos e nas visitas a outros EES fui aprendendo a perder o medo, porque tinha muitas atividades que a gente precisava falar das nossas experiências em público, tinha muita vergonha, mas foi bom porque daí que percebi que não era tão burra, e que precisava por isso prá fora. Depois disso, já estive à frente de muitas comissões da comunidade escolar que reivindicava direitos, como mais salas de aula, a inclusão da EJA na escola, a retirada de professoras com condutas violentas contra as crianças... Na igreja também comecei a ser mais atuante (Integrante EBS).
Como podemos ver, é fato que estes exercícios estimulam o coletivo a se
organizar em prol da conquista de espaços concretos de mediação com o poder
público e com espaços comunitários, com vistas à viabilização de ações que
venham ao encontro das demandas locais, com o cuidado da dimensão de
propostas que sejam endógenas neste processo.
Estas dimensões são fundamentais, uma vez que, apesar de acreditamos ser
um dever do Estado o compromisso com o social, o econômico e o político, na oferta
dos serviços elementares ao povo, é muito importante haver atitudes engajadas da
sociedade civil organizada em busca da efetivação de seus direitos.
Nesta perspectiva, vale lembrar que ter leis não é garantia de direitos, o
descomprometimento das instituições estatais é algo historicamente vivido pelo
povo:
É por essas razões que a importância da lei não é identificada e reconhecida como um instrumento linear ou mecânico de realização de direitos sociais. Ela acompanha o desenvolvimento contextualizado das relações sociais em todos os países. A sua importância nasce do caráter contraditório que a acompanha: nela sempre reside uma dimensão de luta. Luta por inscrições mais democráticas, luta por efetivações mais realistas, luta contra situações mutiladoras dos seres humanos, luta por sonhos de justiça (CURY, 2005, p. 3).
É fato que nesta experiência o trabalho articulado se fortaleceu pela
aproximação da Universidade (UNEMAT) com os MS e a comunidade, e isso, de
90
alguma forma, coloca em evidência a importância das parcerias entre os diversos
atores sociais em torno da luta pelo direito à vida com dignidade.
As Assessorias fazem parte de um dos segmentos que compõem a ES.
Vimos sua importância para o fortalecimento dos EES e para a construção
qualificada de PP para a ES, tanto da cidade como do campo, mas também vimos
que a relação entre algumas destas Assessorias (Universidades, ONGs) e os
Grupos de EES é permeada por contradições entre o discurso e as práticas.
Foi percebido, pelos depoimentos do Grupo MUDAR, que há uma certa
tensão em relação estes dois segmentos. Uma hipótese pode ser o fato da
inexistência de experiência destas Instituições frente ao trabalho que é exigido com
um público tão diferenciado como são as pessoas que compõem um EES.
O fato é que, levando-se em consideração as falas aqui registradas e
algumas outras situações, como por exemplo, a desarticulação do CFES com o
FEES, e outros grupos organizados em torno do MS da ES, as Assessorias estão
precisando de muita “formação”, no sentido da que Freire defende, para poderem de
fato contribuir com estes processos.
Em relação à ausência do Estado em muitos destes encontros, para não dizer
na maioria, denuncia mais uma vez o descaso do aparelho estatal para com a
organização das camadas populares, com a trabalhadora e o trabalhador. Percebe-
se neste lutar a busca constante da reinvenção desta realidade, onde sonhos
possam se tornar realidades.
4.2 O SEMINÁRIO ESTADUAL DE COMERCIALIZAÇÃO SOLIDÁRIA:
DISCUTINDO A COMERCIALIZAÇÃO COM OS EES DO CAMPO E DA CIDADE
Enquanto estratégia de fortalecimento das ações empreendidas pelas atrizes
e atores da ES em Mato Grosso, como em todo o Brasil, foi proposto pelo Programa
Nacional de Comercialização Solidária (PNCS), organização articulada pelo Instituto
Marista de Solidariedade (IMS), em conjunto com o FBES e a Secretaria Nacional de
Economia Solidária (SENAES), que se fizesse em todos os Estados uma discussão
ampla e sistematizada a respeito da Comercialização, dimensão que se configura
enquanto um dos maiores gargalos encontrados nesta caminhada do processo
produtivo enfrentado pelos EES, onde as dificuldades são das mais distintas
proporções e dimensões.
91
Este encontro aconteceu em Cuiabá, na Escola Estadual de 1º e 2º Graus
Cesário Neto, em 27 e 28 de março de 2010. Estavam presentes representantes do
estado, da Região Sul: Dom Aquino, Rondonópolis, São José do Povo e Barra do
Garças; Centro-Oeste: Tangará da Serra; Baixada Cuiabana: Cuiabá e Várzea
Grande; e do Médio Norte: Vera. Entre os participantes, todos os segmentos que
constituem o movimento estavam contemplados, e assim as discussões entre EES,
Assessorias e Gestores Públicos foram contempladas.
Nesta oportunidade, duas integrantes do Grupo MUDAR participaram da
atividade. Em nossa trajetória de acompanhamento das discussões do Grupo foi
possível compreender que o mesmo assumiu a dimensão da participação em
determinados espaços mais como uma forma de estar conectado ao coletivo da ES
no Estado.
Em virtude de sua situação de limitação na participação ativa em muitos
momentos, tanto que por vezes foram questionadas sobre sua legitimidade frente às
ausências em determinados espaços, como por exemplo, no Centro Público de
Comercialização, elas decidiram se fazer presentes, mediante a representatividade,
onde quem pudesse estar participando iria e, depois, tinham o compromisso de
devolver ao Grupo as discussões feitas.
Esta, sobre a Comercialização Solidária, foi uma das atividades
desenvolvidas pela ES em que elas, além de considerarem relevante, dado ao
contexto e situação do Grupo frente a esta temática, tiveram na ocasião a
disponibilidade de duas integrantes em se fazerem presentes durante o evento.
A percepção foi de que uma das intenções desta atividade foi fomentar uma
discussão que partisse da base, primeiramente nos estados, para que em um
momento posterior se estendesse em âmbito regional, se desdobrando em um
encontro maior, nacional, com o intuito de que se tivesse uma noção de quais são os
desafios e possibilidades de cada estado e, consequentemente, das regiões, sobre a
questão da Comercialização.
Discutir e refletir demandas e possibilidades diante do que está posto, a partir
do coletivo, para que se busque nas experiências de cada realidade estratégias e
assim encontrar propostas viáveis de enfrentamento e superação, pelo percebido, foi
um dos maiores objetivos desta ação.
Com isso esperava-se construir uma integração da Comercialização Solidária
no estado de Mato Grosso, além da possibilidade de poder contribuir na articulação
92
dos atores envolvidos direta e indiretamente e, ainda, favorecer horizontes comuns
de integração da comercialização já existente, para que, enquanto desdobramento,
se afirme a identidade da Comercialização Solidária no Estado de Mato Grosso.
É importante que se discuta a partir da realidade de cada EES, onde a
possibilidade do sentimento de pertença pudesse agir, enquanto fomento, para o
engajamento de cada um com o processo de construção de ações que venham a
colaborar com a identidade que os mesmos almejam consolidar nesta nova forma de
viver a economia.
Uma economia onde a visibilidade buscada por este coletivo poderá se
solidificar através de políticas públicas efetivas, que venham ao encontro dos
interesses dos EES.
O Grupo MUDAR percebe estes momentos de discussão como fundamentais
para um processo de construção onde as pessoas envolvidas sejam protagonistas
desta história e realmente participem desta articulação e proposição. O que torna
este mais que um espaço de discussão e organização, mas, fundamentalmente, de
formação política e do exercício da cidadania.
Toda essa dinâmica que envolve estes atores da ES no estado são
momentos fundamentais de formação e organização, onde nem sempre um leva ao
outro, mesmo porque as pessoas não são controláveis, o movimento não linear dos
processos constitutivos do homem em sociedade impede tal ordenamento.
Não dá para pensar neste processo de forma engessada, onde isso é isso e
aquilo é aquilo. Neste momento, o Grupo MUDAR traz para o centro das discussões
a questão da dificuldade que enfrentam em relação a sua situação de não serem
parecidos com a maioria dos grupos, que estão conseguindo minimamente dar conta
de sua produção e organização de forma autogestionária.
Percebe-se, então, este momento como um processo de construção e
desconstrução, até mesmo de transição para muitos Grupos onde as subjetividades
individuais se comunicam com a coletiva e, na arena deste campo intersubjetivo,
descobre-se que a mesma é permeada por muitos conflitos, contradições e desejos
desencontrados.
Contudo, acredita-se que estas são dimensões que mais podem colaborar
para com toda esta proposta de se fazer parte do processo, do que ser uma barreira.
A legitimidade está em elas e eles, por não serem tão somente expectadores, mas
protagonistas, escritores de sua própria história de vida.
93
Exatamente por entender este um processo de busca e construção da
autonomia destas pessoas, que todo o trabalho foi pensado com o cuidado de
colocar nos participantes a importância desta etapa de discussão, onde as trocas de
experiências são fundamentais.
A partir do entendimento de que não é possível haver dissociação entre o
pensar e o agir, ou seja, o dualismo entre a teoria e a prática, onde a primeira são os
conceitos elaborados e reelaborados histórica e culturalmente pela Humanidade, e a
segunda são as vivências/experiências de determinado grupo social, é que se afirma
a importância e necessidade de se pautar esta proposta a partir do diálogo
fenomenológico, assumindo estas duas dimensões de forma irremediavelmente
intrínseca.
De forma prática o coletivo pode discutir temas que carecem destes espaços
de trocas, ora oportunizados, como por exemplo: sobre quais são os pontos fixos de
comercialização e as marcas que porventura existam no estado; a apresentação das
dificuldades na comercialização, sendo estabelecido um debate sobre Comércio
Justo e Solidário e a socialização das experiências dos EESS que trabalham com
produtos orgânicos.
Estas foram, de princípio, as questões que deram os rumos para uma reflexão
do todo possível, uma vez que o “ver” é um grande desafio. O movimento que é
preciso ser feito para “ver a comercialização” precisa transcender as evidências.
Este foi e é um dos maiores desafios do Grupo MUDAR e das pessoas e coletivos
da EES.
4.2.1 Comercialização como Estratégia de Construção Coletiva
A intenção foi construir conjuntamente como a comercialização pode ser
organizada, uma vez que foram discutidos alguns dos seus problemas crônicos;
entre eles estão as descontinuidades de ações positivas de apoio e fomento deste
setor produtivo. Foi neste sentido que este Seminário foi pensado, para provocar as
questões que fragilizam os EES no que se refere a esta temática, o que faz deste
espaço um momento importante aos processos instituintes da ES no estado e no
Brasil.
Afinal, a Comercialização de que se fala dentro do Movimento tem uma
dinâmica que vem de encontro à ordem estabelecida nos processos capitalistas.
94
Dizer desta nova forma de se organizar perpassa por um processo profundo de
educação na praxe do dia-a-dia, é uma ideologia que faz parte significativa de noção
de mundo e de verdade. Rompê-la exigirá um processo dialógico e compreensivo,
“num ato total de amor, confiança e fé na humanidade” (FREIRE, 1996).
Acredita-se que abordando as experiências e vivências estabelecidas nas
Feiras, Encontros, Seminários, Conselhos e Fóruns, a partir das discussões e
reflexões tecidas no e pelo coletivo, se possa chegar ao final com um desenho, uma
proposta de estratégia que parta da base e que possa ser socializada entre os
estados, em uma tentativa de construção conjunta, que se inicia nos estados,
passando para as regiões e, finalmente, contribuindo para com estratégias de
âmbito nacional.
Um exemplo de construção coletiva e em resposta, enquanto instrumento
instituído na e pela luta, foi criado o Sistema Nacional de Econômica Solidária
(SIES), que está sendo debatido no governo, a partir dos EES, no âmbito do FBES,
para que os mesmos sejam protagonistas de fato, objetivando, entre outras coisas,
dar apoio à comercialização. Essa é uma ação entre tantas, que vem sendo
construída nestes processos de consolidação e legitimação da ES, mas muito mais
está sendo necessário.
Isto é posto devido ao fato de que muitas ações desta amplitude, por vezes,
não são percebidas no interior de muitos dos EES. Muitos Grupos que não
participam destas discussões e mesmo os que, como o Grupo MUDAR, participam
ao menos representantivamente, não sentem em suas organizações mudanças
expressivas em relação a tais conquistas.
Neste espaço eminentemente formativo é necessário que as discussões
sobre cadeia produtiva, produção, comercialização solidária, dificuldade de logística,
vigilância sanitária, consumo solidário, finanças solidárias, formação, dentre outros
aspectos, sejam amplamente discutidos.
Mas não é só discutir, é preciso que este coletivo se questione sobre o que
será feito daqui por diante. Este é o âmbito das intencionalidades, onde as
diversidades de “olhares”, perspectivas e horizontes se colocam, buscando a
legitimidade necessária para a construção do sentimento de pertencimento.
Este pertencimento se observa no momento em que eu me vejo também
contemplado por tantas conquistas. Esta é uma dimensão muito delicada, pois a
dinâmica do Mercado impede de várias formas a apropriação de muitas destas
95
conquistas pelos seus fazedores, muitas nem chegam ao conhecimento da base.
Mais uma vez surge a palavra “conhecimento”, a produção de conhecimento que se
espera de um processo de formação como este, por exemplo.
É nesta perspectiva que é importante mais que o exercício de levantar os
problemas, que já não é uma tarefa simples, nesta dinâmica complexa e
contraditória das relações, porém é preciso a objetivação das consciências do que
coletivamente comungam e das intencionalidades subjetivas que se dão em meio à
concretude das experiências vividas.
O mundo da vida é onde me percebo e sou percebido, neste emaranhado é
preciso dar vida, através da intersubjetividade, aos anseios e necessidades, que
nesta oportunidade se materializam ao identificar as possíveis causas dos
problemas crônicos da comercialização nesta experiência.
Identificar o problema, ou problemas, é algo em que se precisa de muito
cuidado nas generalizações ou naturalizações, ir além das aparências, e o fator
tempo também precisa ser considerado, para que se possa tentar fazer a
identificação da causa deles. Afinal, como podem ser resolvidos, desconhecendo
sua origem?
É preciso identificá-los como problemas, buscar compreender o conjunto de
situações que os geram e, depois, buscar formular estratégias de soluções. Esta não
é uma tarefa que podemos classificar como simples, mesmo por que há infinitas
formas de se “ver” o mesmo problema.
A tentativa, considerando as possibilidades e os limites deste exercício diante
de algo tão complexo, foi se arriscar, após sistemática discussão entre as e os
participantes, a partir da orientação em torno de tentar se evidenciar os principais
problemas, em busca das causas e possíveis soluções.
Após discussão expressiva entre os participantes foram evidenciados
inicialmente os seguintes desafios:
Escala de produção; produção sustentável; produção orgânica; logística; fiscalização; cadeias produtivas; comercialização direta; organização da comercialização; preço justo; comércio justo e solidário; consumo solidário; relações de confiança; qualificação dos gestores; pouca escolaridade dos EES; formação política e contínua dos EES; políticas públicas incipientes; falta de integração das políticas públicas já existentes; inexistência de tecnologias sociais e/ou poucas disponíveis aos EES; organização do FEES/MT; compra conjunta ainda incipiente; desvalorização dos saberes populares, da tradição local; descaso do poder público no apoio direto aos EESS;
96
incipiente envolvimento dos centros universitários e técnicos no apoio aos EESS; marco legal e falta do Conselho Estadual de ECOSOL (GT Seminário de Comercialização Solidária).
Um segundo momento foi destacar da lista de desafios três prioridades, a
serem aprofundadas através de um exercício em busca das prováveis causas, com
vistas às possíveis soluções, ou seja, de vislumbrar “inéditos viáveis” diante das
“situações-limites” que estarão postas.
O Grupo MUDAR neste momento fez parte das discussões de forma ativa, e
se viu contemplado, ao final da socialização, dos principais problemas da
comercialização no estado, onde as principais prioridades selecionadas tinham tudo
a ver com a realidade de base do seu coletivo: espaço da comercialização; relações
de confiança; intercâmbio de tecnologias.
Dentro destas questões, com certeza, ao serem debatidas, uma
necessariamente fará conexão com a outra, e ambas, pela sua complementaridade,
podem dizer onde pode estar a maior fragilidade da experiência da ES para os
diversos segmentos que a compõem.
4.2.2 Espaços da Comercialização
É importante que se entenda que, até chegar à comercialização, um longo
processo anterior existiu, assim, pensar em comercialização pressupõe considerar a
forma como se organizou a produção, a logística e as condições reais de vida de
cada EES em suas especificidades.
É da “porteira prá dentro” que a vida é vivida por estes EES. Quando o Grupo
MUDAR alertou que as políticas públicas conquistadas pelo coletivo da ES muitas
vezes são desconhecidas pelo público que deveria ser atendido por elas, é
justamente esta a questão.
Muitos dos desafios aqui destacados persistem por “n” motivos, entre eles
está o poder que este coletivo tem, ou não, diante de processos sociais mais
amplos, que sobrevivem em uma “queda de braços” com o sistema vigente. Com
isso, mais uma vez, nos remete à causa dos porquês dos problemas que, por vezes,
se apresentam enquanto as chamadas “situações-limites”, pois, conforme FREIRE:
Os temas se encontram encobertos pelas “situações-limite” que se apresentam aos homens como se fossem determinantes históricas,
97
esmagadoras, em face as quais não lhes cabe outra alternativa, senão adaptar-se. Desta forma, os homens [e as mulheres] não chegam a transcender as “situações-limites” e a descobrir ou a divisar, mais além delas em relação com elas, o “inédito viável” (FREIRE, 1975, p. 110).
Nesta perspectiva, se os EES, as Assessorias e os Gestores Públicos, aqui
representados, afirmam que a “comercialização” é um problema, um dos gargalos do
processo produtivo em sua fase final, e a idéia é buscar, para além dos problemas
evidentes, a sua origem, é fundamental que se lance esse olhar fenomenológico
para todo o processo produtivo, chegando à realidade de vida dos envolvidos nos
diversos Grupos, os vendo não só enquanto grupo, mas enquanto as subjetividades
ali reunidas, considerando todos os condicionantes culturais, sociais, econômicos e
políticos.
Neste momento foi sendo percebido que o processo de construção coletivo
reúne diversas possibilidades, mesmo pelo processo constitutivo das consciências,
consciências em vários níveis de entendimento da realidade que, articuladas pelas
experiências subjetivas de cada pessoa, possibilitam uma infinidade de alternativas
de leituras e superação diante das dificuldades encontradas em determinado tempo
e espaço, e que se dão de forma descontínua por natureza:
A consciência do mundo, que viabiliza a consciência de mim, inviabiliza a imutabilidade do mundo. A consciência do mundo e a consciência de mim me fazem um ser não apenas no mundo, mas com o mundo e com os outros. Um ser capaz de intervir no mundo e não só de a ele me adaptar. É neste sentido que mulheres e homens interferem no mundo enquanto os outros animais apenas mexem nele. É por isso que não apenas temos história, mas fazemos a história que igualmente nos faz e que nos torna, portanto, históricos (FREIRE, 2000, p. 63).
Em alguns processos fomentados pela ES foi percebido que a dimensão
política formativa, que privilegia a autocrítica e as possibilidades coletivas de
reinvenção de conceitos e de paradigmas prontos e acabados, se faz presente pela
constante provocação reflexiva sobre as realidades de vida de cada pessoa que
esteja envolvida no processo.
Esta foi uma grande oportunidade para as integrantes do Grupo MUDAR
trazerem suas percepções que, articuladas ao rico processo de intercâmbio que as
mesmas tiveram a oportunidade de realizar durante o percurso dentro do MS da ES,
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em várias comunidades rurais e em outros centros urbanos, possibilitaram a
intervenção das integrantes com propriedade de causa frente a muitas dimensões
deste processo, inclusive neste momento em que a comercialização solidária na
experiência do Mato Grosso estava em pauta.
Nesta dinâmica de dar a “palavra” aos protagonistas da sua história, de sua
vida, é que as possibilidades de se encontrar possíveis soluções para as situações
concretas de vida surgem, enquanto “inéditos viáveis”.
O grande coletivo reunido chegou a um denominador comum quanto ao fato
de que, se restringirem as discussões em torno do problema evidenciado em si, não
seria possível avançar. É o que está acontecendo: a ES, em algumas experiências,
está “patinando sobre o molhado”, ou seja, não consegue vislumbrar ações efetivas
de enfrentamento e possíveis superações do problema da comercialização, que está
posto enquanto desafio nacional.
Sobre o problema em si muitas são as colocações e sugestões:
1) Criação de um empreendimento para integração da comercialização da AF e dos
EES da cidade aqui na capital - proposta da REMSOL para potencializar a
comercialização, de forma ativa e efetiva. Nesta proposta, a intenção é
estabelecer o diálogo entre os Produtores e Consumidores (Prossumidores), com
o intuito de fortalecer o processo produtivo em cada etapa, de forma dialógica e
participativa entre todos os atores envolvidos no processo de produção,
comercialização e consumo solidários.
2) Central de comercialização de Cuiabá e Rondonópolis - o ponto é bom, porém
falta reforma da estrutura e apresentação no local. Precisa de grupos que
gerenciem a central. Verificar perfil das pessoas para essa atividade específica.
Embora seja uma sugestão mais viável, uma vez que fica difícil de produzir e
comercializar. Neste sentido é preciso organizar e integrar ações que confirmem
e se integrem com os princípios da ES.
3) Feira de comercialização - precisa do envolvimento das pessoas com interesse
de desenvolver esta atividade; mais fomento: editais menos burocráticos.
4) Alimentação escolar - procurar entidades que entendam da logística para a
alimentação escolar, uma vez que a lei dos 30% não é garantia de direito
efetivado. Foi uma conquista do movimento e sua apropriação é outra conquista.
É preciso todo um processo de formação, tanto para os EES do campo quanto
para as Escolas do Campo, para a efetiva execução desta Lei.
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5) Redes de supermercados - existem espaços nos mercados, o que falta é buscar
e mostrar os produtos dos artesanatos nesses locais. Com o cuidado de se
pensar até em que medida os EES estão organizados para estabelecer esta
articulação com um mercado que é capitalista ao extremo e que ainda não
reconhece essa nova forma de conduzir o processo produtivo e todos os
princípios de comércio justo e solidário.
A idéia foi estimular o coletivo a pensar porquê a comercialização é um
problema e até que ponto está se fazendo algo para solucionar esse problema,
partindo do real com vistas à compreensão do processo como um todo. Nesta
perspectiva, alguns questionamentos formaram um fio condutor para a busca das
causas dos problemas:
O Centro Público de Comercialização de Cuiabá tem um regimento interno, todos
o conhecem?
Todos os EES do estado podem participar desse Centro de comercialização?
Existem controles, nesses espaços de comercialização, de entrada e saída dos
produtos, se é coletivo ou individual do EES?
Há materiais de divulgação da comercialização, tais como folder, panfletos?
É realizada a venda dos produtos da AF para a Merenda Escolar? Como é feita
essa distribuição dos produtos? Houve formação para os envolvidos, para a
compreensão deste instrumento/política pública?
Há outros municípios que possuem Central de comercialização como em
Cuiabá?
O coletivo já se reuniu para trabalhar o espaço que comercializam, ainda que
seja para ir às Feiras? As feiras são vistas como espaços de trocas?
Há, nos produtos, identificação dos mesmos como EES (Identidade Cultural de
quem faz e do processo produtivo)?
Enfim, todos estes questionamentos foram, na medida do possível,
respondidos, foram momentos importantíssimos para que os próprios EES se vissem
enquanto organizadores de sua dinâmica operacional, podendo diante das questões
levantadas pensarem e se perceberem, verificando os limites e as possibilidades, as
fraquezas e as fortalezas de cada dimensão ali discutida.
100
Tais questionamentos foram considerados enquanto pontos suleadores ao
trabalho que precisa ser empreendido. Neste momento o coletivo se deu conta de
que muito ainda é preciso ser feito, principalmente em relação à cultura
individualista, tecnicista e competitivista que está presente em cada uma e cada um,
como uma droga que é injetada em nossas veias pelo Capitalismo desenfreado.
4.2.3 Relações de Confiança
Como todo processo coletivo de reflexão e discussão, o movimento de
construção de conhecimento, de trocas de experiência é fortalecido a partir das
contribuições significativas de cada participante. Mais uma vez, então, foram
colocados alguns exemplos sobre as situações concretas de relação com “o outro”
estabelecidas pelos participantes.
Confiança construída passo a passo, que foi decisiva para que suscitasse e
fomentasse as trocas entre os EES, Assessorias e Gestores ali envolvidos. Uma
dimensão que não existe sem outras: sem a liberdade, autonomia, esperança e
amor pelo próximo.
Isso demonstra o quanto pode ser viável essa nova forma de se organizar o
processo produtivo conforme os princípios da ES. Onde a lógica é a da participação
e espaço para o maior número de pessoas, é o não limitar, mas o possibilitar. É
preciso o cuidado de perceber este como um movimento inacabado, inconcluso e
em constante transformação:
A raiz mais profunda da politicidade da educação se acha na educabilidade mesma do ser humano, que se funda na sua natureza inacabada e da qual se tornou consciente. Inacabado e consciente de seu inacabamento, histórico, necessariamente o ser humano se faria um ser ético, um ser de opção, de decisão (FREIRE, 1996, p. 110).
