tese maria angela de ambrosis

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  • Maria ngela De Ambrosis Pinheiro Machado

    U m a n o v a m d i a e m c e n a :

    c o r p o , c o m u n i c a o e c l o w n .

    Doutorado em Comunicao e Semitica PUC/SP

    So Paulo 2005

  • Maria ngela De Ambrosis Pinheiro Machado

    U m a n o v a m d i a e m c e n a :

    c o r p o , c o m u n i c a o e c l o w n .

    Doutorado em Comunicao e Semitica

    Tese apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Comunicao e Semitica na rea de concentrao signos e significaes das mdias sob a orientao da Prof. Dr. Christine Greiner

    PUC/SP So Paulo

    2005

    II

  • BANCA EXAMINADORA

    _________________________________

    _________________________________

    _________________________________

    _________________________________

    _________________________________

    III

  • Resumo

    Esta tese tem por objeto de estudo os processos de comunicao e

    interao entre o corpo do ator e o ambiente de experimentao a partir da

    pesquisa da linguagem do clown no teatro. Essa linguagem requer um

    treinamento das habilidades perceptivas, da ao espontnea, do jogo e da

    improvisao, sempre em trmite entre as aes cotidianas e as aes artsticas.

    O objetivo desta tese consiste em compreender esse treinamento como uma

    relao comunicativa entre corpo e ambiente de pesquisa teatral. O tema que a

    circunscreve refere-se s possibilidades de entendimento do corpo como mdia,

    ou seja, um ambiente complexo e povoado de signos e linguagens que expressa,

    informa e comunica a sua relao com outros ambientes, sempre aliando

    natureza e cultura. O corpo constitui um meio que manipula, multiplica,

    expande, troca, produz, retm e comunica informao. Essa compreenso

    fundamenta-se em pesquisas cientficas desenvolvidas por um grupo

    transdisciplinar das chamadas Cincias Cognitivas, cujo foco consiste

    justamente em pesquisar como o corpo conhece e interage na relao com o

    ambiente, por meio de protocolos experimentais. Neste sentido, sero

    apresentados alguns argumentos fundamentados nas hipteses dos

    neurocientistas Antonio Damsio, Andy Clark e Alain Berthoz.

    Entre outros aspectos, estes estudos enfocam quais os mecanismos que o

    organismo (humano) desenvolve para perceber, reagir e agir nas relaes com e

    no mundo. O entrelaamento terico/prtico entre diversos saberes sustenta a

    plausibilidade da hiptese de que o treinamento do clown habilita o ator a

    interagir com o ambiente no que ele manifesta de inusitado, diferente,

    polissmico, porque ambos, ambiente e corpo do ator, esto repletos de

    movimentos inusitados, diferentes e surpreendentes.

    IV

  • Abstract

    The study object of this thesis is the processes of communication and

    interaction between the actor's body and the experimentation environment by

    means of research of the clown language in theater. This language requires

    training of perception abilities, spontaneous action, playing and ad-libbing,

    always proceeding between everyday actions and artistical actions. The aim of

    this thesis is to understand this training as a communicative relation between

    body and the environment of theater research. The theme comprehends the

    possibilities for an understanding of the body as a medium, that is, a complex

    environment filled with signs and language which expresses, informs and

    communicates its relation with other environments, always associating nature

    and culture. The body is a medium which manipulates, multiplies, expands,

    exchanges, produces, retains and communicates information. This understanding

    is based on scientific research carried out by a transdisciplinary group of the

    sciences known as Cognitive Sciences and whose focus consists precisely in

    researching the way in which the body knows and interacts in its relationship

    with environment, by means of experimental protocols. In this respect, some

    arguments based on the hypothesis of neuroscientists Antonio Damsio, Andy

    Clark e Alain Berthoz will be presented.

    Among other aspects, these studies focus on which mechanisms the

    (human) organism develops to perceive, react and act in its relation with and

    within the world. The theoretical/practical entwinement between several

    knowledges supports the plausibility of the hypothesis that clown training

    qualifies the actor to interact with the environment in all the latter presents as

    unusual, different and polysemic, since both, environment and actor's body, are

    filled with unusual, different and surprising movements.

    V

  • Aos meus mestres:

    Chiara e Geraldo (in memorian), mestre de viver,

    Tadashi Kawano, mestre de acompanhar,

    Marina Kaori, mestre de brincar.

    VI

  • Agradecimentos

    Agradeo sem fim as Cris que orientaram esta tese: Cristiane Paoli-Quito e Christine

    Greiner.

    Como sempre generosa e precisa, Cristiane conduziu-me no mergulho profundo de construo

    da linguagem cmica do meu corpo. Delcia que estar nesse lugar! Obrigada.

    Atenta simplesmente, Christine orientou, incentivou, sugeriu, desburocratizou, esclareceu,

    pincelou... Singela, tranqila e, de repente, to bela essa relao.

    Um agradecimento muito, muito, muito especial para Nirvana Marinho. Mais que

    pesquisadora e debatedora de minhas discusses acadmicas/cnicas: valiosa amiga.

    Agradeo em especial Jussara Setenta, Isabelle Cordeiro e Adriana Bittencourt por nosso

    precioso trabalho no Grupo Sinergia.

    Meus amigos e companheiros de cena Fernando Passos, Melissa Panzutti e Jos Renato F. de

    Almeida: Vamos nessa que ainda bom a bea!!! Estamos apenas comeando...

    Aos meus colegas de PUC, Cleide Martins, Lenira, Lela, Boro, Edna, Vanessa e... e... e....

    Agradeo e sinto-me privilegiada de ter tido como professores tambm Tica Lemos e Alex

    Ratton, no Estdio Nova Dana.

    Agradeo ao Estdio Nova Dana, Pepita sempre solcita e seu Valdemar que abria a porta do

    Estdio para mim. Todos meus colegas de ralao: Alex, Melissa, Natlia Catarina, Paula,

    rica, Maurcio, Pedro(s), Luciana (s), Abba, Aninha, Adriana, Laura(s), Sheila(s), Karu,

    Andr, Mara, Letcia, e mais uns 101 colegas aproximadamente.

    Agradeo ao CNPq pela bolsa concedida para realizao dessa pesquisa.

    VII

  • ndice

    Resumo..................................................................................................................................... IV

    Abstract ..................................................................................................................................... V

    Dedicatria ............................................................................................................................... VI

    Agradecimentos.......................................................................................................................VII

    Introduo............................................................................................................................... 09

    Captulo 1 ................................................................................................................................ 26

    1. A URDIDURA DA IMPROVISAO E DO CORPO ...................................................... 26

    1.1 Improvisao: caractersticas, qualidades, necessidades e discusses................. 26

    1.2 Corpomdia: quando o corpo o protagonista da cena........................................ 44

    1.3 Enredando as malhas............................................................................................ 57

    Captulo 2 ................................................................................................................................ 66

    2. CONSTRUO DE UMA NOVA MDIA......................................................................... 66

    2.1 O treinamento de Cristiane Paoli-Quito............................................................... 66

    2.2 Movimento-Imagem ......................................................................................... 68

    2.3 Voc sabe voltar para sua casa deriva? ............................................................. 72 2.4 Tudo cnico ....................................................................................................... 79

    2.5 Jogo: a vida das relaes ...................................................................................... 88

    Captulo 3 ................................................................................................................................ 93

    3. UM DIA, UMA BANANA...: LAOS E ENTRELAOS TRANSITRIOS ...................... 93

    3.1 Entre laos: o processo......................................................................................... 93

    3.2 Entrelao: a construo das cenas ...................................................................... 102

    3.3 Entrelaando: o espetculo ................................................................................ 114

    Bibliografia .......................................................................................................................... 120

    VIII

  • Introduo

    Esta tese pretende esmiuar os processos comunicativos que envolvem o

    mtodo de criao e a performance artstica do clown1. Esta investigao,

    iniciada no mestrado2, circunscreve a indagao sobre a natureza do processo

    semitico para a construo do corpo do ator. Nesse sentido, o processo de

    criao do clown contempla essa especificidade no modo de construo do

    personagem. Esse processo tem incio no corpo do ator, na experimentao de

    suas habilidades corporais, tanto as relativas a um estado de presena e

    percepo diferenciado como as relativas ao jogo e improvisao.

    Diferente de um personagem descrito por meio de uma dramaturgia teatral

    convencional, em que o contexto dado pela narrativa organizada em um texto a

    partir do qual se constri o corpo do personagem, no clown, a mscara confere a

    essa linguagem, antes de tudo, uma fisicalidade que expressa as caractersticas e

    o modo de estar no mundo. O clown se desenvolve a partir dos desafios fsicos a

    que o ator se submete no treinamento; em outros termos, a exposio do corpo

    ao ridculo, ao jogo com outros corpos, sua capacidade de comunicao sem

    fala e sem gestos estereotipados.

    No contexto mais geral da histria do teatro no Brasil, o clown reapareceu

    nas dcadas de 1980 e 1990 em pesquisas de linguagem teatral3. O treinamento

    de clown tem sido bastante utilizado como treinamento de ator e de danarinos

    1 Clown e palhao so sinnimos. A preferncia dada terminologia inglesa apenas se justifica para diferenciar o palhao inserido numa linguagem teatral do palhao inserido na linguagem circense. 2 Cartografia do conhecimento artstico: o processo de criao do ator, dissertao de mestrado defendida em 2000 no Programa de Comunicao e Semitica da PUC-SP, sob orientao da Profa. Dra. Helena Katz. 3 Conforme anlise de MacManus, em seu livro No Kidding! Clown as Protagonist in Twentieth-Century Theater, o clown surge no contexto europeu do sculo XX, como um personagem que se contrape ao heri trgico. Nesse sentido, apresenta-se como uma ruptura das convenes teatrais at ento estabelecidas. Para o autor, o clown eminentemente um cone do antiautoritarismo e sua funo poltica encontra-se justamente na fissura que promove tanto nas regras da linguagem teatral como nas regras sociais, pois um personagem que transita entre a fico e a realidade e permanece sempre no limiar dessa fronteira. Ou seja, ora o personagem est envolvido na fico teatral e l desenvolve seu jogo, ora se depara com os empecilhos da realidade, como, por exemplo, a mala que emperra quando ele tenta abri-la e este passa a ser jogo do clown. Seu antiautoritarismo se deve s possibilidades de jogo e desafios que percorrem desde as relaes com as leis fsicas da natureza at as relaes de poder entre os homens.

    9

  • (vide respectivamente Lume4 e Nova Dana 45), visto que, afora a busca de uma

    linguagem especfica do clown para o teatro, esse treinamento instrumentaliza o

    ator/bailarino em suas potencialidades expressivas, em habilidades de jogo, em

    improvisao, em habilidades perceptivas, em capacidade de respostas e, ainda,

    na to buscada presena cnica, citada na maioria das atuais pesquisas de

    linguagem do corpo.

