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Texto Completo SBHC
Pensar a Farmácia e Odontologia em São Paulo por um viés de Gênero
Isabella Bonaventura de Oliveira 1
Introdução
A pesquisa de mestrado – em andamento - pretende analisar as estratégias
empreendidas farmacêuticos e dentistas paulistas a fim de se estabelecerem enquanto
campos profissionais separados da medicina, no contexto da primeira república. Ao longo
do século XIX tais áreas – a farmácia desde 1832 (PIMENTA; EDNÁ, 2008) e
odontologia após 1879 (MELO; MACHADO, 2009) – ocupavam a posição de cursos
anexos das faculdades de medicina, não dispondo, então, de um espaço específico de
formação.
Este texto abordará o papel da Sociedade Farmacêutica Paulista e de seu
periódico oficial - a Revista Farmacêutica - na criação de uma identidade profissional,
entre 1895 e 1898. Conforme discutiremos a seguir, este grupo de associados envolveu-
se diretamente na criação do primeiro curso farmacêutico do estado: a Escola de
Farmácia (1898)2. Tal instituição contou com a presença de alunas desde seus anos
iniciais3 e diversos periódicos de época veicularam a conveniência desta escola à
instrução feminina, sendo assim, buscamos discutir a institucionalização da Farmácia em
São Paulo enquanto processo histórico atravessado por concepções de gênero e poder
(SCOTT, 1989).
No início da Primeira República, a educação e a saúde adquiriram relativa
centralidade e tornaram-se elementos constituintes do Estado nacional: “Na legislação
paulista daquele momento, o acesso à instrução elementar e à saúde foi visto como direito,
em virtude de seu caráter regulador para a sociedade e de seu papel na conservação da
1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), sob
a orientação da Profª Drª Márcia Regina Barros da Silva. Bolsista CAPES. E-mail:
isa.bonaventura@gmail.com 2 Esta instituição de ensino anexou em 1903 os cursos de odontologia e obstetrícia, tornando-se: Escola de
Farmácia, Odontologia e Obstetrícia de São Paulo. 3 Segundo dados publicados pela Revista Farmacêutica e Odontológica, em relação às matriculas realizadas
até março de 1903 (Escola, 1903): dos 166 alunos inscritos em farmácia, 25 eram mulheres (15%) e em
odontologia dentre os 46 matriculados, havia 11 alunas (23%).
existência e de um mínimo de bem-estar coletivo.” (SILVA, 2014, p.35). Em diálogo com
esse projeto político podemos observar, durante as décadas finais do século XIX e as
iniciais do século XX, a multiplicação de espaços (coordenados pelo poder estatal) que
gerissem as demandas da saúde pública e formassem profissionais especializados4.
Nesse momento, grupos de farmacêuticos paulistas mobilizaram-se para pleitear
um lugar de fala que, através da linguagem científica, se mostrasse capacitado a atuar
junto ao Estado republicano em ações de saúde pública e higiene. Em diálogo com esta
proposição a Sociedade Farmacêutica Paulista foi fundada em 1894. Essa associação
publicou, a partir de maio de 1895, seu periódico oficial: a Revista Farmacêutica 5 (1895
– 1914), que se dispunha a promover a sociabilidade, troca de experiências e mobilizações
políticas entre farmacêuticos paulistas da capital e do interior.
Por meio de uma abordagem histórica, desconfiaremos da estabilidade que a
Farmácia, suas associações e instituições de ensino dispõem atualmente, apresentando-se
ou como resultado linear e progressivo das políticas modernizadoras da Primeira
República (ações sociais), ou enquanto atividades que resultam de um olhar objetivo6 – e
neutro – sobre uma ‘natureza’ já existente (atividade científica) 7. Ao longo deste percurso
desejamos demonstrar que, na passagem para o século XX, ainda não está claro o que é
o Farmacêutico e quais as suas responsabilidades frente à saúde pública.
4 Exemplos de espaços científicos e de saúde pública criados nesse período: o Hospital da Santa Casa de
Misericórdia (1885), o Serviço Sanitário de São Paulo (1892), a Sociedade de Medicina e Cirurgia de São
Paulo (1895), a inauguração da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo (1913) e a Escola Paulista
de Medicina (1933) (SILVA, 2011). 5 A Revista Farmacêutica, foi fundada em 1895 pela Sociedade Farmacêutica Paulista e sofreu duas
interrupções: a primeira entre maio de 1899 e janeiro de 1902, e a segunda entre janeiro de 1903 a janeiro
de 1905. Ao longo desse segundo intervalo, foi lançada a Revista Farmacêutica e Odontológica (1903 a
1904) que resultou de uma parceria entre a Sociedade Farmacêutica e grupos de dentistas paulistas. Após a
criação da Sociedade Odontológica Paulista (1905) os dentistas e farmacêuticos reunidos em Sociedades
passaram a manter periódicos distintos: foi criada a Revista Odontológica Paulista que circulou entre 1905
e 1911 e a Revista Farmacêutica foi retomada, perdurando até 1914. 6 Isabelle Stengers destaca que o conceito de objetividade – utilizado para definir e reunir os “verdadeiros
cientistas” - é vazio, pois ele só se explica a partir de seu oposto: a opinião – considerada irracional,
subjetiva e inadequada à formação de conhecimento: “En fait, J’oserais l’affirmer, la seule chose qui est
suceptible de réunir des scientifiques appartenant à des domaines aussi différents n’est autre que la
définition de l’opinion comme irrationnelle, subjective, influenciable, prisionière des illusions et des
apparences.”. (STENGERS, 2013, p.35). 7 Em diálogo com Bruno Latour consideramos que: “Se ao invés de ligarmos os pobres fenômenos às
amarras sólidas da natureza e da sociedade, deixarmos que os mediadores produzam as naturezas e as
sociedades, teremos invertido o sentido das transcendências modernizadoras. Naturezas e sociedades
transformam-se nos produtos relativos da história” (LATOUR, 2009, p. 126).
