sobre quantos cafés desperdiçamos
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sobre quantos cafés desperdiçamos
querino
nesse instante, a xícara em mãos
diz mais
que os corpos que se afastam
e apenas isso
comparando mitologias
nessa noite todas as palavras serão de adeus
e quem sabe verdades aconteçam
por um cigarro que, aceso, alumia a fé
e o medo e
é leonard cohen quem diz
coisas que não queremos ouvir, mas é bem isso
um tinto para a saudade, um brinde
e tudo depende do quão perto de mim você se deita
mas numa noite como essa há promessas demais por cumprir
gestos que nada dizem
promessas
em cada palavra que negamos por decisão
dizemos adeus e permanecemos
há essa voz na vitrola
e toda ausência que um dia encontramos
la notte (ao som de Wise One, John Coltrane)
Naquela noite,
uma noite como esta,
eu te via, meu caro, deitado
sobre teu vômito a dizer palavras de morte,
a dizer o que eu…
o que…
eu também te via ali, abandonado
no banheiro, as calças arriadas,
e diante de você um espelho,
porque narciso tu era
e então a beleza te levou até ali,
até esse lugar de apenas solidão.
Ali eu também estava:
eu era o teu vômito, o teu espelho muito claro;
eu via coisas que ninguém mais
como testemunha
saberia
se comportar.
Ali eu também estava, numa noite como esta.
Mas eu não te compreendia,
assim como vocês não me compreendiam. Eu apenas observava.
Eu estava longe.
Eu era outra coisa que talvez agora...
O mundo se estendia a diante,
era um caminho, era a minha casa.
Eu estava indo.
In a silent way eu estava indo, mas
junto a você eu morria também, meu caro,
junto a você eu mergulhava nesse rio de teu mijo sobre o chão;
eu morria mais ainda,
a beleza também havia me levado até ali,
e mais ainda.
Mais longe ainda que vocês, eu estava indo.
Eu tinha chegado.
Eu via a morte. Eu via a face de –
Ela não estava mais ali.
Fazia pouco, ela tinha corrido trecho
para onde eu não poderia continuar.
Era o fim, meu caro.
Era o fim e eu não te compreendia.
Eu não compreendia a vocês que tanto me ouviam
falar das horas e horas de nossa fuga:
iríamos para onde, até onde,
eu me perguntava, até quando.
Vocês também me falavam de intervenções e danças,
e naquela noite Dioniso dançava –
tínhamos estado com ele mais além,
no alto daquele morro fora da cidade,
em um teatro aqui agora.
A nós ele revelava segredos,
a nós que por essa antecâmara precisávamos passar
– e é essa a noite em que estamos.
Cada um na sua, estávamos juntos. Estamos juntos,
somos um – e não há transcendência alguma em tudo isso.
Dioniso é aquele que passa: passamos.
E agora o bojo de nossa vitória:
estávamos ali.
Eu estava ali e ela não, a sua ausência sim.
E era porisso que eu não compreendia a vocês
e nem vocês a mim.
Há sempre um ponto mais além, mais aquém
onde chegamos
e ninguém mais. Um pouco à esquerda
eu estava.
Segurei a tua mão por um tempo,
te ofereci o meu ombro,
mas não o bastante, eu sei.
Eu estava só.
Eu era apenas eu.
Não havia mais alguém ali.
O telefone não atendia, não tocava.
Sem a tua graça quem eu seria,
eu perguntava. Um mundo se desfez,
um caminho, a minha casa.
Esse estradar,
não mais.
Não mais, eu dizia: não mais
(e não era para vocês esse meu desalinho,
mas para quem ali não mais estava,
para a parte que nos falta nessa busca por quem somos).
Eu era ninguém,
e teu nome, mulher, eu escrevia
em passos indecifráveis, numa língua estranha
(havia um tinto derramado no chão, se bem me lembro).
Vocês não me compreendiam.
Talvez nesse instante.
Ela sim, até um tempo que agora já não é.
E agora, eu me perguntava, agora que foi aquela noite,
por onde vai esse estradar.
Eu que por tantas vezes disse Sim.
Eu que me gabava, mesmo sem querer,
de tudo isso que tem sido
a nossa vida. Eu tenho orgulho
de tudo o que construímos,
desse lugar que somos.
É para você, mulher, que traço essas linhas.
Pelas noites e dias de nossa presença,
é tua a origem
de todos os poemas. São teus.
Vocês não me compreendiam, não me compreendem,
mas sei o que digo.
Naquela noite eu estive só, eu era ninguém.