    O processo de criao do clown particulariza-se por enfocar o corpo do

    ator. As habilidades perceptivas consistem em o ator perceber as mudanas

    fsicas que o uso da mscara traz. Essas mudanas transformam, por sua vez, os

    hbitos de percepo, permitindo ao ator experimentar um outro modo de estar

    no mundo, perceb-lo e interagir com ele. A fisicalidade demarcada pela

    mscara implica evidenciar a imediaticidade da reao fsica diante de qualquer

    fenmeno que aparea. O clown um ser que tem suas reaes afetivas e emotivas corporificadas em partes precisas de seu corpo. Ou seja, sua afetividade transborda pelo corpo, suas reaes so todas fsicas e localizadas. [...] A lgica do clown fsica-corprea, ele pensa com o corpo (Burnier Mello6, 1994: 261).

    O treinamento do clown exercita a capacidade do jogo cnico e da

    improvisao, seja com um companheiro de cena, seja com a platia. Em cena,

    ele estabelece uma comunicao direta com o pblico, em oposio to famosa

    quarta parede7. Uma das possibilidades de jogo do clown encontra-se

    justamente no aproveitamento das situaes e reaes do pblico ao estabelecer

    4 Lume Ncleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais, Unicamp, fundado em 1985 por Lus Otvio Burnier Mello, Carlos Roberto Simioni, Ricardo Puccetti e Denise Garcia. As linhas de pesquisa que orientam o trabalho so: a Dana Pessoal, o Clown e a Mmesis Corprea (Ferracini, 1998). 5 Cia. Nova Dana 4 um grupo de dana dirigido por Cristiane Paoli-Quito que, desde 1996, tem desenvolvido um trabalho de pesquisa em improvisao, dana e teatro. Trata-se de um grupo que vem inovando as possibilidades de ligao entre a linguagem da dana e a do teatro. Entre suas tcnicas de treinamento encontra-se a prtica do clown. 6 Lus Otvio Burnier Mello (1956-1998) foi fundador do Lume Ncleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais, vinculado Universidade Estadual de Campinas. 7 Termo utilizado no teatro para designar uma parede imaginria entre o palco e a platia. Nesse sentido, o ator no se comunica diretamente com ela . Embora possa olhar na sua direo, como se no a visse, sua concentrao est no acontecimento do palco.

    10

  • uma relao de cumplicidade com a platia (Fabbri & Salle, 1982; Paoli-Quito,

    1994). Da a nfase dada ao treinamento do ator para a questo da presena

    cnica, uma vez que ela instrumentaliza a percepo dos acontecimentos

    imprevistos (entre ele e a platia) e sua incorporao cena.

    Manifestando a ingenuidade, a fragilidade e a espontaneidade, os

    requisitos bsicos a serem desenvolvidos no treinamento configuram um estado

    de generosidade, abertura e vulnerabilidade, necessrios para aguar a escuta

    atenta e perspicaz (saber ouvir e ouvir-se). Tudo novo aos olhos do clown. Um

    olhar para o mundo como se fosse a primeira vez. Um olhar para as qualidades

    que o mundo sua volta apresenta e que, por meio da linguagem teatral, ele

    pode reapresentar, enfatizar ou inverter os sentidos e significados

    convencionalizados para o evento.

    Por sua forma de ver o mundo, o palhao pode alterar a realidade, transformando-a no que deseja. Isso introduz no ambiente uma proposta de pensamento complexo. Os fatos ganham uma nova lgica e sentido, contestando os acontecimentos at ento estabelecidos. Essa alterao a princpio pode parecer um simples desvio ou imperfeio da viso tradicional de mundo, mas na verdade ela contribui para sua ampliao e desenvolvimento (Masetti, 1998: 34) 8.

    O treinamento do clown potencializa, assim, as habilidades perceptivas do

    ator, na medida em que sua construo mais aberta e permevel aos

    acontecimentos do momento e na medida em que o ator desenvolve a sua

    capacidade de resposta quase imediata a eles. Sob essa perspectiva, o

    treinamento do clown constitui um embrenhar-se em um estado diferenciado de

    percepo no qual outras potencialidades de sentimento, sensao, movimento,

    imagem, pensamento, idia e ao podero manifestar-se.

    8 Morgana Masetti coordenadora do Centro de Estudos dos Doutores da Alegria (So Paulo-SP). Neste trecho, ela se refere a uma interveno dos Doutores da Alegria numa sala de espera de um hospital, transformada em sala de cinema por meio da ao dos palhaos.

    11

  • Pesquisar o processo de treinamento e criao do clown permitir

    investigar a natureza dos processos de comunicao e semiose do corpo do ator

    em dilogo com esse ambiente da pesquisa teatral. Em outros termos, pretende-

    se verificar como o ator se habilita a compreender, incorporar e expressar

    imagens, relaes e pensamentos, ou seja, pretende-se compreender a relao de

    conhecimento e interao entre o corpo do ator e o ambiente de experimentao

    e pesquisa da linguagem do clown.

    Essa abordagem implica repensar os parmetros de compreenso e anlise

    do corpo e seus processos comunicativos, o que ento constituir a hiptese

    desta tese, bem como amplia os modos de descrio e anlise do processo de

    criao do clown at ento disponveis bibliograficamente9. Embora parte dessa

    bibliografia foque o processo de criao do clown, esses estudos limitam-se a

    descries de exerccios, tentativas de registro da experincia teatral e a busca

    por uma sistematizao de uma metodologia de trabalho para o ator. Com isso, o

    enfoque no se concentra na compreenso desse processo, mas, na descrio

    dele.

    O clown caracteriza-se por ser um personagem que pode estar em

    qualquer lugar. E em qualquer lugar que ele esteja, transforma o espao,

    evidenciando outros sentidos e significados das relaes ali existentes. Um dos

    modos possveis de explicar tal constituio implica a possibilidade de

    compreender que a caracterstica cmica do clown encontra-se num estado

    9 Poucos so os estudos que concentram ateno no clown. A bibliografia existente at o momento e que foi pesquisada consiste em pesquisa e dissertao enfocando as intervenes do clown em hospitais (Masetti, 1998, Wou, 1999). Nesse aspecto, esses estudos condizem com este projeto, uma vez que refletem a questo da interao do clown em lugares diferenciados e no-convencionais, demonstrando concretamente a permeabilidade desse personagem, as transformaes que a presena de um clown gera no ambiente e, ao mesmo tempo, a maleabilidade da linguagem a fim de adaptar-se quele ambiente e especificidade desse tipo de interveno concernente ao pblico (crianas hospitalizadas, pais, mdicos, enfermeiros e instituio hospitalar). As teses e dissertaes existentes sobre o processo de criao do clown (Lopes, 1990; Ferracini, 1998; Burnier, 1994; Martins, 2004; Kasper, 2004; Barboza, 2001) concentram-se na descrio e anlise de alguns procedimentos e tcnicas, enfocando mais amplamente o trabalho do ator e no exclusivamente o trabalho do clown ou o uso da mscara para treinamento e a criao de um espetculo. Outras bibliografias concentram-se em reconstituio histrica do clown (Fabbri & Salle, 1982; Levy, 1990; Burnier Mello, 1994; Pascal, 1992; Lecoq, 1987 e 1997; Kasper, 2004; Simon, 1988), relatos de experincia (Lecoq, 1987 e 1997), biografias de palhaos (Popov, 1982; Rivel, 1973; Seyssel, 1997), estudos, pesquisas, metodologias de trabalho e conceituao do personagem (Lecoq, 1997; Burnier Mello, 1994; Fo, 1998; Kasper, 2004).

    12

  • particular de comunicao e interao. O clown e o ambiente em que ele est

    dispem-se mutuamente a um jogo de receber, trocar e devolver estmulos.

    Receber, trocar e devolver comicamente os estmulos do ambiente e do clown.

    Essas questes esto relacionadas de modo mais amplo habilidade e

    aptido do corpo para permanecer no tempo e no espao. O corpo incorpora

    imagens, sensaes e pensamentos de movimento e os produz na medida que

    incorpora um jogo contnuo da relao corpo / ambiente (Andy Clark10, 1997,

    2001; Antonio Damsio11, 2003, 2000, 1995; Alain Berthoz12, 2003 e 2001).

    A hiptese consiste em que o treinamento do clown habilita o ator a

    interagir com o ambiente no que ele manifesta de inusitado, diferente,

    polissmico, porque ambos, ambiente e corpo do ator, esto repletos de

    movimentos inusitados, diferentes e surpreendentes.

    Trata-se de uma hiptese que reconhece a complexidade da relao entre

    corpo e ambiente, compreendendo a complexidade particular desses dois

    sistemas no espao, no se tratando de uma simples questo de estmulos e

    respostas, mas da constituio de uma complexa rede de relaes.

    No panorama histrico da presena do clown nas artes cnicas,

    manifestou-se com nfase a corporeidade e fisicalidade que o uso da mscara

    demanda (Fo, 1998; Levy, 1990; Pascal, 1992; Fabbri & Salle, 1982). As

    metodologias estudadas na dissertao destacam o treinamento fsico e

    energtico por meio de tcnicas de dana, acrobacias, exerccios fsicos de

    diversas ordens, enfim exerccios fsicos intensos que objetivam habilitar o ator

    para o jogo e para a presena cnica (Lecoq, 1997,1987; Paoli-Quito, 2000,

    1998, 1995, 1994; Burnier Mello, 1994 e Ferracini, 1998).

    10 Andy Clark (1957- ) filsofo e cientista cognitivista. professor de filosofia e cincias cognitivas na Escola de Cincias Cognitivas e Computao, da Universidade de Sussex, UK. Foi diretor do programa de filosofia/neurocincia/psicologia na Universidade de Washington, em St. Louis, USA. 11 Antonio Damsio (1944- ) cientista, neurologista, chefe do departamento de Neurologia da Universidade Iowa e professor adjunto do Instituo Salk de Estudos Biolgicos, em La Jolla, na Califrnia. 12 Alain Berthoz (1939- ) engenheiro, psiclogo, neurofisiologista, professor do Collge de France, onde dirige o laboratrio CNRS de fisiologia da percepo e ao.

    13

  • Por outro lado, esses estudos evidenciam uma questo atual e recorrente

    nas pesquisas de linguagem teatral, formulada j desde o tempo de Constantin

    Stanislavski13 (1863-1938). Essa questo refere-se ao corpo do ator e sua

    presena fundamental na cena e no processo de criao. Nesse aspecto, o

    treinamento do clown tem sido incorporado ao teatro como linguagem artstica

    das artes cnicas e como recurso de formao de atores dadas as habilidades de

    presena e disponibilidade, expressividade, jogo e improvisao que ele

    desenvolve.

