revista ciência dinâmica - 4ª edição
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Apresentação
A Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga, em Ponte Nova/MG tem a grata
satisfação de trazer à comunidade acadêmica e a toda a sociedade mais uma edição da Revista
Ciência Dinâmica.
A Revista Ciência Dinâmica é um periódico semestral editado pela Faculdade
Dinâmica que chega ao seu quarto número e, com ela, são oferecidas aos leitores importantes
contribuições, que demonstram a consolidação do trabalho intelectual, nesta edição, dedicado
exclusivamente ao corpo docente da Faculdade.
O objetivo da Revista Ciência Dinâmica é dar a mais ampla possibilidade de
divulgação e acesso à produção científico-acadêmica e, com isso, promover a socialização do
saber e a ampliação das possibilidades de reflexão, debates e trocas instigadoras de novos
conhecimentos nas áreas das Ciências Jurídicas e Sociais.
São apresentados nessa edição 7 artigos que procuram trazer contribuições
pontuais para o entendimento da realidade jurídica que nos cerca.
A revista está disponível no endereço eletrônico www.faculdadedinamica.com.br
e, em breve, também em meio impresso.
A Revista Ciência Dinâmica tem a missão de constituir-se em um periódico
qualificado, fomentado preferencialmente por artigos elaborados pelos acadêmicos do Curso
de Direito da Faculdade Dinâmica, propiciando, através do estímulo à reflexão científica, o
amadurecimento, a ampliação do conhecimento e a consolidação dos ensinamentos teóricos
absorvidos na Faculdade, contando, ainda, com a valorosa contribuição de professores da
Instituição e de professores convidados que só vem enriquecer o conteúdo da publicação.
LEILSON SOARES VIANA
Coordenador-Adjunto do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica
Representante do Conselho Editorial
Revista Ciência Dinâmica®
Editora: Faculdade Dinâmica
Ano II, n° 4, 2° Semestre 2010
ISSN – 2176-6509
_________________________
Conselho Editorial: Prof. Dr. José
Luiz Quadros de Magalhães, Prof.
Leilson Soares Viana, Prof. Mestre
Bernardo Gomes Barbosa
Nogueira, Prof. Mestre José
Carlos Henriques, Prof. Ms.
Ramon Mapa da Silva, Prof.
Ernane Salles.
________________________
Revista Ciência Dinâmica.
Faculdade Dinâmica do Vale do
Piranga. Rua G, n° 205, Bairro
Paraíso. Ponte Nova-MG.
Contato: (31) 3817-2010
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É proibida e reprodução, no todo
ou em parte, dos artigos
publicados nessa Revista sem
prévia autorização dos seus
autores, resguardado o direito de
citações com expressa referência à
sua fonte.
Copyright©
Todos os Direitos Reservados
Ponte Nova – 2010/2
________________________
Formando Pessoas!
Editorial
A presente edição da Revista Ciência Dinâmica é especial por uma série
de motivos. O mais evidente deles é a presença somente de docentes da
Faculdade Dinâmica na posição de autores, algo planejado e desejado desde a
primeira edição e que agora se torna uma feliz realidade. A destacada
qualidade dos temas e artigos desenvolvidos também contribui para que essa
edição seja considerada de forma diferenciada. Mas outro motivo a ser
marcado é que a próxima edição da Revista Ciência Dinâmica seguirá o
mesmo modelo, somente com artigos de professores da casa. Esse intervalo
nos permite mais do que visitar a produção científica dos nossos profissionais,
age também como um poderoso incentivo ao trabalho acadêmico de nossos
estudantes e colaboradores externos, além de trazer um fôlego renovado para
um retorno à nossa linha editorial regular com a participação de cientistas do
direito de todo o Brasil que, muito atenciosamente, atendem nossas chamadas
de artigo, provando sempre a qualidade da pesquisa jurídica nos últimos anos
em nosso país.
A ciência é o espaço do provável, e nada mais distante do espírito
científico do que a certeza. E como espaço do provável é impossível impedir
o flerte da ciência com o falso, com o erro. Mas é exatamente esse flerte que a
motiva, que a insere nessa tentativa de substituir o menos provável pelo mais
provável. Ainda que em um universo tão vasto quanto o da investigação
científica, em que milhares de publicações como a nossa orbitam a incerteza e
a probabilidade, a contribuição que temos a dar soe com ínfima, é na missão
de incutir esse espírito científico em nossos alunos e na comunidade em que
estamos inseridos que nosso valor se mostra relevante e nosso trabalho
importante e necessário. Horizontes se ampliam aqui, ainda que através do
caminho tortuoso que a ciência sempre trilhou ao desfazer preconceitos e
falsas compreensões. E é na discussão acadêmica responsável e constante que
reside a força para minar de vez muitos desses muros.
O convite que sempre fizemos para que, de uma forma ou de outra, todos
os interessados participem dessa discussão e da consequente construção de
conhecimento acadêmico é reiterado por essa edição especial. Nosso
agradecimento sincero a todos os autores. A demonstração de conhecimento
que deram nas próximas páginas rivaliza com as constantes demonstrações de
valor e sabedoria em sala de aula. Aos nossos alunos, mais uma vez obrigado
pelo apoio inconteste e curiosidade científica, sem dúvida, maior motivação
para nosso trabalho. Aos nossos leitores, uma boa leitura e uma viagem
instrutiva pelas veredas da ciência jurídica.
PROF. MS. RAMON MAPA DA SILVA Coordenador do NAP – Núcleo Acadêmico de Pesquisa
Faculdade Dinâmica
SUMÁRIO
O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E A AFIRMAÇÃO DE CONSTITUCIONALIDADE DA
LEI 11.340/2006 – Marina Oliveira Guimarães e Bruno Franco Alves.............................5
GESTÃO SOCIAL, PARTICIPAÇÃO POLÍTICA, CONSELHOS E DESENVOLVIMENTO
DELIBERATIVO – Douglas Luis de Oliveira......................................................................... 14
INTERROGATÓRIO POR VÍDEOCONFERÊNCIA: tecnologia a serviço da justiça ou
violação dos direitos do acusado!? – Thiago Grazziane Gandra............................................. 25
A PRISÃO COMO INSTRUMENTO DE CONTROLE SOCIAL NA ÓTICA DE MICHEL
FOUCAULT: uma análise de “Vigiar e Punir” – Maria Antonieta Rigueira Leal
Gurgel....................................................................................................................................... 32
A RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO CAUSADO AO PATRIMÔNIO
HISTÓRICO E CULTURAL – Arimaire Alvernáz.................................................................. 43
OS AVANÇOS DA POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS NA
PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE E A RESPONSABILIDADE
COMPARTILHADA – Raíssa de Oliveira Murta, Filipe Rodrigues Garcia, Iglesias
Fernanda de Azevedo Rabelo................................................................................................... 81
O DIREITO CONSTITUCIONAL SOB A PERSPECTIVA DO NEOCONSTITUCIONALISMO –
Leilson Soares Viana................................................................................................................ 91
5
O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E A AFIRMAÇÃO DE CONSTITUCIONALIDADE
DA LEI 11.340/2006
THE PRINCIPLE OF EQUALITY AND ASSERTION OF CONSTITUTIONAL LAW
11.340/2006
Marina Oliveira Guimarães1
Bruno Franco Alves2
RESUMO
A história das mulheres é marcada pela luta por igualdade, tendo em vista a construção da
sociedade delineada por um padrão masculinizado. Durante a história, muitos direitos foram
conquistados formalmente pelas mulheres, porém, a efetividade desses ainda é uma batalha,
bem assim a conquista de outros. Desta maneira, a Lei 11.340/2006, conhecida como Lei
Maria da Penha, é um marco dessa conquista por igualdade, já que é a mulher ainda a grande
vítima da violência doméstica e familiar que se prolifera silenciosamente nos lares brasileiros,
em decorrência de uma história marcada pela submissão e obediência perante o homem. Por
uma visão ainda distorcida acerca do princípio da igualdade, essa lei é objeto da crítica de
muitos, chegando a ser considerada como inconstitucional por alguns juristas pelo tratamento
diferenciado conferido a homens e mulheres. Porém, uma análise da própria Constituição da
República permite percebê-la como constitucional e cumpridora da justiça social. O presente
trabalho apresenta uma revisão bibliográfica sobre a conquista histórica dos direitos da
mulher até a Lei Maria da Penha e busca realizar reflexões jurídicas capazes de fundamentar a
constitucionalidade desta norma.
Palavras-chave: direito das mulheres, constitucionalidade, Lei Maria da Penha.
ABSTRACT
Women's history is marked by the struggle for equality, with a view to building society
delineated by a masculine pattern. Throughout history, many rights were won by women
formally, however, the effectiveness of these is still a battle, as well as the conquest of others.
Thus, Law 11340/2006, known as Maria da Penha Law, this achievement is a milestone for
equality, since the woman is still the main victim of domestic violence that proliferates
silently in Brazilian households, due to a history marked by submission and obedience to
man. For an even distorted on the principle of equality, this law is the object of criticism from
many, coming to be regarded as unconstitutional by some lawyers for the different treatment
given to men and women. However, an analysis of the Constitution itself allows to perceive it
as constitutional and respectful of social justice. This paper presents a review on the historic
achievement of women's rights to Maria da Penha Law and tries to make legal considerations
that can justify the constitutionality of this standard.
Keywords: women's rights, constitutionality, Maria da Penha Law.
1 Mestranda em Economia Doméstica pela Universidade Federal de Viçosa/MG. Bacharel em Direito pela
Universidade Federal de Ouro Preto/MG. 2 Mestrando em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor da
Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga.
6
1. INTRODUÇÃO
As relações sociais, tomando o modelo masculino como paradigma, alimentam a
subserviência e submissão das mulheres face aos homens ao se pautar em uma práxis social
machista, excludente e opressora. Desta forma, a luta pela emancipação da mulher elegeu
como tarefa fundamental a construção da igualdade nas relações de gênero como meio de
transformar a cultura que serve de esteio às práticas discriminatórias.
A violência contra a mulher é uma das formas pelas quais se evidencia a assimetria
nas relações de gênero. Pesquisas revelam que um número considerável de mulheres ainda é
vítima da violência doméstica e familiar que silenciosamente assola e destrói a vida das
mulheres agredidas e de suas famílias.
Dentre os instrumentos normativos criados com o fito de promover a igualdade está a
Lei n° 11.340, em vigor desde o dia 22 de Setembro de 2006, popularmente conhecida como
“Lei Maria da Penha”. Esta norma constitui uma resposta jurídica ao problema da violência
doméstica contra mulheres, constituindo um marco na luta feminista por direitos.
Cumpre esclarecer que o nome dado à lei é uma homenagem a Maria da Penha Maia
Fernandes, farmacêutica que sofreu constantes agressões e ameaças por parte de seu marido,
professor universitário e economista, que a deixaram paraplégica em 1983. Em decorrência da
morosidade na justiça, quinze anos passaram-se sem que fosse proferida sentença terminativa
no processo de responsabilização do agressor. Maria da Penha formalizou denúncia contra o
Estado Brasileiro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos
Estados Americanos (OEA) como forma de tornar públicas a complacência e impunidade da
violência doméstica contra as mulheres no Brasil.
Em decisão histórica, a Comissão Interamericana responsabilizou o Estado brasileiro
por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra as mulheres,
recomendando diversas medidas a serem tomadas (DIAS, 2010).
Este artigo apresenta uma revisão bibliográfica sobre a conquista histórica dos
direitos da mulher até a Lei Maria da Penha. Em um segundo momento, propõe-se reflexões
jurídicas sobre a constitucionalidade da referida norma, baseando-se especialmente no
princípio constitucional da igualdade.
O estudo buscou demonstrar que a conquista de direitos pelas mulheres ainda está
sendo construída no decorrer da história e que a própria Constituição deve ser interpretada a
partir de uma perspectiva atenta às relações de gênero, marcadas pelo padrão masculinizado,
para que se possa obter decisões judiciais aptas a conferir sentido ao princípio da igualdade.
7
2. A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DE DIREITOS DA MULHER
A luta por igualdade se diversifica pelas mais variadas razões, sejam essas de raça,
classe social, sexo, gênero e etc. A história das mulheres é marcada por essa luta.
Ainda no século XVIII, a Revolução Francesa fez nascer uma esperança de igualdade
pelos anúncios e promessas de que todos os indivíduos seriam “considerados os mesmos para
os propósitos de participação política e representação legal” (SCOTT, 2005, p.15).
Entretanto, a realidade mostrou-se contrária ao discurso oficial.
Espíritos utilitários, os Constituintes construíram, sobre uma formulação de alcance
universal, uma obra de circunstância; legitimando as revoltas passadas contra a
autoridade real, tencionavam premunir-se contra qualquer tentativa popular visando
à ordem que eles instauraram. Daí, numerosas contradições da Declaração. O artigo
1° proclama todos os homens iguais, mas subordina a igualdade à utilidade social; o
artigo 6° só reconhece formalmente a igualdade diante do imposto e da lei; a
desigualdade decorrente da riqueza permanece intangível. A propriedade é
proclamada, no artigo 2°, um direito natural e imprescritível do homem - mas a
Assembléia não se preocupa com a imensa massa dos que nada possuem. A
liberdade religiosa recebe singulares restrições no artigo 10 [...] Todo cidadão pode
falar e escrever, imprimir livremente, afirma o artigo 11 – mas há casos
determinados em que a lei poderá reprimir „os abusos dessa liberdade‟. (SABOUL,
1981, p. 154).
A cidadania, como demonstra o texto, não foi conferida a todas as pessoas, vez que
submetida ao conceito de utilidade social. Às mulheres, o argumento era o de que seus
deveres domésticos lhes impediam de participar da vida política. Em síntese a cidadania era
negada a todos aqueles que por diferença de classe social, raça e gênero não se identificassem
com o homem branco de determinada classe social (SCOTT, 2005).
A mulher, assim, não era vista como indivíduo por não possuir semelhanças com os
homens. Scott afirma que a igualdade “pertence a indivíduos e a exclusão a grupos; era pelo
fato de pertencer a uma categoria de pessoas com características específicas que as mulheres
não eram consideradas iguais aos homens” (SCOTT, 2005, p. 17).
Essa diferenciação ultrapassou os anos, de modo que a luta por igualdade de direitos
das mulheres é pautada até os dias de hoje e a conquista de direitos femininos percorre um
longo tortuoso na história.
No Brasil, a mulher obteve autorização do governo para estudar em instituições de
ensino superior em 1879. Na Nova Zelândia, em 1893, a mulher obteve, pela primeira vez,
direito ao voto. (D‟ALKMIN et al, 2006).
A luta por direitos políticos era constante. Em 1927, o Governador do Rio Grande do
Norte alterou a lei eleitoral de modo a permitir o direito de voto às mulheres, porém elas
8
tiveram os votos anulados. Quatro anos depois, Getúlio Vargas promulgou o novo Código
Eleitoral, garantindo, finalmente, o direito de voto às mulheres brasileiras (D‟ALKMIN et al,
2006).
No caminho oposto, durante o Estado Novo foi instituído o Decreto 3199, que
proibia as mulheres de praticar vários esportes, tais como lutas, futebol de salão e de praia,
halterofilismo e beisebol, por considerá-los incompatíveis com as “condições femininas”.
Após a Segunda Guerra Mundial, a igualdade de direitos entre homens e mulheres
foi reconhecida em documento internacional, através da Carta das Nações Unidas. Dois anos
depois, foi aprovada pela Organização Internacional do Trabalho a igualdade de remuneração
entre trabalho masculino e feminino.
A conquista por direitos da mulher ainda caminhava a passos lentos. Diante de um
cenário marcado pela exclusão, no final da década de 1960 os movimentos feministas
tomaram força em países capitalistas questionando a divisão tradicional dos papéis sociais
atribuídos a homens e mulheres. Esses movimentos buscavam desnaturalizar as compreensões
relacionadas às diferenças entre os sexos, pautando que a identidade feminina não é uma
determinação biológica, mas uma construção histórica e social.
Por influência internacional, os movimentos de mulheres tiveram período de
ascensão no Brasil a partir da década de setenta. Nesse período, o país vivia uma ditadura
política que assolava as condições sociais, econômicas e políticas da população e, por essas e
outras razões, muitos movimentos e organizações populares emergiram a partir de bandeiras
como liberdade de expressão, a democracia, a reforma agrária e melhores condições de vida.
Em decorrência de baixos salários e do aumento do custo de vida, as mulheres
começaram a exigir do Estado o atendimento de necessidades básicas como creches, melhores
salários e demais direitos sociais. Para tanto, começaram a se reunir motivadas pela
identificação de que possuíam direitos que lhes eram sistematicamente negados, seja pela
ausência do reconhecimento oficial destes direitos seja para carência de efetividade social
daqueles já formalmente conquistados.
É a partir desse período histórico e por reivindicação de grupos feministas, que a
violência contra a mulher passou a receber crescente atenção e a pautar muitas de suas ações.
Em 1962, foi sancionada a Lei nº 4.121, que ficou conhecida como “Estatuto da
Mulher Casada”. Esse estatuto garantiu, entre outras coisas, o direito da mulher de trabalhar e
de receber herança sem precisar de autorização do marido, bem como a possibilidade de
requerer a guarda dos filhos em casos de separação (ALVES, 2007).
9
Já em 1979, caminhando com o reconhecimento de direitos políticos, Eunice
Michilles tornou-se a primeira mulher a ocupar o cargo de Senadora, por falecimento do
titular da vaga (D‟ALKMIN et al, 2006).
Em 1980 foi recomendada a criação de centros de autodefesa para coibir a violência
doméstica contra a mulher, momento histórico em que surge o lema “Quem ama não mata”
(FARIA, 2010).
Três anos mais tarde surgiram os primeiros conselhos estaduais da condição feminina
com o objetivo de traçar políticas públicas para as mulheres. O Ministério da Saúde criou o
Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher em resposta à forte mobilização dos
movimentos feministas, baseando sua assistência nos princípios da integralidade do corpo, da
mente e da sexualidade de cada mulher.
No ano de 1984 foi ratificada pelo Estado Brasileiro a Convenção da Organização
das Nações Unidas sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
(FARIA, 2010). No ano seguinte, foi criada a primeira Delegacia de Atendimento
Especializado à Mulher no Estado de São Paulo que, paulatinamente, foram sendo
implantadas em outros estados brasileiros. Ainda neste ano, com a Nova República, foi
aprovado Projeto de Lei que criou o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres.
A partir da reivindicação dos movimentos de mulheres, no ano de 1987 foi criado o
Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Rio de Janeiro, para assessorar, formular e
estimular políticas públicas de valorização e promoção femininas (DESLANDES, 1999).
Finalmente, em 1988, por meio da “bancada do batom”, expressão pela qual ficou
conhecido o movimento liderado por feministas e pelas 26 deputadas federais constituintes, as
mulheres obtiveram importantes vitórias na Constituição Federal, garantindo-se a igualdade
de direitos e obrigações entre homens e mulheres como um direito fundamental.
Com a finalidade de efetivar a igualdade propugnada pela Constituição da República,
algumas normas foram criadas. É o caso da Lei 9504, de 1997, que instituiu o sistema de
cotas na Legislação Eleitoral, obrigando os partidos e coligações a respeitarem a proporção de
no mínimo 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) de cada sexo para o
registro de candidaturas ao Legislativo. Esta política foi uma resposta à insuficiente
representação feminina na vida política institucional, funcionando como mecanismo de
estímulo a participação da mulher na vida pública do país.
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Da mesma forma, em 1995, o Brasil ratificou a Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, salvaguardando a prática da
discriminação positiva em favor do gênero feminino (FARIA, 2010).
Nesse mesmo ano, a Lei 9.099/95 instituiu os Juizados Especiais, trazendo a proposta
de maior celeridade e eficácia às punições de delitos de menor potencial ofensivo, dentre os
quais estavam incluídos alguns dos mais recorrentes casos de violência doméstica contra a
mulher.
Com a criação dos juizados especiais criminais, os delitos abarcados pelo novo
procedimento ficavam excluídos da prisão em flagrante ou da exigência de fiança, impondo-
se rotineiramente como condenação o pagamento de multas, cestas básicas ou a prestação de
serviços à comunidade. Destarte, os ideais de celeridade e efetividade da jurisdição que
orientaram a criação dos juizados especiais acabaram por impactar negativamente o combate
à violência doméstica contra a mulher, vez que a suavidade das penas permitia a banalização
deste crime.
A reivindicação por políticas de ações afirmativas para conter a violência doméstica
contra a mulher ganha força no final da década de noventa. Defende-se que por meio da
afirmação e do enfrentamento da diferença, seja possível alcançar a igualdade nas relações de
gênero.
A Lei Federal 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, é fruto desta
concepção. Conferindo tratamento diferenciado à mulher vítima de violência doméstica, essa
Lei constitui um exemplo de política de ação afirmativa, com o reconhecimento pelo Estado
da existência da discriminação contra as mulheres e da necessidade de se alcançar a igualdade
por meio de um tratamento diferenciado.
3. O ALCANCE DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE E A LEI MARIA DA PENHA
A igualdade é um dos direitos e garantias fundamentais assegurados pelo
Constituição de 1988. Está expresso no artigo 5º do texto constitucional que todos são iguais
perante a lei e que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações.
A realidade social demonstra que as mulheres ainda estão em luta para conquistar
essa igualdade.
O próprio texto constitucional reconhece as diferenças entre homens e mulheres e
trata de impor mecanismos anti-discriminatórios e de conferir tratamento diferenciado a
ambos como estratégia de superação das desigualdades. Como exemplo, o artigo 201 da
11
Constituição, que trata do regime previdenciário, garante o direito às mulheres aposentadoria
aos 60 anos de idade, e, para os homens, aos 65 anos de idade.
Estas normas, assim como a Lei Maria da Penha, tratam de conferir eficácia social ao
princípio da igualdade. Para tanto, este princípio deve ultrapassar a garantia formal de
igualdade propugnada pelo art. 5º da Lei Maior em busca da igualdade material, o que só é
possível conferindo-se tratamento diferenciado àqueles que ocupam posições sociais
diferentes em decorrência possuem de um déficit de reconhecimento ou da escassez de
recursos e bens necessários à manutenção da vida.
As decisões judiciais que asseveram a inconstitucionalidade da Lei Maria da Penha
com o argumento de que ela atentaria contra o princípio da igualdade incorrem em um erro
tremendo, pois ao desconsiderar a realidade social conferem a este princípio alcance
infinitamente menor do que lhe é devido.
Não é demais relembrar a sempre sábia lição de Aristóteles, para quem igualdade e
justiça são indissociáveis. A igualdade de que fala o Estagirita não é aquela igualdade formal,
que apaga e desconsidera as diferenças, mas antes uma igualdade que propugna que deve ser
reservado tratamento igual aos que são iguais e desigual aos que são desiguais, na medida em
que se desigualam.
A Lei Maria da Penha surge a partir da identificação de que a violência doméstica e
familiar contra a mulher é um tipo de violência fundada na assimetria das relações de gênero,
na sobreposição do masculino sobre o feminino ao longo da história, o que justifica o
tratamento diferenciado que é direcionado à mulher vítima de violência e aos agressores.
A constitucionalidade da Lei Maria da Penha deve ser afirmada como forma de
promover de maneira plena o princípio da igualdade. Decisões em contrário primam por uma
interpretação da norma jurídica que se descola da realidade social ao considerar que homens e
mulheres possuem o mesmo nível de reconhecimento social. Afirmam, com apego peculiar ao
sentido literal do texto normativo, que se homem e mulheres são iguais perante a lei, a Lei
Maria da Penha seria inconstitucional pelo fato de tratar de maneira especial os casos de
violência doméstica contra as mulheres.
Tal interpretação não deve prevalecer pelo fato da Lei Maria da Penha se inserir em
um contexto maior de políticas de ações afirmativas que partem do pressuposto de que a
mulher, apesar de suas lutas e vitórias ao longo da história, ainda é vítima da exclusão e
opressão masculinas. A Lei Maria da Penha é, outrossim, uma medida legislativa que ao
12
admitir a desigualdade visa combatê-la conferindo tratamento diferenciado a pessoas que
estão em posições diferentes e não iguais, como querem alguns.
Admitir a existência da desigualdade é o primeiro passo em direção à conquista da
igualdade.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mesmo diante da conquista de direitos da mulher ao longo da história, a assimetria
nas relações de gênero ainda é um problema que afeta as relações sociais. A participação da
mulher na vida pública ainda é muito mais tímida que a participação dos homens. Os dados
também expressam que não obstante as garantias legais, as mulheres ainda são vítimas da
discriminação profissional, com média salarial inferior à dos homens.
Não se pode deixar de reconhecer que predomina na sociedade brasileira uma cultura
machista, que dissemina preconceitos velados e socialmente consentidos. A naturalização das
características atribuídas ao feminino e ao masculino engendra as mulheres numa trama de
opressão que as submetem à autoridade dos homens, manifestada em muitos casos por meio
da violência doméstica e familiar.
Por esta razão, a desnaturalização das posições femininas e masculinas se faz
importante para que a opressão da mulher seja encarada como um problema real, carecedor da
implementação de políticas públicas pautadas pela promoção da igualdade.
A Lei Maria da Penha é uma ação afirmativa que evidencia este compromisso com a
discussão de novas relações sociais pautadas na igualdade de gênero.
Os mecanismos de proteção previstos nesta norma contribuem para que o silêncio da
vítima seja rompido e que o problema ultrapasse a esfera da família para atingir o debate
público, que contribuem decisivamente para a continuidade do ciclo de violência. Neste
processo, rompe-se com a indiferença da sociedade em relação ao tema e força-se o debate
sobre a condição social da mulher.
A aplicação da Lei Maria da Penha pelos tribunais é o reconhecimento de que a
democracia não é uma obra que se acaba com a positivação de uma Constituição, mas que
depende da construção diária para que possa existir. Assim, a igualdade pressuposta pelas
democracias modernas é um princípio que depende da prudência de juízes capazes de
reconhecer que muito mais que tratar a todos de maneira igual, sem estabelecer qualquer
13
distinção, a aplicação do princípio da igualdade deve considerar as diferenças existentes para
que possa, de fato, atender aos reclames por justiça.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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parágrafo único, da lei no 11.340/2006, Lei Maria da Penha. De Jure - Revista Jurídica do
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D‟ALKMIN, S. M.; AMARAL, S. T. A Conquista do voto feminino no Brasil. ETIC -
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DIAS, M. B. A Lei Maria da Penha na Justiça: A efetividade da Lei 11.340/2006 de combate
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S; WOODWARD, K. Identidade e Diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais.
Petrópolis: Ed. Vozes, 2000.
14
GESTÃO SOCIAL, PARTICIPAÇÃO POLÍTICA,
CONSELHOS E DESENVOLVIMENTO DELIBERATIVO
Douglas Luis de Oliveira1
Resumo
Compreender o processo de transformações pelas quais a Administração Pública vem
passando faz parte da autopoiese do Direito. Compreender como novos atores sociais se
comportam e as exigências advindas das mais diferentes camadas da população mostram o
contorno desse processo de delineamento de um novo Direito Administrativo. Num recorte
meramente experimental, buscou-se compreender como procedimentos de inserção da
população na tomada de decisão ambiental podem influenciar o resultado final de políticas
públicas, quanto podem somente figurar como instrumentos de legitimação. Os conselhos,
comitês de bacias hidrográficas, dentre outras formas de participação têm se mostrado
instrumentos de gestão que permitem a abertura de determinados temas, antes deixados tão
somente ao poder discricionário do administrador, à intervenção da sociedade interessada.
Com um estudo de cunho exploratório, o trabalho levanta mais questões que propriamente
respostas, a fim de trazer a lume a discussão sobre um tema pouco enfrentado na literatura
jurídica nacional, que é a dos papéis dos novos atores no século XXI e como estas atuações
contribuem para novas interpretações do Direito Administrativo.
Palavras chave: gestão pública; participação; decisão.
Introdução
Gestão social é um conceito que busca descrever processos diversos que envolvem
algum nível ou grau de institucionalização de mecanismos de partilha do poder decisório,
entre o Estado e a sociedade, sobre a elaboração e implantação de políticas públicas. Esta
partilha do poder de decisão entre governo e sociedade pode assumir diversos formatos, que
variam, principalmente, de acordo com o grau de institucionalização que alcançam e com o
tipo ou nível de participação social que mobilizam. Assim, temos, por exemplo, consultas
públicas, comitês, assembléias, câmaras setoriais, fóruns, orçamentos participativos,
conselhos e órgãos colegiados diversos. Quanto ao tipo ou nível de participação, os processos
de gestão social podem envolver desde a simples consulta para recolher subsídios junto a
comunidades até a delegação de poder e controle a cidadãos ou a seus representantes
(Arnstein, 1969, Bandeira, 2000).
Os conselhos, instâncias ou órgãos colegiados podem ser inicialmente definidos como
um tipo de organização que possibilita mediações entre interesses locais e processos de
1 Douglas Luis de Oliveira é professor na Faculdade Dinâmica Vale do Piranga (Ponte Nova) e Faculdades
Sudamérica (Cataguases). Mestre em Extensão Rural pela Universidade Federal de Viçosa. Área de pesquisa:
novas configurações do Direito Administrativo.