Observaremos também como os grupos que buscavam uma identidade8 e
legitimidade científica para os farmacêuticos – nos anos iniciais da República -
dialogavam com as concepções de gênero do período, que advogavam a existência de
aptidões restritas - e naturalizadas - para mulheres e homens9 (LAQUEUR, 2001). Tal
noção baseava-se muitas vezes em estudos médicos que defendiam a existência de uma
dualidade intransponível entre os sexos, segundo a qual os homens seriam dotados de
virilidade, ousadia e liderança, enquanto as mulheres se definiriam por traços maternais,
altruístas e voltados à subordinação (Rohden, 2009).
Sendo assim, os discursos de estímulo à presença de alunas na Escola de Farmácia
não serão considerados como a resultante de um “progresso histórico”, argumento
segundo o qual as mulheres – assim identificadas - teriam paulatinamente acesso a
profissões já cristalizadas10. Analisaremos de que maneira a presença de alunas na Escola
de Farmácia atuou e promoveu debates em relação aos saberes, práticas e objetos que
povoariam a identidade profissional do farmacêutico/a na primeira república.
Em diálogo com as críticas à objetividade cientifica empreendida pelas feministas
Donna Haraway (1995) e Isabelle Stengers (2013), buscaremos analisar os artigos
publicados nos anos iniciais da Revista Farmacêutica, segundo uma perspectiva situada,
perseguindo, assim, as “conversas e conexões não inocentes” (Haraway, 1995, p. 11)
estabelecidas entre farmacêuticas/as, médicos, medicamentos, sociedades científicas e
periódicos. Para tanto, nosso desafio será pensar com os agentes históricos envolvidos
não os considerando enquanto grupos homogêneos, coerentes e dóceis, mas sim enquanto
singularidades complexas que ora reuniram-se, ora distanciaram-se a fim de criarem
espaços de atuação, ensino e discurso.
8 Consideramos identidade o conjunto de práticas e saberes que se ligam, segundo uma lei de verdade, com
o objetivo de delimitar quem pode transitar dentro de uma determinada comunidade, assim como, quais
pessoas e grupos serão excluídos. (FOUCAULT, 1985). 9 Thomas Laqueur (2001) discute historicamente as diferentes concepções sobre corpos, prazeres e
reprodução. O autor argumenta que apenas após as décadas finais do século XVIII, e principalmente ao
longo do século XIX, a ‘natureza’ do sexo foi evocada como marcador de diferenças entre ‘homens’ e
‘mulheres’, a fim de estabelecer qual seria o papel de cada um na nova ordem social. Ao longo dessa análise,
o autor pontuou que o acúmulo de ‘evidências’ biológicas, sociais e comportamentais tinham como objetivo
comprovar que a ‘mulher’ era completamente diferente do ‘homem’. 10 Tal abordagem ‘progressista’ é criticada por Vinciene Despret e Isabelle Stengers (2011, p.21): “Comme
si les droits des femmes ou des homosexuels/les étaient tombés de l’arbre de notre civilisation à la manière
d’une pomme lorsqu’elle est mure. ”
Farmácia e Ciência – Delinear um espaço de atuação da República
Com o objetivo de promover alianças entre profissionais da capital paulista e do
interior, a Revista Farmacêutica, em seu editorial, enalteceu a importância de um
posicionamento coletivo para se obter os resultados desejados (EDITORIAL, 1895, p.1):
Como foi que os nossos colegas d’além mar [europeus] conseguiram elevar a
nossa classe? Instruindo-se, formando associações e criando revistas
profissionais. Trataremos, pois, de imitá-los e conseguiremos certamente o
nosso desideratum [desejo]. (...) Como associados, já temos sido atendidos
com imediatas e necessárias soluções pelos altos poderes do Estado, e aquilo
que assim conseguimos talvez não nos fosse possível alcançar por meio de um
simples pedido individual.
Desde seu primeiro número, a Revista se apresentou como espaço destinado ao
diálogo entre colegas de profissão, que compartilhariam experiências sobre a
manipulação de medicamentos e as relações com outros profissionais na área da saúde.