    O Mtodo das Aes Fsicas constitui um dos mais importante legados de

    Stanislavski para as geraes seguintes de atores e diretores. Entre outros

    desdobramentos dessa prtica, encontram-se o redimensionamento do corpo do

    ator no processo de criao do personagem e os inmeros procedimentos de

    treinamento gerados por esse mesmo redimensionamento, como foi o caso das

    pesquisas de Jersy Grotowski14, Eugnio Barba15 e Peter Brook16. No Brasil,

    seguindo essa vertente de pesquisa de linguagem, encontramos o Grupo Lume

    de Campinas, entre outros.

    Desde ento, o corpo e sua expresso foram ganhando espao nos

    processos de pesquisa de linguagem teatral. De fato, como tambm observado

    por Azevedo (2002), o trabalho corporal sistematizado gera transformaes

    qualitativas no trabalho de criao e interpretao do ator. Este aprofunda seu

    conhecimento acerca de seu corpo e seus recursos de expresso, intensifica sua

    presena cnica, promove e instaura o estado de ateno e prontido necessrios

    13 Constantin Stanislavski (1863-1938) ator e diretor de teatro, fundador do Teatro de Arte de Moscou. Importante referncia para o processo de criao do ator, uma vez que sistematizou um mtodo de trabalho para o ator que pode ser encontrado em suas obras (vide bibliografia). 14 Jersy Grotowski (1933-1998), diretor de teatro, criador do Teatro-Laboratrio em 1959, na Polnia, cujos objetivos consistiram em pesquisar o domnio da arte teatral, sua metodologia e esttica. Escreveu Em busca do teatro pobre, Civilizao Brasileira. Rio de Janeiro, 1992. 15 Eugnio Barba (1936- ) diretor e estudioso do teatro contemporneo. Estudou com Grotowski. Na Dinamarca, fundou, em 1964, o Odin Teatret e, em 1979, o Ista (International Scholl of Theatre Anthropology), que constituem hoje ponto de referncia da arte teatral. 16 Peter Brook (1925- ) diretor de teatro, fundou e dirige em Paris o Centro de Pesquisas Teatrais. Suas arrojadas concepes cnicas para teatro, pera e cinema tornaram-se marcos de renovao e referncias da escritura cnica ocidental.

    14

  • percepo das sensaes, dos estados corporais, das idias, dos pensamentos e

    das imagens que o corpo produz. O ator desenvolve a conscincia e a

    compreenso de sua ao em cena.

    A atividade corporal transforma hbitos, modos de pensar e agir. O

    relaxamento de msculos, a percepo de apoios e pesos, a percepo do corpo

    no espao facilitam a presena cnica, a percepo das sensaes e dos estados

    corporais e das aes e movimentos engendrados, constituindo o fluxo da

    linguagem e favorecendo uma ao mais orgnica do ator na criao e na

    execuo do personagem. Por que isso acontece e como?

    Essa questo constitui o ponto de partida desta tese. Num primeiro

    momento, cabe abordar as dificuldades de responder a ela, interrogando as bases

    filosficas que se relacionam com os modos de pensar o corpo e o processo de

    criao do ator, atualmente.

    Como mostra Steven Pinker17, conceitos como o de tbula rasa, atribudo

    a John Locke (1632-1704), o do bom selvagem, desenvolvido por Jean-Jacques

    Rousseau (1712-1778) e o do fantasma da mquina, de Ren Descartes (1596-

    1650) constituem a secular religio da vida intelectual moderna (Pinker, 2002:

    3). Embora distintos entre si, Pinker demonstra a compatibilidade e at mesmo a

    complementaridade entre esses modos de entendimento da natureza humana, no

    pensamento moderno.

    As doutrinas da Tbula Rasa, do Bom Selvagem e do Fantasma da Mquina ou como os filsofos a chamem, empiricismo, romantismo e dualismo so logicamente independentes, mas na prtica elas so, freqentemente, encontradas juntas (Pinker: 2002:10)18.

    17 Steven Pinker (1954-) professor do Departamento de Psicologia da Universidade de Havard. Lecionou no Departamento Crebro e Cincias Cognitivas do MIT (Massachusetts Institute of Tecnology). Orienta pesquisa de linguagem e cognio. 18 The doctrines of the Blank Slade, The Noble Savage and the Ghost in the Machine or, as philosophers call them, empiricism, romanticism and dualism are logically independent, but in practice they are often found together. Todas as tradues contidas nesta tese so de minha responsabilidade.

    15

  • Ou seja, questes cientficas, artsticas, sociais, polticas, econmicas e

    culturais esto impregnadas dessas noes. Cabe identificar como estas

    articulam o pensamento sobre o corpo e o processo de criao e treinamento do

    ator.

    Preocupado em saber como a mente funciona e como o homem conhece a

    verdade, John Locke compreendeu a importncia da experincia para o

    conhecimento humano19. Formulou o conceito de que a mente uma tbula rasa

    que vai sendo preenchida por meio da experincia. Essa noo pressupe a

    compreenso de que os indivduos so diferentes entre si porque tm

    experincias diferentes. Muda-se a experincia, muda-se o indivduo (Pinker,

    2002).

    As repercusses desse modo de compreender contribuem para a

    formulao da filosofia poltica do liberalismo, fundamentam propostas

    pedaggicas e embasam teorias da psicologia. No teatro, essa noo pode ser

    reconhecida, por exemplo, na questo da memria emotiva desenvolvida na

    primeira fase do trabalho de Stanislavski. Como aponta Bonfitto,

    as emoes deveriam ser resgatadas de um repertrio de experincias pessoais iguais ou anlogas s da personagem que deveria ser construda. Existia, portanto, uma ligao quase necessria entre memria e emoo. (Bonfitto, 2002: 27).

    Na seqncia desse pensamento: para Stanislavski, quanto mais vasta a

    experincia emocional do ator, mais rico o material que ele tem disposio

    para sua atividade criativa interior (op.cit.: 29).

    Resgatar a emoo pela memria das experincias sugere a idia de uma

    gavetinha que contm um repertrio de memrias e emoes acumuladas,

    19 A teoria de John Locke surge como alternativa ao pensamento fundado na teoria das idias inatas, a qual apregoava que o homem nasce com idias matemticas, verdades eternas e a noo de Deus e que, no decorrer da vida, mais precisamente, na idade adulta, com o desenvolvimento da razo, essas idias se tornariam conhecidas. Locke e outros filsofos de sua poca questionavam o fundamento do poder poltico na religio e na hereditariedade. Locke , portanto considerado um dos fundadores do pensamento liberal que marca o incio do sistema capitalista moderno.

    16

  • adquiridas pela experincia e que aguardam ser solicitadas. Assim, a

    necessidade de vasta experincia emocional para a construo do personagem

    constitui conseqncia desse modo de pensar. Logo, um jovem ator pode

    perguntar se ele tem experincia de vida suficiente para poder fazer teatro. Um

    velho ator pode perguntar se as experincias que ele teve na vida servem para

    trabalhar com teatro. Coitado deste ltimo, caso a resposta seja negativa. Esta

    pequena pausa especulativa sugere a falcia dessa concepo de experincia

    acumulada, que repercute no modo de pensar de Stanislavski, provavelmente,

    porque pertence ao contexto filosfico de sua poca.

    Essa questo, porm, ainda reverbera na metodologia do fazer teatral no

    que respeita s questes relativas criao de repertrio. Partindo do princpio

    de experincia e de conhecimento acumulados, muitos estudos sugerem que o

    ator cria repertrios fixos e, conforme a necessidade, disponibiliza aquela ao.

    O treinamento e a experincia em cena desenvolvem um repertrio de aes

    para o ator dispor no momento que necessitar. Sob essa perspectiva, esse

    treinamento caracteriza-se pela construo de repertrio, grosso modo, e busca-

    se um corpo apto a criar e a reproduzir seu repertrio de gestos e aes para

    compor o personagem. Essa abordagem parece conter uma compreenso de

    experincia, de memria e mesmo de repertrio como algo estancado quando

    apreendido e no como um fluxo de aes e interaes.

    Jean-Jacques Rousseau, pensador da poca do Romantismo, oferece uma

    imagem do homem bom, ou seja, aquele que, em seu estado natural, pacfico,

    tranqilo, vivendo harmoniosamente em sociedade e de acordo com a natureza,

    conforme os colonialistas europeus supunham acerca da vida dos indgenas das

    colnias. Em contrapartida, o homem civilizado perde o contato com a natureza

    e sua pureza natural corrompida pelo convvio em sociedade (Pinker, 2002).

    No teatro, no difcil notar a presena desse ideal de comportamento

    natural do homem, veiculado pela idia do bom selvagem de Rousseau. A partir

    da pesquisa de Azevedo (2002), possvel observar que, nas tcnicas e nos

    17

  • pensamentos sobre o corpo no teatro, na dana e nas tcnicas corporais (fora dos

    palcos) por ela apresentada, a busca por um corpo natural constitui uma

    premissa comum subjacente maioria dos mtodos expostos.

    Pensar o corpo natural implica compreender que ele naturalmente

    conhece e se desenvolve distintamente do corpo cultural que necessita

    construir. Ou seja, as condies sociais so responsveis pelo afastamento do

    modo natural do corpo ser e desenvolver-se. Um treinamento baseado nessas

    premissas pressupe exercitar e treinar o corpo para tirar suas mscaras

    socialmente criadas e desvelar a ao, o gesto e a postura genuinamente naturais.

    O treinamento corporal, nessa viso, buscar o reaparecimento do corpo e seu

    movimento em seus estados mais puros, naturais e orgnicos que os

    convencionados socialmente como um meio que permitir uma ao mais

    natural do ator na execuo de seu personagem. O grande desafio de

    Stanislavski foi elaborar um mtodo no qual a ao do ator parecesse natural

    (Bonfitto, 2002; Machado, 2000).

    Qual , ento, esse corpo idealizado to natural? Existe realmente algum

    (na histria real ou na fico) que podemos considerar como portador de um

    corpo genuinamente natural? Moglie? Meninos-lobos? So eles corpos naturais

    ou adaptados natureza das florestas? Observa-se no livro Guia de abordagens

    corporais, de Ribeiro & Magalhes (1997), cerca de cinqenta tcnicas de

    modos de tratar o corpo, com fins teraputicos ou no. Entre elas, podemos

    destacar as chamadas artes marciais, educao somtica e o Contato

    Improvisao, que so algumas metodologias mais buscadas e citadas nas artes

    corporais. Quais delas levam ao corpo natural, sem as contaminaes sociais e

    culturais? Qual delas pode ser considerada a melhor para voltar ao corpo em seu estado natural, sendo que cada uma delas tem seu fundamento tcnico,

    filosfico, experimental e oferece resultados importantes para o

    desenvolvimento e conhecimento do corpo humano?