15
elaboração de políticas públicas. Neste sentido, os conselhos seriam espaços que viabilizariam
o diálogo entre os interesses ou demandas dos atores sociais dos lugares com as políticas
públicas que geralmente são elaboradas tendo por referência dimensões macrosociais
(Appendini & Nuijtem, 2002). Outro traço característico dos conselhos é sua forma de
composição. Eles são geralmente compostos por delegados, isto é, pessoas que representam,
nestas instâncias, interesses de segmentos populacionais, grupos sociais, corporações, órgãos
públicos ou organizações da sociedade civil. Neste sentido, o conselheiro ou a conselheira é
um representante, socialmente legitimado, eleito ou indicado, de determinados interesses que
ele procurará fazer valer no ambiente de argumentação, discussão e construção de acordos ou
entendimentos que é propiciado pela reunião ou plenária deste conselho.
Desenvolvimento
Um conselho pode ter ou não ter participação popular ou de representantes de
organizações da sociedade civil. Caso tenha, esta participação pode ser partilhada igual ou
paritariamente entre representantes da estrutura administrativa do Estado e representantes da
sociedade civil (Pereira, 2005). A composição também pode não assumir formato paritário,
sendo, nestes casos, acordadas maneiras de distribuição percentual de seus componentes, de
modo a manter um certo equilíbrio entre as forças políticas presentes. Esta composição é
também bastante flexível, já que além dos conselheiros titulares há os suplentes e é comum
haver rotatividade na presença destes em reuniões. Além disso, a escolha e indicação de
representantes é condicionada pela conjuntura política. As mudanças nas configurações das
forças políticas municipais, estaduais ou federal implicam tanto mudanças na composição dos
conselhos – principalmente com relação aos representantes de órgãos governamentais – como
mudanças na importância que os próprios governos passam a atribuir a estas instâncias de
gestão social (Dagnino, 2002).
A mudança habitual de componentes e a freqüência relativamente esparsa em que
ocorrem as reuniões – ou seja, em que os conselhos se tornam de fato uma organização –
conferem um caráter específico e contingente a estas organizações. Além disso, é importante
considerarmos que seus componentes pertencem a outros ambientes organizacionais, ou seja,
na maior parte do tempo se dedicam ao trabalho em outra entidade ou instituição, estando, por
isso, mais acostumados (e dedicados) às suas especificidades, interesses e modos de
organização do trabalho. Eventualmente os conselheiros assumem um outro papel, saem da
16
rotina e passam a atuar em um órgão colegiado. Evidencia-se, desta maneira, além de um tipo
peculiar de organização, um modo particular de pertencimento institucional.
De acordo com Appendini & Nuijtem (2002, p.74), a literatura sobre desenvolvimento
tende a usar de modo indiscriminado e confuso os conceitos de instituição e organização. Por
isso estes autores acentuam a distinção entre estes dois conceitos, identificando que na
literatura as organizações têm sido definidas em termos de “estruturas de funções
reconhecidas e aceitas”, enquanto as instituições são mais definidas em termos de crenças,
costumes, normas e regras que possibilitam o desenvolvimento daquelas estruturas e funções.
Esta definição automaticamente nos remete ao fato de que organizações como os conselhos
mobilizam certas crenças ou concepções, costumes, regras para instituir determinada estrutura
normativa e reguladora a respeito de certo tema considerado socialmente relevante. O
substrato desta instituição é a existência de interesses distintos e/ou conflitantes e também de
capacidades distintas de exercício social do poder. Seria no ambiente de interação instituído
pelos conselhos que supostamente estas diferenças poderiam ser negociadas e relativizadas.
Dadas estas características peculiares dos conselhos, é interessante discutirmos,
brevemente, a respeito de algumas teorias que informam e dão importância aos mecanismos
de gestão social de bens públicos, como também o cenário sociopolítico mais amplo que vem
possibilitando, no Brasil, a disseminação dos conselhos.4 Neste sentido, a Professora Maria da
Glória Gohn argumenta que, a partir da década de 1990, no Brasil, a crescente mobilização da
sociedade civil que se seguiu ao gradual processo de democratização pós-regime militar,
levou à revisão de alguns conceitos-chave que informam a ciência política e,
conseqüentemente, a construção de novas instituições políticas que administram os bens
públicos. A característica principal desta revisão foi a incorporação, bastante desigual e
diversificada, da idéia de participação na conformação das formas de gestão e de governo. Ao
tratar, por exemplo, das mudanças de concepção sobre poder local, a autora destaca que:
O poder local passou a ser visto como espaço de gestão político-administrativo e não como
simples sede das elites (econômicas, sociais e políticas). Mudanças na conjuntura política e no
cenário econômico explicam tais alterações. O poder local foi redefinido como sinônimo de
força social organizada como forma de participação da população, na direção do que foi
definido como empowerment ou empoderamento da comunidade, isto é, a capacidade de gerar
processos de desenvolvimento auto-sustentável com mediação de agentes externos – novos
educadores, principalmente ONGs do Terceiro Setor. O novo processo ocorre,
predominantemente, nas novas redes societárias, sem articulações políticas mais amplas com
partidos políticos ou sindicatos (Gohn, 2003, p.35).
17
A este processo se associa a crescente importância conferida à dimensão cultural do
desenvolvimento, para a qual contribui o resgate e valorização de tradições, conhecimentos e
costumes locais, relativizando com isso antigas e dominantes perspectivas etnocêntricas
(Harrinson, 2002). Ao mesmo tempo, conferia-se maior importância à noção de esfera pública
que, de acordo com Jürgen Habermas, possibilitava a “dessacralização da política” ao trazer a
público assuntos e temas antes restritos à esfera privada. Desencadeava-se assim um amplo
processo de publicização de demandas específicas e construção de identidades que
transcendiam às tradicionais questões operárias e de classe. Como pano de fundo,
engendrava-se um amplo processo de questionamento e revisão do papel do Estado frente às
demandas da sociedade; uma revisão das próprias formas tradicionais em que ocorriam as
relações do Estado com a sociedade. É neste marco que as noções de governança (Putnam,
1996) e governança local ganham importância (Tendler, 1998). Os conselhos ou instâncias
colegiadas de deliberação fazem parte, de certo modo, de um amplo e gradual processo de
descentralização do poder decisório do Estado a respeito das ações de governo. Como tal, se
inserem no conjunto de propostas e/ou práticas que buscam formas diversas de “melhorar o
governo” por meio de processos de descentralização.
A noção de governança local colocou em discussão a necessidade de ampliar o
conceito de gestão de bens públicos, de modo a incorporar, nos mecanismos de governo, as
demandas dos diversos atores sociais que, a partir da década de 1980, principalmente, ao se
mobilizarem e se organizarem, colocaram na cena pública a necessidade de que suas
reivindicações e direitos fossem considerados pelo Estado, tanto no atendimento às suas
demandas mais imediatas quanto em relação à consideração de suas especificidades no
momento de elaboração e execução de políticas públicas. Deste modo, não apenas os atores
que compunham os aparatos governamentais ou a esfera pública estatal deveriam ser
responsáveis pela formulação e implantação de políticas públicas. A participação política,
neste contexto, deveria ser estendida aos amplos setores sociais que podiam ser capturados
pelo conceito genérico de sociedade civil.5 Para Tendler (1998), falando a partir de sua
pesquisa sobre novos mecanismos de governança no estado do Ceará, o principal mérito das
instituições deliberativas ou da institucionalização da participação política da sociedade civil
nos processos de tomada de decisão e, de modo mais amplo, nos mecanismos de governança,
é sua contribuição para tornar os governos mais transparentes e menos corruptos. Outros
autores valorizam de modo menos instrumental a participação, relacionando, como o faz
18
Amartya Sen, à ampliação de liberdades e capacidades de decidir sobre seu próprio futuro em
sociedade (Sen, 1998).
Como já foi ressaltado, esta participação, embora valorizada, é incorporada de formas
bastante variadas pelos poderes públicos e, na prática, vem ocorrendo por meio de
mecanismos participativos também bastante diversos, dentre os quais os conselhos parecem
ser o formato institucional mais disseminado, principalmente a partir da necessidade de sua
existência formalizada pela constituição brasileira de 1988 e das leis que regulamentaram suas
atribuições a partir dos anos 1990 (Andrade, 2004). O debate parece ocorrer em torno do
papel que a participação deve assumir nos processos de revisão ou reforma do Estado e, mais
especificamente, nos modos de relacionamento entre Estado e sociedade. Neste debate há, por
um lado, posições que argumentam que o papel da participação da diversidade de atores
sociais restringe-se à “influência” sobre os processos decisórios que ocorrem na esfera
decisória estatal. Este, de acordo com Gohn (2003, p.41), é o argumento de Habermas quando
ele constrói o conceito de “esfera pública”, que limita “o papel dos novos „públicos‟ a
interlocutores de uma ação comunicativa, constituídos via interlocuções públicas, à mera
„influência‟ nas decisões governamentais, legislativas ou do executivo”.
Por outro lado, há autores, como Boaventura de Sousa Santos e Leonardo Avritzer,
dentre outros, que enxergam um papel mais ativo para os atores sociais organizados e para sua
participação. Esta participação, para estes autores, teria uma função de “deliberação pública”
direta, portanto mais ativa e propositiva, da maneira como vem ocorrendo nas experiências de
orçamento participativo conduzidas em importantes capitais brasileiras como Porto Alegre e
Belo Horizonte (Sousa Santos & Avritzer, 2003). Desta forma, a democracia participativa ou
deliberativa vem, no ambiente marcado pela globalização e de forma reativa a ela, propor uma
revisão do papel e das funções tradicionalmente atribuídas ao Estado. Neste novo contexto,
caberia ao Estado:
(...) mais funções de coordenação do que funções de produção direta de bem-estar, o controle
da vinculação da obtenção de recursos a destinações específicas por via dos mecanismos da
democracia representativa torna-se virtualmente impossível. Daí a necessidade de
complementar com mecanismos de democracia participativa. A relativa maior passividade do
Estado, decorrente da perda do monopólio regulatório, tem de ser compensada pela
intensificação da cidadania ativa, sob pena de essa maior passividade ser ocupada e colonizada
pelos fascismos societais (Sousa Santos, 1999, p.70).
Partindo deste suposto, os mecanismos de democracia deliberativa se baseiam na
representação política e chamam os atores sociais organizados para vocalizar publicamente
19
suas demandas e opiniões, discutindo, nestes processos, as formas, conteúdos e meios de
elaboração e implantação de políticas públicas. Numa visão otimista do processo, os atores
são chamados a qualificar a elaboração das políticas públicas, trazendo à cena pública e ao
debate suas visões, percepções e diagnósticos sobre problemas que enfrentam e alternativas
que vislumbram para solucionar os mesmos. Este processo democrático de discussão, de
acordo com Avritzer (2003), além de possibilitar espaços à participação, fortalece
mobilizações, construção de identidades e novas formas de solidariedade. Além disso,
também contribui para a capacitação política dos atores envolvidos, não apenas os da
sociedade civil, forjando “competências e habilidades a partir das experiências que
vivenciam” (Gohn, 2003, p.43).
É importante ressaltar que, de um modo geral, a instituição conselho ou instância
deliberativa implica a existência de uma sociedade civil organizada ou “robusta” que lhe dê
suporte (Tendler, 1998). Nas palavras de Evans (2003), a efetiva participação social requer
um contexto sólido de instituições formais. Argumentos corroborados por Houtzager (2004)
ao afirmar que as ações descoordenadas e descentralizadas da sociedade civil são insuficientes
para a emergência ou sustentação de instituições deliberativas. Além de uma sociedade civil
organizada e atuante, demanda o interesse e um papel ativo do Estado no fomento a esta
organização e na definição de um planejamento estratégico de longo prazo, capaz de oferecer
um norte às ações de promoção do desenvolvimento.
Esta nova percepção sobre a participação traz consigo, portanto, um enorme desafio às
instituições governamentais, histórica e culturalmente acostumadas a atuar de modo
centralizado e não-participativo. Fungerik & Wright (1999), após estudar várias experiências
em democracia deliberativa, enumeram o que eles denominam de princípios institucionais que
devem reger as instituições de participação deliberativa. Seriam eles: (a) orientar sua ação
para a solução de problemas; (b) centralidade da deliberação direta para descobrir soluções e
programas para implementá-los; (c) redução da distância entre o público (marcado pela lógica
burocrática organizacional) e o privado (marcado pela lógica de mercado, do lucro); (d)
engajamento de grupos diversificados no diálogo; e (e) transformação dos aparatos estatais
em instituições de participação deliberativas permanentemente mobilizadas.
Como argumenta Evans (2003), a existência de um aparato administrativo público
capacitado para dar apoio e sustentação tanto ao funcionamento quanto à implementação das
decisões que resultem dos processos de deliberação é fundamental. Do lado das organizações
20
da sociedade civil, destacam Santos Jr. et al. (1998, p.29), surgem dois problemas principais
colocados pela concepção de governança: “o primeiro, relacionado à capacidade dos grupos
sociais de traduzir suas necessidades em demandas sociais. O segundo, de ver legitimadas e
reconhecidas suas demandas pelo governo, gerando políticas públicas”.
Considerando estes princípios e problemas colocados aos atores que interagem nos
recentes mecanismos de governança local e de democracia deliberativa, os desafios colocados
às instituições governamentais e à sociedade civil são imensos. E é neste contexto que os
conselhos gestores de políticas públicas surgem e gradualmente se legitimam como espaços
que possibilitam, com vários limites, a busca dialogada de soluções aos problemas trazidos
pela sociedade civil organizada e pelo próprio governo.
Neste contexto de mudanças, a democracia deliberativa também passou a ser uma
referência aos processos de promoção do desenvolvimento. Amartya Sen, Prêmio Nobel de
economia, defende que o desenvolvimento deve ser compreendido, principalmente, em termos
do fortalecimento das capacidades das pessoas de levarem o tipo de vida que valorizam (Sen,
1999). Sen defende que as instituições deliberativas devem ser referências importantes para os
processos de desenvolvimento, envolvendo de modo contínuo e deliberativo os cidadãos na
definição das prioridades econômicas e sociais relacionadas ao desenvolvimento. Estas
instituições representam um meio mais efetivo para engajar os cidadãos envolvidos pelos
projetos ou programas de desenvolvimento, possibilitando, de acordo com Peter Evans, “uma
base mais sólida para avaliar as prioridades de desenvolvimento”. Além disso, corroborando o
argumento de Sen, afirma que eles “expandem o que o desenvolvimento oferece, dando aos
cidadãos a oportunidade de exercer a capacidade humana fundamental de fazer escolhas”
(Evans, 2003, p.23).
É neste sentido que Appendini & Nuijten (2004) argumentam que as instituições
passam a ser vistas como ambientes nos quais os agentes econômicos e sociais têm acesso aos
recursos e podem reforçar, por exemplo, seu potencial de renda. Deste modo, a “adequação
das instituições” vem se tornando paradigma dominante na formulação de políticas na agenda
do desenvolvimento internacional. Por isso, as políticas têm focado na capacitação e no
empoderamento da população, para torná-la parceira dos esforços em prol do
desenvolvimento. A Professora Maria Celina D‟Araújo, discutindo a noção de capital social,
argumenta, de modo muito pertinente, que não basta valorizar a noção de participação, mas
principalmente reforçar a correspondência entre a cultura de um povo e suas instituições
21
políticas. As leis, normas e arranjos institucionais, por mais bem intencionados que sejam,
podem ser “completas abstrações” e se tornar arranjos formais independentes aos contextos
em que operam (D‟Araújo, 2003).
Como pano de fundo desta valorização dos mecanismos de participação e deliberação
temos um processo de revisão das concepções e métodos de promoção do desenvolvimento
que vem ocorrendo desde a década de 1970, quando os resultados dos esforços internacionais
para promovê-lo, particularmente o desenvolvimento rural, nos países do Terceiro Mundo
foram se revelando cada vez mais inapropriados, ou seja, desvinculados dos contextos locais,
desenraizados e vinculados à obsessão com a modernização tecnológica dos processos
produtivos. E mais, tiveram conseqüências sociais e ambientais reconhecidamente perversas
(Altiere & Masera, 1997).
Pensar o desenvolvimento a partir da idéia de democracia deliberativa trás
significativas implicações para a própria definição de desenvolvimento. A promoção do
desenvolvimento passa a ser um processo preocupado em articular e conciliar os diversos
interesses dos atores e grupos sociais, públicos (estatais ou não) e privados, representados nas
instâncias de deliberação responsáveis pela gestão social dos bens e recursos públicos a serem
mobilizados nestes processos. Além de articular interesses, uma vez que está em jogo a
construção de consensos, os processos de promoção do desenvolvimento têm que articular os
diversos conhecimentos (tradicionais ou científicos, locais ou externos) para a construção de
diagnósticos e planejamento das intervenções que determinarão os rumos das próprias
intervenções. Por tudo isso, o desenvolvimento passa a ser uma ação principalmente
relacionada a práticas de aprendizado coletivo, envolvendo tanto as populações locais quanto
os agentes ou mediadores externos, todos preocupados em superar os limites históricos que
costumam separar ou compartimentar as funções de cada ator nestes processos, geralmente
privilegiando o técnico, o assessor ou o extensionista como o detentor da autoridade
profissional e científica para determinar os rumos das ações e a direção dos processos. É deste
modo que o desenvolvimento deliberativo cria a necessidade de possibilitar espaços de
encontro entre os diferentes projetos de mudança e desenvolvimento que estão em cena em
determinado contexto.
22
Considerações Finais
Deste rol de boas intenções à prática e à realidade dos processos cotidianos há ainda
um longo caminho a ser percorrido. No Brasil a trajetória das experiências com democracia
deliberativa, embora recente, já acumula um enorme aprendizado (Dagnino, 2002). A
experiência de democratização das políticas públicas por meio da ação dos conselhos
gestores, por exemplo, é ainda incipiente. Avaliando a ação destes conselhos na década de
1990, Luciana Tatagiba concluiu que os conselhos gestores exerciam, à época da pesquisa,
início dos anos 2000, “uma baixa capacidade propositiva, exercendo um reduzido poder de
influência sobre o processo de definição das políticas públicas” (Tatagiba, 2002, p.98-9). Dois
fatores gerais são indicados pela autora como possíveis responsáveis por esta baixa
capacidade de influência dos conselhos gestores. Primeiro, os conselhos e a própria
democracia deliberativa enfrentam, no Brasil, um padrão de planejamento e execução de
políticas públicas arraigado em culturas e práticas elitistas, que desconsideram a pertinência
da participação cidadã. Segundo, os conselhos estariam também “na contramão de um
processo histórico-conjuntural marcado pela ação deliberada de redução da esfera pública,
com as grandes decisões nacionais sendo tomadas a partir de acordos, em geral, não
publicizáveis”. Poderíamos também falar sobre as enormes dificuldades para mobilização,
organização e representação de interesses enfrentadas pelos atores que estão na base da
sociedade e encararam as assimetrias que no Brasil caracterizam as possibilidades de acesso a
recursos para o exercício da cidadania. Estes fatores, dentre outros, contribuem para a enorme
dificuldade de colocar em prática mecanismos viáveis de partilha do poder decisório.
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25
INTERROGATÓRIO POR VÍDEOCONFERÊNCIA:
tecnologia a serviço da justiça ou violação dos direitos do acusado!?
Thiago Grazziane Gandra1
A possibilidade de realização do interrogatório do acusado no processo penal por meio
de videoconferência é tema incandescente que desafia os estudiosos do direito.
As posições encontradas na doutrina e na jurisprudência são divergentes e suscitam
caloroso e apaixonado debate entre os defensores desta ou daquela tese. Afinal, na seara do
processo penal, em que a condenação do individuo deve estar lastreada em provas
suficientemente precisas de autoria e materialidade, carreadas aos autos da forma mais
escorreita possível, em estrita obediência aos preceitos legais e constitucionais, a introdução
de novas tecnologias, como é o caso da videoconferência, carece de aprofundados estudos
capazes de concluir sobre a legalidade ou não do procedimento, afim de que não se subtraiam
do acusado direitos a ele, constitucional e processualmente, garantidos.
Ampla defesa, contraditório, devido processo legal, entre outros, são princípios que
devem sempre ser observados na atividade jurisdicional, por expressa disposição da
Constituição da República de 1988. Nesse contexto, seria a presença do acusado diante do
juiz, no Fórum, meio necessário para se garantir a prevalência de tais princípios!? O
interrogatório por videoconferência garante a realização do ato em obediência a tais
princípios!? A tecnologia atual é suficiente para garantia dos direitos do acusado!?
Essas são as questões nefrálgicas trazidas a baila nesse trabalho.
Com efeito, nos dias atuais, em que o avanço tecnológico rompe diuturnamente as
barreiras da distância, promovendo encontros antes inimagináveis, é fundamental reconhecer
que o aparato judiciário vem se tornando obsoleto aos olhos da sociedade, especialmente
quando a morosidade da justiça é lançada na mídia como razão de todos os problemas do
mundo, como se nada mais houvesse que ser feito, senão tornar célere os julgamentos, para
que a sociedade atingisse o ponto mais alto de civilidade, justiça e segurança.
Todavia, se esquecem os que querem concentrar suas críticas à justiça que o Brasil é
um estado de Direito, em que estão garantidos, pela lei e pela constituição, aos cidadãos,
1 Juiz de Direito do Estado de Minas Gerais, Professor de Direito Processual Penal, Graduado em Direito pela
Universidade Federal do Estado de Minas Gerais, Pós-graduado em Direito de Empresa pela Universidade Gama
Filho/RJ
26
meios adequados para o processo e julgamento dos casos que afligem a sociedade e romper
com a lógica do ordenamento jurídico não é tarefa que se promova de um dia para o outro. A
revolução do poder judiciário é lenta porque deve ser lenta, sob pena de se saltar etapas
importantes na evolução da justiça.
Assim, não basta o surgimento de uma nova tecnologia para que a mesma seja
incontinentemente implantada no âmbito da justiça. É necessário investigar seus efeitos para o
processo e para as partes e, porque não, seus efeitos para a sociedade.
Nesse sentido, a videoconferência, embora inegavelmente moderna e útil em inúmeros
setores da sociedade, para ser implantada na atividade jurisdicional carece de maturação. Daí
a importância de se discutir o tema, não apenas no meio acadêmico, mas em sede doutrinária
e jurisprudencial.
Adentrando diretamente no tema central desse trabalho, em primeiro é importante
verificar o que diz a atual legislação processual penal sobre o assunto.
Fato é que, ainda na década de 1990, no estado de São Paulo, sinalizou-se pela
realização do chamado interrogatório on line, ou seja, o interrogatório por videoconferência,
em razão dos elevados custos de deslocamento de presos. Essa possibilidade chegou a ser
admitida por alguns juristas que admitiram a utilização do meio eletrônico no interrogatório.
Noutra senda, outros, argumentam pela inconstitucionalidade do instituto por violar o
princípio da dignidade da pessoa humana. Por sua vez, a Lei n.º 10.792/03, que alterou os
dispositivos do Código de Processo Penal referentes ao interrogatório nada mencionou com
relação à possibilidade de videoconferência. Apenas introduziu a possibilidade de ida do
magistrado ao estabelecimento prisional se presentes os requisitos do §1.º do art. 185, Código
de Processo Penal.
De outra margem, a comissão de reforma do Código de Processo Penal já tem pronto o
projeto que atualmente está sendo discutido no Congresso para inserir o interrogatório on line
no ordenamento jurídico brasileiro, como expediente regular e legal de produção de prova e
defesa do réu.
Em verdade, na recente reforma de 2008 tal possibilidade não foi inserida. Por sua
vez, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a Lei Estadual paulista por
violação da competência privativa da União para legislar sobre o tema.
Nesse contexto, vale atentar para o que dispõe o novel art. 217 do Código de Processo Penal,
inserido pela Lei n.º 11.690/08, que prevê a inquirição do ofendido e das testemunhas por
videoconferência. Com efeito, o atual art. 217 do Código de Processo Penal estabelece que:
27
Se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério
constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do
depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade
dessa forma, determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a
presença do seu defensor.
Como se nota pela redação do dispositivo acima transcrito, a recente reforma
processual previu expressamente a utilização da videoconferência no processo penal. No
entanto, também é forçoso aquilatar que tal possibilidade está prevista apenas para a oitiva do
ofendido e de testemunhas, nada sendo mencionado em relação ao interrogatório do acusado.
Ao contrário, a previsão expressa na lei processual é a de que, como regra, o acusado
será interrogado no estabelecimento prisional, devendo juiz e seus auxiliares, promotor e
defensor se dirigirem ao estabelecimento, desde que haja segurança para o ato. Essa é a
redação do art. 185, §1.º do Código de Processo Penal. Vale a pena colacionar:
O interrogatório do acusado preso será feito no estabelecimento prisional em que se
encontrar, em sala própria, desde que estejam garantidas a segurança do juiz e
auxiliares, a presença do defensor e a publicidade do ato. Inexistindo segurança, o
interrogatório será feito nos termos do Código de Processo Penal.
Evidentemente, o legislador demonstrou com tal norma o total desconhecimento da
realidade prisional brasileira, já que em quase a totalidade dos cárceres pátrios é impossível a
realização do interrogatório do preso. Demonstrou ainda desconhecimento da atividade
jurisdicional, pois o tempo de deslocamento e a ausência do magistrado do Fórum causa
sensível impacto na celeridade de tramitação dos processos, celeridade esta eleita como
garantia constitucional (art. 5.º, LXXVIII), pela Emenda Constitucional n.º 45/2004.
Diante disso, a videoconferência viria como forma de equacionar e compatibilizar a
realização do interrogatório do acusado no sistema prisional, sem que o juiz, promotor e
defensor tenham que deixar o Fórum.
No entanto, não seria eloqüente o silêncio do legislador reformista em relação ao
interrogatório, ficando claro que não é admitido tal ato por meio de videoconferência, já que
em relação à vítima e testemunhas fez previsão expressa de ouvi-las por meio eletrônico,
deixando de fazê-lo em relação ao acusado? A mens legis não seria a vedação do
interrogatório por videoconferência?
Ou, noutra margem, seria possível a aplicação analógica do art. 217, CPP, que autoriza
a videoconferência para oitiva do ofendido e testemunha, na hipótese do interrogatório, caso
esteja disponível a tecnologia?
28
Nas palavras de Luis Flávio Gomes, Rogério Sanches e Ronaldo Batista, comentando
o dispositivo:
Representa inequívoco avanço que, entretanto, poderia ter ido além, tivesse o
legislador aproveitado para incluir, também, o chamado interrogatório virtual, haja
vista que a declaração de inconstitucionalidade se deu em controle difuso, pela
Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal.
De fato, no HC 88.914, o Ministro César Peluso, relator do caso entende pela
inconstitucionalidade do interrogatório por videoconferência. Vale a pena colacionar:
Quando se impede o regular exercício da autodefesa, por obra da adoção de
procedimento sequer previsto em lei, tem-se agravada a restrição à defesa penal,
enquanto incompatível com o regramento contido no art. 5.º, LV, da Constituição da
República, o que conduz à nulidade absoluta do processo, como a tem reconhecido
este Tribunal, à vista de prejuízo ínsito ao descumprimento da forma procedimental
adequada [...]
Em verdade, não há como negar que a realização do interrogatório do acusado por
meio de videoconferência não está disciplinada na lei e se afasta dos preceitos legais relativos
ao processo, afrontando o devido processo legal.
Não fosse só isso, reconheceu o insigne Ministro que “o interrogatório por meio de
teleconferência viola a publicidade dos atos processuais e que o prejuízo advindo de sua
ocorrência seria intuitivo, embora de demonstração impossível”.
Ademais, o moderno direito processual penal reconhece no interrogatório meio mais
de defesa do que de prova. Assim, o interrogatório é a oportunidade conferida pela lei para
que o acusado possa promover sua autodefesa, independentemente da defesa técnica de seu
causídico. Limitar essa defesa, impossibilitando o contato próximo e direto do acusado com
seu julgador é procedimento que viola a ampla defesa garantida pela Carta Magna.
No escólio de Guilherme de Souza Nucci:
Uma tela de TV ou de computador jamais irá suprir o contato direto que o
magistrado deve ter com o réu, até mesmo para constatar se ele se encontra em
perfeitas condições físicas e mentais. Qual réu, detido numa penitenciária a
quilômetros de distância, sentir-se-á à vontade para denunciar os maus tratos que
vem sofrendo a um juiz encontrado atrás da lente de uma câmera? Qual acusado terá
oportunidade de se soltar diante do magistrado confessando detalhes de um crime
complexo, voltado a um aparelho e não a um ser humano? Por outro lado, qual
julgador terá oportunidade de sentir as menores reações daquele que mente ou ter a
percepção de que o réu conta a verdade visualizando-o por uma tela? Enfim, o ato
processual do interrogatório é importante demais para ser banalizado e relegado ao
singelo contato dos maquinários da tecnologia”.