Ao longo dos artigos, a prática farmacêutica era citada como um saber-fazer científico e
que deveria ser partilhada entre os assinantes (D’Azir, 1895a, p.14):
De mais, a nossa classe, meus amigos, ressentia-se mesmo da falta de um
orgam que a ela se dedicasse, e precisavam os farmacêuticos de São Paulo de
um jornal que levasse de um lugar a outro, de cidade em cidade, assim como
que uma visita que um colega deve fazer a outro colega, um recado, uma
notícia, espalhando por esse modo, - único possível – entre todos, o fruto do
trabalho científico e prático e cada um.
Sendo assim, publicavam-se desde “práticas corriqueiras” como a preparação e
conservação de um xarope, pílula ou limonada gasosa (veículos de ingestão dos
remédios), até a apresentação de compostos desconhecidos e que poderiam ser
incorporados pelo farmacêutico em seu estabelecimento. Por meio da publicação e
divulgação deste periódico, a Sociedade visou definir como os farmacêuticos deveriam
se relacionar com as substâncias, instrumentos de trabalho e plantas, a fim de criarem e
reproduzirem medicamentos que beneficiassem a saúde coletiva.
Ao longo destes artigos, os associados buscaram estabelecer a Farmácia como
campo disciplinar específico e atuante no contexto republicano. Nesse momento, a prática
desempenhada pelo farmacêutico foi descrita como indissociável de um conjunto de
fundamentos teóricos importados da química e da botânica. Através do recurso às
fórmulas químicas, cálculo de proporções e descrições da flora, delimitava-se, também,
quais seriam as práticas de investigação legítimas e os objetos de interesse do
farmacêutico.
Tal movimento explicita-se em Prática Farmacêutica (maio de 1895), artigo no
qual Ignacio Puiggari11 descreveu os procedimentos para obtenção de uma “limonada
gazoza de citrato de magnésia”. Puiggari iniciou seu artigo estimulando os colegas de
profissão a romperem com o silêncio e publicarem suas técnicas e estudos na Revista,
contribuindo, assim, com a formação de um saber “sólido” na área de Farmácia: “Não
podem todos fazer grandes descobertas, mas mesmo como simples operários, não
devemos deixar de colocar nossa pequena pedra para o grandioso edifício da ciência. ”
(PUIGGARI, 1895, p.11).
Em diálogo com Isabelle Stengers (2013) e Donna Haraway (1995), desconfiamos
desta concepção de progresso científico segundo a qual o farmacêutico (homem-cientista)
seria um observador distanciado, que apenas revelaria sinais (ideias) já existentes na
natureza12. Segundo as autoras, essa noção progressista carrega consigo o dualismo
segundo o qual em uma extremidade estaria o cientista - ser “não marcado”13 -, possuidor
de um ponto de vista privilegiado, distanciado, sem hesitações, vinculado ao masculino e
ao universal – e, na outra, encontrar-se-iam os seres “marcados” – que se aliariam ou
misturariam com os objetos de estudo, subjetivos, femininos e hesitantes.
Em seu artigo, Puiggari defende que os farmacêuticos deveriam compartilhar suas
experiências na Revista, contribuindo, assim, na formação de uma identidade profissional
engajada com as noções de progresso científico linear e objetivo 14. Entretanto, nesta
11 Ignácio Puiggari foi o primeiro diretor da Revista Farmacêutica, atuando em parceira com o também
farmacêutico Rodrigues de Andrade. Puggari foi presidente da Sociedade Farmacêutica Paulista entre
dezembro de 1895 e dezembro de 1896. 12 O mundo nem fala por si mesmo, nem desaparece em favor de um senhor decodificador. Os códigos do
mundo não jazem inertes, apenas à espera de serem lidos. O mundo não é matéria-prima para humanização
(...) O mundo encontrado nos projetos de conhecimento é uma entidade ativa. Na medida em que uma
explicação científica tenha sido capaz de se relacionar com esta dimensão do mundo como objeto de
conhecimento, um conhecimento fiel pode ser imaginado e pode nos solicitar. Mas nenhuma doutrina
específica de representação ou decodificação ou descoberta é garantia de nada. (HARAWAY, 1995, p.37). 13 Segundo Despret e Stengers (2011, p.34) “Il y a um genre ‘non-marqué’, qui se présente comme ‘normal’,
et par contraste avec lequel se définit le ‘genre marqué’. La différence entre marqué et non-marqué se
trouve chaque fois qu’une catégorie est ‘invisible’, ce qu’elle désigne devenant synonyme d’étalon
permettant de caractériser ce qui ‘marque’ ceux et celles qui s’écartent de la norme. Ainsi la catégorie
‘homme’ est considérée comme un universel, le fait qu’elle ne désigne en fait que 45% de l’humanité est
invisibilisé”. 14 Haraway chama essa objetividade “sem corpo” do cientista de ‘truque de deus’, permitindo ao
pesquisador – vinculado ao masculino - ver tudo como se não possuísse um corpo, ou seja, sem
comprometer-se ou situar-se. (HARAWAY, 1995, p.20).