    18

  • O fantasma da mquina, doutrina elaborada por Descartes, pontua a

    diviso entre corpo e mente, conhecida como dualismo cartesiano. Nessa

    concepo, corpo e mente se diferenciam, pois a mente indivisvel, mas o

    corpo pode ser compreendido em partes. O corpo tem extenso corprea e a

    mente no. O corpo consiste em instrumento de expresso da alma. Como

    coloca Pinker, Descartes rejeita a idia de a mente poder ser operada por

    princpios fsicos (Pinker, 2002: 9)20.

    De imediato, a influncia dessa concepo flagrante no sistema

    elaborado por Stanislavski. Nitidamente, seu mtodo separa o trabalho interno

    do ator (mental), predominante na primeira fase de sua pesquisa (Linhas de

    foras motivas21 1897-1918) e o trabalho externo (corporal), sistematizado no

    Mtodo das aes fsicas (1918-1938). Como nos apresenta Bonfitto, o Mtodo

    das aes fsicas reorienta a utilizao do mtodo das Linhas de foras motivas,

    uma vez que ser a ao fsica a isca para a construo dos processos interiores

    do ator. Isso implica um novo entrelaamento entre ao interior e exterior, o

    conceito de ao fsica envolve tanto as aes executadas exteriormente quanto

    as aes internas desencadeadas pelas primeiras. A ao exterior alcana seu

    significado e intensidades interiores atravs do sentimento interior e este ltimo

    encontra sua expresso em termos fsicos (Bonfitto, 2002:26).

    A partir dessa explicao, as emoes, os sentimentos, a memria e os

    pensamentos continuam na esfera do mental, sem materialidade, tal como

    pensou Descartes. Isso implica a compreenso do trabalho corporal como um

    aflorar das potencialidades criativas e expressivas do corpo e este, por sua vez,

    como instrumento a ser afinado para expressar a ao interior e responder a ela.

    A ao interior motiva, impulsiona e gera a ao exterior, como uma relao de

    causa e efeito, sendo que a ao exterior tambm influencia a ao interior. Mais

    20 Descartes rejected the idea that the mind could operate by physical principles. 21 Linhas das foras motivas a denominao dada primeira fase do mtodo sistematizado por Stanislavski, no perodo da fundao do Teatro de Arte de Moscou (1897) at 1918, com o trabalho junto ao Estdio de pera do Teatro Bolshoi. A partir dessa experincia com o Estdio de pera, Stanislavski deu incio sistematizao do Mtodo das aes fsicas, que se estendeu at o ano de sua morte em 1938 (Bonfitto, 2002).

    19

  • ainda, o corpo constitui um instrumento do ator para expressar o invisvel:

    sonhos, imagens, emoes, a alma. Em outras palavras, a expresso do corpo

    constitui a manifestao da alma. Essas, entre outras, so algumas influncias do

    pensamento dualista nas anlises das metodologias do fazer teatral.

    A compreenso do processo de criao do ator est impregnada dessas

    noes. Parece que no temos como fugir delas para compreender esse processo

    enquanto a principal pergunta (nos estudos da rea) girar em torno dos temas: na

    criao do ator, o que pertence criao da mente e o que pertence criao do

    corpo? Como uma coisa interfere na outra? Qual a mais importante? Qual a

    determinante para a criao?

    Embora Azevedo observe que os trabalhos corporais pesquisados tm,

    quase todos, a mesma tnica: a procura de uma contnua relao corpo-mente

    (Azevedo, 2002: XXII), as metodologias ainda compreendem o corpo e a mente

    como processamentos separados. Assim, o movimento pelo movimento, sem a

    presena do universo interior do ator pura forma e o universo interior sem o

    canal de expresso do corpo puro caos ou um corpo inapto ao teatro ou

    expresso cnica. O treinamento interior relaciona-se com a interpretao,

    aquela que dar contedo a forma e o treinamento exterior relaciona-se com o

    corpo para ensin-lo a expressar o contedo interior. A emoo mobiliza a ao

    do ator, enquanto a razo tolhe sua criatividade e espontaneidade. Enfim, o

    dualismo de substncia, corpo e mente, desdobra-se em inmeras outras

    dicotomias.

    Se as tcnicas corporais enfocam a continuidade entre corpo e mente, os

    estudos cientficos e filosficos que vm sendo realizados sobre essa questo

    pelos cientistas cognitivos selecionados para esta pesquisa podem contribuir

    para esclarecer essa interface, uma vez que a questo est sendo estudada

    tambm por intermdio de protocolos cientficos.

    Sob os parmetros das Cincias Cognitivas, no cabe mais compreender a

    experincia e o conhecimento como cumulativos e/ou estticos e/ou naturais,

    20

  • pois, por exemplo, a repetio de um gesto ou de uma fala ou de uma ao

    requer circuitos neuroniais no exigidos por gestos, falas ou aes realizados ou

    criados espontaneamente (Ramachandran & Blakeslee22, 2002). No cabe mais

    pensar a mente separada do corpo, ou seja, no h operao mental que comanda

    o corpo nem a mente independente e autnoma em relao aos acontecimentos

    do corpo. Cientifica e filosoficamente, tem-se demonstrado que o fenmeno

    mental corporal e est indissociavelmente relacionado ao sistema sensrio-

    motor (Damsio, 2003; George Lakoff23 e Mark Johnson24, 1999; Alain

    Berthoz, 2003 e 2001).

    So essas as pontes pretendidas nesta tese para cercar os argumentos que a

    fundamentam. Desenvolver as questes propostas requer novos parmetros

    filosficos e cientficos, novas hipteses sobre o corpo e sobre processos

    comunicacionais, como, por exemplo, compreender o corpo como mdia de

    comunicao, o que exige uma abordagem interdisciplinar e interterica mais

    complexa (Helena Katz & Christine Greiner25, 2001).

    Evidentemente, para tratar aes orgnicas como processos de comunicao, precisam ser arrebanhados conceitos como informao, signo, mdia, representao, evoluo, entre outros, numa espcie de coquetel cientfico distante dos usos metafricos dessa terminologia. E com eles pensar o corpo como sendo um contnuo entre o mental, o neuronal, o carnal e o ambiental. Como pensar em corpo sem ambiente se ambos so desenvolvidos em co-dependncia? (Katz & Greiner, 2001:89)

    No caso da arte do ator, estamos tratando do ambiente complexo e

    hiperpovoado de signos do corpo. O corpo do ator no apenas uma construo

    simblica na qual se desenha, se veste e se maquia um personagem e sua ao

    22 Vilayanur S. Ramachandran (1955- ), Ph.D. pela Universidade de Cambridge, diretor do Center for Brain and Cognition e professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Neurocincias da Universidade da Califrnia. Professor adjunto de Biologia no Instituto Salk. 23 George Lakoff (1949- ) professor de lingustica na Universidade da Califrnia, Berkley, e co-autor com Mark Johnson de Metforas da vida cotidiana. 24 Mark Johnson (1949- ) professor e chefe do departamento de filosofia da Universidade de Oregon. Co-autor com George Lakoff do livro Metforas da vida cotidiana. autor de The body in the mind e Moral imagination e foi editor da antologia Philosophical perspectives on metaphors. 25 As professoras doutoras Christine Greiner e Helena Katz desenvolvem o projeto de formulao do conceito de corpomdia no Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Semitica da PUC-SP.

    21

  • para significar algo. Trata-se de um corpo humano apto a conhecer, interagir

    com o mundo e produzir imagens, relaes e pensamentos, cujo desenho teatral,

    o figurino, a maquiagem e a ao do personagem enfatizam um modo de o ator

    estar no mundo ao compreender e criar aquele personagem naquele contexto da

    fico teatral.

    Conforme observado, o processo de criao do clown particulariza-se por

    enfocar o corpo do ator. O clown caracteriza-se pelo seu modo ingnuo (estado

    de curiosidade em que os acontecimentos parecem ser sempre novos e

    inusitados); pelo seu modo frgil (estado de abertura, disponibilidade e

    vulnerabilidade para interao com os acontecimentos externos e internos na

    relao com o ambiente) e por um estado quase permanente de alegria e prazer.

    A ingenuidade, a fragilidade e a alegria so seu modo de estar no mundo.

    Essas qualidades repercutem, por sua vez, no seu modo de agir,

    caracterizado pela ao espontnea e pela reao fsica e afetiva na interao

    com o ambiente. O clown manifesta a interao entre os modos de estar

    (ingenuidade, fragilidade e alegria) e de se relacionar (jogo e ao espontnea)

    com o ambiente-mundo.

    Trata-se de um treinamento das habilidades perceptivas, da

    disponibilidade, da ao espontnea, do jogo e da improvisao. O treinamento

    do clown constitui um poderoso instrumento de criao e pesquisa em

    improvisao. Mais que uma descrio de procedimentos ou criao de um

    repertrio, o treinamento formado por um conjunto de atividades integradas,

    enfocando o desenvolvimento da presena cnica, da disponibilidade, do jogo e

    das relaes estabelecidas em cena e com a platia. Essa metodologia implica

    questionamentos sobre o entendimento de corpo. No mais suficiente um

    corpo que saiba repetir com eficcia uma instruo. Nesse treinamento, exige-se

    um corpo que saiba articular e desarticular seus hbitos e padres de movimento

    conforme a exigncia da relao com o ambiente: modos de estar, perceber e

    agir.

    22

  • O primeiro captulo desta tese enfocar a questo da improvisao no

    teatro e no treinamento do clown. Buscar-se- uma reflexo histrica dos

    entendimentos e usos da improvisao, sobretudo no sculo XX, com o objetivo

    de mapear as indagaes que acompanham o pensar e fazer a improvisao.

    Nesse percurso, identificou-se como a improvisao obteve novos contornos de

    entendimento e metodologia quando o corpo ganhou foco nos processos de

    encenao modernos e contemporneos. Esse fato permite vincular algumas

    caractersticas da improvisao aos estudos especficos dos processos cognitivos

    da relao do corpo com o ambiente e da conscincia em Antnio Damsio. A

    questo da ao espontnea, to discutida na improvisao, ganha uma outra

    explicao por meio dos estudos de V. S. Ramachandran. As pesquisas

    desenvolvidas por Alain Berthoz auxiliam a compreenso da relao entre

    percepo e ao. E, finalmente, com Andy Clark podemos compreender o jogo

    e a improvisao como tecnologia cognitiva.

