relatório antropológico grotão (laudo)
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RELATÓRIO ANTROPOLÓGICO DE RECONHECIMENTO E DELIMITAÇÃO DO TERRITÓRIO DA
COMUNIDADE QUILOMBOLA DO GROTÃO
Filadélfia - Tocantins
ROBERTO ALVES DE ALMEIDA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA
Coordenação Geral de Regularização de Territórios Quilombolas – DFQ Superintendência Regional do INCRA em Tocantins – SR 26
Brasília – DF Outubro de 2011
i
SUMÁRIO
I – INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 001
A Pesquisa ........................................................................................................... 001 O Relatório ........................................................................................................... 003
II - DADOS GERAIS ........................................................................................................ 007
Informações gerais da comunidade quilombola ................................................... 007 Descrição do município e região englobante em termos gerais ........................... 013
III - HISTÓRICO DA OCUPAÇÃO ................................................................................... 016
Origem da comunidade ........................................................................................ 017 A conquista do território ....................................................................................... 022 O primeiro período dos conflitos .......................................................................... 041 O segundo período dos conflitos .......................................................................... 059
IV - ORGANIZAÇÃO SOCIAL ......................................................................................... 088
As marcas referenciais da identidade étnica racial do grupo ................................ 088 Estrutura familiar da comunidade ......................................................................... 091
Aspectos cosmológicos e religiosos .................................................................... 103 V - AMBIENTE E PRODUÇÃO ........................................................................................ 109
O ambiente local .................................................................................................. 109 As práticas produtivas .......................................................................................... 117
VI - CONCLUSÃO ........................................................................................................... 136 O território proposto ............................................................................................. 136 Recomendações .................................................................................................. 141 Considerações Finais........................................................................................... 133
VIII – BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 144
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LISTA DE MAPAS, IMAGENS, TABELAS, DOCUMENTOS E FOTOS
MAPAS E IMAGENS Mapa do Estado do Tocantins e do Município de Filadélfia ............................................. 007 Imagem do território do Grotão ........................................................................................ 008 Área atualmente ocupada ............................................................................................... 010 Antigas ocupações .......................................................................................................... 028 Planta de delimitação do território ................................................................................... 138
TABELAS Reminiscência das antigas ocupações ............................................................................ 026 Relação de alunos da comunidade ................................................................................. 074 Ocupações atuais ............................................................................................................ 077 Diagramas de parentesco dos ramos familiares .............................................................. 093 Unidades de paisagens ................................................................................................... 114 Usos tradicionais dos recursos ........................................................................................ 115 DOCUMENTOS Processo de regularização dos lotes de Willian ............................................................... 048 Escritura de venda da fazenda Morro Redondo .............................................................. 049 Processos GETAT dos lotes desviados ........................................................................... 053 Relatório Arimathéia ........................................................................................................ 066 Ata da reunião da comunidade que definiu o território ..................................................... 139 FOTOS Panorâmicas da região do Grotão ................................................................................... 009 Tipos de casa .................................................................................................................. 011 Escolas e campo de futebol ............................................................................................ 012 Panorâmicas de Filadélfia ............................................................................................... 014 Panorâmicas de Filadélfia ............................................................................................... 015 Patriarcas vivos da comunidade ...................................................................................... 021 Tipos de fogão ................................................................................................................ 023 Conjunto de fotos referentes às antigas ocupações ........................................................ 027 Marcos da delimitação do lote de Cirilo ........................................................................... 062
iii
Conjunto de fotos referentes às atuais ocupações .......................................................... 078 Reza na festa de Divino Espírito Santo ........................................................................... 104 Relíquias sagradas da comunidade ................................................................................ 108 Tipos de ambientes ......................................................................................................... 110 Rio João Aires e Morro do Grotão ................................................................................... 113 Pasto plantado ................................................................................................................ 114 Ferramentas antigas ....................................................................................................... 118 Armazenamento de sementes ......................................................................................... 119 Demonstração do uso de ferramentas antigas ................................................................ 120 Roças de toco e de mandioca ......................................................................................... 121 Roça de feijão ................................................................................................................. 122 Gergelim e arroz colhido ................................................................................................. 123 Casa de farinha ............................................................................................................... 127 Instrumentos de fazer farinha .......................................................................................... 128 Jumento da comunidade ................................................................................................. 129 Pequenas criações .......................................................................................................... 130 Carne de caça ................................................................................................................. 131 Instrumentos de palha tradicionais .................................................................................. 131 Boi de artifício ................................................................................................................. 134 Cercas do território .......................................................................................................... 137 Trabalho de delimitação .................................................................................................. 137 Reunião da comunidade que definiu o território .............................................................. 140
4
INTRODUÇÃO
A Pesquisa
A realização do Relatório Antropológico de Reconhecimento e Delimitação do
Território da Comunidade Quilombola do Grotão fundamenta-se no Artigo 68 do Ato das
Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988 que diz em seu texto,
Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando
as suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado
emitir-lhes títulos respectivos.
Fundamenta-se, ainda, no Decreto Presidencial n° 4.887/2003 que
regulamenta a atuação da administração pública no cumprimento do Artigo 68 do ADTCF e
na Instrução Normativa do INCRA nº 57/2009, que regulamenta o procedimento para
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro
das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.
Sua elaboração é resultado de um esforço conjunto da Coordenação Geral de
Regularização de Territórios Quilombolas do INCRA com a Superintendência Regional do
INCRA no Tocantins – SR 26. Essa parceria se concretizou com a cessão de um
antropólogo do quadro da Coordenação para, em conjunto com a equipe da
Superintendência, elaborar o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação - RTID da
Comunidade Quilombola do Grotão. Deste modo, cada técnico da equipe ficou responsável
pela elaboração da peça técnica de sua competência, caso deste atual relatório que, a
despeito das inúmeras contribuições recebidas, conforme abaixo especificado, foi elaborado
pelo antropólogo que o assina.
Como parte integrante fundamental do Relatório Técnico de Identificação e
Delimitação – RTID, o Relatório Antropológico tem como objetivo principal a identificação da
territorialidade da comunidade remanescente de quilombo, propondo uma delimitação para
a mesma. Para tanto, é preciso levantar a memória documental e oral do grupo no que
tange a sua história, seus saberes e suas práticas materiais e simbólicas. Isso porque esses
elementos são centrais à construção de sua etnicidade e afirmação de seu vínculo com o
território. Para se conhecer a história de resistência do grupo, de uma perspectiva mais
ampla, faz-se necessário ainda o recurso a fontes documentais e a depoimentos de agentes
externos.
Para realizar esse levantamento foi necessária uma ampla pesquisa de
campo, desenvolvida em três momentos diferentes: de 25/01/2009 a 08/02/2009; de
04/06/2009 a 11/06/2009; e de 19/04/2010 a 26/04/2010. Nesse período, pesquisamos na
Comunidade Quilombola do Grotão, nas propriedades, fazendas e povoados vizinhos, no
5
povoado de Bielândia e nas cidades de Filadélfia e Araguaína. Essa atividade foi possível a
partir do apoio logístico oferecido pela equipe da SR 26.
Da mesma forma, contamos com a colaboração total dos membros da
comunidade. Vários deles nos acompanharam nas inúmeras andanças a pé pelo seu
território ou de carro no entorno deste. Foram muitas as conversas gravadas com membros
e lideranças da comunidade. Raimundo e Cirilo, os „mais vividos‟ do grupo demonstraram
toda a sua paciência para agüentar horas a fio de conversas, onde procurávamos conhecer
sua concepção do passado, seu entendimento do presente e a proposta de futuro para toda
a comunidade.
Alguns fazendeiros vizinhos da comunidade se negaram a dar entrevistas
sobre o assunto, alegando terem medo de se envolver na disputa.1 Já outros vizinhos se
prestaram com prazer a serem entrevistados e deram valiosos depoimentos sobre a história
da comunidade e do recente conflito. De modo a esclarecer sobre a permanência da
comunidade na área em tempos recentes, consegui recolher depoimentos com a Agente de
Saúde que acompanhou e vacinou as crianças da comunidade desde o nascimento dos
mesmos, assim como a Diretora e a Professora da Escola Municipal onde os meninos da
comunidade estudaram desde a 1ª série até o ano de 2009.
Igualmente, consegui conversar com diversas pessoas detentoras de dados
sobre a trajetória histórica da comunidade de tempos pretéritos: três padres já aposentados
que realizavam desobrigas na região da Barraria desde a primeira metade do século XX; um
pastor da Assembléia de Deus que visita a comunidade semanalmente há duas décadas;
servidores públicos da Secretaria de Saúde de Filadélfia que realizam campanha de vacina
na região, sendo um deles ex-funcionário da SUCAM que percorria toda região há várias
décadas atrás; uma professora já aposentada de uma antiga escola rural onde alguns
adultos da comunidade foram alfabetizados; um comerciante que regularmente mascateava
na região, tendo a comunidade por freguesa até hoje. Ainda recolhi documentos tais como:
Carteira de Saúde e Histórico Escolar de crianças da comunidade; registros de batizados e
de casamentos realizados na Igreja Católica de Filadélfia; e cópia do Processo de Despejo
da comunidade no Fórum de Filadélfia.
Na Superintendência do INCRA em Palmas tive acesso ao processo de
regularização fundiária da Comunidade Quilombola do Grotão e aos processos de
regularização fundiária executado pelo GETAT, na década de 1980, na Gleba Furnas 1.
Recebi de colegas da equipe de trabalho do INCRA o Relatório Agro-Ambiental e a Planta e
o Memorial Descritivo do território proposto a titulação.
1 Percebi que esta negativa decorria do clima ainda fortemente presente do recente e violento conflito ocorrido
entre Francisca e a comunidade. O mais curioso é que um destes fazendeiros que não quis conversar, simplesmente me perguntou se eu iria fazer um exame de DNA para descobrir se a comunidade era ou não quilombola.
6
Dois documentos bibliográficos sobre a comunidade do Grotão, produzidos
por pesquisadores da própria região, me foram repassados pela equipe de professores do
GT Cultura, Direitos Humanos e Cidadania da Faculdade Católica Dom Orione - FACDO e
da equipe da Comissão Pastoral da Terra - CPT Araguaia Tocantins, ambas sediadas em
Araguaína-TO. O primeiro deles é um relatório sobre a primeira pesquisa realizada por estas
duas equipe na comunidade (Abreu et al, 2008) e o outro é um artigo sobre memória e
parentesco elaborado por duas professoras da FACDO e que foi apresentado no XIV
Congresso Brasileiro de Sociologia (Domingues-Lopes & Silva, 2009).2
Para além de seus escritos, recebi forte apoio desta equipe com a qual
trocamos idéias e possibilidades de percursos a serem traçados na atual pesquisa. Sou
muito grato a estas duas equipes pelo imenso apoio recebido. Ainda recebi dos mesmos e
do ex-vereador Sebastião Sebrae um farto acervo fotográfico e videográfico sobre a
comunidade Grotão, o que possibilitou o acesso visual aos dramáticos eventos ocorridos
anteriormente a minha chegada a campo.3
Foi a partir deste conjunto que nos foi possível traçar uma panorâmica da
origem do grupo e da sua história de resistência na região. Assim, na análise do material e
conseqüente elaboração do relatório nos referenciamos nos dados recolhidos na
comunidade e em seu entorno.
Por fim, agradecemos aos nossos colegas da Coordenação Geral de
Regularização de Territórios Quilombolas que se responsabilizaram pelas nossas
atividades, durante a prolongada ausência, enquanto escrevia este relatório. Agradecemos
as estagiárias em antropologia da DFQ que gentilmente transcreveram fitas e elaboraram
quadros de genealogia da comunidade. Agradecemos ainda aos funcionários da Cartografia
do INCRA e da Ouvidoria Agrária do MDA, pelo apoio dispensado.
O Relatório
Ao percorrermos o caminho para a compreensão da historicidade de uma
comunidade quilombola enquanto um grupo étnico-racial, não podemos nos render as
visões do senso comum, assim como a de alguns estudiosos, que consideram quilombos
como „espaços fechados‟ ou como „isolado primitivo‟ (O‟Dwyer, 2004). Da mesma forma,
não devemos procurar encontrar “pequenas áfricas” transplantadas em solo brasileiro
(Arruti, 1997). Nesta perspectiva, de nada nos serve uma sociologia do isolamento ou uma
biologia da homogeneidade, conforme bem coloca O‟Dwyer (1995), ou uma arqueologia que
dê conta de uma visão de „conservação‟ ou de „retorno ao passado‟, de acordo com Arruti
2 Durante o período de pesquisa de campo, estes foram os únicos materiais bibliográficos produzidos sobre a
comunidade que eu tomei conhecimento e aos quais eu tive acesso. 3 As fotos e demais imagens que recebi destas equipes ou acessei de outras fontes estão todas indicadas. As
sem indicações são de minha própria autoria.
7
(op cit.).
Independente de „como de fato foi‟ no passado, os laços das comunidades atuais com grupos do passado precisam ser produzidos hoje, através da seleção e recriação de elementos da memória, de traços culturais que sirvam como os „sinais externos‟ reconhecidos pelos mediadores e o órgão que tem a autoridade de nomeação (idem: 23).
Assim, como qualquer comunidade camponesa, quilombo é uma realidade
viva e dinâmica onde a relação com as origens deve ser buscada no contexto situacional
atualmente vivido pelo grupo. Devemos então „descongelar‟ este conceito (Almeida, 2002)
buscando uma análise que dê conta da dinâmica da realidade social porque, neste caso,
central é compreender a relação entre as comunidades quilombolas e a sociedade
envolvente/includente. E esta relação não é estática, e sim, se atualiza conforme se
transformam as condições objetivas que lhe dão sustentação.
As diferenças que podiam até então distingui-los da população local na forma de estigmas passam a ganhar positividade, e os próprios termos „negro‟ ou „preto‟, muitas vezes recusados até pouco tempo antes da adoção da identidade de remanescentes, passam a ser adotados. As fronteiras entre quem é e quem não é da comunidade, quase sempre muito porosas, passam a ganhar rigidez e novos critérios de distinção, genealogias e parentescos horizontais passam a ser recuperados como formas de comprovação da inclusão ou não de indivíduos na coletividade. Ao mesmo tempo, a maior visibilidade do grupo lhe dá uma nova posição em face do jogo político municipal e, por vezes, estadual. Enfim, a adoção da identidade de remanescentes por uma determinada coletividade, ainda que possa fazer referência a uma realidade comprovável, é, com muito mais força, a produção dessa própria realidade (idem).
Embora os quilombos nem sempre se organizassem a partir de movimentos
insurrecionais, fugas ou rebeliões, mesmo assim eles foram confrontados com a cruel
realidade da discriminação racial. E essa discriminação se dá em função de um passado –
ainda presente – de escravidão e enquanto uma espúria justificativa atual para o esbulho de
seus recursos, Nesse processo, os quilombolas são forçados a se adaptar a realidade
estabelecendo “práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus
modos de vida característicos e na consolidação de um terreno próprio” (O‟Dwyer, 1995: 3).
É neste processo que é criada e transformada a forma organizacional que dita
padrões unificados de interação e relação, tanto entre quem faz e quem não faz parte do
grupo, quanto entre a própria comunidade e outros grupos. Temos assim a relação estreita
com uma história viva e dinâmica que sustenta a contemporaneidade do termo “quilombo”.
No processo de ressemantização do termo quilombo, essas três amalgamas [resistência cultural, política e racial], resgatam a historicidade e
8
contemporaneidade dos quilombos. Com o desenvolvimento do estudo sobre as populações camponesas no Brasil, um campo de interlocuções entre as conclusões das pesquisas antropológicas sobre tais comunidades, as mobilizações políticas do movimento negro e os espaços de debate ampliados, trazem uma nova ressignificação do termo, reconhecendo a historicidade e a contemporaneidade de tais grupos étnicos, e mais ainda suas especificidades, geralmente em conflito com particulares, empresas, ou o com Estado. O termo nesse contexto, em muito se distancia tanto do significado de perseguição no período colonial e imperial de expansão da sociedade luso-brasileira, quanto do significado arqueológico da visão patrimonialista e historicizante da legislação, que garante a sua consagração como patrimônio cultural, e posteriormente ao amparo constitucional, garantindo às comunidades remanescentes de quilombos a propriedade de suas terras (Ferreira et al, 2005: 32).
No entanto, para a garantia do direito constitucional das comunidades
quilombolas devemos entender que não se trata apenas do puro e simples reconhecimento
de propriedade de terras. Conforme dita o texto legal, são “relações territoriais específicas”,4
ou seja, são „territórios‟ que temos a obrigação de reconhecer e garantir.
No que diz respeito à territorialidade desses grupos, a ocupação não é feita em termos de lotes individuais, predominando seu uso comum. A utilização dessas áreas obedece a sazonalização das atividades, sejam agrícolas, extrativistas ou outras, caracterizando diferentes formas de uso e ocupação dos elementos essenciais ao ecossistema, que tomam por base laços de parentesco e vizinhança, assentados em relações de solidariedade e reciprocidade (O‟Dwyer, 1995: 2).
Portanto, nos moldes deste trabalho, o conceito de território remete a,
...um espaço vivido e de amplas significações para a existência e sustentabilidade de um grupo de parentes próximos e distantes que se reconhecem como um todo por terem vivido ali por várias gerações e por terem feito deste espaço um lugar, com um nome, com uma forte referência no imaginário do grupo, compondo as noções de pertencimento e de auto-adscrição. Trata-se, portanto, de um espaço conquistado pela permanência, pela convivência e que vem sendo identificado por todos como seu, ou seja, pelos de dentro e também pelos de fora, de tal modo que o próprio sujeito só se reconhece através da projeção desse espaço – lugar marcado e demarcado, domesticado pela nomeação e pelo amplo reconhecimento – ganha a importância de uma tradicionalidade ao servir de suporte para a existência de um grupo de pessoas aparentadas pela afinidade e consangüinidade ou até mesmo por afiliação cosmológica (Leite & Mombelli, 2005: 52).
Devido a esta característica, o trabalho de desvendamento deste território
deve se atentar para todas as complexidades envolvidas na dinâmica do processo de
4 Art. 3º da Instrução Normativa do INCRA nº 20, de 19/09/2005.
9
resistência do grupo e de conquista e significação do espaço. Assim, é preciso recuperar e
incluir as diversas vozes referenciadas na memória coletiva do grupo, para que se tornem
conhecidos os contextos de produção de consensos e dissensos ao logo da história. Da
mesma forma, é preciso buscar na sociedade envolvente/includente outras vozes,
discordantes ou concordantes, que contribuam para o esclarecimento da relação (de
colaboração, neutralidade ou conflito) entre as distintas realidades ao longo do tempo.
O que está em jogo, portanto, não são as caminhadas em busca dos marcos, mas a interpretação de todos os relatos que informam sobre o que foram, o que são, o que querem ser e como se vêm como um coletivo, como se percebem enquanto tal, as lutas travadas pela ocupação das terras e como, deste processo, emergiu um senso de pertencimento ao lugar, de direito a um lugar (idem: 52-53).
É neste sentido que entendemos que para reconhecermos as fronteiras de
um território quilombola é preciso transitar ao longo de toda a história da relação entre o
grupo e o contexto mais amplo em que ele está inserido. Para tanto, buscamos levantar as
vozes dos mais idosos, estes verdadeiros „esteios de memória coletiva‟ (Conway, 1998).
Também contribuem para a análise, os demais documentos: certidões, registros históricos,
acontecimentos marcantes, marcas referenciadas no ambiente, antigas capoeiras,
cemitérios, caminhos, etc. É debruçando-se sobre este rico e vasto material que seremos
capazes de nos aproximar de uma compreensão da historiografia embasada no contexto
atual. Ou, em outras palavras,
Depende não apenas do conhecimento dos fatos do passado, mas de uma compreensão da história em conexão direta com o presente, dos problemas enfrentados hoje, agora, pela sociedade brasileira, e de uma busca de saídas para problemas que são atuais, mas em hipótese alguma deixando de lado o contexto em que emergiram (Leite & Mombelli, op. cit.: 54).
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DADOS GERAIS
Informações gerais da comunidade quilombola
A comunidade quilombola do Grotão se localiza na região da Barraria,
Município de Filadélfia no Estado do Tocantins. Dista 456 Km de Palmas (capital do Estado),
70 Km de Araguaína (cidade pólo regional), 82 Km de Filadélfia (sede do município) e 29
Km do povoado de Bielândia. O acesso a mesma a partir destas cidades se dá pela TO 222,
estrada asfaltada e em bom estado de conservação que liga Araguaína a Filadélfia.
Pegando esta rodovia, após percorrer 46 Km de distância da primeira cidade ou 58 Km da
segunda, em sentido inverso, se chega a um entroncamento onde se adentra numa estrada
vicinal de terra. A partir deste ponto são mais 23 km até a comunidade. A rodovia estadual
TO 010, que liga Bielândia a Palmeirante, muito embora passe perto da área quilombola,
não dá acesso à mesma, pois ai não há ponte que atravesse o ribeirão Gameleira.
Mapa do Estado do Tocantins com o município de Filadélfia em destaque (em vermelho) Mapa do município de Filadélfia com a comunidade Grotão em destaque (em laranja)
Fonte: Wikipédia e Diretoria Zoneamento Econômico-Ecológico - DZEE / SEPLAN-TO
5
Seu território tradicional se localiza numa figura aproximadamente triangular
formado pela confluência do ribeirão Gameleira (divisa leste e sudeste) no rio João Aires
(divisas oeste e sul) e cinco linhas secas que acompanham trechos de cercas divisórias com
os lotes 120, 121, 175 e 181 (divisa norte). A altitude média do território é cerca de 190
metros. Em sua região central desponta o Morro do Grotão (chamados por outros de Morro
Redondo) que alcança 244 metros e permite uma vista privilegiada de toda a área.
5 Disponíveis em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Tocantins_Municip_Filadelfia.svg> e <http://www.seplan.
to.gov.br/seplan/br/download/20080926174126-perfilfiladelfiamiss-ok.pdf>, ambos acessados em 08/11/2010.
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Imagem do território da Comunidade Quilombola do Grotão
Fonte: Google
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Entroncamento da rodovia com estrada vicinal de acesso à comunidade e ponte sobre o rio João Aires
Porteira de entrada e estrada na Fazenda Grotão que dá acesso à comunidade (esquerda) e à sede da fazenda e ao cemitério da comunidade (direita)
Morro do Grotão e vegetação típica de cerrado
O território da comunidade, assim como toda a região, é composto por
cerrado típico. Predominam as áreas mais abertas formadas de capim nativo que são
cortadas por diversas faixas de mata de galeria que beiram o João Aires e o Gameleira,
assim como os córregos Garimpo, Chico Grande e Grotão. Há ainda diversos brejos,
igualmente acompanhados de pequena mata ciliar. Em alguns pontos do território pode se
13
observar a presença de pequenas ilhas de matas artificiais, formadas principalmente por pés
de caju, manga e coco plantados há muito tempo nos quintais das áreas de ocupação
antigas da comunidade. Após várias décadas de abandono estas ainda persistem e dão
frutos, encontrando-se hoje entremeadas por vegetação nativa.
Segundo cadastro do INCRA, a comunidade do Grotão é formada por 21
famílias. O número de pessoas morando na comunidade é variável, devido tanto a
indefinição jurídica que a comunidade vive como a necessidade que alguns têm de sair para
trabalhar ou estudar. Assim, a depender da época do levantamento estes dados se alteram.
Antes dos primeiros conflitos, na década de 1970 e 1980, ali moravam muitas famílias que
foram saindo com medo da violência. Antes do despejo 10 famílias com aproximadamente
65 pessoas moravam na comunidade, sendo que 8 foram despejadas.6
Em janeiro de 2009, quando de nossa primeira ida a campo, 7 famílias
haviam se estabelecido na área delimitada pela justiça, após o despejo e o acordo para o
retorno. Estes eram compostos por 15 adultos e 21 crianças. Na última ida a campo, em
abril de 2010, 12 famílias já residiam na comunidade e 9 ainda estavam em Filadélfia
aguardando melhores condições para retornar a área.
Área atualmente ocupada - delimitada pelo INCRA após acordo judicial
Fonte: INCRA – SR 26 TO
6 As famílias de Seu Raimundo e Seu Cirilo não foram despejadas porque o juiz entendeu que eles teriam direito
de posse adquirido na fazenda Morro Redondo, então o objeto de disputa judicial.
14
Nesta época existiam 11 estruturas construídas na comunidade. Uma era a
escola municipal, construída naquele mesmo ano pela comunidade e mantida pela
Prefeitura. As demais eram de residências de famílias quilombolas. Até antes do despejo da
comunidade da área, várias das casas tinham parede de barro, umas de barro socado
outras de adobe. Na atualidade, todas têm paredes de palha, lona ou madeira e telhado de
palha ou lona, devido tanto a enorme perda material sofrida pelo grupo com o despejo,
como à situação de improviso e precariedade a que a comunidade se encontra submetida
pela decisão judicial.
Casa anterior ao despejo (acima) e casas provisórias atuais, construídas após o retorno (abaixo)
Fonte fotos 1 e 2: Equipe FACDO
Até 2009 as crianças da comunidade ainda estudavam na Escola Municipal
Abraão Braga da Luz, que atende toda a zona rural da região da Barraria. Uma sala de aula
na própria comunidade foi criada pela prefeitura em 2010, a pedido dos pais. Este pedido
decorreu de três fatores. Anteriormente as crianças se deslocavam por uma enorme
distância gastando a maior parte do dia, pois saiam ainda de manhã – o transporte escolar
as pegava às 10h30min – e só retornavam quando já estava escuro da noite – entre 6h e
7h. Além disto, o transporte escolar era extremamente precário e perigoso, realizado por
caminhonetes que transportavam as crianças numa improvisação que cobria sua área de
15
carga, onde as crianças viajavam. Por fim, a comunidade reagiu diante do forte preconceito
que seus filhos sofriam na escola, principalmente durante todo o período do conflito.
Com a abertura de uma escola na própria comunidade, onde se oferece uma
turma multisseriada de ensino fundamental, resolveram-se estes problemas para a s
crianças menores. Agora, somente os alunos maiores, que freqüentam turmas de 5ª a 8ª
série e que estudam na Escola Municipal localizada na Bielândia, é que precisam se
submeter ao longo trajeto de ida e volta à mesma.
Escola onde os alunos da comunidade estudavam até 2009 e a atual na comunidade
A comunidade consta, ainda, com um improvisado campo de futebol, onde
alguns dias, ao fim da tarde, é possível observar uma animada pelada organizada pela
juventude da comunidade.
Campo de futebol da comunidade
O atendimento de saúde mais básico como acompanhamento de vacinas é
realizado por uma servidora municipal que morava em uma fazenda vizinha. Quando
estávamos em campo, esta servidora estava se mudando e desconhecemos qual foi a
16
solução dada pela Prefeitura para este problema. Para além disto, equipes da Secretaria de
Saúde Municipal organizam atendimento na região, como campanha de vacina de crianças,
idosos ou de animais, ou outro tipo de atendimento básico. O Posto de Saúde mais próximo
é o de Bielândia, 23 Km distante.
Não há dados disponíveis sobre as taxas de natalidade e mortalidade da
comunidade, o que impossibilita a identificação de fatores de desequilíbrio de tais taxas,
assim como qualquer projeção relativa ao crescimento populacional do grupo.
Descrição do município e região englobante em termos gerais
Não encontramos em nenhum dos registros bibliográficos sobre a história de
Filadélfia qualquer menção ao grupo indígena que ai habitava anteriormente, nem a
informação se estes ainda ocupavam a área ou qual o seu destino quando da chegada dos
primeiros colonos brancos.
A cidade de Filadélfia se origina com o estabelecimento, em 1857, na
margem esquerda do Rio Tocantins, defronte da cidade de Carolina, de uma fazenda de
criação de gado por nome de Fazenda Philadélfia. Esta fazenda se constituía em uma parte
das sesmarias doadas pelo Imperador D. Pedro II ao fazendeiro Filadélfio Antônio Noronha,
a partir do compromisso em desbravar a região. A partir daí, se inicia o povoamento da
região pela chegada de diversas famílias que vieram se estabelecer nas proximidades da
fazenda do Sr. Filadélfio.
Devido ao tráfego de mercadorias que ocorria no rio Tocantins e o fato de se
situar na divisa entre Goiás e Maranhão, no local acabou por ser instalado um Posto Fiscal
denominado Posto dos Paulas. Outro nome levantado nos relatos historiográficos da cidade
é o do Sr. Otaviano Pereira de Brito. Este é nomeado, em 1919, ora como gerente da
Fazenda Filadélfia, ora como Agente Municipal da Prefeitura de Boa Vista (hoje
Tocantinópolis) e Agente Fiscal do Estado, a depender da narrativa. O certo é que este fixa
residência no povoado e passa a convidar famílias de fora para se estabelecerem nesta
localidade. É a partir deste crescimento populacional que a localidade é elevada a categoria
de vila, com o nome de Filadélfia. Após, é elevada a categoria de cidade em 01/01/1949, a
partir da lei Estadual nº 454, de 08/10/1948.
Com a construção da Belém Brasília, na década de 1960, a região de
Araguaína, cidade pólo a qual Filadélfia se vincula, passou a se desenvolver. Este
desenvolvimento se acelera a partir da separação de Goiás e a criação de Estado do
Tocantins, a partir da constituição de 1988. Filadélfia se comunica com Carolina, no
Maranhão, situada do outro lado do rio Tocantins, por meio de balsa. Já com Araguaína,
situada a 110 km de distância, por meio da TO 222, estrada asfaltada e bem conservada.
Palmas, capital do estado, situa-se a 512 Km, via TO 222 e Belém Brasília, estrada esta
17
com vários trechos em péssimo estado de conservação.
Com área de 1.988,068 Km², o município engloba as seguintes regiões e
distritos: região da Barraria (onde se encontra a comunidade do Grotão), os vilarejos de
Bielândia, Canabrava, Mamoneira e Rodeador. Parte do município deverá ser brevemente
atingida pela inundação do Lago da Represa de Estreito, construída no Rio Tocantins, mais
abaixo, próximo de Tocantinópolis.
Segundo o IBGE, a população estimada em 2009 era de 7.978 habitantes.7
Segundo a SEPLAN-TO, em 2007 a população estimada era de 7.787 habitantes. O IDH-M
de 2000 era de 0,668. Neste ano a população era de 8.218, assim distribuídos: 4.043 na
zona urbana e 4.175 na rural. Em 2005 o PIB municipal era de R$ 35.188.000,00 e o PIB
per capita anual era de R$ 4.058,00. Em 2000 34,5% da população tinha acesso à água
encanada, 50% a energia elétrica e 44.7% a coleta de lixo. O sistema de saúde possui 39
profissionais contratados e a cidade conta com um Hospital e um Centro de Saúde. Existem
12 estabelecimentos de educação pré-escolar, 17 de ensino fundamental e 1 de ensino
médio com 138 professores e 2.440 alunos.8
As atividades que predominam no município são o comércio (varejo), a
agricultura (mandioca, milho e arroz de sequeiro), a pecuária (bovino, suíno e equino), e a
produção mineral (gesso). Outro ramo desenvolvido no município é o turismo. No interior do
município está localizada a Reserva Estadual das Árvores Fossilizadas, que apresenta o
maior número de árvores petrificadas já descobertas no planeta. Além disto, nos meses da
estiagem aumenta o afluxo de turistas que frequentam as belas e numerosas praias que
surgem no rio Tocantins.