mesma publicação, quando o autor descreveu os procedimentos para obtenção de uma
“limonada gazoza de citrato de magnésia” (PUIGGARI, 1985, p.12), percebemos que não
há espaço para um “olhar distanciado” no laboratório farmacêutico, pois esse profissional
necessita comunicar-se com as substâncias e propor soluções à cada nova situação que
lhe aparece (Idem):
Coloca-se na garrafa a solução ácida de citrato de magnésia devidamente
adoçada, juntam-se quatro gramas de bi-carbonato de soda, arrolha-se e
amarra-se a tampa com rapidez. São evidentes as dificuldades que apresenta
este sistema, pois, logo que o bi-carbonato se põe em contanto com o líquido
ácido, desenvolve-se rapidamente o gaz ácido carbônico, e é durante essa
efervescência que o operador deve comprimir o gaz, tapando a garrafa com
uma rolha de cortiça e amarrando-a imediatamente. Esta operação apresenta
sempre dificuldades, por serem poucos os que tem a destreza suficiente; o
menor descuido, a mais insignificante imperfeição da rolha, dão como
resultado escapar-se o líquido impetuosamente da garrafa molhando a mesa de
trabalho e o operador, que fica em posição tristemente ridícula. É preciso,
portanto, recomeçar o trabalho, dando-se consequentemente a perda de tempo
e o desperdício de materiais. As manipulações do farmacêutico devem ser
feitas sempre com firmeza sem receio de eventualidades, dominando a
substância em vez de ser por elas dominado (p.12).
Na descrição realizada por Puiggari, percebemos que o farmacêutico só consegue
efetivar seus estudos no momento em que estabelece relações concretas com seus objetos,
manipulando-os (por meio de diluições, saturações, fervura, cortes) e traduzindo-os
(LATOUR, 2001) em fórmulas e receituários para uso geral (importados da química).
Por meio do artigo Breves Considerações sobre a Aroeira (Maio de 1895) de Luís
de Queiroz15, discutiremos a mobilização de alguns métodos importados da botânica
(descrição e classificação das plantas e suas partes) no estabelecimento de uma identidade
científica para o farmacêutico na república.
Esta publicação descreveu características morfológicas da Schinus
Terebenthifolius (Aroeira-vermelha) e apontou as potencialidades terapêuticas e
industriais que poderiam ser exploradas pelo farmacêutico. Nesse sentido, o autor
destacou os produtos terapêuticos advindos da aroeira que eram fabricados em seu próprio
laboratório (QUEIROZ, 1895, p.11): “Aqui em São Paulo, distintos clínicos, a meu
pedido, têm empregado a essência, o hydrolato e o xarope de aroeira, preparados em meu
laboratório, em diversos casos de bronchites, cystites, etc., e todos são unânimes em
15 Luiz de Queiroz foi outro importante membro da Sociedade Farmacêutica Paulista, foi presidente desta
associação entre abril e dezembro de 1895 e dirigiu a Revista entre dezembro de 1895 e dezembro 1896.
proclamar os seus bons efeitos. ”.
Ao longo dos artigos publicados na Revista, os associados buscaram estabelecer
a Farmácia como campo disciplinar (FOUCAULT, 2014) específico e atuante no contexto
republicano. Para tanto, destacava-se que o recurso a fundamentos teóricos importados
da química e da botânica propiciaria a produção de medicamentos eficazes na manutenção
da saúde coletiva, delimitando, assim, para quais objetos e práticas os farmacêuticos
deveriam orientar seu interesse.
Em diálogo com as publicações citadas acima e com a bibliografia, desejamos
propor uma visão diferenciada deste processo (aparentemente linear) de
institucionalização da Farmácia em São Paulo. Consideramos que, nesse momento, o que
está em jogo não é somente a busca desinteressada pela verdade na produção dos
medicamentos, mas sim os caminhos pelos quais esses remédios seriam obtidos. A
escolha de “critérios de demonstração” e “regras de validação” (BENSAUDE-
VINCENT; STENGERS, 1993, p.13) preconizados pela química e botânica, seria um
passo importante nesta articulação política que visava criar uma imagem do farmacêutico
alinhada às propostas de modernização nacional.
A Revista Farmacêutica não veiculou seus discursos em um espaço vazio, ou seja,
outros agentes e significados estavam organizados e não poucas vezes, competiam por
espaço e preponderância. Nesse sentido, destaca-se a controversa relação entre os
farmacêuticos paulistas e os médicos, pois embora os primeiros buscassem criar espaços
de atuação desvinculados dos últimos, observamos também momentos de proximidade e
a formação de alianças. 16
Historicamente a Medicina dispunha de uma posição superior à Farmácia, pois ao
analisarmos a hierarquização das artes de curar no império, percebemos que o
farmacêutico estava subordinado ao médico – que ocupava a posições políticas mais
relevantes. Entretanto destaca-se que (VELLOSO, 2007, p.109):
O fato de ser reservada uma sessão de farmácia na Academia Imperial de
Medicina, considerada como espaço de ciência, conferia um status ao
farmacêutico que não tinham as categorias de sangrador, curandeiro, parteira,
exercidas geralmente por escravos, africanos livres ou forros do século XIX.
