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IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem I Encontro Internacional de Estudos da Imagem 07 a 10 de maio de 2013 – Londrina-PR
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Representações etnográficas do Morro da Carioca: Orfeu Negro (1959), de
Marcel Camus e Orfeu (1999), de Cacá Diegues
Maryanne Seabra Teixeira da Cunha ¹
Resumo: Este trabalho procura analisar e comparar as representações da favela fictícia
retratada nos filmes Orfeu Negro e Orfeu. O Morro da Carioca pode ser considerado aqui,
uma amostra do que seriam outras favelas reais do Rio de Janeiro, sua cultura, os hábitos e
costumes de seus moradores, na época de sua mais popular festa: o carnaval. Observando
estas imagens como documento estético e fonte etnográfica de costumes, queremos ressaltar a
diferença do olhar desses cineastas. Ao escolher dois filmes que tratam da mesma narrativa,
pudemos observar duas visões distintas sobre uma mesma história e principalmente sobre um
mesmo local. As imagens produzidas por estes “cineastas-etnógrafos” são interpretações e na
verdade de segunda e terceira mão, são construções das construções de outras pessoas.
Palavras-chave: etnografia da imagem; Orfeu; cinema brasileiro
Abstract: This work seeks to analyze and compare the representations of fictional
slum in the movies Black Orpheus and Orpheus. The Morro da Carioca can be seen here as a
sample of what would be other real slums of Rio de Janeiro, its culture, habits and customs of
its habitants at the time of their most popular party: Carnival. Noting these images as a
document esthetic and a source of ethnographic custom, we want to emphasize the difference
in the look of these filmmakers. By choosing two films that deal with the same narrative, we
see two different views on the same story and mostly on the same place. The images produced
by these "filmmakers-ethnographers” are interpretations and actually by second and third
hand, are constructions of constructions of other people.
Keywords: ethnography image; Orpheus; Brazilian cinema
______________________________
¹ Mestranda do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais – UFRJ e bolsista do CNPq. e-
mail: maryanneseabra@gmail.com
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1. O cinema como documento etnográfico
1.1 Orfeu Negro (1959)
A primeira versão cinematográfica da peça de Vinícius de Moraes foi realizada pelo
francês, Marcel Camus, em 1959. Camus estudou na Escola de Belas Artes de Paris, mas
durante a segunda guerra mundial foi deportado para um campo de prisioneiros na Alemanha.
Neste universo, descobre o teatro e a ele se dedica integralmente. Monta seus primeiros
espetáculos com alguns prisioneiros, exercendo as funções de cenógrafo, ator e diretor. De
volta à França passou a dedicar-se ao cinema, dirigindo seu primeiro longa-metragem em
1957. Dois anos depois, em pleno carnaval carioca, Marcel Camus dirige o filme que seria seu
maior sucesso: Orfeu Negro.
Marcel Camus é o explorador que parte em busca a uma terra desconhecida e lá decide
mergulhar nessa cultura – para ele estranha, e observar os hábitos e costumes desse povo.
Decide esquematizar sua visão (sempre particular) em forma de filme. Na condição de
estrangeiro, de viajante, podemos considerar que o que Camus faz, é uma investigação
etnográfica na sua essência.
“A etnografia é ao mesmo tempo um tipo de investigação e um gênero de escritura que se desenvolveu na tradição antropológica. Mas ela surge de fato com outras tradições e experiências, sobretudo os relatos de viagem – de diversos indivíduos, ilustres ou não, que por diferentes motivos se encontravam em situação de distanciamento geográfico e cultural.” (CAIAFA. 2007, p. 135)
A pesquisa etnográfica se estabelece com Malinowski, como uma “atividade de
trabalho de campo intensivo numa certa área específica e envolvendo a experiência pessoal do
etnógrafo”. (CAIAFA. 2007, p. 135) A interpretação da malandragem carioca, da ginga das
mulatas, da alegria das crianças que moram ou passam pelo Morro da Carioca em Orfeu
Negro, está diretamente relacionada ao acúmulo de experiências que Marcel Camus viveu. O
texto original não pertence a Camus, o roteiro do filme é de Vinícius de Moraes, mas a forma
como este texto se transforma em imagem demonstra sua interpretação.