Turismo em Filadélfia: praias do rio Tocantins na estiagem
Fonte: Flickr9
7 Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/estimativa2009/POP2009_DOU.pdf>,
acessado em 08/11/2010. 8 Disponível em: <http://www.seplan.to.gov.br/seplan/br/download/20080926174126-perfilfiladelfiamiss-ok.pdf>,
acessado em 08/11/2010. 9 Disponíveis em: <http://www.flickr.com/photos/ 55953988@N00/3890092452/in/photostream>, <http://www.flickr
.com/photos/55953988@N00/3889375499/in/photostream/> e <http://www.flickr.com/photos/55953988@N00/389 0152112/>, acessados em 08/11/2010.
18
Reserva Estadual das Árvores Fossilizadas
Fonte: Governo do Tocantins
10
Vistas da cidade de Filadélfia
Fonte de todas: Panoramio
11
10
Disponível em <http://areasprotegidas.to.gov.br/conteudo.php?id=55>, acessado em 18/11/2010. 11
Disponíveis em: <http://www.panoramio.com/photo/15452534>, <http://www.panoramio.com/photo/5701383>, <http://www.panoramio.com/photo/5701731> e <http://www.panoramio.com/photo/31136624>, acessados em 08/11/2010.
19
HISTÓRICO DA OCUPAÇÃO
O levantamento da memória coletiva sobre a origem da comunidade do
Grotão apresenta algumas lacunas e sobreposição de versões. Isto é comum e até
esperado de se encontrar em casos de comunidades camponesas deste tipo, assim como
em caso de outros tipos de comunidades que vivenciaram eventos traumáticos em sua
origem e trajetória histórica.
Na verdade, quando realizamos levantamento de memória coletiva em
campo, nós antropólogos ficamos de orelha em pé quando a comunidade nos apresenta
uma história totalmente redonda, sem qualquer canto ou aresta a ser aparada. Não que esta
história não possa corresponder aos fatos, mas sim que o esperado é que a memória
coletiva seja construída sobre o pano de fundo de um extenso, profundo e nebuloso labirinto
que precisamos percorrer em conjunto, pesquisador e comunidade pesquisada. Somente
assim é possível revelar, paulatina e espinhosamente, as origens e caminhos históricos
percorrido pelo grupo. E a história que se revela nem sempre diz respeito apenas ao
passado, mas igualmente ao contexto presente vivenciado pela comunidade.
Tal tipo de dificuldade de trabalho em campo foi evidenciado por Ellen
Woortmann que pesquisou os colonos de Novo Hamburgo-RS, migrantes alemães do
século XIX. Devido a um passado de fome, miséria e submissão vivenciado pelos mesmos
em sua terra natal e a possibilidade de um recomeço de fartura de terra e de produção no
Brasil, estes operam um „trabalho da memória‟, de modo a eliminar da lembrança todo este
passado de sofrimento na Alemanha.
A memória opera no sentido de “trabalhar” o passado para forjar o presente e construir o futuro, e isto pode ser feito tanto pela rememoração como pelo esquecimento. Assim como no discurso o não dito pode ser tão ou mais importante que o dito, o não lembrado pode ser central para a construção do presente. Por outro lado, ou por isso mesmo, a memória é sempre seletiva; ela não dá presença a um passado genérico, mas a determinados eventos, localizados em determinados lugares no espaço e no tempo, dotados de significado em contextos específicos. [...] Mas, nem tudo deve ser lembrado. Lowentahl (1998), ao mostrar que “the past is a foreign country”12 sugere que a memória encerra perigos, já que o passado tanto pode nos enriquecer como pode nos empobrecer. Se a comunidade de memória é constituída pelo compartilhamento do que foi vivido, ela é também formada pelo compartilhamento do que foi esquecido, pois dar presença a certos acontecimentos do passado (o que equivale a transformá-los em eventos, já que lembrar é significar) pode até mesmo, em casos extremos, conduzir à destruição da comunidade. [...]
12
“O passado é um país estranho”.
20
Para minha surpresa, porém, a memória genealógica não atravessava, retrospectivamente, o Atlântico; não alcançava os antepassados na Alemanha. Alcançava apenas a geração composta por aqueles que primeiro se estabeleceram nas Kolonien. É evidente que os imigrantes que vieram da Alemanha sabiam quem eram, ou foram, seus pais e avós, tios e primos. Sabiam também de que lugar específico saíram. Tal conhecimento está obviamente presente na carta enviada pelo pai de Barbara para o pai de Konrad, já mencionada. É possível que tenham transmitido seu conhecimento aos filhos que chegaram ainda pequenos e aos que nasceram no Brasil. A geração atual, contudo, nada guardou em sua memória. Nas Alte Kolonien, fundadas entre 1824 e 1832, o parentesco é concebido por determinadas categorias que são instrumentos da memória e, ao mesmo tempo, produtos do trabalho da memória. O parentesco é construído por uma memória seletiva: o que deve ser retido e o que deve ser esquecido, a depender do valor que representa para o que se poderia chamar de “agentes da memória”. Nesse sentido, a memória genealógica está estreitamente associada à construção da identidade (Woortmann, 2000: 213-214).13
No caso em questão, da memória coletiva da comunidade quilombola do
Grotão, é de se esperar que pouco tenha sido guardado sobre histórias de um passado de
horrores da escravidão. Assim, o trabalho da memória no Grotão, conforme acima referida
por Woortmann, opera uma seletividade sobre quais rasgos de acontecimentos devem ser
preservados e transmitidos as gerações anteriores e quais outros devem ser esquecidos e
enterrados para sempre.
E, por fim, é importante que se diga que é assim que se constrói a história em
qualquer tipo de realidade ou mesmo de documento, tanto de fonte oral como escrito. O
processo de trabalho da memória opera em ambos os contextos, selecionando os eventos,
escondendo uns e ressaltando outros que são de interesse dos autores, sejam eles um
historiador ou uma coletividade em guerra com o seu passado. Afinal, os documentos
históricos escritos não foram produzidos, na maior parte das vezes, por quem estava lá, mas
sim por historiadores que precisam recorrer a diversas fontes documentais, orais ou
escritas, estas últimas igualmente produzidas com base nos mesmos critérios que operam
na construção do discurso oral que, enfim, é a fonte primordial de toda e qualquer narrativa
histórica.
Origem da comunidade
A origem da comunidade decorre da fuga de escravos de um engenho
situado no Nordeste. Não há registro do nome nem da localização exata do engenho, mas
sabe-se que este, muito provavelmente, situava-se no Maranhão. De acordo com Seu Cirilo,
o mesmo ficava na região de Itapecuru, mas não foi possível precisar se esta referência
13
A respeito de processos de construção, supressão e sobreposição de memórias coletivas, em comunidades camponesas ou não, sobre eventos originais e traumáticos como guerra, migração forçada, períodos de fome, escravidão, repressão, opressão e etc., consultar (Halbwachs, 1990; Pollak, 1992; Woortmann, 1994, 2000; Conway, 1997; Hobsbawm 1997; Lowentahl, 1998).
21
dizia respeito ao município específico ou ao rio como um todo, o que daria uma região bem
mais ampla. No entanto, na pesquisa igualmente coletamos uma informação de que o
mesmo poderia estar situado no Piauí.
Segundo a maioria dos relatos colhidos na comunidade, os escravos que
fugiram para o Grotão eram escravizados em um engenho do Maranhão. Retiveram na
lembrança que era um engenho onde não eram os animais, mas sim os negros escravos
que tocavam a roda do engenho de moer cana. Aparecida ainda se lembra das falas de
seus antepassados: agora eu não sei localizar esses lugar, elas contava mais, sabia que era
pro nordeste. Que tinha engenho que era os negros que puxavam, no lugar do boi.14
A história da fuga está relacionada ao fato de que, Lunarda, mãe de Emídia e
Lourência, foi estuprada e engravidou do branco, o senhor do engenho e dos escravos, e
passou a ser perseguida pela mulher deste. Motivada pela opressiva situação de escravidão
e devido a este fato, ela acaba por liderar um grupo de escravos fugitivos que abandonam o
engenho e rumam para as regiões do então Norte de Goiás, do outro lado do rio Tocantins.
São várias as lembranças do sofrimento e maus tratos do tempo da
escravidão, relatadas pelos fugitivos aos seus descendentes. Em um diálogo com vários
membros da comunidade, pude levantar que,
Aparecida: Eles [os escravos fugidos] tinham mancha nas pernas de chicote, contava, era ferido de apanhar. E vários morreram na estrada, no caminho pra cá. Muito massacrado esse povo. [...] A Maria do Anunciato dizia que a mãe dela tinha remendo nas pernas. Antonio: Ê judiação. Cirilo: Amarrou o rei [chicote] na ponta de um pau e naquele rei marrava uma ponta de osso. Antonio: Pra açoitar. Cirilo: Ai pegava pra bater o osso batia no fulano, furava. Aparecida: Depois que eles vieram pra cá ainda foi que a vó Emidia cresceu, casou e quando ela teve o filho foi que teve a libertação dos escravos. No tempo da libertação eles já estavam aqui. E eles ficaram sabendo da libertação? Aparecida: Ficaram, ficaram sabendo.
A lembrança da comunidade é de que fugiram duas turmas de escravos, mas
eles não possuem muitas informações sobre a quantidade de pessoas que formavam cada
uma destas turmas, nem o período em que fugiram, nem se eram todos do mesmo
engenho. O que se sabe é que na turma de Lunarda fugiram várias crianças pequenas,
além da filha em sua barriga. O certo é que estes grupos acabaram se encontrando, ou na
própria viagem que foi longa, demorada e perigosa, ou mais possivelmente já no Grotão. É
deste evento que se origina a comunidade. Segundo relatos:
14
As frases e expressões em itálico se referem à fala e discurso da comunidade e dos demais entrevistados.
22
Cirilo: (os fugidos) veio no tempo da escravidão. Para não morrer, ela (Lunarda) veio fugida do Maranhão pra cá. Aparecida: minha mãe contava muito isso ai. Cirilo: fugida do Maranhão pra cá. Aparecida: a mãe da Emidia veio grávida com ela na barriga, veio duas turmas fugida daí do Maranhão, agora não sei daonde, não me lembro. A minha mãe de criação, ela é nascida em 1910, ela também era casada com meu pai. Ai, ela contava muita história pra gente, coisa que ela aprendia. [...] Raimunda Preta era criança, chegou com as pernas, tinha gente que caminhava e o Cassimiro que era rapazotinho, botava [outros] nas costas. As roupas daquele tempo era só as tirinhas, tampava, as tanga tampava mau as vergonha. Tipo assim, uma tanga de índio. [...] Os maridos da Emidia e da Lourença vieram muito novos, um criança e o outro rapaz, provavelmente. Raimunda Preta também veio quando era criança, com cerca de oito anos. Forante o que a vovó disse que morreram muitos na estrada que num agüentaram o rojão, que tava muito abatido. Roberto: Vieram de muito longe? Aparecida: Vieram de apé. E foram assim que chegaram as três crianças junto com dona Lunarda e o marido. Maria Anunciato contava o que sua mãe contava sobre a viagem.
Este evento da fuga e chegada no território ocorreu na década de 1860,
possivelmente em fim de 1865 ou início de 1866, na medida em que Emídia, a filha que veio
na barriga de Lunarda, nasceu já no Grotão em 1866.15 Muito embora não ficasse claro ao
longo de toda a pesquisa, provavelmente há um intervalo de tempo considerável entre as
fugas dos dois grupos, com o segundo grupo fugindo e chegando ao Grotão anos depois.
Isto porque, parece que foi preciso que as crianças do primeiro grupo crescessem para,
então, se casarem com os adultos fugidos do segundo grupo.
Para além destes dois grupos de escravos, alguns dos moradores mais
antigos eram índios. Estes vieram da Cabeceira dos Caboclos, uma aldeia indígena
localizada ao norte do atual território, na beira do ribeirão Gameleira. Segundo Aparecida, a
mãe da dona Joana é a índia legitima que foi pegada ali no Brejão, pra cruzar os cabiceiros
e os caboclos. [...] ela falava até em língua diferente que quase ninguém entendia.
É perfeitamente possível que, nas brumas da memória, este grupo de
indígenas se confunda com o segundo grupo de escravos fugidos. Pode ser que estes dois
grupos sejam, enfim, um só. Em sendo verdadeira esta hipótese, isto significa que não
houve segundo grupo de escravos fugidos, mas sim de índios que, fugindo de algum conflito
em sua aldeia, acabaram se juntando ao grupo de quilombolas que já ocupavam o Grotão,
misturando-se e formando uma só comunidade.
Após as peripécias decorrentes da fuga, ao chegarem ao território do Grotão
o grupo de escravos fugidos resolvem se estabelecer. Segundo informação da comunidade,
isto se deu porque nesta época não havia nenhum morador por perto, somente algumas
15
Emídia faleceu em 1950 e contou aos seus descendentes toda a história da fuga, além da data de seu nascimento.
23
fazendas isoladas mais distantes. Nesta época, a principal cidade da região era Carolina-
MA. Filadélfia já existia, mas era pequeninha, morador muito pouco. Araguaína nem existia,
só depois da Belém-Brasília.16 Assim, no período inicial de ocupação do território a família
vivia relativamente isolada. A primeira área que foi ocupada pelos escravos fugidos foi ao
longo do córrego do Garimpo. Foi nas matas da beira deste córrego que eles estabeleceram
suas moradias, colocaram as primeiras roças e realizavam suas festas e rituais.
O casamento original e formador da comunidade se dá entre Lunarda e um
escravo fugido do qual não se reteve o nome. A primeira geração é constituída por suas
filhas, Emídia e Lourência, a índia criança pegada no laço e os escravos fugidos ainda
crianças: Raimunda Preta, Cassimiro, Sebastião e outros que ficaram perdidos na memória
coletiva.17
A segunda geração se forma com o casamento destas crianças entre si
(Emídia com Cassimiro e Lourência com Sebastião) e com os escravos fugidos do segundo
grupo (sem informações muito precisa). Duas mulheres são mães solteiras: Raimunda que
tem uma filha (Maria Preta) de João Ferreira, fazendeiro branco da região que não assumiu
a filha; e a Índia que teve três filhas (Joana Patrícia, Antônia Pesqueira e Euzébia) de pai
desconhecido, provavelmente dos escravos fugidos ainda criança ou um dos adultos do
segundo grupo. A partir da terceira geração a comunidade inaugura a prática de casamento
preferencial entre os primos, prática que perdura até hoje. Não obstante, uns poucos
casamentos das gerações seguintes foram realizados com pessoas de fora, que passaram a
viver na comunidade.
Devido a sua história, Lunarda ocupa a referência principal da comunidade e
é entendida como tronco original da mesma. Conforme os relatos colhidos na comunidade,
os dois grupos de fugidos deram constituição aos três principais ramos familiares
historicamente existentes na comunidade. Dois são gerados por Lunarda e suas duas filhas
nascidas no Grotão, Emídia, filha do senhor branco, e Lourência, filha com um escravo
fugido. Estas se casam, respectivamente, com Cassimiro e Sebastião, dois escravos fugidos
ainda criança na turma da Lunarda. A descendência de Emídia gera o ramo dos Cassimiros,
às vezes chamado de ramo da Emída. A descendência de Lourência gera o ramo da
Lourência.
O terceiro ramo é o dos Índios/Patrícios, que se origina de uma índia que
conforme o relato ou foi trocada com os índios a troco de animal ou veio junto com o
segundo grupo de escravos fugidos. Sua filha, Joana Patrícia acaba por se casar com
Patrício, outro negro que veio de fora, não se sabe bem se fugido em alguns dos grupos
16
Conferir Capítulo 2. 17
Estes podem ou ter morrido na viagem, no território antes de chegar à idade adulta, ou se casaram, mas não deixaram descendentes ou, ainda, se tornaram rapaz velho ou moça velha (celibatários).
24
originais ou não. Deste casamento se origina, então, esta outra grande família da
comunidade.
Para além destes três ramos maiores, há ainda uma pequena família
descendente de Raimunda Preta, então uma negra de oito anos de idade na época em que
fugiu do engenho no grupo da Lunarda. Esta gera uma descendência pequena, mas que
permanece na comunidade ainda hoje.
Ao longo de 150 anos de ocupação do território estes quatro ramos familiares
estreitam os laços de parentescos se casando entre si, através de casamento preferencial
entre primos. Nos dias de hoje, temos dois principais ramos familiares na comunidade, cada
um deles encabeçado por um dos atuais patriarcas ainda vivos na comunidade, Seu
Raimundo e Seu Cirilo, respectivamente bisneto e tataraneto de Lunarda.
Seu Raimundo e Seu Cirilo, patriarcas ainda vivos e atuais esteios da comunidade
Fonte: Equipe FACDO
Esta história foi igualmente levantada por Rita de Cássia Domingues-Lopes e
Helena Mendes Silva, professoras da FACDO, em pesquisa na comunidade do Grotão.
A origem da comunidade, hoje identificada, Grotão está ligada aos constantes deslocamentos de populações vindas do Nordeste. Há registro na memória dos que hoje moram na comunidade. Entrevistamos Aparecida que em seu depoimento conta:
“a minha bisavó, Emídia ela era escrava e engravidou do seu patrão tendo que fugir da sua terra, na época do Maranhão ou Ceará do lado do Nordeste. Aí ela veio pra cá porque era tipo um esconderijo, aqui ela se casou.”
O dado se confirma no depoimento de Sr. Cirilo, um dos patriarcas da comunidade (e sogro de Aparecida), que afirma:
25
“os mais antigos vieram da região do Maranhão isso tem mais ou menos 400 anos e vieram parar aqui neste lugar onde até hoje moramos. Na viagem de lá pra cá eles paravam, demoravam dois dias e depois continuavam a viagem. Era difícil eles vieram a pé, pelo meio dos matos, paravam nas beira de rio”.
[...] E com uma lembrança saudosa, Sr. Cirilo afirma “assim nós crescemos e aqui nos casemos e tivemos nossos filho”. Com a construção de seus ranchos e do cemitério onde enterravam seus mortos no campo santo, os vínculos com o território ficaram cada vez mais visíveis (Domingues-Lopes e Silva, 2009: 3-5).
A conquista do território
Conforme as turmas de escravos fugidos e índios recolhidos chegavam ao
Grotão, no início da segunda metade do século XIX, estes começaram a ocupar o território,
constituindo sua história de liberdade. A vida nestes tempos iniciais era muito difícil,
conforme o relato de membros da comunidade.
Aparecida: A Maria do Anunciato contava muito que a mãe dela [Raimunda Preta] veio nessa encuca e falava muito [...] e falava o sofrimento pra vim. Que naquele tempo, quando eles abrigava aqui não tinha vasilha nenhuma, ai faziam daqui mesmo, a vasilha de barro, a cabaça, faziam os copo da cabaça. Cirilo: Nesse tempo a gente plantava muito cabaça, plantava muito a semente de cabaça pra fazer as cuia, outras furava assim do lado, botava de molho pra lavar elas pra poder carregar água, botar no pote de barro vazio. Minha avó gostava de fazer essas coisas de barro. E outras vezes nós deixava mesmo na cabaça pra no outro dia amanhecer friinha.
Inicialmente moravam todos próximos, provavelmente ocupando uma área
próxima do córrego do Garimpo, como primeiro local de moradia da comunidade. Juntos
conviviam, trabalhavam, planejavam a vida e realizavam suas festas e demais rituais. Uma
das festas que habita a lembrança da comunidade até hoje é a da abolição da escravatura.
Aparecida conta que sua avó Maria lhe dizia que quando os escravos ficaram sabendo da
abolição eles festejaram, mas não se sabe como eles ficaram sabendo.
Aparecida: Eu lembro assim que ela falava que num sei quem diz que pegava uma água no pote, ela disse que enquanto tavam lá fazendo comida, quando dava fé diz que ela vinha vindo com aquele pote e derrubou de tanta alegria, aquele pote no chão. Se abraçavam e pulavam bastante. Lembrança e memória dos outros que tinha se acabado por lá. Que não pode sair. Cirilo: É muita coisa, em tempo de novo, os avôs conta pra gente, os bisavôs.
26
Este relato deixa claro dois elementos. O primeiro é que o grupo não estava
isolado, pois tinha contato com o exterior e recebia informação sobre os movimentos da
época. Outro é que mesmo passado duas décadas da fuga, jamais se esqueceram dos
companheiros que tinham permanecido no suplício da vida de escravidão do engenho.
Após estes anos iniciais, conforme os membros da comunidade iam
constituindo família e gerando descendentes, foram se esparramando pelo território do
Grotão. A partir do surgimento da segunda e terceira gerações os atuais ramos iam se
constituindo e, neste processo, começaram a morar esparramadas pelo território formando
os diversos cantos: Canto dos Cassimiros, Canto do Garimpo, Canto do Guará e outros,
onde morava cada bolo de parentes relativamente próximos, o que configura a existência de
vários pequenos bairros rurais dentro no território do Grotão.
Neste tempo, já se adentrando no século XX, as casas eram todas no mesmo
modelo – casas de telhado de palha e parede de taipa. Estas eram próximas, mas não
vizinhas, como é hoje. Segundo Raimundo, uma via a outra, mas era afastada. Uma
distância pras galinhas não se misturar. Quando estavam cansados do lugar, mudavam todo
mundo para um lugar novo. Isto ocorria quando as matas nativas em volta já estavam perto
de se esgotarem. Então, eles deixavam as matas e seus recursos se recuperarem e
procuravam ocupar outro local. Neste movimento os moradores deixavam para trás
verdadeiras matas artificiais formadas por um emaranhado de árvores frutíferas como
manga, caju, ata, coco e etc., espaço este decorrente da proximidade de vários quintais que
acabavam por se unir. A formação deste tipo de mata artificial é recorrente no Grotão, sendo
chamada localmente de mangal.18
Trempe e fogão à lenha
Fonte: Equipe FACDO
Nestes tempos iniciais a comunidade acusava a carência de alguns
elementos. O cozimento de alimentos, por exemplo, era feito na trempe. O fogão à lenha,
18
Sobre a recorrência de mangais no território do Grotão, conferir o capítulo Ambiente e Produção.
27
levantado, chegou lá há pouco tempo. Segundo Raimundo, minha mãe morreu com setenta
e poucos anos e ela nunca mexeu com fogão levantado, só na trempe. As mulheres adultas
de hoje ainda cozinham muito na trempe.
Os elementos mais escassos, posto que não existissem meios de serem
produzidos localmente, era sal e ferramentas. Neste sentido, inicialmente ambos eram
adquiridos por meio de compra em Balsas, cerca de 220 km, mais de uma semana na
viagem de ida e volta. Quando se ia nesta cidade comprar sal e ferro não se levava nada
para vender, só o dinheiro. Já para comprar algo em Filadélfia, levava-se um dia e meio.
Segundo nos informou Cirilo, seu pai e seu avô passaram a comprar sal em Palmeirante,
que ficava a 7 léguas (42 km) e é mais perto do que Filadélfia.
O dinheiro era conseguido vendendo-se a força de trabalho em fazendas
vizinhas. Naquele tempo as fazendas se situavam bem mais longe do que na atualidade. A
mais perto de todas era no Brejão e tinha a fazenda do Raimundo Figueira, a Santa Cruz e a
do Agripino. Trabalhava-se pela diária e sempre aparecia serviço.
Apesar destas dificuldades, a comunidade conseguia se superar e, com muito
trabalho, produzir os demais bens necessários. Alimentos eram cultivados em roças e
canteiros de praia ou coletados no cerrado e nas matas de galeria. A carne era oriunda da
criação ou da caça.
Os produtos colhidos das roças ou coletados no cerrado eram transformados
e distribuídos entre todos. A farinha, um dos principais alimentos, era feita por algumas
famílias e era trocada ou vendida para as outras. Os homens faziam chapéu de embira. As
mulheres faziam renda para colocar nas almofadas, saias e camisolas. Com algodão, elas
fiavam para fazer roupa e rede para dormir. Somente muito posteriormente é que passaram
a comprar roupa já feita na mão do Pedro Silva, mascate de Santa Helena que andava por
toda a região comerciando.
Segundo relatos, o fazendeiro mais próximo, Figueira, do Brejão, não mexia
com eles, era ele pra lá e nós pra cá. Inclusive esta relação acabou resultando em laços de
afinidade com o estabelecimento de compadrio entre os Figueira e alguns membros da
comunidade. Seu Raimundo se refere a este tempo antigo, antes da chegada dos
forasteiros, nos seguintes termos: Lembro deste tempo antigo, fico com saudade, mas o
tempo não volta mais. Tempo meio difícil, mas era bom. Agora é outro movimento.
Este processo de ocupação do território deixou marcas visíveis que foram
possíveis de ser observado mesmo muito tempo depois. Percorrendo toda a área ocupada
preteritamente por membros da comunidade em companhia de membros atuais da mesma,
levantamos e registramos por meio de coordenadas geográficas, registro fotográfico e
gravação de falas explicativas a maioria destas formas de ocupação. O mapa e a tabela que
se segue, demonstra este processo de conquista, ocupação e uso do território do Grotão.
28
Mapa de localização das antigas ocupações19
19
Somente os pontos em ordem numérica. Os pontos em ordem alfabética se referem à ocupação atual e serão tratados mais adiante.
29
Reminiscências das Antigas Ocupações
Ponto Coordenadas20
Referência Características Encontradas
01 -7,606 / -47,952 Tapera velha do Isac Estacas de pequi da estrutura da casa.
02 -7,607 / -47,952 Tapera velha da Tereza Estaca de pequi e ferro de engomar da velha Sofia no chão.
03 -7,605 / -47,950 Cemitério dos Anjos do Canto do Garimpo
21
Pedaço de cruz de anjinho ainda enterrada.
04 -7,606 / -47,950 Tapera velha da Maria Antônia (mãe de Cirilo)
Enorme mangal do Canto dos Cassimiros e resto de estaca de aroeira enterrada no chão.
22
05 -7,606 / -47,945 Tapera velha do Satu (1ª casa) Troncos de pés de manga queimados, pois hoje a área é um pasto de fazenda e tudo foi derrubado.
06 -7,607 / -47,933 Tapera velha da Lourença Não tem vestígios.
07 -7,607 / -47,933 Tapera velha do Antônio Cassimiro (1ª casa)
Não tem vestígios.
08 -7,607 / -47,932 Tapera velha do Chico Cassimiro (1ª casa)
Pés de manga e de coco.
09 -7,607 / -47,930 Tapera velha da Firmina Pés de laranja, de manga e de coco e um pilão de sambaíba.
10 -7,619 / -47,983 Tapera velha do João Varjão (João Figueira)
Estacas de construção da casa ainda em pé e esparramadas pelo chão e pés de caju.
11 -7,621 / -47,983 Tapera velha do Zacarias Várias estacas de construção da casa ainda em pé, trempe, restos da forma de madeira de fazer doce de buriti e pés de caju em volta da casa toda.
12 -7,617 / -47,978 Cemitério do Grotão Cemitério abandonado e depredado, pois a comunidade, que cuidava anteriormente ao conflito, há um tempo não tem acesso ao mesmo.
13 -7,616 / -47,959 Tapera velha da Maria Anunciato Resto de madeiras da casa pelo chão e pés de laranja.
14 -7,617 / -47,959 Casa de farinha da Maria Anunciato Pedaço da prensa de arrocho para secar a massa da mandioca.
15 -7,614 / -47,955 Tapera velha do Melquiades Pés de manga e restos de uma forquilha.
16 -7,614 / -47,954 Tapera velha do Sabino Pati de enchimento de parede e forquilhas baixas dos bancos.
17 -7,625 / -47,975 Tapera velha do Anunciato (1ª casa) Pés de caju.
18 -7,626 / -47,973 Tapera velha do João Lourenço Pedras da trempe e esteio do fogão de lenha e forquilhas no chão.
19 -7,632 / -47,972 Tapera velha do Anunciato (2ª casa) Forquilhas do rodapé da casa (cercam ela toda), pés de caju e um bule velho no chão.
20 -7,629 / -47,965 Tapera velha do João Lourenço (1ª casa)
Mangal com muitos pés de manga e coco.
21 -7,630 / -47,962 Tapera velha da Francisca Preta Estacas e madeira de casa espalhadas pelo chão e cemitério de anjinho com evidência de duas cruzes.
22 -7,627 / -47,957 Tapera velha do Antônio Cassimiro (2ª casa)
Não tem vestígios.
23 -7,626 / -47,953 Tapera velha do Chico Grande Pé de mandacaru plantado por Chico Grande, bisavô de Cirilo.
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Latitude e Longitude em Coordenada Decimal. 21
“Cemitério de Anjo” – também conhecido no meio rural brasileiro como “Cemitério de Crianças” – é um local fora do cemitério, geralmente no quintal ou arredores da própria casa, onde se enterram crianças pagãs (não batizadas). Isto ocorre pelo motivo de que estas não são consideradas cristãs e, portanto, não podiam ser enterradas junto aos batizados. Geralmente serve como um forte indício de ocupação pretérita da área pelas famílias da comunidade em estudo. Este tipo de enterro de criança não batizada ou de membro de outra religião fora do cemitério ou em cemitério à parte é uma tradição cristã presente em várias regiões da Europa medieval e moderna. O caso mais paradigmático desta prática foi, talvez, o do filósofo francês René Descartes. Como católico, morreu em 1650, em Estocolmo, Suécia, um país protestante e, portanto, mesmo tendo sido um protegido da rainha sueca em vida, acabou sendo enterrado em um cemitério de crianças. 22
Entre os pontos 01 e 09 tem um enorme mangal de cerca de duas tarefas (aproximadamente 0,7 ha), conhecido como Canto dos Cassimiros. Este mangal gigante foi resultado da fusão dos vários quintais das casas do ramo dos Cassimiros, onde muitos parentes moravam extremamente próximos.
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24 -7,626 / -47,953 Tapera velha da Paulina Não tem vestígios.
25 -7,622 / -47,952 Tapera velha da Tereza Pés de caju e pedras de enchimento da parede pelo chão.
26 -7,620 / -47,952 Tapera velha da Bilina (de fora) Não tem vestígios.
27 -7,625 / -47,941 Tapera velha do Isaias Pés de manga num enorme quintal.
28 -7,620 / -47,934 Tapera velha do Teófilo (Tió) Não tem vestígios.