    Aborda-se a questo do jogo, analisando a metodologia de Viola Spolin26

    (1906-1994). Para o treinamento, a criao e a ao do clown (o clown tem o

    jogo como modo de comunicao com seu pblico), o jogo constitui um foco de

    discusso imprescindvel. Como o corpo desenvolve essa habilidade? Quais as

    matrias de jogo para um clown?

    No segundo captulo, realizada a descrio, anlise e reflexo da

    metodologia de treinamento do clown e da improvisao de Cristiane Paoli-

    Quito27. A escolha dessa metodologia deve-se a duas razes: 1) desde 1998

    26 Viola Spolin (1906-1994) conhecida pela sistematizao do teatro improvisacional, ponto de referncia para estudiosos da improvisao e do jogo bem como para arte educao em teatro. 27 Cristiane Paoli-Quito (1960- ) diretora da Cia. Nova Dana Quatro desde 1996, ministra curso de clown, interpretao e improvisao dana teatro no Estdio Nova Dana em So Paulo desde 1995. Atualmente diretora e professora da Escola de Arte Dramtica (USP). Sua carreira artstica data de 1977 como atriz e, a partir de 1985, como diretora. Sua formao percorreu os conhecimentos da commedia dell arte, teatro de animao, mscara neutra e mscara dramtica, o mtodo de Viola Spolin de improvisao para teatro, jogos teatrais e clown. Fez cursos com Philippe Gaullier, Beth Lopes, Francesco Zigrino, Maria Helena Lopes, entre outros. Desde 1991, ministra treinamentos de clown e jogos teatrais, a partir dos quais criou seu prprio mtodo de preparao do ator por meio da improvisao. A partir de 1996, associou-se a Tica Lemos, uma das introdutoras da tcnica de dana do Contato Improvisao no Brasil, e com ela cria a Cia. Nova Dana 4 onde investigam a interrelao teatro e dana a partir da improvisao. Essa pesquisa vem sendo sistematizada nos cursos de Improvisao dana teatro no Estdio Nova Dana. Como professoras convidadas na Escola de Arte Dramtica

    23

  • venho realizando cursos e workshops de clown por ela ministrados, alm de

    acompanhar outras atividades como Improvisao dana teatro e as disciplinas

    oferecidas na PUC-SP, em 2001 e 2002 e 2) verifico na sua metodologia de

    trabalho, fundada, especificamente, no princpio Movimento Imagem, um

    eixo terico/prtico que sistematiza um modo possvel de conhecer e explorar a

    incorporao e a produo de imagem do corpo em sua ao teatral.

    Assim, nesse captulo, so descritos os modos de desenvolver as

    habilidades perceptivas que permitem ao ator perceber as mudanas fsicas

    trazidas pelo uso da mscara, as quais, por sua vez, possibilitam ao ator

    experimentar um outro modo de estar no mundo, perceb-lo e interagir com ele..

    Trata-se de uma metodologia em que jogo, fisicalidade, comicidade, ludicidade

    qualificam o ambiente de pesquisa do clown. Averiguo como essa metodologia

    pode gerar fisicamente um estado de presena e disponibilidade, essenciais ao

    clown e improvisao.

    No terceiro captulo, apresentado o processo de criao do espetculo

    Um dia, uma banana..., que compe junto com esta escrita o resultado deste

    processo de pesquisa. Procuro retratar as interseces que compuseram o

    processo de criao do espetculo, relacionando os aspectos do treinamento

    realizado com Cristiane Paoli-Quito, os estudos desenvolvidos no curso de ps-

    graduao e alguns elementos de minha histria pessoal. Com esse captulo,

    reviso conclusivamente a hiptese desta tese e seus principais argumentos,

    em So Paulo, desenvolveram o curso de Improvisao dana teatro, que resultou nos espetculos de Movimento e imagem dana teatro improvisao Preldico para clowns e guitarra (1996) e Trinta e trs (1998). Com a Cia. Nova Dana 4 encenou, em 1998, Miragens e SincrnicaCidade; em 1999, guas de maro sobre Lina Bo Bardi, Poetas ao P douvido e Acordei pensando em bombas...; em 2000, Passeios; em 2001, com bolsa da Fundao Vitae, a Cia. estreou Palavra, a potica do movimento, recebendo em 2002 o Prmio APCA Concepo de dana. Em 2004 realizou o Projeto Entremeios, financiado pela Lei de fomento ao Teatro para a cidade de So Paulo, no qual a Cia. estreou o espetculo Vias expressas. Entre novembro de 2000 e maro de 2001 realizou no Centro Cultural So Paulo a mostra Perspectiva Cristiane Paoli-Quito um olhar em movimento, na qual remontou oito trabalhos ao longo dos ltimos 10 anos de sua carreira como diretora. Em 1999, dirigiu o espetculo Moby Dick, uma adaptao livre do romance de Herman Melville, com a Cia Circo Mnimo e Esperando Godot, de Samuel Beckett, com A Lrica Cia, premiada como melhor direo e melhor espetculo no Festival de So Jos do Rio Preto em 2000. Em 2004, dirigiu o espetculo Aldeotas, de Gero Camilo, que recebeu o Prmio Shell 2004. Participou do FID 2000 - Festival Internacional de Dana /BH e Encontros Acarte festival promovido pela Fundao Gulbenkian em Lisboa/ Portugal.

    24

  • delineando tambm alguns procedimentos possveis de construo do clown,

    algumas caractersticas de sua ao e de sua dramaturgia a partir da

    improvisao.

    O desafio de entender o processo de criao do clown pode sugerir uma

    nova hiptese para o treinamento do ator. Ou seja, o treinamento do ator

    pressupe a interao corpo e ambiente. A to buscada espontaneidade e

    naturalidade do personagem pode ser conquistada pelos exerccios, exposies e

    envolvimento do corpo do ator no ambiente de pesquisa teatral desenvolvida,

    seja ela o clown ou no. O treinamento, a criao e a execuo de um

    personagem constituem um modo de exercitar os fluxos de ao e os gestos

    intimamente relacionados com as sensaes e sentimentos (tambm em fluxo no

    momento da ao) que ocorrem no corpo na relao com o ambiente de pesquisa

    teatral. O treinamento e a experincia em cena constituem um exerccio

    constante de aprendizado (manipulao, domnio, construo, criao, crtica e

    percepo) da linguagem teatral, como, por exemplo, o exerccio da leitura e da

    escrita tende a favorecer um melhor desempenho na linguagem verbal.

    25

  • Captulo 1

    1. A URDIDURA DA IMPROVISAO E DO CORPO

    1.1 Improvisao: caractersticas, qualidades, necessidades e

    discusses.

    Viver melhor que sonhar, E eu sei que o amor uma coisa boa, mas tambm sei que qualquer canto

    melhor do que a vida de qualquer pessoa. (Antnio Carlos Belchior)

    A improvisao constitui um ambiente de pesquisa de teatro propcio

    hiptese desenvolvida nesta tese, uma vez que sua estrutura aberta permite que o

    treinamento qualifique o ator no que respeita percepo, ao e ao jogo de

    forma integrada relao entre ambiente, corpo e a improvisao. Alm disso, a

    improvisao compe uma das tcnicas de atuao do clown. Entre outras

    caractersticas, o clown um improvisador (Lecoq, 1997, Paoli-Quito, 2000; Fo,

    1998), o que implica habilidade para tornar-se um jogador, desenvolvendo o

    sentido de cumplicidade, de ateno e de presena, para responder s

    manifestaes casuais que ocorram em determinado momento. A arte da

    improvisao, eu costumo dizer, a arte de responder ao que lhe dado, no

    exatamente de ficar fazendo qualquer coisa, mas de estar o tempo inteiro

    respondendo s necessidades do momento (Paoli-Quito, 2000, entrevista

    pessoal).

    Em O ator compositor, Bonfitto (2002) aponta trs modos de utilizao da

    improvisao no teatro. Ele denominou espao mental o modo de

    compreenso e utilizao da improvisao em pesquisas do teatro

    contemporneo, como, por exemplo, as realizadas por Jerzy Grotowski e por

    Peter Brook. Identifica a improvisao como mtodo quando utilizada para a

    26

  • construo do espetculo e dos personagens, tal como observa nos trabalhos de

    Viola Spolin e na primeira fase do Thtre du Soleil dirigido por Arianne

    Mnouchkine1. Um terceiro modo de utilizao da improvisao designada por

    instrumento respeita o uso da tcnica para a construo de personagem

    presente no texto (literrio ou dramtico) a ser encenado (Bonfitto, 2002).

    A improvisao constitui uma tcnica largamente utilizada no meio

    teatral. Ela ganhou diferentes concepes e metodologias no decorrer da

    histria. Contudo, ainda paira sobre ela uma aura de incognoscibilidade, ou seja,

    dado seu carter imediato, espontneo e instvel, a improvisao parece ser uma

    experincia pouco acessvel a anlise mais formalizada. Essas qualidades

    conferem a ela ainda uma aparente falta de dramaturgia e contribuem com a

    perpetuao do carter depreciativo com que vista no universo da arte

    dramtica. Some-se a isso o fato de que a improvisao ainda pouco

    investigada a partir da grade terica que aplicamos nesta pesquisa. O que no

    ocorre na dana, uma vez que a pesquisadora Cleide Martins (2002) realizou a

    rdua tarefa de estudar a improvisao na dana, em tese de doutorado, fazendo

    uso da Teoria Geral de Sistemas de Mrio Bunge e de alguns pesquisadores da

    linha dinamicista das Cincias Cognitivas, esclarecendo as caractersticas e a

    organizao da improvisao como tcnica e linguagem esttica.

    Por essas razes, cabe aprofundar as reflexes acerca da improvisao:

    sua histria, seus usos, seus entendimentos, seus conceitos e preconceitos no

    fazer teatral, sua metodologia e promover o seu refinamento como tcnica e

    como linguagem e, portanto, como esttica teatral.

    Na histria da improvisao no teatro, possvel verificar que o fazer e o

    pensar a improvisao foram ganhando contornos diferentes e mais consistentes

    na mesma proporo que o corpo do ator foi sendo redimensionado em sua ao

    criativa. Na improvisao, o corpo do ator constitui o eixo de construo da

    dramaturgia e da comunicao. Essa qualidade demanda uma especificidade do 1 Arianne Mnouchkine (1939-), fundadora, em 1964, e diretora do Thtre du Soleil, em Paris.

    27

  • treinamento do ator. Um olhar voltado ao corpo no processo de conhecimento e

    construo do personagem, cuja largada foi dada pelo Mtodo das aes fsicas

    de Stanislavski, por volta de 1918, abriu caminho para que a idia de um corpo

    comandado por uma mente fosse dando lugar idia de um corpo integrado

    mente (Azevedo, 2002). E finalmente, nos dias de hoje, j possvel

    compreender o corpo no apartado da mente e entender que sua experimentao

    deflagra processos cognitivos de incorporao do conhecimento. Essas

    afirmativas so consideradas luz dos estudos provenientes das Cincias

    Cognitivas, que enfocam o corpo como a construo no trmite da relao com o

    ambiente. Sob essa perspectiva, a improvisao pode ser apresentada em um

    novo relevo que embasa as suas metodologias de treinamento e qualifica as suas

    concepes.