16 Na medida que alguns médicos participaram de reuniões da Sociedade Farmacêutica Paulista e o Boletim
da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo dispôs de vasta propaganda na sessão Crônicas da
Revista Farmacêutica
Sendo assim, embora o farmacêutico possuísse um status inferior ao médico, o
primeiro ainda dispunha de uma posição social preponderante em relação às demais
práticas de cura, vinculadas aos setores populares. Os associados utilizaram-se desta
organização hierárquica na escolha de seus aliados, pois os charlatões eram mencionados
como pobres, analfabetos e imigrantes17, enquanto a medicina era citada como aliada da
farmácia (D’AZIR, 1895b, p.60):
Uma boa farmácia, isto é, a preparação conscienciosa dos medicamentos, sua
qualidade irreprochável e uma dosagem de perfeita exatidão constituem
condições indispensáveis para a eficácia de qualquer medicina; e se esta
condição de boa farmácia não for preenchida, os esforços do médico serão
nulos – seja qual for o seu saber, seja qual for a sua experiência.
Entretanto vincular-se à medicina não seria suficiente para que os associados
atingissem seu objetivo de criar um espaço de ensino e um campo profissional autônomos,
pois as atribuições dos farmacêuticos eram citadas pelos médicos como práticas
acessórias, colocando o primeiro na posição de auxiliar ilustrado.
Diversos artigos da Revista criticaram a desvalorização do farmacêutico em
relação ao médico, em O Estado da Pharmácia entre nós (setembro de 1895), por
exemplo, criticou-se a frequência com que os formados em farmácia migravam para os
cursos médicos, como forma de ascensão social. O autor considera essa situação uma
consequência da subordinação institucional do farmacêutico ao médico nos órgãos
sanitários, em postos militares18, assim como, nas faculdades de Medicina, que embora
possuíssem o curso anexo de farmácia: “negam-lhe quando formados [aos farmacêuticos]
a aspiração muito legítima de concorrer a qualquer das cadeiras que constituem o seu
curso! ” (ESTADO, 1895, p.90).
Frente a este quadro, os associados defendiam a criação de um espaço de atuação
específico, que embora aliado aos setores médicos, dotasse os farmacêuticos de maior
independência, poder político e reputação científica. Desde a criação da Sociedade
Farmacêutica em maio de 1894, a criação de uma Escola de Farmácia autônoma era citada
17 “A pharmácia em nosso pais, explorada gananciosamente por alguns estrangeiros analfabetos e
aventureiros que aqui vem tentar fortuna, deixou de ser uma profissão scientífica e nobre para se transformar
em um bazar, uma quitanda ou uma taberna.” (UM APELO, 1896, p.72). 18 “O médico começa a sua carreira no exército ou na armada com posto superior ao do pharmaceutico e
pode aspirar as mais altas graduações, ao passo que este é pela lei obrigado a conservar-se sempre em
nível inferior, por maiores que sejam os seus serviços profissionais. (ESTADO, 1895, p.90).
como uma necessidade e figurava entre os principais objetivos dessa associação.
Desejava-se que essa instituição de ensino voltasse seu currículo ao ensino de química e
botânica, através das quais o farmacêutico estaria habilitado a exercer sua função política
junto ao Estado republicano.
Escola de Farmácia (1898) por uma perspectiva de gênero.
Diferentes artigos publicados entre 1895 e 1898 criticavam o currículo dos cursos
ministrados nas escolas Médicas da Bahia e do Rio de Janeiro. Conforme observaremos
em Escola de Pharmácia (outubro de 1895), os associados defendiam que o estudante
dessa área deveria possuir uma formação mais detalhada em química, para poder, assim
administrar melhor suas necessidades práticas (ESCOLA, 1895, p.111):
Em todas elas [escolas de farmácia existentes] o ensino é meramente teórico e
quase que de nada vale por isso mesmo, e se ele é incompleto em Minas, nos
outros dois lugares tem ainda o estudo da Pharmácia a desvantem de ser feito
em comum com o da Medicina, de sorte que a chímica, por exemplo, que é a
ciência indispensável por excelência, ciência que constitui por assim dizer a
alma, a vida e o tudo do farmacêutico, essa é horrivelmente sacrificada! O
médico precisa de chimica médica e teórica e isto lhe basta muito; o
pharmacêutico ainda quer e tem necessidade da chimica prática, da chimica
industrial e analítica: as chimicas de laboratório.