29 -7,632 / -47,956 Tapera velha do Chico Cassimiro (2ª casa)
Resto do esteio do canto da casa e forquilhas do jirau.
30 -7,633 / -47,955 Cemitério dos Anjos Cruz de anjinho enterrado. Maria, neta de Francisco Cassimiro.
31 -7,634 / -47,955 Tapera velha do Chico Cassimiro (3ª casa)
Quintal com enorme mangal com muito pé de manga, coco e caju.
32 -7,637 / -47,954 Tapera velha do Satu (2ª casa) Ainda há esteios fincados, assim como madeiras de construção e muitas pedras de enchimento da parede pelo chão.
33 -7,636 / -47,952 Tapera velha da Lourença e Sebastião
Não há vestígios da casa nem do engenho, mas tem dois mourões do curral.
34 -7,636 / -47,948 Tapera velha do José Rabo de Couro Pequenos buracos dos esteios ainda presentes.
35 -7,620 / -47,963 Garimpo no Morro do Grotão Grande escavação e buraco coberto por vegetação, no alto do morro.
Fotos referentes ao ponto 01 Estacas de pequi da estrutura da casa
Fotos referentes ao ponto 02
Estaca de pequi e ferro de engomar da velha Sofia no chão
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Foto referente ao ponto 03 Pedaço de cruz de anjinho no cemitério de anjos do Canto do Garimpo
Fotos referentes ao ponto 04 Enorme mangal do Canto dos Cassimiros e resto de estaca de aroeira enterrada no chão
Foto referente ao ponto 05 Tronco de pé de manga do quintal de Satu, Foto referente ao ponto 07 queimado quando se formou o pasto Não há vestígios da tapera velha
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Fotos referentes ao ponto 08 Pés de coco e de manga do quintal
Fotos referentes ao ponto 09 Pés de laranja, de manga e de coco e um pilão de sambaíba
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Fotos referentes ao ponto 10 Estacas de construção da casa ainda em pé e esparramadas pelo chão e pés de caju
Fotos referentes ao ponto 11 Estacas de construção da casa ainda em pé, trempe, restos da forma de fazer doce de buriti
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Fotos referentes ao ponto 12 Cemitério do Grotão abandonado e depredado
Fotos referentes aos pontos 13 e 14 Resto de madeiras da casa de Maria Anunciato e da prensa de arrocho de sua casa de farinha
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Fotos referentes ao ponto 15 Mangal e restos de forquilha na tapera velha do Melquiades
Foto referente ao ponto 16 Foto referente ao ponto 17 Forquilha de banco na tapera velha do Sabino Pés de caju na tapera velha de Anunciato
Fotos referentes ao ponto 18 Pedras de trempe, esteios do fogão a lenha, forquilhas no chão e pés de fruta
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Fotos referentes ao ponto 19 Forquilhas do rodapé da casa e bule de café antigo encontrado nos restos da casa
Fotos referentes ao ponto 20 Mangal com muita manga e coqueiro
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Fotos referentes ao ponto 21 Estacas e madeira de casa encontrada no chão e cemitério de anjinho com evidência de duas cruzes
Foto referente ao ponto 23 Pé de mandacaru plantado por Chico Grande, bisavô de Cirilo, no quintal de sua casa
Fotos referentes ao ponto 25 Pés de caju e pedras de enchimento da parede pelo chão
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Foto referente ao ponto 27 Pés de manga evidenciando um grande quintal
Fotos referentes ao ponto 29 Resto do esteio do canto da casa e forquilhas do jirau
Foto referente ao ponto 30 Cruz de anjinho enterrado. Maria, neta de Francisco Cassimiro
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Fotos referentes ao ponto 31 Quintal com enorme mangal com muito pé de manga, coco e caju
Fotos referentes ao ponto 32 Esteios ainda em pé, assim como madeiras e muitas pedras da enchimento da parede pelo chão
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Fotos referentes ao ponto 33 Dois mourões do curral
Foto referente ao ponto 34 Foto referente ao ponto 35 Buracos dos esteios ainda presentes Escavação do garimpo coberto por vegetação
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É deste tempo dois fatos curiosos levantados em nossa pesquisa. O primeiro
foi a passagem da Coluna Prestes exatamente pelo território do Grotão. A coluna foi
conhecida por todo o sertão brasileiro por onde passou como “Os Revoltosos”. Na região
não foi diferente, mas com um detalhe novo, para a comunidade este era um grupo que
caçava negros, talvez uma referência a lembrança dos tempos em que fugiram da
escravidão e foram caçados pelo Capitão do Mato e seu bando. Segundo a comunidade,
todos na região temiam os soldados e procuraram se esconder quando da sua passagem,
inclusive os fazendeiros e suas famílias.
Na comunidade, mesmo depois da libertação dos escravos o medo do
homem branco ainda era constante. Assim, a passagem dos Revoltosos, ocorrida em 1925,
ainda hoje permeia a memória coletiva, principalmente a dos mais antigos, apesar de terem
passado por ali apenas uma vez. Eles falaram que era um grupo de cerca de 2.000 homens,
tudo armado, vindo do Nordeste para o Sul. Foi uma passagem rápida. Vieram do Maranhão
e quando na área, atravessaram o João Aires na Barra do Grotão.
Cirilo: os revoltosos era uns 2.000 homens que matavam negro. Isso era por volta de 1925 que os revoltosos passou aqui. Era a comuna Prestes? Aparecida: Não sei, só sei que era um grupo de homem que caçava negro. 2.000 homens. Minha avó, nessa época o meu pai chorava. Ai botava o peito na boca dele e os menininhos. Cirilo: Atiravam em gado, matavam e comiam. Só comiam a parte dianteira. Tudo montado, tudo armado, tudo de capa amarela. [...] Ai uma mulher que morava na Chinela, madrinha de minha mãe, em 25, ela tava dando de mamar o João Varjão [...] À noite, todo mundo ia embora lá pra Barra do Grotão. Fazia o de comer de noite pra comer de dia. E a mãe dando de mamar o João, ai levava, dava de mamar ele, e tinha vez que ele queria chorar metia o pano na boca dele pra num chorar. Foi em 25 e ele é de 25. Cirilo: Bem ali na Chinela. Tinha uma madrinha da mamãe. Era 1925, era uma casinha ali do Seu João Figueira. Ai a madrinha de minha mãe veio assuntar ela: - vamos fazer pra comer de dia. Ai colocava um paninho na boca do menino, pra não chorar. Ai minha mãe ficou na casa, disse que não ia sair não, vambora, o povo se escondeu, tudo no mato, bem na barra do Grotão. Dentro desse mato, de junto desse morro do Grutão. Ai minha mãe disse assim: – Vambora, pai. Ele disse: – Eu não vou. Ficou aqui como besta velha. Ai quando o pessoal chegou, eles dizia assim: – Quem é tu? E ele dizia: – Quem é tu? [eles perguntaram] Cadê o povo? [ele respondeu] Cadê o povo? Ai os outros falaram: – Larga esse bobo velho, larga de mão. Ai foram embora. Ai quando eles foram embora, deu à noite, ele encostou lá onde tava o povo e falou lá: - Eles passaram lá, me largaram de mão e foram embora. Outro fato pitoresco levantado em nossa pesquisa foi que Seu Cirilo nos
informou que por volta de 1954 tocava gado para Marabá, junto com Manoel Eloi. As
boiadas tinham de 100 a 150 bois e o gado era do senhor Miguel de Pernambuco, irmão do
Seu Nagib, fazendeiro de Marabá. Além de gado, ele também tocava porco até o rio
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Araguaia para o Sr. José Capanga. Este comprava os porcos de ambos os lados de
Tocantins e juntava-os na região. Depois contratava Cirilo para tocá-los.
Tocando gado Cirilo deu 11 viagens que lavavam cerca de 30 dias cada. Ele
ia a pé porque não tinha animal e somente em uma das viagens voltou de avião, o restante
ele e os companheiros voltaram a pé. O esforço compensava, pois ele recebia pela diária e
ganhava 500 mil reis por viagem. Com este dinheiro ele comprava roupa e ajudava o
padrinho, porque na época ainda era solteiro. A travessia do Araguaia era feita a vau, na
localidade de São Vicente. Somente quando se casou é que ele parou de ir, pois foi neste
mesmo tempo que o gado começou a ser transportado de carreta.
Naquela época a Igreja Católica se fazia presente em todo o interior por meio
de visitas esporádicas conhecidas como desobriga. Na região da Barraria, como era
conhecida toda a região do município de Filadélfia, onde se situa o Grotão, não era
diferente. Na casa paroquial de Tocantinópolis conversei com os padres Carmelo di
Gregório e José Vicente e na Congregação Don Orione, em Araguaína, conversei com o
padre Domingos Morini, todos já aposentados. O último foi padre em Filadélfia de 1945 a
1950 e os outros eram da Diocese, sendo responsáveis pela desobriga de toda a região.
Quando esta era na região da Barraria, os três participavam juntos.
Conversando com os mesmos, estes afirmaram que conheciam esta região e
seu povo, e que a desobriga sempre ocorria entre os meses de julho e setembro, época da
seca, onde o deslocamento era mais fácil. Naquela época nem estrada tinha, pois a BR
somente chegou à região entre 1963 e 1965. Os encontros anuais da desobriga em que a
comunidade participava geralmente ocorriam na fazenda de dona Zilma, na comunidade
São Sebastião.
Padres Carmelo e José Vicente levantaram que os fazendeiros que eles
encontraram na Barraria, famílias Luz, Felix, Fragoso, Miranda, Braga, Figueira, Antônio
Marques, Zé Biel e seu pai Solino, chegaram à região entre as décadas de 1920 e 1930,
tendo todas vindo de Catalão-GO. Sobre a comunidade quilombola, estes afirmaram que se
lembravam deles por causa de um detalhe: era um grupo de “negros aço” e “gazos” que
tinham problema de saúde.23
Antônio Gomes dos Santos, conhecido como Antônio Dias, atualmente mora
numa fazenda vizinha ao território, no outro lado do ribeirão Gameleira. Conversando com o
mesmo, este afirmou que morava desde criança na fazenda de seus pais, próxima ao
Grotão. Ele era vizinho de Antônio Cassimiro, avô de Cirilo. Seu relato é de que foi muito
amigo da comunidade, sempre participando das festas e visitando os amigos. Este confirma
23
Devido à persistência do casamento dentro da família, vários membros da comunidade apresentaram casos de deficiência física ao longo da história da comunidade, o que ocorre ainda hoje. Este elemento foi crucial para aguçar a memória dos padres sobre a presença da comunidade nas atividades da igreja na região.
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que na região tinha muitas casas da comunidade, que era muito grande aquela época, e que
ele conhecia a todos.
Da mesma forma, Dona Francisca Coelho de Araujo, cunhada de Zé Biel,
hoje com mais de 90 anos, afirmou que conhece a comunidade desde pequena. Todo dia de
finados ela ia visitar o túmulo de seu padrinho, Francisco, que está enterrado no cemitério
do Grotão. Daí ela visitava a todos da comunidade. Ela se lembra dos festejos da
comunidade, principalmente o de Dia de Todos os Santos. A mesma afirmou que os antigos
moravam sozinhos na área, sem vizinho muito perto. Da mesma forma, que quando estes
morreram igualmente foram enterrados no mesmo cemitério. Segundo a mesma, quem
sempre zelou do cemitério foi o pessoal da comunidade. Ela afirmou que se lembra que por
muito tempo foi o Cassimiro.
Os mais antigos da comunidade não se mudavam e, portanto, estão todos
sepultados no cemitério do Grotão. No entanto, segundo me informaram foi em 1956 que
pela primeira vez saiu pessoa da comunidade. Foi uma tia do Seu Cirilo que se casou com
uma pessoa de fora e, daí, ela foi morar em Gurupi. A partir daí, mesmo que a maioria
continuasse se casando com alguém da comunidade e permanecendo no território, alguns
começaram a casar com gente de fora e sair, principalmente quando era mulher.
Nesta época já havia fazendas próximas, tanto para o norte do córrego do
Grotão, as fazendas Brejão e Chinela, dos Figueiras, como em toda a margem do ribeirão
Gameleira. A Na beira deste ribeirão temos as fazendas de Mateus, que chegou em 1952, e
a de Sebastião, que chegou em 1975. Temos ainda outras áreas que eram anteriormente
ocupadas pela comunidade e que acabaram ficando para particulares: o local conhecido
como Canto ficou com Luzimar Coelho e a localidade do Garimpo ficou com João Matos.
No entanto, para a comunidade, o exemplo maior de gente de fora é
Deusdete, esposo de Francisca, que chegam à área em 1979. Ele era garimpeiro em Serra
Pelada e após bamburrar24 veio para Araguaína. Quando chegou à região ele mexia com
gado. Segundo fui informado, desde esta época o mesmo já dizia que era dono da fazenda
Grotão, alegando que tinha comprado.
Foi somente mais recentemente, na época do conflito, a partir de 1979,
quando Deusdete proibiu o povo de botar roça, que os mais novos começaram a se mudar
em massa e a saírem do território. Assim, na atualidade tem vários membros da
comunidade que estão enterrados fora do cemitério por causa do conflito: Maria do Moção,
Germana, Olindina, Filinta, Francisca, Chico Vermelho, Joana, Sucupira. Estes estão em
cemitérios de outras cidades ou povoados, ou mesmo em cemitérios de fazendas
particulares.
24
Bamburrar significa, na linguagem dos garimpeiros, encontrar uma grande quantidade de ouro ou de pedras preciosas e ficar rico, abandonando o garimpo.
44
O primeiro período de conflito – a “regularização” pelo GETAT
Após 113 anos vivendo em seu território e convivendo com seus vizinhos
antigos e mais recentes, a comunidade quilombola do Grotão conhece um novo movimento
bem mais dramático: é o tempo da fome e da violência.
O conflito pela terra se inicia para a comunidade com o surgimento da figura
de Pedro Galvão. Ele era genro de Nazaré Figueira, prima de Maria Figueira, á época a
dona do Brejão. Quando realizava a pesquisa, Dona Nazaré morava em Carolina, onde
faleceu, tendo por volta de 98 anos.25 Segundo a comunidade, Pedro Galvão nunca morou
naquelas terras, ele apenas ia de vez em quando para visitar a sogra. Mas logo ele morreu.
No entanto, quando visitava a área ele sempre se dizia dono. Alegava que era
dono da área do Grotão por que a sogra, que conforme dizia era a antiga dona do Grotão,
havia lhe passado o domínio da área. Segundo informado por Dona Francisca, atual
proprietária da fazenda Grotão, Deusdete, seu esposo, comprou a área de Pedro Galvão.
No entanto, é bom que se frise que a comunidade do Grotão nunca reconheceu a
propriedade da terra nem de Pedro Galvão, nem de Deusdete e Francisca, pois sempre se
considerou a dona do território duramente conquistado, no tempo destes acontecimentos,
por mais de um século de usucapião.
Damião Coelho Rodrigues foi criado pela Dona Nazaré Figueira, que era a
dona da fazenda Brejão que, segundo o mesmo, tinha cerca de 160 alqueires. Deste total,
durante os trabalhos do GETAT foi desmembrada a fazenda Pedreira, que foi repassada a
Damião por sua mãe de criação. Ele levanta que quando nasceu, o Bernardino Figueira,
dono do Brejão, já era morador antigo. Segundo Damião, este fazendeiro deve ter vindo do
Maranhão, no fim do século XIX ou início do XX. Então, teve um tempo em que ele ficou
viúvo e se casou com dona Nazaré, que também era do Maranhão. Daí esta pegou Damião
para criar ainda com dois meses de idade.
Sobre as divisas das fazendas, Damião levanta um dado interessante.
Falando da fazenda Brejão, propriedade dos Figueiras, ditos proprietários da área do Grotão
por Pedro Galvão, Deusdete e Francisca; este afirma outra coisa:
Mas essa área de 160 alqueires, ela [a fazenda Brejão, dos Figueiras] ia até aonde? De primeiro, que agora ela mudou, de primeiro ela vinha essa terra ela aqui de cima bem ai, feito Data. Ai pra cá era a Data Gameleira e bem dali daquela cerca que tem um arame liso ali pra lá era a Data Extrema. Esta Data que o senhor fala é do lado onde que eles [a comunidade] estão? É. É o lado da Francisca, deles?
25
Por duas vezes fomos a Carolina-MA e tentamos entrevistar Dona Nazaré, mas na primeira não encontramos ninguém em casa e na segunda recebemos a notícia de que a mesma tinha falecido. Assim, perdemos uma importante fonte de informação sobre a história da região.
45
É, ali é data extrema. Ali do Zé Odivaldo e da Chinela tudo era Data Extrema. Esta Data Extrema era de quem? Essa Data Extrema era ai... Quem era o dono dela? Do meu conhecimento, era mesmo, depois que eu me entendi, era esse povo desse Raimundo [aponta para o marido de Aparecida] ai que morava. Era deles? É. Não tinha dono essa fazenda? Tinha não. [...] Mas nesse cantinho mesmo ai que tá o povo do Raimundo mora ai, não tinha ninguém não [como dono]. Eu mesmo não conheci não, só o povo dele toda vida. Não tinha outro dono? Tinha outro dono não.
Assim, Damião confirma que a cerca que faz divisa de sua fazenda com as
terras que eram antigamente da comunidade e, posteriormente, com a Francisca, era a
divisa entre a terra dos Figueiras e da comunidade. Neste sentido, as terras do Grotão não
pertenciam a sua mãe de criação, Dona Nazaré Figueira e, portanto, não poderia ter sido
dada de herança para Pedro Galvão. Com base neste depoimento de um descendente e
herdeiro dos Figueiras, temos que concluir que Pedro Galvão, ao que parece, grilou esta
terra.
Deste modo, de acordo com a comunidade, Deusdete e Francisca chegam às
terras em 1979. A época eles já tinham filhos, alguns já crescidos. Desde o primeiro contato
com a comunidade que eles já chegaram alegando que eram donos, pois haviam comprado
a terra.
Como é que foi, eles apareceram falando o que, como é que foi ? Aparecida: Que eram dono. Cirilo: Que era o dono. Chegaram na casa e procuraram vocês, falaram que era o dono? Cirilo: Falaram que era dono. Aparecida: Falaram que era dono, já foram botando gado. [...] Eu me lembro, eu sei, que eu já era grandinha. Era a faixa de uns 40, 50 gado. Francisca levanta que eles compraram a terra em 1982 ou 1983, não se
lembrando da data exata. Ela afirma que este trecho de Pedro Galvão era herança dele da
fazenda dos Figueiras, que tinha uma extensão maior e englobava vários lotes. Perguntada
se o vendedor tinha documento, ela informou que não, pois este área tinha a fazenda dos
Figueiras tinha era um título paroquial. Ela informou ainda que não lembra de ter qualquer
documento de compra da terra de Pedro Galvão, pois logo depois ela foi transferida no
cartório de Filadélfia, não me lembro mais, faz tantos anos.
Sobre a situação da terra na época da compra, Francisca informou que:
E tinha morador na época?
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Tinha. Quem que tinha? Tinha morador sim. Tinha o Seu Cirilo, tinha o Seu Sabino, parece que tinha mais outras pessoas ai... Na época em que Deusdete e Francisca chegaram quem morava na área do
Grotão era o Manoel Cantuário. Quando Deusdete chegou trouxe Eurico e sua filha, que
depois se casou com Manoel, para cuidarem da área. Daí ele montou as instalações para o
gado, um curral de arame e um barracão rústico para quem cuidava do gado. Francisca
levanta que, por volta de 1984, a área da fazenda Grotão foi mecanizada na maior parte,
tendo sido plantado capim andropógon.
Foi a partir daí que começou o conflito. O gado colocado por Deusdete
arrebentava as cercas das roças dos moradores, que eram feitas de madeira, e comiam as
plantações todas. Então a comunidade começou a sofrer com a escassez de comida.
Deusdete também impedia que os moradores plantassem as roças para que houvesse mais
lugar para colocar pasto para o gado. Assim, pretendia expulsar a comunidade, que a esta
época ainda tinha muitos moradores, pela falta de meios de subsistência e de perspectiva
de permanecer na área.
Aparecida: Quando Deusdete trouxe o Eurico, que o Eurico fez um barraco de palha e ele colocou o Eurico, ai já foi empombando com os moradores pra acabar as roça. [...] Quando o Deusdete chegou, montou uma estrutura para cuidar do gado e começou a impedir que os moradores da comunidade colocassem roça, o gado comia a roça. Foi ai que começou a fome! Cirilo: Nesse tempo quase não tinha arame. [...] Aparecida: Ele mandou sair. Cirilo: E nós tudo sustentando porque nascido e criado aqui, meu bisavô. Não tinha pra onde ir, era aqui mesmo. E o gado ia correndo direto. Aparecida: E mandando o povo embora. [...] Aparecida: Ai Deusdete continua nos gado. O tempo inteiro ele botando gado. [...] Ele sempre comentava, ele dizia assim que ia botar os negros pra correr porque ele tinha muito dinheiro. Na época que ele trouxe esse homem do Maranhão, esse Orivan, o Eurico começou a implicar, não foi seu Cirilo? Cirilo: Foi! Aparecida: Até com você, chegou a implicar com o Cirilo. Ai ele sempre fazia assim, ficava com um trabalhador de fora, eles trazia dizendo que era vaqueiro, uma época, pouco tempo voltava aquele, apanhava outro e trazia, pra olhar o gado.
Ao longo dos anos iniciais, os vaqueiros não ficavam na terra por causa do
conflito com a comunidade e da falta de estrutura da fazenda. Segundo a comunidade, por
ter uma vida desregrada, Deusdete logo consumiu seus recursos financeiros e, portanto,
não permaneceu muito tempo no comando das terras. Dona Francisca rapidamente assumiu
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o controle da fazenda e do gado.
Aparecida: E o Deusdete foi diminuindo recurso, foi acabando o gado, foi estragando tudo que ele era muito devasso, por meio de pedofilia, que o povo ocupava ele demais em pedofilia. Foi até que esse dito vaqueiro que ele trouxe do Maranhão, que é o sogro do Manoel, ai depois então foi embora e ele ficou rodando, e fazendo conflito, e acabando recurso, e acabando, ai teve uma época que acabou.
Segundo a comunidade, a partir da chegada destes, o gado de Deusdete e
Francisca corria direto pelas terras e os fazendeiros sempre tentavam expulsar os
moradores. Foi quando em 1984 o GETAT26 apareceu na área. Nesta época a comunidade
ainda estava toda na região, os moradores moravam em suas antigas casas. Estavam todos
ali na área, só o seu Cirilo que morava mais embaixo.
Quem conseguiu que o GETAT fosse até a área foi Antônio Dias, que era
amigo da comunidade. Seu objetivo era de titular as terras para os quilombolas e garantir
sua permanência na terra, encerrando de uma vez por todas com a pressão de Deusdete.
Segundo Antonio Dias, foi em 1975 que o GETAT iniciou os trabalhos na região. Ao ser
procurado em sua fazenda, que já era legalizada, por Paulery, fiscal do órgão, este indicou a
necessidade de que as terras da comunidade fossem legalizadas.
Ai nós fomos na casa do, primeiramente nós fomos na casa de uns parentes deles, que já fica mais afastado. Depois nós fomos na casa do... Isso foi que ano? Agora que eu não lembro. Foi em 84? Quatro ou cinco, foi nessa época. [...] Então nós fomos na casa do Manoel Mansão, nós fomos no Sabino, fomos na casa do Cirilo e fomos na casa de um outro, irmão do pai do Cirilo. Até esse pessoal ai ficava num isolamento que ouvia o barulho do carro e saia... José Anunciato. João da Cruz? Perai, do João não foi comigo. Da Germana? Foi a primeira que te falei, foi no primeiro lugar que nós andamos. É a mesma família, mas eles ficavam mais afastados. Não é o mesmo setor. E o Paulery mediu o lote deles? Nesse dia nós andava só localizando. [...] Agora a medição eu não acompanhei. Segundo Antônio Dias, a situação da terra era confusa. Muito embora Pedro
Galvão se apresentasse como dono da terra, segundo Dias,
26
Grupo Executivo de Terras Araguaia Tocantins, órgão criado pela Ditadura Militar por meio do Decreto-Lei nº 1.767, de 01/02/1980, para suceder a Coordenadoria Especial do Araguaia-Tocantis do INCRA. Era diretamente ligado a Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional e tinha o objetivo de resolver os conflitos de terra na explosiva região do Bico do Papagaio, envolvendo o Norte de Goiás, Sudeste do Pará e Oeste do Maranhão. Foi extinto pelo Decreto-Lei nº 2.328, de 05/05/1987, sendo que seu passivo foi incorporado à estrutura do INCRA.
48
Quando eu me entendi, que o Cirilo é mais velho que eu, ele já morava ai. Os pais dele, quando eu peguei ver as coisas, eles já moravam ai. Os avôs dele você não alcançou não? Conheci. Quem, a Emídia e Lourência? Agora, a Emídia e Lourência, esse pessoal não foram meus conhecidos, já tinha morrido. Mas o Antônio Cassimiro, que é o avô do Cirilo, foi muito meu conhecido. A esposa dele, Maria Lourência. Eles eram morador ali? Morador ali. O avô de Cirilo, morava mais um pouquinho aqui, só que era no mesmo... [...] eu conheço esse povo de todos esses tempos.
Conforme levantamos junto à comunidade e a documentos do
INCRA/GETAT, o trabalho do GETAT foi realizado por etapas. Primeiramente foi feito um
levantamento do local, onde os técnicos do próprio órgão mapearam as pessoas que
ocupavam a área e a extensão e localização de suas posses. Após, veio uma empresa
georrefenciar e demarcar cada lote indicado. Por fim, depois de muito tempo, cada
contemplado recebeu – ou deveria ter recebido – seu título de propriedade, que foi entregue
em Araguaína. Retomaremos este ponto mais adiante.
Os primeiros representantes do órgão a aparecer na área vieram de
Araguaína: Paulery Noleto veio primeiro e Gilmar e outro agente-fiscal que eles não se
recordam do nome vieram depois. Estes realizaram diversas visitas técnicas na região,
levantando os dados dos moradores e da área toda.
Segundo a comunidade, Gilmar não tinha relação próxima com o Deusdete e,
portanto, teve uma postura mais correta em seu trabalho. Ele chegou a dizer que seria dado
lotes para todos da comunidade. Segundo me informaram, Gilmar demarcou vários lotes
junto com os moradores e mostrou onde ficariam os mesmos.
Cirilo: Foi o Gilmar. [...] Falaram que iam medir os lotes pra cada quem. Aparecida: Ai mediram o lote pro papai, o lote pro Cirilo, o lote pro Sabino, o lote pro Zé Anunciato, o lote pra Maria Cassimiro, põem o nome do marido dela de Manoel Cruz, que é esse lote aqui, mediram pro João Varjão [João Figueira] e pro Sabino. Vamos contar os lotes que dividirão, Sabino, Cirilo, Raimundo Lourenço, Zé Anunciato, Manoel Cruz, que era da Maria Cassimiro e João Varjão, seis lote que dividiram. [...] Ai, ainda ficou sem dividir lote da Maria Antonia, que era a veia, a Francisca, que é a Chica, a Francisca Assunção, mãe do Raimundinho que morava aqui também, os filho dela que já tinha cada um sua família, Chico Cassimiro, Tereza, Manoel Patrício, Tatuzinho, Emília [...] Tudo família, morava tudo aqui na comunidade. E forante o que a gente não ta esquecido, ou alembrando, Sebastião Besouro, Isaac, Paixão, e esse já foram oh, não agüentaram a pressão, já sairam.
Mas a relação conflituosa com o fazendeiro permanecia, principalmente por
causa da proximidade de Deusdete com Pauleri. Este era, aparentemente, o responsável
49
técnico pelo serviço do GETAT27 e, segundo informado pela comunidade, desde a segunda
viagem que o mesmo realizou na área passou a fazer todas as visitas de campo em
companhia de Deusdete. Segundo Aparecida: Ai depois a intimidade dele [Pauleri] era mais
o Deusdete.
Logo após a primeira viagem de Pauleri, Seu Raimundo, que nesta época
morava na área da fazenda Grotão, foi expulso de suas terras pelo Deusdete. Este cercava
o gado e ia mudando o pasto de lugar, para pressionar a comunidade cada vez mais para
que abandonassem as terras e liberassem mais espaço para o gado e para expandir a
medição da fazenda Grotão pelo GETAT. Segundo Aparecida: Ai o Deusdete chegou lá no
carro e falou, Raimundinho, agora que vocês vão mudar daqui, tu vai lá pra cima [mais
próximo dos outros moradores, na área do córrego Chico Grande]. Depois de ser expulso
das suas terras, Seu Raimundo começou uma plantação nas terras do Zé Anunciato, mais
ou menos na área onde ficava a antiga casa da Maria Cassimiro.
Neste processo, apesar de toda a pressão, todos os lotes que foram
delimitados pela GETAT para a ocupação dos quilombolas foram ocupados pelos mesmos.
A família da Germana, quando iniciou o conflito saiu da área e foi morar na região do
córrego Pesqueiro, do lado do Damião. Ela tinha cinco filhas: Preta, Joana, Olindina, Maria e
outra que não recordam o nome. Daí o GETAT mediu e titulou um lote para eles ali na
cabeceira do Pesqueiro. Estes têm o título até hoje e a maioria deles estão enterradas por lá
mesmo. Outro que ganhou o lote foi Sabino. Este já tinha se separado da Francisca e
estava casado com a Maria Roxa.
Não obstante, três problemas ocorreram neste processo de regularização
fundiária do GETAT: nem todos os moradores membros da comunidade acabaram sendo
contemplados com seu lote; pessoas misteriosas que nunca moraram na área acabaram por
ser consideradas pelo poder público como posseiros; e, mesmo vários daqueles que o foram
inicialmente, acabaram não recebendo seus títulos.
Segundo a comunidade, nem todos os que ainda moravam na área tiveram
seus lotes medidos pela empresa que fez o levantamento inicial. Isto provocou uma saída
de pessoas do território, uma vez que estes ficaram sem perspectiva de conseguir sua terra.
Segundo Aparecida,
Os outros que não ganharam lote já foi num agüentando a pressão porque botava uma roça o gado comia, o vaqueiro, que dizia era vaqueiro implicava, todo o vaqueiro do Deusdete implicava. A Tereza foi embora, mas ainda ficaram o Sabino, o Isaac [este último sem lote medido]. Cirilo: Era, desse jeito.
27
Esta informação consta, igualmente, do Relatório Técnico 06/2005 da Unidade Avançada de Araguaína (SR 26-TO), de autoria de José de Arimathéia M. Dionízio, representante local da Ouvidoria Agrária Nacional. Trataremos do mesmo mais adiante.