    Atualmente, podemos encontrar um exemplo dessa preocupao no relato

    de Oida2,

    Algumas vezes descobrimos essa atuao natural atravs de uma investigao psicolgica. [...] Mas isso nem sempre funciona, j que a trajetria emocional da pesquisa dificultosa e s vezes enganosa. Um ator precisa de mtodos que produzam uma interpretao humana convicente todas as noites, independente do que esteja sentindo (Oida, 2001: 94)

    Nessa perspectiva, torna-se possvel realocar a questo do conhecimento

    e, portanto, questionar como o corpo conhece? Esse aspecto vem sendo

    intensamente pesquisado e discutido nas Cincias Cognitivas desde 1950. Para

    esta tese, sero estudados os pesquisadores Antnio Damsio (2003, 2000 e

    1995), Alain Berthoz, (2003 e 2001), Andy Clark (2001 e 1997) e

    Ramachandran (2002 e 1999), cuja hiptese para essa questo confere ao corpo

    e ao ambiente, em relao contnua, os processos de conhecimento (como e o

    que se conhece). Nesta tese, a histria da improvisao busca reconstituir as

    2 Yoshi Oida (1933- ) ator, formado pela escola de Artes tradicionais do Japo. Desde 1968, integra o Centre Internationel de Creation Thtrale, dirigido por Peter Brook em Paris. Atua tambm como diretor desde 1974.

    28

  • questes que ela suscita, destacando-as conjuntamente aos aspectos processuais

    da incorporao do conhecimento no corpo como uma nova base para a

    compreenso da improvisao.

    Neste sentido, ser analisado na tese escrita e apresentado em espetculo o

    modo de ao do corpo do ator no ambiente especfico da improvisao teatral

    com o clown. luz das pesquisas das Cincias Cognitivas, ser discutido como

    ao espontnea, conscincia, emoes e sentimentos, fluxos de imagens,

    componentes da relao entre o ambiente corpo e o ambiente mundo,

    configuram-se numa improvisao teatral e como contaminam o processo de

    treinamento e composio de um espetculo, qualificando uma metodologia e

    uma dramaturgia apropriada improvisao. Como o corpo e o ambiente

    estabelecem um estado contnuo de comunicao? Como esse estado de

    comunicabilidade conduz a construo da dramaturgia do clown na

    improvisao? Pretende-se mapear alguns aspectos constitutivos dessa relao,

    atentando, na medida do possvel, para a complexidade dessa rede de relaes.

    Assim, sero identificados alguns ns que formam essa rede, sem a pretenso de

    desenh-la completamente. Mapear no reconstituir o territrio.

    O primeiro momento ser dedicado a identificar algumas possveis razes

    pelas quais a improvisao foi subestimada no meio teatral. No segundo

    momento, pretende-se mapear os questionamentos que acompanham a prtica

    improvisacional no decorrer do sculo XX e, concomitantemente, caracterizar a

    improvisao como um ambiente de pesquisa de linguagem teatral e visualizar

    as possveis relaes comunicativas que se configuram entre esse ambiente e o

    corpo do ator.

    Historicamente, a improvisao no teatro foi conceituada como uma

    manifestao espontnea e informal, originria dos rituais e festas populares. A

    partir dessas manifestaes, os dramaturgos deram incio formalizao dos

    elementos dos rituais e das festas em texto e ao dramtica, configurando a

    tragdia e a comdia em textos dramatrgicos (Chacra, 1991). Trata-se de uma

    29

  • concepo na qual a improvisao considerada como expresses espontneas,

    informais, momentneas e desprovidas de forma gradualmente alcana a

    formalizao no texto dramtico. Valoriza-se, nesse sentido, o carter superior

    da linguagem teatral estruturada e formalizada no texto dramtico em detrimento

    linguagem estruturada na improvisao.

    O carter da momentaniedade da improvisao, sua incerteza e desamparo levam os homens de teatro a se empenharem em obter contedos mais estruturados, procederem seleo de elementos cnicos e formarem os alicerces de um teatro formalizado (Chacra, 1991:25)

    Originria da Grcia antiga, essa concepo pejorativa da improvisao e

    dos rituais e festas populares percorre os sculos, provoca preconceitos e,

    possivelmente, dela deriva o pouco conhecimento que se desenvolveu acerca da

    improvisao. Configura-se nesse debate a dualidade entre o pensado, o

    elaborado, o artstico da linguagem teatral formalizada no texto dramtico

    versus o espontneo, o momentneo, o pr-artstico da improvisao. Um objeto

    com tais caractersticas no pode encontrar respaldo terico nos modelos

    filosficos e cientficos de cunho dualista que separam razo e emoo, teoria e

    prtica (e outros binmios), sobrevalorizando um dos aspectos do par em

    prejuzo do outro. Assim, no possvel a construo de um pensamento terico

    e esttico sobre ela, como, por exemplo, a tragdia grega, que encontra um

    interlocutor na Potica, de Aristteles. Nesse sentido, recai sobre a

    improvisao a pr-concepo de ela se configurar como arte menor diante do

    teatro formalizado no texto literrio dramtico.

    Cabe notar que a improvisao e a comdia ganharo estatuto de arte com

    o advento da Commedia dellarte, por volta do sculo XVI, na Itlia. Na

    expresso Commedia dellarte, o termo arte est ligado a ofcio, tal como as

    corporaes e associaes de inventores e artesos do perodo (Fo, 1998). Para

    30

  • demonstrar as concepes valorativas do teatro formalizado no texto teatral

    encontramos em Dario Fo a seguinte reflexo:

    Um respeitvel estudioso ingls, Nicoll, afirma que o termo arte tem o mesmo sentido de qualidade, sendo assim, dellarte significa da maestria. Benedetto Croce, ao contrrio, est de acordo com a origem corporativa, mas somente com o objetivo de demonstrar que os cmicos da comdia italiana, apesar de hbeis histries e mmicos engraadssimos, no eram artistas, e sim pessoas de ofcio, pois no se percebe a presena de um autor genial (Fo, 1998: 21).

    Evidentemente, Croce valoriza o teatro realizado a partir do texto

    literrio-dramatrgico, da linguagem verbal. Ampliando a perspectiva do

    trabalho do ator para alm da linguagem verbal e observando as tcnicas

    utilizadas na Commedia dellarte, destaca-se esta arte como grande

    revolucionria do gnero teatral em sua poca. Os cmicos possuam uma bagagem incalculvel de situaes dilogos, gags, lengalengas, ladainhas, todas arquivadas na memria [...]. Era uma bagagem construda e assimilada com a prtica de infinitas rplicas, de diferentes espetculos, situaes acontecidas tambm no contato com o pblico, mas a grande maioria era, certamente, fruto de exerccio e estudo (Fo, 1998: 17).

    E ainda,

    A Commedia dell arte se baseia na combinao de dilogo e ao, monlogo falado e gesto executado, e nunca unicamente na pantomima. Somente cambalhotas, dancinhas, caretas e gestos, as mscaras no so capazes de segurar uma cena, ao contrrio do que supe Croce (Fo, 1998: 22).

    Embora restrita atualmente a poucos grupos, a Commedia dellarte deixa

    a sua herana ao redimensionar e revalorizar a questo da improvisao no

    teatro, tanto no que respeita a necessidade de treinamento do ator para a

    improvisao quanto improvisao como uma possibilidade de esttica teatral.

    31

  • Da Commedia dellarte, vale ressaltar: a roteirizao das aes,

    canovaccio3, sobre a qual o ator se lanava para improvisar, orientando sua ao

    em cena; e a valorizao do trabalho do ator e seu treinamento tcnico corporal

    bastante especializado, com o uso de acrobacias, trabalho vocal, mmica e

    msica. No se tratava de atores improvisados(Chacra, 1991; Machado,

    2000).

    O carter espontneo e a vitalidade trazida pela improvisao sero foco

    de ateno do fazer teatral moderno e contemporneo, seja como recurso de

    criao (improvisao como mtodo e instrumento), seja como um modo de

    ao na representao teatral (improvisao como espao mental) (Chacra,

    1991; Bonfitto, 2002). A improvisao como espao mental sobressai quando,

    nos anos 70 e 80 do sculo XX, os ncleos de pesquisa teatral questionam a

    primazia do texto dramtico no fazer teatral, ganhando maior ateno o trabalho

    sobre o ator.

    Constantin Stanislavski (1863-1938) representa um importante marco na

    histria do teatro no sculo XX, uma vez que dedicou seus estudos e pesquisas

    sistematizao de um mtodo para o ator. Foi com base no seu sistema que

    muitos diretores e atores contemporneos realizaram sua formao. Seu mtodo

    como um todo, seja a primeira fase (Linhas de foras motivas), seja a segunda

    (Mtodo das aes fsicas), est voltado, prioritariamente, para orientar a

    formao do ator e a criao do personagem de acordo com um texto dramtico

    a ser encenado. Sendo este seu foco de pesquisa, a improvisao em seu sistema

    constitua um recurso para compreenso da pea e para a pesquisa e construo

    do personagem. Conforme Bonfitto (2002), seria a utilizao da improvisao

    como instrumento.

    Na obra de Stanislavski, no h uma preocupao explcita em discutir a

    questo da improvisao, embora a sua convico fosse de que quanto mais os

    3 Canovaccios ou cavenas: roteiro de uma pea de improvisao, uma espcie de resumo da intriga, do jogo de cena e efeitos especiais (Pavis, 2001).

    32

  • atores aprendessem a improvisar cenas que no esto no texto, mais eles

    conseguiriam acreditar na realidade humana dos personagens e das situaes que

    eles representavam (Brook, 2000: 150).

    No captulo Adaptao, de A preparao do ator, podemos traar

    algumas correspondncias com improvisao: De agora em diante usaremos essa palavra, adaptao, para significar tanto os meios humanos internos quanto externos que as pessoas usam para se ajustarem umas s outras, numa variedade de relaes e, tambm, como auxlio para afetar um objeto. [...] uma expesso viva de sentimentos ou pensamentos interiores (Stanilavsky, 1989: 240)

    A adaptao em Stanislavski constitui uma reao constante, adequada e

    ajustada circunstncias sugeridas e/ou aos objetivos a serem alcanados e/ou

    s necessidades do momento, tanto quanto, no dia-a-dia, cada qual se adapta s

    suas necessidade e ou objetivos imediatos.