A versão de Marcel Camus, foi muito criticada na época pelos cineastas do Cinema
Novo, movimento cinematográfico brasileiro influenciado pelo neo-realismo italiano, que
buscava um cinema menos alienante e mais voltado para a realidade brasileira. O olhar do
cineasta francês sobre o Rio de Janeiro foi considerado extremamente turístico e sua
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representação do morro como a de um lugar idílico, onde a miséria tinha sido reinterpretada
como simplicidade e primitivismo, não agradou muitos cineastas brasileiros.
O fato é que este filme, alcançou significativa projeção mundial, recebendo a Palma de
Ouro em Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro. As imagens do Morro da Carioca
foram importadas para o mundo todo e contribuíram para a visão dos estrangeiros sobre o
Brasil, e especialmente o Rio de Janeiro, durante muito tempo.
Não cabe aqui, entretanto, questionar se a interpretação de Marcel Camus foi acertada
ou não. Sabe-se hoje que muitos estudos sobre culturas primitivas e isoladas eram carregadas
de preconceitos típicos do contexto em que foram produzidos. Entretanto estes documentos
são considerados importantes, até mesmo para a compreensão do pensamento da época. Ou
seja, o que importa aqui, mais do que validar ou não as interpretações de Camus, é analisar as
interpretações dele, no papel de estrangeiro que descreve um morro de cinquenta anos atrás.
1.2 Orfeu (1999)
Na versão cinematográfica do mito Orfeu dirigida por Cacá Diegues, há um claro
distanciamento da versão de Camus, a partir da problematização das relações complexas
existentes no morro.
Diegues nasceu em Alagoas, mas mudou-se para o Rio de Janeiro ainda criança.
Ingressa na Faculdade de Direito, na PUC/RJ onde funda um cineclube e começa suas
atividades como cineasta amador. A partir do final da década de 1950, Cacá Diegues aparece
como um dos principais nomes do Cinema Novo, ao lado de Glauber Rocha, Leon Hirszman,
Paulo Cesar Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade e outros. Seu primeiro filme profissional
Escola de Samba Alegria de Viver, é um dos episódios do longa-metragem Cinco Vezes
Favela (1961), e indica a temática que será que recorrente em sua filmografia: as
representações populares cariocas. Em 1999, ao lançar Orfeu, obtém grande sucesso de
público, em uma fase da retomada de produção cinematográfica no Brasil, propiciada pela lei
do Audiovisual.
Quatro décadas separam as duas versões aqui analisadas, e além da separação temporal
destas produções há também um importante desdobramento sócio histórico. Desde os anos
1970 a favela já não é mais o paraíso dos românticos, o tráfico de drogas e seus bandidos
fortemente armados, substituíram os malandros e seus pequenos assaltos. Para Rossini “... o
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filme de Diegues está no limiar entre a velha percepção e a nova realidade do lugar”
(ROSSINI. 2003, p. 31). O mito de Orfeu no filme de Diegues serve como um pretexto para
revelar questões sociológicas, políticas e estéticas mais complexas e recentes. Com este filme,
as representações da favela voltam a aparecer no cinema nacional, aproximando-se mais dos
ideais que o Cinema Novo perseguia: colocar em evidência a marginalidade e a miséria nas
telas e alcançar o público em massa.
É interessante, porém, ressaltar que apesar das mudanças aparentemente encontradas
entre estas duas interpretações, que consideramos aqui, de significativa importância
etnográfica, “permanecem as experiências e vivências anteriores, embora reinterpretadas com
outros significados”. (VELHO. 2003, p. 8-9) Essa reinterpretação ocorre e é necessária no
filme de Diegues, já que o fictício Morro da Carioca, como síntese das favelas do Rio de
Janeiro, não permaneceu como em 1954 (ano da peça de Vinícius de Moraes) e 1959 (ano do
filme de Camus). As relações se modificaram não somente dentro do morro, mas também fora
dele, influenciando toda a lógica da vida das pessoas que lá vivem. E além disso, a
reinterpretação é sempre inevitável, como já afirmamos, uma história contada por diferentes
pessoas, pressupõe diferentes pontos de vista e portanto, diferentes versões.