50
Quanto ao fato de posseiro misterioso ter sido titulado, isto ocorreu em
relação ao conjunto de lotes (nº 184, 187, 189 e 190) destinados ao Sr. Willian Caldeira de
Paiva. Conforme a comunidade informa, este cidadão nunca morou ou exerceu qualquer
atividade na terra, sendo que ninguém o conhece. Todos os entrevistados que argúi sobre o
mesmo me disseram desconhecê-lo, a exceção de Francisca e Dermivon. Estes me
informaram que ele era conhecido da família de muito tempo e que era fazendeiro tanto na
área como em Arapoema, Ananás e Colinas. Ainda segundo Francisca, após a compra da
área da fazenda Morro Redondo, Willian nunca morou e nem fez nada na mesma, pois
naquele tempo era difícil. Por isso a fazenda foi deixada sob os cuidados dos fazendeiros
amigos.
Quando solicitei aos mesmos o contato de Willian, pois precisava entrevistá-
lo, estes me informaram que antes ele morava em Guarulhos-SP e que depois ele havia se
mudado para Florianópolis-SC. levantaram que iriam me repassar o telefone numa próxima
oportunidade. Quando os reencontrei, meses depois, e cobrei a informação, os mesmos
afirmaram que Willian tinha se mudado para o exterior e que tinham perdido o contato com
ele.
O mistério em volta de tal figura aumentou ao observamos os documentos
que demarcam o início e o fim da propriedade de Willian sobre a fazenda Morro Redondo: o
processo de regularização fundiária dos quatro lotes pelo GETAT e a escritura de sua venda
em 2003 para Marcelo Carvalho da Silva e sua esposa Daniela Souza carvalho da Silva
(conferir documentos abaixo). Em ambos, parece que confirmando a versão da comunidade,
em momento algum aparece a assinatura de Willian demonstrando que ele nunca morou ou
se quer apareceu na área. Nas duas oportunidades este foi representado por Francisca e é
a sua assinatura que consta do processo de titulação e é o nome desta que foi lavrado pelo
escrivão e atestado pelo oficial do cartório, como procuradora de Willian, na escritura pública
de compra e venda.
Estes elementos nos induzem a pensar no indício de uso de um laranja, por
parte de Deusdete e Francisca, para regularizar para si terras públicas que estavam
apossadas por outros. Esta idéia se reforça na medida em que posteriormente estas
mesmas terras foram, mais uma vez por intermédio de Francisca, repassadas para seu
genro e sua filha (que a época da regularização era menor de idade).
51
Processo de regularização fundiária dos lotes de Willian pelo GETAT - capa e 2 páginas com assinatura
52
Escritura de venda da fazenda Morro Redondo de Willian para Marcelo
53
54
Em relação aos lotes inicialmente levantados para membros da comunidade e
que posteriormente foram destinados aos fazendeiros, levantamos a história de três deles:
os lotes 186, 187 e 189, à época os trabalhos do GETAT respectivamente na posse de
Sabino, Cirilo e Raimundo. Estes lotes foram, de forma misteriosa, destinados à Deusdete (o
primeiro) e a Willian (os dois últimos).
Ao indagarmos a Francisca sobre a titulação do lote 186 para Deusdete, esta
nos afirmou que Sabino vendeu o lote para Deusdete na época da regularização pela
GETAT.
Não, mas aquele outro lote é porque ele comprou. Ele comprou de quem? Ele comprou de Seu Sabino. Quando que ele comprou? Ele comprou na época em que eles mediram, que na época que o título saiu já não saiu mais no nome dele, já saiu no nome do Deusdete. Mas você tem o documento da compra? Não, naquela época eu não sei assim de nada, como é que foi, como não foi. Só sei que ele [Deusdete] comprou e pagou e ele [Sabino] saiu e foi embora. Quanto aos lotes destinados a Willian, Francisca alega que este igualmente
comprou a terra de Pedro Galvão, na mesma época em que Deusdete comprou a fazenda
Grotão do mesmo proprietário. Francisca alega que Willian andou pela terra na época da
compra e que depois ele se mudou, deixando a terra aos seus cuidados. O mais estranho
nesta história é que o alegado dono da terra, Willian, acabou por comprar de novo os lotes,
desta vez dos moradores. No entanto, como tudo mais que envolve esta obscura figura,
mais uma vez ele não realizou esta transação de forma direta, mas sim por meio de
Deusdete. Segundo Francisca:
Na época [da regularização pelo GETAT] foi assim, todo mundo que tinha ai venderam, inclusive Seu Cirilo vendeu o lote dele. Mas vocês têm documento? Não. Ele vendeu na época, o Deusdete sabe direito o preço. Quando foi pagou ele saiu. Ele saiu ai da fazenda e foi morar no Seu Damião, que é onde falei ali, no Seu Damião. [...] Ele morou lá um ano. Ai ele encontrou Deusdete um dia, tava muito triste que não tinha como botar roça, não tinha como fazer isso, como fazer aquilo. Ai o Deusdete falou que: não, se você quiser voltar só com a velhinha pra lá, pode voltar. Ele trouxe na caminhonete dele, trouxe ele e deixou lá. E ele ficou quietinho lá. Esse tempo todo ele ficou quieto lá no canto, eles moravam tudo ali, pegadinho naquele cantinho ali, naquele cantinho lá que acho que você já foi lá. [...] mas eles moravam tudo ali, tudo ali pertinho... Tudo em volta [do Cirilo]?
Damião Coelho Rodrigues, que é quem acolheu Cirilo na época em que ele
se mudou de sua casa, contesta esta versão de Francisca. O mesmo afirma que Cirilo
55
apenas morou lá por um ano para se proteger dos ataques e ameaças de Deusdete. Assim
que a situação melhorou, Cirilo retornou a sua casa, que era sua de direito, a qual alega
nunca ter vendido. Damião conta ainda que este retorno aconteceu sem que fosse pedida
qualquer permissão a Deusdete.
Observando os dois processos referentes a estas titulações,28 ficam evidentes
dois elementos. Inicialmente, por meio do levantamento topográfico realizado por uma firma
contratada, aparentemente em 1984,29 os três lotes foram efetivamente levantados para os
posseiros que neles habitavam e produziam, os atuais quilombolas. Isto pode ser observado
nas duas listagens que constam de ambos os processos (conferir cópias abaixo) onde
aparecem os nomes destes. Isto reforça o depoimento dado pela comunidade de que no
início do processo foram efetivamente indicados os lotes para os ocupantes certos.
Após este levantamento, em 1985, quando Paulery visita a área e elabora o
relatório de vistora de campo dos lotes, estas passam a constar como sendo ocupadas pelo
fazendeiro e pelo possível laranja (conferir cópias abaixo). Pode-se observar nestes laudos
que Paulery indica a existência de casa de moradia de ambos os ocupantes por ele
levantado, o que é contestado pelos quilombolas. Ao andarmos pela área não encontramos
qualquer vestígio da existência de tais estruturas ou mesmo de seus restos. Para além disto,
ao conversarmos com a própria Francisca, preposta do suposto posseiro, esta foi convicta
em afirmar que Willian nunca morou na terra e jamais exerceu qualquer atividade na
mesma, até porque ele tinha outras fazendas no estado para cuidar.
O interessante de tais documentos é que mesmo procedendo à troca de
ocupantes e de informações nos referidos laudos, seu autor acaba por se contradizer e
indicar mais de uma situação de campo. No laudo do lote 186, assinado por Paulery em
20/04/1985, onde é trocado o nome de Sabino por Deusdete, seu autor indica que o lote 187
pertence a Cirilo Araujo de Brito e o lote 190 pertence a Manoel Cruz da Silva. Já no laudo
dos lotes 184, 187, 189 e 190, assinado por Paulery em 26/08/1985, posteriormente ao
laudo anteriormente discutido, os lotes 187, 189 e 190 aparecem como sendo ocupado por
Willian e não pelos nomes indicados no documento anterior. Da mesma forma, neste laudo
não consta o nome de Deusdete como posseiro do lote 186 (divisa sul da fazenda), mas sim
o de Sabino (conferir cópias abaixo). Levanta-se que mesmo tendo sido assinados em datas
diferentes, o levantamento de campo destes lotos vizinhos deve, muito provavelmente, ter
ocorrido ou no mesmo dia ou em dias subseqüentes.
Consultando outros processos da mesma época, constatei que no processo
do lote 183, a fazenda Grotão destinado a Deusdete, Paulery igualmente se contradiz e
28
Lote 186 no processo nº 21452.000190/85-43; lotes 184, 187, 189 e 190 no processo nº 21452.000169/85-57. 29
Nos processos não consta a data deste levantamento topográfico, mas consta que este serviço foi aprovado pelo documento de nº 668-C/84, donde se deduz o ano de sua elaboração.
56
informa que o lote 189 pertence a Raimundo José de Brito, e não a Willian, como acima
descrito. Deste modo, os documentos, os depoimentos da comunidade – e até de Francisca
de uma forma involuntária – acabam por confirmam que Paulery tem alguma
responsabilidade pela troca de ocupantes dos lotes de posseiros que foram, enfim,
destinados a fazendeiros.
Por fim, conforme podemos observar em ambos os processos, esta
disparidade de informações sobre os ocupantes não passa despercebida pelo Grupo de
Cartografia e pelo Setor de Topografia da Unidade de Araguaína do GETAT. Estes setores
constatam a falha, mas em vez de providenciar averiguação dos fatos, acabaram por
concluir – ou foram induzidos a tanto –, sem qualquer prova apresentada aos autos, que
houve falha da firma executora, no caso do lote 186; e que ocorreu venda de terra, no caso
dos lotes 184, 187, 189 e 190. Deste modo, a injustiça que poderia ter sido evitada ainda na
década de 1980, com a regularização fundiária de pelo menos uma parte do território para a
comunidade quilombola, acabou por ser perpetuada pelo próprio poder público que agiu em
benefício dos fazendeiros, acabando por produzir os efeitos atuais.
Processo nº 21452.000190/85-43, referente lote 186 Listagem de posseiros e respectivos lotes resultante do levantamento topográfico de 1984
57
Parte do laudo de vistoria apontando outro ocupante e estruturas inexistentes
58
Documento do processo em que se constata a troca de nomes, mas se atribui esta troca a uma falha
Processo nº 21452.000169/85-57, referente aos lotes 187, 189 e outros
Listagem de posseiros e respectivos lotes resultante do levantamento topográfico de 1984
59
Parte do laudo de vistoria apontando outro ocupante e estruturas inexistentes
60
Documento do processo em que se constata a troca de nomes, mas se atribui esta troca à venda
Laudo do lote 183 apontando que o lote 189 pertence a Raimundo José de Brito e não a Willian
61
Foi deste modo que alguns dos contemplados com lotes medidos pelo
GETAT acabaram ficando sem receber os títulos que lhes era devido. Cirilo, que a época
desconhecia o fato de que seu lote havia sido destinado a Willian, conta que quando soube
que o GETAT estava entregando os títulos, se preparou para ir tirar os documentos e pegar
seu título na cidade. No entanto, nesta época, conforme relatado por Aparecida e Seu Cirilo,
Deusdete o procurou e afirmou que:
Aparecida: O Deusdete chegou e falou: Cirilo, se for tirar documento, se tu for na rua, eles vão te prender que vocês são terrorista, que terrorista é quem não tem documento. Ai ele ficava com medo... Cirilo: Com medo de tirar documento. E de onde ele tirou esta idéia? Aparecida: e quem é que sabe, ameaça... Cirilo: Ameaçando. Aparecida: O vereador [Sebastião Sebrai, de Filadélfia] sabe por que ele documentou, pelo menos quando ele chegou aqui nós tinha medo até de vereador. Criança não estudava, rodagem de carro não tinha. Tinha um jipe velho do Deusdete que vinha pra cá...
Segundo a comunidade, em 1989, após o processo de titulação da área pelo
GETAT, Deusdete colocou um pistoleiro armado que ameaçou a todos de despejo. Contam
que inicialmente a maioria resistiu, mas que este acabou correndo atrás de Sabino, fazendo
com que o mesmo se mudasse para outro local. O processo de pistolagem acaba por se
intensificar até que Deusdete consegue expulsar cerca de metade da comunidade que havia
resistido na época do GETAT. Segundo Aparecida, como sobraram poucos na área,
Deusdete acabou por acalmar, porque ele achou que seria fácil controlar porque com
poucos, agora daria conta.
Sobre este período procuramos conversar com algumas pessoas que
freqüentavam a região, para saber se era verdade o argumento de Deusdete e Francisca de
que a comunidade vendeu e saiu, tendo retornado depois. Para além dos depoimentos mais
acima levantados, que desmentem esta versão, entrevistamos dois agentes públicos da
área de saúde, que devido à incidência de doença na família, sempre os visitavam.
Em Filadélfia conversamos na Secretaria de Saúde do Município. Dona Maria
das Graças Alves Pontes, visitadora sanitária e servidora da FUNASA, se lembra
claramente de ter freqüentado a casa dos membros da comunidade, embora não se recorde
dos nomes de todos. Ela fez um trabalho de saúde lá desde 1981, porque era um setor, um
reduto de hanseníase. Ela se lembra que tem uns 20 anos que Cirilo e outros tratam com a
equipe. Perguntada se nesta época tinha muita gente no território, ela responde
afirmativamente, ao ler os nomes das pessoas da comunidade, ela disse se lembrar da
maioria: um bocado deles eu lembro. Ela deixou de visitar a comunidade no ano de 2000,
62
pois assumiu a direção do órgão em Filadélfia e nesta data ainda tinha muita gente na área.
Salomão Pereira da Silva é um antigo servidor da SUCAM, hoje na FUNASA.
Ele trabalhava em toda a região do Bico do Papagaio desde 1972 e fazia o combate à
malária, borrifando veneno para mosquito em todas as casas da zona rural. Em 1986 ele se
fixou em Filadélfia, trabalhando em toda a região do município. Sobre a comunidade, este
afirma que trabalhou lá e conhecia todos. Foi Salomão, com a equipe de saúde da época,
quem descobriu que ali tinha problema de hanseníase. Para tratar esta doença e para
borrifar o veneno nas casas, o acompanhamento a saúde dos moradores passou a ser
constante.
No máximo de dois em dois meses eu passava, perfeitamente. Que quando eu trabalhei ali, naquela beira de Gameleira, por ali, muito... De 86 até quando que o Senhor percorreu lá... de dois em dois meses? Até... de 86, eu trabalhei por ali, [...] até 97 por ali a gente rodava. De dois em dois mês, de quatro em quatro mês. [...] Então você conhece aquele povo todo que mora lá? Quando eu iniciei trabalhar nesse município, que passei por lá, já eram moradores velhos. Antigos... que aquelas casinhas lá
O segundo período dos conflitos e o despejo da terra
O conflito entre Deusdete, Francisca e a comunidade nunca se encerrou.
Após o processo de regularização da terra pelo GETAT, com a definição fundiária favorável
aos fazendeiros e com a comunidade ainda ocupando a maior parte da fazenda Morro
Redondo e os poucos e minúsculos lotes que lhes havia sobrado no processo, o conflito se
manteve na mesma escala até o início do século XXI. É a partir deste ponto que tem início a
grande confrontação pela disputa final da área.
Como a calmaria antes da tormenta, tudo se inicia com dois eventos
anteriores ao conflito, prenunciando-o e demonstrando toda a ambigüidade deste processo:
a moradia na “casa da sede” e o trabalho de membros da comunidade como vaqueiro de
Francisca.30
A moradia na “casa da sede” se inicia dois anos após o casamento de
Aparecida e Raimundo. Ocorre que o costume da comunidade é de que quando um casal se
forma, eles escolhem um local dentro do seu território e fazem a casa. Neste sentido, em
2001 eles construíram a casa onde atualmente se localiza a sede da fazenda Grotão. O filho
mais velho deles nasceu lá e a família morou até o início da fase mais radical do conflito, em
2003, quando foram expulsos da mesma.
30
Segundo relatos da comunidade, o uso do gado para destruir as plantações da comunidade e forçar sua expulsão pela fome foi uma das principais armas de Deusdete e Francisca contra os quilombolas. Portanto, é no mínimo contraditório que Raimundo e Aparecida tenham aceitado trabalhar para a fazendeira, exatamente cuidando do gado da mesma.
63
Segundo a comunidade, a casa foi feita pelo casal, com 15 mil palhas e com
parede de taipa. Ou seja, era um barraco típico da forma de moradia da comunidade. Esta
casa foi construída perto do curral, que era a única coisa que tinha na área e que era da
Francisca. Este era um curral antigo, feito de arame liso pelos fazendeiros.
Francisca levanta que esta casa pertencia a ela, pois foi a mesma quem
mandou construir e sempre que vinham na terra era ali que ficavam. Aparecida argumenta
contra a pretensão de Francisca de que foi ela que construiu a casa e de que aquela seja a
sede da fazenda, uma vez que a casa era da taipa e coberta por palha. Para ela, como é
que uma fazendeira iria construir uma casa assim para ser sua sede, aquela casa fui eu
quem construiu.
Nesta época Raimundo e Aparecida já haviam se tornados evangélicos – o
único casal desta denominação religiosa na comunidade – e, portanto, eram regularmente
visitados por Sebastião Batista dos Santos, Presbítero e Vice Pastor da igreja Assembléia
de Deus CA de Seta, de Bielândia, posição esta assumida em 2003. O mesmo já conhecia a
comunidade desde 1982, quando morava perto da mesma, na fazenda Santa Luzia, e ia às
festas deles, antes de se tronar evangélico.
Ele levanta que Aparecida, Raimundo e Cirilo tornaram-se evangélicos em
1995. Desde então, ele tem dado assistência espiritual a família e tem ido à casa de
Aparecida mensalmente, às vezes quinzenalmente e por fim, semanalmente, para realizar o
culto. Assim, o mesmo alegou já ter conhecido todas as casa em que a mesma morou no
território. Inquirido sobre a disputa entre Francisca e Aparecida pela posse da casa, ele
disse que:
Depois, eles foram lá pra Sede lá. E aquela casa da Sede, quem foi que construiu? Ali foi o Raimundo. Foi o Raimundo que construiu aquela casa? Você viu ele construindo? Vi! Eu conheci aquilo ali, só tinha um barraquinho ali na Sede. Ai, lá... quando ele mudou pra lá era um barraco, não tinha nada. Ai depois quando ele mudou pra lá ele fez aquela casa. E esse barraquinho quem é que fez? Você sabe? Esse barraquinho não. O barraquinho eu não sei. Quando eu tive lá já tinha. Mas ai você viu o Raimundo mais a Aparecida construírem a casa? A casa, foi aquela casa..
Por fim, o Presbítero levantou que, por ter uma convivência de longa data com estes
membros da comunidade, sempre testemunhou os dramáticos relatos dos mesmos sobre as
ameaças sofridas na mão de Francisca e Dermivon.
Em 2001, quando ainda moravam na casa posteriormente disputada,
Raimundo e Aparecida acabaram por trabalhar para Francisca. O casal alega que não eram
64
empregados da fazendeira, mas que foram procurados por ela e acertaram um acordo para
traquejar o gado da Francisca a troco de pagamento nas crias. De cerca de 100 cabeças de
gado que eles cuidaram durante três anos, ganharam três bezerros por ano, inteirando nove
ao todo. Para além deste pagamento irrisório, Raimundo levanta que Francisca o proibia de
trabalhar fora, na diária, para outros fazendeiros.
Foi por volta de 2003, quando ainda não havia sido totalmente rompido o
vínculo entre Francisca e Raimundo e Aparecida, que estes relatam que foram procurados
pela fazendeira e seu filho Dermivon Souza Luz (Pelé) para um acerto sobre a terra.
Segundo estes, Francisca levantou que estaria passando as terras para os filhos, para que
estes pudessem vender, e estaria demarcando e transferindo 18,7267 hectares31 para Seu
Cirilo. Esta “doação” seria uma forma de garantir que o restante da terra das fazendas
Grotão e Morro Redondo fossem liberados pela comunidade para a venda.
O acerto não se concretizou porque foi levantado pelo casal que pelo menos
Seu Raimundo teria igual direito. O filho da fazendeira alegou que este não tinha direito
nenhum porque morava e trabalhava na terra do José de Anunciato, fato contestado por
Aparecida. É daí que se encerra o aparentemente curto e calmo período de convivência e se
inicia a fase mais violenta da disputa.
De um primeiro momento, a comunidade levanta que as ameaças retornaram,
com pressão dos fazendeiros para que todos saíssem da área. É neste momento que,
contando com o apoio do vereador, Sebastião Sebrae, de Filadélfia, segundo a comunidade
em meado de 2006, Cirilo e Sebastião, na primeira vez e segunda vez e Cirilo, Aparecida e
Sebastião, na terceira vez, se dirigiram a Brasília para denunciar e reiterar toda a situação
de esbulho de terras e violência sofrida por eles na comissão de Direitos Humanos da
Câmara de Deputados.
A partir daí a casa de Seu Raimundo, com todos os pertences e sua roça de
abacaxi foram mais uma vez totalmente queimados e ele acabou tendo que se mudar. Por
fim, o acordo da criação de gado foi rompido e Raimundo e Aparecida foram expulsos da
casa em que moravam que foi, posteriormente, incendiada, ainda com muitos pertences
dentro. Por fim, estes alegam que nunca receberam o gado todo que era seu de direito,
porque na época da expulsão de sua casa este gado ficou com a Francisca que nunca
entregou a parte deles. Somente uma parte foi posteriormente pega pelos próprios.
Ao ser questionada se tinha trabalhado para a Francisca, Aparecida
respondeu que:
Não, não trabalhava e trabalhava. Porque quando nós fizemos a casa eles
31
Segundo a comunidade eram 5 alqueires (24,20 ha). Este é o valor informado na petição inicial do processo de reintegração de posse movido por Daniela e Marcelo contra a comunidade.
65
tavam com uma quantidade de gado até boa. Ai ele apareceu, antes de começar o conflito, apareceram: Aparecida e Raimundo, vocês olham o meu gado, campeia o meu gado que eu pago na cria pra vocês. Mas a casa fui eu que fiz. Tudo bem, ai concordamos. Ai, o que nós ganhava por ano, nós ganhamos três bezerros, e isso passou três anos nós olhando este gado. E esse gado, ela tomou. No dia que o filho dela me expulsou de dentro de casa, ela tomou esse gado. Os três? O gado, ao todo, parece que foi nove gado. Que vocês ganharam? Ganhamos aos três anos... Já pensou... Nove gado... E o gado tava ferrado, nós fez uma marca e nós não sabia que precisava registrar lá... Onde faz o GPA do gado, tudo bem. Nós fomos e fizemos a marca e marquemos o gado, a marca tai. Ai o filho dela [Pelé] falou: pode sair correndo. E o gado? Ele falou: o gado eu não vou entregar para vocês, que o gado ta ai no meio deste rolo de gado. Tá bom. Fizemos a casa, quando nós fez a casa daonde nós foi tirado, com o despejo, os gado era solto no campo. Ai um dia eu resolvi mais meu esposo, foi quando nós tava com necessidade de carro, nossa filha sofreu um acidente e nós gastamos sem ter, ai nós matamos duas vacas. Pegamos o gado na nossa porta, a vaca ferrada, matamos e comemos o gado e guardamos o couro e a marca. Ai o que foi que ela fez, ela fez um vuvuvu que nós tava roubando o gado. Peguei, apresentei o couro, levei lá pro juiz, mostrei pros policiais, pro delegado, ta aqui o couro da minha vaca. E as outras, do gado que resta, ainda resta parece que é quatro gado. Até hoje, não sei o paradeiro deles. Também tem um cavalo, também que eu não sei o paradeiro dele, também deram fim.
Além disto, o lote de Seu Cirilo foi medido sem qualquer acompanhamento do
mesmo ou de seus parentes. Após a medição, Dermivon procurou Cirilo para que este
assinasse o documento de transferência da área, no que o mesmo se recusou a fazer, por
não saber ler e desconfiar do que estava escrito, além do fato de que não assinaria nada
que vinha da família dos fazendeiros, pois sabia que acabaria perdendo o direito a sua terra.
Para além disto, Seu Cirilo levanta que a área oferecida era imprestável, toda formada por
carrasco, terra ruim, e que nem água tinha.
Um dos marcos utilizado na medição do “lote do Cirilo”, realizada por Dermivon
66
Nesta época, com os fazendeiros revoltados com a denúncia feita em
Brasília, a principal ameaça a comunidade passa a ser Dermivon que, conforme relato da
comunidade, as vezes andava armado pelo território. Segundo Aparecida, este sempre se
referia que seu objetivo era tirar os negros dali. Esta violência toda acaba por expulsar
definitivamente os últimos membros da comunidade que ainda ocupavam o trecho de seu
território que se localizava na fazenda Grotão.
Assim, até por medida de segurança, todos acabam por morar próximos,
ocupando um trecho que se localizava tanto na fazenda Morro Redondo, de propriedade de
Daniela Sousa Carvalho Silva e Marcelo Carvalho Silva, respectivamente filha e genro de
Francisca,32 como no lote que foi titulado para Sabino e onde Seu Cirilo sempre morou. Na
medida em que a comunidade foi definitivamente expulsa da fazenda Grotão, ela se
concentrou na maior parte da fazenda Morro Redondo. Logo, seus proprietários não tinham
a posse da mesma, como posteriormente alegado no processo judicial de despejo da
comunidade. Retomaremos este ponto mais adiante.
Como resultado da denúncia feita em Brasília contra Deusdete e Francisca, a
Ouvidoria Agrária Nacional do MDA foi acionada para resolver o problema. Deste modo,
José de Arimathéia M. Dionízio, representante deste setor na Unidade Avançada de
Araguaína, o Escritório Regional do INCRA ligado a SR 26-TO, foi solicitado a ouvir os
denunciantes e esclarecer os fatos para Ouvidoria.
Arimathéia esteve na comunidade em dezembro de 2005. Aparecida levanta
que estava em sua casa na época, localizada perto da beira do João Aires.
O Arimathéia apareceu lá, na parte da manhã, é... mais outro homem de carro, ai e ele disse que tava indo fazer uma visita ao meu pai e ao Cirilo. Ai a gente conversa e ele foi fazer uma visita ao, mas ele não chegou a visitar o Cirilo, só o meu pai. O seu pai morava aonde? O meu pai morava aqui na beira do João Aires, Mais ou menos da casa de onde eu tava na casa de meu pai um quilômetro e meio. Mas também dentro da área do grotão? É... Não. Eles dizem que não é dentro da área, mas pra nós é, que é tudo uma coisa só. Pra Chica, que apresenta este documento, ele diz que estamos na área de má fé... Como eles apresentam. Agora pra nós, não. Lá era a roça de mandioca do meu pai. Ai Arimathéia tava, fez uma reunião com a gente lá, foi só eu que meu pai não tava. Ai ele mandou chamar o Cirilo e na hora a fazendeira chegou... A Francisca? Foi, a Francisca chegou lá. Ai ele conversa, perguntou quantos anos a gente morava lá, que tempo, quando o Cirilo tinha negociado com ela. Cirilo falou que não. Ai começaram a contestar e o Cirilo falou que não. Ai ela falou pro Arimathéia que meu sogro morava em Filadélfia e não sei aonde, em Colina.
32
Na medida em que a comunidade foi definitivamente expulsa da fazenda Grotão, ela se concentrou na maior parte da fazenda Morro Redondo. Logo, seus proprietários não tinham a posse da mesma, como posteriormente alegado no processo judicial de despejo da comunidade.
67
Apresentou tanto lugar. Meu sogro falou pra ela: fala a verdade, a senhora está é mentindo que eu não morava lá, toda a vida ali, ali e ali. Falou, tudo bem, ai passou. Logo depois, o Arimathéia, na audiência, Arimathéia foi ser testemunha da Francisca, que ele apareceu sendo testemunha da Francisca e contando que a fazenda só tinha gado de corte, que tinha pastagem. E tai gente, eu só conto a verdade. Qualquer pessoa que visitar a área, qualquer outra pessoa que pode vir ver a área, não existe pastagem. O Vereador Sebastião tava lá? Tava, o Sebastião veio com ele. Veio com ele, o Arimatéia. E ele, o Sebastião, veio junto? Veio. Agora eu não sei, eu acho que ele já pegou o Sebastião na Caieira, que ele tava no meio da estrada, já vindo pra visitar nós.
Perguntada se já tinha visto o relatório que o Arimatéia fez, Aparecida
confirma. Ela disse que viu somente na cópia do processo.
Ele conta, no relatório do Arimathéia, que meu pai tá novato, numa barraca. Ele teve numa barraca do meu pai deste tamanho aqui, dessa cozinha aqui que cabia apenas a rede dele, porque isso foi na época da queimada da casa dele. Queimaram noventa reais, queimaram o barraco dele, queimaram 40 mudas de abacaxi, queimaram um monte de coisa lá do meu pai, as roupas tudo. A Francisca que fez mesmo. Ai nós fez esse barraco na época que ele veio e ele encostou aqui perguntando por moradia nova e tal... E ele ficou quanto tempo na casa de vocês? O Arimathéia chegou por volta de umas 10 horas, eu acho. Volta de umas 10 horas. Foi embora umas 4 da tarde. Ai ele não veio mais. Ele só foi na sua casa? Em nenhum lugar mais? Nenhum lugar, ele só foi no barraco do meu pai. Que era lá perto de sua casa, quantos metros? Um quilômetro e meio. Ele não foi nas outras residências. O seu pai ele não trouxe? Não ele não trouxe o meu pai, ele só foi lá onde meu pai. Ai mandou recado para meu sogro ir. Ele não reuniu todo mundo? Não, ele não reuniu todo mundo, só quem tava era meu sogro na reunião. Nenhum daqueles outro pessoal não tava. Que realmente as casas era tudo perto, Manoel, filho do Cirilo. Ele só chamou o Cirilo, só reuniu o Cirilo.
Segundo Aparecida, eles informaram a Arimathéia de que além da denúncia
realizada na Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Deputados, em Brasília,
também denunciaram a Polícia Federal e que o problema já estava na justiça estadual do
Tocantins. Além disto, Aparecida alega que nunca assinou nada para o Arimatéia afirmando
que trabalhava para a Francisca. Ela afirma que nunca teve carteira assinada e nenhum
outro vínculo empregatício, apenas que olhava o gado da Francisca a troco das crias.
A leitura do relatório produzido por Arimathéia (conferir cópia abaixo) traz
alguns elementos interessantes para nos debruçarmos numa rápida análise. Em primeiro
lugar, a comunidade que remanescia na área é totalmente encoberta, sendo destacado que
existem somente duas residências na fazenda: a do casal Raimundo e Aparecida e a de
68
Seu Raimundo. Nem mesmo é relatada a residência de Seu Cirilo, citado no documento
como presente na reunião que ocorreu na área da fazenda e que gerou o relatório.