29
Na mesma esteira, Nestor Távora e Rosmar Alencar comentando a decisão do STF
asseveram:
Não podia ser outro o entendimento. O interrogatório é ato de fundamental
importância na construção do convencimento do julgador. A expectativa é não só
extrair as informações colhidas com as respostas às perguntas do réu, mas também
sentir o comportamento dele. Os gestos, a atitude do réu na audiência, suas
expressões, os detalhes só perceptíveis por aqueles que estavam presentes ao ato, são
decisivos muitas vezes para o deslinde da causa. Não se pode afastar ainda mais o
julgador do julgado. A indiferença não pode imperar, transformando o interrogatório
num ato pró-forma, um faz de conta a integrar os autos.
Admitir o interrogatório por videoconferência é desconhecer a atividade jurisdicional,
vilipendiar a dignidade da pessoa humana e a publicidade dos atos processuais, vulnerar o
devido processo legal e ignorar a garantia da ampla defesa.
Na verdade, ocorre que o juiz passivo não é recomendável, pois deve o mesmo se
preocupar com a qualidade do resultado do processo visando atingir a justiça. Noutra senda, a
imparcialidade do magistrado é essencial, pois não pode ter interesse no litígio, não podendo
favorecer qualquer das partes. Por fim, é forçoso concluir que a neutralidade não existe, na
medida em que o juiz é um ser humano e suas decisões sempre sofrerão influência de suas
impressões e experiências pessoais.
Assim, as impressões pessoais do magistrado são fatores determinantes na formação
de sua convicção. Além disso, a qualidade da decisão depende da atuação do magistrado na
busca da verdade real. Ora, nesse contexto, o contato pessoal com o acusado, longe de ser
uma mera formalidade processual ou mais um direito do mesmo, é necessário ao magistrado
para que possa através desse contato extrair suas impressões pessoais e buscar do acusado os
elementos suficientes para uma decisão justa, seja para condenar, seja para absolver.
Ademais, o acusado não é um animal do qual se quer distância. Em regra, é vítima da
própria desigualdade social e seu resgate ao convívio com a comunidade passa,
fundamentalmente, por um tratamento humano e solidário, buscando compreender as mazelas
sociais, sem se ignorar a necessidade de punição do crime. Desse modo, renegar o acusado,
afastá-lo ainda mais de seu julgador, é ato de desumanidade. É simplesmente desfazer-se da
condição humana do acusado para tratá-lo como mero objeto da relação processual, em
afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana, esculpido no art. 1.º, III da Constituição
da República de 1988.
Diariamente, na atividade jurisdicional, o que se percebe é que a proximidade do juiz
com os encarcerados, a conversa leal e a capacidade de ouvir aquele que teve sua liberdade
30
ceifada são fatores imprescindíveis na manutenção da tranqüilidade e ordem do cárcere, bem
como na busca por uma real chance de recuperação daquele indivíduo que está à margem da
sociedade.
Não é diferente com o acusado. O interrogatório é o momento sublime do processo
penal. É a oportunidade única de ser ter um diálogo direto entre julgador e acusado,
contribuindo sensivelmente para a busca da verdade real. Por outro lado, o acusado aguarda
ansiosamente pela oportunidade de falar com o juiz, de contar sua versão e buscar sua
absolvição.
Nesse ponto se insere a garantia da ampla defesa, prevista no art. 5.º, LV, da
Constituição de 1988. Ampla defesa não é simplesmente entregar ao acusado a possibilidade
de se defender, mas conceder-lhe essa oportunidade com qualidade e real possibilidade de
convencer o magistrado de sua versão. Conversar com a tela da TV não é garantir a ampla
defesa.
Nas palavras de Alexandre de Moraes, “por ampla defesa entende-se o asseguramento
que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os
elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se ou calar-se, se entender
necessário [...]”.
Quanto ao devido processo legal, é clarividente sua violação pela realização do
interrogatório por videoconferência. Não há previsão legal para tanto. A lei processual é
expressa em admitir, no máximo, o deslocamento do magistrado ao estabelecimento prisional,
mas em momento algum sinalizou no sentido de realização do ato sem que julgador e acusado
estejam frente a frente.
Ainda nas lições de Alexandre de Moraes, “o devido processo legal configura dupla
proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade,
quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o estado-
persecutor e plenitude de defesa [...]”
Enfim, no atual ordenamento jurídico brasileiro, a nosso sentir, a possibilidade de
realização do interrogatório on line não pode ser admitida, na medida em que não há amparo
legal para tanto. E mesmo que se defenda a tese de que bastaria uma modificação no Código
de Processo Penal, tal alteração legislativa deve ser interpretada à luz do texto constitucional
que garante a ampla defesa, dignidade da pessoa humana e publicidade dos atos processuais.
Na verdade, na hipótese de modificação da norma processual, certamente, seria o Supremo
31
Tribunal Federal chamado a decidir sobre o assunto e havendo respeitabilíssimas posições em
ambos os sentidos, certamente se instalaria relevante celeuma jurídica no país. É esperar para
ver...
Bibliografia:
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 13. ed. rev. e atual.. São Paulo: Saraiva, 2006.
CARVALHO, Kildare Gonçalves. 13.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
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Reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito. São Paulo: RT, 2008.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 10.ed., rev.,atual e ampl..São Paulo:
Método, 2006.
MORAES, Alexandre de. 23. ed.. São Paulo: Atlas, 2008.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23.ed.São Paulo: Atlas, 2008.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 8. ed. rev. atual. e
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SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito Constitucional. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen
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TÁVORA, Nestor. ALENCAR, Rosmar. Curso de Direito Processual Penal. 2. ed. rev. atual.
e ampl.. Salvador: JusPodivm, 2009.
32
A PRISÃO COMO INSTRUMENTO DE CONTROLE SOCIAL
NA ÓTICA DE MICHEL FOUCAULT: uma análise de “Vigiar e Punir”
Maria Antonieta Rigueira Leal Gurgel1
INTRODUÇÃO
A idéia há muito sedimentada no pensamento moderno, desde a vetusta obra do
italiano Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria2, é a de que a pena de prisão teria
representado um grande avanço nas formas e nos métodos de repressão penal, tendo como
parâmetro os suplícios corporais públicos que eram praticados até então, na denominada era
pré-moderna. Isso porque a noção de penalidade carregava ínsita a noção de vingança, que
iria se abater sobre um indivíduo, especificamente, mas destinava-se a todos os súditos do
soberano, ao corpo social, ainda que fisicamente atingisse uma única pessoa.
Com a publicação de sua mais conhecida obra, Vigiar e Punir, no ano de 1975, o
pensador e epistemólogo francês Paul-Michel Foucault desmistificou a concepção liberal da
pena de prisão acima mencionada, ao realizar um estudo científico acerca da evolução do
Direito Penal e dos meios de coerção utilizados pelo Estado na repressão da criminalidade.
A questão do poder e de seu exercício sempre foi tema central em todas as análises
de Foucault. Entretanto, em Vigiar e Punir, a abordagem centra-se em uma nova forma de
poder, aplicada agora sobre o corpo humano, não para martirizá-lo, mas sim para discipliná-
lo, tornando-o útil e dócil, tendo nas instituições prisionais seu exemplo mais nítido e
proeminente. Por essa razão, é que Foucault, para analisar os métodos punitivos, centra-se no
modelo corporificador da tecnologia de poder, que tanto respaldo encontrou nos tempos
modernos: a prisão.
1 A autora é mestre em Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional, com ênfase em Direitos Humanos, pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/Rio; professora de Direito Penal e Processo Penal da
Escola de Estudos Superiores de Viçosa e da Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga; Defensora Pública do
Estado de Minas Gerais. 2 Aos 26 anos de idade, no ano de 1764, o Marquês de Beccaria escreveu sua mais famosa obra “Dei Delitti e
delle Penne”, após passar uma temporada no cárcere, por influência do seu pai, que não admitia a união do filho
nobre com uma jovem de família pobre, Teresa de Blasco. Sentindo na pele as agruras da masmorra do século
XVIII, Beccaria as denunciou, protestando contra os julgamentos secretos, a tortura, o confisco, as penas
degradantes, atrozes e desproporcionais aos delitos praticados. Defendeu os princípios da legalidade e da
igualdade de todos perante a lei. Apesar do estilo metafórico e muitas vezes prolixo, Beccaria com seu “Dos
Delitos e das Penas” deu sua contribuição, principalmente em seu teorema final, para o estudo das penas.
33
Partindo da idéia de que o poder disciplinar está pulverizado em várias instituições
sociais (“microfísicas do poder”3), e não apenas no Estado, Foucault passa pelo modelo do
Panóptico, explicitado por Jeremy Bentham, para chegar até o que chamou de panoptismo,
como técnica moderna e eficaz de dominação.
Paul-Michel Foucault nasceu em 15 de outubro de 1926, em Poitiers, França. De
família de médicos (seu avô paterno, o materno e seu pai eram cirurgiões e este último
professor de Anatomia), Foucault, contrariando a vontade do pai, seguiu rumo à Filosofia e,
em 1945, mudou-se para Paris, onde ingressou na École Normale da rue d‟Ulm, em 1946.
Era solitário, arredio e anti-social, e no mês e ano em que se licenciou em Filosofia,
pela Sorbone (1948), tentou o suicídio, fato que levou Foucault para um tratamento
psiquiátrico e permitiu a ele o contato com a psiquiatria, a psicologia e a psicanálise, também
marcantes em sua obra.
Em 1949, licenciou-se em Psicologia, também pela Sorbone e, já em 1952, após ter
cursado o Instituto de Psychologie, obteve diploma em Psicologia Patológica. Foi leitor de
Platão, Hegel, Kant, Marx, Nietzsche, Husserl, Heidegger, Freud, Kafka e Bachelard, de
quem foi aluno.
Lecionou em diversas universidades e também trabalhou durante muito tempo como
psicólogo em hospitais psiquiátricos e prisões. Foucault esteve no Brasil em 1965, a convite
de um ex-aluno seu, onde fez conferências sobre A verdade e as formas jurídicas. Fez parte
da criação do GIP (Grupo de Informações sobre as prisões), em 1971, dele tendo participado e
acompanhado algumas rebeliões em estabelecimentos penitenciários franceses.4 Publicou
várias obras5 e morreu em 25 de junho de 1984, no auge de sua produção intelectual.
O fato é que Foucault marcou profundamente o pensamento contemporâneo,
principalmente com suas teorizações acerca do poder, do saber e do sujeito, centrando suas
análises em alguns aspectos da vida social que a razão moderna pretendeu excluir ou taxar de
desviante, para tentar normalizá-los.
3- O termo “Microfísica do poder” é também um livro de Foucault, lançado em 1979. Trata-se de uma coletânea de
textos (artigos, entrevistas, cursos, debates, dentre outros), onde a abordagem recai sobre variadas questões
relacionadas à psiquiatria, geografia, economia, sexualidade e, como não poderia deixar de ser, à prisão, à justiça
e ao Estado. 4- Logo depois de sua experiência junto a esse órgão, Michel Foucault publica, em 1975, a primeira edição de seu
Vigiar e Punir. 5- Dentre elas, podemos citar: Doença mental e Psicologia (1954); História da Loucura (1961); Raymond
Roussel (1963); O nascimento da clínica (1963); As palavras e as coisas (1966); A arqueologia do saber
(1969); A ordem do discurso (1970); Vigiar e Punir (1977); A vontade do saber – História da sexualidade I
(1976); O uso dos prazeres – História da sexualidade II (1984); O cuidado de si – História da sexualidade
III (1984).
34
O presente ensaio pretende revisitar a obra mais conhecida e festejada do
epistemólogo francês Paul-Michel Foucault, sem pretender a inovação ou a originalidade, já
que muito sobre ela foi escrito. O objetivo é adentrar na sua análise acerca da prisão, para
buscar uma visão panorâmica de seu pensamento.
1. SUPLÍCIO
Michel Foucault, logo na primeira página de Vigiar e Punir, descortina, aos olhos
dos leitores, um espetáculo macabro: a história de Damiens, em meados do século XVII,
parricida condenado a pedir perdão publicamente diante da igreja de Paris. Vestido apenas
com uma camisola, o condenado é atenazado nos mamilos, braços e pernas e na sua mão
direita segura a faca, com que cometeu seu crime, queimada com fogo de enxofre. Sobre seu
corpo, são derramados chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre
derretidos, tudo ao mesmo tempo. Depois disso, Damiens é puxado por cavalos, até seus
membros se desprenderem do tronco, o que ocorre não sem muitas dificuldades. Por fim, suas
partes são atiradas ao fogo e reduzidas a cinzas.
A esse ponto, o que o estudioso francês pretende não é denunciar ao mundo uma
prática bárbara do suplício do corpo humano, mas sim definir o estilo da execução penal de
toda uma época, na qual as amputações, os esquartejamentos, as fogueiras, as rodas de tortura
e os enforcamentos eram freqüentemente utilizados. Os suplícios eram, ao mesmo tempo, um
procedimento técnico e um ritual, aptos a infligir o maior sofrimento possível ao condenado,
considerando a natureza do crime por ele cometido, e também a demonstrar o poder daquele
que pune sobre o que é punido, não somente para ele, mas para todos os demais súditos que
assistiam, vibrantes, ao espetáculo público da punição.
Destarte, o suplício penal deveria tatuar o criminoso, lançando-lhe marcas indeléveis,
para que em suas memórias guardasse para sempre a lembrança da tortura, da exposição e da
humilhação pública, do sofrimento sentido na própria carne. Ao mesmo tempo, deveria ser a
expressão do poder do soberano6 triunfante sobre a atitude criminosa; uma resposta, um
verdadeiro castigo, para aquele que desobedeceu às leis estatais.
6 FOUCAULT (2002, p.41-43) explica: “O crime, além de sua vítima imediata, ataca o soberano; ataca-o
pessoalmente, pois a lei vale como vontade do soberano; ataca-o fisicamente, pois a força da lei é a força do
príncipe (...). A cerimônia do suplício coloca em plena luz a relação de força que dá poder à lei.”
35
Nesse sentido, “o suplício judiciário deve ser compreendido também como um ritual
político. Faz parte, mesmo num modo menor, das cerimônias pelas quais se manifesta o
poder.” (FOUCAULT, 2002, p.41).
E, sendo assim, o povo desempenhava papel fundamental, enquanto espectadores das
cerimônias de suplício, já que, além da punição direta a um indivíduo, visava-se à
conscientização de todos a respeito da séria possibilidade de punição, no caso de cometimento
de delitos, acarretando efeito aterrorizador nas consciências daqueles que assistiam ao
cerimonial violento.
Entretanto, os efeitos dessa lógica passaram a não ser mais sentidos da forma como
eram esperados. Isso porque os condenados, muitas vezes, eram passíveis da admiração ou da
compaixão da multidão agitada. A iminência da morte encorajava os moribundos, que
bradavam, contra os representantes do poder estatal, palavras presas na garganta do povo. E
tais efeitos eram potencializados, se a condenação parecia, aos olhos da platéia, injusta.7
Os crimes cometidos acabavam no esquecimento, mas os condenados eram sempre
lembrados por sua postura diante do sofrimento. O Estado, a seu turno, se distanciava da
figura de protetor dos cidadãos, para incorporar o monstro sedento de sangue, mais selvagem
e violento que os próprios criminosos.
Em contraponto à narrativa da execução pública, o autor relata o exemplo da
utilização do tempo, desde o amanhecer até a hora do recolhimento noturno, apenas três
décadas mais tarde, na Casa de Jovens Detentos de Paris8. Parece não haver mais sofrimento,
apenas a definição de uma rotina fria e milimetricamente calculada de educação e trabalho.
Isso demonstra a passagem da era dos suplícios (que já tinham se tornado negativos,
extremamente violentos, até mesmo intoleráveis) para uma fase de castigo sem sofrimento
físico, no decorrer do século XVIII.
Nesse sentido, assevera FOUCAULT (2002, p.14):
(...) as práticas punitivas se tornaram pudicas. Não tocar mais no corpo, ou o mínimo
possível, e para atingir nele algo que não é o corpo propriamente. Dir-se-á: a prisão,
a reclusão, os trabalhos forçados, a servidão de forçados, a interdição de domicílio, a
deportação – que parte tão importante tiveram nos sistemas penais modernos – são
penas „físicas‟: com exceção da multa, se referem diretamente ao corpo. Mas a
relação castigo-corpo não é idêntica ao que ela era nos suplícios. O corpo encontra-
se aí em posição de instrumento ou de intermediário; qualquer intervenção sobre ele
pelo enclausuramento, pelo trabalho obrigatório visa privar o indivíduo de sua
7Nesse ponto, FOUCAULT (2002, p.51) já menciona as diferenças existentes entre os tipos de condenação a que
eram submetidos os ricos e os pobres, mesmo que tivessem cometido a mesma modalidade criminosa. 8- FOUCAULT, 2002, p.10-11.
36
liberdade considerada ao mesmo tempo como um direito e um bem. Segundo essa
penalidade, o corpo é colocado num sistema de coação e de privação, de obrigações
e de interdições. O sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos
constitutivos da pena. O castigo passou de uma arte de sensações insuportáveis a
uma economia de direitos suspensos. Se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o
corpo dos justiçáveis, tal se fará à distância, propriamente, segundo regras rígidas e
visando a um objetivo bem mais „elevado‟.
A partir daí, o epistemólogo francês lança suas reflexões sobre a passagem da era dos
castigos corporais públicos e sangrentos para a disciplina rígida, torturante e oculta das
prisões.
2. PUNIÇÃO
Iniciou-se um processo de transformação do direito penal, para deslocá-lo do foco da
vingança do soberano para a defesa da sociedade, visando a constituição de uma nova
tecnologia do poder de punir.9
A pena deveria ter o objetivo de prevenir novos delitos, mas a punição só se
justificaria se fosse aplicada na justa medida para impedir as práticas criminosas. O exemplo
da penalidade perde sua característica de ritual, e passa a ser um sinal destinado a criar
barreiras naturais contra a delinqüência.10
Destarte, o poder de punir passa a se firmar sobre uma tecnologia de representação,
bem explicitada nessa passagem de FOUCAULT (2002, p.87):
Encontrar para um crime o castigo que convém é encontrar a desvantagem cuja idéia
seja tal que torne definitivamente sem atração a idéia de um delito. É uma arte de
energias que se combatem, arte das imagens que se associam, fabricação de ligações
estáveis que desafiem o tempo. Importa constituir pares de representação de valores
opostos, instaurar diferenças quantitativas entre as forças em questão, estabelecer
um jogo de sinais-obstáculos que possam submeter o movimento das forças a uma
relação de poder.
9- FOUCAULT (2002, p.76).
10FOUCAULT (2002, p.79) explicita as regras mais importantes com as quais se procurou dotar o poder de punir
nessa fase: regra da quantidade mínima (o delito é cometido porque traz vantagem; se o seu cometimento
estivesse ligado a uma idéia de desvantagem um pouco maior, ele seria indesejável); regra da identidade
suficiente (a eficácia da pena está na desvantagem que se espera dela, ou seja, é a representação da pena que
deve ser maximizada, não sua realidade corpórea); regra dos efeitos laterais (a pena deve ter efeitos mais
intensos naqueles que não cometeram a falta); regra da certeza perfeita (a idéia do crime e das suas vantagens
devem necessariamente estar associadas à idéia de um castigo correspondente e não a da impunidade); regra da
verdade comum (a verificação do crime deve obedecer aos critérios legais da verificação de qualquer verdade) e
regra da especificação ideal (todas as infrações penais têm que ser qualificadas e reunidas em códigos que não
deixem à margem dele nenhuma conduta ilícita).
37
Para seu funcionamento ideal, a nova mecânica da punição deveria obedecer a
algumas condições, dentre elas: o afastamento da arbitrariedade, a diminuição da atração
provocada pelo delito, substituindo-a pelo temor da pena; a definição de um termo final para a
maioria das penas11
; a propagação nos demais membros do corpo social dos efeitos da sanção
penal; a necessidade de rápida resposta penal para o crime e o criminoso; inversão do
tradicional discurso de glorificação da delinqüência para mostrar o crime como um mal, e o
criminoso como um inimigo, a quem se deve reeducar para a vida em sociedade, dentro de
regras pré-estabelecidas.
A partir daí, descortina-se o projeto da instituição carcerária, no qual a punição é
uma técnica de coerção dos indivíduos, ou seja, não se pune para apagar o crime, mas sim
para transformar aquele indivíduo por ele responsável.
A punição passa a significar a tentativa de exterminar as condutas indesejáveis, mas
sempre com uma intenção disciplinadora, por meio da utilização de diversos mecanismos
corretivos (FOUCAULT, 2002, p.106):
O aparelho da penalidade corretiva age de maneira totalmente diversa. O ponto de
aplicação da pena não é a representação, é o corpo, é o tempo, são os gestos e as
atividades de todos os dias; a alma, também, mas na medida em que é sede de
hábitos. O corpo e a alma, como princípios dos comportamentos, formam o
elemento que agora é proposto à intervenção punitiva. Mais que sobre uma arte de
representações, ela deve repousar sobre uma manipulação refletida do indivíduo (...)
Quanto aos instrumentos utilizados, não são mais jogos de representação que são
reforçados e que se faz circular; mas forma s de coerção, esquemas de limitação
aplicados e repetidos. Exercícios, e não sinais: horários, distribuição de tempo,
movimentos obrigatórios, atividades regulares, meditação solitária, trabalho em
comum, silêncio, aplicação, respeito, bons hábitos. E, finalmente, o que se procura
reconstruir nessa técnica de correção não é tanto o sujeito de direito, que se encontra
preso nos interesses fundamentais do pacto social: é o sujeito obediente, o indivíduo
sujeito a regras, hábitos, ordens, uma autoridade que se exerce continuamente sobre
ele e em torno dele, e que ele deve deixar funcionar automaticamente nele.
A partir deste ponto, o foco da análise de Foucault é transportado para a disciplina
das instituições carcerárias e os mecanimos, explícitos e implícitos nela existentes,utilizados
para domesticar os indivíduos.
3. DISCIPLINA
A disciplina visa atingir a utilidade e a docilidade do corpo, como uma nova técnica
de controle de suas operações. Para tanto, lança mão de dois dispositivos para impor seu
11
FOUCAULT (2002, p.89) utiliza a expressão “utilidade de uma modulação temporal” das penas.
38
poder e sua autoridade: a distribuição dos indivíduos em espaços fechados e heterogêneos,
onde cada qual tem um papel definido e um lugar determinado e o controle das atividades
fixado em horários rígidos e previamente determinados.
Assim, o novo poder disciplinar volta-se para o adestramento das pessoas12
, não
apenas no interior dos estabelecimentos prisionais, mas em outros espaços distintos, tais como
os quartéis militares, as escolas, os hospitais, e até mesmo em instituições sociais, como a
família e a igreja. O adestramento eficaz deve guiar-se por três mecanismos: a vigilância
hierárquica, a sanção normalizadora e o exame.
A vigilância hierárquica pressupõe um mecanismo de constante vigília, ou seja, os
indivíduos submetidos ao processo de adestramento devem sentir-se constantemente vigiados;
era o olhar disciplinador anônimo que tudo via13
, refletindo-se, sobremaneira, na arquitetura
de todas as instituições estatais e sociais de controle. Surge o modelo do Panóptico,
idealizado por Jeremy Bentham e descrito com precisão por FOUCAULT (2002, p.165-166):
O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é
conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada
de largas janelas que se abrem sob a face interna do anel; a construção periférica é
dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm
duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá
para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar
um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um
condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da
torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas
celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está
sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo
panóptico organiza unidades especiais que permitem ver sem parar e reconhecer
imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três
funções – trancar, privar de luz e esconder – só se conserva a primeira e suprimem-
se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra,
que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha.”
Com tal descrição, o pensador francês ressalta os efeitos mais significantes do
modelo panóptico, que é o de induzir no indivíduo uma percepção contínua e permanente de
visibilidade, tornando possível o exercício automático de um poder invisível. O essencial é
12
FOUCAULT (2002, p. 143) explica: “O poder disciplinar é, com efeito, um poder que, em vez de se apropriar e
de retirar, tem como função maior „adestrar‟, ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e
melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo. Em
vez de dobrar uniformemente e por massa tudo o que lhe está submetido, separa, analisa e diferencia, leva seus
processos de decomposição até as singularidades necessárias e suficientes. „Adestra‟ as multidões confusas,
móveis, inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade de elementos individuais – pequenas células
separadas, autonomias orgânicas, identidades e continuidades genéticas, segmentos combinatórios. A disciplina
„fabrica‟ indivíduos: ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como
objetos e como instrumentos de seu exercício.” 13
Esse modelo, inegavelmente, é lembrado na leitura da obra de George Orwell, 1984, na figura do “Big Brother”,
na vigilância constante, na estranha sensação de ser visto sem ver.
39
que o condenado saiba que está sendo ininterruptamente vigiado, mesmo que tal realidade não
se apresente faticamente, já que a ele não é dada a possibilidade de verificação.14
Por sua vez, a sanção normalizadora traduz toda uma “micropenalidade do tempo”,
das atividades, do modo de se comportar, da sexualidade, da postura do corpo, visando atingir
e aniquilar os comportamentos desviantes, tanto nos orfanatos, nas escolas, nos quartéis, nas
fábricas e oficinas, como também, e principalmente, nos estabelecimentos prisionais.
Por fim, o exame reúne as técnicas da hierarquia que vigia e da sanção que
normaliza, permitindo a qualificação, a classificação e a punição. “O exame supõe um
mecanismo que liga um certo tipo de formação de saber a uma certa forma de exercício do
poder” (FOUCAULT, 2002, p.156), fazendo a inversão da economia de visibilidade no
exercício do poder, ao mesmo tempo em que transporta a individualidade para o campo
documentário, transformando cada indivíduo em um caso.
4. PRISÃO
Michel Foucault delimita o período compreendido entre o final do XVIII e o início
do século XIX como o marco para o acesso do sistema penal à característica da
“humanidade”, através da consagração da prisão como a pena por excelência.
Não obstante isso, e desde então, é de conhecimento de todos que ela é perigosa, na
maioria das vezes, e até inútil, em muitas situações e extremamente cara. Entretanto, a
sociedade pós-moderna ainda não visualizou o que poderia substituí-la, fazendo com que o
discurso a respeito de sua aceitação e necessidade, fosse quase hegemônico. “Ela é a
detestável solução, de que não se pode abrir mão.” (FOUCAULT, 2002, p. 196)15
, só que não
mais voltada para o castigo físico, simbólico e exemplar, mas para a disciplina do corpo e da
alma do recluso, buscando a obtenção de “corpos dóceis e úteis”.
14
FOUCAULT (2002, p.170) ressalta a polivalência da aplicação do modelo panóptico: “serve para emendar os
prisioneiros, mas também para cuidar dos doentes, instruir os escolares, guardar os loucos, fiscalizar os
operários, fazer trabalhar os mendigos e ociosos. É um tipo de implantação dos corpos no espaço, de distribuição
dos indivíduos em relação mútua, de organização hierárquica, de disposição dos centros e dos canais de poder,
de definição de seus instrumentos e modos de intervenção, que se podem utilizar nos hospitais, nas oficinas, nas
escolas, nas prisões. Cada vez que se tratar de uma multiplicidade de indivíduos a que se deve impor uma tarefa
ou comportamento, o esquema panóptico poderá ser utilizado.” 15
Nesse sentido é que RADBRUCH, Gustavo. Filosofia do Direito, 5ª ed., rev. e acrescida (Trad. L. Cabral
Moncada), Coimbra, ed. A. Amado, 1974, v. II, p. 97, seguindo a linha de que a prisão parece corporificar o
significado do sistema penal, afirma que “não precisamos de um Direito Penal melhor; mas de algo melhor do
que o Direito Penal.”
40
A prisão deve promover uma disciplina incessante, lançando sua atuação sobre os
reclusos de forma contínua, em um local de isolamento do criminoso do mundo exterior, e de
encontro consigo mesmo.16
Sintetizando sua opinião sobre a prisão, FOUCAULT (2002, p. 214) afirma:
A prisão, essa região mais sombria do aparelho da justiça, é o local onde o poder de
punir, que não ousa mais se exercer com o rosto descoberto, organiza
silenciosamente um campo de objetividade em que o castigo poderá funcionar em
plena luz como terapêutica e a sentença se inscrever entre os discursos do saber.
Compreende-se que a justiça tenha adotado tão facilmente uma prisão que não fora,
entretanto, filha de seus pensamentos. Ela lhe era agradecida por isso.
Foucault abandona o paradigma clássico de enfoque dos efeitos negativos da
repressão da criminalidade, para analisar os efeitos positivos da prisão, como estratégia
política de dominação, definidora da moderna tecnologia do poder de punir, atuante sobre os
corpos, para criar docilidade e utilidade.
Ressalta a lógica invertida do sistema carcerário e o seu fracasso: ao invés de reduzir
a criminalidade, introduz os condenados em verdadeiras escolas do crime, estimulando a
reincidência e contribuindo para a organização da delinqüência.
Michel Foucault busca uma explicação para a manutenção desse modelo falido,
concluindo que ele não desapareceu porque não atinge seus objetivos idealizados (repressão e
diminuição da criminalidade), mas alcança plenamente seus objetivos reais e ocultos (a
repressão seletiva da criminalidade, a produção e individualização do delinqüente como
“sujeito patologizado”17
), que tem cunho nitidamente político de submissão.