    Se nas situaes mais comuns da vida cotidiana as pessoas precisam e usam de uma grande variedade de adaptaes, ns, atores, precisamos de um nmero proporcionalmente maior, pois temos de estar sempre em contato uns com os outros e, portanto, em incessantes ajustamentos (Stanilavski, 1989: 243)

    Atualmente, pode-se dizer que no se trata de uma questo quantitativa,

    ou seja, quanto mais adaptaes melhor, mas um modo qualitativo de o corpo

    permanecer no espao, isto , processos adaptativos so contnuos e necessrios

    e, para a improvisao, o diferencial encontra-se na habilidade de o ator

    perceber a maneira como o corpo se relaciona com o ambiente.

    Stanislavski pontua ainda que a fora de um ajustamento reside na sua

    imprevisibilidade e em sua origem no subconsciente. As adaptaes mais

    poderosas, vvidas e convincentes so fruto dessa artista que faz maravilhas: a

    natureza. So de origem quase que de todo subconsciente (Stanislavski, 1989:

    249).

    33

  • Essa concepo aproxima-se do que entendemos por uma ao de

    improvisao: um estado de percepo e prontido que integra o ator aos

    acontecimentos imediatos da cena e o torna apto a distinguir o jogo, o foco, os

    objetivos e/ou as necessidades do momento e assim interagir ajustadamente.

    Trata-se, pois, de uma resposta orgnica e viva na medida em que ocorre de

    acordo com a integrao e a interao do ator e da cena, seja numa cena pr-

    organizada no texto dramtico, seja numa cena que se organiza no prprio fazer,

    cuja base a da improvisao.

    interessante notar como Stanislavski sempre recorre s leis orgnicas da

    natureza, tal como ele as denomina, para fundamentar o trabalho do ator. Elas

    constituem um dos princpios de seus ensinamentos. Stanislavski parte do

    pressuposto de que as bases orgnicas das leis da natureza e as experincias

    vivas do ser humano e do prprio ator so as matrias que aliceram esse

    trabalho. So, portanto, as responsveis pela construo de um personagem que,

    artisticamente, pode reproduzir aspectos mais sutis e profundos da vida humana.

    Abstemo-nos de interferir com a natureza e evitamos desobedecer s suas leis. Sempre que conseguimos nos pr num estado plenamente natural e descontrado, ergue-se dentro de ns um fluxo criador que ofusca com seu brilho o nosso pblico (Stanislavski, 1989: 254).

    Sendo essas as matrias de trabalho, a metodologia de Stanislavski traar

    os caminhos que o ator pode seguir para conhec-las e utiliz-las, sobretudo, no

    que diz respeito aos sentimentos e s emoes. Um dos objetivos do seu sistema

    que o ator aja com a mesma naturalidade que um cidado comum agiria em

    determinadas circunstncias. Da a forte recorrncia s emoes e aos

    sentimentos, no com o intuito de cri-los ou domin-los mas de saber que ali

    est a origem de uma ao ajustada.

    Atualmente, os estudos de Antnio Damsio permitem despontar algumas

    possveis leis da natureza que ajudam a compreender a plausibilidade dos

    princpios relativos aos sentimentos e s emoes encontrados em Stanislavski.

    34

  • Vejamos sinteticamente como, para Damsio, as emoes e os

    sentimentos constituem o primeiro modo de ao do organismo na relao com

    o seu ambiente. As emoes e os sentimentos constituem as funes bsicas de

    sobrevivncia de organismos dotados destes mecanismos. Em linhas gerais, na

    relao entre organismo e mundo, as emoes vinculam o objeto ou situao

    vivida regulao homeosttica (regulao interna do organismo), responsvel

    pela preparao do corpo para a reao emocional ajustada experincia

    (afastar-se, ficar feliz, aproximar-se, sentir dor ou prazer).

    O sentimento vem depois da emoo e por ela gerado, constituindo uma

    experincia no compartilhvel do organismo, enquanto a emoo pode e

    expressa no teatro do corpo. Emoes geram transformaes nos estados

    corporais e tambm so geradas por eles. E os sentimentos so o que o

    organismo experimenta (dor ou prazer), fruto dessa emoo. Segundo Damsio,

    o sentimento , possivelmente, a representao do mapa cerebral que, por sua

    vez, ser a representao da paisagem corporal, ou seja, do estado do corpo, da

    emoo.

    A homeostasia constitui um estado contnuo de estabilidade do

    organismo. A possibilidade de conhecer consiste no efeito que o objeto a ser

    conhecido (interno ou externo) exerce sobre o sistema que regula o controle

    homeosttico, desestabilizando o organismo e, a um s tempo, reorganizando-o

    como se fosse uma funo termosttica. A continuidade do estado de

    estabilidade que permite ao organismo constituir interaes mais complexas

    com o mundo, uma vez que os mecanismos de estabilizao do organismo

    atuam constantemente.

    Esses procedimentos implicam um mecanismo complexo e contnuo de

    funcionamento do crebro no qual este traa continuamente um mapa de

    representao do corpo. O organismo empenha-se em relacionar-se com o objeto

    e este, por seu lado, gera mudanas no organismo. Assim, a tarefa do crebro

    consiste em mapear o organismo, mapear o objeto e mapear a relao entre eles.

    35

  • Ou seja, o crebro constantemente informado sobre os estados do corpo por

    meio do sistema smato sensitivo (interoceptivo, proprioceptivo e tato

    descriminativo4), que transmite suas informaes por meio da corrente

    sangunea ou via neural. Os estados do corpo constituem os mapas neurais5

    emergentes das relaes interna e externa do corpo. Os mapas neurais no so

    percebidos pelo seu produtor. O objeto (interno ou externo) representado no

    crebro e

    o resultado desses comandos uma mudana global no estado do organismo. Os rgos que recebem os comandos mudam em conseqncia destes, e os msculos [...] movem-se conforme lhes foi ordenado. Mas o prprio crebro sofre uma mudana igualmente notvel. A liberao de substncias [...] altera o modo de processamento de inmeros outros circuitos cerebrais, desencadeia certos comportamentos especficos e modifica a sinalizao de estados corporais para o crebro (Damsio, 2000: 95).

    Como vemos, o intrincado mecanismo no qual principiam os processos da

    conscincia depende das reaes emocionais, da capacidade de sentir e da

    capacidade de saber que se est sentindo. O crebro representa a relao do

    organismo com o objeto, na medida em que o objeto gera mudanas de estado

    no organismo juntamente com os objetos evocados por essa reao do

    organismo. As emoes e os sentimentos so as primeiras sinalizaes passveis

    de serem conhecidas pelo corpo que as produziu e constituem estados que

    orientam a ao do organismo no meio. a partir das emoes e sentimentos

    que o organismo age no mundo.

    4 Interoceptivas so as sinalizaes advindas do meio interno e das vsceras e esto incumbidas de perceber as mudanas no meio qumico das clulas de todo o corpo. Proprioceptivas ou cinestsicas so as sinalizaes advindas do sistemas muscular e esqueltico e do sistema vestibular (mapeia o corpo no espao). Tato descriminativo comunica sensaes advindas da pele (tato, olfato, paladar, viso, audio). 5 Mapas neurais o nome dado formao das redes sinpticas de neurnios acionados que representam algum estado do corpo. As imagens mentais correspondem a um momento alm dos mapas neurais no qual estes, conjuntamente, constituem uma imagem mental que, por sua vez, pode vir a ser conhecida por seu produtor. Ou seja, no temos acesso formao das redes neurais e o menor controle sobre os desencadeamentos possveis dessas redes, que s aparecem a ns como imagens mentais.

    36

  • Para um organismo dotado de sentimento (padres sensoriais indicativos

    de dor, prazer e emoes), as emoes impactam a mente. E para um organismo

    dotado de conscincia (saber que est sentindo dor ou prazer e emoo, ter a

    percepo das reaes corporais da emoo), as emoes influenciam os modos

    de pensamento. Nessa perspectiva, possvel compreender por que as emoes

    e os sentimentos no esto fora do conhecimento, no o atrapalham e, muito

    pelo contrrio, so fundamentais para sua formulao.

    Compreendendo o processo de criao artstica como uma forma de

    conhecimento, podemos observar que a emoo e o sentimento no so

    privilgios do fazer artstico e a formulao de conhecimento no privilgio do

    fazer cientfico. Fazer arte e fazer cincia implicam processos de emoo, de

    sentimento e de conhecimento.

    Stanislavski percebeu a importncia das emoes e dos sentimentos

    porque o corpo reage, percebe e age com base nesses primeiros modos de ao

    do corpo. Eles qualificam uma ao ajustada, portanto, espontnea e viva,

    diferente de uma ao automatizada, como os carimbos, os clichs e os

    esteretipos. Este ponto de vista acerca das emoes e dos sentimentos permite

    entender que o corpo humano no apenas uma construo simblica instruda

    pela cultura, mas um complexo processador cuja natureza o habilita a conhecer,

    interagir com o mundo e produzir imagens, relaes e pensamentos.

    Na improvisao, no ser menos importante a questo das emoes e dos

    sentimentos. Fundamentando-se nessa concepo de Damsio, as emoes e os

    sentimentos geram aes ajustadas demanda do momento, ou seja, cabe ao

    ator, na improvisao, aguar sua percepo interna e externa para os

    sentimentos e as emoes, para as sensaes e os pensamentos que tem e

    consegue perceber de acordo com a ao que realiza. Em outras palavras, temos

    aqui uma possvel qualificao para a chamada presena cnica: um estado de

    percepo atento aos acontecimentos externos e internos, donde, ento, a ao

    37

  • realizada vem preenchida dos ajustamentos internos e externos e no

    reproduzida automaticamente.

    Se Stanislavski no apresenta em seus escritos uma preocupao explcita

    com a improvisao, o mesmo no se pode dizer de seus herdeiros nas pesquisas

    realizadas a partir da explorao do Mtodo das aes fsicas.

    Entre as dcadas de 1950 e 1960, as reflexes de Michael Chekhov6 e

    Eugnio Kusnet7, j evidenciam algumas questes relativas improvisao que

    ainda hoje constituem o modus operandi dessa tcnica. No Mtodo das aes

    fsicas, por exemplo, as improvisaes baseiam-se nos acontecimentos da pea,

    construindo e compreendendo a cena, o personagem e a ao na prtica de sua

    realizao. O objetivo da improvisao no buscar as emoes e os

    sentimentos do personagem, mas a sua ao e os recursos para alcanar o seu

    objetivo/necessidade em cena. As emoes viro como conseqncia natural de

    uma ao certa (Kusnet, 1992:104).