Em segundo lugar, o relatório se refere aos lotes 186, 187 e 189 demarcados
pelo GETAT que, conforme denúncia feita pelos quilombolas e investigada por Arimathéia,
foram medidos para Sabino, Cirilo e Raimundo, membros da comunidade, mas titulados
para Deusdete e Willian, fazendeiros. No entanto, tendo como base os processos do GETAT
relativos a tais lotes, Arimathéia, ao se referir a tal fato, apenas cita os laudos de vistoria
realizados por Paulery Noleto, onde consta que à época os posseiros dos referidos lotes
eram os fazendeiros. Neste sentido, o autor do relatório omite totalmente as partes dos
mesmos processos consultados que confirmam a versão dos denunciantes, pois
explicitamente fazem referência ao fato de que os lotes foram inicialmente identificados
como de posse de uns, mas posteriormente titulados para outras pessoas. E foi exatamente
isto que a comunidade afirmou na denúncia em Brasília e na reunião com Arimathéia.33
Em terceiro lugar, é no mínimo estranho que um relatório produzido pelo
representante local da Ouvidoria Agrária Nacional, com o objetivo de esclarecer uma
denúncia feita por posseiros, de violência e esbulho de terra realizado por um fazendeiro,
após contextualizar o problema, acabe por apresentar quase que exclusivamente a versão
dos fazendeiros. Como pode se observar no terceiro parágrafo da terceira página do
documento, logo após “Este fato levou-nos a ouvir as partes envolvidas:”, Arimathéia
apresenta uma única linha com a fala dos denunciantes: “os posseiros dizem que não
venderam as suas posses para ninguém”, enquanto logo após seguem exatas 32 linhas com
a versão dos fazendeiros: “o Sr. Deusdete Alves da Luz nos disse que...”.
Em quarto lugar, o elemento mais estranho que pudemos visualizar em toda a
peça técnica produzida por Arimathéia é a sua conclusão. Mesmo tendo permanecido na
área poucas horas, este afirma que “Não constatamos clima de violência nas fazendas
grotão e morro redondo”. A partir daí Arimathéia, mesmo tendo sido designado para
investigar a violência e o esbulho de terra promovido pelos fazendeiros contra os posseiros;
conclui não existir qualquer litígio, conflito, esbulho, ameaça ou qualquer tipo de agressão
ao direito de posse exercido por Deusdete, Francisca e Dermivon em suas fazendas. Uma
inversão total de suas atribuições.
Por fim, Arimathéia não poderia se furtar a nos brindar com a idéia de que a
denúncia feita pela comunidade é inconsistente e vazia, sendo fruto de grande
desconhecimento da realidade, assim como de manipulação por parte de terceiros. Em nada
nos espanta que este seja exatamente o mesmo discurso apresentado por Francisca e
Dermivon, quando com eles conversamos sobre os mesmos fatos.
33
Estes eventos foram acima descrito.
69
Cópia do relatório elaborado por Arimathéia (4 páginas)
70
71
Segundo pudemos perceber, o único ponto positivo da visita de Arimathéia a
área é que o mesmo afirmou perante Francisca e Dermivon que Seu Raimundo, assim como
Seu Cirilo, igualmente tinha o direito de propriedade adquirido pela via do usucapião. É a
partir daí que os fazendeiros mudam seu discurso e passam a afirmar que garantiriam o
direito de ambos. No entanto, diante da fala de Aparecida de que os demais membros da
comunidade igualmente teriam o mesmo direito, pois haviam nascidos na terra, este nada
falou a respeito.
De acordo com os quilombolas, o conflito fica mais intenso exatamente a
partir dos eventos da denúncia e da visita de Arimathéia. É então que, em novembro de
2006, o casal proprietário da fazenda Morro Redondo, Marcelo e Daniela, acaba por entrar
com um processo de reintegração de posse contra Raimundo, Aparecida e toda a
comunidade, como se fossem eles os invasores da área. Este processo correu na justiça
estadual por dois anos, até seu dramático desfecho em 08/10/2008, quando foi realizado o
violento despejo de 10 famílias da comunidade, por força de decisão judicial.
Francisca, falando sobre a denúncia de invasão da fazenda constante na
inicial do processo, levanta que somente os dois velhos moravam na terra, e que os demais
moravam e trabalhavam fora, em outras fazendas.
Tudo em volta lá [do Cirilo] que eles moravam. Assim, porque os filhos dele saiam. Por exemplo, o Raimundo e a Aparecida moraram cinco anos aqui comigo, né. Foram vaqueiros, conferiam a fazenda. E eles eram vaqueiros assim, saia de uma fazenda e ia pra outra trabalhar, né. Não ficavam definitivos. O outro filho dele, o Manoel, morava em Filadélfia. Inclusive tem a casa deles lá em Filadélfia. O Tonho, que é aquele deficiente, também trabalhava nas fazendas, saia de uma ia pra outra. [...] O Raimundo Buxinho, apelido que todo mundo conhece ele assim, também trabalhava, morava e trabalhava nas fazendas. [...] E assim eram só eles lá. Agora tem três anos que eu não sabia, eles estavam morando aqui, Raimundo e Aparecida estavam morando aqui,
Aparecida levanta que somente ela e Raimundo eram chamados para as
audiências. Eles participaram umas seis vezes e mais de uma vez levaram várias
testemunhas para falar, mas estes nunca foram ouvidos pelo juiz, que somente ouviu as
testemunhas dos fazendeiros. Segundo esta relata, durante todo o tempo foram
pressionados pelo Juiz, pelo Procurador, pelo Defensor Público e pela Francisca para
aceitar um acordo nos seguintes termos: seriam demarcados 20 alqueires (96,8 hectares),
sendo 10 para o Seu Cirilo e 10 para Seu Raimundo34, ficando toda a comunidade dentro
desta área.
O objetivo era, mais uma vez, que a demanda acabasse com a entrega de 20
34
Somente relembrando, antes de o conflito ser judicializado, o direito de seu Raimundo não era reconhecido pelos fazendeiros.
72
alqueires para Raimundo e Cirilo, e que Francisca e seus filhos ficassem com o restante da
terra, segundo a mesma me adiantou depois, com o objetivo de venda. Segundo Aparecida:
Eu falei, não! Faço acordo de jeito nenhum. Nós nunca demos, nós nunca vendemos, nós nunca empatemos pra ninguém. Assim doutor, nós somos remanescente de quilombos. Doutor Edson e doutor Paulinho, que era o juiz da Comarca disse que isso não vale nada não minha filha. O negócio de quilombola não vale nada não. Se você não fazer acordo com ela você vai se rodar depois porque vocês fica quase a vida toda neste conflito e o tempo vai andando e o processo vai andando. Eu falei, deixa andar doutor, deixa andar. Vocês não faz acordo? Não! Ai o juiz me chamou particular no gabinete: faz acordo nega, acaba com esta briga, não é bom, dez alqueire pro Seu Raimundo e dez pro Cirilo? Eu falei, Doutor, a nossa família é muito grande, como é que nós vamos viver de 20 alqueires. Não faço acordo não. [o Juiz] Não faz não, né, então o processo vai andar. Ai foi a raiva bruta dele, o acordo. Porque eles realmente me chamaram, mais o Raimundo, foi pra este acordo. Nessas audiências era cutucada até do juiz, até do defensor público pra mim fazer acordo. Todo mundo me cutucando. Defensor público me chamou, quando eu falei que não fazia acordo, Doutor Gustavo André, me chamou lá [...] na última audiência, ai ele falou assim pra mim, pra mim e Raimundo. [o advogado] Vocês não fizeram acordo não, né? Não doutor Gustavo, não vai dar este acordo. Porque que eu vou fazer este acordo com ela, ela nunca comprou de ninguém, como é que ela quer a nossa terra? [o advogado] E depois agora é o seguinte, nem deus do céu vai empatar o julgamento que juiz vai fazer. Agora só vai dar a justiça. E vocês vão ganhar menos de 20 alqueires. Nem deus do céu vai empatar o julgamento. Naquilo eu já sai dali angustiada, já chorando, mas eu falei: não vou fazer acordo com a fazendeira de jeito nenhum.
Dermivon confirma que durante todo o tempo do processo eles ofereceram
este acordo para a comunidade, mas que Aparecida não aceitou, pois era gananciosa e
desejava ficar com a terra toda. Para o mesmo, estes deveriam ter se contentado com os
lotes destinados pelo GETAT para cada um e deixado o restante da terra para sua família.
Por ironia, os lotes aos quais este se referia eram os que foram desviados pela sua família e
nunca foram titulados aos efetivos posseiros.
Antes da sentença o Juiz designou um Oficial de Justiça para levantar na
área se tinha alguma habitação antiga. Segundo Aparecida, este chegou a ir a poucas casas
e, por uma estranha coincidência, apenas nas mais novas. Outro problema que percebemos
no relato deste evento é que numa área de conflito, onde as pessoas eram constantemente
expulsas, não tem como existir casas muito antigas. Para além disto, o modelo de
construção local é casa de taipa com telhado de palha, o que pode ser entendido como uma
casa provisória por quem desconhece a realidade de uma comunidade pobre do meio rural.
Parece que este foi o caso do oficial de justiça, já que ele afirmou ao Juiz que os moradores
tinham cerca de três meses nas casas vistoriadas, mais uma vez se confirmando a versão
73
dos fazendeiros de que os processados haviam chegado à área há pouco tempo.35
Aliado a recusa de Aparecida em aceitar o acordo proposto pelos fazendeiros
e da informação do Oficial de Justiça acima citada, outro elemento de fundamental
importância na decisão do Juiz pelo despejo da comunidade foram as provas apresentadas
no processo por Marcelo e Daniela, já que da sentença consta que os mesmos provaram ter
a posse da fazenda. Estes são a escritura da fazenda (conforme cópia acima); 06 notas
fiscais de compra de produtos agropecuários em nome de Marcelo na empresa Socil Evialis
Nutrição Animal Ind. e Com. LDTA; o relatório de Arimathéia (conforme cópia acima); mapas
e memoriais descritivos da fazenda Morro Redondo e da área destacada para Cirilo; e fotos
e respectivos negativos de uma área de depredação ambiental realizada pelos invasores.
Quanto à escritura, mapas, memoriais descritivos da fazenda e seus
destaques e ao relatório de Arimathéia já foram tratados mais acima e não se entende
necessário acrescentar mais nada na falta de profundidade destes documentos em provar a
posse da fazenda pelo casal. As novidades são as notas e as fotos.
Quanto às notas, não é de se espantar que uma família de fazendeiros que
cria gado compre produtos agropecuários com esta destinação. Este documento vira prova
na medida em que consta nas notas, enquanto endereço do comprador: “FAZ. MORRO
REDONDO – ROD. TO 222, KM 42 A DIREITA 20 KM, SN”. No entanto, este dado deve ser
entendido a luz da seguinte informação. Em fevereiro de 2009, quando realizávamos o
trabalho de campo, procuramos Marcelo para entrevistá-lo. Este acabou por marcar a
conversa em seu trabalho, na empresa Socil. Na própria empresa, enquanto o
esperávamos, fomos informados que ele era o antigo dono, mas que vendeu a empresa e
agora era apenas vendedor.
Deste modo, entendemos que tenha sido fácil conseguir as referidas notas
fiscais com o endereço de sua fazenda. Na medida em que ele não morava na mesma e
devido à distância informada, de 62 Km, supomos que sua própria empresa não realizou a
entrega de tão poucos produtos na fazenda, conforme consta em cada uma das notas
fiscais. Assim, a única razão que vemos para constar este endereço no documento é o de
forjar uma situação inexistente.
Quanto às fotos de depredação ambiental, nada mais natural que elas
tenham sido tiradas nas áreas que haviam sido derrubadas pela comunidade para a
colocação de suas roças. Esta prática está descrita mais adiante, no capítulo sobre
produção e ambiente, razão porque não é necessário adiantar aqui o assunto. Em outras
palavras, não se trata de nenhum crime ambiental, mas sim de processo produtivo que
35
O interessante neste relato é que o processo é de 2006 e a vistoria ocorre em 2008. Assim, pela lógica mais simples, os acusados de invadir a área deveriam residir nas casas construídas no período da “invasão” há no mínimo dois anos, e não há três meses como relatado.
74
sustentava a comunidade quilombola há mais de um século.
Assim, as quatro provas inicialmente apresentadas demonstram ser
demasiado inconsistentes para comprovar a posse pelos fazendeiros da área em litígio. Por
outro lado, igualmente pesou na decisão do Juiz o depoimento de três testemunhas: Juvenal
Alves da luz, José Odivaldo Bandeira e José Arimathéia Mendonça Dionízio.
Conforme fomos informados posteriormente, as informações trazidas ao
processo por Arimathéia, na medida em que vieram de um funcionário do INCRA local, teve
um significativo peso na decisão do Juiz. Em relação ao conteúdo de seu depoimento,
podemos apenas reafirmar o que está dito mais acima, acerca da desastrosa intervenção do
representante da Ouvidoria Agrária da região na questão. Na medida em que todos os
elementos aqui discutidos eram desconhecidos pelo Juiz, somente podemos lamentar este
fato.
Destaca-se do depoimento dos dois primeiros, os seguintes elementos: o
clima de conflito que se instalou na área após a chegada de José Piauí, com ameaças deste
a Juvenal, vaqueiro de Francisca e a própria; que a família de fazendeiros tinham a posse
das duas fazendas, Morro Redondo e Grotão; e que na área da fazenda em litígio somente
moravam há muitos anos os Srs. Cirilo e Raimundo, tendo os demais membros da
comunidade adentrado na área há cerca de oito meses.36
Em relação ao primeiro ponto, de nossa pesquisa ficou evidente que o clima
na área que era de conflito aberto desde a denúncia em Brasília, realmente tornou-se
explosivo quando da chegada de José Wilson Lopes da Silva, conhecido como José Piauí.
Este é um personagem controverso, policial militar aposentado e com um vínculo de
parentesco distante com a comunidade que, ao descobrir esta proximidade e ao saber da
aflitiva situação da comunidade, acabou por resolver apoiá-la indo lá morar. Deste modo,
utilizando de sua formação militar acabou por emprestar novos ares ao conflito que já existia
há 40 anos e estava prestes a se resolver favoravelmente aos fazendeiros.
Conversando com o mesmo, este afirmou que é aposentado como soldado da
Polícia Militar do Tocantins. Através de uma conversa com o Vereador Sebastião Sebrae, há
dois anos atrás, ele descobriu que os parentes que ele procurava na região era o pessoal da
comunidade. Informa, ainda, que quando os encontrou ficou sabendo da situação.
...do que estava acontecendo, né, que eles estavam sendo depredados, tavam sendo ameaçados. Ai eu passei pra dentro. Eu não tenho intenção de nada pra mim, porque eu já tenho meu recurso, tenho posse. [...] Daí eu
36
Já nos referimos a este fato, mas apenas ressaltamos que esta informação do depoimento não pode corresponder à verdade dos fatos, na medida em que em novembro de 2006, na peça inicial do processo, o casal de fazendeiros alega que os invasores já haviam entrado na área há poucos meses. Na medida em que o depoimento ocorre em 21/05/2008, isto significa, no mínimo, que em tendo havido invasão não há possibilidade de que esta tenha ocorrido há “cerca de oito meses”.
75
constatei e fui pra perto do meu povo. [...] Daí eu fui lá e constatei que era pior do que meus ouvidos tinha ouvido, né. Quando meus olhos viram o que estava acontecendo, eu disse: eu vou passar para perto de vocês, ai fomos conversar mesmo, que realmente eram meus descendentes, como consta nome e sobrenome, José Ferreira da Silva, né. Ai eu fiz a minha parte, né, que o resto das histórias você sabe mais melhor do que eu.
Segundo José Piauí, foi ele quem, uma vez conhecendo as práticas e a
história da comunidade, acaba por informá-los que a comunidade é formada por
remanescente de quilombos. Sobre o conflito, ele afirma que foi a linha de frente na defesa
da comunidade, pois era preciso que alguém fizesse alguma coisa pela comunidade. Ele
levanta que nunca foi chamado por qualquer autoridade para falar sobre a situação.
Você foi chamado pra falar lá no processo? Eles não me chamam que eles devem não me entender, eles nunca me chamaram! Nunca me envolveram. É só botando um tal de Zé Piauí, Zé Piauí, chega lá um mandato pra mim, com multa e tudo, se eu fizer isso e isso eu to multado. Só que ai ninguém conhece que é o Zé Piauí, que eu nunca nem conversei com nenhuma autoridade, entendeu. Não chegou nenhuma autoridade pra conversar comigo. Já fui no Fórum três vezes, só falta eu ir nu, agora, que todo jeito eu já fui no Fórum pra conversar com as autoridades e nunca foi ouvido. Eles me ignoram totalmente, que dizem que eu sou doido, que não sei o que, que eu sou perigoso. E como você vê que eu sou uma pessoa sensata e humilde. Só que a nossa luta já vem do princípio, já vem de Zumbi, vem de tudo.
No entanto, percebemos que este clima instalado na região, muito mais a
resposta de um indivíduo politizado aos desmandos de uma família de fazendeiros, acabou
por ser eficientemente explorado pelos fazendeiros que, assim, acabaram por vender ao
judiciário uma imagem da comunidade que não fazia jus a mesma. Pelo contrário, em todos
os depoimentos colhidos durante nossa pesquisa, ao longo dos 40 anos de conflito a
violência sempre partiu dos fazendeiros e a comunidade resistiu todas as investidas destes
de forma mansa e pacífica, embora resolutamente.
Em relação à alegada posse das duas fazendas pelos fazendeiros, é verdade
que na fazenda Grotão esta era efetiva, uma vez que na época do processo já fazia uns
poucos anos que os últimos membros da comunidade que lá moravam, seu Raimundo e o
casal Raimundo e Aparecida, haviam sido expulsos, processo este tratado mais acima. No
entanto, a posse da fazenda Morro Redondo por Marcelo e Daniela é uma construção que
não se sustenta nos dados que coletamos durante a pesquisa.
A comunidade, muito embora tenha sido esbulhada em seu direito legítimo no
processo de regularização fundiária efetivado nos anos 1980 pelo GETAT, efetivamente
nunca perdeu a posse da área que os poucos membros da mesma continuaram ocupando,
ininterruptamente, na maior parte desta fazenda. Isto nos leva ao ponto seguinte destacado
76
dos depoimentos, que é a questão de que somente Cirilo e Raimundo permaneceram na
área, enquanto os demais teriam invadido a fazenda há poucos meses.
O conflito recente ainda estava presente na memória dos vizinhos e, portanto,
a grande maioria destes se recusou a conversar comigo sobre os fatos, alegando que não
queriam tomar partido na disputa. Para solucionar este impasse, na medida em que os
fazendeiros e José Odvaldo, sua testemunha, por mim entrevistados, mantiveram esta
versão, enquanto a comunidade afirmava peremptoriamente que nunca tinham saído dali,
tendo sido nascido e criado no território, acabei por recorrer a fontes documentais.
Duas destas fontes foram essenciais para comprovar, de forma definitiva,
qual lado estava com a verdade. Se fosse correto que apenas Cirilo e Raimundo moravam
na fazenda e as demais famílias haviam entrado na mesma há poucos meses, as crianças
da comunidade, que são inúmeras, não estariam na área desde seu nascimento e sim com
seus pais, morando na cidade de Filadélfia ou em fazendas, conforme alegado pelos
fazendeiros. Assim, por dedução óbvia, descobrindo-se onde estavam as crianças neste
período, descobriríamos onde estavam seus pais e toda a sua família. Assim, procuramos
por dois elementos essenciais e obrigatórios a todas as crianças que, de alguma forma,
ainda funcionam neste país: vacinação e educação.
Em relação à vacinação das crianças, conversamos com Osmarina de Jesus,
há 10 anos responsável pelo improvisado posto de saúde da região. Esta mora em uma
fazenda próxima e atende a todos os moradores da redondeza. Não é ela quem vacina as
crianças, mas dá suporte toda vez que vem a equipe de saúde do município em época de
campanha. A mesma afirma que desde que trabalha lá, as crianças da comunidade sempre
participaram de todas as campanhas. Tem vez que a vacinação é feita nas casas, e a
mesma afirma que a maioria das pessoas que estão na terra sempre moraram ali na
comunidade.
Na Escola Municipal Abraão Braga da Luz, escola rural do município de
Filadélfia que atende toda a região em que se situa o Grotão, conversamos com a
professora Graci Pinto Coutinho da Luz, antiga diretora da mesma. Em relação à freqüência
na escola por parte das crianças da comunidade, esta disse que desde que estas iniciaram
seus estudos, elas nunca falharam. A mesma se refere ao fato de que dois alunos da
comunidade, Fernando e Lucimara, filhos de Manoel, iniciaram seus estudos em Filadélfia e
só depois é que passaram a estudar na escola. Não obstante, levantamos que os nomes
dos mesmos aparecem pela primeira vez no registro da escola no ano de 2004. Ainda
segundo a professora, as demais crianças da comunidade estudam lá desde a série inicial,
de alfabetização.
Tem uns deles lá de 2000 pra cá... que estudaram aqui dentro.
77
Todos de lá? Todos de lá, não tem nenhum que estudou antes disto. [...] Porque foi nesta época que eles chegaram na idade de ir pra escola? Foi, né... Eles sempre começaram pequenos aqui pra estudar.
Por fim, esta nos informou que aqueles que completam a última série da escola passaram a
estudar no Ginásio na Bielândia.
Como esta nos indicou que os documentos relativos à vida escolar dos alunos
da escola se encontravam na Secretaria de Educação do Município, nos dirigimos a este
órgão. Lá fomos gentilmente atendidos pela Secretária de Educação que nos repassou
várias cópias de Atas de Resultados Finais da referida escola, onde constam a matrícula e
freqüência dos referidos alunos.
Relação de alunos da comunidade por série e ano que estudaram na Escola Municipal Abrão Braga Luz37
Nome - Idade (em 2009) Série em que estudou no ano
2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Clázio Rodrigues dos Reis - 13 anos Pré 1ª 2ª 3ª 3ª 5ª
Fábio Rodrigues dos Reis – 12 anos Pré Pré 1ª 2ª 2ª 4ª 5ª
Raquel Rodrigues dos Reis – 10 anos Pré 1ª 3ª 4ª
Rafaela Rodrigues dos Reis – 09 anos Pré 2ª 3ª
Gabriela Rodrigues dos Reis – 07 anos 1ª
Pâmela Camilo Silva - 14 anos Pré Pré 1ª 2ª 3ª 4ª
Paloma Camilo Silva - ? 1ª 2ª
Fernando Oliveira Reis - 13 anos 1ª 2ª 3ª 4ª
Lucimara Oliveira Reis – 12 anos 1ª 1ª 2ª 3ª
Samuel Oliveira Reis – 09 anos Pré 1ª 2ª 2ª
Iraci Néris de Brito – 15 anos 1ª 1ª 2ª 3ª
Flavio Néris de Brito – 13 anos Pré
Luzia Néris de Brito – 11 anos 1ª 1ª 2ª 2ª
Vinícius Borges Leal - 09 anos Pré 1ª
Jaciara Néris de Brito - ? 1ª 2ª 2ª 2ª
Janaina Néris de Brito - ? 1ª 2ª
Flavio Néris de Brito - ? 1ª 1ª 1ª 2ª 2ª
A partir deste quadro pode se constatar que pelo menos quatro famílias,
Rodrigues dos Reis, Oliveira Reis, Néris de Brito e Borges Leal moravam ininterruptamente
na terra desde o início da década de 2000. Na medida em que as crianças Camilo Silva
residiam com Cirilo e que ninguém põe em dúvida que ele e Raimundo moravam na terra,
somos forçados a concluir que neste período tinham pelo menos seis famílias morando na
comunidade.
Portanto, Arimathéia em 2005, quando elabora seu relatório, e em 2008,
quando testemunha na justiça; Marcelo e Daniela em 2006, por meio de seu advogado, na
inicial do processo de reintegração de posse; e Juvenal e José Odivan em 2008, quando
testemunham no mesmo processo; ao afirmarem que somente os dois velhos residiam na
37
Dados que constam das Atas de Resultados Finais da Escola Municipal Adão Braga Luz, conforme cópias a mim entregues em 2009, pela Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura Municipal de Filadélfia.
78
terra e que as demais famílias ou não moravam no território ou que elas haviam ai chegado
há poucos meses, faltaram completamente com a verdade.
Por fim, para referendar esta visão, em todas as conversas com pessoas
antigas da região, que conheciam a comunidade de muito tempo, Antônio Dias, Francisca
Coelho de Araujo, Salomão Pereira da Silva e outros, me confirmaram que os membros da
comunidade, ou pelo menos a maioria deles, jamais se mudou da terra. Dona Francisca,
conforme relatado mais acima, visitava todo ano o túmulo de seu padrinho e, portanto,
conhece bem do assunto. Esta afirma que sempre os conheceu ali, naquele mesmo lugar.
Após todos estes fatos, o Juiz se resolve pela concessão de uma liminar
despejando a comunidade e reintegrando o casal de fazendeiros numa posse que eles, a
partir de todas as evidências por nós coletadas, nunca tiveram.
O despejo, conforme relato da comunidade, foi realizado de forma violenta e
traumática. Dois Oficiais de Justiça acompanhados de inúmeros Policiais Militares do
destacamento de Araguaína, deslocados em um ônibus e um carro, realizam o despejo.
Para além da violência simbólica implícita neste ato, onde as pessoas são despejadas do
território onde nasceram e viveram toda sua vida, estes presenciaram suas casas serem
destruídas e queimadas diante de seus olhos pela ação de Dermivon. Quando consultaram
os oficiais sobre o ocorrido, ouviram que, conforme decisão do juiz, tudo ali pertencia ao
mesmo e, portanto, ele estava no seu direito.
Nos relatos recolhidos pelos que viveram o drama do despejo, algumas de
suas casas foram destruídas pelo filho de Francisca antes mesmo dos pertences dos
moradores serem retirados. Neste processo, muito alimento foi perdido para o fogo, tanto o
que já estava estocado em casa, quanto ao que ainda estava nas roças. Isto ocorreu porque
além de algumas roças terem sido queimadas intencionalmente, como também com tanta
queima de casa o fogo acabou por se espalhar pelo campo e acidentalmente queimar outras
roças.
Um dos fatos que aponta a total falta de preparo dos agentes públicos na
realização de tal serviço foi o despejo da casa de Juraci e Raimundo. Esta é filha de Cirilo e
morava próximo ao mesmo, dentro do antigo lote medido para Sabino, mas que foi titulado
em nome de Deusdete e que, posteriormente, foi vendido pelo mesmo.38 Assim, estes
moravam fora da área da fazenda Morro Redondo, objeto da ação de despejo. Em outras
palavras, a Polícia Militar e a Justiça do Estado de Tocantins, neste caso específico,
acabaram por executar um despejo ilegal, pois a casa se situava fora dos limites
determinados pela ordem judicial. Da mesma forma, Dermivon, neste caso, não era dono de
nada no referido lote. Assim, infringiu a lei ao tocar fogo numa casa que não lhe pertencia.
38
Conferir coordenadas da casa na tabela abaixo.
79
Após a retirada dos moradores do território, a intenção era de deixar a
comunidade e seus pertences no povoado de Bielândia. Mas por intervenção destes, eles
foram levados até Filadélfia. Segundo Aparecida, chegando lá, ela se dirigiu ao oficial
responsável pelo despejo:
Chegamos na Filadélfia 10 horas da noite com as crianças sem tomar café, nem água não tomaram. Chegamos lá, ai eu falei: [o oficial de justiça] agora é o seguinte, pra onde tu vai? Eu não tenho pra onde ir não. Você me despeja dentro do fórum, que eu não tenho pra onde ir. Já que o Juiz me mandou me tirar de lá, então eu vou pro Fórum, porque ou eu vou pro Fórum, ou eu vou pro meio da rua. Eu vou pro Fórum, me jogue lá. [o oficial de justiça] Não, não vou te jogar no Fórum não. Vou botar vocês no Ginásio de Esportes. Eu não vou ficar no Ginásio de Esportes não. Ai ele disse, fica. Ai eu disse vou ficar não. Ai ele calou, foi lá e trouxe duas polícias. Quando a polícia disse assim: olha, você fica onde ele te deixar, que aqui tu não tá na tua terra não. Cala a boca que tu não tá na tua terra não. Tu tá aqui no meio de nós e nós faz de você o que nós quiser. Tudo bem, ai eles jogaram nós lá, só fizeram despejar lá, jogaram a trenheira lá no chão.
Assim, durante 90 dias, até 08/01/2009, a comunidade fica desalojada no
Ginásio de Esportes, sem a menor condição de habitação. Neste período os membros da
comunidade foram impedidos até mesmo de visitar seus parentes que permaneceram na
terra. Estes somente conseguem sobreviver com apoio de Vereador Sebastião Sebrae e da
CPT de Araguaína. Recolhi inúmeros relatos de violência e preconceito contra os
desabrigados durante este longo período.
Oito dias depois de realizado o despejo, quando a Polícia Militar procurava
prender José Piauí, retornou a casa de Cirilo e prendeu Donizete, um de seus parentes que
não havia sido despejado, pois este há época não estava morando no território. Cirilo relata
que neste episódio ele foi muito ameaçado e constrangido pela polícia. Donizete denunciou
que a polícia o tenha torturado no momento da prisão, ainda na casa de Cirilo.
Por fim, resta a absurda constatação de que a comunidade, após ter sido
despejada da fazenda Morro Redondo e instalada no Ginásio de Esportes de Filadélfia em
péssimas condições, tenha sido impedida pela Justiça do Tocantins, durante exatos três
meses, de ir morar nos dois lotes concedidos pela própria justiça a parentes seus. Na
medida em que estes lotes, a partir desta decisão, não mais faziam parte da fazenda
desocupada pela ação judicial, isto significa um verdadeiro desrespeito ao direito de ir e vir
das pessoas.
Esta dramática situação somente se encerra quando, enfim, foi realizado
acordo entre a Ouvidoria Agrária Nacional – desta vez bem melhor representada – e a
Justiça do Tocantins para que a comunidade retornasse para os 20 alqueires determinados
pelo Juiz como pertencentes aos Srs. Cirilo e Raimundo. No acordo foi definido que esta
80
área seria delimitada pelo INCRA e que esta Autarquia elaboraria um relatório antropológico
para definir, em definitivo, a questão da identidade e da territorialidade quilombola envolvida
na questão.
Após o retorno da comunidade ao lote de 20 alqueires determinado pela
justiça, esta permanece confinada neste pequeno espaço até a data de hoje. De todo este
movimento, resulta que a comunidade encontra-se, atualmente, numa precária situação,
com poucas áreas para colocar suas roças e com o gado dos fazendeiros ainda fazendo
estragos em suas áreas. Finalizando, apresentamos o quadro da situação de ocupação da
terra, antes e depois do despejo. Para melhor compreensão da localização dos pontos,
consultar mapa na página 28.
Estruturas e Ocupações Atuais e Recentes
Ponto Coordenada39
Referência Características Encontradas
A -7,614 / -47,969 Antiga casa queimada de Raimundo e Aparecida e sede da Francisca.