Estou só agora,
quero dizer, não há alguém aqui.
caso de noites em branco aqueles ombros fortes de tua presença
quando o tempo
de olhos bem fechados
já se ia passado
não ‘guentariam agora a minha ausência
de ligações perdidas
e noites a esmo sob a neblina
te esperando chegar
do fato
das pedras
flores e espinhos e mais uma tentativa
num desespero de solidão
onde caberia um almoço feito às pressas
sem entendimento
a conversa muito rasa
sem um de nós realmente ali
mas a cama logo mais desfeita num gosto de vinho tinto
para a saudade
que caminho mãos nos bolsos olhos em riste
atravessando a rua
sem qualquer relação de vida ou morte
os passos apenas indo
para onde sabemos que sempre estarei
ou sempre estaremos nós sem amarras sem promessa
dois passos no caminho
e só
(pelas tardes de domingo e vinho tinto)
espero, então, a coisa tua
como se
de fato tu viesse, mulher
inteira
sem desculpa sem promessa
certeira e possível sem beira
para além das causas perdidas
para perto bem mais perto ainda mais
que a superfície transborde
e a gente possa, enfim, amanhecer
como nas tardes de domingo e vinho tinto
como nas tardes de domingo e vinho tinto
teu corpo
ao meu, tua boca
teu verso
que nunca escrevi
para ser apenas nosso esse gosto
tocando a poesia que nome seria o teu em noites como esta,
quando o amor se mostra claro demais,
e é frio e solitário,
e lá fora todos são deuses pois é carnaval,
e você... você não ri nem chora
lembrando da vez em que teu corpo ao dela, exato
feito o dia,
numa língua estranha,
a pele em fogo
e o chão,
o chão –
por um instante apenas fomos mortais.
sobre quantos cafés desperdiçamos por ian c.lima, pablo luz, querino
(ao som de One more cup of coffee, Bob Dylan)
quantos cafés desperdiçamos
sóbrios de que algo existe
quanta vontade e suas somas
nos ignoram plenamente
como se não
como se nunca
estivéssemos presentes
porque pouca dose nos resta
e destroços acumulam
em almas imprevisíveis
enquanto tolos e piadas rasas
nos alimentam a realidade de um dia seguinte
esquecemos tantas canções quanto cigarros num bolso qualquer
a fumaça ainda nos ardendo os olhos
a noite em seus versos mais sujos
palavras de silêncio, palavras
de uma ausência tão foda quanto a falta de vinho
e já é hora de irmos embora, mas
insistimos uma vez mais
porque não há lugar para pessoas como nós
não há lugar para ausências como as nossas, não há vidas
que sejam como as nossas
: teu braço, Elba
se deslocando em minha direção
consoante o movimento acintoso de teus quadris
e as nuvens
nos assistindo com uma dança sensual, cúmplices
a praça
com dylan a espreitar
nossos olhares
tuas pálpebras de sedução
esses teus olhos de morgana
e teu corpo, a tatuagem, enquanto eu
eu esqueço cigarros esquecendo blues
você esquece o dylan, darlin’?
oh, eu não esqueço você
não, eu não esqueço você
há ainda esse teu gosto agridoce a impregnar o ar
a nos fingir eternidades, a nos convencer
da vida
a vida
que é feito nós mesmos
ou o que resta após tantas confissões a esmo
num buteco qualquer
sobre uma mesa de sinuca qualquer
confissões gratuitas
de uma realidade que não nos pertence mais
(porque doçura paira, ausência corrompe)
quantos cigarros doem as almas solenemente duvidosas?
beije minhas pálpebras no delírio que tu é
– estou aquém dos ideais,
algo além das percepções,
trêmulo na mesa, compreendo apenas
e me torno o incômodo dos que flutuam futilmente –
mais uma xícara de café
e a fumaça escapa da locomotiva mais explosiva do meu crânio
atingirá aquela nuvem, pergunto
e, calado, silencio essa canção
que agora a pouco esqueci
aquela mesma canção que serpenteou esse teu corpo nu
quando o vinho faltou
e nos víamos irresistivelmente
tingidos
por um acorde lento que
ainda perdura em nós
mas por muito pouco tempo
a canção irá acabar
seu fim está próximo
como esse último cigarro que já teima em me queimar os dedos
depressa, aperta bem forte contra o peito
mata-me, mas uma canção por vez
mato-me
entre vários coitos
que em revelar não escasso
arde na mente verdades prováveis
na ponta da língua na causa da carne
e deixo ela retirar-se e um boa noite: basta!
castrado como poucos agora
que a chuva caia apoteótica
(puta merda!)
e distorça as entranhas
disfarçando o asco dos cigarros
com sons deslocados que não são meus, mas agradam
que não inspiram, mas concordam o minuto
o que há dentro? o que há agora
quando mergulho nos ecos mais agradáveis
e todo o colapso inerente nos faz sorrir
e esperar o próximo acaso.
body and soul
nas horas em que te espero
o dia que não está a vir
ouvindo caetano cantar
oh doce irmã
um rio a me esquecer sobre você
longe de todos os beijos teus que não vivi
que não viverei à espera de teu corpo
e tu não saberá de mim
que dancei para a lua numa noite como esta
que entreguei ao vinho as lágrimas de nosso carnaval
que deixei partir a tua estrada
e feito conversa encantei as pequenas coisas
todas em afetos desregrados
para algum fim
qualquer
(é teu nome que escrevo nestes poemas
teu nome de adeus e paixão)
Publicado em Outubro de 2011 (1ª edição, ebook)
Capa, fotografia: giselli moreira
candeeirocafe.wordpress.com
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