    Nesses estudos, podemos identificar que as qualidades necessrias ao ator

    para a improvisao so: a disponibilidade, a observao, a percepo, a

    receptividade, o estado de ateno e a espontaneidade. Um fator fundamental

    para a improvisao em grupo, j pontuado por Chekhov, consiste no processo

    de conexo e interao entre os atores.

    Uma pequena indicao de um parceiro um olhar, uma pausa, uma entonao nova ou inesperada, um movimento, um suspiro ou mesmo uma mudana quase imperceptvel de ritmo pode converter-se num impuloso criativo, num convite aos outros para que improvisem. (Chekhov, 1953:45).

    6 Michael Chekhov (1891-1955), ator, diretor e professor do Segundo Teatro de Arte de Moscou, foi responsvel pela introduo do mtodo de Stanislavski na Europa e nos Estados Unidos. Em 1952, publicou o livro Para o ator. 7 Eugnio Kusnet (1898-1975) nasceu na Estnia e iniciou sua formao artstica na Rssia pr-revoluo. Chegou ao Brasil em 1927. Em 1951, juntamente com Ziembinski, trabalhou como ator no Teatro Brasileiro de Comdia. Profundo estudioso e conhecedor do Mtodo de Stanislavski, foi responsvel pela formao dos atores do Teatro Arena e do Teatro Oficina nesse mtodo. Em Ator e mtodo, Kusnet sintetiza seus conhecimentos e reflexes sobre o mtodo de Stanislavski bem como apresenta seus principais procedimentos como professor desse sistema.

    38

  • Vale ressaltar que as qualidades necessrias ao ator desenvolvidas pela

    improvisao no so prioridades do ator/improvisador, mas do ator de teatro.

    Mesmo num espetculo estruturado, essas qualidades da ao do ator so

    fundamentais para a vitalidade da cena e do espetculo. Como veremos mais

    adiante, elas permitem ao ator perceber seus padres de movimento e de ao e

    compreender o que est se cristalizando ou mecanizando para, ento, destituir os

    automatismos. Por essa razo, a improvisao e foi recurso muito explorado

    para o treinamento do ator em vrios outros mtodos e em pesquisa de

    linguagem.

    A improvisao constitui-se de uma organizao aberta da seqncia de

    aes, mas no de uma ao arbitrria e desprovida de limitaes, comumente

    conhecida pelo fazer qualquer coisa. A roteirizao das aes ou estrutura do

    jogo dramtico ou o canovaccio, como veremos mais adiante, apontam para o

    fato de que a improvisao no uma ao completamente livre e privada de

    critrios. No se improvisa do nada, no somente porque o corpo do ator se

    depara com um roteiro de aes ou uma estrutura de jogo dramtico ou um

    canovaccio, mas porque esse corpo (como qualquer outro) uma vez disposto ao

    improviso no se constitui como uma tbula rasa, como foi pontuado na

    introduo (p.15).

    A roteirizao das aes ou a estrutura do jogo dramtico ou o canovaccio

    so formas diferentes de nomear uma delimitao para a improvisao. Tanto

    para uma improvisao individual quanto coletiva, necessrio definir um

    comeo e um fim para a improvisao na qual, preferencialmente, o fim

    contraste com o comeo (Chekhov, 1953). Essa pequena regra permite ao ator

    no se perder, na medida em que possui um objetivo a ser atingido.

    39

  • Dario Fo8, em Manual mnimo do ator, descreve, nos exerccios de

    improvisao, uma estrutura de jogo dramtico que enfoca a necessidade de se

    criar um conflito e de a histria dar reviravoltas, surpreendendo constantemente,

    mantendo vivo o jogo, criando a expectativa do desenlace.

    O roteiro de aes e o canovaccio da Commedia dellarte constituem

    tambm formas de delimitao da improvisao. Na metodologia de

    improvisao de Paoli-Quito, por exemplo, ela enfatiza, no aprendizado da

    Commedia dell arte, a utilizao do canovaccio como recurso que orienta e

    alinhava a leitura e a realizao de uma improvisao. Por isso que a

    Commedia dell arte foi fundamental; eu aprendi a improvisar e a roteirizar uma

    dramaturgia cnica (Paoli-Quito, 2000). O roteiro das aes segue, de maneira

    geral, a seguinte estrutura:

    1. Apresentao dos personagens e do lugar da ao.

    2. Apresentao das relaes entre esses personagens.

    3. Desenvolvimento dos conflitos dessas relaes.

    4. Desenlace.

    Cabe compreender que esse roteiro de aes no constitui

    necessariamente uma histria seqencial. Ele se compe de poucos elementos

    para orientar a ao do ator, ou seja, uma estrutura mais ampla de um modo de

    organizao da relao dos corpos no espao, no caso, o espao cnico.

    Preencher essa estrutura com aes, jogo, entusiasmo, vida, alegria a tarefa do

    trabalho do ator improvisador.

    Como j apontamos, o corpo do ator, como qualquer outro corpo, no

    uma tbula rasa, o que implica compreender que o corpo se encontra em

    constante fluxo de troca e de comunicao consigo mesmo e com o ambiente

    externo a ele (Damsio, 2000; Berthoz, 2003). Dificilmente, esse corpo

    8 Dario Fo (1926- ) ator, mmico, diretor e produtor teatral italiano. Ganhou o Prmio Nobel de Literatura em 1997. Em 1959, funda com sua esposa a Cia Dario Fo Franca Rame, produzindo e dirigindo peas de carter satrico popular.

    40

  • executar uma ao que no tenha sido originria de seu sistema somato

    sensitivo. Este, por sua vez, no implica uma resposta linear a algum estmulo,

    mas constitui uma rede de estmulos na qual circulam imagens mentais

    provenientes de experincias e conhecimentos anteriores, memrias,

    pensamentos, sensaes, imaginaes que se organizam para ajustar uma

    resposta adequada s outras tantas informaes desencadeadas.

    O corpo do ator treinado para a improvisao se defronta com um roteiro

    de aes, ou um estmulo ou uma proposio. Esse ato de percepo j sinaliza

    algumas possibilidades de ao no contexto das habilidades desenvolvidas. Com

    Berthoz9 (2001), podemos compreender que a percepo se constitui de uma

    ao simulada. Ver um movimento surte a mesma descarga neural de fazer esse

    movimento, o que sugere que haja uma simulao interna, para ento, decidir a

    ao.

    Uma das idias principais deste livro (Le sens du mouvement) que a percepo no somente uma interpretao de mensagens sensoriais: ela constrangida pela ao, ela simulao interna da ao, ela julgamento e tomada de deciso, ela antecipao das conseqncias da ao (Berthoz, 2001: 15)10.

    Berthoz demonstra que o crebro simula, prolonga, projeta, substitui, cria

    uma representao do corpo e do mundo simultaneamente, a partir dos processos

    perceptivos complexos. De acordo com seus experimentos, a percepo j uma

    ao do corpo, uma vez que consiste em uma simulao do movimento do

    objeto percebido e do prprio corpo na percepo desse objeto. Nesse sentido,

    9 Alain Berthoz enfoca tambm uma descrio complexa do funcionamento do crebro em relao ao corpo e ao meio externo. A hiptese desse pesquisador de que o corpo humano constitudo de dois corpos, um de carne e osso e outro virtual, idntico ao de carne e osso mas simulado, ou seja, a partir da capacidade do crebro simular esse corpo de carne e osso, ele cria uma representao dele. Essa representao constitui, segundo Berthoz, o duplo do corpo, cuja ao desencadeia processos de conhecimento e deciso. 10 Une des ides principales de ce livre est que la perception n est pas seulement une interprtation des messages sensoriels: elle est contrainte par l action, elle est simulation interne de l action, elle jugement et prise de dcision, elle est antecipation des consequences de l action.

    41

  • ela orienta uma ao possvel para aquele corpo naquele momento, ou seja, uma

    deciso.

    A deciso uma propriedade fundamental do sistema nervoso baseado em mecanismos de simulao interna do corpo e do mundo, que aumentaram de complexidade no decorrer da evoluo. A deliberao no somente um processo formal e consciente, tambm um trabalho inconsciente, que utiliza mecanismos de criao de cenrios, mesmo fora de toda realidade fsica. O crebro pode decidir em simular a ao. Uma teoria neurocognitiva desta capacidade deve ser fundamentada (Berthoz, 2003: 155).11

    Vale notar que, por no se improvisar do nada, a ao se compe desse

    complexo de aes simuladas que culmina numa deciso (no necessariamente

    consciente) como uma resposta imediata percepo do jogo de relaes

    estabelecidas no momento da ao, seja esse jogo um roteiro de cenas ou aes,

    seja um jogo infantil de pega-pega, seja uma estrutura de jogo dramtico. Sob

    esse aspecto que podemos entender esse modo da ao como espontneo.

    No treinamento de improvisao, pode-se falar do exerccio da ao

    espontnea no contexto dado, questionando como o corpo reage quando

    envolvido em determinadas circunstncias e diante de acontecimentos

    inesperados do jogo das relaes em cena. O treinamento constitui um modo de

    conhecer e criar um sistema de ao e resposta ao jogo (qualidades tcnicas de

    ao) e habilitar o ator a entregar-se ao jogo de cena seja ele uma improvisao

    ou no (disponibilidade e presena cnica).

    A espontaneidade constitui um modo de ao bastante requerido no fazer

    teatral e a improvisao constitui uma das formas de exercit-la, como j

    pontuou Kusnet:

    11 La dcision est une proprit fondamentale du systme nerveux fonde sur ds mcanismes de complexit au fure et mesure de l evolution. La dliberation n est pas seulement un processus formel et conscient, c est aussi un travail inconscient qui utilise des mcanismes de cration de scnarios, mme en dehors de toute ralit physique. Le cerveau peut dlibrer en mulant l action. Une thorie neurocognitive de cette capacite doit tre fonde.

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  • Se partirmos do princpio de que a espontaneidade se revela na ao improvisada ou vice-versa, que a ao improvisada resultado da espontaneidade inata podemos chegar concluso de que o dom de improvisao bem desenvolvido pode substituir o que chamamos de talento (Kusnet, 1992: 98).

    Vejamos uma das formas de compreenso da espontaneidade nas Cincias

    Cognitivas. Por meio de estudos laboratoriais de pacientes com leses cerebrais,

    V. S. Ramachandran e Sandra Blakeslee (2002) buscam lanar uma luz sobre o

    funcionamento da mente e crebro humanos.

    Na verdade, podemos comear onde Freud terminou, ingressando no que se poderia chamar de a era da epistemologia experimental [...] e a neuropsiquiatria cognitiva [...] e comear a fazer experincias sobre sistemas de crena, conscincia, interaes corpo-mente e outras caractersticas do comportamento humano (Ramachandran & Blakeslee 2002: 25).

    Buscan

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