Casa queimada há muito tempo e amplo quintal com muitas frutíferas antigas. Há uma disputa entre esta ser a casa de Raimundo e Aparecida ou a Sede da Francisca. Em 2009 tinha uma casa de tijolo sendo construída no local pela Francisca.
B -7,616 / -47,956 Casa antiga de Raimundo e Aparecida.
Restos de madeira pelo chão.
C -7,617 / -47,958 Roça de Raimundo de 2002. Estacas da cerca da roça ainda de pé.
Ç -7,625 / -47,962 Casa destruída de Raimundo e Aparecida.
Casa totalmente destruída durante o despejo. Os esteios foram cortados de motosserra e as paredes destruídas. O banheiro foi queimado.
D -7,619 / -47,962 Casa queimada de Piauí. Casa incendiada durante o despejo com utensílios quebrados e esparramados pelo chão.
E -7,618 / -47,957 Casa antiga de Manoel. Esteio ainda de pé e pés de ata no quintal.
F -7,620 / -47,953 Capoeira de 3 anos com mandioca.
Capoeira com mato baixo e mandioca.
G -7,622 / -47,955 Antiga casa de Raimundo e Aparecida.
Restos de madeira no chão e estaca e forquilha ainda em pé.
H -7,624 / -47,954 Antiga casa de Cirilo. Casa construída em 1959 e destruída pela própria comunidade para mudá-la de lugar. Farto quintal com vários e antigos pés manga, bananal, além de cercas e chiqueiro. Esta casa se localizava no lote do Sabino apropriado por Deusdete na época da titulação.
I -7,625 / -47,955 Casa queimada de Juraci. Casa desocupada e queimada durante o despejo. Esta casa se localizava no lote do Sabino apropriado por Deusdete na época da titulação. Logo, ela não se localizava dentro da fazenda Morro Redondo e foi ilegalmente desapropriada por ação da polícia e da justiça do Tocantins na época do despejo.
J -7,626 / -47,957 Casa queimada de Marcelo. Casa incendiada durante o despejo.
K -7,626 / -47,955 Casa nova de Juraci. Casa feita de palha
L -7,626 / -47,952 Casa incompleta de Marcelo. Construção incompleta, pois ele desistiu de terminar na época do despejo.
M -7,628 / -47,957 Casa queimada de Manoel. Casa desocupada e queimada durante o despejo.
N -7,628 / -47,955 Casa queimada de Antônio. Casa desocupada e queimada durante o
39
Latitude e Longitude em Coordenada Decimal.
81
despejo e que estava dentro do perímetro autorizado pelo juiz para o retorno.
O -7,628 / -47,955 Casa atual de Antônio. Casa atual construída ao lado da casa destruída, após retorno ao território.
P -7,627 / -47,954 Casa atual de Donizete. Casa feita de palha.
Q -7,627 / -47,954 Casa atual de Manoel. Casa feita de palha e lona.
R -7,627 / -47,955 Casa atual de Marcio. Casa feita de palha e tecido.
S -7,631 / -47,962 Casa queimada de Seu Raimundo.
Não tem vestígios. Esta casa foi queimada por Deusdete há muito tempo.
T -7,631 / -47,956 Roça coletiva de 2008. Roça coletiva derrubada pela comunidade em 2008, na época do conflito, que não foi nem queimada nem plantada. Foi queimada pelo fogo que se alastrou pelo campo durante o despejo.
U -7,633 / -47,962 Outra casa queimada de Seu Raimundo.
Não tem vestígios. Esta casa foi queimada por Deusdete há muito tempo.
V -7,631 / -47,959 Roça coletiva de 2008. Idem ponto T.
X -7,639 / -47,950 Casa atual de José Humberto e Luzia
Casa feita de palha perto da barra do Gameleira.
Y -7,627 / -47,954 Casa atual de Seu Cirilo e Dona Tereza.
Casa feita de palha.
W -7,629 / -47,959 Casa queimada de Daniel. Casa desocupada e queimada durante o despejo.
Z -7,628 / -47,952 Casa atual de Raimundo e Aparecida.
Casa feita de palha. Esta casa é o centro político da comunidade, pois Aparecida é a presidente da associação. Foi na mesma que me hospedei durante as pesquisas de campo.
Fotos referentes ao ponto A Casa com parede de barro destruída e queimada e sede da Francisca sendo construída no mesmo local
Foto referente ao ponto B Foto referente ao ponto C
Restos de madeira pelo chão Estaca da cerca da roça de 2002 ainda de pé
82
Fotos referentes ao ponto Ç Casa de taipa e adobe de Raimundo e Aparecida quando estava inteira e, após despejo, completamente
destruída. Os esteios foram cortados de motosserra e as paredes destruídas
Fonte fotos: Equipe FACDO
Fotos referentes ao ponto D
Casa incendiada durante o despejo com utensílios quebrados e esparramados pelo chão
83
Foto referente ao ponto E Foto referente ao ponto F Manoel ao lado de esteio e sua antiga casa Capoeira com mato ainda baixo e mandioca
Fotos referentes ao ponto G Restos de madeira no chão e esteios e forquilhas ainda de pé
84
Fotos referentes ao ponto H Casa antiga de Cirilo destruída com amplo quintal com chiqueiro, muitas mangueiras, bananal, pé de
croata plantado por sua mãe e antigo caminho que ligava casa de Cirilo a casa de Melquiades40
40
Segundo informação de Cirilo, este caminho já existia quando o mesmo nasceu.
85
Foto referente ao ponto I Casa que ficava fora da fazenda Morro Redondo, Foto referente ao ponto K desocupada e queimada durante o despejo Casa de palha
Foto referente ao ponto L Foto referente ao ponto M Casa incompleta cuja construção foi Casa queimada durante o despejo com abandonada na época do despejo canteiros de verdura ao fundo
Fotos referentes aos pontos N e O Casa de Antônio antes do despejo e a mesma casa queimada no despejo
ao lado da casa reconstruída após o retorno
Fonte: Sebastião Sebrae
86
Foto referente ao ponto Q Foto referente ao ponto R Casa de palha com pedaço de lona Casa de palha e tecido
Foto referente aos pontos T e V Roça coletiva de 2008, perdida na época do Foto referente ao ponto X despejo pelo fogo que se alastrou pelo campo Casa de palha perto da barra do Gameleira
Fotos referentes ao ponto Y Casa de palha e quintal sendo organizado
87
Fotos referentes ao ponto Z Casa de palha e reunião de membros da comunidade no quintal da casa
88
ORGANIZAÇÃO SOCIAL
As marcas referenciais da identidade étnica racial do grupo
A identidade étnico-racial de uma comunidade quilombola não é um ponto de
partida ou um elemento dado a priori. Ela é um processo e, portanto, é tanto o „trajeto‟ como
o „local de chegada‟. Seu centro simbólico ordenador é formado pelo que há de mais comum
e interno ao grupo: suas crenças, valores regras e normas que entram em ação para
orientar e julgar a atuação de cada membro do grupo, atribuindo significação social às suas
ações.
Nesse sentido a identidade é um construto social de onde emergem as
subjetividades, os conteúdos, as práticas, e as lutas travadas pela definição dos seus
limites. Por tanto o processo de construção e de manutenção de uma identidade coletiva
tende a levar em consideração seu caráter eminentemente dinâmico, pois é um processo
constante de criação e reprodução (Tajfel, 1981).
A identidade coletiva possui um evidente caráter simbólico. Ela reafirma a
existência de um nós, de uma comunidade que partilha os mesmos elementos culturais
enquanto um referente que é estabelecido pela representação que os membros da
comunidade possuem de si próprios. Por causa desse caráter, o grupo não necessita do
recurso a instâncias alheias aos seus membros para alcançar o seu reconhecimento social
(Cohen, 1985).
Desse modo a identidade de um grupo social se fundamenta nesses
elementos simbólicos estabelecidos em comuns, os quais são convertidos pelos atores
sociais em categorias de adscrição e identificação. É através deles que os membros de uma
dada comunidade são conhecidos, se auto-identificam e são identificados por outros. Essas
categorias são capazes de gerar um contraste que estabelece as diferenças, os limites ou
fronteiras entre os grupos (Barth, 2000).
Portanto, a persistência dos grupos sociais depende não dos conteúdos
culturais que encerram e definem suas diferenças, tais como vistos por um observador
externo. Depende sim do estabelecimento e permanência dos sinais diacríticos, ou seja,
diferenças que os próprios interlocutores consideram como significativas e estabelecem
como limites. Assim, mesmo que a dinâmica social provoque uma mudança nessas
diferenças, a dicotomia entre "eles" e "nós" ainda sim continuará a ser operacional,
determinando os critérios de pertencimento ou exclusão que constituem o grupo.
Grupos étnicos são categorias atributivas e identificadoras empregadas pelos próprios atores; conseqüentemente, têm como característica organizar as interações entre as pessoas (Barth, op. cit.: 7).
89
Devido ao caráter dinâmico e complexo da realidade social é preciso ainda
levar em consideração a lógica da natureza situacional das identidades sociais (Leach,
1996; Evans-Pritchard, 2002). Ou seja, que às distintas situações deverão corresponder
distintas identidades sociais.
A identidade grupal nunca pode ser fixa, mas deve ser entendida como um
processo de „identificações em curso‟ (Santos, 2000). Novos eventos históricos acabam por
introduzir novas relações de diferenças que instauram um processo de recontextualização e
particularização das identidades. Para os grupos sociais como os quilombolas que se vêem
diante da necessidade de resistir e defender seu território, a partir do „retorno dos brancos‟
(Bandeira, 1988), essas diferenças passam a ser fundamentais no processo de
diferenciação e luta.
Nesse aspecto, Cardoso de Oliveira levanta que “o que funda a identidade
étnica é a apreensão de si em situação” e que “a peculiaridade da situação que engendra a
identidade étnica é a situação de contato interétnico” (1976: 6).
a identidade étnica não pode ser definida em termos absolutos, porém
unicamente em relação a um sistema de identidades interétnicas,
diferentemente valorizados em contextos específicos ou em situações
particulares (idem: 9).
Assim, embora diferenciadas em função das diversas situações vivenciadas
pelo grupo, essas identidades não são distintas, pois são elaboradas a partir das mesmas
categorias de adscrição e identificação estabelecidas em comum pelo grupo.
Por isso, a passagem de uma identidade camponesa para uma identidade
quilombola é norteada por critérios específicos de cada comunidade negra
rural ou quilombola, pautada numa identidade situacional.
Em síntese, quando moradores da comunidade Tapuio se autodefinem
quilombolas e/ou camponeses, essas identidades não são distintas elas são
imbricadas, desse modo podemos denominá-las de identidade situacional,
uma não nega a outra. Nesse sentido não há uma passagem de uma
identidade para a outra, pois elas estão juntas no contexto da comunidade
camponesa quilombola Tapuio (Santos, 2006: 218).
Conforme nossa pesquisa conseguiu levantar, na Comunidade Quilombola
do Grotão os principais elementos identitários estabelecidos pelo grupo são: o
pertencimento a um território conquistado há cerca de século e meio e a
descendência de uma família oriunda da fuga de escravos. Nesse sentido, essa
comunidade não se diferencia das demais comunidades negras rurais. Conforme indicam os
estudos recentemente desenvolvidos nas mesmas, a estruturação da identidade em cima da
90
dimensão do território e do parentesco é um referencial comum à maioria das comunidades
quilombolas.
Esse sentimento de pertença a um grupo e a uma terra é uma forma de
expressão da identidade étnica e da territorialidade, construídas sempre
em relação aos outros grupos com os quais os quilombolas se confrontam e
se relacionam. Esses dois conceitos são fundamentais e estão sempre inter-
relacionados no caso das comunidades negras rurais (...).
Assim, parentesco e território, juntos, constituem identidade, na medida em
que os indivíduos estão estruturalmente localizados a partir de sua pertença a
grupos familiares que se relacionam a lugares dentro de um território maior.
Se, por um lado, temos território constituindo identidade de uma forma
bastante estrutural, apoiando-se em estruturas do parentesco, podemos ver
que território também constitui identidade de uma forma bastante fluída,
levando em conta a concepção de F. Barth de flexibilidade dos grupos étnicos
e, sobretudo, a idéia de que um grupo, confrontado por uma situação histórica
peculiar, realça determinados traços culturais que julga relevantes em tal
ocasião. É o caso da identidade quilombola, construída a partir da
necessidade de lutar pela terra ao longo das últimas duas décadas (Schimitt;
Turatti; Carvalho, 2002: 132 – grifos no original).
Desse modo, temos que o território e as pessoas que o habitam são uma
coisa só. Isso porque há quase século e meio, quando os grupos de escravos fugidos se
instalaram no território do Grotão, eles estavam garantindo não só a reprodução física e
social de suas famílias. Muito mais do que isso, eles estavam inaugurando o
estabelecimento de um vínculo único com a terra.
Foi a partir desse evento original em que Lunarda e os outros adultos e
crianças fugitivos deixam para sempre a condição de escravos em um engenho nordestino,
para se constituírem em uma verdadeira comunidade quilombola nas terras tocantinenses.
Ou seja, um grupo de pessoas que lutaram contra a condição de inumanidade e submissão
total, fortemente unido pelos laços de parentesco e possuidor de costumes comuns e de
uma base territorial específica.
Foi em defesa desse conjunto de características identitárias que a as famílias
do Grotão resistiram ao processo de expulsão iniciado em 1979 com a chegada de
Deusdete e Francisca, pretensos proprietários da terra. Assim, toda a luta não se deu
somente para garantir sua terra, mas muito mais do que isto, foi para garantir sua identidade
e sua continuidade enquanto um grupo étnico-racial que eles lutaram contra as investidas do
casal de fazendeiros.
91
Estrutura familiar da comunidade
Conforme visto no capítulo anterior, desde que a comunidade se firma no
território com uma grande quantidade de membros, a partir da terceira geração, esta passa
a ser formada por quatro grandes famílias: a dos Vermelhos; a dos Cassimiros; a dos
Lourenços; e a dos Patrícios.
A família dos Vermelhos é constituída pelo casamento de Manoel Cantuária e
Maria, conhecidos como Manoel Vermelho e Maria Vermelha. O Manoel veio de fora e a
Maria era da família dos Patrícios. A família da Emídia ou dos Cassimiros é formada pelo
casamento de Emídia com Cassimiro. Dos ramos antigos, este era o maior, com muitos
descendentes de terceira e quarta geração. O ramo da Lourência ou dos Lourenços se inicia
com o casamento entre esta e Sebastião. O ramo dos Patrícios se inicia com a índia. Sua
filha, Joana Patrício, se casa com Patrício, que era um negro de fora, e gera uma grande
família.
Antigamente cada uma destes ramos ou famílias morava em um Canto,
formando o que eles chamam de várias aldeias, que não eram muito afastadas. A Família
dos Patrícios se concentrava ali no José Piaçava. Era uma aldeia bem compacta, pois a
casa deles era sempre mais perto do que a dos outros ramos. Inicialmente o pessoal da
Emídia morava no Canto dos Cassimiros. Depois de um bom tempo vieram todos para perto
do Grotão. O bolo dos Cassimiro era formado por: Emídia, Raimundo, Pedro, João,
Anunciato, Emilia Vermelha. Segundo seu Raimundo, Manoel Patrício gostava de por roça
longe, ai ele morava num barraquinho em cada roça. Por isso o GETAT não assentou ele
nem o Manoel Bezouro, porque eles não paravam num lugar.
Depois os Patrícios foram morar em roda do Cirilo e o Seu Raimundo e seus
parentes foram morar pra Beira do ribeirão João Aires. Foi então que se formaram duas
aldeias mais afastadas. Na aldeia em volta da casa antiga do Cirilo moravam: Isac, Maria
Antonia, Tereza, Cirilo, Sabino, Paixão, Luzia, Laurinda, Dona Patrícia, Manoel Patrícia,
Sebastião Bizouro e outros, todos na mesma região. Segundo Seu Raimundo,
A maior parte desses velhos morreu na terra, só dois que foram embora. Manoel e [incompreensível]. Os filhos é que foram saindo. Aquele tempo era de fartura, todo ano colhia muito legume e nunca faltou mantimento. Trabalhavam mais no movimento da casa, trabalho fora era menos.
O sistema de casamento era entre primos, e o casamento com gente de fora,
que era mais raro antigamente, hoje é mais freqüente. Seu Cirilo relata uma curiosidade
sobre o casamento daquela época, onde se percebe a proximidade do costume de roubar a
noiva, recorrente em outras comunidades camponesas. Segundo este,
92
Casamento era quando o padre vinha na desobriga. Era avisado toda a região onde era pra se ajuntar. O casamento às vezes só os noivos sabiam. Quando o padre chamava era que os mais e os demais tomavam o susto. Às vezes, quando os pais não sabiam, eles ficavam sabendo da boca dos outros. Ai o pai não podia fazer mais nada. Às vezes o casal fugia, às vezes ia pra casa do pai da noiva dar a notícia.
Com a prática de casamento entre primos e com o esvaziamento do território,
devido ao conflito com Deusdete e Francisca, estes quatro ramos originais acabam por se
diluírem e isto resulta que temos, na atualidade, apenas dois ramos na comunidade. Cada
um deles é escorado num dos troncos principais de patriarcas ainda vivos da comunidade:
Seu Cirilo e Seu Raimundo. Seu Cirilo é filho de Manoel Cassimiro e Maria Antônia
(Patrícios), já Seu Raimundo é filho de Maria José (Cassimiros) e João Lourenço.
Esta situação de afunilamento dos ramos originais em apenas dois foi
igualmente levantada por Rita de Cássia e Helena Silva, pesquisadores da FACDO, quando
levantaram seus dados no território do Grotão.
Analisando o diagrama de parentesco consegue-se visualizar oito gerações partindo desde a Mãe da Emídia, que foi a primeira a chegar ao local e constituir família, até os bisnetos dos atuais patriarcas da comunidade. As regras de união vividas pela comunidade são: endogâmica e exogâmica. Tais regras permitem casamentos tanto entre primos quanto com pessoas de fora da comunidade Grotão, respectivamente. Observou-se um casamento endogâmico entre os dois núcleos familiares na comunidade, como por exemplo: o casamento da D. Aparecida (líder da comunidade e filha do Sr. Raimundo) com Raimundo (filho do Sr. Cirilo) e que tem cinco filhos. Identificamos também casamentos entre os membros do mesmo núcleo familiar, neste caso, entre os netos do Sr. Cirilo. Os maridos e as esposas que não são da comunidade vieram do Estado do Maranhão e do município de Filadélfia-TO, onde geográfica e politicamente a comunidade está localizada (Domingues-Lopes e Silva, 2009: 11-12).
93
DIAGRAMA DE PARENTESCO DOS RAMOS FAMILIARES DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DO GROTÃO
Ramos Velhos
Ramos dos Velhos
Lunarda
1866 - 1950
Emidia de
Castro
Brito
84
D. 1946
Lourença
de Castro
Brito
Sebastião
Pereira
da Silva
1892 - 1970
João
Lourenço
da Silva
78
Luzia
Lourenço
da Silva
D. 1965
Maria
Lourenço
da Silva
D. 1946
Maria
Libarda
Lourenço
(da Silva)
D. 1935
Cassimiro
José
de Brito
1888 - 1965
Antonio
Cassimiro
de Brito
77
1889 - 1967
Melquiades
Cassimiro
de Brito
78
1902 - 1943
Raimundo
Cassimiro
de Brito
41
1907 - 1978
João
Cassimiro
de Brito
71
1908 - 1972
Pedro
Cassimiro
de Brito
64
Germano
Cassimiro
de Brito
1906 - 1980
Anunciato
Cassimiro
de Brito
74
Sebastiana
Cassimiro
de Brito
1900 - 1973
Maria
José
de Brito
73
1939
Raimundo
José
de Brito
72
1956
Eva
Gomes
Rodrigues
55
D. 1965
Maria
Lourenço
da Silva
Luzia
Cassimiro
de Brito
1913 - 1984
Satu
Cassimiro
de Brito
71
1927
Francisco
Cassimiro
de Brito
84
1915
Manoel dos
Santos
Cassimiro
(de Brito)
96
1911 - 1967
Manoel
Cassimiro
de Brito
56
1906 - 2001
Maria Antonia
Gomes (De
Araújo)
95
Cirilo
Araújo
de Brito
1930
Manoel
Luiz da
Paixão
81
1932 - 2008
Sabino
Cassimiro
de Brito
76
1933
Zacarias
Araújo
de Brito
78
1935 - 1989
Tereza
Araújo
de Brito
54
1939
Maria
Araújo
de Brito
72
1940
Cicero
Araújo
de Brito
71
1942
Luzia
Araújo
de Brito
69
1945 - 1973
Laurinda
Araújo
de Brito
28
Sebastião José Antonio
Tereza
Cantuária
Camilo
(dos Reis)
Manoel Cantuária
Camilo dos Reis
(Vermelho)
Maria
(Maria
Vermelha)
Filomena
Cantuária
Camilo
dos Reis
Francisco
Cantuária
Camilo
dos Reis
Dolores
Cantuária
Camilo
dos Reis
Raimundo
Cantuária
Camilo
dos Reis
1921 - 1998
Emilia
Cantuária
Camilo
dos Reis
77
Antonio
Cantuária
Camilo
dos Reis
Pedro
Jaó
1925 - 2007
João da
Cruz
Figueira
82
94
Ramo da Emídia
D. 1935
Cassimiro
Jose
de Brito
1866 - 1950
Emidia de
Castro
Brito
84
1908 - 1973
Maria
Jose
de Brito
65
1889 - 1967
Melquiades
Cassimiro
de Brito
78
1907 - 1978
João
Cassimiro
de Brito
71
1902 - 1943
Raimundo
Cassimiro
de Brito
41
1908 - 1972
Pedro
Casimiro
de Brito
64
1906 - 1972
Paulo
Cassimiro
de Brito
66
1892 - 1970
João
Lourenço
da Silva
78
Maria Libarda
Lourenço da
Silva
Eulina
Eurides
Maria
1902 - 1971
Euzebia
Gomes
de Araujo
69
Antonio
Cassimiro
D. 1965
Maria
Lourenço
da Silva
1914 - 1979
Sebastiao
Cassimiro
de Brito
65
JosefaInácia
Cicera
Luiz
Vermelho
Cicera
João Antonio PedroFranciscoMartins Maria Ana
Constancia
José
Inacio
Miguel
Deusina
Arruda
Brito
Jose
Arruda
Brito
Antonio
Arruda
Brito
AntoniaRaimundo
D. 1929
Raimunda
Cassimiro
de Brito
Antonio
Marcos Marcos
Cassimiro
de Brito
EdirEmidio
Maria
1934 - 1954
Honorio
Gomes
de Araujo
20
1925 - 1971
Joana
Gomes
de Araujo
46
José
Leite
Raimundo Antonio
1927 - 2002
Francisca
Gomes
de Araujo
75
Sabino
Araujo
de Brito
Maria
Cabral dos
Santos
D. 1955
Maria Ilara
Gomes de
Araujo
D. 1979
Maria do
Espirito
Santo
1937 - 2003
Olindina
Gomes
de Araujo
66
1939 - 1999
Filintra
Gomes
de Araujo
60
1941 - 2004
Germana
Gomes
de Araujo
63
Manoel
Paulo
Gomes
de Araujo
Rosa
1943 - 1998
Maria
Gomes
de Araujo
55
Manoel
da Cruz
Silva
1975
João
Gomes
da Silva
36
1977
Jose Domingos
Gomes da
Silva
34
1978
Paulo
Gomes
da Silva
33
1980
Santana
Gomes
da Silva
31
Raimundo
2003
8
Sebastiana
Cassimiro
de Brito
Teófilo
GermanaJosé
Aires
Raimunda
Cassimiro
Antonio
da
Preta
Emilia
Cassimiro
de Brito
Irineu
Germano
Cassimiro
de Brito
Anunciato
1900 - 1973
Maria José
Cassimiro
de Brito
73
? ? ? ? ? ? ? ? ? ?
? ? ? ? ? ? ? ? ? ?
? ? ? ? ? ? ?
? ? ? ? ? ? ?? ? ? ?
Ramo da Emidia
95
Ramo da Lourência
Estão
empregados na
Fazenda.
Estão em fazenda
perto do
assentamento.
Liderança da Comunidade. Estão na terra.
Estão em Araguaina. Saiu para
estudar e casou lá. Ela é
professora.
Mora em Bielandia. Sempre
manteve contato.
Querem voltar. Sairam no conflito. Querem
voltar.
O casal foi embora em meados de 1945, para S. Mª do
Araguaia. Não tem mais notícias.
186? - 1946
Lourença
de Castro
Brito
? - ?
Sebastião
Pereira
da Silva
? - ?
Luzia
Lourenço
da Silva
? - ?
Cassimiro
Preto
? - 1965
Maria
Lourenço
da Silva
188? - 1946
Maria Libarda
Lourenço da
Silva
1889 - 1967
Melquiades
Cassimiro
de Brito
78
1892 - 1970
João
Lourenço
da Silva
78
1900 - 1973
Maria
José
de Brito
73
1939
Raimundo
José
de Brito
711956
Eva
Gomes
Rodrigues
55
1939/40
José
Lourenço
da Silva
1974
João Neto
Gomes
Rodrigues
37
Sandra
Maria
Maria Odilia
Gomes
Rodrigues
Antonio Neto
Cassimiro
dos Santos
1978
Maria Aparecida
Gomes
Rodrigues
33
1971
Raimundo
Cantuário
Camilo dos Reis
40
1980
Emidia
Cassimiro
de Brito
31
Almair
1983
Maria Luiza
Monteiro
da Luz
28
José Humberto
Oliveira de
Moura
2000
Leandro
Gomes
Rodrigues
11
2007
Rita de Cácia
Gomes
Rodrigues
4
2000
Beatriz
Gomes
Rodrigues
11
2008
Maria Paola
Gomes
Rodrigues
3
1994
Cassio
Rodrigues
dos Reis
17
1996
Fábio
Rodrigues
dos Reis
15
1997
Raquel
Rodrigues
dos Reis
14
1999
Rafaela
Rodrigues
dos Reis
12
2003
Gabriela
Rodrigues
dos Reis
8
2001
Catarina
10
2007
Ester
4
1999
Laissa Lorena
Monteiro da
Luz
12
Bismarque
Monteiro
da Luz
Ramo da Lourença
96
Ramo dos Patrícios
Patrício
1961 - 190?
Joana
Patrício
Araújo
Manoel Patrício
Gomes de
Araújo
PaulinaIsabel
Gomes
Araújo
Maria
Vermelha
Manoel
Cantuário
Camilo Dos Reis
Maria Antônia
Gomes de
Araújo
Manoel
Cassimiro
Cirilo
Sebastião
Bezouro
? - ?
Dionízia
Maria
José
Maria
de
Jesus
? - ?
Zilda
AnastácioBelton
Moura
Não
Identif icada
Adailton
Não
Identif icada
Não
Identif icada
Não
Identif icada
Não
Identif icado
Deusimar
Não
Identif icado
Não
Identif icado
Maria
da
Chiquinha
Virturina
? - ?
Dionízio
? - ?
Juvenir Dalvina Maria
das
Graças
Antônio Pedro
Índia
? - ?
Antônia
pesqueira
? - ?
Domingos
Grosso
? - ?
João
de
Olinda? - ?
Zé
Moleque
? - ?
Diolinda? - ?
Antônia
Romão
Tereza
do
Balbino
Marica BalbinoQuintina
ZIlma
Delzina
Cileno
Galeno
Glaucia Raimunda Galeno
Junior
Nego Miudo
Edimilson
Sabrina Sebastiana Emídia Sebastião
FilhoValdirene
Edson Não
Identif icada
Rogério
Calene Isabel RomarioGleidson
Rodrigues
2003
Não
Identif icada
8
2007
Não
Identif icado
4
Wedila ZimaraValéria
Não
Identif icada
Pais do Cirilo, especif icado no
Ramo dos Cirilos
Sumiram no mundo, não se tem notícia
Moram com os pais na fazenda
saco grande
Moram na fazenda do paiAdolescentes Adolescentes, moram com avô
paterno
Adolescente
Ramo dos Patrícios
97
Ramo dos Patrícios - continuação
? - ?
Firmina
? - ?
Leopoldo
Maria
? - ?
Sinha
? - ?
Rosária Rosa Antônia Joana
BoaventuraIsac
Erotildes
? - ?
José
DiasRaimundo
Macaúba
João
Macaúba
EstevãoLeopoldo
Neto
Ana
Francisca
Maria
José
Firmino
Não
Identif icada
Não
Identif icadaJosé
Fininho
Luana Robson
Domingas Raimunda Rosineis Dezuita Delziran Elzimar DlezineteGonçalo
Cristiane Não
Identif icada
Não
Identif icada
Não
Identif icado
Não
Identif icado
Eliezer
?
Geneci
Ageu Não
Identif icado
Raimundo
Quiriba
? ? ?
Rosilene
Não
Identif icado
Não
Identif icada
Juvenil
1991
Priscila
20
1996
Railane
15
Nilton Vanilton Meirivane Irani
São irmãos Macaúba
Mora na fazenda do sogroNão tem notícias
Casou e mudou no Pará. Não tem
Notícias
Em Filadélf ia
Em Canabrava
Em Filadélf ia
Na fazenda Macaíba do avô
paterno
Em Goiânia
Em Filadélf ia
98
Ramo dos Patrícios - continuaçãol Ramo da Raimunda Preta
Bela
Antônia
da
Bela
Não
Identif icado
Francisca
Neves da
Assunção
Domingos
Teodolino
Rosirene Raimundo
Neves da
Assunção
Maria
Chiquinha
Antônio
Neves da
Assunção
Messias
do
Frango
Juraci
(Filha do
Cirilo)
AnastácioRaimunda
(Filha do Chico
Cassimiro)
Ramo dos Patrícios Grupo II
Pode ser da comunidade
É parente de Maria Antônia, mãe do
Cirilo
Irmão do Adailton que casou com
Maria de Jesus f ilha de Sebastião
Bezouro
Levantado mais adiante na
família do Cirilo
Levantados na família dos
Patrícios
Levantados mais adianta na
família dos Cassimiro
Estão na fazenda Pouso Alto,
mas não se tem notícias
Outro Ramo Antigo
Raimunda
Preta
1910 - 1993
Maria
Ferreira
da Silva
83
1906 - 1980
Anunciato
Cassimiro
de Brito
74
1943
José
Anunciato
67
Maria
Antônia
Borges Leal
Maria Isabel
Borges
Leal
Antônio
Cantuária
Camilo dos Reis
Vinicius Antônio
Filho
Tatiani Beatriz
99
Ramo dos Cassimiros
1888 - 1965
Antonio
Cassimiro
de Brito
77
D. 1965
Maria
Lourenço
da Silva
1911 - 1967
Manoel
Cassimiro
de Brito
56
1913 - 1984
Satu
Cassimiro
de Brito
71
1915
Manoel dos
Santos Cassimiro
de Brito
96
1927
Francisco
Cassimiro
de Brito
84
1906 - 2001
Maria Antonia
Gomes de
Araujo
95
Isabel
Gomes
de Araujo
Maria
Roxa
1961
Santina
Cassimiro
de Brito
50
Raimunda
Cassimiro
de Brito
1966
Geraldo
Cassimiro
de Brito
45
1970
Valdivan
Cassimiro
de Brito
411972 ou 1973 - 1990
José da Quia
Cassimiro de
Brito
Abraão
Lemos
Santana
Antonio
Neres da
Assunção
1977
Antonio Neto
Cassimiro
dos Santos
34
1978
José Nilton
Cassimiro
dos Santos
33
1978
Domingos
Cassimiro
dos Santos
33
1994
Romario
Cassimiro
dos Santos
17
1996
Israel
Cassimiro
dos Santos
15
2003
Rafael
Cassimiro
dos Santos
8
1980
Diana
Cassimiro
dos Santos
31
1985
Francisca
Cassimiro
dos Santos
26
Maria
Odilia
SebastiãoJoséAntonio
1925 - 2007
João da
Cruz
Figueira
82
Joanira
Maria Araujo
Gomes
Figueira
Antonio
Araujo Gomes
Figueira
Lina Araujo
Gomes
Figueira
Jacira Araujo
Gomes
Figueira
Oneide Araujo
Gomes
Figueira
Mararé Araujo
Gomes
Figueira
Ana Francisca
Araujo Gomes
Figueira
Elza Araujo
Gomes
Figueira
Maria do Carmo
Araujo Gomes
Figueira
Ronaldo
Araujo Gomes
Figueira
Ronaldo
Araujo Gomes
Figueira
José dos Reis
Araujo Gomes
Figueira
Chico
Mineiro
Belchior
Anastácio
Pereira
Juliana Araujo
Gomes
Figueira
Wagner
Araujo Gomes
Figueira
Antonio
da
Gentileza
Deam Danilo DeniseDaniela
João
Neto
Maria
de
Jesus
Francinaldo Jase
?