A teoria da criminalidade e da prisão construída por Foucault afasta a natureza
criminosa de determinados indivíduos, para desnudar o crime como um jogo de forças, a
depender da posição de classe ocupada pelo sujeito.
CONCLUSÃO
Com Vigiar e punir, Michel Foucault pretendeu contar a história do poder punitivo,
partindo dos suplícios carnais da época medieval, apresentados como espetáculos públicos
16
A discussão sobre o isolamento traz à tona a análise sobre os dois sistemas penitenciários americanos: o de
Auburn e o de Filadélfia, ambos adeptos do absoluto confinamento do condenado. 17
FOUCAULT (2002, p.230) utiliza essa expressão, no meu entender, para dizer que o indivíduo egresso do
sistema penitenciário ficará para sempre marcado com o seu brutal estigma, já que passará a ser alvo da polícia,
terá que exibir sua folha de registros criminais, encontrará dificuldades em se recolocar profissionalmente; verá
sua vida pessoal e familiar ser completamente desestruturada.
41
dantescos, até aportar no poder disciplinar exercido sobre os corpos condenados da era
moderna.
Percebe-se, nitidamente, que o poder disciplinar não foi implementado apenas nos
estabelecimentos prisionais, mas em várias outras instituições de controle social: as escolas,
os orfanatos, os hospitais, as clínicas psiquiátricas, os conventos, as fábricas, estendendo sua
poderosa e invisível teia sobre todos os indivíduos, levando-nos à inevitável conclusão de que
os microssistemas de poder estão espalhados por toda a parte (visando a produção em massa
de corpos dóceis e úteis) e não centralizados apenas no aparelho estatal.
Esse momento histórico coincidiu com o surgimento de saberes antes inexistentes
(por exemplo, a Pedagogia, a Psicologia, a Psiquiatria e a Criminologia), porque se
encontravam presentes as condições políticas de possibilidade, tão mencionadas por Foucault.
Em Vigiar e punir, Foucault analisa as formas de punição, de modo inovador,
abandonando o paradigma tradicional, para centrar-se nas tecnologias de saber/poder,
presentes nos mecanismos de controle social, encontrando na prisão um dos ambientes mais
propícios, ante as possibilidades quase infinitas de adestramento dos condenados.
Alguns estudiosos das ciências penais viram na inédita análise de Foucault um quê
de desdém, em relação às punições bárbaras praticadas em outras épocas. Na verdade,
considerando sua atuação junto ao sistema prisional francês, e junto à sua população (como
psicólogo e membro do GIP – Grupo de Informações sobre as Prisões), ousamos discordar de
tais posicionamentos. Ao que parece, Foucault pretendeu transmitir a mensagem de que as
atuais práticas carcerárias (e o poder disciplinar a elas indissociavelmente ligado) é que
devem ser tidas como intoleráveis, no tempo por nós vivenciado.
E assim o é porque já restou amplamente demonstrado o fracasso da pena de prisão,
pelo menos no que toca aos seus objetivos imaginados de reeducar e disciplinar, matando o
criminoso e devolvendo o homem à sociedade.
Foucault não acredita na genética do crime, produtora de uma natureza criminógena,
e aponta para as forças que, segundo a classe a que pertencerem, poderão levá-los ao poder ou
à prisão. Emblemática é a sua afirmação, com a qual finalizamos esse breve ensaio: “Pobres,
os magistrados de hoje sem dúvida povoariam os campos de trabalhos forçados; e os
forçados, se fossem bem nascidos, tomariam assento nos tribunais e aí distribuiriam justiça.”
(FOUCAULT, 2002, p. 240).
42
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das penas. [Tradução J. Cretella Júnior e
Agnes Cretella]. 2 ed. rev. e ampl., 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
FOUCAULT, Paul-Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 25. ed. [Tradução de
Raquel Ramalhete]. Petrópolis, Vozes, 2002.
______. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. 4. ed., Rio
de Janeiro: Edições Graal, 1984.
ORWELL, George. 1984. 11. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978.
RADBRUCH, Gustavo. Filosofia do Direito. Coimbra: Coleção STVDIVM, trad. do Prof. Cabral de
Moncada, Armênio Amado Editor, 1974.
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A RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO CAUSADO AO PATRIMÔNIO
HISTÓRICO E CULTURAL
Arimaire Alvernáz1
RESUMO: Através de um estudo histórico da responsabilidade civil e de uma pesquisa
teórica multidisciplinar, busca-se a compreensão de como o referido instituto pode ser
utilizado para a reparação de dano ao patrimônio histórico e cultural, tendo em vista que se
trata de bem de natureza peculiar, ou seja, um bem ou interesse meta individual. Busca-se,
ainda, identificar qual o modelo de responsabilidade civil que melhor se adequa quando se
trata de ressarcimento de dano ao bem jurídico patrimônio histórico e cultural.
Palavras-chaves: Responsabilidade civil; dano imaterial. Patrimônio histórico e cultural.
ABSTRACT: Through a historical study of the civil liability of a multidisciplinary
theoretical research seeks to understand how the institute that might be used for repair damage
to historic and cultural heritage in order that it is very likely peculiar, or goods or interest
metaindividual. The aim is also to identify which model best fits liability when it comes to
compensation for damage to the legal history and cultural heritage.
Keywords: Responsability civil; dano imaterial; historical and cultural heritage.
1 INTRODUÇÃO
A responsabilidade civil é um dos institutos do Direito que mais vem sofrendo
mutações desde o seu surgimento. E, uma das principais razões destas mutações é a
necessidade de adequação do instituto em tela frente à ocorrência de danos a bens jurídicos
que não se limitam à esfera individual, atingindo a esfera jurídica de um número
indeterminável de pessoas, ou seja, bens ou interesses cujos titulares são anônimos. Dentre os
bens jurídicos cuja dimensão os caracteriza como interesse difuso, metaindividual,
transindividual ou plurisubjetivo, destaca-se o patrimônio histórico e cultural.
Através do art. 216, a nossa CR/88, a par de reconhecer a existência de valores
próprios aos bens coletivos materiais e imateriais relevantes para preservação da memória
1 Bacharel em Direito pelo Instituto de Ensino Superior de João Monlevade. Especialista em Direito Processual
pelo Instituto de Ensino Superior de João Monlevade. Advogada e Professora do Curso de Direito da Faculdade
Dinâmica de Ponte Nova-MG.
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nacional, considera tais bens como parte integrante do patrimônio cultural brasileiro
independentemente de qualquer ato de tombamento, protegendo assim as funções históricas e
culturais nos mesmos existentes pelo seu valor intrínseco. Assim, toda e qualquer intervenção
que venha a prejudicar tais funções é passível de criar obrigação de sua desconstituição, para
conseqüente recomposição do interesse coletivo subjacente à essa proteção específica.
Não obstante tal relevância, inexiste em nosso ordenamento jurídico um diploma legal
que trace de forma explícita e sistemática, como se dá a tutela jurídica do patrimônio histórico
e cultural em caso de lesão. O mesmo não ocorre nos casos do dano ao meio ambiente, caso
em que o ordenamento jurídico pátrio, já traz um arcabouço de normas jurídicas que permitem
responsabilizar o causador do dano, prevendo, inclusive, o modelo de responsabilidade civil
aplicável in casu.
Diante dessa constatação, a presente pesquisa justifica-se pela necessidade de se
investigar o modelo de responsabilidade civil que deve ser aplicado na ocorrência de danos ao
patrimônio histórico e cultural, bem como a forma de reparação do dano mais adequada à
natureza do bem jurídico em questão. Isto porque, está "em jogo" interesses e valores de um
número indeterminável de sujeitos, tendo todos eles o direito de ter sua esfera jurídica
recomposta em caso de lesão, demandando do intérprete e aplicador do Direito um esforço e
sensibilidade ímpar, a fim de garantir, ao máximo, o restabelecimento do equilíbrio rompido
no seio social, quando da ocorrência de danos a interesses que trazem em si mesmos, imensa
conflituosidade e complexidade.
Os objetivos fundamentais dessa pesquisa são: identificar a natureza da
responsabilidade civil por dano ao patrimônio histórico e cultural, visando a constatação do
modelo de responsabilidade mais adequado à reparação deste dano, tendo em vista o fim
último do instituto, qual seja, o restabelecimento do equilíbrio rompido por ocasião de um
dano e identificar critérios que devem ser utilizados para se definir a reparação adequada do
dano ao patrimônio histórico e cultural, tendo em vista a natureza peculiar deste bem jurídico.
Para tanto, procurou-se descrever o atual estágio do instituto responsabilidade civil no
Direito brasileiro, identificar as inovações trazidas pelo novo Código Civil em relação ao
instituto, verificar como se dá a proteção jurídica do patrimônio histórico e cultural e, por fim,
constatar de que maneira a responsabilidade civil pode ser aplicada ao patrimônio histórico e
cultural, quando este bem jurídico tiver sido violado.
45
2 RESPONSABILIDADE CIVIL: UM INSTITUTO EM CONSTANTE MUTAÇÃO
Antes de mergulharmos no estudo da responsabilidade civil por dano causado ao
patrimônio histórico e cultural, faz-se mister, empreendermos uma igual ou mais difícil tarefa:
tentar desvendar os contornos e, principalmente, o fundamento precípuo do complexo e
fascinante instituto em questão.
Desde logo, esclareço não ter a pretensão de resolver os dissídios que permeiam o
arcabouço conceitual da responsabilidade civil. Até mesmo os mais ilustres pesquisadores da
matéria, como os Mazeaud não esconderam a tentação de enfrentar o instituto sem defini-lo.2
Também, em nosso Direito, Pontes de Miranda, um dos maiores e mais importantes
privatistas, deixou sem resposta a indagação básica do em que consiste a responsabilidade
civil. 3
Todavia, considero, como já mencionado anteriormente, requisito indispensável para
uma melhor compreensão do instituto em nosso Direito , conceituá-lo tendo em vista o seu
fundamento primeiro, sem nos preocuparmos, por ora, de inserir a culpa ou o risco dentre seus
elementos fundamentais, muito menos em identificar o modelo de responsabilidade civil que
deve ser aplicado em caso de lesão ao patrimônio histórico e cultural. A falta deste esforço
conceitual pode ser considerado, talvez, como a gênese de muitos dos equívocos cometidos
nas investigações acerca do tema.
Existe no Direito um princípio basilar do neminem laedere, considerado por muitos
como fundamento intangível da responsabilidade civil. Hodiernamente, porém, as
preocupações impostas pela nova realidade social suscitam problemas que não podem ser
solucionados com recurso apenas ao aludido princípio geral proibitivo. Em sede de
responsabilidade civil, o desafio imposto ao Direito consiste, contemporaneamente, em
estabelecer não apenas o alicerce principiológico de uma disciplina reparatória, mas,
sobretudo, assentar um fundamento axilológico para essa reparação.4
Não percebemos, entretanto, tal preocupação ao analisarmos as teorias dominantes
sobre o instituto, quais sejam, aquelas derivadas dos modelos subjetivo e objetivo, que,
vagando em outros terrenos, forjam concepções estreitas, as quais envelhecem
prematuramente em virtude do desenvolvimento de novas práticas sociais.
2 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, V.I, p. 13.
3 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 8. ed. São Paulo: Forense, 1996, p.8.
4 MELO, Albertino Daniel de. Estudo sobre o fundamento da responsabilidade civil in Revista de Direito da
UFMG, Belo Horizonte,nº18, p.331-346, mai./1977.
46
Nesse sentido, de um lado, sempre sustentaram ardorosamente os subjetivistas ser a
culpa o fundamento, a pedra angular essencial da responsabilidade civil, sem a qual inexiste o
direito à reparação. De outra parte, os objetivistas, críticos ferrenhos do modelo subjetivo,
debruçaram-se na tentativa de ampliar os contornos do instituto, pela substituição da noção de
culpa, pela idéia do risco!
Aparentemente antagônicos, tais modelos, deveriam, em verdade, ter como
fundamento último o restabelecimento de um equilíbrio rompido no seio social por ocasião de
um dano. Como bem adverte João Baptista Villela ao procurar assentar que:
Na teoria da responsabilidade civil, o que se procura obter, em última análise, á a
restauração de uma igualdade destruída . Qualquer que seja o fundamento que se lhe
dê- culpa ou risco- é a um resultado igualitário- reconstitutivo que se objetiva.5
Indubitavelmente, pois, as teorias dominantes no instituto em tela, não fizeram mais
do que procurar encontrar quem deveria suportar o dano, incorrendo assim num mesmo
equívoco: o de procurar o fundamento da responsabilidade civil dentro de seus próprios
fundamentos estruturais, esquecendo-se que o mesmo, por apresentar natureza valorativa,
encontra-se extrínseco a estes modelos concretos de regulação da disciplina reparatória.
Além disso, abandonar como princípio norteador do instituto o fundamento último do
mesmo, compromete e muito, a sua correta e eficaz aplicação.
Diante dessa premissa, ou seja, do reconhecimento da insuficiência dos modelos de
responsabilidade civil para atingir o fim precípuo do instituto, quando analisados de maneira
estanque, é que compreenderemos, a partir do próximo ponto a ser discutido no presente
trabalho, como se deu a evolução do instituto no Direito Civil brasileiro, e procuraremos
demonstrar a impossibilidade de se bem equacionar os problemas suscitados neste setor do
Direito pela aplicação de um modelo de responsabilidade civil em detrimento do outro, pois,
como afirma Aguiar Dias, “a culpa e o risco não são mais que critérios possíveis, mais ou
menos freqüentes. A distribuição do ônus do prejuízo atende, primordialmente, ao interesse da
paz social.”6
5 VILELLA, João Baptista. Para além dos lucro e do dano: efeitos sociais benéficos do risco,in Repertório
IOB de Jurisprudência, Belo Horizonte, 1991, nº 22, p.490. 6 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. Vol. I, p.43.
47
2.1 O sistema de responsabilidade adotado no Código Civil brasileiro de 1916
Sempre que falamos em responsabilidade civil, temos, a priori, a idéia de que somente
o “culpado” deve responder pelo dano causado a outrem. Esta concepção repousa em um
princípio moral existente em todo ser humano e, em termos jurídicos, deriva do antigo dever
geral do neminem laedere.
Partindo-se desse pressuposto, o legislador de 1916 consagrou, no Código Civil, a
teoria da culpa, ou seja, o modelo eminentemente subjetivo de responsabilidade civil. Para
tanto, recebeu inspiração direta do Código Civil francês de 1804, que pela primeira vez
explicitou, de forma inequívoca, a idéia de culpa, como pedra angular da responsabilidade
civil, sem a qual não se poderia sequer indagar sobre o direito ao ressarcimento do prejuízo
causado por um fato danoso.
Da análise do artigo 159 do nosso Código Civil de 1916, podemos afirmar, com
amparo nas observações de Gustavo Tepedino, que três eram os pressupostos básicos da
responsabilidade civil , quais sejam: a conduta culposa do agente, o dano e o nexo causal
entre a conduta e o dano.7 Dessa forma, podemos concluir que o legislador de 1916 adotou de
forma explícita a teoria da culpa como princípio regulador da responsabilidade civil, tomando
como parâmetro o Código Civil francês.
Paradoxalmente, entretanto, na época em que entrava em vigor o nosso Código Civil,
já se encontrava em curso na França, um notável esforço doutrinário, capitaneado por
Sailelles e Josserrand, para atualizar a exegese do artigo 1.382 do Código de Napoleão, em
virtude da necessidade de adaptá-lo às exigências do progresso verificado a partir de sua
entrada em vigor. Já brotava daí uma vigorosa tentativa de se desmitificar o dogma da culpa.
O Código Civil brasileiro, entretanto, muito embora tenha previsto exceções à teoria
da culpa, deixou-se impregnar por completo das idéias subjacentes ao modelo subjetivista.
Dessa maneira, mesmo onde o legislador procurou afastar sua incidência, as hipóteses
excepcionais nunca lograram alcançar a extensão pretendida. Por conseguinte, como bem
observou Afrânio Lyra, “em matéria de responsabilidade civil, o Código brasileiro nasceu
velho.”8
7 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 178.
8 LYRA, Afrânio. Responsabilidade Civil. Salvador: Bahia, 1977, p. 69.
48
2.1.1 A concepção de culpa presente no Código de 1916
Tomando a culpa como fundamento da responsabilidade civil, o artigo 159 do Código
Civil brasileiro de 1916, inspirado no artigo 1.382 do Code9, estabeleceu que o ressarcimento
do prejuízo não tem fundamento num fato qualquer do homem, mas apenas naqueles fatos
humanos em que o agente procede com culpa.10
Daí dizer-se que, no modelo adotado pelo
legislador de 1916, o âmago da responsabilidade está na pessoa do agente e em seu
comportamento contrário ao Direito.
A culpa exigida pelo dispositivo supratranscrito deve ser tomada em seu sentido lato,
isto é, abrange não apenas a culpa strictu sensu ( derivada de imprudência, negligência ou
imperícia), com também o dolo. Neste ponto, importante salientar que o nosso Direito
desprezou a gradação de culpa em leve, levíssima e grave, feita, notadamente, pelos
doutrinadores franceses.
É neste sentido que, em seu magnífico trabalho de comentário ao nosso Código Civil,
Clóvis Beviláqua, acentua ser o ato ilícito a violação de direito ou o dano causado a outrem
por dolo ou culpa. Vale dizer : o ato ilícito pressupõe a culpa lato sensu do agente, ou seja, a
intenção de violar o direito alheio ou de prejudicar outrem (dolo), e, ainda, a violação de
direito proveniente de imprudência ou negligência.
Além disso, em face do artigo em tela, o elemento subjetivo do ato ilícito, como causa
do dever de indenizar, está na imputabilidade do agente, ou seja, a culpa deve ser apreciada in
concreto, no momento da ação ou omissão, devendo o autor do dano ter a capacidade de
entender e de querer no momento em que foi cometido o fato danoso.
A propósito da distinção entre culpa contratual e extracontratual, o nosso Código,
acompanhando o modelo de legislações mais antigas, a manteve. Todavia, na definição deste
elemento subjetivo, carece de importância tal distinção, como já o havia dito o nosso Pontes
de Miranda: “A culpa é a mesma, para a infração contratual e para a extracontratual. O adágio
in lege Aquilia et levissima culpa venit não significa que deva ser mais grave a culpa
contratual.”11
9 Dispõe o art.1.382 do Código Napoleônico: “Tout fait quelconque de l‟homme, qui cause à autrui un dommage,
oblige celui par la faute duquel il est arrivé, à la repárer”. 10
PEREIRA, Caio Mário da. Responsabilidade Civil. 8. ed. São Paulo: Forense, 1996, p. 32. 11
MIRANDA, Pontes de. Fontes e evolução do direito civil brasileiro. Rio de Janeiro, 1985 apud José de
Aguiar Dias. Da Responsabildade Civil. 10. ed. V.I, Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 124.
49
Destarte, ao consagrar a idéia de culpa, temos que, segundo o preceito genérico
instituído no Código Civil brasileiro, o elemento anímico ou volitivo constitui pressuposto
fundamental para o surgimento da obrigação de indenizar.
2.1.2 Ônus da prova na teoria subjetiva
O modelo de responsabilidade civil adotado em 1916 tem no que se refere ao ônus da
prova a fonte de seus maiores problemas.
Daí que a teoria subjetiva, não sem razão, é freqüentemente tachada como
individualista e liberal. A razão para tal entendimento remonta ao fato de que o ônus da prova
dos elementos exigidos para a configuração da responsabilidade, segundo a teoria subjetiva
(culpa, dano e nexo de causalidade),cabe exclusivamente à vítima. É a adoção do princípio
“actori incumbitio probatio”. E, como se opera o ônus probandi segundo tal princípio?
Com relação ao elemento dano, é indispensável que o prejudicado prove não apenas
que o fato do qual se queixa é capaz de gerar um dano hipotético, mas que prove o dano
concreto, ou seja, aquele que ele efetivamente sofreu. O nexo entre o fato e o dano, também
deve ser provado de forma inequívoca, uma vez que o prejuízo sofrido deve ter como causa
direta o fato danoso, praticado pelo autor. Porém, a demonstração que exige esforço singular,
por demandar uma investigação de índole anímica, consiste na prova do substractum do
modelo subjetivo, qual seja, a culpa do responsável.
Neste contexto, apesar de a vítima ter à sua disposição todos os meios de prova, já que
inexiste limitação em relação à matéria, exigindo-se dela, em todos os casos a prova de que o
agente agiu ou deixou de agir culposamente, o modelo subjetivo, em sua feição clássica,
deixa-a a mercê da mais completa desproteção. Isso porque, em havendo dúvida, o juiz
encontra-se forçado a rejeitar a ação indenizatória da vítima, que geralmente não consegue ver
ressarcido o seu prejuízo. Daí afirmar Caio Mário, com lastro em De Page, que, no sistema de
responsabilidade civil arrimado na teoria subjetiva clássica, “a irresponsabilidade era a regra;
a responsabilidade, a exceção.”12
Desta forma, num contexto em que a responsabilidade era transferida ao próprio
lesado,13
frustando-se a possibilidade de restabelecimento do equilíbrio social rompido com o
12
PEREIRA, Caio Mário. Responsabilidade civil. 8. ed. São Paulo: Forense, 1996,p. 30. 13
LYRA, Afrânio. Responsabilidade Civil. Salvador:s.e, 1977. p.65.
50
advento do dano, diversas críticas foram dirigidas ao modelo adotado pelo legislador de 1916,
dentre as quais destacam-se, como principais, as seguintes:
1ª) A noção de culpa é estreita, e não abarca todos os casos da vida social em ocorre dano;
2ª) Exigindo-se da vítima a prova de todos os elementos essenciais na responsabilidade
subjetiva, principalmente a culpa, difícil torna-se o restabelecimento do equilíbrio rompido;
3ª) Além disso, a teoria da responsabilidade fundamentada na culpa, não encontra explicação
para a responsabilidade dos entes coletivos, eis que, as pessoas coletivas, não tendo vontade
própria, jamais poderiam incorrer em culpa e, conseqüência nunca seriam responsabilizadas
por quaisquer danos.
Assim, após a entrada em vigor do Código Civil brasileiro de 1916, o que se observou,
foi o progressivo abandono do paradigma actori incumbitio probatio em matéria de
responsabilidade civil, aliado ao esforço da doutrina e da jurisprudência de ampliar a noção de
culpa, presumindo-a em diversas situações.
2.2 Alargamento da noção de culpa: culpa indireta e presunção de culpa
Não obstante ter sido a teoria da responsabilidade civil fundada na tradicional idéia da
culpa alvo de inúmeras críticas, seus defensores, ao invés de construírem um novo modelo de
responsabilidade, desprovido do “velho conceito”, preferiram lançar mão de meios técnicos
que pudessem alargar a noção , sem, no entanto, abandoná-la.
Entre estes meios, dois se destacam: a construção do conceito de culpa indireta e a
adoção da presunção de culpa, que, segundo Afrânio Lyra, transformaram o instituto em uma
mentira jurídica, que, cercada de artifícios, mascarava a realidade.14
De que maneira, operou, no Direito brasileiro tais mudanças?
Primeiramente, é importante ressaltar que estes processos de expansão conceitual da
culpa e modificação do ônus probatório surgiram de preceitos legais existentes no próprio
Código Civil de 1916. Em segundo lugar, ambos os processos foram obra, a princípio, da
jurisprudência, que, através da exegese das normas jurídicas, procurou refutar as críticas
dirigidas ao modelo subjetivo, através da tentativa de se dirimir os novos conflitos que
surgiam e não encontravam solução segundo os cânones tradicionais do modelo. Iniciou-se
14
LYRA, Afrânio. Responsabilidade Civil. Salvador: s.e.,1977, p.58.
51
assim, em nosso Direito, um intenso fenômeno de flexibilização do conceito de culpa,
elemento intocável até então.
A culpa indireta foi adotada nos artigos 1.518 a 1.521do Código Civil, nos quais o
legislador brasileiro logrou atribuir o dever de reparar o dano, não apenas àqueles que, por
ação própria e culposa, deram causa a um dano, mas também aos que faltassem com o dever
objetivo de vigilância sobre as pessoas que estivessem sob sua guarda ou dever de boa
escolha de prepostos, incorrendo, respectivamente, na culpa in vigilando e in elegendo.
Entretanto, pela sua simples adoção, não conseguiu o nosso legislador ampliar a
efetividade da tutela pretendida, pois, à luz do art. 1.523 do antigo Código Civil, as pessoas
referidas nos artigos supra transcritos, em regra, só seriam responsáveis se se provasse que
elas concorreram para o dano por culpa ou negligência. Por isso, a concepção trazida pelo
Código não é objetivista como afirmaram alguns e nem mesmo presumia a culpa dos
indiretamente responsáveis.15
Por conseguinte, dada a insuficiência do preceito legal, coube à jurisprudência realizar
uma interpretação extensiva do artigo 1.523, presumindo a culpa de forma jures tantum, o que
representou um avanço considerável em matéria de responsabilidade civil, facilitando o êxito
da vítima quanto à decisão judicial, já que inverteu-se com isso o ônus da prova. Tal postura
jurisprudencial, mais tarde, seria sumulada no enunciado nº 341 do Supremo Tribunal
Federal.16
Por outro lado, tomando por base a culpa presumida das estradas de ferro pelos danos
provocados a seus usuários, estabelecida no art. 17 do Decreto-lei nº 2.681 de 1912, a
jurisprudência estendeu a presunção de falta subjetiva a todas as modalidades de transporte.
No entanto, notável era a insuficiência da adoção dos procedimentos supracitados,
dado o caráter tópico e emergencial dos mesmos. Indubitavelmente, estes não conseguiam
solucionar um número cada vez maior de problemas oriundos das transformações nos
processos produtivos e, conseqüentemente, do aumento dos riscos impessoais inerentes às
sociedades urbanizadas e da grande mobilidade social. Fazia-se, mister, pois, a formulação de
uma teoria capaz de abarcar não problemas pontuais e pré-determinados, mas sim, que fosse
capaz de solucionar as lesões em massa que se multiplicavam diariamente.
15
TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 179. 16
Dispõe a súmula 341, do STF:
"É presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto."
52
3 SURGIMENTO DO MODELO OBJETIVO DE RESPONSABILIDADE CIVIL NO
DIREITO BRASILEIRO
Sem dúvida, após a exaustão da tentativa de se ampliar a concepção de culpa, não
havia mais razão de se insistir em fundamentar o sistema de responsabilidade civil brasileiro
na idéia sintetizada na conhecida fórmula de Ihering: “Sem culpa, nenhuma reparação.”17
Assim, seguindo as teorias objetivas de responsabilidade civil que há muito haviam
sido proclamadas, especialmente na França, o nosso Direito procurou estabelecer novo
fundamento para a obrigação de indenizar.
Mas, não foi fácil tal tarefa. No âmbito de nosso Estatuto Civil, como sabemos,
embora tenha previsto em seu corpo normativo, sub-sistemas que trazem a marca da
responsabilidade objetiva, como aqueles estruturados pelos arts.1.519 e 1.520 do Código de
1916 , nunca passaram estes, de exceções à regra geral do art.159 do citado diploma legal.
Necessitava, ainda, o nosso Direito de abandonar o dogma da culpa, como princípio absoluto
no campo da responsabilidade.
No entretanto, nos primeiros tempos, o entendimento dominante , e ainda hoje, entre
muitos de nossos doutrinadores, é que não deve o modelo objetivo substituir o subjetivo. Tal é
o pensamento de, por exemplo, Orozimbo Nonato, como bem se observa:
O que não é possível é negar a existência, nesses e em outros casos de
responsabilidade, do elemento moral, e perigoso seria, generalizando, pretender
substituir o elemento central da culpa pelo da normalidade, ou da confiança, ou do
risco ou da causalidade objetiva, que escondem uma idéia repugnante à nossa
sensibilidade jurídica e que, pretendendo a moralizar o direito, procura destruí-lo em
seus fundamentos primários.18
Mas não faltaram defensores da teoria objetiva no Direito brasileiro, dentre os quais
não se pode deixar de mencionar Aguiar Dias, que, em sua obra Responsabilidade Civil,
procurou demonstrar a insuficiência da regra clássica da culpa e, ainda, rebateu diversas
críticas que foram dirigidas à responsabilidade civil objetiva, como, por exemplo, a de que a
doutrina do risco faz abstração da personalidade humana.
Além destes, Alvino Lima, com sua preciosa monografia Culpa e Risco, defendeu
ardorosamente o modelo objetivo, como sendo o mais consonante com os novos ditames da
17
IHERING, apud Afrânio Lyra. Responsabilidade Civil. Salvador: s.e, 1977, p. 65. 18
NONATO, Orosimbo. Aspectos do Modernismo Jurídico e Elemento moral na culpa objetiva, conferência
pronunciada no Instituto dos Advogados Brasileiros em 1930 e inserta em Rev. Forense, v.56, p.5 e seguintes
apud Wilson Melo da Silva. Responsabilidade sem culpa e socialização do risco. Belo Horizonte: Editora
Bernardo Álvares, 1962, p. 131.