É pensando nesta possibilidade, mesmo diante dos desafios, que a ES em
sua atuação busca privilegiar a formação, o processo educativo por excelência, que
perpassa a noção de ensino escolar e entra na vida da comunidade, na vida da
família, problematizando desde a concepção de mundo que as pessoas possuem, a
partir de sua individualidade, em busca de uma comunhão necessária ao processo
coletivo.
101
Partindo das experiências do MUDAR, há grande esperança de que um dia
estes laços de confiança realmente possam ser fortes o suficiente para dar conta de
uma proposta tão ousada quanto esta, de viver de forma diferenciada da que está
posta.
A vivência deste Grupo traz para a roda que a liberdade, que é uma das
condições para que haja esta empatia do confiar, só pode se dar se a autonomia
também se fizer presente na vida destas pessoas, ou seja, são muitos elementos
que precisam ser amplamente vivenciados em espaços que não foram preparados
para tal exercício.
Parece que é como se tivéssemos que forjar estes espaços para que, então,
pudéssemos atuar sobre eles de forma diferenciada. O agir diferenciado sobre o que
está posto precisa de um esforço sobre-humano para dar conta de se colocar. Assim
sendo, a confiança é uma destas dimensões que só podem atuar de forma integrada
com outras tão importantes quanto.
Com tudo isso pensado, foi possível, após a apresentação de algumas
situações, que foram consideradas ainda frágeis na experiência de comercialização
e relações de confiança deste coletivo, perceber também o desejo de construírem
juntos estratégias de superação e de melhoria da qualidade de vida de todas e
todos.
Este é um exemplo das contradições, que em meio aos conflitos/dificuldades,
nasce ou existe (resiste) um desejo que move as pessoas a continuarem nesta
construção, este é o espaço da possibilidade que alimenta a esperança na confiança
mútua.
Após todas as colocações realizadas, que foram pertinentes e que
evidenciaram que algumas estratégias pela busca da confiança mútua, bem como
para a organização da produção e comercialização, está minimamente sendo
buscada entre alguns EES, houve um momento ímpar entre os participantes.
Momento este, onde todas e todos ali presentes perceberam que a limitação
da organização, que é um dos fatores que, com certeza, é o desafio nesta
experiência de Cuiabá e de alguns municípios do Mato Grosso, dentro dos
processos instituíntes da ES, está estreitamente ligada à incapacidade de perceber
ou “ver” o outro como aliado. E esta limitação está na própria pessoa e desta que
perpassa para o coletivo.
102
O distanciamento estimulado pelas artimanhas do capital é, pelo percebido,
um dos aspectos mais relevantes, que desafia todas e todos que lutam por uma
nova forma de se estabelecer relação, seja no trabalho, seja na família, seja nos
vários espaços da sociedade.
Sabe-se que este é um grande desafio, mas que se movimenta para uma
possível construção significativa de enfrentamento, pois todos estes processos
coletivos de construção são espaços fundamentalmente provocativos e de tomada
de consciência, onde se é possível pensar/repensar, perceber-se e perceber o
“outro” como sujeito de interação fundamental para nossa vida.
Cada consciência é nascida no mundo e com o mundo e cada percepção é
uma possibilidade de um novo nascimento de consciência, aqui reside a experiência,
por isso as trocas de experiências ajudam a desmistificar preconceitos, abrindo para
novas perspectivas. Mas há que se ponderar sobre esta construção, que não tem
forma, perceber nestes momentos provocativos um estopim para a reflexão genuína,
pois conforme FREIRE:
O saber alicerçante da travessia na busca da diminuição da distância entre mim e a perversa realidade dos explorados é o saber fundado na ética de que nada legitima a exploração dos homens e das mulheres pelos homens mesmos ou pelas mulheres. Mas, este saber não basta. Em primeiro lugar, é preciso que ele seja permanentemente tocado e empurrado por uma calorosa paixão que o faz quase um saber arrebatado. É preciso também que a ele se somem saberes outros da realidade concreta, da força da ideologia; saberes técnicos, em diferentes áreas, como a da comunicação. Como desocultar verdades escondidas, como desmistificar a farsa ideológica, espécie de arapuca atraente em que facilmente caímos (?) (FREIRE, 1996, p. 138-139).
A inserção lúcida se dá em meio aos processos reflexivos autênticos que esta
prática pode estimular; é pertinente aqui ressaltar que a necessidade de se ter
qualidade de vida é o que mais mantém essa força, esse desejo de continuar
persistindo na construção de uma outra forma de se estabelecer relação, seja dentro
do mercado, seja na família, na comunidade ou na natureza.
Entre os trabalhos em grupo, entre os momentos livres e de confraternizações
intergrupos e entre as pessoas presentes, foi isso o que mais fluiu dentro deste
espaço de formação, em cada contribuição, desabafo, denúncia e esperança de um
viver melhor, mesmo porque “O futuro não nos faz. Nós é que nos refazemos na luta
para fazê-lo” (FREIRE, 2000, p. 27).
103
4.2.4 Intercâmbios de Tecnologia
Muitas são as dimensões de fragilidade dentro deste processo instituinte, que
verificamos à luz do “olhar” do Grupo MUDAR nesta oportunidade, onde são vários
os desafios, materiais e imateriais, mas em contrapartida há algumas possibilidades
também.
Dentre as dimensões desafiadoras neste processo, que foram destacadas por
este grupo de pessoas, a última a ser pensada neste momento é a chamada
Tecnologias Sociais. Que também são instrumentos, possibilidades, que podem
contribuir significativamente para a operacionalização de muitos destes processos
produtivos, principalmente na dimensão técnica de produção coletiva.
A dinâmica da sociedade capitalista, com todas as suas complexas nuances e
com a incidência sobre o povo das instituições, disseminando uma ideologia que
valoriza e massifica o individualismo e o competitivismo, impede/dificulta que as
pessoas consigam naturalmente se relacionarem cooperativamente pelo bem
comum.
Este modo de se estabelecer relação, então, precisa ser ensinado,
estimulado, aprendido na e pela práxis; e as Tecnologias Sociais, que têm uma
ramificação conhecida como Tecnologias da Informação e Comunicação Social
(TICs), podem ser um dos instrumentos para dar suporte a esta construção; outro
meio é a educação formal, que gera outras discussões dentro do movimento, que
não serão aqui aprofundadas, podendo e devendo ser retomada em outro momento.
As discussões levantaram algumas questões que, pelo percebido, acontecem
na concretude do fazer o cotidiano de cada grupo que busca viver a ES, com mais
ou menos complexidade, em um processo que envolve tentativas de erro e acerto e
que, por vezes, se configuram enquanto condicionantes que impossibilitam o
fortalecimento do processo social, produtivo e econômico no qual os mesmos estão
inseridos.
Sobre este aspecto, o Grupo MUDAR trouxe sua experiência frente às
imensas dificuldades que possuem na produção do papel reciclado, por exemplo.
Elas fazem a produção no fundo da casa da coordenadora, em uma área
relativamente espaçosa. Os únicos “equipamentos” que possuem são: um
liquidificador industrial que foi emprestado a elas, cinco fôrmas de madeira para o
104
papel, uma bacia de alumínio, que era de uso doméstico, os tanques de lavar roupa
da casa e uma “mesinha”, doação de uma escola.
Muitos equipamentos ainda são necessários, como: um picotador de papel,
uma prensa, uma guilhotina manual, bacias apropriadas, entre outros mais
sofisticados, como uma estufa para dias frios e uma sala adequada ao
armazenamento dos papéis. A falta de parceria para o apoio à produção adequada é
um dos fatores que inviabilizam a produção artesanal do Grupo e, com isso, a
sustentabilidade econômica, que seria o resultado da comercialização dos produtos.
A Tecnologia Social e as TICs desenvolvidas pelas Universidades e outros,
de uma forma geral, poderiam estar mais presentes na busca de alternativas mais
econômicas de equipamentos e gerenciamento dos EES. Dentro destes aspectos
mais práticos/técnicos também há outros mais de divulgação e organização desta
produção e, frente aos processos autogestionários, que são vistos pelos Grupos
como fundamentais também.
Nos desdobramentos destas discussões foram verificados, entre outros
casos, os desafios de não se saber, em nível de estado, o que se vende, onde,
quando e como, apesar do mapeamento realizado pela SENAES. Para tanto,
acredita-se que seria interessante ter um cadastro mais simplificado dos EES, criado
pelo próprio coletivo, inclusive utilizando-se dos resultados do mapeamento, porém
indo além.
Desta forma, este seria um exercício de apropriação da ferramenta do SIES e
também poderia ser um processo pedagógico que colaboraria para saber onde
achar os EES mais próximos e os que estão espalhados pelo estado e, assim, quem
sabe, poder colaborar com o marketing, a divulgação e a articulação de parcerias
com hotéis e agências de turismo, por exemplo.
Para tanto haveria também a necessidade da capacitação, para acessar os
espaços da internet, que é a única forma de se acessar as informações do SIES e
também onde muitas são as possibilidades de acompanhar o lançamento de editais,
para fins de financiamento do processo produtivo e sócio-cultural; estas são algumas
possibilidades que podem funcionar como fomento dessa nova forma de
organização da comercialização proposta pelos princípios da ES.
Em contrapartida, é importante um processo de sensibilização do consumidor
sobre o produto, problematizando sua origem: quem fez, como foi feita, a sua
história, sua identidade cultural, como forma de poder valorizar o trabalho do
105
empreendedor solidário. Para, além disso, sensibilizar os gestores municipais sobre
a importância da ES enquanto política pública de acesso aos direitos básicos
defendidos pela Constituição Federal.
A parceria estabelecida entre este MS e o poder público através de políticas
públicas, que apõem ações com perspectivas para o processo produtivo de forma
coletiva e autogestionária, poderia fortalecer, também, a forma de produção
artesanal e o Turismo Rural, por exemplo, que pode e inclusive já vem sendo feito
nas comunidades rurais, através de grupos informais, das Cooperativas e/ou
Associações.
A incipiente relação que hoje se percebe na experiência dos EES de Cuiabá e
do Mato Grosso, frente ao diálogo com o poder público, salvo alguns municípios em
que seus gestores abraçaram esta causa, está estampada, de uma forma ou de
outra, na fragilidade política do FEES/MT e, mais duramente, na realidade
sócioeconômica dos grupos que são envolvidos.
Lembrando que estes gestores mudam constantemente, de acordo com as
épocas eleitorais, é preciso que haja uma profunda reforma política, não só a nível
de Ministérios, mas fundamentalmente nas possibilidades das pessoas que vivem
em uma sociedade onde os critérios de escolhas dos seus representantes, por
vezes, não lhes permitem agir com o grau de criticidade necessário frente estes
desafios.
A reforma política deve acontecer dentro de cada pessoa, através da
capacidade de inserção lúcida na realidade vivida, e este é um processo onde a
Educação Popular pode agir como um instrumento privilegiado, uma vez que
problematiza o viver. A dinâmica da vida das pessoas que estão situadas nesta
margem da sociedade está, muitas vezes, diante de diversas “situações-limites” que
lhes impedem de agir com a consciência necessária para a transformação deste
cenário político, frente ao fortalecimento da ES no estado do Mato Grosso, o qual,
frente a esta realidade, poderá continuar fragilizado.
Há outras “n” situações necessárias pensadas por este coletivo, entre elas a
articulação com a Vigilância Sanitária, em nível municipal e estadual, para a devida
adequação e venda dos produtos alimentícios e de origem animal. Para isso seria o
coletivo organizado que deveria buscar apoio direto das prefeituras e gestores da
saúde nos municípios e no estado.
106
O apoio pela lei de fomento da ES junto à Secretaria de Educação
Profissional e Tecnológica (SETECS) pelo recém-nascido Conselho Estadual de ES
(CEEC), que é amparado pela Lei Estadual de ES e que está lotado na Secretaria
de Estado de Desenvolvimento Rural e Agricultura Familiar (SEDRAF), na Secretaria
de Estado de Ciência e Tecnologia de Mato Grosso (SECITEC), na
Superintendência Regional do Trabalho (SRT) e de algumas prefeituras aliadas, que
precisam ser pautadas.
Buscar a relação de intercâmbio com estas políticas que já existem para o
fortalecimento dos EES e, consequentemente, do FEES/MT é um direito
conquistado por este coletivo frente à construção do Marco Legal de suas práticas. A
questão é que nem todos os grupos têm conhecimento deste aparato legal, e
mesmo os que conhecem não conseguem ter acesso a eles.
Pensando em tudo isso é que estes EES acreditam ser imprescindível
estabelecer a articulação política da ES, convocando seus representantes de bases
para discutir projetos e propostas para Mato Grosso. E é frente a estes necessários
embates políticos que o Grupo MUDAR apostou ser tão importante estar presente
no processo de formação política, pois elas acreditam que é preciso ter apropriação
de certos discursos e cenários políticos para qualificar a sua atuação como EES
frente a esta construção política e pedagógica.
Acreditam que a participação qualificada e significativa dos EES do campo e
da cidade nas Conferências, Seminários, Fóruns e Conselhos é fundamental. Esse
processo precisa ser tomado por cada uma e cada um de seus “fazedores” como
algo que seja seu, que tenha o pertencimento e reconhecimento da e na luta
coletiva, mas que cada indivíduo possa fazer sua parte, respeitando-se neste
momento as limitações de cada um, mesmo por que:
Não se trata obviamente de impor à população expoliada e sofrida que se rebele, que se mobilize, que se organize para defender-se, vale dizer, para mudar o mundo. Trata-se, na verdade, não importa se trabalhamos com alfabetização, com saúde, com evangelização ou com todas elas, de simultaneamente com o trabalho específico de cada um desses campos desafiar os grupos populares para que percebam, em termos críticos, a violência e a profunda injustiça que caracterizam sua situação concreta. Mais ainda, que sua situação concreta não é destino certo ou vontade de Deus, algo que não pode ser mudado (FREIRE, 2000, p. 38).
107
Em cada etapa do viver se é desafiado, e pensando em toda esta
complexidade da vida em sociedade, onde se está propondo uma nova forma de
estabelecer relação partindo do e no trabalho, é que se podem vislumbrar
dimensões palpáveis de resistência, enfrentamento e superação. É também no
trabalho, na produção da vida, que o homem se sustenta.
É onde ele pode se ver e vê os outros, possibilitando deste contato possíveis
conexões que dão muitos sentidos ao que produzem e reproduzem, e é este
movimento que muitas vezes motiva o sujeito a continuar insistindo em busca de seu
sonho, de sua humanidade, de seu objetivo que, apesar de ser uma construção
individual, é no seio da coletividade que ela pode se concretizar:
A educação precisa tomar no/do trabalho as raízes de fabricação da humanidade que somos. Nada de novo. A mutação, contudo, no coração dos modos de produção introduz sempre rostos novos nesta mesma humanidade; rostos particulares e idiossincráticos nesta mesma essência humana universal que vivenciada, nos fazemos (PASSOS, 2006, p. 146).
Na perspectiva de Passos é possível se encontrar no trabalho solidário os
saberes e os fazeres, uma constante produção de conhecimentos que, partindo do
indivíduo, da identidade e não do individualismo, é possível chegar-se à coletividade,
às identidades reunidas de forma solidária, à “inteligência coletiva”, onde a essência
do humano pode se fundar em um nós, não tão somente mais no eu.
4.2.5 Pistas de Estratégias Possíveis
Todas as reflexões e discussões que partiram das experiências e vivências de
cada ator, neste espaço de construção, foram fundamentais para que o processo
tivesse a legitimidade da realidade vivida por estes EES no Estado. Ficou
evidenciado que o processo de Comercialização nesta experiência da ES perpassa
as situações práticas do processo produtivo. As causas do problema, o gargalo
identificado como sendo a comercialização, pelo percebido, é tão somente um
desdobramento do problema real.
Para tanto, para o desvelamento e (re)conhecimento das causas dos
problemas elencados por este coletivo, é preciso, segundo eles, se ter capacitação
108
continuada, não apenas palestras ou cursos isolados, pontuais. Faltam intercâmbios
de trocas de conhecimento entre os EES da cidade e do campo.
Projetos para capacitação, especialmente em produtos perecíveis, foram
mencionados, mas tudo associado ao Trabalho/Formação política com base nos
princípios da ES. Esta dimensão é percebida pelo Grupo MUDAR como
fundamental, mas não acreditam que seja um processo de curto prazo, muito pelo
contrário, e que a necessidade de Grupos como o delas é urgente e, talvez por não
conseguirem ver o resultado desta construção na base, muitos desanimam e
desistem.
As discussões aqui iniciadas foram o fermento inicial para toda uma
discussão que se ampliou no Seminário Regional e, com certeza, também servirão
de pano de fundo para as discussões na Conferência Nacional de Comercialização
em ES que ainda não tem previsão para acontecer.
Ficam muitas perguntas, mas o que é prioritário nesta experiência toda?
Muitas são as frentes a serem trabalhadas, desafios e possibilidades que cada um
dos segmentos que compõem a ES precisam estar articulando, cada vez mais
qualificados, para terem condições políticas e técnicas para o enfrentamento.
A formação humanística é vista por estes coletivos como a mais necessária
frente à construção de uma sociedade mais solidária, só então poderão estar
preparadas/os para contribuírem em espaços de participação popular e, assim,
construírem estratégias amparadas legalmente e que venham ao encontro da
construção de um Comércio Justo e Solidário.
Entendo, como FREIRE, que:
Coerente com a minha posição democrática estou convencido de que a discussão em torno do sonho ou do projeto de sociedade por que lutamos não é privilégio das elites dominantes nem tampouco das lideranças dos partidos progressistas. Pelo contrário, participar dos debates em torno do projeto diferente de mundo é um direito das classes populares que não podem ser puramente “guiadas” ou empurradas até o sonho por suas lideranças (FREIRE, 2000, p. 21).
É cada vez mais na participação autônoma e legítima que se pode vislumbrar
uma possível construção coletiva de um viver digno, sem medo de falar sua
“palavra”. A palavra de uma mulher e de um homem não pode ser menos importante
do que de um representante, uma Assessoria. Afinal elas/es estão lá porque
mulheres e homens as/os colocaram lá, lhes “confiaram” esta tarefa.
109
A/o líder e igualmente as Assessorias são importantes na medida em que
conseguem, através de seu testemunho, colocar aos seus pares e aos grupos que
acompanham, que seu comprometimento, o comprometimento de cada uma e cada
um com o processo, é verdadeiro.
Mais uma vez surge a confiança como elemento fundante do compromisso
ético que realmente poderá fazer a diferença nestes processos e, quem sabe,
provocar através das ações conjuntas: Sociedade Organizada através dos MS em
diálogo com o Poder Público - uma possível transformação ao que está posto.
4.3 SEMINÁRIO REGIONAL DE ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA PERSPECTIVA
POSSÍVEL DA COMERCIALIZAÇÃO DOS EES NA REGIÃO CENTRO-OESTE
Todo o movimento feito pelas/os militantes da ES em respeito à dinamização
da comercialização dos EES acontece de maneira mais ou menos articulada entre
os diversos MS, em conjunto com alguns parceiros e setores Públicos. E essas
relações se dão, muitas vezes, em uma arena que coloca estas pessoas em
situação de enfrentamento permanente.
Como se sabe e neste trabalho se problematiza, a participação dos EES
nesta construção é fundamental para todo este complexo movimento, inclusive,
nesta mesma discussão, alguns elementos que são trazidos pelos grupos
demonstram que tal dimensão é um desafio constante e inconcluso devido às
diversas situações concretas de cada experiência e, se considerando os aspectos
históricos, culturais, políticas e sociais da sociedade como um todo, fica ainda mais
complexo este caminhar.
A discussão que trazemos neste momento versa sobre o desdobramento do I
Seminário Estadual de Comercialização Solidária. Atividade esta já problematizada
no item anterior, através da lente das experiências e vivências do Grupo MUDAR em
diálogo com outros Grupos, militantes, Assessorias e Gestores Públicos.
Nesta oportunidade serão compartilhadas algumas discussões construídas
durante o I Encontro Regional da Comercialização Solidária. Este Encontro
aconteceu no município de Bonito, em Mato Grosso do Sul, entre os dias 23 e 25 de
junho de 2010.
Como no Encontro Estadual, nesta edição estiveram presentes:
representantes de EES, do campo e da cidade; Assessorias, Militantes e Gestores
110
Públicos de todos os estados que compõem a Região Centro-Oeste, mais o Distrito
Federal. Nesta oportunidade foi possível a participação de uma das integrantes do
Grupo MUDAR.
As pautas do encontro tratavam, em sua essência, da construção de uma
possível Comercialização Solidária como uma estratégia em Rede. Para tanto,
algumas ações que estão acontecendo precisavam ser pontuadas e socializadas
enquanto proposta pedagógica neste processo.
Assim sendo, foi feita a apresentação do Projeto Nacional de Comercialização
Solidária (PNCS) pelo IMS, através das Articuladoras da Comercialização; do
mapeamento na Região CO: os dados socializados foram do Mato Grosso do Sul,
mas a discussão sobre o processo se abriu para a contribuição dos demais estados;
foi trabalhado o conceito e princípios do Comércio Justo e Solidário pela instituição
FACES do Brasil; e discutida a comercialização em mercado institucional com a
Delegacia do MDA/MS.
Entre as questões suleadoras para cada etapa de trabalho estavam: avançar
nos desafios da comercialização; fazer juntos uma comercialização diferente, em um
processo de transição, onde a exploração deixasse de ser base para a relação de
trabalho; pensar, neste percurso, o como fazer isso, verificando quais estratégias
imediatas e outras mais a longo prazo que podem contribuir ao enfrentamento das
mazelas do capitalismo, construindo uma proposta possível de desenvolvimento
dialógico e endógeno rumo a um Comércio Justo e Solidário.
Neste sentido, foi realizado um exercício coletivo, onde todas e todos tiveram
espaço para dizer a partir de suas realidades o que na perspectiva destas questões
eram possibilidades e limites para a ES. Assim, surgiram várias colocações, como:
Pensar um espaço coletivo de comercialização; o fortalecimento e organização do movimento de base em ES; rever os modos de produção, comercialização e consumo com base em Formação Política e com construção de Políticas Públicas efetivas para essas dimensões; construir uma proposta de um novo modelo de economia diferenciado do Capitalismo; enfrentamento e superação do tipo assistencialista de cultura enraizada nas vivências das pessoas; aproximação das Universidades e a Rede de formadores como estratégia para esse processo (GT 1o Seminário Comercialização Regional, 2010). .
Foram muitas contribuições no sentido propositivo, foi percebido pelo coletivo
que o eixo articulador destas propostas estava em pensar com que critérios se
111
estabelecerá essa nova proposta de comercialização. Lembrando que é necessário
que se considere todo o histórico da luta das pessoas, as diversidades das
identidades culturais, verificando os limites e as possibilidades para mobilizar e
articular este que acontecerá, em um cenário de erros e acertos, em um movimento
não-linear, inconstante e dinâmico.
As Feiras, neste contexto, foram lembradas enquanto espaços de trocas
significativas, de fortalecimento e articulação: termômetro de como o Movimento está
em determinadas localidades. Durante elas também foi possível o aproveitamento
dos acúmulos significativos de ideias, uma construção coletiva que subsidiou a
estruturação do Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário (SNCJS).
Entende-se que ao sistematizar as experiências foi possível subsidiar a
construção desta PP, que foi sancionada pelo ex-Presidente da República Luiz
Inácio Lula da Silva, ao final de seu mandato, em dezembro de 2010. Paralelo a isso
temos a execução da 3ª etapa do mapeamento, elemento que foi destacado nas
discussões do grupo em Bonito-MS.
A experiência do Mapeamento em sua 3ª etapa foi uma das ações que
ocorreu em âmbito nacional, que o coletivo considerou estratégica, na medida em
que se apresenta como uma conquista em torno da visibilidade necessária aos EES
em todo o território nacional. Nesta oportunidade, o processo no CO foi gestado pela
Associação Nacional de Trabalhadores em Empresas de Auto Gestão (ANTEAG).
As dimensões trazidas pelas experiências tiveram expressão enquanto uma
possibilidade de se “olhar” como esta ação está acontecendo nas diversas
realidades da região CO, buscando neste exercício identificar os limites e as
possibilidades desta para a organização, visibilidade e legitimação do Movimento.
Foi lembrado pela integrante do Grupo MUDAR que:
Muitas destas conquistas regionais precisam mesmo ter um olhar diferenciado sobre cada realidade, porque se precisa considerar que a depender do Estado há muita distância entre tais dimensões. Inclusive dentro dos Estados muitas/os mapeadoras/es viveram situações diferenciadas. Uns tiveram todo o apoio de Sindicatos e Prefeituras, outros nem conseguiram concluir o trabalho pelo fato que não teve a colaboração de nenhum destes órgãos e o recurso destinado para a logística era muito pouco (Integrante LRF).
Foram recorrentes depoimentos que confirmavam esta fala, reafirmando que
houve poucas parcerias com o poder público; o difícil acesso, seja pelas barreiras
112
naturais, seja pela dificuldade de informações existentes sobre os EES (esta última
muitos atribuem ao fato do total desconhecimento da sociedade como um todo sobre
a existência da ES) e, consequentemente, dos Grupos da ES, foram alguns dos
motivos pelos quais muitos deixaram de ser encontrados.