A fundação de uma faculdade seria um passo estratégico na formação e
consequente propagação de profissionais que agiriam segundo uma identidade
profissional previamente delimitada. A intenção era normatizar a formação das futuras
gerações de farmacêuticos, que seriam treinados para dominarem seus objetos segundo
critérios de objetividade (Stengers, 2013), sem hesitações ou discordâncias (ESCOLA,
1898a, p.87): “Só pela escola teremos entrada franca no majestoso templo da ciência, só
por ela ensinaremos os nossos discípulos a serem mestres: seremos grandes, respeitados
e veremos, orgulhosos, a ciência pharmaceutica progredir no Brasil. ”.
Embora a separação entre o curso de Farmácia e o de Medicina fosse um dos
principais projetos da Sociedade, a fundação da Escola de Farmácia efetivou-se através
de alianças com alguns médicos paulistas. Dentre os quais destaca-se a figura de Braulio
Gomes, considerado pelos próprios farmacêuticos como grande interventor pela fundação
da Escola de Farmácia19. Em reunião realizada em outubro de 1898 no prédio da Câmara
Municipal, a criação da Escola foi discutida e aprovada, através das atas publicadas na
Revista percebemos que os farmacêuticos responsáveis pelo projeto inicial da Escola e
por sua revisão eram todos membros da Sociedade Farmacêutica e autores frequentes em
sua Revista, os professores que seriam contratados também eram – em sua maioria –
associados (ESCOLA, 1898d). A grade curricular formulada para a Escola privilegiou o
ensino de química, botânica, matéria médica, contando também com algumas noções de
física e legislação farmacêutica.
Nesse sentido, observamos que as disciplinas e a concepção de Farmácia que
seriam ensinadas às futuras gerações correspondiam aos anseios e critérios de
cientificidade propagados pela Revista Farmacêutica desde 1895. A partir das discussões
e projetos de fundação da Escola de Farmácia, o controverso processo de
institucionalização desta profissão se misturou a mais um elemento: as concepções e
discussões de gênero do período. Pois desde as primeiras reuniões para criação da Escola
notamos um estímulo para que as jovens em busca de instrução procurassem se integrar
ao corpo de estudantes da nova Escola de Farmácia, nesse sentido, o médico Amâncio
de Carvalho na reunião de outubro de 1898 (ESCOLA, 1898d, p.101):
Acrescentou que é seu desejo que a nova escola diplome homens que
conheçam bem a sua profissão e as responsabilidades que delas recorrem e que
lhes cabem, ocupando-se então da utilidade de serem aproveitadas senhoras,
que considera bastante escrupulosas e honestas, para exercer a profissão de
farmacêutica, preconizando com entusiasmo essa ideia que presidiu a fundação
da escola.
Carvalho caracterizou as futuras estudantes como “escrupulosas” e “honestas”, citando-
as como agentes que ajudariam na instalação da Escola, e que, sobretudo, atuariam na
perpetuação das concepções de prática farmacêutica e ciência preconizadas por seus
fundadores. Ainda em relação à sessão de outubro de 1898, a presença de alunas na Escola
de Farmácia também foi estimulada por Bráulio Gomes (Ibid., p.141):
A Escola de Farmácia pode também proporcionar à mulher brasileira mais uma
aptidão à sua inteligência, mais um ramo de vida às suas justas aspirações. A
eterna e boa companheira dos nossos dias, que já nos correios e nos telefonos
tem tido ocasião de provar as suas aptidões, pode também aproveitar a
19 “Um aliado cheio de acendrado devotamento, pôs ao serviço de nossa causa todo o seu prestígio, todas
as luzes de seu talento e toda a sua atividade e, a esse aliado o Dr. Bráulio Gomes é a classe pharmaceutica
devedora de uma gratidão eterna. ” (ESCOLA, 1898d, p.137).
profissão de farmacêutico colaborando conosco nos progressos do espírito
humano. Quem melhor, pergunta o orador, poderia adoçar uma pílula.
Em primeiro lugar, consideremos necessário discutir a emergência de um discurso
dedicado a justificar a aptidão das mulheres à profissão farmacêutica. Conforme discutido
acima, a criação da Escola foi um passo estratégico na formação e consequente
propagação de uma identidade profissional permeada por critérios de validação
científicos. Ao longo deste processo, observamos que as categorias de objetividade e
neutralidade foram evocadas como elementos comuns, capazes de agregar os
farmacêuticos formados e diferenciá-los dos charlatões.
Segundo Donna Haraway (1995), Isabelle Stengers e Vinciene Despret (2011) as
mulheres eram/são classificadas pelos cientistas como aquelas que possuiriam uma
perspectiva parcial e, portanto, não conseguiriam formular discursos segundo um ponto
de vista universal e objetivo. Essas autoras destacam que tal concepção não poucas vezes
foi/é mobilizada para interditar às mulheres o acesso ao proeminente lugar do cientista –
vinculado ao masculino.