53
vida moderna. Com relação à adoção deste pelo nosso Direito, assim manifestou o autor em
tela: “não nos devemos encastelar dentro de princípios abstratos, ou de preceitos envelhecidos
para a nossa época, só por amor à lógica dos homens, à vaidade de concepções, ou à
intransigência de moralistas de gabinete.”19
Por sua vez, a respeito deste movimento de surgimento da responsabilidade objetiva
em nosso Direito e seu acolhimento, principalmente em leis esparsas, o grande mestre
Orlando Gomes, vincula, como outros autores, o apogeu da culpa aos áureos períodos de
prevalência, no Direito, da doutrina individualista. Dentro desta perspectiva, apresenta o risco
como a doutrina contemporânea que mais evidencia a expansão das tendências da
socialização do Direito. Assevera, ainda, que a multiplicação em nosso Direito, de leis
especiais, acolhedoras da tese nova, é prova do desprestígio marcante da doutrina subjetiva e
termina por assinalar que seria pretender negar-se a própria evidência não se admitir que uma
influência, cada vez mais crescente, se faz sentir, por parte da tese da responsabilidade
objetiva, nos arraiais adversos da culpa. 20
O próprio Clóvis Beviláqua, autor de nosso Código de 1916, afirma que embora tenha
distinguido, no Código, entre dolo e culpa, não faz depender desta ou daquele a obrigação de
indenizar. Ou seja, admite o autor que a responsabilidade não está adstrita ao modelo clássico
adotado pelo Código, podendo-se admitir outros modelos de responsabilidade não previstos
no mesmo .
Assim, podemos concluir que, se, em nosso Estatuto Civil, o legislador não
estabeleceu um verdadeiro sistema de responsabilidade civil objetiva, as leis esparsas e
subseqüentes acolheram notoriamente o princípio, que, assim, paulatinamente, passou a servir
de modelo subsidiário.
3.1 A pulverização do modelo objetivo de responsabilidade civil em nosso Direito
Fazendo-se um estudo das diversas leis especiais ou esparsas que previram o modelo
de responsabilidade desvinculado da velha e clássica culpa, calcado apenas nos elementos
nexo causal e dano, encontraremos no Dec. nº 2.681 de 1912, que já fora mencionado
anteriormente, a primeira manifestação, em nossa legislação, do modelo objetivo de
19
LIMA, Alvino. Culpa e Risco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1960, págs. 348-349. 20
GOMES, Orlando. A Crise do Direito. São Paulo: Limonad apud Wilson Melo da Silva. Responsabilidade
sem culpa e socialização do risco. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1962. p. 134.
54
responsabilidade civil. Tal decreto, mesmo anterior ao nosso Código Civil, regulamentava a
responsabilidade por acidentes nas estradas de ferro sob a égide do modelo objetivo,
dispondo, por exemplo quanto aos danos sofridos pelos proprietários marginais da linha, que a
responsabilidade das estradas de ferro será objetiva, mesmo se tais prejuízos forem resultante
de força maior ou caso fortuito. A única escusativa para tal responsabilidade seria se o dano
adviesse do fato de o proprietário contrariar alguma disposição legal ou regulamentar
concernente a edificações, plantações, escavações, depósito de materiais ou guarda de gado à
beira das estradas de ferro.21
Vale ressaltar que o aludido decreto, foi regulamentado pelo
Decreto nº 51.813/63 e alterado pelos decretos 59.809 e 58.365, ambos de 1966 e pelo decreto
61.488/67, mantendo-se, contudo, na mesma orientação quanto à natureza da responsabilidade
pelos fatos em questão.
No que tange aos acidentes de trabalho, profundamente objetivista, o Decreto nº
13.724/19, atualmente, regulamentado pelo Dec. nº 79.037/76, que manteve a mesma
orientação anterior, pois que, segundo os dispositivos deste decreto, o operário vitimado
sempre fará jus à sua indenização, havendo ou não culpa sua ou do patrão. É a adoção da
teoria do risco profissional, segundo a qual, a responsabilidade é inerente à atividade exercida
pelo empresário, sem que se leve em consideração o elemento culpa do patrão ou do
empregado.
Ainda com relação à responsabilidade do transportador, no transporte aéreo, nítida é a
incidência da teoria objetiva, no regime estabelecido pelo antigo Código Brasileiro de Ar, no
que se refere à responsabilidade causada pelos danos a terceiro na superfície, quando
provocados diretamente por aeronave em vôo ou manobra, assim como por pessoa ou coisa
dela caída ou projetada (arts.268 e 269, lei nº 7.656 de 19 de dezembro de 1986, antigo
decreto-lei nº 483.
Com relação aos demais meios de transporte, quais sejam, ônibus, bondes, elevadores
e automóveis, nossos juízes e tribunais, têm aplicado analogamente a teoria objetiva adotada
na responsabilidade por acidente ferroviário.
Outro importante setor da vida social em que se percebe uma clara ingerência do
modelo objetivo de responsabilidade é nas atividades do Estado, não importando-nos, nesta
feita, incluir tal tipo de responsabilidade no Direito público ou privado. O que nos interessa
neste ponto é sabermos que impera no que tange à responsabilidade dos entes estatais, a teoria
21
DINIZ, Maria Helena. 13. ed. Curso de Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1999. Vol. 7, p.52.
55
do risco administrativo, hoje expressamente prevista na CF/88, tendo sido derrogada a regra
do art.15 do nosso Código Civil22
, a qual se filiava à teoria da culpa administrativa do agente
estatal. Assim, sob a égide do Art.37,§6º da CF/88, aplica-se a teoria do risco administrativo,
não apenas às pessoas jurídicas de direito público, mas também aos entes privados prestadores
de serviços públicos, de forma que, na responsabilidade civil do Estado:
torna-se de menor importância o saber se o ato foi praticado com culpa ou sem
culpa, se era lícito ou ilícito; o que ocorre é que em decorrência do Estado de
Direito, Estado controlado e submetido ao direito, não resulta aceitável a causação
de danos, a incidência de lesões sobre alguns, decorrentes do exercício de uma
atividade estatal que procura o bem-estar de todos sem o preço da sobrecarga de
alguns.23
Também nas relações de consumo, é notório o acolhimento da teoria objetiva da
responsabilidade, após o advento do Código de Defesa do Consumidor, aprovado pela Lei
8.078, de 11 de setembro de1990. Tratando das relações jurídicas entre consumidor e
fornecedor, os cânones da referida lei dispõem que a responsabilidade do fabricante, produtor,
construtor, nacional ou estrangeiro, e do importador é objetiva, ou seja, respondem, os
mencionados fornecedores independentemente da existência de culpa(art.12). Igualmente,
responderá, independentemente de culpa, o fornecedor dos serviços, pela reparação dos danos
causados aos consumidores por defeitos relativos à sua prestação, bem como por informações
insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
Diante desta sistemática, cabe ao consumidor, apenas, provar o dano e o nexo causal
com o produto ou serviço prestado. Ou seja, conforme comenta Eduardo Gabriel Saad, o
Código não quer “que o consumidor prove a culpa do fornecedor, mas damos como evidente
que aquele tem de provar o nexo de causalidade entre o dano alegado e o produto adquirido
ou serviço prestado”.24
22
Art. 15, CC: “As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus
representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou
faltando a dever prescrito por lei, salvo direito regressivo contra os causadores do dano.” 23
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1993,
p. 187. 24
SAAD, Eduardo Gabriel. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 1. ed. São Paulo: LTr,
p.129 apud Alvino Lima. Culpa e risco.2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1988, p. 323.
56
3.2 Fundamento da responsabilidade civil objetiva: teoria do risco
Como é cediço, a teoria da responsabilidade civil desvinculada do elemento moral
culpa surgiu em virtude de razões de ordem prática e social que, paulatinamente demostraram
a insuficiência do modelo tradicional. Tentativas foram feitas para se deixar intacta a
responsabilidade subjetiva, mas estas não foram suficientes para resolver todos os casos não
solucionáveis pela teoria clássica.
E, assim como para os subjetivistas o elemento essencial da responsabilidade é a
culpa, reside no risco o fundamento da responsabilidade objetiva. No entanto, constitui ainda,
um ponto obscuro em nosso ordenamento jurídico, especialmente no campo doutrinário, um
conceito satisfatório para este elemento.
Para o ilustre civilista Caio Mário, v.g., o conceito de risco que melhor se adapta às
condições da vida social é o que se fixa no fato de que, se alguém coloca em funcionamento
uma qualquer atividade, responderá pelos eventos danosos que esta atividade gerar para os
indivíduos, independente de indagar-se se houve, em cada caso isoladamente considerado,
negligência, imprudência, ou um erro de conduta, configurando-se, assim, a teoria do risco
criado do qual o referido autor é adepto.25
Outros autores, trilhando um novo caminho, adotam a teoria do risco- proveito,
sintetizada no brocardo ubi emolumentum, ibi onus, para a qual, quem por suas atividades
colhe benefícios, deve, por justiça, suportar também os encargos, carregar os ônus, responder
pelos riscos disseminados.26
A última teoria exposta, todavia, parece-nos padecer de grave defeito, pois o que se
deve entender por “proveito”? Qualquer atividade poderia está maculada deste tipo de risco?
A respeito disso, eis as palavras do mestre Alvino Lima:
a objeção é demasiadamente superficial, porque o proveito não se determina
concretamente, mas é tido como finalidade da atividade criadora do risco. Se agimos
criando um risco ameaçador da integridade ou do patrimônio de terceiro,
procuramos tirar desta atividade o proveito maior possível. Se não conseguimos,
nem por isso deixamos de criar o risco, tendo em vista uma finalidade de lucro, sem
que a vítima tenha concorrido para a sua realização.27
25
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil.8. ed. São Paulo: Forense, 1996, p.270. 26
DÍAZ, Jullio Alberto. Responsabilidade Coletiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 47. 27
LIMA, Alvino. Culpa e risco. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1960, p.212.
57
Apesar das controvérsias, no que todos os autores estão concordes é que pela teoria
objetiva fundada no risco, denominada por alguns de teoria da causalidade, exige-se do lesado
que prove apenas o dano e a relação de causalidade entre o fato desenvolvido em determinada
atividade e o dano causado por ele, sendo este último elemento tomado de forma inflexível,
assim como a culpa o era nos seus tempos de triunfo.
Importante e revolucionária consideração, acerca dos efeitos sociais do risco foi
realizada pelo catedrático João Baptista Vilella, talvez preocupado com a exacerbação da
teoria do risco entre nós. Ao analisar um caso verídico em que ocorreu o dano provocado por
uma substância de uso farmacêutico, que, posteriormente foi utilizada eficazmente no
combate de outras manifestações patológicas, o autor assim se expressa:
não parece teoricamente absurda a hipótese de que o risco, além de lucros e danos
imediatos, possam advir resultados sociais úteis. Para essa eventualidade cabe ao
direito desenvolver respostas que neutralizem ou reduzam a responsabilidade civil
dos agentes que puseram em marcha a atividade arriscada. Não, evidentemente, por
modo a encurtar o direito dos que tenham sido lesados. Mas, quem sabe, na linha de
uma compensação por parte do Estado, que exprime os interesses da coletividade.
Será esta, com efeito e em resumo, a beneficiária dos proveitos do risco.”28
Está
aqui, um alerta para aqueles que tomam a teoria do risco de foram extremista e,
muitas vezes, irracional e absoluta, incorrendo no mesmo erro dos fiéis escudeiros
da teoria da culpa, uma vez que como assevera o referido autor, se o acaso serve
para condenar, poderia, também, servir para premiar, pois o progresso é
indispensável à todos os seres humanos.29
Outra importante tendência, defendida ardorosamente por Wilson Melo da Silva, é a
da socialização dos riscos. Segundo tal teoria o indivíduo constitui não uma unidade isolada,
independente, meramente egocêntrica. Ao contrário, faz parte de um organismo social, no
qual , faz-se mister, a prevalência da solidariedade sobre o egoísmo. Somente desta forma
minimizarão as misérias humanas, segundo o aludido autor.30
Acresce, ainda, que a
socialização dos riscos oferece perspectivas promissoras, pois que não leva a cerceamento da
livre atividade e da iniciativa de ninguém, introduzindo no Direito um critério mais eqüitativo
de distribuição de justiça, uma vez que os prêmios cobrados variariam conforme a
28
VILELLA, João Baptista. Para Além do Lucro e do Dano: Efeitos Sociais Benéficos do Risco. Repertório
IOB de Jurisprudêcia. São Paulo, n.22/91, p. 489-90, nov. 1991, R.J. 3, 2ª quinzena. 29
VILELLA, João Baptista. Para Além do Lucro e do Dano: Efeitos Sociais Benéficos do Risco. Repertório
IOB de Jurisprudêcia. São Paulo, n.22/91, p. 489-90, nov. 1991, R.J. 3, 2ª quinzena. 30
SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa e socialização do risco. Belo Hrizonte: Editora
Bernardo Álvares, 1962, p.349.
58
probabilidade da atividade produzir danos. Quanto maior a probabilidade, maior o montante a
ser pago.31
Neste ponto, vale a pena ressaltar que o nosso Direito não veda a produção de riscos,
eis que isso seria inibir as atividades produtivas. O que se pune, é o dano, provocado pelo
exercício de uma atividade qualquer da qual decorra uma probabilidade de ocorrência de
lesões.
4 ESTÁGIO ATUAL DO INSTITUTO NO DIREITO BRASILEIRO: SISTEMA
DUALISTA DE RESPONSABILIDADE CIVIL
Não obstante seja evidente o acolhimento cada vez maior da teoria objetiva em nosso
Direito, temos consagrado, no ordenamento jurídico pátrio, inequivocadamente, os dois
modelos de responsabilidade civil, o clássico, calcado no antigo art.159 do Código Civil de
1916, que tem como fonte o ato ilícito, e as normas reguladoras da responsabilidade sem
culpa, informadas por fonte legislativa que, a cada dia, se torna mais volumosa.32
Delineia-se, assim, no nosso ordenamento jurídico, um verdadeiro sistema dualista de
responsabilidade, orientado não pelos fundamentos culpa ou risco, como pretende a quase
totalidade dos autores filiados a cada uma das teorias, mas sim, assentado no fundamento
maior do instituto, explicitado no início do presente trabalho, que consiste no
restabelecimento do equilíbrio rompido no seio social pela ocorrência de um fato danoso. É
deste, portanto, que emana o sistema geral de responsabilidade civil. Note-se, neste ponto,
que a tônica deste instituto modificou-se, substancialmente, com a entrada em vigor do novo
Código Civil, eis que em seu art. 927, parágrafo único33
, existe a previsão em caráter geral do
modelo objetivo de responsabilidade que, hodiernamente, existe no ordenamento jurídico
pátrio apenas em caráter tópico e pulverizado.
E, ainda com relação ao sistema dualista de responsabilidade existente em nosso
Direito, conforme lição de Caio Mário, deve-se admitir a convivência das duas doutrinas, pois
que seria inexato extirpar do nosso ordenamento uma ou outra: a culpa exprimiria a noção
31
SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa e socialização do risco. Belo Hrizonte: Editora
Bernardo Álvares, 1962, p.351.
32
TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p.177. 33
Art. 927, parágrafo único do novo Código Civil: Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de
culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano
implicar, por sua natureza, riscos para o direito de outrem.
59
básica e o princípio geral definidor da responsabilidade, aplicando-se a doutrina do risco nos
casos em que a lei prevê, ou quando a lesão provém de situação criada por quem explora
profissão ou atividade que sujeitou o lesado ao risco do dano que sofreu.34
Marco importante para tal constatação é a Constituição de 5 de outubro de 1988, que
trouxe em seu corpo normativo uma série de princípios, tais como o da solidariedade social e
da justiça distributiva, previstos no art.3º, incisos I e II da Carta Magna, segundo os quais
constituem em objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária, bem como a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das
desigualdades sociais e regionais. Tais princípios, não podem, pois, deixar de moldar os
contornos da responsabilidade civil.
Além disso, prevê a Constituição de 1988, certas hipóteses de responsabilidade
objetiva e de seguro social, que constituem verdadeiras marcas da preocupação do constituinte
com mecanismos para a socialização dos riscos.
Daí que o instituto, apesar de tradicionalmente ser objeto de discussões na seara do
Direito Privado, não deve ser tomado para interpretação e estudo de maneira estanque, pois
isso só empobreceria o Direito. Devemos, assim, entendermos, que inevitavelmente a Carta
Magna de 1988, com sua ideologia democrática, influencia e muito o instituto da
responsabilidade civil, pois que nenhum outro instituto jurídico é tão fortemente marcado pela
idéia de justiça quanto este.
Assim, podemos concluir que o sistema dualista da responsabilidade civil no Direito
brasileiro, busca seu fundamento e legitimidade, não apenas nos preceitos do nosso Código
Civil e das diversas leis especiais acerca do instituto, como também, na nossa Constituição,
eis que deve ser orientado pelos princípios inseridos na mesma, que convergem para dois:
justiça social e igualdade entre os membros do organismo social. Desta forma, nos casos em
que tal igualdade for rompida deve-se buscar o restabelecimento da mesma, de maneira a
obter o máximo de justiça, independente da maneira pela qual se conseguirá tal feito.
5 CONCEITO DE PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL
Após verificarmos o estágio atual da evolução do instituto Responsabilidade Civil em
nosso Direito, cabe-nos agora, a tentativa heróica de definir o bem jurídico patrimônio
histórico e cultural.
34
PEREIRA, Caio Mário. Responsabilidade Civil. 8. ed. São Paulo: Forense, 1996, p.268.
60
Antes, porém, nos reportaremos ao sociólogo, Clifford Geertz para quem é impossível
definir universalmente o que seja cultura, uma vez que "as muitas formas que esse conceito
assume não são mais que produtos da experiência histórica particular das sociedades que o
manifestaram"35
. Defende o antropólogo:
O conceito de cultura (...) é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max
Weber que o homem é um animal amarrado as teias de significados que ele
mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e sua análise; portanto,
não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência
interpretativa, à procura do significado.36
Disso se infere ser inviável a tentativa de muitos, que teimam em definir de maneira
geral e indeterminada o conteúdo do conceito de cultura, uma vez que este é extremamente
diversificado e mutante, consoante o desenvolvimento de cada povo. Tentar defini-lo seria,
pois, chegar à conclusão de que este conceito não tem conteúdo.
O conceito de patrimônio histórico e cultural constitucional que passaremos a expor é
fruto de uma evolução contínua, eis que nossa Carta Magna adota uma ótica mais abrangente
reconhecendo o patrimônio cultural como a memória de vida da sociedade brasileira,
elencando assim, tanto elementos materiais como imateriais. 37
No seu art. 216, a nossa CR,
refere-se à expressão "patrimônio cultural" como sendo constituído pelos bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em seu conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira,
consagrando além da visão mais ampla do que seja patrimônio cultural, dois princípios de
grande relevância, quais sejam, o da diversidade cultural e o da autonomia da cultura, cujos
significados coadunam com a conclusão do antropólogo Clifford Geertz já apresentada, no
que tange à impossibilidade de se definir o conteúdo da cultura de um determinado povo.
Outro ponto que é importante destacarmos é que o bem jurídico em tela é classificado
dentro do gênero interesse metaindividual, como sendo um interesse difuso, que tem como
características básicas: a indeterminação dos sujeitos; a indivisibilidade do objeto; a intensa
conflituosidade interna e a transição ou mutação no tempo e no espaço.
A indeterminação dos sujeitos significa que os interesses difusos não são referíveis a
um titular específico ou determinável, como ocorre com o esquema tradicional de relação
jurídica com a qual somos habituados a tratar. A sua tutela deriva não da titularidade, mas da
35
GEERTZ, Clifford. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989, p. 53. 36
GEERTZ, Clifford. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989, p. 59. 37
O Decreto nº 3.551 , publicado no Diário Oficial de 7 de setembro de 2000, instituiu o registro de bens
culturais de natureza imaterial, como forma de proteção aos mesmos.
61
relevância social, em si, desses interesses chamados difusos. Tais interesses não comportam,
por sua própria natureza, aglutinação em grupos sociais definidos a priori. Isso quer dizer
que:
se o interesse é sempre uma relação entre uma pessoa e um bem, no caso dos
interesses difusos essa relação é super ou metaindividual, isto é, ela se estabelece
entre uma certa coletividade, como sujeito, e um dado bem de vida "difuso", como
objeto.38
Por serem insuscetíveis de apropriação a título exclusivo, referindo-se a uma série
indeterminada de sujeitos situam-se no "extremo oposto" dos direitos subjetivos.
Analisados sob a ótica objetiva, verifica-se que os interesses difusos são indivisíveis,
uma vez que são insuscetíveis de partição em quotas atribuíveis s pessoas ou grupos
preestabelecidos. Em virtude da fluidez de seu objeto, esparso por um número indeterminável
de sujeitos, os interesses difusos apresentam uma estrutura bastante peculiar, isto porque,
como eles não têm seus contornos definidos numa norma, como os direitos subjetivos, nem
estão aglutinados em grupos definidos, como os interesses coletivos (v.g., os direitos dos
consumidores), sua existência não é afetada nem alterada pelo fato de virem a ser exercitados
ou não.
Além das características já apresentadas, a maioria dos doutrinadores, sobretudo os
italianos, aponta a intensa conflituosidade interna, para eles a conflittualità massima, como
uma das notas essenciais dos interesses difusos. Os conflitos oriundos do entrechoque de
massas de interesses que constituem os interesses difusos, não trazem consigo as
características dos conflitos concebidos na tradicional fórmula "Tício versus Caio". Conforme
esclarece Rodolfo de Camargo Mancuso,
não se cuidando de direitos violados ou ameaçados, mas de interesses (conquanto
relevantes), têm-se que a esse nível, todas as posições, por mais contrastantes,
parecem sustentáveis. É que nesses casos de interesses difusos, não há um parâmetro
jurídico que permita um julgamento preliminar sobre a posição "certa" ou "errada".39
Outra característica dos interesses difusos, categoria à qual pertence o patrimônio
histórico e cultural, é a transição ou mutação no tempo e no espaço. Isso significa que, os
interesses difusos, não estão atrelados a um vínculo jurídico básico, mas a situações de fato,
38
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. São Paulo: RT,
1988, p. 68. 39
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. São Paulo: RT,
1988, p. 72.
62
contingenciais, sendo, por consequência, mutáveis como essas mesmas situações. Isso os
diferencia dos direitos, uma vez que estes (os direitos) estão presos ao plano ético-normativo,
enquanto aqueles (os interesses), oriundos do plano fático tendem a repetir-se e transformar-se
indefinidamente.
O Estado, durante muito tempo, negou-se a tutelar tais interesses, restringindo sua
atuação apenas aos direitos subjetivos, sob o fundamento de que somente os direitos
derivados de uma relação jurídica de titularidade definida, seriam passíveis de tutela.
Entretanto, como já nos referimos anteriormente, a relevância social de tais interesses
constitui motivo suficiente para sua proteção, afinal "sem os homens certamente não haveria
cultura, mas, de forma semelhante e muito significadamente, sem cultura não haveria
homens."40
Na busca da tutela eficaz desse interesse difuso que é o patrimônio histórico e
cultural, verifica-se em nossa legislação ordinária, dois importantes diplomas normativos, o
primeiro é o Decreto-Lei nº 25/37, que institui o procedimento administrativo chamado de
tombamento, que traz em seu art. 1º um conceito de patrimônio histórico e artístico nacional:
Art. 1º- Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto de bens
móveis e imóveis, existentes no país e cuja conservação seja de interesse público,
quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu
excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.
§ 1º (...)
§ 2º - Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também sujeitos
a tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe
conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza
ou agenciados pela indústria humana.41
Desse dispositivo, interessa-nos, precipuamente dois aspectos, o primeiro diz respeito
à definição do objeto do tombamento. A idéia que deve prevalecer é que embora o objeto
tutelado seja a coisa que detém o valor a ser conservado, preservado, este valor dela se
destaca, constituindo um bem autônomo que, por ser imaterial e não econômico, é
insuscetível de apropriação individual. Esse valor contido nas coisas de interesse cultural
formam, no seu todo, o "patrimônio histórico e artístico nacional", que como universalidade e
bem jurídico, interessa a toda a coletividade. 42
40
GEERTZ, Clifford. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989, p. 61. 41
BRASIL. Decreto-Lei 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico
nacional. Código Civil. 50. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. (Legislação Brasileira). 42
CASTRO, Sônia Rabello de. O Estado na preservação de bens culturais. Rio de Janeiro: Renovar, 1991,
p.68.
63
Outro aspecto de destaque no referido dispositivo é que fica claro que o tombamento
só se materializa sobre a coisa, móvel ou imóvel, excluindo-se, pois, deste tipo de proteção, os
bens imateriais, como, v.g., as práticas religiosas, os hábitos industriais, dentre outras
manifestações da cultura nacional. 43
O instituto tombamento como um dos instrumentos administrativos específicos de
proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, vem sendo, muitas das vezes mal
compreendido, especialmente pelos administrativistas nacionais, que, presos às regras de
direito público, colocam o tomamento como ato constitutivo e não declaratório. E tal
classificação empobrece, sobremaneira, o conceito de patrimônio histórico e cultural que nos
parece ser o mais viável à correta tutela desse interesse difuso.
Sônia Rabello de Castro, em sua obra sobre o instituto do tomamento, coloca da
seguinte maneira sua posição, calcada nos ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de
Mello e José Afonso da Silva :
para integrar o patrimônio cultural nacional é preciso que o seja bem tombado, isto
é, que não só tenha os pressupostos fáticos de valor cultural, como também que estes
sejam reconhecidos através de processo administrativo, com a manifestação de
vontade do poder público, e inscrição do bem no livro do Tombo.44
Ora, neste ponto, somos obrigados a discordar da brilhante autora, uma vez que a
exegese do tomamento, à luz da CR/88, indubitavelmente, deixa claro que o instituto é
apenas uma das formas que o Estado tem de reconhecer o valor histórico e cultural de
determinado bem, o que significa que o valor histórico e cultural existe faticamente e merece
proteção estatal independentemente da constrição administrativa ter se efetivado ou não.
Quem atribui este valor aos bens, são os diversos grupos sociais.
Todos os bens culturais, conforme o art. 216 da CR/88 merecem proteção automática
do Estado, independentemente de lei ou ato administrativo específico. Pensar o contrário,
seria flagrante desrespeito ao princípio constitucional inserto no art. 215, da CR que dispõe
que é dever do Estado garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às
fontes da cultura nacional. Entendemos até que nos casos de bens que não sejam passíveis
de tomamento, ou que ainda, embora possam ser objeto do referido ato não tenham sido
43
Foi assinado pelo Presidente da República e pelo Ministro da Cultura o Decreto nº 3.551, publicado no Diário
Oficial de 7 de setembro de 2000, instituindo o registro de bens culturais de natureza imaterial, como forma de
proteção aos mesmos. 44
CASTRO, Sônia Rabello de. O Estado na preservação de bens culturais. Rio de Janeiro: Renovar, 1991,
p.94.
64
ainda tombados, merecem uma atenção ainda maior por parte do Estado e também da
sociedade, uma vez que o ato administrativo cria para todos uma presunção de que o bem
não será danificado, tendo em vista ás diversas limitações e obrigações impostas aos seus
proprietários, vizinhos e ao Estado.
O conceito de "patrimônio histórico e artístico" previsto no decreto- lei 25/37 deve
ser lido como "patrimônio cultural", eis que o valor de um bem transcende em muito o seu
valor histórico comprovado ou reconhecido oficialmente, por meio, v.g., do tomamento ou
de suas possíveis qualidades artísticas. Este bem é sempre parte de um conjunto maior de
bens e valores que envolvem processos múltiplos e diferenciados de apropriação, recriação e
representação construídos e reconhecidos culturalmente e, aí sim, histórica e cotidianamente,
portanto anterior à própria concepção e produção daquele bem. Assumir essa concepção
constitucionalmente adequada significa darmos um relevo a todos os valores intrínsecos e
extrínsecos dos bens, práticas sociais, ações que constituem o patrimônio histórico e cultural
brasileiro. Adotar uma interpretação literal do preceito à luz da nossa Constituição de 1988
que dispõe sobre tal patrimônio, quer dizer, empobrecer o seu significado, o que, na prática
pode levar à inutilidade da proteção constitucional à tudo aquilo que compõe o patrimônio
histórico e cultural brasileiro.
Outro diploma legal de importância ímpar e incontestável na tutela eficaz dos
interesses difusos, dos quais faz parte o patrimônio artístico e cultural á ação civil pública,
regulada pela Lei 7. 347/85, de índole predominantemente processual.
A importância do referido instrumento processual vai desde a previsão expressa de
um leque extenso de legitimados para a proposição de ação civil que vise resguardar
interesse difuso, com papel de destaque para o Ministério Público que, através do inquérito
civil, tem o dever de agir (propor a ação) sempre que verificar a presença de justa causa
para a sua propositura. O princípio da obrigatoriedade norteia não só a propositura da ação
civil pública pelo Órgão Ministerial como também a promoção da referida ação em todas as
suas etapas. Assim, não poderá desistir arbitrariamente do pedido, ou deixar de assumir a
continuidade da ação em caso de desistência infundada de um co-legitimado, nem deixar de
promover a execução da sentença.