Também houve muitos casos de EES que deixaram de existir ou de atender
aos princípios/critérios da ES; muitos dos EES visitados e a maioria dos mapeadores
questionaram a complexidade do questionário aplicado, acreditam que o mesmo não
seja adequado à realidade dos EES, pela sua extensão e difícil interpretação.
O retrato das experiências do mapeamento também trouxe aspectos
positivos, estes são as oportunidades de levar aos quatro cantos do Brasil a notícia
de uma história de luta que acontece nos meios populares, que resiste mesmo neste
aparente anonimato.
Foi amplamente discutida, na nossa experiência estadual, a dimensão do
“conhecer” a ES e os Grupos que nela estão inseridos como fator importante para a
organização da comercialização dos EES de MT. Neste ponto, a memória foi trazida
pela representante do grupo MUDAR, onde reafirmou a importância do mapeamento
para a visibilidade do fazer a ES, mas que outras coisas deveriam estar atreladas
para o devido acesso às informações desta pesquisa.
A apropriação destas informações pelos grupos poderá se dar a partir, não só
da necessidade, mas através de um processo de formação; além disso, vale lembrar
que a inclusão digital é outra questão que também ainda não foi amplamente
disponibilizada, muitos EES não têm acesso a esta mídia e os que têm não possuem
a técnica necessária para seu uso de forma eficaz.
Contudo, o exercício constante de projetar um sonho com base em princípios
e critérios estabelecidos de forma solidária, acordada na medida do possível pelo
coletivo, sem perder as especificidades de cada realidade, como um diálogo, não um
monólogo, não pode ser perdida de vista.
As Políticas Públicas e os diversos Programas que foram criados com base
em nossas demandas, para apoiar a construção de um Comércio Justo e Solidário,
nem sempre acontecem de acordo como foram pensadas, e estes depoimentos
colocam a contradição diante das diferentes realidades que confirmam esta questão.
O Comércio Justo e Solidário é projetar um amanhã construído hoje, para
além do Mapeamento, do Centro de Formação em ES (CFES), entre outras PPs e
Programas, é necessário se estabelecer uma espécie de Rede comunicacional,
113
produtiva e formativa que fomente verdadeiras Cadeias Produtivas, que venham
fortalecer as/os produtoras/es e trabalhadoras/es, que podem promover assim a
qualidade de vida dos sujeitos esquecidos durante a história sócio-cultural das
sociedades. Este anonimato não é por acaso, é politicamente estratégico, afinal, a
quem interessa saber ou validar práticas que não sejam subordinadas ao capital?
É neste sentido que a ES traz a necessidade de construção de um projeto de
uma outra forma possível de se estabelecer relação no mundo, uma possibilidade
que seja contrária à ordem estabelecida. Que privilegie a vida em suas diversas
manifestações, com respeito às relações entre os seres vivos e com alteridade, onde
as questões diversas das especificidades humanas sejam minimamente
consideradas, buscando-se dentro deste processo o reconhecimento da condição
humana enquanto inacabada e em um constante “devenir”:
Seria impossível saber-se inacabado e não se abrir ao mundo e aos outros à procura de explicação, de respostas a múltiplas perguntas. O fechamento ao mundo e aos outros se torna transgressão ao impulso natural da incompletude. O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na História (FREIRE, 1996, p. 136).
Em outras palavras, é preciso pensar na valorização do que é da pessoa, com
o cuidado das diversidades e diferenças que se destacam no coletivo, somando e
não subtraindo pelo que é diverso. As diferenças fortalecem, as potencialidades
próprias de cada uma se complementam, não linearmente, mas dentro de uma
dinâmica tão interessante como a própria vida: com desafios e repleta de
possibilidades criativas, que podem dar espaço para a promoção da humanidade,
que o capitalismo subtrai em sua lógica desumana:
Vemos como o respeito às diferenças e obviamente aos diferentes exige de nós a humildade que nos adverte dos riscos de ultrapassagem dos limites além dos quais a nossa autovalia necessária vira arrogância e desrespeito aos demais. É preciso afirmar que ninguém pode ser humilde por puro formalismo como se cumprisse mera obrigação burocrática. A humildade exprime, pelo contrário, uma das raras certezas de que estou certo: a de que ninguém é superior a ninguém. A falta de humildade, expressa na arrogância e na falsa superioridade de uma pessoa sobre a outra, de uma raça sobre a outra, de um gênero sobre o outro, de uma classe
114
ou de uma cultura sobre a outra, é uma transgressão da vocação humana do ser mais7 (FREIRE, op. cit., p. 121).
Dentro deste processo político e pedagógico a dimensão da autogestão, da
cooperação e da atenção especial, ou mesmo central, ao meio ambiente com vistas
à sustentabilidade são dimensões que suleiam o entendimento da ES enquanto
uma proposta de desenvolvimento por uma nova sociedade com base na vida.
E no interior desta construção buscar compreender os processos de
exploração da produção pelas grandes multinacionais; a mudança na postura e
lógica do produtor, do comerciante, do consumidor - prossumidor: transformar a
lógica de um mercado fundamentalmente explorador, onde as relações entre
mulheres e homens se fundam na mesma direção.
Neste sentido é importante rever, reconstruir, reelaborar práticas. Através de
um exercício continuado, coletivo e participativo, que pode colaborar para com a
formação constante para esse treino do “olhar”, um olhar diferenciado para um
mundo que se quer diferente.
É este “olhar” que foi possível perceber ao acompanhar o Grupo MUDAR em
sua trajetória dentro deste processo da ES. Um olhar de possibilidades, de seus
limites individuais e coletivos. Onde cada uma em particular faz, ou tenta fazer de
acordo com suas condições, sua parte para que o Grupo um dia consiga ter sua
produção estabelecida de acordo com os princípios defendidos pela ES. Em muitas
das falas das mulheres é registrada esta busca e interesse:
Nós fazemos de acordo com o perfil de cada uma: umas se identificam mais com a produção, outras com a venda, outras fazem tudo isso e outras têm tempo de participar dos cursos, oficinas e seminários de formação. Eu não posso participar da maioria das formações que acontecem em Cuiabá, não posso viajar para participar de feiras ou outros encontros, mas com certeza busco outras formas de me capacitar, de buscar informações e capacitação que ajudam nossa produção. A outra parte a gente acaba vendo dentro do próprio Grupo, porque há as mulheres que participam de muitos eventos e nos repassam a formação específica sobre a ES que aprenderam. É assim que a gente tenta manter nossa união, umas fazem de um lado o que podem, como podem, por outro lado as outras também fazem o que dá e juntando tudo nos mantemos unidas em prol de um sonho (Integrante EBS).
7 Ver FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, op. Cit.
115
Com isso acontecendo de maneira bem particular, não perdem de vista que
este se dá em um processo complexo, contraditório e em um cenário de conflitos
permanentes devido a todas as dificuldades da vida. Sendo assim, é importante que
seja percebido com o cuidado de algo que não está dado, ou que se tenha uma
receita de como “conduzir” a produção de vidas. Ela está sendo forjada a partir desta
caminhada, e não é possível fazer diferente, caso contrário simplesmente
estaríamos reproduzindo o que está posto.
4.3.1 Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário (SNCJS)
Este momento aconteceu como uma “Roda de Conversa”, onde foi possível
trazer para o diálogo informações e conhecimento a respeito de um possível
conceito do que venha a ser o SNCJS e de como está sua situação atual. Também
trouxe alguns elementos a respeito do Sistema Participativo de Garantia (SPG) dos
produtos orgânicos da ES a partir da experiência da Associação dos Produtores
Orgânicos - MS (APOMS).
São, então, duas dimensões intrinsecamente correlacionadas, a do SNCJS e
propriamente o CJS, que foram trabalhadas para compreensão destas que se
configuram em possibilidades neste processo, podendo ser consideradas
instrumentos políticos e econômicos importantes:
O SNCJS é um conjunto de parâmetros: conceitos, princípios, critérios, atores, instâncias de controle e gestão, organizados em uma estratégia única de afirmação e promoção do Comércio Justo e Solidário em nosso país (...). Ele é um projeto tanto político quanto econômico. Político, pois oficializa o reconhecimento pelo Estado Brasileiro do Comércio Justo e Solidário como política social de enfrentamento das desigualdades sociais e da precariedade das relações de trabalho. E, econômico, por proporcionar uma identidade aos produtos e serviços da Economia Solidária, agregando valor e conceito aos mesmos, e, assim, ampliando suas oportunidades de venda (FACES DO BRASIL, p. 03).
Esta definição foi construída a partir de todo um trabalho empreendido por
alguns grupos articulados em prol da construção de estratégias políticas e
pedagógicas, buscando subsidiar uma prática já existente entre alguns EES e visado
por todos. Outro conceito trabalhado foi do CJS:
116
É o fluxo comercial diferenciado, baseado no cumprimento de critérios de justiça e solidariedade nas relações comerciais, que resulte no protagonismo dos Empreendimentos Econômicos Solidários (EES) por meio da participação ativa e do reconhecimento da sua autonomia (op. cit., p. 04).
É importante buscar nas memórias os vários momentos de formação, de luta
e construção da ES sobre a postura frente às conceituações e ou definições sobre
os processos ora elaborados e reelaborados. Estas definições foram apresentadas
da forma como aqueles coletivos, naquele momento específico, pensavam estes
processos.
A saber, que pelo movimento complexo da sociedade e seus processos, se
considerando a incrível capacidade do capitalismo em se apropriar de tudo que
possa lhe assemelhar a uma ameaça contra a sua manutenção, os conceitos e as
práticas, com certeza, precisam ser continuadamente revistos, como estratégia de
afirmação e reafirmação identitária de um coletivo que se pretende, com proposta
diferenciada da que está posta.
Com isso algumas questões desafiadoras foram pontuadas:
O CJS ainda não saiu do mundo das idéias, sua concretude está atrelada ao
poder de apropriação dos atores da ES;
Apesar da assinatura do Decreto nº 7.358, de 17 de novembro de 2010, que
institui o Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário (SNCJS) como projeto
político social, não temos ainda definida sua regulamentação, ou seja, não se
tem fomento para sua execução;
Construir mercados solidários ou estabelecer diálogo com o convencional? A
estratégia é construir uma identidade cultural, não estabelecendo concorrência
aparentada com o que está posto?
Essa Identidade é História, é vida... Valoriza todo um processo, qualifica
socialmente o produto: a origem do trabalho é um diferencial importante;
Quais espaços de comercialização se buscam? Dentro e/ou fora do Brasil?
Em um CJS a teia produtiva pode ofertar produtos de qualidade que dão
descontinuidade à lógica do Mercado, pois o que está sendo proposto é
qualidade de vida e isso implica, por exemplo, ir de encontro ao consumismo: o
Capital produz com menos qualidade e garante a teia do consumo desenfreado;
O SNCJS organizará selo organizacional e de produto: O Selo Organizacional é
mais utilizado em instrumentos de Comunicação (Folder, Pôster...); o Selo de
117
Produto será agregado pelos ESS que se percebem enquanto protagonistas de
um CJS. Todo esse processo precisará do esforço do coletivo envolvido em
construir critérios específicos para cada tipo de produção... É algo que ainda está
sendo pensado;
Não basta o ESS estar dentro dos critérios estabelecidos, é preciso ter em todo o
processo relacional um caráter de Comércio Justo, para tanto, a história deste
produto precisa ser contada para o consumidor final.
A Identidade sócio-cultural precisa estar relacionada no ato da Comercialização,
além disso, o preço Justo também é outro critério a ser considerado... É
complexo o movimento, por isso mesmo ainda está em nível do mundo das
idéias;
A gestão junto aos fornecedores: como se está pensando esse processo?
Pensar toda a cadeia produtiva com vistas a cuidar destes processos defendidos
pelo SCJS, esses desafios estão aí para serem pensados, discutidos,
enfrentados e superados pelo coletivo da ES;
O Sistema, como instrumento de adesão, considera um tempo para os ESS se
adequarem a estes critérios? Pensando que isso depende deste coletivo, pois
sua base é a participação: a ideia é poder incluir o maior número de
experiências, a transição nesta perspectiva precisa ser considerada;
Algumas questões são suleadoras para identificar se o ESS está se organizando
com vistas a se adequar, e essa é a ideia, que ele se perceba, se organize. E por
isso não se pensa em critérios de eliminação, mas de construção conjunta.
Princípios da legalidade... Tributos que dificultam a comercialização;
O comprometimento dos atores é fator sine qua non para o enfrentamento ao
que está posto, com vistas à superação dos desafios aqui levantados e outros
que surgirem;
O processo de preenchimento para a participação dos EES ao projeto piloto do
CJS é formativo, a intenção é que, enquanto o grupo o responda, a autoreflexão
e todo o conjunto colaborem para a formação;
Estas questões foram amplamente discutidas em um exercício de reflexão e
busca de alternativas de embate para situações que são maiores, mais amplas e
que somente uma profunda transformação da lógica vigente poderia dar conta. Mais
uma vez se fez presente a importância do trabalho de mãos dadas com a educação,
118
de forma integrada entre os diversos MS pautando incansavelmente o poder público
com as demandas necessárias para esta grande retomada, que diz respeito à
qualidade de vida.
A realidade do grupo MUDAR está um pouco distante de dar conta destas
discussões. O CJS é o sonho de consumo da maioria dos EES, inclusive do grupo
MUDAR. O que dificulta é a própria estrutura produtiva destas mulheres. Para além
desta questão econômica, elas se vêem mais preocupadas com a busca de
competências técnicas, uma vez que a produtiva depende de todo um investimento
que está aquém de suas possibilidades.
Isso posto nos remete à realidade de muitos EES que da “porteira prá dentro”
estão fragilizados, e pensar um CJS tendo a maioria dos grupos da ES em situação
de vulnerabilidade é um tanto quanto tais práticas “estarem no mundo das idéias”. É
fato que uns poucos grupos estejam preparados para esta prática, porém isso não
reflete a realidade brasileira, quiçá matogrossense. É preciso um CJS que subsidie
estes grupos para sua habilitação qualificada.
4.3.2 Apresentação da Experiência da Associação dos Produtores Orgânicos
do Mato Grosso do Sul (APOMS)
Este grupo é composto por 200 famílias que atuam no Assentamento
Itamarati, Ponta Porã-MS, desenvolvendo a produção de algodão colorido 100%
orgânico. Outros produtos se destacam, como o café e outros cereais. O Sistema
Participativo de Garantia (SPG), iniciado pela Associação, ainda está em processo
de implantação, mas já possuem um grupo de famílias da AF que trabalham com a
produção de alguns produtos orgânicos, alguns já totalmente e outros em fase de
transição.
Ressaltou que conhecer a história do Grupo, o produto e o Movimento para o
processo de comercialização é realmente fundamental. Nesta perspectiva, a
certificação participativa se dá fundamentalmente pelo reconhecimento desta história
e sua vivência pelas famílias.
Esta forma de certificação ainda é pouco usual, mesmo porque a produção
agroecológica está em fase de transição no Brasil. A aproximação do MS da ES de
outros com bandeiras de luta e resistência, que convergem com seus princípios e
119
propostas de desenvolvimento, neste caso com a Agroecologia, enriquece muito as
possibilidades de fortalecimento e ampliação destas práticas.
A Assistência Técnica é uma realidade de despreparo, ou seja, é insipiente e
a existente não atende às especificidades das famílias. A ATER para o campo como
um todo vem sendo priorizada em várias discussões dentro de Fóruns e Conselhos
específicos, seja local, estadual, regional ou nacionalmente falando, em diálogo com
o poder público, devido a esta realidade de inexistência ou falência do
acompanhamento adequado.
Em se tratando de orgânicos, a situação é mais delicada ainda. Isso faz parte
dos desafios dos diversos MS que lutam pela democratização da terra, do livre uso
das sementes crioulas, da luta contra os agrotóxicos, enfim, do respeito à produção
de alimentos saudáveis e do direito a uma vida digna no campo.
Apesar das dificuldades encontradas e das que ainda precisam viver
diariamente, que vão desde a convivência com fazendeiros que pulverizam veneno
em suas plantações, até Multinacionais que tentam dividir as famílias com super-
ofertas para a aquisição dos produtos in natura, alguns seguem mais ou menos
firmes.
Lembrando que a estratégia do capital em se apropriar do lucro final da
produção dos grupos é o que mais se enfrenta nesta experiência. A dinâmica do
Mercado seduz os envolvidos nos processos da ES, agindo na desarticulação e no
afastamento dos grupos, das famílias e/ou pessoas.
O processo de formação, as perguntas e as respostas que ocorrem em meio
a esta produção de conhecimento, a partir das experiências individuais e coletivas,
mexe com as certezas pré-estabelecidas e ajuda a promover um momento de
partilha, de autoconhecimento do grupo, o que possibilita um enxergar para além
das evidências:
Nenhuma teoria da transformação político-social do mundo me comove sequer, se não parte de uma compreensão do homem e da mulher enquanto seres fazedores da História e por ela feitos, seres da decisão, da ruptura, da opção. (...). A grande força sobre que alicerçar-se a nova rebeldia é a ética universal do ser humano e não a do mercado, insensível a todo reclamo das gentes e apenas aberta à gulodice do lucro. É a ética da solidariedade humana (FREIRE, 1996, p. 129).
120
Assim, as famílias envolvidas estão conseguindo se manter nesta nova forma
de produzir, trabalhando e aprendendo a cada dia com um novo sentido. Um sentido
ético diante destas relações, e isso de desdobra na solidariedade do trato com o
outro, o cuidado com a terra e a produção de produtos livres de agrotóxicos, o que
cada vez mais aproxima as pessoas.
Porém, por vezes, algumas atitudes estimuladas pelo mercado impedem um
trabalho mais integrado entre as mesmas, é este complexo movimento que
constantemente se apresenta enquanto parte significativa do desafio de fazer a ES.
O exercício diário de consumir da Rede de Produção da ES criada por este coletivo,
por exemplo, é algo sistematicamente estimulado em contraponto ao consumismo.
Mesmo sendo este um assunto mais próximo da AF, diz respeito direto aos
grupos da cidade, a alimentação diz respeito à saúde e à vida. Não é um assunto
unilateral, ou central dos grupos do campo e da floresta. Grupos como o MUDAR,
que trabalham com alimentação e reaproveitamento do papel, precisam estar
preocupados com esta discussão.
É por isso que trouxemos esta discussão de orgânicos, de SPG, da
importância da história do grupo e dos meios de produção que privilegiam. A
discussão sobre o uso indiscriminado de agrotóxicos e do monopólio das sementes
pelas grandes Multinacionais: a possível extinção das sementes crioulas. Estes são
temas que recaem sobre a cidade tanto quanto no campo.
Esta experiência nos chama a atenção sobre questões que rotineiramente
não refletimos, e que são urgentes. O interesse para o MUDAR está na reflexão de
como estas questões podem fazer a diferença no ato de consumir, em ver a origem
do produto, em repensar o consumo.
A cultura do acumulo, do imediatismo, do individualismo e do desencanto por
uma vida melhor, por vezes, acompanham de perto o movimento sobrehumano que
é ser humano dentro desta lógica. São mulheres e homens se fazendo
continuadamente, muitas vezes sem certeza de que serão capazes de continuar,
mas o desejo por uma vida digna ainda é um combustível que o mercado não
privatizou:
Há um século e meio Marx e Engels gritavam em favor da união das classes trabalhadoras do mundo contra sua espoliação. Agora, necessária e urgente se fazem a união e a rebelião das gentes contra a ameaça que nos atinge, a da negação de nós mesmos
121
como seres humanos submetidos à “fereza” da ética do mercado (FREIRE, op. cit., p. 128).
É pensando, neste enfrentamento, que é primordial trazer discussões como
estas para o centro dos MS. A difícil tarefa de se fazer comércio, produção e
consumo de forma diferenciada da que está na lógica dominante e ainda se
reinventar continuadamente é, ou deveria ser, base para discussões mais amplas
como a que foi iniciada nesta proposta de mestrado.
Fazer estas relações de um jeito diferente não é algo que está dado, o
intercâmbio entre as diversas realidades traz estas oportunidades de poder “olhar”
como outras pessoas estão enfrentando estas forças dominantes. A visão, assim
sendo, pode “mudar”, pode ampliar e não se limitar - pode transformar!
4.3.3 Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar
(PAA-PNAE): Territórios da Cidadania
Entre nossas conquistas estão algumas PPs que são importantes
instrumentos para a comercialização do pequeno agricultor, para o processo de
consolidação da Agricultura Familiar do campo e peri-urbana, enquanto dimensão
política diferenciada frente ao Capitalismo de hoje. Entre estas estão o Programa de
Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar
(PNAE).
Entre as suas possibilidades, mas, ao mesmo tempo, desafios para o
fortalecimento destes segmentos econômicos, está o de estimular e organizar o
potencial produtor de cada região e construir uma Rede de produção,
comercialização e consumo de acordo com os interesses dos coletivos envolvidos a
partir dos Territórios.
A AF é muito mais forte que o agronegócio se considerarmos a realidade do
abastecimento de alimentos dentro do nosso país. É fato, quem coloca a comida na
mesa dos mais de 100.000.000 brasileiros é a AF. Estudos e pesquisas diversas
comprovam esta afirmação, que não trazemos neste momento para
aprofundamento.
O que é preciso fazer, urgentemente, é organizar as famílias produtoras para
assumir essa condição que é viável, mas hoje ainda é um sonho.
122
Em muitos estados pouquíssimas/os produtoras/es rurais já conseguiram ser
beneficiadas/os por estas PPs, inclusive os que já conseguiram realizar esta venda
foi fundamentalmente acessando o PAA, através da CONAB, e com algumas
parcerias com as Instituições de base (Associações de Produtores Rurais, STR). No
caso do Mato Grosso, por exemplo, as informações que temos demonstram que os
casos onde se estão encontrando maiores obstáculos são para a venda direta às
escolas através do PNAE.
Segundo relatos de várias entidades de representação das/os agricultoras/es,
e dos próprios, são muitas as exigências e a realidade dos campesinos, sejam
Quilombolas, Ribeirinhos, Assentados, Tradicionais ou Meeiros, não conseguem
juridicamente corresponder às mesmas. A Nota Fiscal que precisa ser emitida no ato
da comercialização é uma destas exigências, que a maioria não tem condições de
cumprir.
Pelo fato de a maioria dos Assentamentos, por exemplo, não ter cumprido
alguns processos complexos, que envolvem desde o Georreferenciamento da área
ao Licenciamento Ambiental (LAU), mesmo as famílias possuindo a Carta de
Concessão de Uso (CCU) e a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP) elas não
conseguem ter este acesso facilitado.
A discussão, nesta perspectiva, é bem mais ampla e complexa, em um
encontro desta natureza, considerando-se o tempo e o foco, o que impossibilita uma
maior reflexão acerca destes processos de luta para o acesso às políticas que foram
criadas para viabilizar uma demanda vinda da base. A luta por estes instrumentos foi
muito grande e, pela realidade maior, serão as lutas da AF para seu efetivo acesso.
A idéia foi inserir esta questão para uma provocação, pois é necessária a
problematização desta realidade. São desafios que os militantes de cada estado
possuem, enquanto encaminhamentos a serem dados de forma articulada a partir
das bases, integrando agendas com diversos MS que possuem interesses em
comum neste sentido.
Para fazer um link com o assunto tratado anteriormente, trazer estas
discussões pode ampliar a visão de mundo de diversas pessoas que não convivem
diariamente com estas questões, mas que, porém, são afetadas com o resultado
delas, uma vez que a dinâmica destas ações se reflete em todos os espaços sociais,
pois possui toda uma correlação entre a cidade e o campo.
123
A luta pela vida não se resume, ou não deveria se resumir, aos processos
travados pelos grupos de determinados espaços (cidade – campo – floresta). Há
uma interrelação intrínseca entre estes territórios e vale reforçar a necessidade de
trazê-la para uma problematização. Chamando assim a responsabilidade de cada
um nestes cenários de luta.
Voltando para a discussão das PPs é preciso prosseguir e ir além do já
colocado, abrindo o leque para as questões do crédito, da ATER adequada ao
campo da Agroecologia, da política de seguros, da ausência do estado frente a
processos que são de sua competência dentro destas dimensões burocráticas
(Regularização Fundiária), que acabam por excluir ao acesso das PPs, que são
resultado de muito suor e lágrimas justamente dos seus maiores beneficiários.
São temas que não se esgotam, foram trazidos para uma certa
problematização, uma provocação do necessário diálogo entre os grupos que fazem,
ou buscam fazer a ES em várias realidades urbanas e campesinas. A visão mais
ampliada sobre as dimensões trazidas foi um dos objetivos pensados pelo coletivo
que propôs a atividade.
Segundo o Grupo MUDAR, as discussões foram importantes na medida em
que puderam colaborar para com a construção de alguns conceitos e conhecimento
diferenciado a respeito das temáticas problematizadas:
Não é comum pensarmos nestas questões, às vezes parecem ser tão distantes, algo que não nos diz respeito. Nós que mexemos com a produção de alimentos deveríamos conhecer isso profundamente, porque todo tempo queremos oferecer o melhor, o menos industrializado possível, o caseiro e livre de condimentos que possam fazer mal aos consumidores. Como consumidoras, também, as escolhas que fazemos sem pensar acabam nos colocando reféns de produtos modificados e sabendo de tudo isso aqui discutido podemos rever o “supermercado” e o que trazemos para nossa família consumir (Integrante JGC).