2. Interpretações etnográficas do Morro da Carioca
“O ato de ver, informado pelos modelos (e até pelos modos) culturais, está estreitamente ligado ao de prever, e o conhecimento muitas vezes, nessas condições, não vai além de um conhecimento do que já sabíamos. Ver é, na maioria das vezes, por memorização e antecipação, desejar encontrar o que esperamos e não o que ignoramos ou tememos, a tal ponto que pode acontecer-nos de não acreditar naquilo que vimos (ou seja, não ver) se tal não corresponde a nossa espera.” (LAPLANTINE. 2004, p. 14-15)
Partindo desse princípio, em ambos os filmes, o Morro da Carioca que vemos é a
representação do que cada cineasta gostaria ou seria capaz de ver, é a interpretação pessoal de
cada um. Nosso dever é, portanto, reinterpretar estas interpretações e compreender seus
modos de significação.
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2.1 Morro da Carioca em Orfeu Negro (1959)
O filme de Camus é muito dançante e musical, os diálogos ocorrem pouco, e o poder
simbólico maior pertence sem dúvida às imagens. No começo do filme, somos apresentados
primeiramente ao Morro da Carioca, Eurídice e Orfeu ficam pra depois. O morro aparece
como palco principal para essa história. Somos inseridos em um ambiente de simplicidade e
alegria, a pobreza é visível, as condições precárias, mas apesar disso, seus moradores
aparecem imersos em uma felicidade que em certos momentos pode até causar um
estranhamento ao espectador.
Os moradores do morro passam bastante tempo fora de casa, as crianças dançam e
brincam no chão de terra, as mulheres lavam suas roupas nas ruas e os homens conversam e
tocam músicas sentados em algumas pedras e elevações, as ruas parecem ser uma extensão de
suas casas.
1) Crianças dançando e cantando no Morro da Carioca
2)Mulheres carregando água e homens já animados com o Carnaval
A vida no Morro da Carioca parece ocorrer de maneira muito mais coletiva. As
pessoas formam uma grande família, as crianças são criadas por todos da comunidade,
justamente por esse tipo de convivência que vai além das barreiras de suas casas. A própria
arquitetura dos barracos demonstra essa dificuldade de limites entre uma pessoa e outra. Os
barracos “invadem” uns aos outros. As janelas da casa de Orfeu, por exemplo, dão pra casa da
prima de Eurídice, o que permite que ela o escute cantar e se apaixone por ele.
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Orfeu em sua janela surpreende Eurídice
Há também uma certa inocência nos moradores do morro, as pessoas parecem não se
importar com o cenário precário em que vivem, não há nenhum tipo de questionamento. A
alegria que contagia os moradores é quase infantil. As moças conseguem comprar produtos na
mercearia, pagando com beijos no rosto do vendedor; a prima de Eurídice se mostra quase
uma adolescente ao esperar por seu namorado marinheiro e ao ajudar a encobrir o namoro
secreto de Eurídice com Orfeu. A felicidade do Morro da Carioca é, sobretudo, uma felicidade
ingênua, despretensiosa.
A pobreza existe de fato no Morro da Carioca, mas a paisagem que o rodeia é de tirar
o fôlego. Talvez esse também seja um dos motivos que alegre os moradores do morro. Os
mais belos cartões postais do Rio de Janeiro aparecem ali, nos momentos mais alegres do
filme, assim como no momento mais triste – quando Orfeu caí no abismo e acaba morrendo
com Eurídice nos braços.