Não obstante a importância inegável destes dois institutos referidos anteriormente,
foi a partir da matriz constitucional dos interesses difusos, destacando-se o meio- ambiente e
o patrimônio histórico e cultural, que estes puderam contar com mecanismos de proteção
65
mais sistêmicos e efetivos, eis que alcançaram um nível constitucional o reconhecimento
explícito da importância desses bens para toda a Nação.
Por último, cabe levantar um ponto bastante complexo que permeia os interesses
difusos, notadamente, o patrimônio histórico e cultural, que diz respeito ao valor, mas não
um valor qualquer, e sim um valor que se caracterize como valor histórico e cultural. Como
definir este valor ou mesmo identificá-lo?
Já mencionamos neste capítulo que o intuito da proteção constitucional ao
patrimônio histórico e cultural é, indubitavelmente, proteger os valores históricos e culturais
presentes intrinsecamente nos bens de natureza material ou material, daí porque como
também já nos referimos, o tomamento, muito embora tenha grande relevância na proteção
destes valores representa não mais do que uma declaração, oriunda da Administração
Pública, do valor de um bem determinado, isto é, não pode ser tomado como ato essencial à
constituição de um conjunto de valores históricos, artísticos e culturais. Estes prescindem do
referido procedimento administrativo e são anteriores a ele. Esta é, a nosso ver, a principal
importância do conceito constitucional apresentado.
Assim, o conceito de patrimônio histórico e cultural constitucionalmente previsto e a
impossibilidade do Estado definir o conteúdo desse conceito devem ser encarados como
ponto de partida para todas as discussão acerca desse bem jurídico, especialmente a que
constitui o motivo central deste trabalho monográfico, qual seja, a discussão do modelo do
instituto responsabilidade civil que deve aplicável na ocorrência de dano ao patrimônio
histórico e cultural, uma vez que inexiste no nosso ordenamento um diploma legal que
explicite tal questão, bem como as formas de reparação desses danos. Eis, pois, a
importância de uma correta compreensão do conceito desse bem e de suas peculiaridades,
peculiaridades essas que lhe dão a qualificação de interesse difuso.
6 O DANO AO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL
Interessa-nos como objeto do presente trabalho o estudo do dano ao patrimônio
histórico e cultural sob a dimensão coletiva, ou seja, será discutida a lesão ao interesse difuso,
cuja titularidade pertence a toda a coletividade.
Para a abordagem deste tema, faz-se mister, termos em mente as características do
interesse difuso patrimônio histórico e cultural, abordadas no capítulo anterior, assim como o
66
conceito de deste bem jurídico adotado pela Constituição de 1988. A Carta Política da Nação,
em seu art. 216 dispõe:
Art. 216 Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem:
............................................................................
§ 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o
patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância,
tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.
.................................................................................
§ 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.
(Destacou-se)45
Ao reconhecer a existência de valores próprios aos bens coletivos materiais e
imateriais relevantes para a preservação da memória nacional, protegendo assim as funções
históricas e culturais existentes nos mesmos, independentemente de qualquer ato de
tombamento, nossa CR/88, deixa claro que qualquer ato de intervenção que venha a
prejudicar tais funções será passível de criar a obrigação de sua desconstituição, para a
conseqüente recomposição do interesse coletivo subjacente à proteção específica.
Mas como é possível dimensionarmos ou definirmos um dano ao patrimônio histórico
e cultural?
Primeiramente deve-se ter em mente que qualquer ato comissivo ou omissivo que
venha a descaracterizar quaisquer dos múltiplos valores históricos e culturais intrínsecos a um
bem é considerado um dano ao mesmo.
Quanto à questão, temos que sua resposta é bastante complexa, pois sempre que
falamos em dano a um bem qualquer, somos tomados pelo apego a uma percepção de índole
individualista do Direito, ligada a interesses intersubjetivos e não ao tratamento solidário e
difuso, relativo a interesses metaindividuais, como é o caso do patrimônio histórico e
cultural.46
Sem dúvida, a riqueza deste bem jurídico traz consigo a constatação de que é
necessária uma sensibilidade ímpar, ao identificarmos os atos danosos ao mesmo. O que é
importante examinar no caso concreto é se a alteração do patrimônio histórico e cultural
prejudicou ou não a capacidade de uso do bem pela coletividade ou a sua capacidade
45
BRASIL. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro
de 1988. Organização do texto: Juarez de Oliveira. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. 168 p. (Série Legislação
Brasileira). 46
LEITE, José Rubens Morato. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000, p. 177.
67
funcional protegida pelo Direito. Isto porque a lesão sofrida pelo proprietário de um bem
possuidor de valores históricos e culturais não se confunde com o dano sofrido pela
coletividade atingida na sua vivência e privada da possibilidade do exercício do seu direito de
participação e reprodução cultural, previsto constitucionalmente no art. 215 da nossa Carta
Maior. Embora a coisa seja privada, seu valor cultural reveste-a de interesse público,
caracterizando-a por dois interesses: o privado, enquanto propriedade particular, e o público
enquanto bem de valor cultural.
Neste ponto é interessante tocarmos num ponto crucial do presente tema que é
justamente o fato de que os valores culturais insertos num determinado bem são bens
imateriais inapropriáveis individualmente e, por consequência disso, toda lesão ao patrimônio
histórico e cultural possui duas faces distintas e interligadas entre si: a material,
correspondente ao valor necessário para a recomposição material do bem e a imaterial,
oriunda da lesão ao direito de toda a coletividade de participação na vida cultural.
A interrelação entre essa duas faces dá-se na própria visão que a sociedade possui
sobre um bem, na medida em que somos todos nós quem atribuímos, simbolicamente, valores
imateriais (culturais) a ele. Assim, um determinado bem de valor histórico e cultural como,
por exemplo, o centro histórico da cidade mineira de Ouro Preto é, senão, a concretização ou
materialização de práticas culturais da sociedade local, regional, nacional e mesmo
internacional. É fruto da uma teia de práticas sociais mutáveis no tempo e no espaço, cada
qual atribuindo um conjunto de valores que interrelacionados atribuem aos interesses difusos,
in casu, ao patrimônio histórico e cultural seu significado.
Essas duas faces do dano ao patrimônio histórico e cultural independem do
reconhecimento por parte do Estado, através de lei ou ato administrativo, de que um bem
possua ou não valores históricos e culturais, que exijam sua conservação ou manutenção.
Assim, a imputação de um dano ao patrimônio histórico e cultural prescinde da verificação da
existência ou não uma autorização administrativa, através, v.g., do IPHAN (Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) para a alteração de um bem tombado. Ocorrendo
um dano nestas circunstâncias, pode o agente estar isento da sanção administrativa ao dano,
mas isso não quer dizer que na esfera cível não venha este a ser considerado responsabilizado
por um dano ao patrimônio histórico e cultural.
A lesão à dimensão imaterial de um bem com valores culturais é denominada de dano
extrapatrimonial ou moral, eis que atinge valores imateriais da coletividade, como, por
68
exemplo, ao destruir a imagem de Aleijadinho pertencente ao acervo do Museu da
Inconfidência em Ouro Preto ou ao pichar a fachada de uma casa no centro histórico de Ouro
Preto, está-se atingindo um direito intercomunitário e intergeracional.
Embora hodiernamente, seja patente a existência de danos distintos do material, a
aceitação do dano extrapatrimonial no direito brasileiro era incipiente e implícita no Código
Civil de 1916. A redação do Código gerava inúmeras dúvidas doutrinárias e jurisprudenciais
acerca do dano extrapatrimonial, ganhando novos ares com a promulgação da Constituição de
1988, que selou definitivamente qualquer dúvida a respeito da reparabilidade do dano
extrapatrimonial e representou um marco de extrema importância neste tema.
Assim, no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos , foi disposto no art.
5º:
V- É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização
por dano material, moral ou à imagem
( ... )
X- São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra, e a imagem das pessoas,
assegurado o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua
violação. 47
Não obstante, tenha o dano extrapatrimonial tomado outra dimensão a partir de seu
reconhecimento constitucional, em matéria de interesse difuso, foi a Lei 7.347, de 1985 Lei da
Ação Civil Pública, com nova redação dada pela Lei 8.884, que inseriu em nosso
ordenamento, em seu art. 1º, o primeiro fundamento legal ao dano extrapatrimonial a esses
bens:
Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações
de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:
I - ao meio ambiente
( ...)
IV - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo.48
Trata-se da consagração da reparação de toda e qualquer espécie de dano aos
interesses difusos, no que toca à sua extensão.
Voltemos aqui ao segundo questionamento proposto no início do deste capítulo: qual a
extensão de um dano ao patrimônio histórico e cultural? Como equacionar todos os valores,
47
BRASIL. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro
de 1988. Organização do texto: Juarez de Oliveira. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. 168 p. (Série Legislação
Brasileira). 48
BRASIL. Lei 7.437, de 24 de julho de 1985. Disciplina a ação civil pública por danos causados ao meio
ambiente, consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico e paisagístico (vetado) e dá outras
providências. Código Civil. 50. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. (Legislação Brasileira).
69
especialmente os imateriais, presentes em um bem cultural, a fim de dimensionar o dano
sofrido pelo mesmo, sem empobrecer seu significado?
Conforme já mencionado, esta não é uma tarefa fácil, visto que nem mesmo o bens
cultural que se materializam em uma coisa, é a coisa em si: " é o seu significado simbólico,
traduzido pelo valor que ela representa"49
conforme diz a própria Sônia Rabello de Castro,
que, entretanto, equivocadamente, atribui ao ato administrativo do tombamento o condão de
constituição dos valores culturais de um bem.
O mais razoável, seguindo o que se prevê, comumente, para a averiguação dos danos
ambientais, é a aplicação de duas regras, quais sejam: a consideração dos múltiplos valores
que podem estar inseridos no bem lesado; o entrelaçamento dos valores históricos e culturais
materiais e imateriais constantes no bem. Sem atentar-se a essas duas regras, impossível a
verificação, o dimensionamento do dano a um interesse difuso, como o é, o patrimônio
histórico e cultural.
Infelizmente, o nosso Direito positivo muitas vezes parece esquecer da orientação
constitucional, prevendo normas distintas para a proteção do patrimônio histórico e cultural
material e outras para o imaterial, em desobediência à constatação fática de que é impossível a
dissociação entre ambos em se tratando do patrimônio histórico e cultural. Trata-se, como
sintetiza Rodolfo de Camargo Mancuso50
, de um interesse, em torno do qual se discutem
valores e sentimentos mais profundos da sociedade, sendo titularizado por uma coletividade
indeterminável e insuscetíveis de apropriação exclusiva por quem quer que seja. Daí que a
lesão ao patrimônio histórico e cultural significa um dano impessoal, de todos aqueles que
atribuem a ele valores culturais, através das mais diferentes práticas sociais. Esse chamado
dano moral ou extrapatrimonial coletivo, na orientação de Carlos Alberto Bittar Filho, seria "
a injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de
um determinado círculo de valores coletivos.51
E, prossegue o insigne jurista:
Quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o
patrimônio valorativo de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente
considerada, foi agredido de maneira absolutamente injustificável do ponto de vista
49
CASTRO, Sônia Rabello de. O Estado na preservação de bens culturais. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, p.
33. 50
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1988, p. 102. 51
BITTAR FILHO, Carlos Alberto Bittar. Do dano moral coletivo, no atual contexto jurídico brasileiro. Revista
do Direito do Consumidor, São Paulo, v.12. p. 55, out./dez. 1994.
70
jurídico: quer isso dizer, em última instância, que se feriu a própria cultura, em seu
aspecto imaterial.52
Das considerações postas acima, podemos concluir que o dano a qualquer bem que
componha o patrimônio histórico e cultural, conforme já mencionado, possui duas dimensões
bastantes claras que se interpenetram, atribuindo ao bem lesado um conjunto de valores
múltiplos, todos eles importantes para a verificação da configuração do dano ao patrimônio
histórico e cultural, ou seja, deve-se analisar não apenas cada valor individualmente
considerado, mas também o conjunto dos valores atribuídos a um dado bem pertencente ao
patrimônio cultural. Somente assim, obtém-se o efetivo respeito ao princípio constitucional
que é o da pluralidade dos valores culturais, previsto no art. 220 da nossa CR/88.
7 A RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO AO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E
CULTURAL
7.1 Modelo de responsabilidade civil mais adequado à recomposição dos danos ao
patrimônio histórico e cultural
Toda a estruturação do nosso Direito positivo, até bem pouco tempo, encontrava-se
impregnada de institutos e conceitos que sequer previam a possibilidade de seu ajustamento a
novas categorias de direitos que não fossem os individuais previstos, muito menos, se
imaginava o surgimento de interesses jurídicos metaindividuais, dos quais fazem parte os
interesses difusos, categoria na qual está incluído o patrimônio histórico e cultural.
O surgimento destes interesses (direitos) difusos vem desafiando o nosso sistema
tradicional acostumado à tutela de relações jurídicas bem definidas, fazendo com que nosso
Direito positivo lançasse mão de institutos novos, como é o caso da Lei da Ação Civil Pública
7.347/85, considerada uma lei de índole preponderantemente processual, conforme conclui
Rodolfo de Camargo Mancuso53
ou de adaptações de institutos concebidos para a defesa de
direitos subjetivos, como os do interesse de agir, a legitimação entre tantos outros.
52
BITTAR FILHO, Carlos Alberto Bittar. Do dano moral coletivo, no atual contexto jurídico brasileiro. Revista
do Direito do Consumidor, São Paulo, v.12. p. 55, out./dez. 1994.
53
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública: em defesa do meio ambiente, do patrimôno
cultural e dos consumidores. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 27.
71
Muito embora, podemos observar atualmente, uma evolução do nosso Direito na busca
da tutela desses interesses "novos" revelados no processo social, somos compelidos a admitir
que essa tutela ainda encontra-se incipiente.
O instituto da responsabilidade civil, instituto clássico, construído com elementos
rígidos, próprios à proteção das relações interindividuais, vê-se, inadaptável à
responsabilidade por danos causados a interesses difusos, onde o prisma é deslocado da
aferição da culpabilidade do agente para a efetiva reparação da lesão causada à coletividade.
Assim, de maneira geral, tem-se admitido que a responsabilidade, em matéria de
interesses metaindividuais, deve ser a objetiva ou do risco integral, as únicas capazes de
assegurar uma proteção eficaz a esses interesses.
Quanto à responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, o modelo de
responsabilidade já não gera quaisquer dúvidas, pois o caráter objetivo da responsabilidade é
previsto explicitamente no § 1º, do art. 14 da Lei 6.938/81, in verbis:
o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou
reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. 54
Sérgio Ferraz, salientando que o "patrimônio ambiental ao contrário do que dizem os
juristas e algumas leis, não é res nullius, mas res omnium- coisa de todos"55
, é conclusivo ao
dizer:
Não se fará, seguramente, qualquer passo à frente, no tema da responsabilidade por
dano ecológico, se não compreendermos que o esquema tradicional da
responsabilidade subjetiva, da responsabilidade por culpa, tem que ser
abandonada.56
Conforme já exposto e pelas razões acima aduzidas, a responsabilidade objetiva por
dano ambiental já não nos traz tantas indagações e dúvidas como ocorre com os danos
perpetrados contra o patrimônio histórico e cultural.
Primeiro porque, inexiste, no nosso ordenamento jurídico uma legislação que preveja
o caráter da responsabilidade in casu; segundo, porque a doutrina e jurisprudência tendem a
ter uma visão retrógrada e, porque não dizer, inconstitucional acerca do entendimento do que
seja o interesse difuso patrimônio histórico e cultural, o que é inadmissível à luz da CR/88.
54
BRASIL. Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a política nacional do meio ambiente, seus fins e
mecanismos de formulação e dá outras providências. Código Civil. 50. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
(Legislação Brasileira). 55
FERRAZ, Sérgio. Responsabilidade civil por dano ecológico. RDP 49/50, p. 35. 56
FERRAZ, Sérgio. Responsabilidade civil por dano ecológico. RDP 49/50, p. 37.
72
Ilustrando tal visão cito o autor Hugo Nigro Mazzilli, para quem:
Nos danos causados ao patrimônio cultural, a responsabilidade será objetiva se a
lesão coincidir com a ofensa ao meio ambiente, na sua ampla conceituação
legal. Contudo, há lesões ao patrimônio cultural que não atingem o meio ambiente (a
destruição de peças raras em museu, p. ex.).
A responsabilidade por lesões aos demais interesses coletivos e difusos dependerá
ou não da apuração da culpa, conforma seja o regime de direito material a respeito.57
No mesmo sentido, conclui Rodolfo de Camargo Mancuso58
que devemos
compreender a expressão meio ambiente num sentido amplo, holístico e não em seu aspecto
apenas naturalístico, de biota.
Acresce o autor que essa percepção vai de encontro ao conceito de "patrimônio
cultural brasileiro", constante do art. 216 da nossa Carta Magna. E, sendo considerada essa
percepção abrangente e contemporânea, não se deve compreender
que, diante da degradação de um sítio arqueológico ou de um prédio de interesse
histórico tornado ruína, se entrasse em perquirições sobre a mera culpabilidade do
agente. (...) A se entender de outro modo, correr-se-ia o risco, no limite, de que um
pichador de um monumento público pretenderia se eximir de responsabilidade,
alegando que não procedeu com culpa, porque, de um lado, adquiriu a tinta spray no
mercado, e, de outro, porque sua obra representa manifestação de arte popular...59
Interessante notarmos que a nossa Carta Maior prevê, em seu art. 24:
Art. 24 - Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar
concorrentemente sobre:
(...)
VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos
de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;
(...)60
Mas qual o interesse da observância deste preceito constitucional para a verificação de
qual o modelo de responsabilidade mais adequado à tutelar o dano ao interesse difuso
estudado no presente capítulo?
Fazendo um apanhado dos modelos de responsabilidade civil adotado pelo legislador
ordinário para o cumprimento da norma constitucional acima citada, percebe-se que tanto no
57
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.
302/303. 58
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública: em defesa do meio ambiente, do patrimôno
cultural e dos consumidores. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 265. 59
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública: em defesa do meio ambiente, do patrimôno
cultural e dos consumidores. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 266. 60
BRASIL. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro
de 1988. Organização do texto: Juarez de Oliveira. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. 168 p. (Série Legislação
Brasileira).
73
caso de dano ao meio ambiente, como no caso do dano ao consumidor, foi adotado o modelo
objetivo de responsabilidade, respectivamente nas Leis 6.938/81 e 8.078/90, de onde se pode
inferir que em se tratando de dano à interesses sociais relevantes, a regra da responsabilidade
é a objetiva, eis que somente através desse modelo, poderemos contar com um sistema de
responsabilidade civil capaz de garantir ao máximo o restabelecimento do equilíbrio social
rompido com a ocorrência de danos a tão relevantes valores como o é o patrimônio histórico e
cultural.
Assim, faz-se mister, não apenas a adoção do modelo objetivo de responsabilidade no
caso de danos ao patrimônio histórico e cultural, mas também, afastar desse campo da
responsabilidade as excludentes de ilicitude: caso fortuito e força maior, de aplicabilidade
indicada para interesses individuais, mas não em se tratando de interesses difusos.61
7.2 Formas de satisfação do dano ao patrimônio histórico e cultural
Conforme já mencionado, optamos por focalizar o dano ao patrimônio histórico e
cultural na sua face mais complexa, mas também a mais fascinante, qual seja, o dano na sua
dimensão coletiva e extrapatrimonial.
Ao tratarmos da proteção desse interesse difuso, buscamos salientar a riqueza de
valores que o compõem, em especial ao conceituá-lo e ao discorrermos acerca do dano.
Tudo isso faz emergir uma premissa: em se tratando de lesão ao patrimônio histórico
e cultural, devemos buscar, assim como na responsabilidade por dano ambiental, a sua
reparação integral. Entretanto, bem sabemos que reconstituir um dano dessa natureza,
fazendo-se restabelecer o status quo ante mostra-se, na maioria das vezes, solução
inatingível, tendo em vista a multiplicidade de valores que estão em jogo, valores estes que
compõem uma espécie de "patrimônio imaterial" da coletividade. Daí, acreditar-se que o
melhor mesmo é a adoção de medidas ou instrumentos jurídicos que inibam as condutas
omissivas e comissivas atentatórias aos múltiplos valores que compõem o patrimônio
histórico e cultural.
Por outro lado, sabemos que todo aquele que causar dano a outrem é obrigado a
reparar o dano. Essa reparação indica uma idéia de ressarcimento ou compensação do dano
61
SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 215-216.
74
sofrido, um dos sucedâneos do instituto responsabilidade civil. Nesse sentido observa
Aguiar Dias62
: "O problema da reparação se considera satisfatoriamente resolvido quando se
consegue adaptar a nova realidade àquela situação imaginária."
Não por outra razão, constata Mirra que:
um bem como um monumento histórico não pode, a rigor, ser restaurado, mesmo
com o concurso dos peritos mais competentes. Após os trabalhos de reconstituição,
não se tratará mais do mesmo monumento, e seu valor artístico e, talvez, histórico
terá diminuído consideravelmente.63
No caso do patrimônio histórico e cultural, interesse difuso previsto
constitucionalmente no art. 216, existe no § 4º do mesmo preceito a previsão que "os danos
e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei". No entanto, inexiste em
nosso ordenamento lei que disponha sobre o assunto, restando à doutrina e jurisprudência a
busca da satisfação dos danos a este interesse relevantíssimo à toda a coletividade e que,
portanto, não pode deixar de ser tutelado satisfatoriamente.
Trata-se, pois, de árdua tarefa a discussão acerca da melhor maneira de se reparar um
dano extrapatrimonial, especialmente, quando se trata de um bem formado de múltiplos
valores que lhe são atribuídos pela comunidade no dinâmico processo social. Como apurar o
quantum debeatur referente à lesão extrapatrimonial causada por, por exemplo, a uma igreja
ou casarão no Centro histórico de cidades como Mariana e Ouro Preto?
Apesar de toda essa dificuldade temos, por outro lado que, em razão da própria
natureza difusa do patrimônio histórico e cultural, inexistem razões para limitarmos a
responsabilidade na recomposição do dano a esse bem por parte daqueles que o transgridem,
especialmente se levarmos em consideração o fim último do instituto da responsabilidade
civil que é a recomposição do equilíbrio social causado por ocasião de um dano, seja ele
restrito à esfera individual ou de abrangência coletiva. Ora, se mesmo em casos de danos
individuais, ocorre um dano também à estrutura social, indiscutível é que quando o dano é
essencialmente à essa estrutura. Neste caso, a reparação integral do mesmo se impõe, como
forma de realizar ou concretizar o direito fundamental garantido constitucionalmente no art.
216 de nossa Carta Magna já mencionado anteriormente em outras passagens desse trabalho.
62
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, v. 1, p. 217. 63
MIRRA, Álvaro Luiz Valery. A reparação de dano ambiental. Tradução atualizada pelo autor. Estrasburgo,
França, 1997, p. 26-27. Dissertação (Mestrado em Direito Ambiental)- Faculdade de Direito, Universidade de
Estrasburgo apud José Rubens Morato Leite. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p 217.
75
Alguns autores, diante da dificuldade de reparação do dano extrapatrimonial
decorrentes de lesões a interesses difusos, como o patrimônio histórico e cultural chegam a
negar-lhe a possibilidade de reparação, como Lafayete e Lacerda de Almeida.64
No entanto, a dificuldade em se avaliar os danos extrapatrimoniais, especialmente os
coletivos, não pode ser razão suficiente para não se indenizar, como durante muito tempo
quiseram fazer crer os adeptos da tese negativa da reparação. A concordância com essa tese
poderia significar um enriquecimento ilícito do causador do dano, o que, como é cediço, é
vedado pelo nosso Direito.
Deste modo, conforme já mencionado, configurado o dano extrapatrimonial, este há
que ser reparado, não obstante as inúmeras dificuldades existentes para sua valorização ou
para a verificação de sua extensão.
Ante a inexistência, no nosso ordenamento jurídico, de normas legais, que versem
acerca das formas específicas de reparação do dano extrapatrimonial, quer seja ele
individual ou coletivo, fornecendo critérios que possibilitem uma melhor apuração do valor
a ser indenizado à sociedade, por ocasião de danos aos seus mais relevantes interesses, como
o patrimônio histórico e cultural, alternativas tiveram de ser buscadas, tanto pela doutrina
quanto pela jurisprudência.
De fato, para que não se deixasse o dano moral ou extrapatrimonial sem reparação,
especialmente após o advento da nossa CR/88, em que o mesmo foi erigido no seu art. 5º,x,
à qualidade de garantia individual e coletiva de todos os cidadãos, a doutrina privatista
encontrou, dentro do próprio ordenamento jurídico vigente, uma solução para o impasse.
Trata-se da norma contida no art. 1.533 do Código Civil brasileiro, que, inserida na parte
relativa à liquidação das obrigações resultantes de atos ilícitos, dispõe que, nas hipóteses ali
não previstas, "se fixará por arbitramento a indenização".
Ora, não havendo critérios legais seguros para se aferir o quantum indenizatório do
dano extrapatrimonial, deve o julgador, observadas as circunstâncias do caso concreto,
utilizar-se do arbitramento, para fixar o valor da condenação. Pronuncia-se de acordo com
este entendimento José de Aguiar Dias, para quem: " Não é razão suficiente para não
64
LEITE, José Rubens Morato. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000, p. 304.
76
indenizar, e assim beneficiar responsável, o fato de não ser possível estabelecer equivalente
exato, porque, em matéria de dano moral, o arbitrário é até da essência das coisas".65
Sérgio Severo, na tentativa de estabelecer critérios para a satisfação dos danos
extrapatrimoniais, salientou terem os mesmo duas particularidades que exercem influência
sobre o estabelecimento do montante satisfatório: o caráter aberto desses danos e a
possibilidade de haver mais de um dano decorrente do mesmo fato, característica essa que o
autor denomina de cumulação objetiva.66
A primeira particularidade define-se pelo fato de que "os danos extrapatrimoniais,
como decorrência de sua própria definição, não podem compor um elenco fechado e rígido
de situações, uma vez que são todos aqueles que não têm expressão econômica"67
. A
segunda, parte da constatação de que
na maioria dos casos, um mesmo fato dá ensejo a mais de um dano, podendo
combinar-se um dano patrimonial e um dano extrapatrimonial e mesmo mais de um
dano extrapatrimonial.68
Assim, os danos extrapatrimoniais individuais e coletivos, muito embora sejam
altamente complexos em sua estrutura, são passíveis de reparação, sendo que a quantificação
deve ser feita por arbitramento. Entretanto, o quantum debeatur será sempre variável,
confome as circunstâncias do caso concreto. É que as lesões de ordem extrapatrimonial,
diferente do que ocorre com aquelas de natureza patrimonial, possuem uma dimensão mais
ampla, na medida em que podem lesar simultaneamente interesses estritamente subjetivos e
da coletividade.
De todo o exposto, conclui-se que em matéria de dano extrapatrimonial causado ao
patrimônio histórico e cultural incumbe ao órgão judicante a difícil tarefa de reunir o
máximo possível de valores coletivos lesados, para que possa arbitrar ao causador do dano
um quantum de indenização que possa, na medida do possível, reparar o dano causado
integralmente. Somente assim é que se poderá amenizar os efetivos prejuízos a valores tão
caros para a sociedade, como são aqueles atribuídos ao patrimônio histórico e cultural, ao
mesmo tempo em que poderá servir de desestímulo à repetição da lesão. Note-se ainda,
conforme já pudemos verificar ao longo deste trabalho monográfico que soma-se à essa
dificuldade o fato de que, em matéria de dano ao patrimônio histórico e cultural, a legislação
65
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, v. 1, p. 340. 66
SEVERO, Sérgio Os danos extrapatrimoniais. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 170. 67
SEVERO, Sérgio Os danos extrapatrimoniais. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 170. 68
SEVERO, Sérgio Os danos extrapatrimoniais. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 177.
77
pátria não é clara quanto ao modelo de responsabilidade que deve ser adotado in casu, o que
significa que incumbe ao juiz ainda, a sensibilidade e a percepção de que somente o modelo
objetivo de responsabilidade é capaz de restabelecer, ao máximo, o conjunto de valores
lesados na ocorrência de um dano ao patrimônio histórico e cultural.
8 CONCLUSÃO
Chegamos ao final deste trabalho e não a uma, mas a algumas conclusões pudemos
chegar.
Em primeiro lugar que o instituto da responsabilidade civil vem sofrendo desde seu
surgimento inúmeras e constantes transformações na busca de atender aos reclamos da vida
social. Em nosso ordenamento jurídico essas mutações podem ser vislumbradas claramente
observando-se que o instituto em tela passou de um modelo eminentemente subjetivo, calcado
na culpa como elemento central, chegando a um modelo objetivo e alcançando o atual modelo
híbrido de responsabilidade civil, tudo isso na busca do alcance do fim último do instituto que
é o restabelecimento do equilíbrio social rompido pela ocorrência de um dano.