É na medida do possível que este coletivo vê e revê sua inserção no MS da
ES. O grupo MUDAR tem consciência de que ainda precisam se organizar mais para
dar conta de um processo de CJS, inclusive acreditam que este pode ser um grande
estímulo para que a PP do SNCJS funcione de fato, com ações significativas nas
bases. Com uma atuação de inclusão, de diálogo, de outro jeito de fazer-se nesta
sociedade.
124
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: DIFERENTES PERSPECTIVAS E HORIZONTES
SEMELHANTES EM DIÁLOGOS E CONVERGÊNCIAS
Durante todo o percurso de nossa caminhada em busca da compreensão de
como se dava e era percebido o processo de formação que ocorre dentro do MS da
ES através do Grupo MUDAR, verificando nas práticas, nos conteúdos e proposta
metodológica elementos que pudessem contribuir, ou não, para com o desafio de
empoderar as massas populares para sua emancipação, com vistas a uma pretensa
transformação social via educação; o sentimento que nos acompanhou foi de que
todas as experiências dos diversos MS que dialogam entre si, de uma forma ou de
outra, estavam uma legitimando a outra.
As diversas frentes e Bandeiras de luta, com seu lugar ou perspectiva
distintos e bem singulares, possuem, por vezes, horizontes muito conhecidos. Seu
ponto de partida é o que lhes tem de mais caro, apesar disso a vida é a energia que
alimenta todas estas manifestações de resistência. Mas, repito, é a vida em uma
perspectiva que possui toda uma singularidade, porém com horizontes sempre
comuns: uma sociedade mais justa com possibilidade de vida digna para todas e
todos.
Nesta parte, em que temos o desafio de dar um fechamento à altura desta
história de luta e resistência, todo este sentimento se vê materializado no I Encontro
Nacional de Diálogos e Convergências: Agroecologia, Saúde e Justiça Ambiental,
Soberania Alimentar, Economia Solidária e Feminismo.
Este evento foi sediado na cidade de Salvador-BA entre os dias 26 e 29 de
setembro de 2011. Esta grande mobilização social foi co-organizada por 9 (nove)
MS, que representam milhares de trabalhadoras e trabalhadores, dos campos, das
florestas e das cidades.
Considerando-se todas as percepções de que a partir das experiências
vividas por integrantes do Grupo MUDAR foi que construímos nossas discussões,
neste desfecho todas elas se vêem contempladas no diálogo mais amplo que
aconteceu neste encontro nacional. Por isso, esta visão mais ampla, em um
movimento centrípeto e centrífugo, de dentro para fora e vice-versa possibilitado
pelo processo de formação interna do grupo, retorna agora como a essência de
nossas problematizações.
125
O conjunto desta obra contou com a colaboração de muitos sujeitos, o “olhar”
privilegiado se deu a partir da perspectiva do Grupo MUDAR, mas as construções e
produção do conhecimento foram extremamente coletivas. As falas significativas,
que enriqueceram sobremaneira nossas argumentações sobre o tema específico em
pauta, vieram de uns cem pares de percepções, desejos, sonhos e projetos de vida.
Não há aqui a intenção de trazer novas considerações que poderiam nascer
de um material inédito, como seria sobre este evento nacional, mas acreditamos que
seja pertinente deixar registrado este momento importante, onde convergiram tantos
“olhares” sobre a possibilidade da construção de uma nova sociedade que tenha o
ser humano como centro.
Na verdade, trazer estes “diálogos e convergências” para nos ajudar a
finalizar nosso trabalho, tem muito a ver com toda nossa visão de articulação,
integração e da impossibilidade de perceber o mundo como projeto único, e esta
constatação está estampada nesta prática, pois foi o culminar de uma longa
caminhada de diálogos entre os diversos MS que se relacionam intimamente com a
ES.
Esta grande articulação vem tomando corpo a partir da aproximação entre
estes diversos MS, fenômeno este que simboliza uma forma diferenciada de
resistência, que surge como uma resposta entre muitas contra a lógica de
exploração produzida pelo atual modelo econômico, que vem sistematicamente
sendo provocado durante os diversos encontros e lutas, por todo um tempo que não
se sabe precisar, isso devido às similitudes de interesses e agendas entre estes
segmentos.
A Comissão Organizadora teve a presença da Associação Nacional de
Agroecologia (ANA), da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), do Fórum
Brasileiro de Economia Solidária (FBES), da Rede Brasileira de Justiça Ambiental
(RBJA), do Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional (FBSAN), da
ABRASCO, da Rede Alerta contra o Deserto Verde (RADV), da Marcha Mundial de
Mulheres (MMM) e da Associação de Mulheres do Brasil (AMB). Houve articulação
destes com poderes públicos locais e nacionais (MDA, MTE, CONAB), entre outras
Instituições Sociais de apoio aos MS.
Para sulear as discussões de forma articulada, estes coletivos pensaram em
temas a serem discutidos a partir da apresentação de algumas experiências vivas
126
relacionadas diretamente com os macro temas presentes neste momento. Estas
foram organizadas em sessões simultâneas:
Reforma Agrária, Direitos Territoriais e Justiça Ambiental;
Mudanças Climáticas: impactos, mecanismos de mercado e a Agroecologia
como alternativa;
Agroenergia: impactos da expansão dos monocultivos para agrocombustíveis
e padrões alternativos de produção e uso de energia no mundo rural;
Defesa da Saúde Ambiental e Alimentação Saudável e o Combate aos
Agrotóxicos e Transgênicos;
Direito dos/as Agricultores/as, Povos e Comunidades Tradicionais ao Livre
uso da Biodiversidade;
Soberania Alimentar e Economia Solidária: produção, mercados, consumo e
abastecimento alimentar (Termo de Referência, 2011).
Estas temáticas formaram um conjunto de temas que foram debatidos por
cerca de mais de 300 (trezentas) pessoas, representantes de EES ligados, direta ou
indiretamente, com algum destes MS mencionados, durante três dias, é bom lembrar
que a estes MS muitos outros se somam e participaram destas discussões também.
Neste contexto, o MT se fez presente pela participação do Grupo MUDAR,
enquanto representante deste segmento através do FBES, além de mais 5 (cinco)
pessoas ligadas aos MS da ES e da Agroecologia (Fase, Associação PA Califórnia,
Associação de Mulheres do CPA IV, UFMT/ISC).
Traremos, para “olhar” reflexivamente, apenas um momento de forma mais
específica, que se trata de uma discussão organizada pelo Movimento de
Organização das Mulheres, que aconteceu antes das Sessões Temáticas, com o
tema “A Autonomia e a Auto Organização Políticas das Mulheres”.
Enquanto proposta de finalização de um longo percurso de construção, há
nestas discussões e reflexões que ora compartilhamos, alguns elementos que
colocam de forma integrada muitas dimensões amplamente discutidas durante todo
este percurso, como já bem colocado de início. Não há muito de novo nos elementos
trazidos, mas, de repente, um novo jeito de se “olhar” o mundo e nós mesmos dentro
deste complexo todo.
Esta grande articulação pode ser considerada já enquanto uma conquista
histórica dos muitos MS na história do Brasil, isso devido ao fato de que estes
127
coletivos participaram de forma significativa enquanto co-autores durante toda sua
elaboração e execução.
Da mesma forma, compreendemos sua relevante contribuição para com a
trajetória de nossa pesquisa, fundamentalmente nos momentos de formação, de
confraternização, de denúncia e resistência; em meio a estes a mística que nos
envolveu foi uma só: a VIDA DIGNA!
5.1 A AUTONOMIA E A AUTO ORGANIZAÇÃO DAS MULHERES
Pensou-se para esta atividade três momentos específicos: a Socialização de
experiências de grupos populares a respeito da auto organização das mulheres;
abrir um debate específico sobre as questões levantadas pelos depoimentos
compartilhados; e, depois, uma plenária sobre o todo apresentado e discutido nos
momentos anteriores.
5.1.1 Depoimentos
1) Rede Xique-Xique: As redes têm um importante papel ou função social, espaço
que provoca, nos que se envolvem no processo de formação humana e política,
certa autonomia e empoderamento suficientemente libertador. Nesta perspectiva,
a sua atuação frente à auto organização é fundamental, pois dá oportunidade da
fala e da valorização das trajetórias de vida, de enfrentamento e superação das
situações de violência doméstica, simbólica e histórico-cultural. Estas iniciativas
de superação incomodam muito o sistema legitimado, mas o desejo por “ser
mais” das pessoas é maior. A ES é uma oportunidade para consolidar este sonho
viável, o diálogo e a convergência só depende de cada uma e cada um. A
colaboração mútua é o diferencial da proposta, sem fins tão somente
econômicos.
2) Fórum Sindical da Borborema-PB: Trabalho mais focado na AF, com ênfase na
Agroecologia. A leitura compartilhada da situação local e da região é um dos
princípios que visam o protagonismo dos sujeitos. O trabalho parte de uma
realidade que são as desigualdades de relação dentro da família e da sociedade
como um todo. Como estratégia política pedagógica parte-se de toda uma
128
formação que vem dos conhecimentos produzidos pelas mulheres, saberes
populares que são desconsiderados, relegando à invisibilidade toda a
contribuição destas mulheres para com o cuidado com a família, com a terra e na
própria geração de renda. As experiências criativas em meio às “situações-
limites” são o ponto de partida nesta rede.
O estímulo às práticas de intercâmbios foi um ponto significativo, pelas
partilhas e trocas de saberes e sabores de vida, de outras oportunidades de
“inéditos viáveis”. Nesta perspectiva, muitas dimensões são trabalhadas: fundos
rotativos; pólos produtivos alternativos de manejo agroecológico; problematização e
enfrentamento da situação de gênero contra o caráter de banalização ou
naturalização das desigualdades de todas as dimensões, que fortalece a
invisibilidade dos frutos produzidos por elas.
Uma estratégia é a sistematização das experiências, o que colabora com o
processo de resgate e valorização identitária das mulheres do campo e das
florestas. A identidade coletiva neste movimento também é definida, assumida e
cada vez mais ratificada por estas mulheres, com vistas à sensibilização da
sociedade como um todo.
Acredita-se que a democratização do conhecimento é o ponto central da
agroecologia e da auto organização das mulheres, e isso já está fazendo a diferença
frente ao protagonismo das mulheres nesta comunidade, assumindo espaços
políticos junto aos sindicatos, conselhos, fóruns, entre outros, que eram palcos tão
somente dos homens. A formação é central para a construção de uma nova
realidade.
3) Grupo de Produção Agroecológica – PIQUIRI/RS –ANA/MMC: O que temos de
distinto é a forma de se organizar, mas as intencionalidades são as mesmas. E
são estas as convergências. Este movimento todo é um contraponto ao que está
posto, isso é básico. Desde 2000 se iniciou a luta pela auto organização das
Mulheres nesta experiência.
Aqui, não diferente, a luta é pela valorização da contribuição das mulheres
para toda uma construção diferenciada da legitimada pelo capital. Em 2004 esta
identidade foi afirmada, enquanto Movimento Feminista Camponesa. A construção
deste feminismo foi uma afronta à cultura paternalista e patriarcal, heteroconstruída
e alheia ao que é próprio do feminino.
129
A construção da consciência crítica está hoje em baixa, esta é uma leitura de
conjuntura feita a partir do que está sendo percebido pelo coletivo do MMC, mas
isso só reflete ao poderoso esforço das grandes indústrias e empresas, do
agronegócio e de interesses internacionais em bombardear os MS de resistência,
enfrentamento e alternativas ao que está posto.
No âmbito cultural e social um grande desafio é a reconstrução de valores
perdidos pela cobiça do capitalismo. Um mundo cada vez mais individualizado
impera, há violência de todas as formas. Estas relações são cada vez mais
massificadas pelos aparelhos ideológicos, reforçando a invisibilidade e naturalização
das desigualdades e injustiças sociais.
A natureza dentro deste cenário é refém, e junto com ela o feminismo, e
assim é preciso serem repensados, problematizados em todos os níveis, apesar de
uma evolução em termos de espaços de discussão como este e outros tantos, que
porém ainda são pontuais ou insuficientes para a reafirmação do lugar da mulher
nesta sociedade. Empoderar as mulheres é também colaborar para com o
enfrentamento e superação da violência contra as mulheres, é melhorar a economia
local e regional.
Recuperar o “ser mulher” nesta perspectiva é fundamental, isso no individual
e no coletivo. A auto estima perpassa questões superficiais, vai além, alcançando o
senso crítico das envolvidas. É preciso discutir a sexualidade, afetos, gostos,
identificação e recuperar a autonomia sobre o próprio corpo: É O ESTAR
EFETIVAMENTE NAS SITUAÇÕES DE DEFINIÇÃO.
4) Grupo de Quebradeiras de Cocos-Nordeste: Lutar contra os latifundiários a
partir de 1992, inicialmente a partir dos Sindicatos, onde saíssem do espaço
destinado aos “informes”. É muito complicado assumir esta luta, não ter apoio
político é um grande desafio. Sem condições ainda estão lutando, muitas vezes
para a sociedade ainda é insignificativa a inserção desta ação produtiva
enquanto organização econômica e política, mas para quem é quebradeira de
coco no Maranhão muita diferença ela percebe, só de poder participar de um
momento de discussão política com os que os diversos MS articulam já é um
grande avanço.
A mudança de vida é um processo cultural que não se aquebranta de um ano
para o outro, de um momento a outro. A visão das mulheres envolvidas nesta
130
experiência ainda não consegue alcançar determinada imersão da realidade pela
própria condição que até então lhes foi imposta.
O envolvimento da juventude para a continuidade desta herança cultural é
uma questão que preocupa este coletivo, a renda não é atrativa, o mercado não
absolve a produção, a comercialização tem estes entraves: uma cultura que corre
riscos de se perder devido ao desinteresse das futuras gerações, que não se
interessam pela arte devido às diversas situações sociais, além das condições reais
de vida no campo e nas florestas.
Apesar disso, há mudança entre as que estão neste processo, falando
primeiro e depois nas formações, na organização da comercialização, articulando na
medida do possível estas duas dimensões de forma pedagógica. Já há uma
valorização na identidade e na produção de conhecimento e vida. Babaçu livre: esta
é a luta destas mulheres, uma política pública que pode lhes garantir a renda.
O latifúndio ainda é um enfrentamento. E a liberdade conquistada neste
contexto é motivo de cobrança e discriminação da sociedade como um todo, muitas
vezes da própria família, o envolvimento de uma mulher camponesa nestas
condições é um desafio! O saber do trabalho e da vida precisa estar aliado ao saber
da escola, esta tem que viabilizar aquela, como isso não acontece continuam as
contradições e dificuldades. A autonomia é uma busca e luta diária.
5.1.2 Debates
ANA: A caminhada trilhada pela organização das mulheres, mesmo que de
maneiras distintas, a partir destas experiências de resistência, de luta/enfrentamento
e de “inéditos viáveis”, se fez com um investimento pessoal e coletivo que não é
barato. Por isso mesmo que muitas companheiras ficaram pelo caminho, mas nem
mesmo por isso o coletivo pelo feminismo desiste.
É um processo repleto de dificuldades que precisam ser registradas. As
sistematizações trazem estas realidades em muitas experiências, endossando os
depoimentos compartilhados. A expropriação do fruto da sua força de trabalho é
uma prática que insiste e persiste entre as relações societais, e é o que junto com
toda a ação de desvalorização da atuação das mulheres frente à participação
política desestimula e traz consigo toda uma violência simbólica real.
131
GTM/ANA: A sistematização surge neste diálogo como uma estratégia de
formação política e pedagógica. A perpetuação das desigualdades de poder frente à
participação política feminina ainda é uma constante. A invisibilidade do trabalho das
mulheres também se repete nas variadas experiências: divisão do trabalho em foco.
A luta pela autonomia perpassa o econômico, precisa ser política e de
mudança de postura na sociedade. Que autonomia é essa que desejamos produzir:
agronegócio, autogestão - é a mercantilização da vida. É através da ressignificação
do que está se fazendo que se pode perceber se de fato é emancipador ou colabora
com o que está posto. A luta coletiva também é muito forte nas discussões, sem
perder de vista o indivíduo singular.
Problematizar e ampliar o conceito de trabalho e economia: como garantia de
criação e recriação de vidas. O modelo de família define um pouco o custo da
liberdade de participação e de autonomia, isso porque os moldes predominantes
ainda são tradicionais entre o patriarcal e o machista. Em uma perspectiva global, o
cenário na América Latina não é diferente, considerando as falas e as experiências
de vida de militantes de várias partes desta porção da sociedade.
As mudanças que pretendemos para a vida em sociedade vão para além de
situações de paridades políticas, adentram a sexualidade, o corpo e o ser. É preciso
pensar no que fazemos. O que temos posto jamais dará conta de tudo isso, é
preciso de estratégias bem mais amplas, pois o cerceamento está em todos os
espaços e níveis da sociedade.
5.1.3 Discussões na Plenária
Muitas vivências compartilhadas são tão presentes no dia-a-dia de muitas
mulheres que ainda hoje se vê uma relação de desvantagem de um sobre o outro. A
comercialização tem na DAP um poderoso subterfúgio estatal de negação à vida
digna. A questão da identidade precisa ser retomada, nas formações, como
estratégia de construção e reconstrução de que somos sem que outros nos digam,
mas que tenhamos propriedade desta certeza.
A dimensão do trabalho e sua divisão dentro da dinâmica familiar ainda é de
subordinação e de redobrada acumulação de responsabilidades. Ser militante e
protagonista da própria história não está sendo colocado em discussão, nem mesmo
nas próprias conferências de políticas públicas para as mulheres. Assim sendo, aqui
132
pode ser minimamente pautada esta reflexão para dentro das realidades, tanto do
campo quanto da cidade, considerando-se ainda outras dimensões étnicas, raciais,
sociais e de orientação sexual ou religiosa.
E a juventude? Nesta dinâmica do campo, o campo está se tornando idoso e
sem perspectiva de futuro. Em contrapartida, a família precisa ser repensada, até
mesmo pela situação de marginalização das mulheres, mães e filhas, dentro de suas
próprias casas: a educação familiar, na perspectiva deste contexto, precisa ser
pensada. A teoria na realidade é outra, sendo assim ficam os desafios.
A mudança pode estar em envolver as mulheres e os jovens, por exemplo,
em propor ações práticas, construídas com a participação destes. Temas que
mobilizam estes segmentos... Buscar estes interesses é fundamental. Não se pode
crer que as formas de organizar o jovens serão idênticas às que tomamos por
certas, este segmento é diferenciado e certamente só eles é quem podem dizer o
que e como podem ser.
A atitude de autoridade de pais, neste contexto, precisa ser constantemente
revista. Outro lado da discussão traz a educação que tivemos e a que pensamos
perpetuar na educação dos filhos... A relação desigual frente à jornada de trabalho e
o usufruto desta produção precisam ser problematizados, trazendo os homens para
esta discussão.
Os trabalhadores rurais principalmente. Diante dos vários e variados desafios
muito se fez. As cisternas no semi-árido são um exemplo de avanço nesta atuação
da mulher no cenário social e econômico. Estas reflexões são para todas as
mulheres, não podem ser percebidas somente como uma questão campesina. Nesta
perspectiva, em se tratando dos diversos MS, como efetivamente podem cruzar suas
agendas de enfrentamento e resistência diante do que está posto?
Ao trazer estas reflexões para o interior do Grupo MUDAR o sentimento de
reconhecimento diante das experiências é significativo. Algumas socializaram
situações de exposição à violência doméstica, das quais foram vítimas, e de como
participar do MS da ES, a partir das oportunidades que o Grupo teve nos momentos
de formação, que fez a diferença na vida delas:
Fui vítima de violência doméstica por um tempo na minha vida e participar das discussões feitas durante os cursos e seminários feitos pela ES me ajudou a ver que eu podia sair daquela condição sufocante de medo e dor. Lá também pude conhecer outras mulheres que, como eu, sofriam algum tipo de violência, e daí juntas
133
trocamos muitas experiências; como estas mulheres que contaram aqui sua história, nós também contamos e isso me ajudou a ter coragem para mudar o rumo da minha vida profissional e pessoal. Hoje o que eu mais quero é poder, com minha experiência de vida, ajudar outras mulheres que vivem na mesma situação que eu vivi um dia, a liberdade de ir e vir nos dá ânimo para enfrentar outros desafios que a vida traz, então pelo menos a vida de dentro de casa precisa ser de amparo e acolhida, não de murro e pontapés (Integrante JGC).
O que esta mulher traz é um testemunho muito forte da realidade de muitas
mulheres que precisam enfrentar “murros e pontapés” dentro de casa e ainda dar
conta de ajudar nas despesas de casa, muitas vezes jornadas triplas para dar conta
do cuidados dos filhos e da família. Nossa afirmação perpassa pela possibilidade
que é o processo de formação política realizado pela ES, como um instrumento que
problematize a realidade, realidades como estas aqui compartilhadas.
Tanto as quebradeiras de coco do Maranhão, as mulheres que participam do
MMC ou em Borborema, ou em Mato Grosso e no Grupo MUDAR, são testemunhos
de que é importante estar mobilizada em torno de um sonho, e que para lutar por
este sonho precisa estar preparada, organizada para este enfrentamento.
As experiências sistematizadas e socializadas aqui não foram dadas, mas
construídas e, portanto, são possibilidades, sem nada pronto e acabado, mas em
continuidade/transição. É a força que conquistamos dentro do MS, da militância, de
enfrentamento e resistência é o que pode fazer a diferença em muitas realidades.
Problematizar a autonomia relativa conquistada nesta caminhada deve ser
considerado enquanto material pedagógico de reflexão sobre a realidade: o que nos
serve pensando e repensando o vivido, pois nada é doado, tudo é luta e conquista.
O fazer-se diário das mulheres no Grupo MUDAR nos ensina justamente isso,
que a doação está na imensa esperança que elas depositam nesta proposta de
construção de uma nova realidade possível. Onde se problematiza o que está posto
e se verifica muitas e muitos somando esforços, tempo e desejo para quebrar o fio
elástico e resistente do Capitalismo que nos engessou das cabeças aos pés. Diante
disso há alternativas:
Participar do grupo MUDAR é como um combustível, algo que me impulsionou a me movimentar perante as minhas possibilidade, me mostrou que as coisas acontecem se realmente queremos, corremos atrás e temos o apoio daqueles que têm condições de realizá-las. Me possibilitou conhecer pessoalmente e articular sem nenhuma dificuldade com as pessoas importantes no âmbito político, social e
134
de diferente colocação social da minha. Mas que dividem conosco os mesmos ideais de vida - mudar a minha realidade e a dos que vivem à minha volta (Integrante HGN).
Este “combustível” é o que pode ser o diferencial na proposta “libertadora”
dos diversos MS que articulam o povo; a ES, neste contexto, é um destes que
alimentam e retroalimentam esta força propulsora adormecida dentro de cada
pessoa através de sua proposta e princípios. Como Freire diz, é a nossa condição
de seres históricos e intra-históricos, de seres “inacabados” e em um constante “por
vir”; em uma constante busca por “ser mais”. Esta é uma possibilidade que possui
em suas entrelinhas muitos desafios.
Todas as questões foram debatidas como forma de sintonizar ainda mais as
aproximações entre os diversos coletivos que compuseram este espaço de
construção e legitimação de bandeiras e lutas, de trabalho, de sangue, suor e
lágrima. Neste momento, muitos dos anseios foram trazidos enquanto estratégia de
pautar significativamente o Poder Público e a sociedade mais ampla, com vistas ao
reconhecimento dos direitos civis mais elementares.
As diversas conexões e redes, que em meio às discussões foram tecidas,
mostraram que é possível encontrar respostas exequíveis e que de fato podem fazer
acontecer ações concretas (ex.: Lei de Iniciativa Popular compactuada pelos
diversos MS).
O que legitima efetivamente nossa construção, enquanto proposta de cunho
coletivo e participativo é a oportunidade de ter ouvido e vivido tantos momentos
significativos juntamente com o Grupo MUDAR e com outros Grupos, Assessorias,
Gestores Públicos e militantes da cidade, dos campos e das florestas, mediados
pelo diálogo.
É sabido que tais diálogos e convergências estão para a maioria dos Grupos
como uma idéia, uma boa idéia, mas que na prática ainda não há muitas ações
significativas. Os Programas e PPs precisam ser repensados para que consigam
agir como apoiadores de experiências como as que conhecemos nestas
oportunidades e tantas outras que estão pelo Brasil a fora.
Esta é a contradição e o conflito comum às diversas organizações que
acompanham e fomentam a organização das trabalhadoras e trabalhadores, das
mulheres e dos homens. É um fazer movido por uma paixão incondicional pela vida,
pelo ser humano. Assumindo o papel do Estado em muitos momentos e correndo-se
135
riscos de não chegar a lugar nenhum, devido às diversas manifestações de
corrupção existentes no mundo do “mercado”.
Para além destes aspectos maiores, que dificultam os processos de
humanização das relações em sociedade, há os que nesta pesquisa ficaram
evidenciados. Aspectos que podemos classificar como mais circunscritos, mais
particulares e locais.
Dentro da esfera do mais próximo ao cotidiano dos EES, percebemos o
desafio que o Grupo MUDAR enfrenta no processo de se afirmar no espaço político
do MS da ES, enquanto um Grupo coletivo e solidário, um EES da ES tanto quanto
qualquer outro, quer seja informal ou formal, quer tenha um fluxo financeiro estável e
estabelecido, ou não.