Ramo dosCassimiros
100
Ramo dos Cassimiros - continuação
1911 - 1967
Manoel
Cassimiro
de Brito
56
1906 - 2001
Maria Antonia
Gomes de
Araujo
95
1930
Manoel
Luiz da
Paixão
81
1932 - 2008
Sabino
Araujo
de Brito
76
Zacarias
Araujo
de Brito
1935 - 1988
Tereza
Araujo
de Brito
53
Cirilo Maria
Araujo
de Brito
1940
Cicero
Araujo
de Brito
71
1942
Luiza
Araujo
de Brito
69
1945 - 1998
Laurinda
Araujo
de Brito
53
Maria
1959
Teodorico
52
JacintaPedro
Jacirene Raimunda
Arlene
Raimundo
Vermelho
Tereza Nazaré
do
Canguaçá
José
Conceição
Maria Niturino NatalinaAntonia
PARTE II - RAMO DOSCASSIMIROS
101
Família do Cirilo
Estão em
Filadélf ia,
querem voltar.
Estão na terra, com o pai.
Estão na terra
Estão na terra
Estão em
Araguaina Estão na terra
Família Lourença
Cirilo
Araujo
de Brito
Tereza
Cantuária
Camilo dos Reis
1964
Juraci
Cantuária
Camilo dos Reis
47
Raimundo
Neris da
Assunção
1962
Maria Helena
Cantuária
Camilo dos Reis
49
Damião
Ferreira
Lima
1964
Manoel
Cantuária
Camilo dos Reis
47
Maria Lucimar
Freitas dos
Santos Oliveira
1967
Antonio
Cantuária
Camilo dos Reis
44
Maria Isabel
Borges
Leal
1969
Emilia Cantuária
Camilo dos
Reis
42
Daniel Freitas
dos Santos
Oliveira
Raimundo Aparecida
1975
Francisca
Cantuária
Camilo dos Reis
36
Paulo
1993
Paloma
Camilo
da Silva
18
1994
Pamela
Camilo
da Silva
17
2003
Nivia
8
2000
Neide
11
Janaina
Neris
de Brito
Cleivan ?Marcileia
Oliveira
Reis
Lourivan
(Louro)
Jaciara
Neris
de Brito
2005
Jarlan
6
Márcio
Oliveira
Reis
2006 - 2006
Vitoria
0
1993
Iraci
Neris
de Brito
18
1994
Flavio
Neris
de Brito
17
1996
Luzia
Neris
de Brito
15
1999
Eliane
Neris
de Brito
12
2003
Sueli
Neris
de Brito
8
1983
Marcelo
Oliveira
Reis
28
Jaciene
2001
Greicieli
10
1984
Marco
Oliveira
Reis
27
Jaciara
1986
Marcileia
Oliveira
Reis
25
1985
Donizete
Oliveira
Reis
26
Cisane
2008
Natalia
3
1987
Wagner
Oliveira
Reis
24
1994
Fernando
Oliveira
Reis
17
1996
Lucimara
Oliveira
Reis
15
1999
Samuel
Oliveira
Reis
12
2003
João Vitor
Oliveira
Reis
8
2003
João Pedro
Oliveira
Reis
8
1999
Vinicios
12
2000
Antonio
Filho
11
2002
Tatiani
9
2003
Beatriz
8
1981
Raiani
Camilo
da Silva
30
1980
Diego
Camilo
da Silva
31
Flavio
1994
Daniela
Camilo
da Silva
17
1997
Carilene
Camilo
da Silva
14
1998
Junior
Camilo
da Silva
13
1999
Valéria
Camilo
da Silva
12
2003
Gabriel
Camilo
da Silva
8
Família do Cirilo
102
Na atualidade, diversos membros da comunidade se encontram morando fora
do território. São vários os motivos para tanto. O principal é que a maioria da população
acabou por ser expulsa ao longo do conflito com os fazendeiros. Outros são: alguns se
mudaram pra Filadélfia, a pedido da equipe de saúde do município, devido à incidência de
doenças; outros porque se casaram com uma pessoa de fora e foram morar com o mesmo;
alguns outros para ter oportunidade de trabalho.
Temos assim a conjugação de dois fatores influenciando nesse verdadeiro
êxodo do território. O primeiro é a redução do tamanho da área do território, fato esse que
se inicia a partir do fim da década de 1950, com a chegada de posseiros na beira do ribeirão
Gameleira que lhes retira esta porção do território, e se completa com a chegada de
Deusdete e Francisca, em 1979, com a perda da maior parte da beira do rio João Aires e da
área do entorno do córrego e morro do Grotão. A situação atual é extremamente dramática,
com a comunidade espremida na área atualmente ocupada por decisão judicial. Nesta,
existem poucas áreas de mata de beira de rio para o uso produtivo, o que tem exigido
intervenções externa para garantia da segurança alimentar da comunidade.41
Em segundo lugar temos as dramáticas condições de disputa pela terra
constrangendo o grupo por mais de 30 anos. Nestas condições, mesmo que alguns tenham
permanecido e garantido assim o direito da coletividade ao seu território étnico, a maioria
acabou por desistir e buscar condições de sobrevivência em outros lugares menos violentos.
Temos assim claramente caracterizado um processo que conjuga expulsão
pela violência da luta pela terra, prática comum na zona rural brasileira, com um processo
de „expulsão estrutural‟, conforme coloca Bourdieu (1962), prática comum em muitas
comunidades camponesas do mundo.
No entanto, esse processo de expulsão nunca é total e definitivo. Um membro
da comunidade que não mora na terra não está fora da comunidade e muito menos do
território. O pertencimento a comunidade e ao território se dá pelo vinculo de sangue
adquirido em função do nascimento no seio da família. Qualquer mudança de endereço não
significa a ruptura deste laço e das obrigações daí decorrentes. A ética
camponesa/quilombola, eminentemente baseada na relação de reciprocidade, é estendida
até o novo local de morada dos membros da comunidade, tornando a cidade uma extensão
do território quilombola.
A presença de um membro da comunidade em território urbano estende a
rede de relação do quilombo até a cidade. Em caso de necessidade de estudo ou
tratamento emergencial de saúde, qualquer membro da comunidade pode contar com uma
base de permanência na cidade. O acesso a alguns bens da modernidade pela comunidade
41
Conferir próximo capítulo sobre a produção.
103
é facilitado. Da mesma forma, aquele que se muda é freqüentemente presenteado com
produtos oriundos do quilombo. Temos assim o estabelecimento de um autêntico
intercâmbio quilombo/cidade.
O vínculo é renovado de tempos em tempos, quando alguns retornam para
participar de um ou outro festejo. Aqueles que moram mais perto costumam vir todo ano. Os
mais distantes se programam para vir de vez em quando. Nessas ocasiões eles trazem
novidades e presentes, assim como convidam seus parentes a lhes visitarem futuramente.
Dessa forma, e mantido vivo o circuito da reciprocidade, reforçando os laços sociais.
Rita de Cássia e Helena Silva igualmente perceberam esta relação entre os
expulsos e os que permanecem no território do Grotão.
A ligação com o distrito de Bielândia e a Sede deste município é intensa, devido alguns irmãos, filhos, netos e sobrinhos dos senhores Cirilo e Raimundo possuírem casa nestes locais, mantendo as relações de parentesco e afinidade vivas. O Sr. Cirilo informou que seus irmãos foram morar em Filadélfia depois do conflito gerado pela posse da terra e pelo mesmo motivo a filha do Sr. Raimundo foi morar no distrito de Bielândia (35 km distante da comunidade) (Domingues-Lopes e Silva, 2009: 12).
Nesta comunidade, vítima de depopulação causada principalmente pela
expulsão da terra e por problemas estruturais, os critérios de pertencimento, antes fixados
na própria família, acabam tendo que ser alterados. Na medida em que a luta contra os
fazendeiros se acirra, a solidariedade é exigida de todos, os que ficam na terra e sofrem
violência e os que saem e sofrem de saudade.
Desse modo, entendemos que o pertencer à comunidade, a família e ao
território são uma coisa só. Isso porque para se ter direito a terra, tem que se pertencer à
família, tem que ser da comunidade. Da mesma forma, para se pertencer a comunidade,
não é preciso ter nascido no território. Será herdeiro de pleno direito os descendentes
nascidos fora do território, pois ter nascido na família é o mesmo que ter nascido no lugar.
No entanto, na atualidade, alguns dos parentes que saíram há algum tempo
acabaram por não se solidarizar com a luta da comunidade e, em alguns momentos,
apoiaram os fazendeiros. Neste caso, mesmo sendo considerado parente o vínculo de
sangue é menosprezado e, na medida em que estes não apóiam a luta da comunidade, não
são entendidos como pertencentes à mesma.
Aspectos cosmológicos e religiosos
Um dos aspectos mais ressaltados pela comunidade na maioria de nossas
conversas eram as festas que ocorriam antigamente. Estas são lembradas tanto pelos mais
velhos como pelos mais novos com muita emoção. Entendemos que é por meio destas
104
lembranças que eles refazem os vínculos com os parentes que já morreram ou que estão
distantes. Assim, lembrar dos tempos bons em que se festejava a vida é um meio de
projetar um futuro melhor para a comunidade.
São vários os festejos que ocorriam antigamente na comunidade. Segundo
me informaram, os principais eram Dia de Santo Reis, em 06/01; Divino Espírito Santo, em
Maio ou Junho; São João, em 24/06; São Pedro, em 29/06; São Lázaro, em 11/12; Santa
Maria, em 13/12;
As principais folias eram de Santo Reis e do Divino. Na primeira eles contam
que durante a noite, a comunidade se reunia e as pessoas iam passando de casa em casa
para chamar umas as outras. Os caretas já estavam no local da folia, antes que os outros
foliões chegassem. Cirilo se lembra que:
Fazia umas caroça, caroça de imbira [...], uma cuia botava, tampava ela de papel, a testa da cuia, fazia os olhos. Cortava tora de buriti, botava em cima dizendo que era venta. Cortava o cabelo do rabo do animal, botava em cima dizendo que era o bigode e preso assim dizendo que era a barba, do careta.
A folia começava dia 25 de dezembro e durava três noites. Os caretas
entravam nas casas, às vezes quando o dono ainda dormia, e mexiam na cozinha, pegavam
os ovos no poleiro, mas era apenas de brincadeira. Os caretas vendiam os artigos roubados
para os próprios donos. Depois todos cozinhavam aquilo que os donos da festa haviam
comprado e comiam. Muitas pessoas participavam da Folia, até mesmo pessoas de fora da
comunidade. Havia uma carreata que passava nas casas, mas como era época de inverno,
de vez em quando os foliões eram pegos pela chuva no meio da estrada e se estabeleciam
em alguma das casas. Tudo isso servia de preparação para a festa do dia 6, que era a festa
de Santos Reis.
Reza no dia de Divino Espírito Santo, quando ainda era realizada no Grotão
Fonte: Monóculo de Teodorico e Jacinta
Já a Folia do Divino começava no Domingo de Páscoa. Os foliões usavam
105
camisas e fitas nos chapéus das cores das bandeiras. A folia durava três dias, antes da
festa do divino, que se realizava de acordo com o final da Quaresma, no fim de maio pra
junho. A festa do Divino sempre cai no domingo e as pessoas saiam antes do dia da festa
para terem tempo de organizar a mesma, fazendo as comidas tradicionais. Nessas duas
festas vinham muitas pessoas de fora da comunidade.
Outras festas muito lembradas na comunidade são as juninas. Junho tinha os
feriados de Santo Antônio, dia 13, e de São Pedro, dia 29. Nestes dias não tinha festa, mas
só reza. As vezes tinha a festa de São Pedro com mastro e tudo na casa da Tereza, irmã do
seu Cirilo. Dia 24 é que se fazia a grande festa de São João. Nesse dia a festa varava a
noite e acabava no dia 25. Esta festa era especial, pois tinha mastro e fogueira.
Levantava-se o mastro com bandeira do santo no dia 24 e só derrubava no
dia 25. No entanto, às vezes o capitão ou o presidente da festa não deixava derrubar o
mastro para não acabar a festa. O capitão ficava em cima do mastro e os homens
carregavam o mastro por todo o terreiro da casa. Daí se juntava os afilhados, os compadres
para pular as fogueiras, batizar as crianças. Segundo Cirilo, casavam até gente na fogueira,
eu fui casado na foguearão.
Naquele tempo o todo povo se reunia para festar. As festas eram feitas nas
varandas e para iluminar se usava lamparina de óleo chamada castiçal. Era uma panela de
barro com azeite de mamona, ai botava um pavio de algodão e acendia o fogo. Queimava a
noite toda, pois as pessoas dançavam e iam atiçando o fogo no algodão. Às vezes botava
fogo numa tora de sebo que igualmente precisava ser controlado e puxado para fora do óleo
quando o fogo tava baixo. Vela de cera da abelha (Tanaira) também era usada. Querosene
era só para pessoas muito ricas e eles não tinham acesso.
Comia-se muito nestas festas. Furava um cupim, colocava a lenha e tocava
fogo para fazer brasa. Daí, no oco do cupim colocava a massa do bolinho de mandioca
enrolada na palha de banana para assar. Matavam porco e galinha e faziam canjica. Bebida
era café de coco, piaçava e tucum, ou de andu. Cachaça sertaneja era comprada ou era
feita na redondeza. Depois que todos comiam e rezavam, iam brincar. Dançavam samba e
baião a noite toda no terreiro das casas.
Cirilo se lembra das festas com muita emoção;
Ai o Chiquinho Cassimiro, que era meu tio, botava a rebeca na cabeça e saia arrudiando a sala com a rebeca. E os outros, Sabino, Patrício, [e Isac]. Sabino é meu irmão, Patrício é meu primo, ai saímos ao redor, um batendo na caixa, outro no bombo e outro no reco. Xereleco, xereleco, com um aramezinho, tudo enrugado e a mulhezada e nós arredor, com o pessoal fazendo aquela roda. Chiquinho Cassimiro na frente, com a rebeca e cantando. Oie muie rendeira, oie muie renda. Tu me ensina a fazer renda que eu te ensino a namorar. E os outros Tum duc, Tum duc, duc duc. Ai os irmão meu no reco.
106
Xerereco, xereco. E arrudiava até terminar.
A música era tocada na rebeca, um tipo de viola maior que um violino, flauta e
percussão. A rebeca era feita com a madeira do local e o arco era feito do cabelo do rabo do
cavalo. A flauta era feita de taboca. Antigamente os casais não dançavam agarrados,
dançavam pegando num lenço, que tinha que respeitar a distância. Não juntava não. Depois
começou a pegar na ponta dos dedos, já na atual geração dança agarrado.
Naquele tempo existiam muitos Dias Santos onde não se trabalha. Daí se
aproveitava estes dias em que ninguém trabalhava para ir pescar. Em janeiro tinha Dia
Primeiro do ano (01), onde ninguém trabalhava que era feriado; Santos Reis (06) o povo
rezava, depois tinha reza a noite, ai ia festar ate o dia amanhecer; e São Sebastião (20).
Em fevereiro tinha São Lázaro (11) quando não tinha festa, só reza na
Firmina. Só os animais é que comiam, tinha gente que dividia a comida junto com os
cachorros. Tinha que ser sete cachorros. Se faltava um, alguém fazia às vezes de cachorro,
para entrar os sete. Ai ele disputava comida igual os cachorro. Segundo Cirilo, Sabino fazia
às vezes do cachorro, ele era meio guloso e apalhaçado, que ele era rosnando e mordendo
as mãos da gente, que metia a mão, ele rosnava. No Carnaval não se trabalhava desde
domingo até a quarta-feira de cinzas. Fazia a comida e comia no couro, mas não tinha festa.
Este era o dia de jejum. Daí até quarta-feira de cinzas.
Em março tinha São José (19). Em abril a Semana Santa. Começava quarta-
feira, outro dia de jejum. Preparava as comidas tudo antes, daí a manhã toda era de jejum e
recolhimento. Cirilo lembra que nem água a mãe da gente deixava beber. Depois do meio-
dia podia almoçar e jantar. Isso se repetia na quinta-feira e na sexta-feira, apenas duas
refeições no dia. Mas a comida é toda preparada antes. Na quinta-feira é sentinela. Não
podia pentear o cabelo, não podia usar facão, animal preso era tudo solto, piado e despiado.
Nestes quatro dias tava tudo solto. Só na segunda-feira é que se prendiam os animais e se
voltava a trabalhar.
No sábado de aleluia eles madrugavam de sexta pra sábado. As crianças iam
brincar e mais a noite iam rezar com os pais, mas apenas reza sem cantoria. Só depois,
durante a madrugada, é que eles iam brincar. E quando amanhecia o sábado de aleluia
cada um ia pra suas casas. E no domingo era páscoa, rezar de noite. E segunda voltava ao
normal, voltava a trabalhar.
Em maio tem o dia do Espírito Santo (31), quando não tinha festa, apenas
reza. Em junho tinha as festas juninas acima descritas. Em julho festejava-se o dia de Nossa
Senhora do Desespero (15). Esta festa foi introduzida na comunidade por promessa de
Maria Lourença que, ao ver o filho muito doente, prometeu que faria uma festa naquela
mesma época se a santa curasse seu filho. Quando ela morreu, acabou a festa e ficou
107
apenas a reza. A festa é da pessoa, se a pessoa morre a festa só continua se a população
quiser. Conforme Cirilo, porque aquilo era daquela pessoa, né.
Em agosto, na primeira e na derradeira segunda-feira de agosto ninguém
trabalha porque é feriado. É um feriado criado por eles porque o mês é muito forte, de
trabalho muito árduo. Tem ainda o dia São Domingo (4) e São Jesus (6), onde só se reza.
No dia 15 de agosto tem três santas: Nossas Senhoras da Abadia, de Aparecia e de Belém.
Nesse dia também não trabalha. São Raimundo (31), idem.
Em setembro tem Nossa Senhora de Nazaré (8), em que ninguém trabalha e
só tem reza. Outubro não tem feriado e o próximo é em novembro, dia de Todos os Santos
(1) e Finados (2). Quando chegava próximo ao dia de finados, mutirões eram feitos para
limpar os cemitérios. Segundo Cirilo,
Quando fosse já assim, num prazo de uns cinco dias [antes], ajuntava aquele horror de gente ia capinar, outros varrendo, outros apanhando cisco. [...] Um caldeirão velho grande, cheio de frito, levava lá pra dar de comer ao pessoal que tava trabalhando lá, fazendo a limpeza. Ai quando terminava tudinho, já levava aquelas vela de cera de abelha mesmo, botava lá, acendia, botava tudo pra reza uns pai nosso.
No dia de finados todas as pessoas iam ao cemitério visitar e reverenciar seus mortos.
Em novembro tem o feriado de São Felix (15), protetor dos caboclos. Neste
dia o irmão e a tia de seu Cirilo rezavam. Apesar da morte dos dois o feriado permanece, só
não permanece a reza. No entanto a comunidade continua a guardar esse dia que
normalmente é usado para pesca.
Em dezembro tem o feriado de Nossa Senhora da Conceição (8). Neste dia
era a tia do Raimundinho Lourenço que rezava. Depois tinha o feriado de Santa Luzia (13) e
depois o Natal. No dia 24 trabalha-se, só se reservava o dia 25.
Curiosamente, os feriados oficiais sem conotação religiosa não são
respeitados. Esses expressam fatos externos e completamente alheios ao grupo, não
fazendo para eles qualquer sentido. Deste modo temos um pequeno conflito instaurado com
a abertura da escola na comunidade. Cumprindo o calendário oficial da Secretaria Municipal
de Educação, os alunos ficam sem aulas nos feriados e comemorações pátrias, enquanto as
devem assistir nos dias sagrados de um santo forte. Para os idosos da comunidade um
verdadeiro contra-senso.
Na atualidade não tem mais festejo na comunidade. Segundo me informaram,
estes acabaram porque Deusdete sempre implicou com as festas, até que as impediu de
vez. Não sabemos se isto é real, ou se as festas acabaram quando da saída das pessoas
da comunidade, devido aos conflitos. O certo é que a memória destas festas está presente
na comunidade, principalmente devido ao casal Jacinta e Teodorico que mora em Filadélfia.
108
Estes são os guardiões das relíquias sagradas da comunidade, conforme acima
documentadas. Eles me informaram que ainda fazem os festejos na rua, mas que há muito
tempo que não fazem mais no Grotão.
Conversando com todos da comunidade, sentimos que para eles a luta pela
terra somente será considerada encerrada com vitória quando um festejo for, novamente,
ritualizado no território quilombola do Grotão. Somente assim este território será, enfim,
purificado de todo o mal que nele se abateu.
Quadro de Santos Reis e caixa do Divino Espírito Santo
Bandeira do Divino Espírito Santo e instrumento utilizado nas folias
109
AMBIENTE E PRODUÇÃO
O ambiente local
A região em que se situa Filadélfia é típica do cerrado existente no Centro
Oeste brasileiro: amplos campos de pasto nativo e vegetação rala e retorcida, cortados por
matas de galerias que acompanhas os inúmeros córregos e rios da região. Por se encontrar
na bacia do rio Tocantins ele apresenta a característica de apresentar terrenos
relativamente planos e de baixa altitude, entremeados de vez em quando por uma serra ou
chapada.
Ocupado pela comunidade do Grotão há aproximadamente 150 anos, o
território ora em estudo reproduz bem estas características. Pelo fato da comunidade ter se
originado de um grupo de escravos fugitivos de uma região igualmente de cerrado – sul do
Piauí ou do Maranhão – e pelo uso tradicional da área ao longo de tão extenso período, foi
possível ao grupo elaborar uma cosmologia, uma etno-classificação e um saber produtivo
sobre o ambiente local que foi passado de geração a geração até a atualidade. Foi por
intermédio desta perfeita adaptação ao ambiente que o grupo conseguiu garantir sua
reprodução física e social realizando um uso racional e não predatório dos recursos
disponíveis no território.
Esse profundo conhecimento da geografia e do ambiente local, evidenciando
uma estreita relação com a natureza, é típico do modo de vida das diversas comunidades
tradicionais, assim como os quilombolas. Como bem coloca Diegues, esses grupos se
caracterizam pela:
dependência e até simbiose com a natureza, os ciclos naturais e os recursos naturais renováveis a partir dos quais se constrói um modo de vida; conhecimento aprofundado da natureza [...] que se reflete na elaboração de estratégias de uso e manejo dos recursos naturais [...]; noção de território ou espaço onde o grupo social se reproduz econômica e socialmente [...]; importância das simbologias, mitos e rituais associados à caça, à pesca e atividades extrativistas; tecnologia [...] simples, de impacto limitado sobre o meio ambiente (1997: 87).
Nessa perspectiva, o saber coletivo da comunidade quilombola do Grotão
realiza uma leitura bem específica do ambiente percebido em seu território, dividindo-o em
três grandes unidades de paisagem: o cerrado, a principal referência espacial que
caracteriza o território; a beira de córrego ou brejo, a área preferencial de moradia e das
principais atividades produtivas; o rio, área que serve principalmente para pesca; e o morro,
a área menos utilizada pelo grupo.
A unidade de paisagem denominada de cerrado é a área de vegetação mais
110
aberta e que ocupa a maior parte do território. Segundo os membros da comunidade, esta
unidade se divide em quatro espaços denominados de cerrado, quando a vegetação
arbórea é mais presente; área limpa, quando esta é mais rala ou mesmo ausente; vareda,
quando a área é mais baixa e sujeita a alagamento; e mangal, quando ocorre uma
vegetação arbórea mais fechada com árvores frutíferas e nativas, devido à reminiscência de
antigos quintais.
Área de cerrado
A área limpa pode ainda se subdividir como campo, quando apresenta
cobertura de capim, ou pelada, quando este é ausente.
Caso de área limpa com incidência de campo, mas onde aparecem duas áreas peladas (uma é a área mais clara e a outra é no alto do pequeno morro a sua direita)
111
Área denominada vareda
Um mangal onde se encontram pés de manga, caju e coco, entremeado à vegetação nativa
A unidade denominada de beira de córrego ou brejo acompanha o rio João
Aires, o ribeirão Gameleira e os diversos córregos e brejos que abundam na região. Esta
área é rica em caça e possibilita extração de madeira e de recursos vegetais. O que
diferencia suas principais unidades é a proximidade ou afastamento da água. As áreas de
mata mais altas são consideradas mais enxutas e por isto, mais propícias a agricultura. As
áreas de mata mais próximas a beira d‟água somente servem para os demais usos.
112
Área de beira de córrego ou brejo ao fundo com sua característica mata ciliar
Área de brejo
Por fim, temos as duas unidades que apresentam um uso mais esporádico. O
rio João Aires e o ribeirão Gameleira, cujo uso principal atual é na pesca, sendo que
antigamente servia também para plantio na vazante. E o morro do Grotão, que tem um
imenso potencial turístico ainda não explorado.
113
Rio João Aires
Morro do Grotão
Cada uma destas unidades tem um uso específico por parte da comunidade,
uso este diretamente relacionado com as características naturais apresentadas pela unidade
e apreendidas pela comunidade. Desta forma, na medida em que a comunidade realiza um
uso extensivo, racional e sustentável de cada uma destas unidades, seus recursos não são
esgotados e a área do território que permaneceu mais tempo sobre o domínio do grupo
atualmente se encontra bem melhor preservada do que as áreas vizinhas perdidas,
conforme se constata pelas fotos acima. Já a área sobre domínio de proprietários desde os
anos 1960/1970, encontra-se muito mais transformado e degradado, com algumas áreas
formadas por amplos pastos plantados. Não obstante, mesmo nestas áreas se observa que
córregos e brejos ainda mantêm suas matas de galeria preservadas.
114
Área sob domínio de proprietário não quilombola com pasto artificial plantado e mata de galeria ao fundo.
Em relação aos usos produtivos tradicionais praticados pela comunidade nos
diferentes unidades de paisagem e espaços, foram estes os levantados.
Unidades de Paisagens existentes na região, segundo a comunidade do Grotão
Unidade de Paisagem
Espaços Características Usos Tradicionais
Cerrado Cerrado Área de cerrado com vegetação arbórea mais encorpada.
Caça, pastoreio de gado e coleta de recursos vegetais.
Área limpa: - Campo - Pelado
Área de cerado com vegetação arbórea menos encorpada. Possui capim nativo. Não possui capim nativo e é pedregoso e mais elevado.
Pastoreio de gado e coleta de recursos vegetais.
Vareda Lugar mais baixo que alaga Pastoreio de gado. Mangal Formado por árvores frutíferas
que foram plantadas em quintais abandonados de antigos moradores.
Caça e coleta de recursos vegetais.
Beira de córrego ou brejo
Mata de beira Mata ciliar mais afastada do curso d‟água.
Plantio de roças, extração de madeira, caça e coleta de recursos vegetais.
Brejo Mata ciliar mais próxima ao curso d‟água, em que o terreno é mais úmido.
Extração de madeira, caça e coleta de recursos vegetais.
Cabeceira Nascente dos córregos e brejos. Extração de madeira, caça e coleta de recursos vegetais.
Rio O rio João Aires e córrego Gameleira
O leito do rio, propriamente dito. Pesca e caça de animais aquáticos ou que vão beber, roça de vazante.
Morro Morro do Grotão Única extensão mais elevada do território.
Caça, pastoreio de gado e coleta de recursos vegetais.
Quanto à flora e a fauna existente, estes foram os elementos levantados junto
à comunidade quilombola do grotão.
115
Usos tradicionais da fauna e flora da região
Elemento Natural Uso Tradicional Espécie
Árvore Uso como madeira
Canjirana, mata menino (chorão), mirindiba, casco d‟anta, cachamorra, capitão, pau de terra, camaçari, pageú, gonçalalves, candeia, margoso, caga machado, fava d‟anta, pindaíba, aroeira, pau d‟arco, pequi do brejo, tarumã, paqueira, nenju, bananinha, laranjinha, cabelo de cutia, pau de rato, maliça, capa bode, jurema, favela, rosca, pau bolota (fava de bolota), canela de velho, canela de urubu e angico.
Uso como palha Piaçaba, babaçu e anajá (inajá).
Uso como corda (embira)
Mucunã e cachimbeiro.
Uso medicinal Craíba, simbaíba, cachamorra, imbaúba, sangra d‟água, mangabeira, cipó santo, cipó de escada, brinco, barbatimão, pau de leite, pau de terra, sangra d‟água, quina, cachimbeiro, mororó, angico, jurubeba, japecanga, gameleira, Moreira, birro e atraca (leite de atraca).
Uso alimentício Jatobá, buriti, caju, manga, goiaba, pequi, mearim, murici, coco, olho de boi, caiba, tucum, pau pombo, maçaranduba, mangaba, bacaba, buritirana, inharé, araçá, piaçaba, babaçu, anajá (inajá), oiti, bananinha, criolí, azedinha, mutamba, cajá e jenipapo.