É nesse sentido que os discursos de fundação da Escola necessitaram explicar –
ou justificar – porque seria desejável ter alunas em uma instituição de ensino voltada ao
desenvolvimento da ciência segundo “saberes objetivos” e valores de progresso. A fala
de Bráulio Gomes, por exemplo, defendeu que as habilidades mobilizadas na gestão do
ambiente doméstico poderiam ser úteis à prática farmacêutica, enquanto, Amâncio de
Carvalho destacou os benefícios que os bons princípios e a “moral feminina” trariam ao
exercício da farmácia. Ambos buscaram tornar inteligível a existência de uma
farmacêutica – que acima de tudo ‘seria mulher’20 – em um lugar de fala que está se
institucionalizando científica e politicamente na República. Para tanto, os argumentos dos
fundadores da Escola repetem características consideradas adequadas às mulheres:
dedicação à família, honestidade e cuidado, para explicar qual seria a contribuição delas
(enquanto grupo homogêneo e dotado de uma essência) à Escola.
Estudos como os de Mônica Schpun nos permitem observar de que maneira a
20 Em diálogo com Judith Buttler consideramos que “Declarar que o gênero é construído não é afirmar sua
ilusão ou artificialidade, em que se compreende que esses termos residam no interior de um binário que
contrapõe como opostos o ‘real’ e o ‘autêntico’. (...) O Gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto
de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para
produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser.” (BUTLER, 2015 p.69)
modernização e urbanização em São Paulo – na passagem para o século XX -
contribuíram para a formação de uma nova visão sobre a mulher na sociedade. Tal
modificação ficaria mais explícita nas jovens, que buscariam a obtenção de diplomas e
formariam o público leitor das Revistas Femininas, como A Mensageira21. Schpun
pondera que embora a sociabilidade urbana, a circulação de revistas e folhetins
contestassem um passado agrário e conservador que deveria ser abandonado, as
concepções de família e casamento conservaram sua importância sob novas bases
materiais. Nesse sentido, argumenta que não poucas vezes a jovem de classe média e sem
dote pleiteava um diploma para obter um bom casamento (SCHPUN, 1997, p.38).
Os discursos de estímulo à formação de moças na Escola não se restringiram às
páginas da Revista Farmacêutica, pois alguns discursos da sessão de instalação da Escola
em fevereiro de 1899 foram publicados no Estado de S. Paulo e na Mensageira. A
presença destes discursos em outras publicações paulistas demonstra não apenas a
existência da propaganda dessa recém fundada instituição, mas, também que o projeto de
expandir o ensino farmacêutico às mulheres era algo levado à sério no plano social e que
efetivamente circulou na imprensa do período. Sendo assim, em maio de 1899, A
Mensageira divulgou na sessão Notas Pequenas, a solenidade de instalação da Escola
(realizada em fevereiro de 1899), assim como, as matérias que comporiam o curso e seu
corpo de professores. Esta publicação também fez votos de que: “Da Escola de Pharmacia
só saiam diplomadas senhoras que honrem em todos os sentidos o nome da mulher
brasileira. ” (SELEÇÃO, 1899, p.47).
Os discursos que citavam a presença de alunas na Escola estabeleciam uma
conexão entre mulheres-ciência-virtude-família-farmácia-delicadeza visando alinhar
estas diferentes esferas por meio de normas de coerência de gênero (BUTLER, 2015),
segundo as quais, o exercício dos caracteres maternais seria a principal contribuição
político-social das mulheres: quando Bráulio Gomes descreveu o campo de atuação das
futuras farmacêuticas, a manipulação de medicamentos não foi descrita como
procedimento químico e voltado ao domínio das substâncias, mas foi comparada a
preparação de um doce. Gomes também citou a farmacêutica como colaboradora “nos
21 Essa era uma revista literária voltada ao público feminino das classes alta e média urbana, e que: “A
capacidade aglutinadora de Presciliana [diretora] fez daquela publicação o espaço por excelência da mulher
escritora na virada do século. ” (MARTINS, 2008, p. 375).
progressos do espírito humano” (ESCOLA, 1898e, p.141) e não como aquela que
efetivaria esse progresso (tarefa essa que seria reservada, provavelmente, aos alunos).
Este posicionamento hierárquico corrobora a concepção de papéis sociais restritos
à homens e mulheres, assim identificados, devido à “evidência biológica do sexo”
(LAQUEUR, 2001). Pois, reserva aos primeiros a conquista de conhecimento científico
em farmácia, enquanto, às segundas caberia a manutenção das práticas quotidianas,
reproduzindo conhecimentos já existentes. Isabelle Stengers e Vinciene Despret discutem
de que maneira essa cisão identitária (homens-ciência-progresso; mulheres-família-
manutenção de ambientes privados) é mantida e corroborada nos espaços de ensino e
instituições científicas (2011, p.33):
Mais si elle resiste, c’est seulement parce que les filles peuvent désormais y
obtenir les diplômes qui leur permettrons de gagner leur vie. Mais qu’elles
évitent d’y faire carrière dans les professions qui promettent prestige et
influence. Qu’elles profitent de l’université pour acquérir des savoirs qui les
émancipent effectivement, mais qu’elles restent aux marges. Car elles ne
pourront modifier l’ethos que demandent ces professions: la rivalité agressive,
la prostitution intelectuelle, l’attachement à des idéaux abstracts.