É possível perceber nas entrelinhas das relações entre os segmentos que
compõem a ESS, nesta experiência, uma cisão delimitada muitas vezes por
interesses políticos e culturais. A linguagem privilegiada entre estes atores durante
os diversos momentos formativos, portanto, durante os processos de formação
política e pedagógica, é um dos elementos a que podemos aqui dar destaque.
As Instituições que representam o segmento de Assessoria por vezes
sinalizam certa confusão em relação aos conceitos e práticas da ES. Esta, por sua
vez, com o passar do tempo se amplia e estes conceitos precisam ser revistos com
muita frequência.
É tudo muito rápido, e sabemos que dentro de um processo de produção de
conhecimentos é necessário um tempo diferenciado, a depender dos
condicionantes, das realidades e dos próprios campos de estudo. Tudo isso
colabora com o cenário de atritos entre a linguagem (discurso) e práticas da
academia (Instituições de Ensino) e a utilizada pelas/os trabalhadoras/es.
Esta nos parece ser uma questão que necessita de um “olhar” amiúde,
cuidadoso e cauteloso. A identidade de uma pessoa, de um grupo ou qualquer
instituição é algo muito singular. Pelo percebido, o que acontece, por vezes, é que
esta dimensão, que deveria ser inviolável, é questionada e, pior, desvalorizada
através da linguagem e postura de algumas pessoas que estão à frente de
Instituições de ensino, ou enquanto Gestoras/es Públicas/os.
De maneira simbólica ou não, isso está evidenciado em diversas falas das
integrantes do Grupo MUDAR. Acredito que esta discussão mereça um debruçar
mais sistemático, com um tempo mais apropriado para a compreensão das
136
dimensões políticas existentes entre estes atores, buscando aí uma compreensão
de tal fenômeno.
Pois bem, em se tratando de finalização encontramos um dilema, é o dilema
da impossibilidade da percepção fechada, pronta e acabada. Enquanto se percebe
todo este processo em um eterno “vir a ser”, inacabado, inconcluso e ainda aberto,
vivo e repleto de possibilidades, fica ainda mais o sentimento de impossibilidade de
se inserir o ponto final.
Diante de tão profundas reflexões, de perspectivas e horizontes tão
entrelaçados, ao ponto de tomarem proporções inimagináveis na vida pessoal e
profissional de muitas pessoas que participam destes MS, fica a surpreendente
sensação de que nada pode ser mais importante do que quem somos (identidade
pessoal e coletiva) e o que articulamos em comunhão, para fazer a diferença em um
mundo tão adverso.
Apesar da grande satisfação de se ter feito parte significativa desta história de
luta e resistência, e considerando-se todas as questões de conflitos e contradições,
limites e possibilidades, sentimo-nos por vezes impotentes diante desta realidade.
Estas relações estabelecidas precisam ser continuadamente alimentadas e
realimentadas dos desejos mais elementares da amorosidade à humanidade, que é
preciso ter dentro de nós.
Não temos a ingenuidade de acreditar que ainda assim nossas lutas e
bandeiras ultrapassem a linha transcendental necessária à humanização de nós
mesmos e dos “outros”. Porém, temos sim, a fé que de outra forma dificilmente se
pode fazer a diferença necessária a este processo.
O Grupo MUDAR nos ensina, ao mesmo tempo em que aprende, que a coisa
mais importante que levam de tudo isso é o reconhecimento do potencial que
possuem suas individualidades, e que a situação concreta de suas vidas diante
desta constatação se tornou posse de suas próprias decisões:
Significou muito cada momento que tive a oportunidade de conhecer, tanto na teoria quanto na pratica, sobre o que é economia solidária. Fez diferença na minha forma de encarar o mundo, hoje sei que posso mudar minha realidade se tomar conhecimento do que está à minha volta, e se nesse percurso estiver acompanhada de muitos, que com o mesmo intuito mudaremos a comunidade, gerando possibilidades a todos (Integrante HGN).
137
Esta percepção, registrada nas falas, nos semblantes e na superação de
muitas situações conflitantes, deixam em evidência também a necessidade de
estarem constantemente em alerta, através de um processo continuado de
participação ativa em prol de sua organização, mesmo que com muitos desafios
devido às duplas e triplas jornadas de trabalho.
Sabem que sabem, mas também sabem que não sabem tudo e que não
precisam saber tudo, mas que é importante perceber as possibilidades diante dos
desafios que estes conhecimentos possam representar na vida cotidiana:
Pelo pouco que pude conhecer a ES é muito importante, embora seja um pouco demorada, mas nunca deixou de me despertar interesse, vontade de participar, mais e mais. Participar do grupo foi de muita ajuda para a auto-estima, a vontade de crescer, de dividir, aprender, mostrar o que sabia, troca de conhecimento, ou seja, mudar minha vida social. Aprendi a interagir mais com as outras pessoas e isso, consequentemente, melhorou o meu profissional. Muito obrigada pela oportunidade (Integrante SM).
Os conhecimentos construídos fortalecem a pessoa como agente ativa dentro
deste processo todo. O que a SM diz é, em sua simplicidade, isso. A auto-estima é
fundamental no processo de valorização pessoal, tão necessário ao reconhecimento
de si como pessoa importante e fundamental para todo e qualquer projeto pessoal
ou coletivo de mudança.
Neste percurso, nossa dupla, tripla e até quádrupla atuação frente aos
processos sociais do MS da ES e em pesquisas na UFMT, durante este percurso, foi
fundamental. O distanciamento se deu na medida em que precisamos estar ativas
dentro de diversos outros MS ao mesmo tempo.
As identidades de cada um exigiam determinada concentração e poder de
abstração para o necessário movimento de voltar-se ao fenômeno em questão, ou
seja, era preciso direcionar e redirecionar esforços para o foco, para a “perspectiva”
de base destes espaços específicos e, no caso do Grupo MUDAR, para o que havia
de particular a elas em diálogo com o MS da ES na perspectiva do MT.
Este foi um exercício complexo, porém extremamente pedagógico. Sendo
mulher, filha, neta, mãe, irmã, tia, esposa, avó de coração, dona-de-casa, artesã,
EES, estudante, militante e profissional/pedagoga por vezes precisei imbuir esforços
em uma, duas ou mais destas dimensões para dar conta das inúmeras
138
responsabilidades, com determinada destreza de nenhuma influenciar
negativamente a outra.
Percebemos que este movimento alucinado também era realizado por muitas
mulheres que fazem o MUDAR, esta é uma característica que se somou às rotinas
de quase todas. Após início da participação em um coletivo como o Grupo e a ES o
grande ganho, segundo elas, é a retomada aos estudos. A escolarização foi
estimulada durante os processos formativos e a maioria das mulheres voltou a
estudar.
A matemática é a seguinte: das 08 (oito) mulheres que compõem o Grupo, a
metade já cursou um curso superior, duas voltaram a estudar para concluir o Ensino
Médio e o Fundamental, três estão cursando uma pós-graduação e três fazendo
cursos de aperfeiçoamento em alguma área produtiva com vistas a melhorar a
produção do Grupo.
Neste caminhar é fato a impossibilidade do total desprendimento do vivido,
das impressões e dos juízos e prejuízos que o mundo por si só já nos coloca;
segundo Merleau-Ponty, crer nesta possibilidade seria uma negação ao movimento
inconcluso, intrínseco ao transcendental movimento existente entre os homens no
mundo, com o mundo e com os outros.
Esta permeabilidade subjetiva e intersubjetiva que se dá entre o mundo
objetivo e subjetivo, o material e o imaterial, possui um poder estesiológico capaz de
colocar cada ser em conexão entre si, em um ato total de correspondência, o que
inviabiliza o desprendimento total de juízos e valores, conceitos e preconceitos.
É exatamente nesta fronteira que estamos ao final deste empreendimento
coletivo. Em uma posição de abertura, de reconhecimento e aceitação de que não
podemos e nem poderemos dar conta de tamanhos desafios. A única certeza é do
constante “por vir”, em um mundo onde os diversos saberes podem e devem
dialogar e convergir.
E que somente este “inédito-viável” é capaz de mexer com as estruturas da
vida como ela está, colocando a vida como ela parece ser, em xeque-mate,
buscando nestas entranhas esperançosas nossa busca infindável pela felicidade
planetária.
Enfim, esta é a utopia das/os militantes, que ora mais, ora menos, estão em
um constante lutar; como afirma uma das mulheres do Grupo MUDAR: “através do
grupo existem pessoas, essas as quais depositam nas letras que denominam o
139
nome do grupo MUDAR: ESPERANÇA, SONHOS e POSSIBILIDADES REAIS”
(Integrante HGN).
140
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144
ANEXOS
145
Formação e Comercialização:
A Autogestão em Empreendimentos Econômicos Solidários em Discussão
durante I Feira de Economia Solidária em Colíder – MT
Esta atividade traz para dentro da academia todo um trabalho articulado
dentro dos MS do campo, da floresta e da cidade frente ao processo de organização
de grupos de diversos setores produtivos. O trabalho empreendido nesta
oportunidade se fez em articulação entre nossa pesquisa de Mestrado em Educação
com alguns educadores populares, colaboradores neste processo de formação.
A tentativa nesta perspectiva foi buscar dar um tom maior de integração tanto
no trabalho de articular saberes popular e científicos como o de colocar em prática,
na organização das diversas atividades que foram pensadas para este momento, a
participação coletiva. Dentro desta lógica, nosso empreendimento foi conduzido de
forma dialogada entre os participantes da oficina em questão, colaboradores e nossa
pesquisa sobre os processos de formação que ocorrem dentro do MS da ES.
Aqui compartilharemos algumas vivências de produção de conhecimentos
que aconteceram durante a I Feira Cultural da Agricultura Familiar e Economia
Solidária da Região Extremo Norte de Mato Grosso Território da Cidadania Portal da
Amazônia-MT, nos dias 17 e 18/12/2010, na cidade de Colíder/MT.
Os temas centrais nesta formação trazem as dimensões da Comercialização
e Formação como estratégia para a construção de vivências da autogestão. Esta é
uma das muitas contribuições possíveis que podem ser compartilhadas sobre este
processo, fazendo parte significativa de toda uma história de luta e resistência de
pessoas que tentam, de forma coletiva, encontrar estratégias de enfrentamento e
superação ao que está posto na sociedade.
Autogestão um dos Princípios da Economia Solidária
Autogestão, um conceito que faz parte dos princípios suleadores da
Economia Solidária é parte integrante da linguagem da Agricultura Familiar (AF) e
dos Empreendimentos Econômicos Solidários (EES) do campo, da floresta e da
cidade na perspectiva de incentivar, reforçar e fomentar todo um trabalho em prol de
objetivos comuns e solidários.
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Este trabalho faz parte do resultado de um workshop sobre Autogestão em
EES realizado por ocasião da I Feira Cultural da Agricultura Familiar e Economia
Solidária da Região Extremo Norte de Mato Grosso Território da Cidadania Portal da
Amazônia-MT, nos dias 17 e 18/12/2010.
O referido evento sediado em Colíder-MT, reuniu diversas Associações e
Cooperativas de vários municípios com o objetivo de socializar a produção, trocar
experiências, mas, principalmente, para criar uma teia de relações entre os
produtores de modo que um contribua com o desenvolvimento do outro por meio da
ajuda mútua.
O sucesso do evento só foi possível mediante as parcerias que se
estabeleceram entre empreendedores, gestores públicos e MS, articulação que
nesta região já se tornou uma realidade. Se fizeram presentes muitas Associações,
Cooperativas e Grupos informais de toda a região Norte e algumas da região da
Baixada Cuiabana.
As relações tecidas durante as oficinas evidenciaram que já existe uma
estreita combinação entre os membros dos EES e Assessorias (sindicatos e
pastorais) em virtude dos encontros anteriores e das oportunidades de vivências que
foram viabilizadas por pessoas, MS e órgãos interessados em promover a produção,
distribuição e comercialização de produtos de boa qualidade por preços justos, cujo
retorno é creditado diretamente para o produtor.
E para, além disso, há toda uma valorização da identidade cultural destes
agricultores/as familiares, campesinos, quilombolas ou indígenas. As pessoas
envolvidas neste evento acreditam que é possível uma nova economia, que a
produção organizada pelos princípios da Economia Solidária pode propiciar mais
qualidade tanto nos produtos quanto nas relações e na vida das pessoas para a
preservação ambiental e para a melhoria da qualidade de vida.
A postura assumida para compreensão dos sentidos e significados tem a
fenomenologia como lente para as leituras desta realidade, pois a percepção dos
fenômenos se dão tão somente sob uma visão parcial do todo:
Construímos a percepção com o percebido. E, como o próprio percebido só é evidentemente acessível através da percepção, não compreendemos finalmente nem um nem outro. Estamos presos no mundo e não chegamos a nos destacar dele para passar à consciência do mundo (MERLEAU-PONTY, 1994 p. 26).
147
Para dar início aos trabalhos propostos, cada participante apresentou-se
orientados pela dinâmica dos “SONHOS”, falando seu nome, sua comunidade,
município, EES de origem, sua posição na organização do Grupo e, finalmente,
falava do seu sonho. A maioria falou que seu sonho era contribuir para que a sua
comunidade se desenvolvesse e que conquistasse tudo que fosse possível para
melhorar a sua vida no local, bem como dos seus familiares e demais moradores.
Cada um expôs o seu ponto de vista de acordo com o seu modo de se
expressar, porém, a essência do seu posicionamento tinha a conotação de que
todos pensam na permanência e bem estar dos membros de suas respectivas
comunidades. Algo de fundamental importância é que a maioria das pessoas mais
idosas não nasceu na terra onde estão.
Alguns vieram do Sul, outros do Nordeste ou de alguns municípios do próprio
Estado de Mato Grosso, entretanto, todos pensam em ter melhores condições de
estudo e trabalho para os mais jovens para que fiquem na comunidade e não
precisem sair de lá para estudar e trabalhar fora, e os jovens reforçaram esta
necessidade.
As pessoas presentes já haviam participado de algum evento relacionado ao
MS da Economia Solidária e todos são produtores em busca de alternativas para
uma vida diferente da que tiveram antes ou até agora. Os presidentes das
Associações que ali estavam representando seu grupo já estiveram em algum
momento participando de reuniões para tratar dos interesses da comunidade, estão
envolvidos há muito tempo, já falam das conquistas e das lutas que tiveram para
alcançar objetivos comuns.
De alguma forma este coletivo foi despertado pela necessidade de
envolvimento em ações mais efetivas para o desencadeamento de compromisso dos
agricultores em seu desempenho político na comunidade: “quanto mais as massas
populares desvelam a realidade objetiva e desafiadora sobre a qual elas devem
incidir sua ação transformadora, tanto mais se “inserem” nela criticamente” (FREIRE,
1987, p. 22).
No diálogo que foi sendo construído durante a dinâmica de apresentação, ao
mesmo tempo em que foi possível ouvi-los falando de seus anseios e necessidades,
além das experiências de participação em espaços diversos, foram sendo feitas
observações e relações entre as suas falas e a temática que estava sendo exposta
no centro da proposta de trabalho, a autogestão.
148
Assim sendo, em seguida foi lida e interpretada a proposta de trabalho para
este momento, enfatizando-se o tema geral: “Autogestão em Economia Solidária”,
cujos objetivos são: Compreender o conceito de autogestão bem como a sua
importância para o desenvolvimento da cultura de reciprocidade, cooperação,
contradição, e desafios para superação dos obstáculos em coletividade; Situar-se no
contexto da sua comunidade delineando os próximos passos a seguir frente aos
seus próprios desafios.
A organização deste evento por si só já demonstra determinada organização
para os processos autogestionários, os quais pressupõem gestão coletiva e
participativa em várias etapas dos processos de construção. Nesta perspectiva, a
Prefeitura Municipal de Colíder-MT em parceria com diversas Instituições
Governamentais e não Governamentais como a UNEMAT, CUFA, Instituto Marista
de Solidariedade - IMS, Rede Matogrossense de Educação e Sócio Economia
Solidária - REMSOL, UNISOL Brasil, Instituto Ouro Verde – IOV e com os produtores
rurais organizados; parcerias em ação que colocou de forma bem positiva a
integração nesta ação entre o Poder Público local, Instituições e os MS.
No segundo momento da atividade foi feito um histórico sobre o
desenvolvimento do capitalismo, no concernente à produção em série e as relações
trabalhistas que se estabelecem neste sistema político e econômico, a expropriação
da possibilidade do homem de usufruir os resultados do seu próprio trabalho, a
perda da identidade e subjetividade que caracteriza a sua produção e a
incorporação de uma atitude de individualismo e objetividade que pode prejudicar a
vivência em comunidade e a posição de parceiro e cooperador na busca de
resultados comuns e solidários.
Esta retomada fez com que todos percebessem que realmente, de uma forma
ou de outra estão envolvidos com esta condição de estar na sociedade, que o
trabalho que desenvolvem apesar de todas as dificuldades, além de suprir às suas
necessidades lhes dão prazer de viver.
É possível perceber-se que aqueles que já fazem parte dos MS falam uma
linguagem que se identifica com a proposta da Economia Solidária, isto de certa
forma influencia os demais, de modo que pode ocorrer uma empatia no trato com a
questão. A participação ativa neste sentido contribui com a consciência crítica:
O ponto de partida deste movimento está nos homens mesmos. Mas, como não há homens sem mundo, sem realidade, o
149
movimento parte das relações homem-mundo. Dai que este ponto de partida esteja sempre nos homens no seu aqui e no seu agora que constituem a situação em que se encontram ora imersos, ora emersos, ora insertados. Somente a partir desta situação, que lhes deter-mina a própria percepção que dela estão tendo, é que podem mover-se (FREIRE, 1987, p. 42).
Este “mover-se” é o que muitos grupos que participam dos diversos MS estão,
na medida do possível, tentando fazer. É importante sempre se ter muito cuidado ao
se “olhar” todo este processo de construção e reconstrução que se dá em alguns
processos de formação dentro da ES ou em outros espaços de organização popular.
É um movimento que não é bem acolhido nesta sociedade, fazer mercado de
forma diferenciada da lógica vigente se é um processo que ainda estamos
desbravando, assim sendo é preciso a sensibilidade perante algumas resistências,
não as acolhendo como limitadoras mas enquanto desafios.
Nesta perspectiva, foi abordada a importância da necessidade de
transformação na cultura das relações sociais e de trabalho das pessoas que se
propõe a transformar o seu modo de ver e de viver numa comunidade cujas ações
sejam pautadas na participação, cooperação e solidariedade.
Tendo em vista que esta mudança precisa ser tanto individual quanto coletiva
ela precisa ser percebida enquanto processo, podendo ser a princípio de tolerância
pelas limitações do outro e gradativamente, através de muita problematização, o
reconhecimento dessa realidade, tendo em vista que todos têm suas fragilidades e
seus potencias a serem considerado.
Os dois temas a serem evidenciados nesta formação como uma das
condições necessárias para a mudança de concepção sobre si mesmo, o outro e o
trabalho, foram contradição e conflito, os quais foram apresentados de maneira geral
e encaminhados para discussão em dois grupos. Cada grupo deveria conceituar
contradição ou conflito e estabelecer uma relação com as contradições e conflitos
existentes nas suas comunidades e instituições.
Durante essas reflexões percebeu-se a necessidade de estabelecimento de
atitudes a serem tomadas frente a estas situações para que juntos possam superar
os obstáculos que às vezes se interpõem a realização das ações, e principalmente,
aos relacionamentos amistosos e solidários que devem ser praticados entre os
membros das associações.
150
Os membros de cada grupo chegaram ao consenso de que ambos os termos
tem características comuns e específicas e que, a contradição pode levar ao conflito
se não houver um diálogo, mas que ela vai estar sempre presente nas relações
tendo em vista que, mesmo que um grupo tenha objetivos em comum cada membro
pensa de uma forma diferente. Assim sendo, há necessidade de se chegar ao
comum acordo por meio do conhecimento e análise das condições que possam
levar à superação da dificuldade.
As discussões levaram os presentes a observar que neste âmbito eles
reconheceram que jamais estarão isentos de vivenciar situações contraditórias e
conflituosas tendo em vista o diferente que é justamente o que nos impulsiona a
crescer frente às diversidades da sociedade.
Toda essa organização foi feita sem perder de vista as limitações e as
possibilidades que existem em função das conquistas que já foram feitas, mas,
principalmente, os conflitos que existem também, que por sua vez foram objeto de
discussões e retrocessos nas caminhadas no concernente a produção e
comercialização, bem como na formação continuada dos artesãos e produtores
rurais.
A comercialização dos produtos tem sido prejudicada por uma série de
questões, porém, nesse encontro, dada a seriedade e amplitude do mesmo, foi
possível estabelecer alguns parâmetros a serem considerados pelos sócios
produtores, que estarão avaliando continuamente suas ações e os seus resultados.
Finalmente, o evento foi avaliado nos seus aspectos mais amplos no sentido
de dar bases para um re-planejamento das ações, um repensar individual e coletivo,
percebendo os desafios e as possibilidades. Foram vários os aspectos indicados
como prioritários para uma vida e produção solidária na comunidade. Por exemplo, o
fato de ter pouca participação dos associados às reuniões, houve ainda o
reconhecimento do seu potencial produtivo.
Foram evidenciados os aspectos concernentes à possibilidade de o grupo
aprender mais para compartilhar com a sua comunidade, conviver mais com o
conhecimento de outras pessoas e poder contar com a contribuição que cada um
pode dar ao movimento e renovar as forças para continuar na luta pela melhoria da
produção e das relações entre os produtores.
Vale ressaltar que as histórias de vida de cada um dos EES da feira, no
momento de comercialização e troca de produtos e saberes que fez parte do evento
151
– FEIRA DE TROCAS, trás as marcas de suas lutas em busca determinada para
transformação de alguma situação insustentável. A libertação dos labirintos criados
pela sociedade para impedir o avanço pessoal e coletivo de cada trabalhador/a
constitui-se em um novo caminho ou talvez como disse Tiago de Melo, não um
caminho novo, mas, um jeito novo de caminhar.
Marketing em Empreendimentos Econômicos Solidários
Um dos grandes temas para debates atualmente nos micro e macros
empreendimentos tem sido a questão da divulgação dos produtos e serviços que
estão sendo prestados em qualquer área do trabalho humano, ao ponto de serem
empreendidos amplos estudos e pesquisas sobre esta temática. Neste trabalho será
tratado justamente sobre este assunto ligado aos EES da ES.
Esta atividade foi desenvolvida durante a I Feira Cultural da Agricultura
Familiar e Economia Solidária da Região Extremo Norte de Mato Grosso Território
da Cidadania Portal da Amazônia, no município de Colíder/MT, no mesmo período
foram desenvolvidas várias oficinas e exposição de produtos da Agricultura Familiar.
Um dos temas abordados e que compartilharemos neste momento trata-se
justamente do Marketing em EES.
É importante destacar que esta atividade, como a anterior, foi pensada de
forma coletiva entre os atores da formação. A articulação desta vez foi com algumas
educadoras do campo que participam da ES de forma articulada com outros MS e a
nossa Pesquisa. O diálogo estreito entre a ES e a AF foram decisivas para esta
aproximação. Isso reflete a ampla dimensão destes MS que extrapolam possíveis
horizontes de atuação.
Marketing em Economia Solidária e Agricultura Familiar
A oficina teve início com o acolhimento e uma dinâmica para despertar os
participantes para a temática que seria desenvolvida a seguir. Uma apresentação
entre os membros do grupo que deveria apresentar-se em duplas ouvindo apenas
as dicas que seriam comandadas pela facilitadora. Nas costas cada um teria uma
152
tarja com o nome de um determinado personagem, o qual seria identificado pelas
características particulares da pessoa.
Assim se fez com bastante entusiasmo das duplas quando cada um tentava
cumprir a sua tarefa da melhor forma possível. Em seguida todos ficaram à vontade
para retomar aos seus lugares na sala.
Inicialmente foi contada uma história que tem sido veiculada pela Internet a
qual é uma paráfrase de escritos de Leonardo Boff, sobre a águia e a galinha,
contudo a intenção era fazer o contrário, desmistificando esta lenda e resgatando a
“dignidade da galinha”.
Segundo o autor uma simples comparação entre a galinha e a pata faz com
que seja possível que alguns empreendimentos não tenham um bom resultado ou
não perdure por muito tempo no “mercado”.
A pata põe ovos como a galinha, no entanto comemos mais ovos de galinha
do que de pata, apesar de os ovos desta serem maiores e bem mais nutritivos. Essa
analogia mostra que, o fato da galinha anunciar o seu produto faria com que ele
tivesse mais procura e maior consumo. Enfim, esta pequena “estória” serviu para
introduzir de maneira lúdica e simples a dimensão da propaganda para os
Empreendimentos.
A instituição que anuncia sua produção, a forma como o faz, a insistência,
persistência e regularidade no “mercado” é um dos indicadores primordiais para a
sobrevivência de qualquer empreendimento que pretenda abranger um público e
fazer a diferença em qualquer espaço.
Ao serem questionados sobre a forma de abordagem todos os presentes
fizeram uma intervenção, cada um ao seu modo quis dizer que realmente fazia
sentido e ninguém ali gostaria de fazer parte de um empreendimento com as
características da “pata”.
Pelo visto realmente quem atendeu ao chamamento para este e outros
eventos dessa natureza é porque está disposto a divulgar os seus produtos, e
apesar de todas as dificuldades não perdem a oportunidade de mostrar o que são
capazes de fazer.