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Morro do Corcovado e Pão de Açúcar
O sol que Orfeu faz nascer toda manhã
Como sabemos, a história de Orfeu e Eurídice tem um final trágico. No filme de
Camus, Eurídice chega ao morro procurando abrigo na casa de sua prima, pois está com medo
de um homem que a persegue. O Morro da Carioca é, portanto, o porto seguro de Eurídice, o
local onde ela encontra a proteção que precisa. Nenhum tipo de mal parece alcançar o morro,
tanto que a Morte - homem misterioso que aterroriza Eurídice, não consegue se aproximar
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dela durante a festa de Carnaval que acontece nas ruas do Morro da Carioca. A Morte
consegue perseguir Eurídice somente quando ela vai para o desfile de carnaval que acontece
no Centro da Cidade, fora do morro.
1) A Morte no Morro da Carioca não consegue se aproximar de Eurídice
2) Fora do morro, Eurídice não está mais protegida
“Exageração do quadro e do retrato, a fotografia é uma exageração do próprio olhar”
(LAPLANTINE. 2004, p. 83). Podemos tomar esse trecho e aplicá-lo também no cinema, e
compreender que muitos dos aparentes exageros no filme de Camus, como essa felicidade
excessiva num local de extrema pobreza, ocorrem também pelo suporte que é utilizado para
seu registro etnográfico – o filme. Ou talvez, esses “excessos” que aparecem em Orfeu Negro,
ocorram graças ao período temporal que ele abrange – o carnaval. A festa mais popular do
Brasil permite que por quatro dias todos possam esquecer suas mais profundas tristezas e
desgraças. Além disso, é interessante analisar que a opção – primeiramente de Vinícius de
Moraes – de ambientar o mito de Orfeu numa favela do Rio de Janeiro em pleno carnaval
carioca, pode estar relacionada também ao fato de movimentos políticos e intelectuais,
sobretudo dos anos 1950 e 1960, buscarem a essência da brasilidade em eventos sociais como
o carnaval (ORTIZ, 2003).
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O ritmo do Carnaval contagia o morro
Baile de Carnaval no Morro da Carioca
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2.2 MORRO DA CARIOCA EM ORFEU (1999)
Enquanto Camus representou o Rio de Janeiro de forma bastante romantizada, Cacá
Diegues usa a história de Orfeu para denunciar a violência que tomava conta das favelas
cariocas. Em Orfeu o tráfico de drogas é um problema grave no Morro da Carioca e os
moradores convivem com bandidos fortemente armados em constante guerra com a polícia. A
pobreza ainda existe lá, mas em contrapartida, os traficantes constroem verdadeiros impérios
dentro do morro, tornando as relações existentes ali muito mais complexas. Cacá Diegues ao
decidir recontar a história de Orfeu nos morros cariocas, se posiciona de forma mais
problemática em meio a sua pesquisa.
Bandidos fortemente armados são vistos constantemente no Morro da Carioca
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O Morro da Carioca é um aglomerado de barracos extremamente pobres ao lado de
casas com certo nível de conforto, construídas de maneira desordenada, compostas por ruas
estreitas e caminhos confusos. Do alto do morro, os moradores além de contemplar as belas
paisagens naturais do Rio de Janeiro, são colocados frente a frente com os edifícios mais
caros da cidade, e que graças a esse contraste, reforça ainda mais a pobreza existente na
favela.
Casas do Morro da Carioca
Ruas do Morro da Carioca
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No final dos anos 1990 no Brasil, até as populações mais pobres já tinham acesso a
tecnologia. Os moradores do morro têm acesso a televisão, celular e computador, permitindo
que as fronteiras entre a vida no morro e a vida fora dele, sejam cada vez mais frágeis.
Aparelhos tecnológicos invadem as favelas
A simplicidade que um dia habitou o Morro da Carioca foi substituída pelo desejo de
querer sempre mais, mesmo que isso signifique caminhar para o lado da criminalidade. Mas
Orfeu nos mostra uma possibilidade diferente de se conquistar as coisas, através de seu talento
para o samba. Orfeu e Lucinho são dois personagens opostos, que representam alguns
caminhos que são possíveis dentro do Morro da Carioca, enquanto Lucinho prefere a vida do
tráfico e da violência, Orfeu se mantem do fiel aos seus ideais e paixões, e segue sua vida
através da música e do carnaval.