Atingir esse desiderato, entretanto, torna-se mais difícil quando o instituto de caráter
essencialmente privatístico entra em contato com outros interesses que não os individuais,
quais sejam, os interesses difusos, como o patrimônio histórico e cultural, caracterizados por
serem “aqueles que depassam da órbita dos grupos institucionalizados, pelo fato de que sua
indeterminação não permite sua “captação” em termos de exclusividade” 69
. No caso desses
interesses que são os que mais necessitam de tutela, os modelos de responsabilidade civil
rígidos em suas estruturas, necessitam de uma adaptação, caso contrário, toda uma parcela dos
anseios e ideais mais profundos da sociedade restará desatendida, à falta de um instrumento
hábil que a viabilize sua proteção. Esse é um desafio que incumbe ao Direito, eis que é uma
ciência-meio, e não um fim em sim mesma.
Na busca de qual o modelo de responsabilidade que melhor realiza o finalidade
primeira do instituto, em se tratando de lesão ao patrimônio histórico e cultural, pudemos
observar a necessidade da adoção do modelo objetivo, uma vez que se nos afastarmos desse
modelo, o interesse difuso em apreço, relevantíssimo para o desenvolvimento da sociedade e
69
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1988, p. 64.
78
para que o direito fundamental que representa esse interesse seja alcançado e garantido de
forma eficaz não restará preservado. Se não fizermos essa adaptação de institutos como a
responsabilidade civil, na espera de que os interesses difusos alcancem o status de liberdades
públicas ou se definam como direitos subjetivos, a tutela destes interesses não se concretizará.
Entretanto, não é apenas esse o desafio da responsabilidade civil. É princípio primeiro
do instituto a reparação do dano causado. E, conforme verificamos no decorrer desta
monografia, o dano ao patrimônio histórico e cultural possui uma face extrapatrimonial
latente e, como tal, torna-se difícil sua reparação. Em primeiro lugar, porque se não existe no
ordenamento jurídico pátrio a previsão do modelo de responsabilidade adequado à tutela do
patrimônio histórico e cultural, também inexitem critérios que indiquem qual a melhor forma
de se garantir uma reparação, a mais eficaz possível, dos danos aos inúmeros valores que
compõem o patrimônio histórico e cultural, o que exige dos profissionais do Direito uma
sensibilidade ímpar a fim de que primeiro se identifique o bem (interesse) lesado na sua
completude, para depois verificar qual a melhor forma de reparação do dano. Somente assim
poderemos considerar que a responsabilidade civil atingiu seu fim precípuo que é a satisfação
não apenas de danos materiais e individuais, mas também a ampla satisfação dos danos
extrapatrimonias e a interesses difusos, como o patrimônio histórico e cultural, especialmente
a partir da Constituição de 1988, que consagrou as bases da matéria, cabendo aos demais
ramos do Direito a busca do atendimento do mandamento constitucional.
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79
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81
OS AVANÇOS DA POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS NA
PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE E A RESPONSABILIDADE
COMPARTILHADA
Raíssa de Oliveira Murta1
Filipe Rodrigues Garcia 2
Iglesias Fernanda de Azevedo Rabelo3
RESUMO
A tutela jurídica ambiental tem sido tema dos mais recorrentes na atualidade. Ante a enorme
degradação dos recursos naturais e a possibilidade de a situação se agravar nos próximos anos
têm sido criados diplomas legislativos a fim de regulamentar as atividades humanas e
possibilitar o chamado desenvolvimento sustentável. Neste sentido, recentemente foi
promulgada a Lei 12.305 de 03 de agosto de 2010, que instituiu a Política Nacional de
Resíduos Sólidos e que trouxe diversas alterações no que diz respeito à gestão,
gerenciamento, disposição e responsabilização no que tange os resíduos sólidos. Neste artigo
buscou-se estudar as nuances da referida lei, em especial analisando como a mesma
estabelece a responsabilidade civil por danos ambientais. Concluiu-se que a referida lei é um
importante instrumento de proteção ambiental que trouxe diversas inovações no que diz
respeito ao tratamento do lixo urbano, que é um dos maiores problemas ambientais do país na
atualidade. No que tange à responsabilidade civil, verificou-se que foi instituída a
Responsabilidade Compartilhada imputando responsabilidade a quaisquer dos que
participaram do ciclo de vida do produto, a fim de que a proteção ao Bem Ambiental seja a
mais ampla e completa possível.
Palavras-chaves: Política Nacional de Resíduos Sólidos; Responsabilidade Compartilhada;
Tutela Ambiental
ABSTRACT
The legal protection of our environment has been one of the most recurrent themes nowadays.
Given the massive degradation of natural resources and the negative perspective of a worse
situation in next years, we can observe the creation of new laws aiming the regulation of
human activities to allow a sustainable development. Recently promulgated, Law 12.305 of
August 03, 2010, established the National Policy on Solid Waste. This law brought many
changes with regard to management, disposal and responsabilization on solid wastes. In this
1 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Viçosa.
2 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Viçosa.
3 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Viçosa; Mestra em Economia Doméstica pela Universidade
Federal de Viçosa; advogada e Professora do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica em Ponte Nova/MG.
82
paper, we study the nuances of Law 12.305, especially considering how it establishes civil
liability for environmental damage. We concluded that the law is a very important instrument
of environmental protection that has brought several innovations with respect to the treatment
of urban waste, which is one of the biggest environmental problems of our country nowadays.
With respect to civil liability, the Shared Responsibility was established, allocating
responsibility to any party of the lifecycle of the product, making environmental protection as
broad and comprehensive as possible.
Keywords: National Policy on Solid Waste, Shared Responsibility, Environment Legal
Protection
1. INTRODUÇÃO
A tutela jurídica ambiental tem sido tema dos mais recorrentes na atualidade. Ante a
enorme diminuição e deterioração dos recursos naturais nas últimas décadas e a falta de
consciência ambiental das últimas gerações, a preservação do meio ambiente tem sido tema
presente nas principais discussões de políticas publicas da atualidade, na tentativa de reverter
o quadro atual de degradação.
Com o escopo de frear a desordenada destruição ambiental e de regulamentar as
atividades humanas, diplomas legislativos ambientais têm sido criados com objetivo de
proteger o meio ambiente, mas ainda assim possibilitar o desenvolvimento econômico da
sociedade.
É neste sentido que, após mais de duas décadas de discussões no Congresso Nacional
foi aprovada a Lei que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, constituindo em um
importante instrumento de preservação ambiental em um país que produz aproximadamente
150 mil toneladas de resíduos diariamente, sem, no entanto, barrar o desenvolvimento
econômico.
Desta forma, o presente artigo tem por escopo discutir a recente Lei 12.305 de 03 de
agosto de 2010, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, as alterações e
inovações trazidas por esta lei, bem como a Responsabilidade Civil por Danos Ambientais,
em especial a Responsabilidade Compartilhada trazida pelo referido diploma normativo. Para
tanto, inicialmente, será abordada a questão da tutela jurídica ambiental, para, em seguida,
apresentar as inovações trazidas pela Lei 12.305 de 03 de agosto de 2010, além de abordar a
responsabilidade civil sob o prisma da política nacional de resíduos sólidos.
83
2. DA TUTELA JURÍDICA AMBIENTAL
A Constituição Federal de 1988 se preocupou, em seu texto, em versar sobre a
conservação da biodiversidade. É dotada de um capítulo próprio para o meio ambiente, além
de, ao longo de diversos outros artigos, tratar sobre as questões ambientais. O meio ambiente
saudável e ecologicamente equilibrado é tido como um direito fundamental pela Carta Magna.
Paulo Antunes (1998, p. 62) assevera que:
A Lei Fundamental reconhece que as questões pertinentes ao meio ambiente são de
vital importância para o conjunto de nossa sociedade, seja porque são necessárias
para a preservação de valores que não podem ser mensurados economicamente, seja
porque a defesa do meio ambiente é um principio constitucional que fundamenta a
atividade econômica.
Assim, é possível perceber que a tutela ambiental na Constituição se dá enquanto
principio que rege a Ordem Econômica (artigo 170, inciso VI, da Constituição Federal) e
enquanto direito fundamental previsto na Ordem Social (artigo 225 da Constituição Federal).
Da leitura do artigo 225 da Constituição Federal, podemos depreender duas questões
importantes: que a concepção de meio ambiente é tida como sendo um bem comum, e que há
um direito, ou uma expectativa de direito, das futuras gerações a um meio ambiente
ecologicamente equilibrado. Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2003, p. 545)
“consideram-se bens de uso comum do povo aqueles que, por determinação legal ou por sua
própria natureza, podem ser utilizados por todos em igualdade de condições”.
O direito ao ambiente é, portanto, um dos direitos fundamentais da pessoa humana, e
um “importante marco na construção de uma sociedade democrática e participativa e
socialmente solidária.” (ANTUNES, 1998, p. 46).
No que tange à expectativa de direito das gerações futuras, segundo Edith Brown
(1999, p. 12)
Nós representamos as gerações passadas, mesmo que ainda tentemos obliterar o
passado, porque personificamos o que nos foi passado. Nós representamos as
gerações futuras, porque as decisões que tomarmos hoje afetarão o bem estar de
todas as pessoas que nos sucederem e a integridade e a vida na Terra que eles
herdarão.
Isto, porém, de acordo com Patrícia Silveira (2005, p. 234), trata-se, não de “privar a
presente geração da disposição dos bens ambientais, mas sim, de criarmos e desenvolvermos
padrões de desenvolvimento sustentável”.
84
Há ainda a inserção do meio ambiente no rol de princípios que regem a Ordem
Econômica. Quanto a isto, as questões de ser ou não possível conciliar desenvolvimento
econômico e proteção ao meio ambiente ou, de até que ponto um dos dois interesses prevalece
ao outro precisam ser analisadas.
Neste sentido, Paulo Bessa (1998, p. 15-16) traz que
A concepção do desenvolvimento sustentado tem em vista a tentativa de conciliar a
preservação dos recursos ambientais e o desenvolvimento econômico. Pretende-se
que, sem o esgotamento desnecessário dos recursos ambientais, haja a possibilidade
de garantir uma condição de vida mais digna e humana.
Percebe-se que a Constituição da República de 1988 se preocupou em tutelar a questão
ambiental não apenas como direito fundamental, mas, também, como conceito atrelado ao
desenvolvimento econômico. Assim, faz-se necessária uma reavaliação do modelo atual de
economia, mercado e desenvolvimento, uma vez que a análise da história do meio ambiente
no Brasil mostra a insustentabilidade dessa exploração para o mercado.
Deste modo, a regulamentação visando a proteção ambiental deve buscar conjugá-la
com a possibilidade de desenvolvimento econômico. É o que preceitua o Principio do
Desenvolvimento Sustentável, princípio norteador do Direito Ambiental.
Assim, verifica-se que a tentativa de regular o que hoje é considerado um direito
fundamental imprescindível para a manutenção da qualidade de vida – o meio ambiente- é
tratado não apenas na Constituição Federal, mas na esfera inconstitucional também, através de
leis específicas sobre diversos assuntos.
Neste liame é que surge a recente Lei nº 12.305 de 03 de agosto de 2010, que instituiu
a Política Nacional de Resíduos Sólidos. A seguir, serão abordadas as inovações trazidas por
essa norma.
3. AS INOVAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI 12.305 DE 2010
Recentemente, foi promulgada a Lei que instituiu a Política Nacional de Resíduos
Sólidos no Brasil. Após mais de duas décadas de discussões no Congresso Nacional, um
projeto de lei foi aprovado trazendo inovações importantes para a proteção ambiental em um
país que produz aproximadamente 150 mil toneladas de lixo diariamente.
Dentre as principais inovações da lei pode-se citar a Logística Reversa (artigo 3º, XII
da Lei 12.305), que é a área da logística que trata, genericamente, do fluxo físico de produtos,
85
embalagens ou outros materiais, desde o ponto de consumo até ao local de origem (Dias,
2005, p. 205).
A referida lei prevê uma série de ações, com o objetivo de facilitar o retorno dos
resíduos sólidos ao setor empresarial para que sejam reaproveitados em algum ciclo
produtivo, ou ainda que seja dada outra destinação final ambientalmente adequada aos
mesmos.
Embalagens de agrotóxicos, pilhas e baterias, pneus, óleos lubrificantes, lâmpadas
e produtos eletrônicos passam a ter locais próprios para serem depositados após o uso, e o
consumidor passa a ser também responsável neste processo.
Além da Logística Reversa, criou-se ainda a obrigatoriedade de estados e municípios
elaborarem seus respectivos Planos para Resíduos Sólidos, sempre orientados pelos ditames
da Política Nacional. Neste sentido, condiciona-se o recebimento de investimento federal para
projetos de limpeza pública e manejo de resíduos sólidos à aprovação de planos de gestão,
tendo como prioridade no financiamento federal os consórcios intermunicipais para gestão
dos resíduos (artigo 45).
Ademais, objetiva-se a eliminação, pelas entidades públicas, dos chamados lixões
(artigo 15, V). Com a lei as prefeituras devem construir aterros sanitários adequados
ambientalmente, onde só poderão ser depositados os resíduos sem qualquer possibilidade de
reaproveitamento ou compostagem.
Foi criado igualmente o Plano de Gerenciamento de Resíduos Sólidos, que será
integrado ao processo de licenciamento ambiental, a ser elaborado por empresas geradoras
determinados resíduos, como de mineração, construção civil, saúde, entre outros (artigo 20).
A Lei 12.305 traz ainda algumas proibições, como a importação de resíduos sólidos
perigosos e rejeitos; o lançamento de resíduos sólidos nos recursos hídricos ou in natura em
céu aberto ou a queima de lixo a céu aberto ou em instalações e equipamentos não licenciados
para essa finalidade.
A mencionada lei reforça também o papel das cooperativas de catadores de resíduos
no trabalho junto às prefeituras e empresas, por meio de linhas de financiamento (artigo 18,
§1º, II), consagrando também o viés social da reciclagem no Brasil.
Neste sentido, as embalagens de produtos fabricados em território nacional devem ser
fabricadas com materiais que propiciem a reutilização ou a reciclagem (artigo 32), de forma a
viabilizar ainda mais a atuação dos profissionais de coleta seletiva e reciclagem.
86
Além de instituir a Política de Resíduos Sólidos, a aludida lei tem ainda um viés
educativo na medida em que dispõe e esclarece sobre princípios, objetivos, instrumentos e
diretrizes relacionadas com a gestão integrada e o gerenciamento dos resíduos sólidos.
Distingue, por exemplo, resíduo (material descartado resultante de atividade humana passível
de reaproveitamento ou reciclagem) e rejeito (resíduo sólido não passível de
reaproveitamento).
Outra importante inovação trazida pela lei foi a chamada Responsabilidade
Compartilhada, entre governo, indústria, comércio e consumidor final no gerenciamento e na
gestão dos resíduos sólidos.
As normas e sanções previstas em caso do descumprimento da lei aplicam-se às
pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado, responsáveis, direta ou
indiretamente, pela geração de resíduos, em toda a cadeia produtiva do produto.
Deste modo, pela lógica da responsabilidade compartilhada, os consumidores finais
estão também responsabilizados e terão de acondicionar de forma adequada seu lixo para a
coleta, inclusive fazendo a separação onde houver coleta seletiva.
4. A RESPONSABILIDADE CIVIL E A POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS
SÓLIDOS
A responsabilidade civil é uma obrigação sucessiva decorrente do não cumprimento de
um dever preexistente ou de um dever geral de cautela. No primeiro caso, fala-se em
responsabilidade civil contratual e, no segundo, extracontratual. Para a configuração da
responsabilidade, necessária a existência de três requisitos: o dano, ou prejuízo que pode ser
de ordem patrimonial ou extrapatrimonial; a conduta omissiva e comissiva do agente; e o
nexo causal, que une os dois requisitos anteriores.
A culpa é requisito reservado apenas à responsabilidade subjetiva. Nesta, deve-se
apontar a negligência, imprudência ou imperícia do causador do dano. Quando, por outro
lado, dispensa-se a análise da culpa, está-se diante da responsabilidade objetiva.
O artigo 186 do Código Civil, ao que indica, parece ter consagrado a regra da
responsabilidade subjetiva: “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou
imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete
ato ilícito”. Implica dizer que, se o legislador não mencionar que a responsabilidade do
87
causador do dano é objetiva, aplica-se a regra do artigo 186, devendo, portanto, haver
comprovação da culpa.
O dever de reparar o dano causado veio insculpido no artigo 927 do Estatuto Civil,
objetivando, inclusive, a responsabilidade dos que praticam atividade de risco. Enunciado 38
da I Jornada de Direito Civil promovido pelo Conselho da Justiça Federal prevê que a
responsabilidade fundada no risco da atividade, como prevista na segunda parte do parágrafo
único do art. 927 do novo Código Civil, configura-se quando a atividade normalmente
desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa determinada um ônus maior do que aos
demais membros da coletividade.
Tem-se como atividade de risco aquelas suscetíveis a provocar o dano ambiental. Veio
nesse sentido a Lei 6.938/1981 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente) que consagrou a
responsabilidade objetiva do poluidor, nos termos do artigo 14, §1º. Significa dizer que,
aquele que ocasiona danos ao meio ambiente, responde pelo ilícito, independentemente de
culpa.
A intenção está justamente em proteger o Bem Ambiental, garantindo a sadia
qualidade de vida de todos os cidadãos, das presentes e futuras gerações, conforme prediz o
artigo 225 da Constituição Federal de 1988.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou no MS 22.164, em
17.11.1995:
O direito à integridade do meio ambiente – típico direito de terceira geração –
constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo
de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído
não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido
verdadeiramente mais abrangente, a própria coletividade social.
A Lei 12.305 de 02 de agosto de 2010 que trata sobre os resíduos sólidos aprimorou a
responsabilidade dos envolvidos no ciclo de vida dos produtos aptos a gerar resíduos sólidos.
Essa responsabilidade, chamada compartilhada, faz as vezes da responsabilidade solidária, na
medida em que abrange fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, os
consumidores e os titulares dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo de resíduos
sólidos, conforme dita o artigo 30 da mencionada lei.
A responsabilidade compartilhada tem como fito: compatibilizar interesses entre os
agentes econômicos e sociais e os processos de gestão empresarial e mercadológica com os de
gestão ambiental, desenvolvendo estratégias sustentáveis; promover o aproveitamento de
88
resíduos sólidos, direcionando-os para a sua cadeia produtiva ou para outras cadeias
produtivas; reduzir a geração de resíduos sólidos, o desperdício de materiais, a poluição e os
danos ambientais; incentivar a utilização de insumos de menor agressividade ao meio
ambiente e de maior sustentabilidade; estimular o desenvolvimento de mercado, a produção e
o consumo de produtos derivados de materiais reciclados e recicláveis; propiciar que as
atividades produtivas alcancem eficiência e sustentabilidade; incentivar as boas práticas de
responsabilidade socioambiental.
Quer-se, com isso, envolver todos os que, direta ou indiretamente, participam das
etapas de desenvolvimento do produto, inclusive aquela atinente à disposição final. A
preocupação deixa de ser a investigação da culpa ou de quem praticou a conduta danosa,
adotando uma postura de integral proteção ao meio ambiente, buscando os meios mais
eficazes para a reparação do dano.
Nessa senda, possível suscitar a teoria esposada por Giselda Maria Fernandes Novaes
Hironaka (2005), que evolui de uma responsabilidade objetiva para uma responsabilidade
pressuposta. Segundo o autor Flávio Tartuce (2010, p. 425), pela responsabilidade
pressuposta, “deve-se buscar, em um primeiro plano, reparar a vítima, para depois verificar-se
de quem foi a culpa ou quem assumiu o risco”. Por esse raciocínio, coloca-se em evidência o
dano e a necessidade de sua reparação.
Percebe-se que a proposta da responsabilidade compartilhada surge exatamente nesse
contexto de preocupação com o Bem Ambiental, visando, num primeiro momento, a
reparação do dano, imputando responsabilidade a quaisquer do que participaram do ciclo de
vida do produto.
Contudo, para que haja a responsabilidade civil, necessária a existência de um dano. O
dano ambiental, como se sabe, é capaz de gerar repercussão coletiva, prejudicando as
gerações presentes e futuras.
Muito se tem falado dos danos sociais que, nas palavras de Antonio Junqueira de
Azevedo, citadas por Flávio Tartuce (2010, p. 432), “são lesões à sociedade, no seu nível de
vida, tanto por rebaixamento de seu patrimônio moral – principalmente a respeito da
segurança – quanto por diminuição da qualidade de vida”. O fundamento do dano social está
na cláusula geral de tutela da pessoa humana, insculpida no artigo 1º, III da Constituição
Federal. Por referida norma, tem-se a possibilidade de sustentar a idéia de novos danos
reparáveis. A conclusão procede de uma análise principiológica e sistêmica entre a Carta de
89
1988 e o Código Civil de 2002 que tem como pilar o princípio da socialidade, superando o
caráter individualista da codificação anterior.
A reparação dos danos sociais deve seguir na senda do Código de Defesa do
Consumidor que, dentre outros temas, versa sobre os direitos difusos. O artigo 6º do Estatuto
Consumerista, em seu inciso VI, garante a efetiva prevenção e reparação de danos
patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos.
O valor da indenização paga em caso de danos sociais advindos de resíduos sólidos
deve ser revertido aos prejudicados, ainda que de forma indireta. Além disso, a Lei 12.305
prevê como Política Nacional de Resíduos Sólidos o Fundo Nacional do Meio Ambiente e o
Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (art. 8º, X), motivo pelo qual
há de se concluir que parte da indenização deve ser destinada a esses Fundos, com o fim de
reparar os danos sociais causados.
Importante notar que a Lei de Resíduos Sólidos atribui obrigações aos participantes do
ciclo de vida do produto. Implica dizer que, descumprida tais obrigações, nasce a
responsabilidade de reparar o dano, se este existir.
O uso da expressão “responsabilidade compartilhada” aponta para o princípio da
solidariedade garantido pela Constituição Federal, em seu artigo 3º, I. Quer dizer que toda a
sociedade está envolvida na Política que fita a garantia da qualidade de vida. Mesmo o
consumidor, sendo destinatário final de produtos, deve, nos termos do artigo 33 da Lei
12.305/2010, efetuar a devolução dos produtos e das embalagens mencionados no mesmo
dispositivo após o uso, aos comerciantes ou distribuidores que darão o devido fim.
5. CONCLUSÕES
A Política Nacional de Resíduos Sólidos instituída pela Lei 12.305 é um importante
instrumento de proteção do meio ambiente. A partir da criação de instrumentos específicos de
proteção e do incentivo à educação ambiental de consumidores, fabricantes, comerciante e do
próprio poder público traz-se um novo jeito de lidar com um dos maiores problemas
ambientais do país: o lixo.
É possível verificar que a referida lei traz diversas inovações no que diz respeito ao
tema, e que se efetivamente implementadas, trarão benefícios ímpares para a sociedade atual e
futuras gerações.
90
No que diz respeito á responsabilidade civil, verifica-se que a Política Nacional de
Resíduos Sólidos instituiu a chamada Responsabilidade Compartilhada, imputando
responsabilidade a quaisquer do que participaram do ciclo de vida do produto.
Esta é, também, uma importante forma de proteção do meio ambiente e também de
conscientização da própria população no que diz respeito ao seu dever de preservação
ambiental, uma vez que os consumidores também podem ser responsabilizados pelo
acondicionamento adequado dos seus resíduos produzidos.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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AZEVEDO, Antonio Junqueira apud TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das
Obrigações e Responsabilidade Civil. 5. ed. São Paulo: Método, 2010.
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Senado Federal, 1988. Disponível em: <http: www.planalto.gov.br>. Acesso em 20 de
novembro de 2010.
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Sólidos; altera a Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998; e dá outras
providências. Disponível em: <http: www.planalto.gov.br>. Acesso em 22 de novembro de
2010.
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DIAS, João Carlos Quaresma. Logística global e macrologística. Lisboa: Edições Sílabo,
2005.
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HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade pressuposta. Belo
Horizonte: Del Rey, 2005.
SILVEIRA, Patrícia Azevedo da. Competência Ambiental. Curitiba: Jaruá, 2005, p. 234.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil. 5. ed.
São Paulo: Método, 2010.
WEISS, Edith Brown. O direito da biodiversidade no interesse das gerações presentes e
futuras. Revista do Centro de Estudos Jurídicos, Brasília, n. 8, p. 10-15, mai./ago. 1999.
91
O DIREITO CONSTITUCIONAL SOB A PERSPECTIVA DO
NEOCONSTITUCIONALISMO
Leilson Soares Viana1
“Não há, numa constituição, cláusulas a que se deva
atribuir meramente o valor moral de conselhos, avisos
ou lições. Todas têm força imperativa de regras”.
Rui Barbosa, Comentários à Constituição Federal
Brasileira, v. 2, p. 475.
Resumo
A superação do modelo jurídico-positivista reinante até meados do século XX levou os
estudiosos da ciência jurídica a buscarem uma nova alternativa para a aplicação do Direito,
que não pautasse unicamente ao apego literal da lei, conduzindo à criação de um modelo de
estado constitucional, fundado num conjunto de normas de caráter aberto, cuja realização
envolve diversos atores sociais, bem como a interrelação do Direito com outras ciências afins.
Palavras-chave: Direito Constitucional – Pós-positivismo – Neoconstitucionalismo
Abstract
Overcoming the legal positivist model prevailing until the mid-twentieth century has led
scholars of legal science to seek a new alternative for applying the law, not solely determined
by attachment letter of the law, leading to the creation of a constitutional state model,
founded on a set of open standards of character, whose implementation involves various
social actors, as well as the interplay of law with other related sciences.
Keywords: Constitutional Law – Post-positivism – Neoconstitutionalism
1. A dogmática jurídica tradicional e sua superação
O Direito é uma invenção humana, um fenômeno histórico e cultural, concebido
como técnica de solução de conflitos e instrumento de pacificação social2. A base jurídica
romano-germânica surge e se desenvolve em torno das relações privadas, com o direito civil
1 Advogado e Professor Universitário, Mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra – Portugal, Coordenador-adjunto do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica de
Ponte Nova – MG. 2 A origem do Direito, enquanto instrumento de pacificação social, se confunde com a origem da própria
sociedade. Já na antiguidade mais remota, com o surgimento das primeiras teias sociais, já se ouvia falar em
regras de organização da vida em conjunto, seja num núcleo mais limitado como o da família, seja num mais
aberto como o das primeiras formações sociais. Nessa época, como ainda não existia a organização estatal, as
regras eram impostas pelo chefe familiar – o pater familia – e, um pouco mais tarde, pela própria autoridade
religiosa. Assim, o direito antigo não foi obra de um legislador, mas antes, se impôs a ele. Foi na família que
ele nasceu saindo espontaneamente dos princípios que a constituía e das crenças religiosas que eram
universalmente admitidas. Para uma leitura mais aprofundada sobre essa origem, ver, entre outros: Numa
Dénis Fustel de Coulanges, La Cité Antique; Cláudio De Cicco, Direito Tradição e Modernidade.
92
no centro do sistema jurídico. Seus institutos, conceitos e ideias fizeram a história de povos
diversos e atravessaram os tempos. O Estado moderno surge no século XVI, ao final da Idade
Média, sobre as ruínas do feudalismo e fundado no direito divino dos reis. O absolutismo
monárquico toma as rédeas da criação do direito ditando as regras a serem seguidas. Os reis se
legitimavam no poder pela “vontade de Deus”3.
Na passagem do Estado absolutista para o Estado liberal, o Direito incorpora o
jusnaturalismo racionalista dos séculos XVII e XVIII, fundado na crença a princípios
universalmente válidos, que serviu de matéria-prima das revoluções francesa e americana.
Vive-se a chamada “idade da razão” – age of reason – onde a razão humana e o próprio
homem vão fixar-se no centro das atenções4.
É sobre esse vetor – a razão – que o Direito moderno, em suas categorias
principais, consolida-se no século XIX, já arrebatado pela onda positivista, com status e
ambição de ciência, seguindo a linha da filosofia positiva iniciada por Auguste Comte5.
Nesse período a lei é difundida como instrumento condutor da razão. A ciência do
Direito é o domínio da segurança e da justiça. O Estado é a fonte única do poder e do Direito.
O sistema jurídico é visto como completo e auto-suficiente (completude do Direito) e as
eventuais lacunas são resolvidas internamente, pelo costume, pela analogia, pelos princípios
gerais do Direito6.
Cindida das questões filosóficas, sociológicas, históricas e antropológicas, a
dogmática jurídica volta seu conhecimento apenas para a lei e o ordenamento positivo, sem
qualquer reflexão sobre seu próprio saber e seus fundamentos de legitimidade. Nesse
3 Nesse sentido: Luis Roberto Barroso, Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional
brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In. “A nova interpretação constitucional:
ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, p. 12. 4 Representam bem o referido ideal as palavras de Thomas Paine na dedicatória de seu livro, The age of reason:
“A mais poderosa arma contra qualquer espécie de erro é a Razão. Eu nunca usei qualquer outra, e acredito que
nunca usarei.” Thomas Paine, The age of reason, p. 4. 5 Ver nesse sentido Auguste Comte, Discurso sobre o Espírito Positivo, p. 12-28.