Os AF e os Grupos de EES da cidade ali presentes são de várias origens, de
Municípios e Estados diferentes, porém, todos têm objetivos comuns, buscar uma
nova forma de viver em sociedade, outra economia, cujos parceiros tomem por base
153
os princípios da ES de autogestão, democracia, cooperação e emancipação dentre
outros e assim se construir uma nova lógica de “mercado”.
O Mercado Social e o Trabalho Solidário
O mercado social é essencialmente diferente dos outros dois. “Nesse caso, a
relação de troca é obtida por meio de custos e benefícios sociais” (FONTES, 2008,
p. 24). Isso significa dizer que representa a adoção de comportamentos, atitudes e
valores que beneficiam tanto o indivíduo, quanto a sociedade.
O lucro e o produto são socializados, mas não são fáceis de ser obtidos, já
que representam ganhos e custos de valor intangível. “Os benefícios relacionados
ao prazer e às necessidades básicas, no caso dos mercados comercial e
assistencialista, são mais tangíveis em curto prazo do que os relacionados à
melhoria de qualidade de vida” (FONTES, 2008, p. 31).
Assim se fez a oficina com base no marketing que considera a aprendizagem
das novas formas de se divulgar preservando o meio ambiente e cuidando da
qualidade do produto, sem perder de vista que tudo deve estar centrado voltado
para o ser humano e a sua qualidade de vida.
Nesta perspectiva, pôde-se refletir sobre a dinâmica desta dimensão onde o
Mercado Social certamente representa o principal contexto de atuação da ES, visto
que o seu principal produto é social: o trabalho solidário. Isto é, o trabalho solidário
representa um comportamento, de cuja prática dependem as relações humanas
como um todo, é inerentes às relações de trabalho e ao processo produtivo, intra e
inter empreendimentos, organizações sociais e outros agentes econômicos, políticos
e sociais, entre estes as três esferas de Governo.
Neste ínterim, a solidariedade representa a cidadania como processo ativo e
emancipatório, abrangendo “as dimensões político- participativa e econômica-
produtiva” da sociedade. Foi possível verificar na prática as reflexões e
conhecimentos construídos pelo grupo em sala, durante a Feira de Trocas
organizada pela equipe do Evento. Durante este momento as trocas de produtos e
experiências enriqueceram todo trabalho desenvolvido na teoria.
154
Mesmo o foco do trabalho sendo algo específico como o Marketing nos EES
do campo e da cidade, as trocas de experiências durante a Feira de Trocas no
espaço onde eles iriam comercializar os produtos, foram significativas para além
desta dimensão. Este é o exemplo de uma iniciativa criativa, o “inédito viável” em
ação.
Estratégias na Composição de Custos em Empreendimentos Econômicos
Solidários: Uma Experiência de Pedagogia da Alternância -
Escola Do Campo em Diálogo com a AAFERG
Esta experiência traz para nossas discussões uma possibilidade real de
integração entre os saberes da terra e os saberes da academia. De um lado a
sabedoria popular que é comum em meio aos modos de produção de vida e cultura
da AF, de outro a aproximação dos Centros Acadêmicos que detêm o conhecimento
histórico formal.
Nesta perspectiva, foi pensado em desenvolver algumas ações estratégicas
de aproximação entre a Escola Municipal do Campo São José e a Associação dos
Agricultores Familiares e Extrativistas da Ribeirão Grande (AAFERG). A primeira
está localizada na Comunidade de São Manuel, há 40 km da sede do município de
Nova Mutum-MT, distante cerca de 80 km do Acampamento dos Projetos de
Assentamento da Gleba Ribeirão Grande, região onde funciona a segunda, sendo
que sua sede está localizada na Comunidade Rural de Maria de Oliveira.
Tendo em vista ampliar e fortalecer as possibilidades de construção coletivas
e participativas, esta atividade dentro dos processos de formação em ES que se dão
em vários momentos, seja durante as Feiras de Economia Solidária e Agricultura
Familiar ou em eventos e espaços diversos, também foi pensada de forma articulada
entre nossa pesquisa de Mestrado e a Comunidade envolvida. Estamos falando de
algumas colaboradoras que são pessoas ligadas direta ou indiretamente com grupos
que participam de alguns MS do campo ou da cidade, e que estão inseridas nestes
contextos.
Estas pessoas de uma forma geral são trabalhadoras e trabalhadores do
campo ou da cidade que se interessam de forma diferenciada pelo processo de
produção de conhecimentos na medida em que percebem que esta dimensão pode
colaborar para com o fortalecimento de seu grupo social. Assim sendo, esta é uma
155
experiência que traz para o diálogo sobre os processos de organização da produção
e comercialização da AF a Escola do Campo e a Comunidade local organizada
através da Associação dos Agricultores Familiares e Extrativistas da Gleba Ribeirão
Grande (AAFERG).
A aproximação entre estes dois espaços políticos se dá a partir do interesse
de alguns membros destes coletivos que, de uma forma ou de outra, acreditam
nesta enquanto uma possibilidade de fortalecimento destes segmentos em seus
espaços de ação haja vistas que cada uma em sua função social específica co-
existem em um mesmo espaço de forma não articulada.
Entendemos a relevante importância das Escolas do Campo, símbolo de
resistência do campo e um considerável instrumento político pedagógico desta
resistência e enfrentamento das mazelas que o atual Sistema maximizou através do
empobrecimento de vidas e continuadamente o promovem em todos os espaços da
sociedade. Nos campos e nas florestas esta situação se assevera ainda mais em
nome de um desenvolvimento que se apropria de cada pedacinho de esperança por
uma vida melhor das pessoas que fazem estes espaços.
Entendemos também que o fortalecimento desta Instituição só poderá se dar
a partir do momento em que a vida do campo definitivamente adentrar suas paredes.
Uma possibilidade que esta experiência entre outras apontam, é o de estreitar o
diálogo através de um trabalho integrado e articulado entre o trabalho desenvolvido
nestas Escolas e as ações que as Associações de Produtores Rurais locais já
realizam através da sua atuação junto aos MS e Instituições diversas que
normalmente atuam nestas realidades com vistas a fortalecer e fomentar o que o
campo tem de melhor.
Assim vimos grande oportunidade de se viabilizar concretamente este sonho
“viável” a partir da disposição que algumas educadoras do campo, filhas da AF desta
localidade, que estão cursando o Curso de Graduação na LEdoC - Licenciatura em
Educação do Campo - ofertado em regime da Pedagogia da Alternância pela
Universidade de Brasília – UnB, no Campus de Planaltina. Antes deste momento
privilegiado já se vinha sendo buscado viabilizar esta interação/diálogo, porém sem
sucesso.
Faltava algo a mais para tanto, e este diferencial era o desejo deles próprios
em se apropriarem desta construção dialógica, esta era a oportunidade que faltava.
Não é surpresa o fato da necessária articulação entre a Educação e o Trabalho, foi a
156
partir desta possibilidade que tanto a Escola quanto a AAFERG começaram a “olhar”
suas relações, ações e funções de forma diferenciada:
A partir de então começaram a serem pensadas algumas estratégias de como
colocar em prática determinadas discussões e teorias que embasam a importância
de um trabalho articulado entre Escola do Campo e a referida Associação.
A escolha por esta Unidade Escolar do campo se dá pelo fato de que a
maioria dos alunos atendidos nesta escola serem filhas e filhos de agricultores
familiares que vivem no Projeto de Assentamento da Comunidade Maria de Oliveira
além do fato de que as colaboradoras nesta atividade serem funcionárias da mesma.
A AAFERG é uma das únicas Associações da Agricultura Familiar legalmente
constituída e em atividade na região mencionada. Estas Instituições sociais co-
existem neste espaço, porém até agora de forma desarticulada entre si.
Assim sendo, este trabalho teve o objetivo de potencializar toda uma
experiência trabalhada de forma articulada entre o Tempo Comunidade (TC -
trabalhos e pesquisas realizadas na comunidade de origem dos educandos e nas
escolas de inserção/estágio) e Tempo Escola (TE - campus universitário) de duas
educadoras em formação inicial em conjunto com nossa pesquisa.
A pretensão foi promover ações significativas que contribuíssem para com a
aproximação e diálogo da Escola do Campo e da AAFERG, com o intuito da
melhoria da qualidade de ensino articulada à produção de vida dos atores
envolvidos direta e indiretamente nesta realidade.
Nesta perspectiva, foram pensadas atividades que de forma inicial
problematizam questões que atualmente estão na pauta de discussões mais amplas
na sociedade. Questões estas que também estão presentes em alguns Eixos
Estratégicos do curso do LEdoC, tais como a Transformação das Estruturas Sociais
de Produção; Soberania Alimentar e Reforma Agrária Popular; Consciência de
Classe; Igualdade de Gênero e Etnia; Juventude Camponesa e sua Identidade, e
ainda podemos incluir a Educação Popular e o Poder Popular, por ser a metodologia
privilegiada para o diálogo nesta construção.
Acredita-se que ao problematizar a realidade vivida há chances reais de
colaborar com o processo de conscientização das pessoas e de desmistificação da
realidade, neste caso dos alunos da Comunidade Escolar São José e dos demais
envolvidos nesta experiência a respeito destas e outras questões que permeiam
157
nossos dias, nos campos e nas florestas, nas cidades interioranas e nas grandes
Metrópoles:
A problematização é uma epistemologia que tem como propósito a leitura das contradições, e a partir destas realizar a interpretação não somente dos contextos existentes, mas fundamentalmente projetar contextos futuros, representativos das possibilidades, portanto, da criatividade, da iventabilidade, da imaginação humana. Esta filosofia é conscientizadora e para tal terá que apreender a totalidade da realidade, portanto, a superação do pensamento reducionista, separador e isolador é um imperativo para a efetivação do pensamento relacional (ZART, 2011, p. 36).
Este pensar e repensar algumas dimensões foi proposto com base, por
exemplo, sobre os benefícios de se trabalhar a Agroecologia e a Economia Solidária
e Popular, pensando este como um primeiro passo para a sensibilização das/os
educandas/os e, conseqüentemente, dos seus familiares; das equipes de trabalho e
dos educadores da unidade escolar.
Durante o percurso desta construção coletiva houveram várias conversas
entre os atores desta história: as educadoras, suas gestoras e colegas de trabalho;
com a equipe gestora da Associação e alguns associados e a nossa colaboração.
A idéia foi articular algumas ações em andamento, neste sentido foi proposto
o aproveitamento ao máximo do TE e TC do Curso de Alternância na UNB enquanto
estratégia de valorização da força de trabalho intelectual e prático de nossas
colaboradoras.
Assim foram planejadas algumas intervenções para o TC do terceiro semestre
levando-se em consideração alguns temas já abordados pelos professores em sala
de aula, estes mencionados anteriormente. Neste caso, focou-se na produção e
comercialização dos produtos da AF a qual também foram demandas levantadas
junto à AAFERG, o que já demonstra certa semelhança com os eixos trabalhados
durante o processo de formação tanto na UNB quanto em sala de aula, o diferencial
está no diálogo com a realidade deles.
É importante destacar que foi fundamental a aproximação mais ampla com a
comunidade local organizada a partir da AAFERG e das educadoras que foram as
principais agentes do nosso elo entre estas duas Instituições, como já bem
mencionado anteriormente. É importante também colocar o cenário político em que
esta Associação se encontra.
158
A AAFERG é um EES do campo e é atuante frente as articulações políticas
da ES em nível Regional e Nacional, participa da REMSOL e da UNISOL Brasil.
Estas informações fazem parte da identidade política desta organização, não
poderíamos deixar de registrar até por uma questão de valorização e respeito.
Não é nossa intenção aprofundar neste momento as estruturas destes
espaços políticos e pedagógicos de representação dos EES do campo e da cidade
do MS da ES, mas é importante socializar que ambas, com mais ou menos
competências, possuem entre suas responsabilidades a representação política, a
discussão e reflexão dos processos sociais com vistas ao seu enfrentamento e
possível transformação/superação; além da prestação ou acompanhamento de
Assessoria Técnica aos seus diversos participantes, uma de âmbito Estadual e outra
por todo o território nacional.
Nesta oportunidade, as parcerias estabelecidas para a aproximação de
ambas as realidades foi uma das estratégias tomadas a partir do diálogo enquanto
pesquisadora, educandas e educadoras do campo:
O uso da palavra parceria, hoje, é moda. Governos, empresas, organizações da sociedade civil, cada um a seu modo, todos defendem a importância das parcerias. Mais que isso, para ser (ou, pelo menos, parecer ser) moderno, no sentido de atualizado, é comum o entendimento de que, de algum modo, toda e qualquer organização tem que trabalhar em parceria. Parece até que é passado o tempo de competição, de concorrência. Agora, a voga parece ser a (re)descoberta da ação solidária. (Construções Coletivas p.31).
As parcerias realmente formaram uma rede que deram suporte significativo
para a execução desta atividade. Hoje dentro dos processos de organização de
grupos autogestionários, sejam do campo ou da cidade, a articulação entre diversas
forças é fundamental. É o que dentro da ES chamamos de parceiros, as Assessorias
(Universidades, Ong‟s, Igrejas, Instituições diversas).
Muitas experiências de formação entre os EES já acontecem com
determinada autonomia, alguns grupos se articulam, se reúnem para discutir
questões que dizem respeito às suas necessidades básicas. Entre estas discussões
já há todo um cuidado na sistematização, dimensão que em todos os momentos
formativos dentro dos processos da ES é amplamente colocado enquanto
fundamental, pois possibilita a produção de conhecimento da prática destes grupos.
159
Esta já é uma conquistas da maioria destes coletivos, e nesta experiência
acreditamos que também será algo que fortalecerá as práticas destes grupos.
Problematizando as Estratégias na Composição de Custos na
Agricultura Familiar
No intuito de somarmos forças e de atuarmos enquanto mediadoras frente a
produção de conhecimentos, entre os dias 10 e 11/12/2010, realizamos um
Workshop sobre Estratégias na Composição de Custos em EES, na Escola do
Campo São José. Apesar do foco central desta atividade ser as estratégias que
envolvem a questão da produção e comercialização dos produtos da AF, a
transversalidade se fez presente nas relações e discussões estabelecidas ao longo
do processo.
Na oportunidade participaram algumas pessoas, entre elas muitas estão
envolvidas com as atividades desenvolvidas pela AAFERG desde sua criação em
2007; alguns professores e alunos que residem na Comunidade São Manuel, no
Acampamento da Gleba Ribeirão Grande e de fazendas vizinhas. Apesar de a
Escola estar localizada na Comunidade de São Manuel, relativamente distante da
Gleba Ribeirão Grande, cerca de 60 % dos alunos atendidos são filhas e filhos dos
Agricultores Familiares assentados desta comunidade:
Citado por Habermas (1997), Frobel postula que para o alcance da autodeterminação dos cidadãos numa sociedade marcada por uma multiplicidade de opiniões são necessárias a formação do povo, um alto nível de educação para todos e liberdade para manifestações teóricas da opinião e para propaganda (Juventudes - p.86).
A oficina foi organizada de modo a propiciar à todos conhecimentos relativos
aos conceitos e metodologias de gestão de custos, dentro da organização e utilizá-
los para auxiliar nas ações gerenciais do projeto de manufatura de seus produtos.
Teve-se a preocupação com a linguagem adequada para o entendimento destes.
A tônica assumida para esta proposta deu o tom de integralidade aos
conteúdos que aqui foram discutidos, isso pelo fato da mesma ter sido organizada
160
tendo a Escola Rural, a AAFERG e o apoio de uma Assessoria, neste caso a
UNISOL Brasil/MT, nessa construção coletiva.
Pela perspectiva do fortalecimento da Agricultura Familiar nessa região que
se pensou em realizar esse Workshop envolvendo as filhas e os filhos dos
Agricultores, e a Comunidade escolar como um todo. A permanência do jovem no
campo com oportunidades e o fortalecimento das Instituições envolvidas, de forma
articulada. Sem dúvida nenhuma esses aspectos foram o diferencial que enriqueceu
sobre maneira as atividades propostas.
O início se deu com a apresentação de todos os participantes para que
houvesse uma sincronia e para conseqüentemente fluir o trabalho a ser realizado.
Logo em seguida, foi dado início a contextualização do que vem a ser a gestão
estratégica e qual sua finalidade, haja vista muitas das discussões e produção
científica que se tem hoje sobre gestão estratégica estão voltadas para contextos do
capitalismo. Ainda assim é possível apropriar-se das mesmas para a produção da
AF dentro do contexto da ES.
Parafraseando o posicionamento de Porter (1980), vê-se que o mesmo
descreveu a estratégia competitiva como ações ofensivas e defensivas de uma
empresa para criar uma posição sustentável dentro do empreendimento, ações que
são uma resposta às forças competitivas que o autor considera como determinantes
ao grau de competição que cerca cada empreendimento.
Este mesmo autor identificou três estratégias genéricas que podem ser
usadas individualmente ou em conjunto para criar uma posição sustentável em longo
prazo dentro de um empreendimento, as quais são: custo, diferenciação e foco,
cada uma delas tem suas próprias características e influências que podem ou não
viabilizar a produção.
Mas antes de entrar nestas dimensões teóricas realizamos algumas
atividades práticas, para que se veja nas vivências dos participantes a base de todo
o nosso trabalho. Assim o primeiro dia foi reservado para esse processo coletivo de
construção, da seguinte forma:
A escola do campo busca no campo os conteúdos a serem trabalhados em
sala de aula, através de uma atividade prática fizemos com que os alunos e
professores descrevessem no papel todos os bens que existem em sua
propriedade/casa, que muitas vezes, achavam não ter “valor”, desde os animais,
implementos a ferramentas e colocassem o preço que poderia, ou pensavam custar.
161
Tínhamos como objetivo, que percebessem que tudo tem um valor e deve ser
dada a devida importância, para que ao final da produção o crédito seja positivo.
Alertamos de que tudo que é comprado para a propriedade, independente do fim,
tem que ser anotado, como também tudo que é vendido, saber utilizar de forma
correta para não haver gastos desnecessários.
Saber utilizar tudo que tem na propriedade, reconhecer que tudo que se
produz tem seu valor e teve um custo mesmo sendo “somente” a mão-de-obra e
nada deve ser retirado da propriedade sem ser agregado um valor. Para não haver
desfalque na produção, anotar todas as entradas e saídas da propriedade, no final
do mês comparar, percebendo se houve falhas ou mais gastos do que ganhos.
Fizemos um ensaio para perceberem o que gastam e o que tem como bem,
chegaram a conclusão de que não percebiam que os bens existentes na
propriedade tinham tanto valor quando colocados no papel.A mão-de-obra também
tem de ser contada como recurso, porém no fim terá um lucro maior pelo fato de na
propriedade ser utilizada a mão-de-obra da família, não havendo necessidade de
pagar alguém para realizar os serviços.
Os gastos com água e insumos, que muitas vezes também são da
propriedade, como, por exemplo, esterco de animais, água de rios e córregos
também precisam ser colocados no papel. A partir de todas essas trocas ficou
evidente para o grupo o quanto de possibilidades as suas propriedades poderiam
lhes render, como também como poderiam estar atuando em conjunto com os pais,
e os professores como colaborar com este processo dentro das aulas de forma
interdisciplinar.
Assim sendo, retomamos a dimensão teórica, e foi feita a projeção em cima
do resultado do exercício do grupo sobre as estratégias competitivas, e como isso
poderia ou não colaborar com a realidade desta comunidade. Lembrando o tempo
todo que a dimensão competitiva nesta perspectiva se dá ao nível do compromisso
com a qualidade dos produtos e tratamento dado aos consumidores, enquanto
estratégia diferenciada do mercado estabelecido no capitalismo.
A primeira é a estratégia competitiva de custo, na qual o EES centra seus
esforços na busca de eficiência produtiva, na ampliação do volume de produção e
na minimização de gastos com propaganda, assistência técnica, distribuição,
162
pesquisa e desenvolvimento, e tem no preço um dos principais atrativos para o
consumidor.
A opção pela estratégia competitiva de diferenciação faz com que os EES
invistam mais pesado em imagem, tecnologia, assistência técnica, distribuição,
pesquisa e desenvolvimento, recursos humanos, pesquisa de mercado e qualidade,
com a finalidade de criar diferenciais para o consumidor.
A estratégia competitiva de foco significa escolher um alvo restrito, no qual,
por meio da diferenciação ou do custo, a empresa se especializará atendendo a
segmentos ou nichos específicos.
A adoção de qualquer estratégia competitiva tem seus riscos e suas
armadilhas. Na estratégia de custos, as principais são: a excessiva importância que
se dá à fabricação; a possibilidade de acabar com qualquer chance de
diferenciação; a dificuldade de se estabelecer um critério de controle de custos; e
que apareça um novo concorrente com nova tecnologia, novo processo e abocanhe
parcela significativa de mercado ou o mercado passe a valorizar o produto por
critérios diferentes.
Na estratégia de diferenciação, as principais armadilhas são representadas
pela diferenciação excessiva, pelo preço muito elevado, por um enfoque exagerado
no produto e pela possibilidade de ignorar os critérios de sinalização. Na estratégia
de foco o risco é do segmento escolhido não propiciar massa crítica que permita ao
empreendimento operar.
Uma ferramenta útil para sustentar a competitividade é a gestão estratégica
de custos. Segundo Hansen; Mowen (2001, p. 423) a gestão estratégica de custos
"é o uso de custos para desenvolver e identificar estratégias superiores que
produzirão uma vantagem competitiva". Sendo assim a gestão estratégica de custos
surge como uma alternativa de entender às demandas do sistema econômico com
relação as variáveis vividas nos mercados buscando a melhoria continua da
competitividade.
O conteúdo programático acima foi trabalhado com o grupo presente ao
encontro levando em consideração tudo o exposto na primeira parte do trabalho, ou
163
seja, a articulação entre os saberes da prática do dia-a-dia e a teoria consultada. Em
seguida foi levantada a questão que estamos vivendo em um ambiente de constante
mudança, e é fato que todos nós atualmente precisamos estar atentos a estas
mudanças.
Portanto, tomar a decisão certa no momento certo passa a ser algo primordial
para a permanência e não ficar à margem do mercado. Em outras palavras, as
situações decisórias no âmbito profissional, podem afetar toda a comunidade
positiva ou negativamente. Neste sentido tomar a decisão correta no coletivo passa
a ser a base do sucesso, com vistas ao necessário estabelecimento de novos
olhares aos processos de produção:
Estes pressupostos apresentam algumas razões pelas quais é necessário compreender e efetivar a práxis da agroecologia, enquanto projeto estratégico da agricultura familiar, que consiste na solidariedade, na autonomia, na ética, no respeito à diversidade cultural e no protagonismo camponês. Desta forma contempla também os princípios da sócio-economia solidária, que busca uma sociedade mais justa, ética e responsável, no exercício da análise crítica da dimensão sócio-econômica do campo. A Agroecologia possui interfaces com a Educação do Campo, na medida em que a escola passa a refletir-agir sobre as crises energética, climática, ecológica, econômica, informacional e seus efeitos no campesinato. (Orientações Curriculares para a Educação do Campo no Estado de mato Grosso, 2010: p.24).
Com base nesse contexto e dando continuidade aos trabalhos foi feita pelos
participantes a apresentação de como eles acreditam que podem participar em suas
propriedades de forma que a coletividade possa fortalecer essa dimensão do
processo produtivo. Levando em consideração o trabalho realizado na AAFERG,
onde o processo produtivo é realizado coletivamente, orientado pelos princípios da
ES, entendemos que este momento foi o ponto alto da oficina.
O trabalho coletivo não é um processo simples, as experiências trocadas a
respeito de uma dimensão técnica e prática como é a questão das estratégias na
composição de custos colocou em evidência que para se chegar à um resultado
comum é preciso estar em constante formação, pois as idéias, os costumes e
interesses que extrapolam o controle do Grupo em si são muitos e é preciso estar
preparado para tal enfrentamento e correlação de forças
164
Apesar de que ao final da oficina, ao fazer um protocolo verbal, em que a
maioria percebeu que muitas vezes não tem noção de quanto gastam e quanto
lucram na propriedade justamente pelo fato de não anotarem as entradas e saídas,
o que faz com que o produtor ache que está obtendo lucro e pode estar tendo
prejuízo, ou vice versa; foi possível tirar alguns encaminhamentos entre as/os
filhas/os dos/as Agricultores/as, entre as/os professoras/es e Associados da
AAFERG presentes, pensando o fortalecimento comunitário, da Associação e do PA
como um todo.
A participação destas pessoas e a oportunidade de se por em prática alguns
conceitos construídos dentro da academia, de forma coletiva e integrada com as
experiências de vida dos mesmos, pode ser considerada enquanto uma estratégia
de enfrentamento com vistas à uma possível superação do que está posto às
mulheres e aos homens dos campos e das florestas:
A socioeconomia solidária requer o desenvolvimento do humanismo social, que se assenta em uma eticidade que possui como centralidade a vida, a mutualidade, a cooperação, a sustentabilidade. O humanismo social expõe a idéia fundamental o respeito aos seres humanos e a relação destes com todas as formas de vida. Há uma valoração ética que combate a corrupção, o medo, a mediocridade e busca na ousadia a participação (ZART, 2011, p.33).
É essa ousadia que este trabalho pensado de forma coletiva tem de mais
significativo, sabendo de todos os seus limites devido às resistências diante desta
dimensão que definitivamente não fora motivada durante a maioria de nossas
experiências escolares e familiares.