Sendo assim, embora os discursos de fundação da Escola aparentassem uma
dinâmica progressista (estimulando a instrução de mulheres), todos eles basearam seus
argumentos em concepções restritivas e hierárquicas: as alunas não eram citadas como
agentes do progresso científico nacional, mas, como companheiras honradas, cuidadosas
e auxiliares ilustradas na busca do conhecimento. Em discurso proferido por Bráulio
Gomes na sessão de instalação da Escola, em fevereiro de 1899, novamente o estímulo à
instrução de mulheres se justificou através de relações entre o feminino e o lar (ESCOLA,
1899, p.176):
Outro grande fim da Escola de Pharmácia é diplomar – mulheres – formar
pharmacêuticas. É tempo de dilatarmos os horizontes para a atividade da
mulher dar-lhes profissões mais liberais, mais intelectuais, mais e melhores
elementos para a luta da vida. Dirigir seu lar; dirigir sua pharmácia e acalentar
seus filhos, poderá a mulher fazer com aquilo doce energia, com aquela rigosa
brandura - paz de espírito e pureza de consciência, disputando com vantagem
distintíssimo posto nas lutas pelo viver.
O incentivo à presença de alunas na Escola de Farmácia foi um movimento que
misturou normas restritivas de gênero, dinâmicas de poder que vinculam/limitam a
produção de conhecimento ao masculino e concepções de ciência (estofo do cientista que
através do domínio da natureza promoveria o progresso). Em artigo escrito por Luiz de
Queiroz e publicado na sessão Interesses Profissionais (fevereiro de 1898), também
podemos observar a relação de submissão que entra em cena no momento em que uma
mulher assume o posto de farmacêutica.
Esta publicação compila uma conferência ministrada na França (grande baliza
para as políticas propostas pelos associados) e aborda a necessidade em promover
barreiras legais que restrinjam a associação entre médico e farmacêutica no caso de
matrimônios: “Esse trabalho vem por em evidência um caso importante não previsto na
lei que regula o exercício da farmácia em França, e que serviu de base ao Regulamento
pelo qual nos guiamos e portanto, também é de interesse para nós farmacêuticos
brasileiros.” (QUEIROZ, 1898b, p.152).
O artigo descreveu que neste caso a ilegalidade na associação entre médicos e
farmacêuticos entraria em uma jurisdição especial, pois os lucros advindos da venda de
medicamentos seriam encaminhados à mesma família, como se ambos fossem a “mesma
pessoa”. Uma das propostas do artigo francês é que tais casamentos sejam proibidos,
entretanto o que mais nos interessa é de que maneira esta situação trouxe ao debate
normas e hierarquias de gênero (Ibid., p.153):
É sabido, entretanto, que de dez anos para cá, as Faculdades de Medicina
conferem às mulheres diplomas de médicas e que da Escola de Pharmacia de
Paris começam a sair as primeiras farmacêuticas que, necessariamente,
encontrarão uma brilhante plêiade de imitadoras. Em tais condições hão de
forçosamente se dar inúmeras uniões entre membros das suas profissões que
reúnem tantos interesses comuns: medicina ativa, ousada, mais
particularmente destinada ao homem, e a farmácia, sedentária, meticulosa, é
apropriada à mulher.
Ao descrever o exercício da farmácia por uma mulher, Queiroz retomou
concepções hierárquicas (entre médicos e farmacêuticos) que foram duramente criticadas
pela Revista, pois este artigo citou o médico (vinculado ao masculino) como cientista e
líder, enquanto a farmacêutica foi descrita como auxiliar, cuidadosa e subalterna. Nesse
sentido, observamos que a imagem do farmacêutico como mero auxiliar foi retomada
quando se tratava de uma mulher, a fim de restringir estas profissionais à um estatuto
subalterno. Entretanto, o questionamento das associações entre médicos e farmacêuticas
na França, assim como, a veiculação deste debate em São Paulo (no ano de fundação da
Escola), nos permite refletir de que maneira a formação de mulheres nas faculdades de
farmácia proporcionou novos questionamentos e dinâmicas. Sendo assim, ao longo da
pesquisa pretendemos analisar os postos e atividades que as alunas efetivamente
desempenharam após tomarem seu lugar na Escola de Farmácia.
Ao longo deste texto buscamos enfocar nas alianças e concepções veiculadas
pelos farmacêuticos paulistas através da Revista Farmacêutica desde 1895 e a
consequente fundação da Escola de Farmácia em outubro 1898. Tal processo contou com
alianças e aliados: farmacêuticos do interior, médicos, compostos químicos, instrumentos
de laboratórios e flora nacional. Percebemos também que forjar um território envolveu a
delimitação de fronteiras e discursos de poder, discriminando, assim, quem poderia atuar
segundo os critérios químicos e botânicos de validação. Com o intuito de não promover
uma análise progressista e linear, buscamos destacar de que maneira os agentes
envolvidos nesse processo engendraram, a cada momento, novas possibilidades e
caminhos na formação de uma identidade para o Farmacêutico na República.
Referências
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