6 Essa ideia de completude do Direito passa por duas linhas doutrinárias distintas, mas próximas entre si. Uma
decorrente do sistema fechado próprio do positivismo jurídico de base Kelseniana, onde o ordenamento
jurídico esgota as possibilidades de aplicação do Direito (para um maior aprofundamento acerca dessa corrente
doutrinária, ver entre outros, Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito; Norberto Bobbio, Positivismo Jurídico).
Outra decorrente do sistema autopoiético (que tem como um de seus principais expoentes nas ciências sociais
Niklas Luhmann) teoria assente no pressuposto de que a unidade e identidade de um sistema deriva da
característica fundamental de autoreferencialidade das suas operações e processos. A ideia de autoreferência e
autopoiesis pressupõe que os pilares ou bases do funcionamento dos sistemas residem, não nas condições
exógenas impostas pelo meio envolvente às quais tenham de se adaptar da melhor forma possível (como é
entendido pelas teorias dos sistemas abertos), mas afinal no próprio seio sistêmico. Nesse sentido ver, entre
outros, Gunther Teubner. O Direito como sistema autopoiético, p. 31-32.
93
momento o positivismo afasta a construção teórica, a interpretação e qualquer forma criadora
de Direito que não seja a própria lei escrita.
O Estado funciona como árbitro imparcial aplicador desse direito puro e
idealizado. A interpretação jurídica se resume em um processo silogístico de subsunção fato-
normativa. O juiz – la bouche qui prononce les paroles de la loi7 – é um revelador de
verdades abrigadas no comando geral e abstrato da lei. Refém da separação de poderes não
lhe cabe qualquer papel criativo. Em síntese, pode-se lançar como elementos característicos
principais do Direito na perspectiva clássica: o caráter científico; o emprego da lógica formal; a
pretensão de completude; a pureza científica; a racionalidade da lei; e, a neutralidade do
intérprete8.
Esse conjunto de características está representado na deusa Têmis, vendada, com a
balança à mão e espada ao punho: essa era a simbologia do Direito que produzia ordem e
justiça, com equilíbrio e igualdade e sob a força do Estado.
2. O pós-positivismo e as bases teóricas da pós-modernidade
O final do século XX descortina-se como uma nova fase na evolução da era do
direito, com um rótulo genérico que abriga a mistura de estilos, a descrença no poder absoluto
da razão, o desprestígio do Estado. É a era da velocidade. A imagem acima do conteúdo. O
efêmero e o volátil parecem derrotar o permanente e o essencial. Vive-se a angústia do que não
pôde ser e a perplexidade de um tempo sem verdades seguras9. Uma era aparentemente “pós-
tudo”: pós-kelseniana, pós-positivista, pós-moderna10
.
O Direito já não comportava mais o positivismo jurídico, no entanto, o simples
retorno ao jusnaturalismo também não se mostrava como alternativa capaz de suplantar as
7 Cf. Montesquieu, O Espírito das Leis: “Mas os Juízes da Nação, como dissemos, são apenas a boca que
pronuncia as palavras da lei; seres inanimados que não lhe podem moderar nem a força, nem o rigor.”
Grifado 8 Nesse sentido: Luis Roberto Barroso, Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional
brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In. “A nova interpretação constitucional:
ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, p. 12-13. 9 Cf. Luís Roberto Barroso, Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-
modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In. “A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos
fundamentais e relações privadas, p. 2-3. 10
“A pós-modernidade é uma tentativa de descrever o grande ceticismo, o fim do racionalismo, o vazio teórico, a
insegurança jurídica que se observam efetivamente na sociedade, no modelo de Estado, nas formas de
economia, na ciência, nos princípios e nos valores de nossos povos nos dias atuais. Os pensadores europeus
denominaram este momento de rompimento (Umbruch), de fim de uma era e de início de algo novo, ainda não
identificado.” Cf. Cláudia Lima Marques, A crise científica do direito na pós-modernidade e seus reflexos na
pesquisa, Revista Cidadania e Justiça, n° 6, 1999.
94
deficiências vivenciadas no sistema jurídico convencional. O pós-positivismo surge então não
com o objetivo de desconstruir o pensamento positivista, mas como um fundamento teórico
voltado a superar o conhecimento tradicional. Embora ele reconheça a importância do
ordenamento jurídico positivo, nele insere elementos como o ideal de justiça e legitimidade.
O paradigma jurídico vivido na modernidade, no qual a lei funcionava como o
elemento preponderante para a atividade jurisdicional, reverte-se para o caso concreto e, a
partir dele, se busca a melhor solução para a resolução dos conflitos, partindo do ordenamento
positivo, mas sem limitar-se a ele.
Nessa evolução, o discurso acerca do Estado atravessou, ao longo do século XX,
três fases distintas: a pré-modernidade (ou Estado liberal), a modernidade (ou Estado social –
welfare estate) e a pós-modernidade (ou Estado neoliberal), sendo essa última influenciada
por algumas teorias marcantes para identificação dessa fase11
.
3. A Teoria Crítica do Direito
A teoria crítica do direito consiste num conjunto de movimentos e de ideias
voltados a questionar o saber jurídico tradicional a partir da refutação de suas premissas
centrais, quais sejam: a cientificidade, a objetividade, a neutralidade, a estabilidade e a
completude. Enfatiza o caráter ideológico do Direito, equiparando-o à política, a um discurso
de legitimação do poder. Preconiza, ainda, a atuação concreta, a militância do operador
jurídico, à vista da concepção de que “o papel do conhecimento não é somente a interpretação
do mundo, mas também a sua transformação”.12-13
O pensamento crítico sustenta a tese de que as bases do Direito não estão
inteiramente contidas na lei, podendo existir fora do domínio da positivação. Cabe ao
intérprete buscar um ideal de justiça, mesmo quando não o encontre literalmente na lei. A
11
Cf. Cf. Luís Roberto Barroso, ob. cit., p. 5. 12
Cf. Luís Roberto Barroso, Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-
modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In. “A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos
fundamentais e relações privadas, p. 14-15. 13
É essa a concepção traçada por Castanheira Neves ao afirmar sem hesitação que: “O político não é a única,
nem a decisiva dimensão da prática humana: o ético, o político e o direito são dimensões de uma específica e
relativa autonomia nessa praxis que nenhum holismo de cariz político pode unilateralmente dissolver ou
reduzir. Pelo que é à filosofia do direito e não à filosofia política que havemos de pedir a compreensão e a
solução do problema e sentido últimos e fundamentais do direito. Ficando só pela filosofia política ou
convocando-a exclusivamente, não é apenas a filosofia do direito que se vê preterida, é o próprio direito no seu
sentido e na sua exigida compreensão específica que se sacrifica. Cf. Castanheira Neves, A Crise actual da
Filosofia do Direito no contexto global da Filosofia, p. 114-115.
95
teoria crítica contesta também às ideias de completude, de auto-suficiência e de pureza, da
ordem jurídica condenando, também, o afastamento de outras áreas do conhecimento da
esfera de atuação do Direito. Pode-se assim afirmar que “o estudo do sistema normativo
(dogmática jurídica) não pode insular-se da realidade (sociologia do direito) e das bases de
legitimidade que devem inspirá-lo e possibilitar a sua própria crítica (filosofia do direito)”. A
interdisciplinariedade presta uma colaboração indispensável ao universo jurídico, inclusive
em áreas que, a princípio, guardam pouca referência a sua realidade, como por exemplo, a
psicanálise e a linguística. As décadas de 70 e 80 foram profícuas para a difusão do
pensamento crítico influenciando na produção acadêmica de diversos países14
.
Em Portugal, autores como o sociólogo da Universidade de Coimbra Boaventura
de Souza Santos contribuíram para repensar a dogmática tradicional a partir de uma teoria crítica que
trouxesse para o centro das discussões os desafios e as diversidades do mundo contemporâneo não só no plano
sociológico, como também nas mais diversas áreas do conhecimento humano, inclusive no
plano jurídico15
.
Também no Brasil a Teoria Crítica denunciou o papel até então desempenhado
pelo Direito enquanto instância de poder e instrumento de dominação social, compartilhando
dos mesmos fundamentos filosóficos que a inspiraram em sua matriz europeia e americana16
.
14
“Na França, a Critique du Droit, influenciada por Althusser, procurou atribuir caráter científico ao Direito, mas
uma ciência de base marxista, que seria a única ciência verdadeira. Nos Estados Unidos, os Critical Legal
Studies, também sob influência marxista – embora menos explícita –, difundiram os fundamentos de sua crença
de que law is politics, convocando os operadores jurídicos a recompor a ordem legal e social com base em
princípios humanísticos e comunitários. (Uma das lideranças do movimento foi o professor brasileiro de
Harvard, Roberto Mangabeira Unger, que produziu um dos textos mais difundidos sobre esta corrente de
pensamento: The critical legal studies movement, 1986). Anteriormente, na Alemanha, e denominada Escola
de Frankfurt lançara algumas bases da teoria crítica, questionando o postulado positivista da separação entre a
ciência e a ética (...). A produção filosófica de pensadores como Max Horkheimer, Herbert Marcuse, Theodor
Adorno e, mais recentemente, Jürgen Habermas e Hans-Georg Gadamer, terá sido a principal influência pós-
marxista da teoria crítica. Cf. Luís Roberto Barroso, Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito
constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In. “A nova interpretação
constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, p. 15-16. 15
Boaventura de Souza Santos, não só apresentou uma crítica à dogmática tradicional, como também apontou
críticas ao próprio modelo traçado pela teoria crítica. Apesar de reconhecer o caráter emancipatório da crítica,
para ele, “o pensamento crítico é centrífugo e subversivo, pois visa criar desfamiliarização em relação ao que
está estabelecido e é convencionalmente aceito como normal virtual inevitável necessário”. Por fim,
Boaventura discorda do fato de as teorias críticas não se questionarem no ato de questionar, nem aplicar a si
próprias o grau de exigência com que critica. Nesse sentido: Boaventura de Souza Santos, A Crítica da Razão
Indolente. Contra o desperdício da experiência, p. 17; 16
Entre os autores brasileiros que tiveram participação na difusão da teoria crítica no Brasil, destaque para Lênio
Luiz Streck, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do Direito (2004); Hermenêutica
Jurídica e(m) Crise (2003); e, Concretização de Direitos e Interpretação da Constituição (BFDUC n°
81/2005).
96
Em que pese o papel desempenhado no desenvolvimento do pensamento crítico,
voltado a condenar o modelo de dogmática convencional, isso não implicou, contudo, ao
abandono da lei. Ela ainda representa um avanço na evolução do Direito e, por isso, há que se
explorar as suas potencialidades positivas (legalidade democrática), mas também, investir na
interpretação principiológica, fundada em valores, na ética e na razão possível.
4. O Constitucionalismo Aberto e a Transdisciplinariedade
Conforme já visto, o positivismo legalista, centrado, única e exclusivamente, na
letra da lei, fechado ao exterior, procurou apresentar o Direito como objeto de uma ciência
unidisciplinar. O jurista, em seu papel de intérprete e aplicador da lei, devia abster-se de fazer
considerações de ordem política, de justiça e de adequação à realidade social.
Contrapondo a esse formalismo tecnicista do direito, surge uma corrente de
pensamento jurídico, de base constitucionalista, que dá ao Direito e especificamente ao
Direito Constitucional uma maior abertura em seu âmbito de atuação demandando um maior
conhecimento dos outros saberes, além da simples letra do texto escrito17
.
Ciente de que quem quer empenhar-se em compreender o lugar e o papel do
direito nas sociedades humanas não deve menosprezar nenhuma das dimensões precedentes a
Constituição e, por conseguinte, o Direito Constitucional tornam-se multidisciplinares.
Peter Häberle parte da noção de que “a Constituição é um texto mutável” e,
portanto, “sua interpretação deve ser alterada para atender às demandas do momento”. Para
Häberle, os intérpretes diretos da Constituição devem reconhecer a Constituição como um
ponto de partida, e não como um fim em si mesma. A Constituição não é estática, pois faz
parte da dinâmica da sociedade e sua interpretação deve ser feita no seu tempo e assente à
realidade que a cerca.
Essa abstração do Direito Constitucional serve como pressuposto de sua
adaptabilidade, de sua evolução, criando uma “Constituição viva”, que acompanha o
desenvolvimento da própria sociedade. Destarte, não haveria mais como diferenciar a
17
Um dos maiores expoentes dessa corrente doutrinária é, sem sombra de dúvidas, o jurista alemão Peter
Häberle, autor da célebre obra Hermenêutica Constitucional – A sociedade aberta dos intérpretes da
Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição, que propõe a
seguinte tese: “no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos
estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um
elemento cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da constituição. (...) A interpretação
constitucional é, em realidade, mais um elemento da sociedade aberta.” Peter Häberle, ob. cit., p. 13.
97
dogmática jurídica constitucional da sociologia, da filosofia, da antropologia, da ciência
política, superando-se, assim, a mentalidade que se tinha acerca do sistema jurídico, como um
sistema fechado.
Essa abertura oxigena o texto da Constituição ao mesmo tempo em que possibilita
não só a participação formal dos diversos atores sociais, enquanto intérprete da Constituição, mas
também uma participação material nos julgamentos das causas que lhes interessem. Os Tribunais
Constitucionais passam a ser vistos como uma instância de participação das pessoas nas decisões,
na medida em que se abrem para que todos possam se manifestar nos julgamentos18
.
Mais uma vez Peter Häberle justifica sua teoria ao afirmar que “uma Constituição,
que estrutura não apenas o Estado em sentido estrito, mas também a própria esfera pública
(Öffentlichkeit), dispondo sobre a organização da própria sociedade e, diretamente, sobre
setores da vida privada, não pode tratar as forças sociais e privadas como mero objeto. Ela
deve integrá-las ativamente enquanto sujeitos.”19
A lógica dessa afirmativa é muito simples: permitir um maior cotejo das normas
constitucionais com a realidade social. Nesse processo de delimitação do conteúdo da norma
constitucional, a presença e a opinião de estudiosos, pesquisadores e pensadores, de outras
áreas do conhecimento afiguram-se como essenciais para uma maior compreensão e para a
fixação de uma maior convicção por parte do julgador.
5. O neoconstitucionalismo e as novas metodologias interpretativas
Com o fito de superar o modelo do Estado de Direito clássico, marcado pela
supremacia da lei, pelo princípio da legalidade e pelo positivismo jurídico, a proposta metodológica
foi a criação de um Estado Constitucional20
, cuja principal característica consistia na subordinação
da lei a um estrato substantivo de direito, estabelecido pela Constituição21
.
18
Foi seguindo esse pensamento que o Supremo Tribunal Federal brasileiro permitiu, por exemplo, a
participação de índios em julgamento que tratava da demarcação de terras indígenas; de sociedades
representativas das classes médicas e pesquisas científicas, bem como de diversas representações religiosas e
de direitos humanos em julgamento que tratava da manipulação genética de células-tronco e da despenalização
do aborto. 19
Cf. Peter Häberle, Hermenêutica Constitucional – A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, p. 33. 20
Para Aguiló Regla, os Estados Constitucionais são sistemas jurídico-políticos que reúnem as seguintes
características: 1) a existência de constituições formais, ou seja, que possuam um grau diferenciado em relação
às leis ordinárias; 2) essa constituição formal deve cumprir suas funções: uma constitutiva, criando instituições
e procedimentos e outra valorativa, reconhecendo valores e fins que devem ser protegidos e/ou promovidos; 3)
por fim, a constituição formal deve ser efetiva, ou seja, utilizada como parâmetro de estabilização das relações
do Estado. Cf. Josep Aguiló Regla, Sobre la constitución del Estado Constitucional, p. 40-42. 21
Cf. Gustavo Zagrebelsk, El Derecho Dúctil: Ley, derecho e justicia, p. 21-34.
98
Vivencia-se, com isso, no plano constitucional, um momento de ascensão científica
e política. Os estudos que se desenvolveram ao longo dessa transição procuraram investigar os
antecedentes teóricos e filosóficos desse novo direito constitucional, identificar seus principais
adversários e acenar com algumas ideias para o presente e para o futuro.
O Direito Constitucional ganha status de “super ciência” abarcando quase todas as
áreas da vida social, política e jurídica. Vivencia-se, num primeiro momento, uma onda de
constitucionalização do direito. A Constituição passa a ser vista não mais como uma
“ordenação fundamental dum Estado, que define os titulares do poder público, enuncia os
órgão políticos e a sua competência, indica os fins supremos da comunidade e, normalmente,
assegura um elenco de garantias dos particulares”22
, mas também como um conjunto de
orientações programáticas ou uma ordem principiológica, sem força normativa (mas que
passa a cada dia ganhar mais normatividade), que visa construir um norte, uma meta a ser
seguida pelos entes estatais.
Inicia-se aí o neoconstitucionalismo. O sentido do prefixo “neo” “presume-se
considerar algo que é novo ou que ainda não foi desvendado, que está em desenvolvimento,
determinando certo avanço em relação ao estado anterior”23
. É dentro dessa premissa que
nasce o neoconstitucionalismo, ou seja, no sentido de visualizar o constitucionalismo
contemporâneo, e sinalizar para um “constitucionalismo do por vir”24
.
O neoconstitucionalismo surge da complexidade das relações sociais atuais,
fundadas no princípio da dignidade da pessoa humana, que tornou-se o centro do vasto rol de
direitos protegidos pelos mais variados instrumentos internacionais e, principalmente, pelas
constituições modernas dos Estados democráticos25
.
No âmbito da dogmática jurídica, o neoconstitucionalismo expõe as mudanças
ocorridas nos sistemas jurídicos contemporâneos, marcadas pelo surgimento de uma
Constituição viva e mutável, caracterizada pela presença de princípios e regras que vinculam
a interpretação e a aplicação das demais normas do ordenamento jurídico26
; uma Constituição
22
Cf. conceituação de Rogério E. Soares, Constituição, in “Dicionário Jurídico da Administração Pública”, p. 671. 23
Nesse sentido: Leandro Soares Lomeu, Aspectos do Neoconstitucionalismo. 24
Cf. André Ramos Tavares, Curso de Direito Constitucional, p. 14. 25
Cf. Carlos Roberto Siqueira Castro, A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o
constitucionalismo pós-moderno e comunitário, p. 15.
26 Em tempos não tão remotos o Poder Judiciário não reconhecia qualquer papel relevante no conteúdo da
Constituição, não vislumbrava força normativa a Constituição tal como hoje. Tratava-se a de um documento
político que direcionava-se mais aos Poderes Públicos e principalmente ao Poder Legislativo. Tal é o avanço
ocorrido no plano constitucional que esclarece o Professor Luis Roberto Barroso: “Atualmente, passou a ser
premissa do estudo da Constituição o reconhecimento de sua força normativa, do caráter vinculativo e
obrigatório de suas disposições. Vale dizer: as normas constitucionais são dotadas de imperatividade, que é
atributo de todas as normas jurídicas, e sua inobservância há de deflagrar os mecanismos próprios de coação,
de cumprimento forçado. A propósito, cabe registrar que o desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial na
99
normativa e real que guarde correspondência entre o texto escrito e os anseios e valores
presentes na sociedade.
Foi em busca dessa “Constituição Real” que o neoconstitucionalismo propugnou a
“passagem de um constitucionalismo meramente programático para um constitucionalismo
social de incontrastável eficácia e juridicidade”, sem romper, contudo, com a ordem
constitucional já instaurada 27
.
Utilizando-se do papel da interpretação da Constituição como instrumento de
busca da efetividade de suas normas, a teoria neoconstitucional reforça a ideia da força
normativa de seu texto, onde fica claro o reconhecimento de normatividade aos princípios e
regras que lhe dão sustentação28
.
Se os princípios, diferentemente das regras, não trazem em seu conteúdo
semântico o esgotamento de sua proposta normativa, compete ao intérprete, em última
análise, extrair dos princípios a resposta normativa a que eles se propõem.
Um texto constitucional nasce com um propósito de continuidade. Não se pensa
ao criar uma Constituição na sua mutabilidade material, ou mesmo no esgotamento ou na falta
de aplicabilidade de suas normas. Daí a tendência principiológica das normas constitucionais
de modo a permitir a sua oxigenação com uma mínima intervenção no seu texto29
. Mais uma
matéria não eliminou as tensões inevitáveis que se formam entre as pretensões do constituinte, de um lado, e,
de outro lado, as circunstancias da realidade fática e as eventuais resistências do status quo.” In.:
Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito. In. “Boletim da FDUC”, Vol. LXXXI, 2005, p. 239. 27
Cf. Paulo Bonavides, Constitucionalismo luso-brasileiro: influxos recíprocos, In: Jorge Miranda, “Perspectivas
Constitucionais”, p. 52.
28 “Os princípios não são, como as regras, comandos imediatamente descritivos de condutas específicas, mas sim
normas que consagram determinados valores ou indicam fins públicos a serem realizados por diferentes meios.
A definição do conteúdo de cláusulas como dignidade da pessoa humana, razoabilidade, solidariedade e
eficiência transfere para o intérprete uma dose importante de discricionariedade. A menor densidade jurídica de
tais normas impede que delas se extraia, no seu relato abstrato, a solução completa das questões sobre as quais
incidem. É nesse ponto que se impõe a atuação do intérprete na definição concreta de seu sentido e alcance”.
Luis Roberto Barroso, In.: Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito. In. “Boletim da FDUC”,
Vol. LXXXI, 2005, p. 244-245. 29
Um exemplo clássico desse pragmatismo constitucional é a Constituição Norte-Americana (1787) que lida com
a ideia de uma Constituição da continuidade, visando a sua atualização, reafirmando a sua progressão e não o
desfalecimento, tal como leciona o Professor José Luiz Quadro de Magalhães: “A história constitucional norte-
americana reforça a ideia de uma Constituição dinâmica, viva, que se reconstrói diariamente diante da
complexidade das sociedades contemporâneas. Uma Constituição presente em cada momento da vida. Uma
Constituição que é interpretação, e não texto. A experiência norte-americana nos revela uma nova dimensão da
jurisdição constitucional, presente em toda a manifestação do Direito. É tarefa do agente do Direito, nas suas
mais diversas funções, dizer a Constituição no caso concreto e promover leituras constitucionalmente
adequadas de todas as normas e fatos. A vida é interpretação, não há texto que não seja interpretado. A
interpretação do mundo, dos fatos, das normas é inafastável”. Cf. José Luiz Quadros de Magalhães.
Constitucionalismo e interpretação: um certo olhar histórico. In: “Revista Brasileira de Direito
Constitucional”. Vol. 6, jul./dez. 2005, p. 208.
100
vez o papel do intérprete é de fundamental importância, pois a ele compete não só manter viva
e atualizada a Constituição face ao acompanhamento das relações contemporâneas, como
evitar a sua mutação material ou desnaturação.
6. A realização do direito do ponto de vista neoconstitucionalista
As doutrinas políticas que deram sustentação, na Europa, ao Estado Moderno e ao
Estado Liberal colocaram o legislador no centro das discussões teóricas voltadas ao
entendimento do fenômeno jurídico, em razão da consagração da ideia de lei como expressão de
uma vontade popular qualificada. Fundado nessa dogmática o positivismo jurídico reinou ao
longo de todo o século de XIX transpassando por boa parte do século XX30
.
O advento do Estado Constitucional e a abertura dos textos jurídicos
possibilitando uma maior interrelação entre o Direito e outras áreas de formulação teóricas
como a Política, a Moral e a ideia de Justiça levaram a uma revisão dos papéis
desempenhados pelos atores jurídicos no exercício de realização do Direito.
Assim, o legislador perde o protagonismo enquanto figura principal na realização
do direito, abrindo espaço para outros órgãos de poder como o Judiciário. A razão disso se dá
no fato de que o intérprete da norma deixa de buscar a resolução dos conflitos somente no
interior do ordenamento jurídico31
, mas lhe abre a possibilidade de interagir com elementos
externos ao ordenamento, como a dimensão concreta do caso posto em juízo.
Dessa maneira, o neoconstitucionalismo muda o foco de atenção da legislação para
a aplicação do Direito. O legislador que antes era a figura central na formulação jurídica a partir
da sua vontade expressa na lei, cede lugar ao intérprete do Direito e ao juiz. Essa concepção
30
O jurista italiano Gustavo Zagrebelsky denomina esta forma de expressão da figura estatal, na qual o legislador
exerce forte influência no cenário político e jurídico, de “Estado de Direito Legislativo” e a ciência jurídica
produzida em seu contexto, de concepção positivista, de “Ciência da Legislação Positiva”. In.: El derecho
dúctil: Ley, derechos, justicia, p. 33.
31 Zagrebelski afirma que “segundo a concepção positivista tradicional, na aplicação do direito a regra jurídica se
obtém tendo em conta exclusivamente as exigências do direito”. Essas exigências estavam previstas
expressamente nos mecanismos de interpretação e nos critérios hermenêuticos (ou “cânones”) elaborados pelo
positivismo. Gustavo Zagrebelski, El derecho dúctil: Ley, derechos, justicia, p. 132.
101
comunga da ideia que fazia alusão ao direito indeterminado e à resolução de casos difíceis –
hard cases, entendendo que o Direito não está inteiramente contido na lei 32
.
Por certo, essa mudança na perspectiva jurídica só se mostra viável se
entendermos o intérprete do Direito como figura capaz de conduzir a solução de conflitos
postos em juízo, de modo a conciliar as regras e princípios expressos na Constituição,
intermediando a lei abstrata e o caso concreto.
Nesse momento, falar em protagonismo judicial como uma característica do
neoconstitucionalismo não se mostra como uma afirmação precipitada e sem fundamento, posto
que nessa concepção dogmática cabe ao Judiciário exercer a função de realização do Direito33
.
Contudo, a liberdade conferida ao juiz no exercício da sua atividade jurisdicional
não pode transmudar-se em arbítrio haja vista que muitas das vezes está nas mãos do juiz o
poder de determinar o conteúdo do Direito, a partir da utilização instrumentos interpretativos
aplicáveis aos princípios constitucionais com vistas à solução do caso concreto34
.
32
Dworkin utiliza a expressão hard cases para designar os casos não cobertos por uma regra “clara” a determinar
a forma como devam ser decididos (In.: Ronald Dworkin, Levando os direitos a sério, p. 127). Hart utiliza a
mesma expressão para caracterizar a chamada “zona de penumbra” que determina um processo incerto de
tomada de decisão (intepretativa) (Hebert L. A. Hart, Essays in jurisprudence and philosophy, p. 275). Em
síntese, o uso desse termo quer indicar que para determinadas situações a dogmática jurídica não oferece
solução unívoca imediata, dependendo de uma construção posterior alicerçada em proposições que sejam
juridicamente adequadas e admissíveis. Cf. André Ramos Tavares, Fronteiras da Hermenêutica
Constitucional, p. 80.
33 Dworkin reforça a abordagem dessa transição de uma teoria da legislação e de sua interpretação, nos moldes
positivistas, para uma teoria da decisão judicial e de sua justificação, na forma pretendida pelos
neoconstitucionalistas, adotando como ponto de partida para sua construção teórica “o argumento jurídico
formal a partir do ponto de vista do juiz, não porque apenas os juízes são importantes ou porque podemos
compreendê-los totalmente se prestamos atenção ao que dizem, mas porque o argumento jurídico nos
processos judiciais é um bom paradigma para a exploração do aspecto central, proposicional, da prática
jurídica. (...) a estrutura do argumento judicial é tipicamente mais explícita, e o raciocínio judicial exerce uma
influência sobre as outras formas de discurso legal que não é totalmente recíproca”. In.: Ronald Dworkin, O
Império do Direito, p. 19. Em contraponto, Luis Pietro Sachis afirma que “no sé si será exagerado decir que
los principios convierten a los jueces em los señores del Derecho, aunque tampoco parace casual, y es sólo un
ejemplo, que el Hércules de Dworkin sea um juez y no un legislador”. In.: Luis Pietro Sanchis, Ley, Principios,
Derechos, p. 64.
34 Ana Paula Barcellos sustenta que “[...] os sistemas jurídicos contemporâneos, e em particular o brasileiro,
conferem ao intérprete um espaço de atuação e criação cada vez mais amplo. [...] a utilização intensiva pelos
enunciados constitucionais e legais de princípios e conceitos abertos ou indeterminados, dentre outros
mecanismos, transfere ao Judiciário contemporâneo um amplo poder na definição do que é, afinal, o direito.”
Ana Paula de Barcellos, Ponderação, Racionalidade e Atividade Jurisdicional, p. 39.
102
Conclusão
Por essas breves anotações verifica-se nessa evolução da aplicação do Direito a
passagem de um modelo jurídico fechado, pautado numa proposta legalista onde a figura do
legislador exerce função preponderante ao ditar as regras que nortearão a realização do Direito,
para o modelo neoconstitucional que transfere ao Poder Judiciário da tarefa de realizar o Direito
promovendo soluções jurídicas a partir dos princípios e regras integrantes do ordenamento
jurídico.
Nesse papel o juiz deve vincular sua decisão às regras postas e aos valores
defendidos pelo Estado em sua carta constitucional, aplicando-as de modo a promover decisões
justas e fundamentadas, sob pena de transpor a vontade constitucional para uma vontade própria
do aplicador do Direito.
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