Enquanto estratégia de se articular meios concretos para a participação
destes coletivos, Escola e Associação, foi sugerido se desenvolver a atividade do TE
das colaboradoras para dar conta de uma das etapas de formação no curso do
LedoC, com o “olhar” em uma proposta metodológica onde o critério da participação
enquanto um processo político e pedagógico, dialógico e dialético estivesse
minimamente contemplado.
Estas duas dimensões que fazem parte do ato educativo, a vida e os
conceitos, são por excelência inexoravelmente co-relacionadas, e por isso mesmo
foram pensadas enquanto um dos desafios da proposta colaborar com esta
articulação dos saberes do campo e da escola com o intuito de quebrar barreiras,
165
transpor preconceitos e recriar novas possibilidades de se “olhar” estas duas
produções de conhecimentos não mais de forma dualista, fragmentada ou
dicotômica, mas complementares.
Esta experiência abriu muitas possibilidades dentro desta realidade
campesina. É certo que as relações de poder dentro destes espaços sociais estão
se desdobrando em mais desafios que precisam ser enfrentados com vistas à sua
problematização, na práxis da ação-reflexão diários.
A superação, nesta perspectiva, será um processo que com certeza já está
sendo questionada enquanto dimensão de desconstrução de preconceitos e
paradigmas que não dão conta de sustentar tais situações de conflitos. A intenção é
provocar a participação destes atores para pensar de forma coletiva, acreditando
que por meio da educação e do trabalho pode-se repensar o vivido com vistas à sua
transformação.
Reflexões sobre a X Reunião da Coordernação Nacional do Fórum Brasileiro de Economia Solidária – FBES: Uma Perspectiva Regional
Nesta oportunidade será colocado para discussão e reflexão uma perspectiva
sobre uma das reuniões do coletivo da ES em âmbito nacional, espaço onde o grupo
MUDAR pôde participar representado o Estado do MT, momento importante que fala
de um dos momentos de organização e formação destas/es protagonistas.
Atualmente muitas das discussões e reflexões dos Movimentos Sociais (MS)
dos campos, das florestas e das cidades estão se materializando através de
espaços políticos criados por estes coletivos, espaços estes que provocam a
participação, mesmo que representativa e/ou tímida, das atrizes e dos atores que
fazem e refazem estratégias de luta e resistência diante de “situações-limites”
diversas.
Neste sentido, Conselhos, Fóruns, Redes e Associações foram forjadas a
partir de uma orientação político - pedagógica que busca, entre outras coisas,
possibilitar a construção de Políticas Públicas, através de um pensar e repensar a
situação concreta de vida de cada uma e cada um. A participação popular, nesta
perspectiva, está sendo sistematicamente estimulada e orientada de forma coletiva e
participativa, com todas as contradições e conflitos que estão presentes em uma
sociedade em colapso ético, econômico, político e sócio-cultural.
166
A ES neste contexto é um destes MS que desde os anos 2000 no Brasil e a
partir de 2003 no MT vem provocando toda uma ação-reflexão-ação que colaborou
com o cenário atual de busca de alternativas “viáveis” de enfrentamento e superação
ao que está posto.
As leituras foram tecidas na perspectiva do “olhar” de um Empreendimento
Econômico Solidário (EES), através de uma pesquisa qualitativa com viés dialético
fenomenológico. Convidamos para diálogo Merleau-Ponty e Paulo Freire. A
metodologia privilegiada é a descrição densa de Geertz.
O fenômeno em questão neste momento são as discussões e reflexões
construídas durante a X Reunião da Coordenação Nacional do Fórum Brasileiro de
Economia Solidária (FBES), que aconteceu entre os dias 18,19 e 20 de agosto de
2011, em Brasília/DF. Apesar da expressão nacional, iremos privilegiar mais
centralmente as contribuições da região Centro-Oeste.
Este é um Fórum de âmbito nacional, é um espaço que se pretende legítimo
através das contribuições das e dos representantes de EES, Assessorias e Gestores
Públicos, que pode instrumentalizar e qualificar a luta por melhoria da qualidade de
vida das pessoas que historicamente estiveram à margem da sociedade.
Retrospectivas: Desafios e Possibilidades
Os trabalhos iniciaram-se com uma MISTICA - Linha do Tempo, onde os
pontos mais significativos da História do Movimento da Economia Solidária em nível
nacional, regional e estadual foram pontuados. Momento de construção de uma
memória coletiva que foi interessante, pois já estavam introduzindo o tema em
questão nesta reunião: uma retrospectiva do triênio de 2009 à 2011.
Na décima reunião dos representantes dos três segmentos da ES de todos os
Estados o objetivo maior era fazer um balanço dos projetos, políticas e programas
que foram construídos enquanto propostas de minimização dos entraves, gargalos e
fragilidades dos vários setores produtivos os quais os EES tanto dos campos, das
florestas e das cidades estão submetidos.
As linhas de reflexão então foram divididas em três aspectos, que tratam da
realidade dos EES, do Fórum Estadual de Economia Solidária (FEES) e da
Sustentabilidade; observando como estão organizados hoje considerando o triênio;
verificando as Políticas Públicas e seus resultados e das dimensões: disseminação e
167
divulgação; relação com outros MS e as Relações Internacionais. Para tanto foi
proposto uma breve análise de conjuntura, feita pelo coletivo de forma participativa a
partir das regiões: um panorama nacional.
Análise de Conjuntura 2009/2011
Neste momento foram distribuídos em grupos por região, assim foi possível
se ter um panorama mais ou menos delineado de algumas dimensões que mesmo
sendo pontuadas por estados e regiões, refletem o Movimento como um todo,
devido as semelhanças das “situações-limites” apontadas por cada região do Brasil.
Assim a orientação foi levantar os acontecimentos; cenários; atores; as
relações de forças e o corte conjuntural o qual tais dimensões estão interligadas. É
sabido que uma dimensão dialoga com a outra e que, por vezes, de tão co-
relacionadas acabam por confundir seu “lugar” neste processo. Por isso mesmo que
este se configura enquanto uma ação política pedagógica, pela possibilidade da
produção de conhecimento e inserção lúcida à realidade.
Esta construção coletiva participativa é uma oportunidade ímpar de cada
pessoa colocar suas vivências e as de seus pares, uma vez que no dia-a-dia estas
pessoas estão vivenciando uma mesma história de luta e resistência, pois “de fato,
não posso existir na vida cotidiana sem estar continuadamente em interação e
comunicação com os outros” (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 40). Vejamos as
colocações gerais de cada dimensão que surgiram desta discussão e reflexão
coletiva:
Acontecimentos: PL 865 (por opção política não pressão política):
Processos das Audiências Públicas nos Municípios e Estados; Seminário de 8 Anos
da SENAES; Mudança do Código Florestal: Embates e Discussões; Surgimento de
Editais que têm como orientação uma construção de forma dialogada com o
Movimento: Nacional, Estaduais e Municipais; Conferências de ES: Nacional,
Regionais e Estaduais; Seminário Inter-Conselhos; ECOSOL inserida no PPA:
Desenvolvimento Sustentável, Local, Regional e Economia Solidária; Re-lançamento
da Frente Parlamentar Nacional/2011; Criação de alguns Fóruns Regionais; Grito da
Terra/2011; Marcha das Margaridas/2011; Diálogos e Convergência da ES com
168
outros MS; Projetos e Metodologias: CFES-CO, Mapeamento, Brasil Local, Bases de
Serviços e Comercialização Solidária, Bancos Comunitários e as Ações pelo
Programa Nacional de Comércio Justo e Solidário: Feiras e Seminários; Movimentos
revolucionários na América Latina como um todo.
Cenários: FEES/C0: possibilidades e desafios; AF; Agronegócio; Governos
Municipais e Estadual; Conselhos: CONSEA, CONESOL; Micro e Pequenas
Empresas; Fragilidade no diálogo com Crédito: Burocratização e a inexistência de
linhas específicas; Resistência de aproximação de Gestores Públicos: Oligarquia,
Personalismo e Verticalização nas relações; Crescimento do Emprego Formal: com
precarização nos salários e condições de trabalho; Continuidade da
Descapitalização dos EES da cidade, campos e florestas; Discussões e
Negociações em nível Internacional: Banco Mundial, Mercosul, Grandes
Multinacionais.
Atores: Gestores Públicos, EES, Redes e Cadeias; Assessorias, MS do
Campo e da Cidade; Agronegócio; Micro e pequenas/os empresárias/os;
Consumidores – Prossumidores – “Mercado”.
Relação de Forças: Leis Estaduais e Municipais de ECOSOL, Forças
Oligárquicas, Relações Personalistas e Horizontalizadas: PL 856; Economia
Solidária enquanto Transversalidade: Está em tudo e em nada ao mesmo tempo;
Escola do Campo: a Agricultura Familiar em diálogo; Cooperação e Solidariedade;
Enfrentamentos e Confrontos; Interesses Individuais x Interesses Coletivos;
Construção do diálogo entre EES, sociedade e o Poder Público; Mística: como
metodologia para o resgate da miséria da Auto Estima dos EES; Instabilidade do
“lugar Institucional” da ECOSOL: SENAES em qual Ministério? FBES desbravando e
estabelecendo diálogo com a Presidência da República reafirmando nossa
Identidade Social e o Lugar Institucional que pensamos mais adequado; Retirada da
ECOSOL do PL 865; Interesses Internacionais.
Corte Conjuntural: Avanços e Desafios: Projetos implementados de forma
não dialogada com o Movimento. Economia Popular e Empreendimentos Familiares
serão incorporados ao Movimento pela política Nacional de ECOSOL?
Comercialização, Produção, Consumo e Créditos Solidários: sem política de
fomentos definidas. Formação Política Continuada e a Cultura Capitalista Enrraigada
nas pessoas: possibilidades e desafios.
169
Elementos de Conjunta Externa: PL 865; II CONAES: Estados, Regiões e a
Nacional; Eleição da Dilma; Grito da Terra; Marcha das Margaridas, Diálogo e
Convergências; Fórum Social Mundial; Frente Parlamentar: Diálogo com as
Secretarias Nacionais, Conselhos e Ministérios (SDT, SENAES, MDA, MDS,
SNPPM, CONSEA, CNE, MAPA); Leis de ES Aprovadas.
Elementos de Conjunta Interna: Mobilização para Audiências Públicas:
Posicionamento do FBES em relação a PL 865, à Presidência da República;
Interlocução com outros MS; Criação do Cirandas; Protagonismo do FBES nas
Relações Internacionais.
Estas são algumas das pontuações mais significativas que trazemos para
compartilhar. As trajetórias de cada participante trouxeram uma gama de
informações e conhecimentos que possibilitou determinado nivelamento sobre
alguns conceitos e também de algumas conquistas das companheiras e
companheiros de vários estados. Para, além disso, houve todo um movimento
intersubjetivo de legitimação e pertencimentos:
A realidade da vida cotidiana além disso apresenta-se a mim como um mundo intersubjetivo, um mundo de que participo juntamente com os outros homens. Esta intersubjetividade diferencia nitidamente a vida cotidiana de outras realidades das quais tenho consciência (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 40).
Este reconhecimento se dá com a apropriação dos envolvidos nesta mesma
realidade. É um fenômeno não linear, o desafio está na reafirmação constante das
identidades e dos compromissos coletivos definidos na e pela situação de
reconstrução de uma nova forma de se estabelecer relação com o outro e com a
natureza. E é na vida cotidiana que estas construções se materializam, na família e
no trabalho; nas escolas e na vida comunitária como um todo:
Entre minha consciência e meu corpo tal como eu o vivo, entre este corpo fenomenal e aquele de outrem tal como eu o vejo do exterior, existe uma relação interna que faz o outrem aparecer como o acabamento do sistema. A evidência de outrem é possível porque não sou transparente para mim mesmo, e porque minha subjetividade arrasta seu corpo atrás de si (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 472).
170
Entre outras tantas nuances existentes nas complexas teias de sentidos e
significados produzidos pela humanidade, há toda esta densa relação intra e
interpessoal. Pessoas que vivem em um mundo cercado de simbolismos que nem
sempre cooperam com a vivência em grupos, muito pelo contrário, exacerbam o
individualismo e o competitivismo.
Foi importante esta atividade na medida em que colaborou não só com o
levantamento de elementos práticos para o balanço do triênio 2009/2011 do MS da
ES no Brasil, mas sobre tudo pela possibilidade de contato entre as/os diversas/os
atrizes e atores que puderam sentir-se no que o outro falava, mesmo estando à
quilômetros de distância geograficamente daquela realidade.
O passo seguinte foi concentrar os “olhares” para cada região: para tanto
foram pensadas algumas questões âncoras para subsidiar as discussões regionais.
É importante colocar antes de prosseguirmos que as discussões e reflexões
compartilhadas neste momento são expressões de âmbito nacional, embora a
metodologia por região tenha sido utilizada. A tentativa daqui para frente será
colocar as percepções do MS da ES em âmbito regional, ou seja, da Região Centro-
Oeste e seus respectivos Estados.
Contribuições da Região CO: Avanços e Desafios
Como na maioria dos processos de formação oferecidos pela ES, este
momento foi conduzido didaticamente para que o trabalho coletivo fluísse e todas e
todos pudessem contribuir. Assim, algumas questões suleadoras8 fizeram a função
de organizar as idéias e as informações sobre a realidade da Região e de cada
Estado referentes à assuntos que dizem dos EES direta ou indiretamente. Estas
questões estavam divididas em três grupos distintos, porém interligados:
A. Fortalecimento dos EES como atores econômicos nos territórios, buscando sua
organização em redes e cadeias nos campos da produção, comercialização,
8 O termo “sulear” tem sido utilizado, de modo explícito, por Freire no livro Pedagogia da Esperança (1994, p.
218-219). [...] Como contraponto ao “nortear”, cujo significado é a dependência do Sul em relação ao Norte,
“sulear” significa o processo de autonomização desde o Sul, pelo protagonismo dos colonizados, na luta pela
emancipação (Dicionário Paulo Freire, 2008, p. 396).
171
logística, consumo e finanças solidárias como estratégia para um outro modelo de
desenvolvimento;
B. Fortalecimento político e organizacional dos Fóruns Estaduais,
consolidação/constituição de Fóruns microrregionais e municipais para maior
integração e interiorização do FBES, e articulação macrorregional entre Fóruns
Estaduais;
C. Estratégias para a sustentabilidade e autonomia financeira dos FEES e EES nas
dimensões: auto-financiamento; captação de recursos públicos; e cooperação
internacional.
Cada uma destas questões tiveram seus desdobramentos, perguntas mais
restritas que colocavam de forma mais direta as questões que precisam ser
pensadas. Neste sentido optamos por compartilhar algumas colocações que podem
contribuir com a compreensão do panorama organizacional da ES no CO como um
todo, lembrando que em muitos pontos há diferenças significativas entre um Estado
e outro, por isso, na medida do possível, iremos registrar uma ou outra visão por
Estado.
Um jeito novo de caminhar...
Foi pensado pelo coletivo dos estados da região Centro-Oeste um novo jeito
de encaminhar esta etapa das discussões. A idéia daquele coletivo era mesmo ir
além das questões práticas necessárias para o balanço do triênio. Era importante ali,
enquanto Região, criar um novo jeito de caminhar dentro dos processos
organizacionais da ES.
Onde um Estado apoiaria o outro, considerando-se as fragilidades que um
possa ter mais que os outros. E dentro destas perceber como as Políticas Públicas
estão fortalecendo os EES e os FEES? Como os coletivos percebem este processo
dentro do MS e como vêem sua participação nestes processos? Há mais acesso a
crédito e formação hoje do que em 2009? E o fator Comercialização? Estas e outras
poderiam indicar os pontos fortes e fracos em cada realidade, e dai por diante
pensar coletivamente alternativas viáveis de superação.
Questões é o que mais brotam em meio às reflexões sobre a ES e seus
desdobramentos. Cada um/a falou sobre suas realidades, mas a resposta precisava
172
ser global, ou seja, regional. Sobre as Políticas Públicas chegaram ao consenso que
ainda são poucas e pontuais, de forma lenta através do PAA e PNAE frente à
Comercialização da AF por um lado, e por outro o Programa de Bases de
Comercialização Solidária que vem com o foco mais na organização da produção
pensando na Comercialização.
Algumas Leis e Conselhos Municipais colaboram com os EES de algumas
localidades, por isso o interior está mais fortalecido. Não é possível generalizar, mas
os Programas como o Centro de Formação em Economia Solidária (CFES), Brasil
Local e o Sistema Nacional de Comercialização Solidária colaboraram, em certa
medida, com o fortalecimento de muitos EES.
Quanto a formação, consideram que ampliou-se os trabalhos, porém a
autogestão ainda é um grande desafio. Levando-se em consideração que todo este
processo necessita ser vivenciado e aprendido simultaneamente, a formação foi
uma meta fortemente buscada pelas/os atrizes e atores em conjunto com os
diversos parceiros.
Com isso as ações formativas se deram em diversos espaços como nas
Feiras de ES e da AF, e outras oficinas através dos Programas e Projetos, além de
novos parceiros locais, com isso foi possível multiplicar as discussões, reflexões e
produção de conhecimento:
É importante lembrar este ponto. O senso comum contém inumeráveis interpretações pré-científicas e quase científicas sobre a realidade cotidiana, que admite como certas. Se quisermos descrever a realidade do senso comum temos que nos referir a estas interpretações, assim como temos de levar em conta seu caráter de suposição indubitável, mas fazemos isso colocando o que dizemos entre parênteses fenomenológicos (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 37).
As experiências compartilhadas em meio a produção do trabalho e da
formação política, sem dicotomias, promovem a busca de estratégias diante das
dificuldades, pois “não é no silêncio que as pessoas se fazem, mas na palavra, no
trabalho, na ação-reflexão” (FREIRE, 1996).
Estas pistas de como fazer diferente do que está posto produz novos
conhecimentos, novas práticas e um novo olhar sobre conceitos que já não dão
conta da realidade. E são estes conhecimentos da vida como ela é que estão
fazendo a diferença nestas experiências por uma outra sociedade possível.
173
Avançando um pouco mais a respeito da situação dos EES da região CO, em
relação ao crédito a incidência ainda se mostra incipiente. O desafio ainda é muito
grande levando-se em consideração que os EES ainda não estão preparados
tecnicamente para buscarem crédito via projetos e editais diversos.
O Crédito em sua concepção pode ser encarado de uma forma diferenciada,
inclusive como uma estratégia de organização da produção e formação. Mas para
isso é preciso pensar um processo pedagógico que se discuta e estimule esta idéia.
Toda a luta para construir Políticas Públicas legítimas advindas das porteiras
à dentro dos EES faz com que todos os segmentos que compõem a ES se
mobilizem e articulem-se para tanto, porém os EES não conseguem perceber nas
bases estas contribuindo efetivamente em seu fortalecimento, isso reflete a falta de
diálogo com o Poder Público.
Via Movimento a visão é mais nítida em muitos estados, mas é preciso que se
tenha um debate mais ampliado sobre os Avanços e as Conquistas da ES em todos
os âmbitos. Estas leituras não são simples de serem feitas, precisam ser
consideradas enquanto um processo pedagógico.
Acredita-se que a partir da compreensão da proposta do projeto de uma nova
sociedade, através das vivências nos diversos espaços e setores do processo
econômico e político, além do comprometimento individual e coletivo das pessoas
que participam deste movimento é como os mesmos poderão colaborar
efetivamente com esta construção. Essa apropriação estimula outra dimensão
fundamental ao processo de emancipação, a autonomia:
Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém. Por outro lado ninguém amadurece de repente aos, 25 anos. A gente vai amadurecendo todo dia ou não, a autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é uma processo, é uma vir a ser (FREIRE, 1996, p. 12).
Autonomia não é um dado a priori, é uma construção que precisa ser
experimentada, vivida em um constante processo de formação. Pensando nesta
perspectiva, pelas vivências pode-se dizer que hoje as/os militantes estão com maior
compreensão do processo a partir das formações, de sua participação em vários
momentos, mas ainda é um desafio se ter parâmetros ou indicadores para avaliar as
mudanças nos EES. Esta é uma dimensão que precisa ser intensamente
problematizada.
174
Uma estratégia que pode colaborar para superar estes desnivelamentos de
compreensão e qualificar a participação política é a organização dos EES em redes
e cadeias. Nesta perspectiva, em alguns estados já estão acontecendo de forma
organizada algumas Redes, em relação às Cadeias Produtivas são poucas as
iniciativas. Esta articulação já acontece, embora timidamente, devido ao próprio
amadurecimento e crescimento do movimento.
Pensando ainda nesta organização dos EES, seja em Redes ou Cadeias, seja
em Associações ou Cooperativas, percebe-se o aumento significativo de alguns
setores produtivos, resultado já desta articulação enquanto estratégia de superação
do estrangulamento de algumas atividades como a do artesanato que foi um setor
bem forte em 2009, hoje o que vem se destacando é a AF e o Agroextrativismo.
Uma demanda grande por produtos da AF, do Agroextrativismo e da
Agroecologia estão chamando outros desafios. Neste segmento produtivo a
Certificação é uma discussão que está sendo pensada e proposta no Projeto de
Comercialização Solidária, mas em nível de FEES ainda não foi iniciado em alguns
Estados. Em outros isso ainda está à nível de formação e discussão.
Como se pode perceber nos desdobramentos das discussões do coletivo de
representantes que pensaram a região CO frente as ações que se referem direta ou
indiretamente aos EES, FEES e ao FBES, houve determinado crescimento de ações
que deram certa visibilidade ao Movimento de ES, principalmente no interior. A
avaliação neste sentido é que ela está conseguindo, na medida do possível,
estabelecer diálogos importantes com outros MS e a Comunidade Local, já com o
Poder Público de forma mais tímida devida relações hierarquizadas e personalistas.
Em relação ao FBES em nível nacional foram construídos vários mecanismos
e instrumentos para democratizar as informações, mas ainda é um desafio a
comunicação entre os Segmentos em cada realidade, entre os Fóruns em si e
destes com o FBES.
Sobre os FEES em algumas realidades ainda é um desafio a participação dos
EES, inclusive pela organização geográfica. A participação acontece a partir dos
interesses e possibilidades frente a comercialização, seja nas discussões em
seminários e envolvimento com outros MS e própria militância que é fortalecida a
cada formação. Há ainda muita rotatividade entre as/os participantes em algumas
realidades. A participação é um desafio ao processo político pedagógico proposto
pela ES, e essa é uma premissa para a conscientização, pois conforme FREIRE:
175
Nos anos 60, preocupado já com esses obstáculos, apelei para a conscientização não como panacéia, mas como um esforço de conhecimento crítico dos obstáculos, vale dizer, de suas razões de ser. Contra toda a força do discurso fatalista neoliberal, pragmático e reacionário, insisto hoje, sem desvios idealistas, na necessidade da conscientização. Insisto na sua atualização. Na verdade, enquanto aprofundamento da “prise de conscience” do mundo, dos fatos, dos acontecimentos, a conscientização é exigência humana, é um dos caminhos para a posta em prática da curiosidade epistemológica (FREIRE, 1996, p. 23).
Para enfrentamento e superação de tantos desafios o coletivo nesta
oportunidade acredita que se deva pensar em uma ação integrada em conjunto com
o FBES para acompanhamento e fortalecimento dos EES e dos FEES. Algumas
sugestões foram pensadas: se organizar Encontros Regionais e Estaduais com
estrutura adequada e com mais freqüência, por exemplo.
A criação de uma lista específica Regional e um animador para o fim de
estimular esta rede; repensar metas em relação as possibilidades reais de cada
realidade. Promover oficinas temáticas que disponibilize formação técnica há alguns
multiplicadores para que se domine os conhecimentos técnicos necessários para
saber utilizar os instrumentos já existentes que servem à este fim da Comunicação:
CIRANDAS, MAMULENGO.
Outros pontos foram destacados em relação as fragilidades que ainda
persistem entre os EES e os FEES, como a questão da sustentabilidade. A partir de
experiências isoladas como a do MS que destina 5% das vendas do Centro de
Comercialização para o seu FEES, um exemplo que está dando certo. No mais
acontece de forma pontual para subsídio dos Centros de Comercialização, mas que
não há esta organização de repasse aos FEES.
Esse é um processo pedagógico e precisa ser trabalhado em todos os
momentos de formação, feiras, seminários e reuniões, inclusive com os intercâmbios
com outros MS, em todas as dimensões é preciso esse diálogo e convergência.
Nossa caminhada está ou deveria estar em uma perspectiva holística, porém a
convergência é um grande desafio. Na construção dos projetos já deveria ter
garantido recurso destinado para fortalecimento dos FEES, seja através das
metodologias, pelos conteúdos significativos à nossa luta e realidades públicas.
176
Prioridades para o próximo triênio – 2012 X 2014
Muitas considerações foram tiradas destas discussões e reflexões, por hora
acreditamos ser pertinente colocar o ponto de partida não de chegada do esforço
empreendido por cada pessoa que mesmo não podendo se fazer presente nesta
oportunidade colaborou para este resultado. Este é um processo, assim sendo a
continuidade das ações precisam ser destacadas.