Na versão de Diegues, Eurídice chega ao Morro da Carioca após a morte de seu pai no
Acre. Entretanto, não encontra a hospitalidade que procurava por lá. Sua tia não a recebe bem
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e logo quando chega ao morro é surpreendida com um tiroteio e exposta a violência que faz
parte do dia a dia dos moradores dali. O Morro da Carioca não é mais um local seguro e
hospitaleiro.
Eurídice chegando ao Morro da Carioca
A guerra entre polícia e bandidos é quase que uma trama paralela no filme. O Morro
da Carioca, como síntese de outras favelas do Rio de Janeiro, abriga além de seus moradores
honestos e trabalhadores, bandidos e traficantes que formam um “poder paralelo” dentro do
morro. As leis do "asfalto" não se aplicam ali, o morro é “terra de ninguém” e desta forma
esse “poder paralelo” se consolida. Os moradores já estão, até certo ponto, acostumados com
a situação em que vivem e não questionam o que acontecem a sua volta. Mas não porque
possuem a mesma ingenuidade dos moradores do morro de 1959 no filme de Camus, os
personagens do filme de Diegues não são ingênuos, mas aprenderam a fingir que não
enxergam certas coisas e não questionam o que acontece, como estratégia de sobrevivência.
Um exemplo dramático, que mostra a dinâmica de um lugar tomado pela violência e
que vive a parte da sociedade e das leis, é o “julgamento” e execução de um homem na frente
de toda a comunidade, acusado de violentar uma criança.
E sse episódio faz Eurídice questionar as “leis” do morro, e junto com Orfeu, tenta
fazer alguma coisa pra mudar esse cenário. A ingenuidade de Eurídice, em meio à violência
do Morro da Carioca, acaba provocando a ira do bandido Lucinho, causando sua morte.
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Homem sendo julgado e executado no Morro da Carioca
Morte de Eurídice
O morro que Cacá Diegues representa, é um morro cruel, onde desde cedo as crianças
convivem com a violência. Nem mesmo dentro de suas casas, os moradores do Morro da
Carioca estão protegidos. A violência está em todos os lugares, as pessoas carregam um peso
no olhar e uma desconfiança uns dos outros. São forçados a conviver juntos, pois não
possuem a alternativa de sair dali. O Morro da Carioca é a prisão destas pessoas. O único
momento de alegria que podemos observar é no desfile de carnaval, que vale lembrar, não
acontece na comunidade e sim fora dela.
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3. Considerações finais
Ao escolher dois filmes que tratam da mesma história, pudemos observar
principalmente como um documento etnográfico é sempre um versão da história.
“(...) nunca existe uma única visão possível, mas uma visão distinta e uma visão embaçada, uma visão nítida e uma visão difusa, uma visão direta e uma visão oblíqua... Descrever é sempre descrever a partir de uma perspectiva: ao perto, ao longe, em face, do lado, de través.” (LAPLANTINE. 2004, p. 89)
As interpretações de Camus e de Diegues sobre o Rio de Janeiro, utilizam como
cenário o Morro da Carioca – nome emblemático, que demonstra a intenção de utilizar este
morro como uma espécie de representante de todos as outras favelas cariocas da qual eles
descrevem. O morro como espaço de simplicidade e alegria ou como “terra de ninguém” com
suas leis cruéis, existiram e existem de fato, mas um documento etnográfico, seja um livro ou
um filme nunca é o acontecimento de fato, é além disso o acontecimento do narrar. “O
etnógrafo “inscreve” o discurso social: ele o anota.” (GEERTZ. 1989, p. 29) Os dados destes
cineastas-etnógrafos são interpretações e na verdade de segunda e terceira mão como ressalta
Geertz (1989), são construções das construções de outras pessoas.
Ao nos aproximar mais dos princípios e da lógica etnográfica, acreditamos que não
existe versões mais ou menos corretas, e sim diferentes versões, e somente isso.
4. Referências bibliográficas
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