Vejamos os desafios e as possibilidades para os militantes desta nova forma
de “olhar” as relações:
1. Criar mecanismos para atingir a sociedade em geral sobre os valores da ES,
utilizando todos os meios de comunicação existentes disponíveis, buscando
orçamentos específicos para essa finalidade;
2. Participação mais efetiva rumo à Conferência Nacional do Trabalho Decente;
3. Problematizar e Trabalhar Relações Interpessoais dentro da ES enquanto estratégia
pedagógica.
4. Criar um modelo de Projeto de Lei, Municipal e Estadual para facilitar a proposição
de encaminhamentos, fundos, Conselhos;
5. Mobilização pela Lei Nacional; Mudança da Lei de Cooperativismo; Projeto Político
de Comercialização; Interlocução com a SENAES; Participação ativa na Reforma
Política do Brasil.
6. Construção de Estruturas Regionais;
7. Fomentar Intercâmbios entre experiências;
8. Fortalecimentos dos FEES, sua Sustentabilidade e a dos EES.
9. Formação Continuada em ES; Pautar a ES no Currículo Escolar: Agregar e
Fortalecer a Escola do Campo como estratégia de enfrentamento ao atual modelo
econômico; Agroecologia e Agroextrativismo.
10. Integração com demais MS, Conselhos, Fóruns, Territórios.
177
11. Cuidado de Gênero pensando as diversidades e as diferenças: Temáticas e
Transversalidades afins.
Algumas destas Bandeiras estão em pauta no MS da ES desde sua criação, o
diálogo e convergências com demais MS dos campos, das florestas e das cidades
ampliaram o leque de desafios, mas também de possibilidades. E é neste
movimento por dignidade humana que os militantes estão a cada conquista ou
desafio unidos, ou buscando esta comunhão que é necessária para o enfrentamento
e a superação das “situações-limites”.
Diálogos e Convergências
Carta de Salvador
Somos 300 cidadãos e cidadãs brasileiras integrados à Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), à Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia), à Associação Brasileira de Pós Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), ao Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), ao Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), à Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), à Rede Alerta contra o Deserto Verde (RADV), à Marcha Mundial de Mulheres e à Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), em reunião na cidade de Salvador-BA, entre os dias 26 a 29 de setembro de 2011, durante o Encontro Nacional de Diálogos e Convergências entre Agroecologia, Saúde e Justiça Ambiental, Soberania Alimentar, Economia Solidária e Feminismo.
Nosso encontro resulta de um longo e fecundo processo de preparação motivado pela identificação e sistematização de casos emblemáticos que expressam as variadas formas de resistência das camadas populares em suas diferentes expressões socioculturais e sua capacidade de gerar propostas alternativas ao modelo de desenvolvimento hegemônico em nosso país. Vindos de todas as regiões do país, esses casos iluminaram nossos debates durante esses três dias e fundamentam a manifestação política que apresentamos nesta carta.
Ao alimentar esse padrão de desenvolvimento, o governo Dilma inviabiliza a justa prioridade que atribuiu ao combate à miséria em nosso país. Tendo como eixo estruturante o crescimento econômico pela via da exportação de commodities, esse padrão gera efeitos perversos que se alastram em cadeia sobre a nossa sociedade. No mundo rural, a expressão mais visível da implantação dessa lógica econômica é a expropriação das populações de seus meios e modos de vida, acentuando os níveis de degradação ambiental, da pobreza e da dependência desse importante segmento da sociedade a políticas sociais compensatórias. Esse modelo que se faz presente desde o início de nossa formação histórica ganhou forte impulso nas últimas décadas com o alinhamento dos seguidos governos aos projetos expansivos do capital internacional. Materialmente, ele se ancora na expansão do agronegócio e em grandes projetos de infraestrutura implantados para favorecer a extração e o escoamento de riquezas naturais para os mercados globais.
178
Os casos emblemáticos que subsidiaram nossos diálogos demonstram a
essência violenta desse modelo que viola o “direito de ficar”, desterritorializando as populações, o que significa subtrair delas a terra de trabalho, o livre acesso aos recursos naturais, suas formas de organização econômica e suas identidades socioculturais. Os movimentos massivos de migração compulsória daí decorrentes estão na raiz de um padrão de distribuição demográfica insustentável e que cada vez mais converte as cidades em polos de concentração da pobreza, ao passo que o mundo rural vai se desenhando como um cenário de ocupação do capital e de seu projeto de uma agricultura sem agricultoras e agricultores.
A progressiva deterioração da saúde coletiva é o indicador mais significativo das contradições de um modelo que alça o Brasil a uma das principais economias mundiais ao mesmo tempo em que depende da manutenção e seguida expansão de políticas de combate à fome e à desnutrição. Constatamos também que esse modelo se estrutura e acentua as desigualdades de gênero, de geração, de raça e etnia.
Nossas análises convergiram para a constatação de que os maiores beneficiários e principais indutores desse modelo são corporações transnacionais do grande capital agroindustrial e financeiro. Apesar de seus crescentes investimentos em marqueting social e verde, essas corporações já não conseguem ocultar suas responsabilidades na produção de uma crise de sustentabilidade planetária que atinge inclusive os países mais desenvolvidos e que se manifesta em desequilíbrios sistêmicos expressos no crescimento do desemprego estrutural, na acentuação da pobreza e da fome, nas mudanças climáticas, na crise energética e na degradação acelerada dos recursos do ambiente.
As experiências mobilizadas pelas redes aqui em diálogo denunciam as raízes perversas desse modelo ao mesmo tempo em que contestam radicalmente as falsas soluções à crise planetária que vêm sendo apregoadas pelos seus agentes promotores e principais beneficiários. Ao se constituírem como expressões locais de resistência, essas experiências apontam também caminhos para a construção de uma sociedade justa, democrática e sustentável.
A multiplicação dessas iniciativas de defesa de territórios, promoção da justiça ambiental e de denúncia dos conflitos socioambientais estão na raiz do recrudescimento da violência no campo que assistimos nos últimos anos. O assassinato de nossos companheiros e companheiras nessas frentes de luta é o mais cruel e doloroso tributo que o agronegócio e outras expressões do capital impõem aos militantes do povo e ao conjunto da sociedade com suas práticas criminosas.
Nossos diálogos procuraram construir convergências em torno de temas que mobilizam as práticas de resistência e de afirmação de alternativas para a
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sociedade.
Os diálogos sobre reforma agrária, direitos territoriais e justiça ambiental responsabilizaram o Estado face ao quadro de violência com assassinatos, expulsão e deslocamentos compulsórios de populações pela ação dos grandes projetos como as hidrelétricas, expansão das monoculturas e o crescimento da mineração; a incorporação de áreas de produção de agrocombustíveis, reduzindo a produção de alimentos; a pressão sobre as populações que ocupam tradicionalmente áreas de florestas, ribeirinhas e litorâneas, como os mangues, os territórios da pesca artesanal, com a desestruturação de seus meios de vida e ameaça ao acesso à água e à soberania alimentar.
As convergências se voltaram para a reafirmação da centralidade da luta pela terra, pela reforma agrária e pela garantia dos direitos territoriais das populações. O direito à terra está indissociado da valorização das diferentes formas de viver e produzir nos territórios, reconhecendo a contribuição que povos e populações tradicionais oferecem à conservação dos ecossistemas; do reconhecimento dos recursos ambientais como bens coletivos para o presente e o futuro; e os direitos das populações do campo e da cidade a uma proteção ambiental equânime. Convergimos ainda na afirmação de que o direito à terra e os direitos à água, à soberania alimentar e à saúde estão fortemente associados.
Reconhecemos a importância da mobilização em apoio ao Movimento Xingu para sempre - em defesa da vida e do Rio Xingu, considerado como um exemplo emblemático de luta de resistência ao atual modelo de desenvolvimento. Defendemos o fortalecimento da articulação dos atingidos pela empresa Vale e as propostas que combinem a gestão ambiental com a produção agroecológica, a exemplos de experiências inovadoras dos movimentos sociais em assentamentos da Reforma Agrária.
No debate sobre mudanças climáticas, seus impactos, mecanismos de mercado e a agroecologia como alternativa, recusamos que a proposta agroecológica seja apropriada como mecanismo de compensação, seja ele no invisível e inseguro mercado de carbono, seja em REDD, REDD+, REDD++ (redução das emissões por desmatamento e degradação) ou ainda dentro do pagamento de serviços ambientais. A Rio +20 engendra e consolida a chamada “economia verde”, que pode significar uma apropriação, pelo capitalismo, das alternativas construídas pela agricultura familiar e camponesa e pela economia solidária, reduzindo a crise socioambiental a um problema de mercado.
A Agroecologia não é uma simples prestadora de serviços, contratualizada com setor privado. Ela reúne nossas convergências no campo e na cidade, trabalhando com gente como fundamento. É possível financiar a Agroecologia a partir da contaminação, escravidão, racismo e acumulação cada vez maior do
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capital? É possível fazer um enfrentamento a partir do pagamento de serviços ambientais por contratos privados, parcerias público-privadas?
Ao debater os impactos da expansão dos monocultivos para agrocombustíveis e padrões alternativos de produção e uso de energia no mundo rural, os diálogos apontaram que a energia é estratégica como elemento de poder e autonomia dos povos, mas está diretamente ligada ao modelo (hegemônico e falido) de consumo, produção e distribuição. A produção de agrocombustiveis, baseada na monocultura, na destruição do ambiente, na violação dos direitos e injustiças sociais e ambientais, associa-se ao agronegócio e ameaça a soberania alimentar.
As políticas públicas sistematicamente desvirtuam as propostas calcadas nas experiências populares, colocando as cooperativas e iniciativas da agricultura familiar na lógica da competição de mercado e em patamar desigual em relação às corporações, tal qual ocorre nas áreas de geração de energia elétrica, segurança alimentar, ciência e tecnologia ou mesmo da economia solidaria.
Nas políticas para os agrocombustiveis, a agricultura familiar é inserida como mera fornecedora de matérias primas e o modelo de integração é dominante, mascarando o arrendamento e assalariamento do campesinato e embutindo o pacote tecnológico da revolução verde através das políticas de crédito, assistência técnica e extensão rural. O diálogo do governo com os movimentos sociais se precariza pela setorização e atomização das relações, enquanto a mistura de interesses e operações entre MDA e Petrobrás acaba por legitimar o canal de negociação empresarial no marco de uma política pública.
As experiências de produção descentralizada de energia e alimentos apontam como soluções reais aquelas articuladas por organizações e movimentos sociais que integram as perspectivas da agroecologia, da soberania alimentar e energética, da economia solidária, do feminismo e da justiça social e ambiental, e são baseadas na forte identidade territorial e prévia organização das comunidades.
Estas iniciativas têm em comum a diversificação da produção e dos mercados e a prioridade no uso dos recursos, dos saberes e dos espaços de comercialização locais. Estão sob o controle dos agricultores e têm autonomia frente às empresas e ao Estado. Articulam-se a programas e políticas públicas diversas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), não apenas ao Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB). Os processos de transformação estão sob o domínio das organizações em toda a cadeia produtiva, e há diversificação da produção de alimentos e de matriz energética e co-produtos, para além e como conseqüência da produção de combustível. As formas de produção estão em rede e têm capacidade de se
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contrapor aos sistemas convencionais como premissa de sua permanência no território.
Com base nestes princípios e lições, as políticas públicas para a promoção da produção de energia e alimentos devem ter: um marco legal diferenciado para a agricultura familiar; promover a produção e uso diversificado de óleos, seus co-produtos e outras culturas, adequadas à diversidade cultural e biológica regional; atender à demanda de adequação e desenvolvimento de tecnologia e equipamentos apropriados, acompanhada de processos de formação e de redes de inovação nas universidades; além de proporcionar autonomia na distribuição e consumo local de óleos vegetais, biodiesel e álcool.
Os diálogos sobre os agrotóxicos e transgênicos, articulando as visões da justiça ambiental, saúde ambiental e promoção da agroecologia, responsabilizaram o Estado pelas políticas de ocultamento de seus impactos expressas nas dificuldades de acesso aos dados oficiais de consumo de agrotóxicos e de laudos técnicos sobre casos de contaminação; na liberação de Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) sem debate democrático com a sociedade e sem atender ao princípio da precaução; na frágil vigilância e fiscalização trabalhista, ambiental e sanitária; na dificuldade do acesso aos laboratórios públicos para análise de amostras de contaminação por transgênicos e por agrotóxicos no ar, água, alimentos e sangue; terminando por promover um modelo de desenvolvimento para o campo que concentra terra, riqueza e renda, com impactos diretos nas populações mais vulneráveis em termos socioambientais.
Há um chamamento para que o Estado se comprometa com a apuração das denúncias e investigação dos crimes, a exemplo do assassinato do líder comunitário José Maria da Chapada do Apodi, no Ceará; com a defesa de pesquisadores criminalizados por visibilizar os impactos dos agrotóxicos e por produzir conhecimentos compartilhados com os movimentos sociais; com políticas públicas que potencializem a transição agroecológica – facilitando o acesso ao crédito, à assistência técnica adequada e que reconheça os conhecimentos e práticas agroecológicas das comunidades camponesas.
Não há possibilidade de convivência entre o modelo do agronegócio e o modelo da agroecologia no mesmo território, porque o desmatamento e as pulverizações de agrotóxicos geram desequilíbrios nos ecossistemas afetando diretamente as unidades agroecológicas. As políticas públicas devem estar atentas aos impactos dos agrotóxicos sobre as mulheres (abortos, leite materno, etc.) pois estas estão expostas de diferentes formas, que vão desde o trabalho nas lavouras até o momento da lavagem da roupa dos que utilizam os agrotóxicos. O uso seguro dos agrotóxicos e transgênicos é um mito e um paradigma que precisa ser desconstruído.
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É fundamental a convergência de nossas ações com a Campanha Nacional Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida, ampliando os diálogos e convergências com os movimentos sociais do campo e da cidade, agregando novas redes que não estiveram presentes nesse Encontro de Diálogos e Convergências. Temos que denunciar esse modelo do agronegócio para o mundo e buscar superá-lo por meio de políticas públicas que possam inibir o uso de agrotóxicos e transgênicos, a exemplo da proibição da pulverização aérea, ou ainda direcionando os recursos oriundos dos impostos dos agrotóxicos, cuja produção e comercialização é vergonhosamente subsidiada pelo Estado. O fim dos subsídios contribuiria para financiar o SUS e a agroecologia.
Com relação aos direitos dos agricultores, povos e comunidades tradicionais ao livre uso da biodiversidade, constatamos que está em curso, nos territórios, um processo de privatização da terra e da biodiversidade manejada pela produção familiar e camponesa, povos e comunidades tradicionais. Tal privatização é aprofundada pela flexibilização do Código Florestal, que é uma grande ameaça e abre caminhos para um processo brutal de destruição ambiental e apropriação de terra e territórios pelo agronegócio.
A privatização das sementes e mudas, dos conhecimentos tradicionais e dos diversos componentes da biodiversidade vem se dando de forma acelerada, com o Estado cumprindo um papel decisivo na mediação (regulamentação e políticas públicas) dos contratos estabelecidos entre empresas e comunidades, representando sérios riscos aos direitos ao livre uso da biodiversidade.
Causa grande preocupação que as questões nacionais sobre conservação e uso da biodiversidade estejam sendo discutidas e encaminhadas sem a participação efetiva das populações diretamente atingidas, estando sujeitas a agendas internacionais como a Rio +20. Consideramos uma violação a atual forma de “consulta” sobre importantes instrumentos legais e de política concentrada em poucos atores e de questionável representatividade.
Experiências presentes neste encontro demonstram avanços e se fortalecem a partir da legitimidade de suas práticas e aproveitando as brechas existentes na legislação. Este é o caso, por exemplo, dos bancos comunitários de sementes no semiárido; da produção de sementes agroecológicas a partir de variedades de domínio público; da auto-regulação dos conhecimentos tradicionais sobre as plantas medicinais do Cerrado; da constituição de um fundo público das quebradeiras de coco babaçu através da repartição de benefícios que reconhece o conhecimento tradicional associado.
É necessário aprofundar a organização das agricultoras e dos agricultores, extrativistas, povos e comunidades tradicionais em seus territórios, de forma a fortalecer os princípios e ações de cooperativismo e suas interlocuções com as redes regionais, estaduais e nacionais como estratégia de resistência e construção
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de alternativas. A geração de alternativas econômicas é crucial neste contexto. A apropriação do debate em torno dos direitos pode facilitar e fortalecer o diálogo de nossas redes e movimentos com a sociedade civil de modo geral, de modo a visibilizar a importância dos modos de vida destas comunidades para a garantia de direitos humanos, como o direito à alimentação adequada e saudável.
Nos diálogos sobre Soberania Alimentar e Nutricional, Economia Solidária e Agroecologia, as experiências apontaram o grande acúmulo na construção de alternativas ao atual modelo agroalimentar, que garantam, de forma articulada, a soberania alimentar e nutricional, a emancipação econômica dos trabalhadores e trabalhadoras nos territórios, em especial as mulheres, a promoção da saúde pública e a preservação ambiental. Constatou-se que estas iniciativas contribuem com a construção concreta e material de propostas diferenciadas de desenvolvimento, calcadas nas realidades, cultura e autonomia dos sujeitos dos territórios e orientadas para a justiça socioambiental, a democracia econômica e o direito à alimentação adequada.
Estes acúmulos se expressam através da existência e resistência de dezenas de milhares de empreendimentos e iniciativas de Economia Solidária e Agroecologia, especialmente quando articuladas e organizadas em redes e circuitos de produção, comercialização e consumo, que aproximam produtores e consumidores e fortalecem a economia e cultura locais, num enfrentamento à desterritorialização e desigualdades de gênero, raça e etnia inerentes ao atual padrão hegemônico de produção e distribuição agroalimentar.
Constatou-se que os programas de alimentação escolar (PNAE) e de aquisição de alimentos (PAA), assim como o reconhecimento constitucional do direito à alimentação e a implantação do Sistema e Política de Segurança Alimentar e Nutricional, são conquistas importantes para a agricultura familiar e camponesa. Por outro lado, de forma paradoxal, o Estado tem apoiado fortemente o agronegócio, através da subordinação de sua ação a interesses do capital, e da falta de um horizonte e estratégia definidos de expansão do orçamento do PAA e do PNAE.
As vivências e experiências denunciam também a grande quantidade de barreiras ao acesso das iniciativas e empreendimentos de Economia Solidária e Agroecologia a políticas públicas e ao mercado. Tais barreiras se expressam em uma legislação e inspeção sanitárias e tributárias incompatíveis às realidades das/dos produtoras/es e trabalhadoras/es associadas/os, em especial no processamento e agroindustrialização de polpas, doces e alimentos de origem animal. Estas barreiras, somadas à burocratização na aquisição da Declaração de Aptidão ao PRONAF (DAP) e a uma ofensiva de setores empresariais que têm denunciado à ANVISA empreendimentos produtivos assim que estes começam a se fortalecer, têm impedido o escoamento da produção dentro e fora do município e o acesso ao PAA e ao PNAE. O direito à organização do trabalho e da produção de forma associada só existirá com a conquista de garantias e condições legislativas,
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tributárias e de financiamento que sejam justas.
Os diálogos apontaram também a luta pelo consumo responsável, solidário e consciente como um campo importante de convergência entre as redes e movimentos e como um desdobramento concreto deste Encontro, através da construção conjunta de um diálogo pedagógico com a sociedade, tanto denunciando os impactos e danos dos alimentos vindos do agronegócio e contaminados com agrotóxicos, o que exige a regulação da publicidade de alimentos, quanto anunciando as alternativas disponíveis na Agroecologia e na Economia Solidária.
Em busca de novos caminhos
Os exercícios de diálogos que estamos realizando há dois anos e os excelentes resultados a que chegamos em nosso encontro reiteram a necessidade de fortalecermos nossas alianças estratégicas e renovarmos nossos métodos de ação convergente. As experiências que ancoraram nossas reflexões deixam claro que os temas que identificam as bandeiras de nossas redes e movimentos integram-se nas lutas do cotidiano que se desenvolvem nos campos e nas cidades contra os mecanismos de expropriação impostos pelo capital e em defesa dos territórios. Evidenciam, assim, a necessidade de intensificarmos e multiplicarmos as práticas de diálogos e convergências desde o âmbito local, onde as disputas territoriais materializam-se na forma de conflitos socioambientais, com impacto na saúde das populações, até níveis regionais, nacionais e internacionais, fundamentais para que as causas estruturais do atual modelo hegemônico sejam transformadas.
A natureza local e diversificada de nossas lutas vem até hoje facilitando as estratégias de sua invisibilização pelos setores hegemônicos e beneficiários do modelo. Esse fato nos indica a necessidade de atuarmos de forma articulada, incorporando formas criativas de denúncia, promovendo a visibilidade dos conflitos e das proposições que emergem das experiências populares.
Uma das linhas estratégicas para a promoção dos diálogos e convergências é a produção e disseminação de conhecimento sobre as trajetórias históricas de disputas territoriais e suas atuais manifestações. Nesse sentido, as alianças com o mundo acadêmico devem ser reforçadas também como parte de uma estratégia de reorientação das instituições do Estado, no sentido destas reforçarem as lutas pela justiça social e ambiental. Estimulamos a elaboração e uso de mapas que expressem as diferentes dimensões das lutas territoriais pelos seus protagonistas como uma estratégia de visibilização e articulação entre nossas redes e movimentos. O Intermapas já é uma expressão material das convergências.
Outra linha estratégica fundamenta-se em nossa afirmação de que a comunicação é um direito das pessoas e dos povos. Reafirmamos a importância, a
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necessidade e a obrigação de nos comunicarmos para tornar visíveis nossas realidades, nossas pautas e nosso projeto de desenvolvimento para o país. A mudança do marco regulatório da mídia é condição para a democratização dos meios de comunicação. Repudiamos as posturas de criminalização e as formas de representação que a mídia hegemônica adota ao abordar os territórios, modos de vida e lutas. Contestamos a produção da invisibilidade nesses meios de comunicação. O Estado deve se comprometer a financiar nossas mídias, inclusive para que possamos ampliar projetos de formação de comunicadores e de estruturação dos nossos próprios veículos de comunicação. As mídias públicas devem ser veículos para comunicar aprendizados de nossas experiências, proposições e campanhas. Por uma comunicação livre, democrática, comunitária, igualitária, plural e que defenda a vida acima do lucro.
Nossos diálogos convergem também para a necessidade do reconhecimento das mulheres como sujeito político, a importância de sua auto-organização e a centralidade do questionamento da divisão sexual do trabalho que desvaloriza e separa trabalho das mulheres em relação ao dos homens, assim negando a contribuição econômica da atividade doméstica de cuidados e a produção para o autoconsumo. Convergimos na compreensão do sentido crítico do pensamento e ação feministas para ressignificar e ampliar o sentido do trabalho e sua centralidade para a produção do viver.
A apropriação do feminismo como ferramenta política contribuirá para recuperar e visibilizar as experiências, os conhecimentos e as práticas das mulheres na construção da agroecologia, da economia solidária, da justiça ambiental e para garantir sua autonomia econômica.
Mas a história também mostra que o permanente exercício da violência dos homens contra as mulheres é um poderoso instrumento de dominação e controle patriarcal que fere a dignidade das mulheres e impede a conquista de sua autonomia, e as exclui dos espaços de poder e decisão. A violência contra as mulheres não é agroecológica, não é solidaria, não é sustentável, não é justa. Por isso é fundamental que as redes que estão organizando o Encontro Nacional de Diálogos e Convergências assumam a erradicação da violência contra as mulheres como parte de um novo modelo de produção e consumo, que deve ter como um eixo fundamental a construção de novas relações humanas baseadas na igualdade.
O papel do Estado democrático é o de construir um país de cidadãos e cidadãs, promover e defender a organização da sociedade civil e de estabelecer com ela relações que permitam à sociedade reconhecer nas instituições a expressão do compromisso com o público e com a sustentabilidade. Esse princípio é contraditório com qualquer prática de criminalização dos movimentos e organizações que lutam por direitos civis de acesso soberano aos territórios e seus recursos.
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As redes e movimentos promotores deste Encontro saem fortalecidos e têm ampliadas suas capacidades de expressão pública e ação política. Estamos apenas no início de um processo que se desdobrará em ambientes de diálogos e convergências que se organizarão a partir dos territórios, o lugar onde nossas lutas se integram na prática.
Salvador, 29 de setembro de 2011 Para concluir este trabalho sugiro a seguinte reflexão:
“Para mim, ao repensar os dados concretos da realidade, sendo vivida, o pensamento
profético, que é também utópico, implica a denúncia de como estamos vivendo e o anúncio
de como poderíamos viver. É um pensamento esperançoso, por isso mesmo. É neste
sentido que, como o entendo, o pensamento profético na apenas fala do que pode vir, mas,
falando de como está sendo a realidade, denunciando-a, anuncia um mundo melhor. Para
mim, uma das bonitezas do anúncio profético está em que não anuncia o que virá
necessariamente, mas o que pode vir, ou não. O seu não é um anúncio fatalista ou
determinista. Na real profecia, o futuro não é inexorável, é problemático. Há diferentes
possibilidades de futuro. Reinsisto em não ser possível anúncio sem denúncia e ambos sem
o ensaio de uma certa posição em face do que está ou vem sendo o ser humano. O
importante, penso, é que este ensaio seja em torno de uma ontologia social e histórica.
Ontologia que, aceitando ou postulando a natureza humana como necessária e inevitável,
não a entende como um a priori da História. A natureza humana se constitui social e
historicamente” (FREIRE, 2000, p. 54).
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