Plantas e arbustos
Uso como pasto Capim agreste, jaraguá, barba de paca, tiririca, barba de bode, capim buriti e capim de vargem; Uso medicinal: vassourinha, chá de vareda, velame, capim santo, erva cidreira, campanha, capim de cheiro, alecrim, fedegoso, batata de purga, papaconha, caninana, negra mina, tipi, melosa, folha de carne, língua de sapo, cabaça, broto da raposa, broto da quaresma, dipirona, malva do reino, folha grossa, hortelã, pinhão e mastruz.
Usos diversos Amalva (vassoura), cabaça (utensílio doméstico), alecrim e pinica-pau (artesanato).
Uso não definido Folha de fonte e língua de vaca.
Animais Uso comestível Capivara, paca, tatu, tatu peba, cutia, veado, caititu, rabo de couro, zumbi e anta.
Sem uso Tamanduá, tamanduá bandeira, mambira, papa-mel, guaximim, quati, gambá, mucura, raposa, lobo guará, macaco (capelão, prego e guariba), preguiça, gato do mato e saruê.
Répteis e anfíbios Uso comestível Jacaré e teiú.
Sem uso Camaleão, labigó, cascavel, caninana, pega pinto, jaracuçu, jibóia, coral, cobra cipó, saramanta, cobra papagaio, surucucu de fogo, duas cabeças, jararaca, guaipega, corre campo, maia de cascavel, tira peia, rabo de osso, pico de jaca, cobra d‟água, sucuri, sapo, gia e rã.
Peixes
Uso comestível Caranha, jau, surubim, pirarara, piranha, curimatá, pacu, cará do rio, dourado, piau, piau bico de pato, piau cabeça gorda, piau voador, piau flamenguista, piau vara, pintado, mandi, mandi ferro, mandi chicote, mandi moela, mandi serrote, mandubé, fio d‟água, boca larga, sardinha, piaba, olho de burra, mariana, traíra, praque (poraquê), cuiu-cuiu, cumbá, tambaqui, arraia, piabanha, bicuda, cachorra, corvina, matrinxã, tubarana, beiradeira, tucunaré, boca de fulo, cari, bicuda e lampreia.
Aves
Uso comestível Siriema, ema, fiandeira, arara, papagaio, curica, jandaia, lambu, jaó, perdiz, tucano, felipe, jacu, rolinha, aracuã, galinha d‟água, mergulhão, socó, côa, jaburu, mutum, inhuma, martim, periquitomarreca, pato do mato, caroca, ferreira, codorniz, garça, juriti e amargosa (pomba).
Sem uso Corujão, coruja, mãe da lua, gavião, pinhé, urubu, beija-flor, curió, bem-te-vi, andorinha, uru, tetéu, coã, curicaca, catatau, canário, sabiá, alma de gato, chupão, papa-sebo, salta-chão, pipira, cocuruta, João bobo, urubuzinho, corriqueira e morcego.
Para concluir, ainda segundo o Relatório Agronômico elaborado pela equipe
técnica do INCRA, o território apresenta as seguintes características:
116
5.2- CARACTERÍSTICAS FÍSICAS E EDAFO-CLIMÁTICAS
5.2.1- Relevo
As formas de relevo apresentadas na região são constituídas basicamente
por dois tipos: Formas Estruturais e Tipos de Dissecação.
Formas Estruturais – relevo cuja topografia é condicionada pela estrutura.
Neste caso, processos morfodinâmicos geram formas de relevo em
conformidade com a estrutura geológica. As camadas mais resistentes
sobressaem no relevo.
Tipos de Dissecação – formas de relevo entalhadas pelos agentes erosivos,
havendo uma dissecação diferencial do relevo, principalmente ao longo da
rede de hidrográfica.
5.2.2- Solos
Predominam na região, os Latossolos Vermelho-Amarelo, Latossolos
Amarelo, Latossolos concrecionários, Podzólicos Vermelho-amarelo,
Neossolos Quartzarênicos, Neossolos Litólicos, Cambisssolos e
Hidromórficos Gleizados.
5.2.3- Recursos Hídricos
O imóvel se situa na Bacia do Rio Tocantins.
5.2.4- Clima
Pelas características definidas, a região se encontra em área de transição
climática, com predominância de clima tropical úmido da Amazônia (tipo AM)
segundo Köeppen.
5.2.5- Temperatura
A temperatura média anual varia de 25° a 27°C.
5.2.6- Precipitação
A precipitação pluviométrica média varia na faixa de 1400 a 1800mm ao ano.
Existem dois períodos bem distintos, um chuvoso e outro seco, o de maior
concentração das chuvas ocorre nos meses de outubro a maio, no período de
estiagem registra-se a média de 100 mm.
5.2.7- Umidade Relativa
Umidade relativa do ar média anual varia de 75 a 80%.
[...]
6-CARACTERÍSTICAS FÍSICAS DO E BIÓTICAS DO TERRITÓRIO
6.1-Vegetação: O território constitui-se de cerrado típico, destacando-se
espécies como o capim agreste, pequi, sambaiba, mangabeira, jatobá,
Gonçalo Alves, buriti, caju, mangaba, buritirana, candeia, pau-terra, capitão
do campo, inharé, gameleira, murici, tucum rasteiro, bacaba, araçá, angico,
cachamorra, imbaúba, babaçu, inajá, piaçaba, etc.
6.2-Fauna: O território apresenta uma fauna bastante diversificada onde são
encontrados mamíferos: capivara, paca, tatu, cutia, anta, tamanduá bandeira,
quati, mucura, lobo guará, macaco prego, macaco capelão, macaco guariba,
preguiça, gato do mato, répteis/bratáquios: jacaré, teiú, camaleão, cascavel,
caninana, jaracuçu, coral, jararaca, surucucu, sucuri, aves: siriema, ema,
arara, papagaio, curica, nambu, perdiz, tucano, jacu, rolinha, jaburu, mutum,
juriti, periquito, marreca, etc. peixes: caranha, jaú, surubim, piranha, piau,
pintado, mandi, mandi cabeça de ferro, mandi moela, traíra, piraqué,
tambaqui, matrixã, etc.
6.3-Relevo: O relevo do imóvel é 90% plano, 8% suave ondulado e 2%
117
ondulado ou montanhoso.
6.4-Recursos Hídricos: A rede hidrográfica é bastante rica com muitas
nascentes e pequenos córregos, destacam-se na hidrografia o Rio João Aires
e o Ribeirão Gameleira, e ao longo desses mananciais sempre existe uma
mata ciliar bastante espessa.
6.5-Solos: O território é constituído basicamente 90%, por Latossolo
Vermelho Amarelo textura média, Latossolo Amarelo textura argilosa e
Neossolo Quatzarênico; 5% por Neossolo Litólico e Glei pouco húmico
(Pádua, 2010: 01, 04 e 05).
As práticas produtivas
Antigamente a alimentação era oriunda prioritariamente da roça. A principal
produção era de mandioca, que era plantada principalmente para fazer farinha. Segundo
Seu Raimundo: na roça plantava mandioca, algodão, feijão, batata, gergelim, inhame, milho,
abóbora, dava com fartura, maxixe, quiabo, cheiro verde...
O plantio era feito em roça de toco ou de coivara, nas terras de área de mata
que beiram os córregos e brejos. Não se derrubava a vegetação mais densa na beira do
curso de água, pois ai já é considerado brejo, com excesso de umidade, o que atrapalha o
plantio. A derrubada ocorre de junho a setembro. Em junho e julho roça o mato fino e depois
que a área está mais limpa, cortam-se os paus mais grossos com machado. Em setembro já
pode queimar o mato derrubado, tarefa que pode ser executada em qualquer dia. Depois se
cercava a área com as madeiras derrubadas, para os animais não atentarem.
A área a ser derrubada para a roça é calculada de modo a que resulte em
duas ou três linhas42 para cada família que morava mais perto. O trabalho de roça,
derrubada, limpa da terra e queimada é realizado coletivamente entre várias famílias
vizinhas. Já os moradores mais isolados acabavam colocando roça sozinho, mas mesmo
assim os vizinhos mais perto sempre iam ajudá-lo.
Depois disto, onde a derrubada foi feita por mais de uma família, a área toda
é dividida para que cada uma delas assuma o seu pedaço que fica sob sua
responsabilidade e direção, mesmo que ainda se continuasse a contar com a ajuda dos
vizinhos no plantio e na colheita. Segundo Seu Cirilo, cada um é que mandava na sua roça.
[...] É que cada um come diferente, um come quiabo, outro não come. Um come maxixe,
outro não come. Ai cada um é que manda em sua roça.
Antigamente não se tinha nem foice, nem machado. As ferramentas utilizadas
eram um facão chamado rabo de galo, charcho ou cabo de arame e o machadinho, que era
um machado bem pequeno. Tinha também o cavador que servia para cavar buracos.
42
A linha ou tarefa corresponde a 3.025 m². Assim, cada alqueire tem 16 linhas ou tarefas.
118
Exemplar de ferramentas antigas: charcho e cavador
Para a comunidade, o plantio era todo baseando na lua. De acordo com Seu
Raimundo,
Na lua nova, quando ta fininha, daqui (aponta para o poente - oeste), planta-se fruta de rama. Quando ela está de crescente pra cheia, planta-se milho, arroz, mandioca. Na nova mandioca não dá bem não. Na nova, tanto a pesca como a caça não dá bom. Agora o feijão, se plantar depois da crescente da lua, enruga a folha que não dá nada. (...) A banana plantada no dia da cheia, dois dias depois da cheia, dá baixinha e abarrancado o pé, depois da cheia uns dois dias.
Conforme levantado, no modelo de plantio pela lua executado pela
comunidade do Grotão não existe nenhum dia em que não se pode plantar nada, não há dia
proibido ou impeditivo para o plantio. No entanto, existem dias mais indicados para plantar
determinada qualidade de planta, tem dia que é melhor que o outro. Além das posições
básicas que a lua ocupa ao longo de seu ciclo: nova, crescente, cheia e minguante, temos
outro dia conhecido da lua que é o truvo. Este é o dia antes da lua nova em que ela não
aparece no céu em posição alguma, devido a sua proximidade com o sol e por estar com o
lado escuro totalmente exposto para a terra. Para Raimundo, no dia do truvo é bom plantar,
porque ela não ta nem de cá (no poente), nem de cá no nascente. Ai ela não vê o arroz.
Pelo fato da lua não enxergar o que se está plantando na roça, ela não tem qualquer
capacidade de interferência, nem pra ajudar, nem pra atrapalhar.
119
Segundo se percebe temos dois tipos de plantas de roça que preferem dois
períodos distintos da lua para serem plantados. O primeiro tipo levantado é o da fruta de
rama, todas as plantações que tem pés baixos ou rasteiros e que enramam no chão ou em
outras plantas, como melancia, abóbora, melão, maxixe e feijão. Estas são plantadas
preferencialmente entre uns dois dias depois da lua nova até antes da crescente. O segundo
tipo de planta de roça são os legumes ou tudo que da pé, como mandioca, arroz, milho,
gergelim e banana. Estas se plantam preferencialmente entre a crescente e a cheia, mais
perto desta. Na cheia planta dos outros tipos. Perto da cheia planta os legumes.
As sementes eram guardadas em uma cabaça ou um pote de barro bem
tampado para que os ratos não atacassem. Elas ficavam todas misturadas e na hora de
plantar eles conheciam as sementes e as separavam. Atualmente se utiliza garrafas PET
para isto.
Exemplo de armazenamento atual de sementes
Assim como em outros grupos camponeses do Centro Oeste por nós
pesquisados (Almeida, 1988, 2005a), é preciso se iniciar o plantio tão logo o fogo da
queimada se apague. Assim, o lavrador realiza uma tomada de posse simbólica da terra que
deixa de ser considerada do domínio da natureza – terra derrubada e queimada – para ser
considerada pelo grupo como do domínio da cultura – roça plantada. E, tal e qual
anteriormente levantado, os símbolos aqui em disputa são os mesmos, a raposa e a
melancia, que perfazem o par de opostos: bicho bruto-natureza / semente-cultura. É esta
operação de plantio precoce que culturaliza e domestica a natureza que permite, entre
outras coisas, que a cinza da queimada deixe de ser um elemento inerte e passe a ser
considerada um adubo vivo.
Segundo Seu Raimundo,
120
Primeira coisa que planta é a melancia, antes da terra esfriar, antes da raposa carcar dentro da roça, quando queima planta logo a melancia. Nós não tem disso não. Planta em cima da bosta da raposa, tem problema não.
Após o plantio da melancia se espera que passe as primeiras chuvas, porque
estas são muito fortes e a enxurrada pode levar a semente plantada embora. Ai já se pode
realizar os demais plantios, enquanto que começa a chover, que molha tudo. Então planta-
se o milho, mandioca, banana, arroz, um por cima do outro. Conforme Seu Raimundo, pode
plantar tudo logo que começa a chover, depende da terra. Se for uma terra úmida pode
plantar antes chover, se for seca, só depois de molhar.
Nesta fase temos o plantio dos três principais legumes: arroz, milho e
mandioca. O primeiro plantio é o do arroz. Planta-se em carreira alternado um plantio e
outro, planta na enxada (antigamente) ou na matraca (atualmente). Antigamente não se
plantava enfileirado, prática recentemente introduzida na comunidade junto com a matraca.
Hoje a distância entre as carreiras do arroz é na base da largura da enxada, para possibilitar
a capina. Entre um pé e outro da mesma carreira a distancia é de meio palmo.
Atualmente o plantio do arroz é facilitado pela matraca, que exige apenas
uma pessoa. Antigamente eram necessárias três pessoas para esta tarefa. Plantava-se com
uma pessoa abrindo a cova com a enxadinha, outra colocando a semente e tampando o
buraco e uma terceira passando um rodo feito de varas de madeira, chamado porca, de
modo a disfarçar a área plantada para que as rolinhas (pássaros) não comessem as
sementes.
Demonstração do uso da porca e do charcho, antigamente usados no plantio
O milho é na mesma fila do arroz, entremeado um pé de arroz e um pé de
121
milho, mas com distância entre as carreiras de meio metro, ou seja, uma fila sim e outra não
de arroz. A mandioca é plantada do mesmo jeito que o milho – na fila do arroz e afastado –
só que mais próxima do que o milho. Esta última pode ser plantada na mesma época dos
demais legumes ou com um intervalo de tempo. O bom é plantá-la quando o arroz já nasceu
para que se vejam os pés e possa dar um espaçamento maior, para não atrapalhar. Para
estes tipos de plantio basta uma pessoa, uma vez que este abre a cova, joga a semente ou
a rama e ele mesmo tampa o buraco.
Roça de toco plantada pela comunidade em final de 2009 Principalmente de arroz, mas com alguns pés de milho ao fundo
Pequena roça de mandioca plantada em início de 2009, após o retorno do despejo
Após estes legumes planta-se a banana no meio da roça, com um bom
espaçamento entre pés. Estes plantios podem se feitos na crescente da lua, antes da cheia,
122
no próprio dia da cheia ou depois, desde que não se alcance à minguante. Para Raimundo,
se plantar o arroz quando a lua ta fininha (na minguante) o cacho fica miúdo e o arroz, se for
graúdo, fica pequeno.
Para além, planta-se abóbora e demais que enramam no meio disso tudo. Às
vezes se separa uma área pra plantar só melancia e abóbora ou mesmo milho, às vezes
não, depende da preferência do lavrador. Estes plantios são calculados e realizados de
modo a não atrapalhar o trabalho das capinas e não encavalar o trabalho das colheitas, que
no caso do arroz é muito grande e concentrado. Conforme relatam Aparecida e seu esposo
Raimundo,
Aparecida: Agora nos plantamos o arroz e o milho, ai amanhã nós vamos plantar a mandioca. O arroz sai primeiro que o milho e a mandioca fica atrasada, ai quando colhe o arroz, a mandioca ta aqui na base de palmo (de altura). Ai quando você corta o arroz, ai ela corre na colheita do arroz. Ela não atrapalha o milho? Não, o milho e o arroz já ta grande. Raimundo: o milho é ligeiro. Aparecida: pra colher a mandioca e de um ano, ano e seis meses. Raimundo: a mandioca, mas moço! Numa terra boa é seis meses já da farinha.
Roça de feijão com alguns pés de mandioca plantada em início de 2009, após o retorno do despejo
O trabalho de capina pode ser realizado em qualquer época da lua.
Antigamente se capinava com a enxadinha e no facãozinho ou charcho. Somente mais
recentemente é que se introduziu a enxada.
A colheita do arroz, que ocorre entre abril e maio, era realizada na mão,
puxando cacho por cacho, pois antigamente não existia cutelo na comunidade. Depois de
colhido pegava a mão de arroz e a tombava no sol, cuidando para virar de vez em quando,
123
para enxugar os cachos. Este era armazenado no próprio talo com o cacho. Para debulhar
se colocava no pilão e pilava até soltar o talo, retirava-se este e prosseguia até soltar o grão
do cacho e após, até soltar a palha. Cada dia se limpava apenas o necessário para se
comer.
Gergelim colhido posto a secar no sol para ser debulhado
Fonte: Equipe FCDO
Arroz colhido e batido, secando ao sol para ser armazenado
Fonte: Equipe FCDO
Atualmente o trabalho é bem menor. Utiliza-se o cutelo para cortar o cacho e,
depois de seco, bate o cacho na banca para soltar o grão. A banca é uma estrutura
construída de pau composta de duas forquilhas que sustentam uma estrutura de três varas.
Os cachos secos de arroz são batidos contra estes paus, o que solta os grãos. Estes caem
124
e são ajuntados sobre uma lona colocada no chão. Após, os grãos são ensacados para
serem armazenados. Esta técnica é recente na comunidade. Eles aprenderam quando
foram trabalhar em fazendas vizinhas, por volta da década de 1970 e 80, e observam sendo
feita. Ainda se aproveita a palha do arroz que sobra para adubar a terra. Queima-se e
planta-se melancia onde se bateu o arroz.
Na colheita todos ajudam, pois o serviço é muito concentrado, especialmente
a do arroz. Este legume tem que ser colhido muito rápido, pois não pode ser em dia de
chuva. Daí que quando tem uma estiagem, se ajuntava vários vizinhos para colher a roça de
uma família. Na próxima, se junta em outra roça e daí por diante.
Cada roça só dá um ano. Assim, é preciso derrubar um trecho novo todo ano.
A mandioca é o último legume na roça, pois fica depois de tudo mais ter sido colhido. Ai esta
área passa a ser chamada de capoeira. Depois de uns dois anos e meio, conforme vai se
formando o mato, passa a se chamar capoeirão. Com dez anos a natureza está totalmente
recuperada e vira mata do mesmo jeito que antes da derrubada. Este tipo de uso racional e
sustentável explica o porquê da área que permaneceu sob domínio da comunidade ainda
encontrar-se perfeitamente preservada, mesmo depois de século e meio de utilização.
Ocupação atual da comunidade com indicação das casas e das duas principais áreas de roças Em laranja a roça de toco com arroz e em verde a área gradeada com mandioca
125
Grande roça gradeada plantada com mandioca e roça de toco com arroz, conforme acima indicadas
Pequena roça de mandioca no quintal de uma casa e uma horta com canteiro de cebolinha
Fonte: Equipe FCDO
Atualmente existem duas grandes roças comunitárias na comunidade. A
maior, de 4 ha, é uma roça de mandioca plantada em área de cerrado próxima a escola da
comunidade. Esta novidade para a comunidade foi possível com apoio da CPT que pagou
várias horas de trator para limpar e gradear uma área de cerrado originalmente ocupada
com capim nativo e uma vegetação arbustiva mais rala. O plantio foi feito manualmente por
toda a comunidade.
A outra é uma roça de toco tradicional, de 1 ha, plantada em área de mata, e
ocupada em sua maior parte por arroz, com algumas áreas menores de milho. Para além
destas duas roças maiores, é possível observar pequenas plantações de mandioca, feijão e
gergelim nos quintais de cada casa, além de um ou mais canteiros de verdura.
Um sistema de roça antigamente existente, que hoje não se utiliza mais, é o
plantio de fumo de corda na vazante. Este plantio é realizado na época do verão, quando o
rio seca e em seu leito aparecem áreas mais adubadas pela lama, planta na vazante, onde
fica uma lagoa seca, uma lama do rio. É ai que se planta o fumo e outras verduras, como
melancia e etc.
126
Primeiro se preparam as mudas de fumo ou no quintal da casa ou mesmo na
beira do rio, cuidando-se de protegê-las do tempo, o que requer que as molhe
constantemente. Este plantio é feito por volta de março e em maio, quando está começando
a enxugar (a transição do período de chuva para seca, quando os rios começam a baixar),
quando as mudas estão com pouco mais de meio palmo, é a época de serem
transplantadas. Pelo fato da vazante ser uma área naturalmente livre de mato, nem
precisava limpar antes do plantio.
Depois de plantadas tem que cuidar de regar as mudas até que o fumo faça
sombra no próprio pé. Rega-se de três em três dias se a vazante for mais enxuta, se for
mais molhada rega-se de oito em oito dias. A rega é facilitada, pois pega-se a água do
próprio rio. Quando o pé de fumo está com pouco mais de metro de altura, por volta de fim
de agosto ou início de setembro, é preciso capar o olho (cortar a ponta ou o broto do pé)
para que a força seja deslocada do crescimento para as folhas. Vinte dias após as folhas já
estão maduras e prontas para colheita.
Daí corta-se o pé, deixando um talo de cerca de meio palmo. Este irá
rebrotar, produzindo uma segunda vez, a chamada soca. Devido á época, esta nova safra
não precisa ser aguada. No mais o processo é igual e a nova colheita se dá em outubro. O
talo cortado, ainda com as folhas, é pendurado no estaleiro, que são varas estendidas a
certa altura para bicho não mexer. Neste, espera-se secar por oito dias, cuidando-se de vez
em quando revirar as folhas. Depois disto retiram-se as folhas do talo e as enrola para se
fazer a corda de fumo.
Cada uma destas roças de vazante era de cerca de meia tarefa, no máximo
de uma. O fumo de corda era medido em arroba – 30 metros – e conforme o tamanho da
roça dava de 3 a 5 arrobas. As roças maiores, de uma tarefa, davam até 10 arrobas. O fumo
era produzido tanto para o consumo como para a venda. Segundo a comunidade, este era
vendido por um bom dinheiro, cada arroba valia 30 mil reis, e tinha gente que vivia só disto.
Às vezes era oferecida uma cabeça de gado de matutar (gado para ser morto e retirado a
carne) em troca do fumo de corda. Naquele tempo tinha comprador na própria redondeza,
os parentes e vizinhos ou mesmo fazendeiros de fora.
Nem todos plantavam fumo, só alguns na comunidade, e esta era uma
empreita individual onde cada um cuidava de sua roça. O melhor local era no ribeirão
Gameleira, que tem vários locais próprios até hoje. A comunidade informou que ainda hoje
dá pra plantar, mas que ninguém mais quer ter o trabalho porque não há comprador.
Antigamente a família vivia isolada, pois não tinha nenhuma outra
comunidade ou fazenda vizinha. Nesta época Filadélfia-TO já existia, mas era pequeninha,
morador muito pouco. O centro regional era Carolina-MA e Araguaina-TO, o atual centro,
nem existia. Só foi criada quando da construção da da Belém-Brasília, no início da década
127
de 1960. Gente de fora começou a aparecer de 1979 pra cá. Segundo Seu Raimundo,
lembro deste tempo antigo, fico com saudade, mas o tempo não volta mais. Tempo meio
difícil, mas era bom. Agora é outro movimento. Em função deste relativo isolamento, a
comunidade teve que produzir localmente muitos elementos necessários à sua
sobrevivência.
Farinha era feita no forno de barro. A farinha de puba era feita com a
mandioca sendo colocada na água, daí era ralada e prensada em uma prensa chamada de
jirau de vara. Neste a massa era pressionada pelo peso de pedaços de paus colocados
acima e deixava escorrer o líquido. Havia ainda o tapiti onde, segundo Seu Raimundo, põe a
massa, aperta e enxuga de repente (...) faz ele de todo o tamanho, eu faz do tamanho de
um palmo ou de todo tamanho. Uma vez enxuta, a massa era colocada no forninho de barro
para assar.
O forno de barro era construído levantando as paredes de taipa. Quando
chegava à altura certa: fazia a esteira aqui por riba de barro de lageiro, até topar com o
outro aqui, ai encontrava e curava ele com barro de louça... Dava uma farinha gostosa, dava
uma farinha boa só...
Fazia farinha quando fazia era pouca porque era pro consumo da casa. Cada
família fazia pouco e quando tava perto de acabar fazia mais. Para ralar a mandioca fazia
ralo da lata de querosene. Quando desocupava a lata. Abria e batia prego para fazer as
pontas a colocava numa armação de talo de buriti. Para secar a massa usava o tapiti. A
prensa foi aprendida dos vizinhos que viram fazendo. Ai quando é muita farinha faz na
prensa, quando é pouca faz no tapiti.
Casa de Farinha da comunidade, posteriormente destruída no despejo com detalhe do forno
Fonte: Equipe FCDO
128
Tapiti e jirau de vara
Fonte: Equipe FACDO
Fazia um barracão só de fazer farinha porque todos moravam perto. Aí fazia
um forno de barro grande, fazia duas divisões com uma parede. Num lado o forno e no outro
enchia de lenha. O forno era redondo. Colocava pedra embaixo e em cima fazia a parte de
cima, de assar com barro de louça. Aí, de quando em quando (mês em mês) tinha que
arrumar, pois rachava na parte de assar a farinha. Ai tinha que tirar o barro e refazer o
tampo. O forno de barro já acabou faz muito tempo, até 1967 usava, mas depois não
usaram mais.
Durante algum tempo a comunidade criou gado, mesmo que em pouca
quantidade. Este era do tipo curraleiro que, segundo Seu Raimundo, era um gado muito
bom.
Esse chifre (grande) e a orelha pequeninha. O leite mais gostoso do mundo e a carne... criado no capim do campo, no pasto comum, neste tempo não tinha pasto comum, neste tempo não tinha pasto manso não, só no comum. Agora o movimento mudou. Aqui no Norte ta tudo empastado, em todo lugar. Mas naquele tempo, era o curraleiro. O berro mais lindo do mundo, por exemplo, uma vacada aqui no curral escutava muito longe. O berro da madrugada.
Esta raça gado foi acabando e atualmente está extinta na área. Isto ocorreu
porque o curraleiro foi sendo paulatinamente misturado à raça nelore, introduzida
posteriormente e que proliferou, uma vez que é muito mais valorizada pelo mercado.
O couro do gado era curtido para se fazer diversas coisas. Pegava-se o
couro, pelava e botava no coxo com um sumo da casca do angico para curtir. Com vinte
dias ta curtido. Daí tirava as tiras pra fazer a peia, pra animal, alpercata (chinelo), sela de
animal. Conforme Seu Raimundo: Era serra de cutuca. Não é destes pantaneiros não. É
uma cutuca do angico assim... Fazia a bainha da ração também e curtia o couro do
129
catingueiro (veado) para fazer chapéu, chamado de gibão. Fazia perneira lisa que veste a
calça, pra andar nos matos atrás do boi bravo, e guarda peito.
Com o couro de gado também se fabricava sandália, cama e banco. Segundo
Seu Raimundo: de couro de gado a precata, né. Tirava as tiras assim e fazia essa alça, aqui
um rumo de dois dedos e abre uma barrinha aqui, pra esconder o dedo aqui. Ai metia o pé,
a precata de couro de gado... E durava! Cama, além de ser feita de couro de gado pregado
no quadro da cama também podia ser de palha de bananeira, que servia de enchimento do
colchão. Outro modo era fazer trançar embira no quadro da cama e neste caso era chamada
de cama de embira que era considerada melhor que a de couro. Mas a opção mais utilizada
para se dormir antigamente ainda era a rede. Além do couro, também se tirava o cabelo do
rabo pra fazer corda de seden.
Atualmente não se cria gado na comunidade, devido à falta de terra oriunda
da situação de despejo e da perda de todas as cabeças na época do conflito.43 Observamos
que na atualidade somente existe animais de carga comunidade, no caso jumentos. No
entanto, pode se observar em cada casa que se chega existe vários tipos de criação de
pequenos animais como porco, galinha, pato, peru e preá. Devido ao caráter ainda de
reconstrução da vida comunitária na nova realidade gerada pelo retorno ao território após o
despejo, esta pequena criação é toda destinada ao consumo.
Jumentos de carga existentes na comunidade
43
Sobre este processo, consultar o Capítulo III – Histórico da Ocupação.
130
Pequenas criações de galinha, peru, pato e porco e chiqueiro sendo construído no quintal
Fonte fotos 1 a 3: Equipe FCDO
Para além da criação de animais, outra fonte tradicional de carne é a caça,
atualmente pouco praticada. Os animais mais caçados antigamente eram: capivara, paca,
tatu, tatu peba, cutia, veado, caititu, rabo de couro, zumbi e anta. As aves boas de serem
caçadas eram: seriema, ema, fiandeira, arara, papagaio, curica, jandaia, lambu, jaó, perdiz,
tucano, felipe, jacu, rolinha, aracuã, galinha d‟água, mergulhão, socó, côa, jaburu, mutum,
inhuma, martim, periquitomarreca, pato do mato, caroca, ferreira, codorniz, garça, juriti e
amargosa (pomba). Atualmente, com a ocupação de toda a região por fazendas, a caça não
é mais abundante, razão pela qual esta não é tão praticada na comunidade.
Além da caça, outra fonte antiga de alimento, ainda fortemente presente na
dieta da comunidade, é a pesca. Esta é praticada principalmente no rio João Aires, mas
também pode ser realizada no ribeirão Gameleira. A pesca ainda é farta e os principais
pescados são: caranha, jau, surubim, pirarara, piranha, curimatá, pacu, cará do rio, dourado,
piau, piau bico de pato, piau cabeça gorda, piau voador, piau flamenguista, piau vara,
pintado, mandi, mandi ferro, mandi chicote, mandi moela, mandi serrote, mandubé, fio
d‟água, boca larga, sardinha, piaba, olho de burra, mariana, traíra, praque (poraquê), cuiu-
cuiu, cumbá, tambaqui, arraia, piabanha, bicuda, cachorra, corvina, matrinxã, tubarana,
beiradeira, tucunaré, boca de fulo, cari, bicuda e lampreia.
131
Carne de caça: capivara
Algumas poucas panelas eram de ferro, mas em geral as panelas e outras
vasilhas eram feitas de barro e produzidas na própria comunidade. Colheres eram feitas de
pau, de uma madeira chamada taipoca ou canudo. Para lavar e arear as vasilhas era
utilizado folha de malva, de tacatrapo ou de sambaíba: dá um brilho igual alumínio. Além
disto, eles fabricam diversos objetos feitos de palha como cestos, balaio, tapiti, vassoura,
abanos. De taboca, uma espécie de bambu, era feito o jacá de taboca.
Instrumentos feitos de palha: abano, jacá, cestos, vassoura e corda
132
Fonte de todas: Equipe FACDO
Vizinho à comunidade, na fazenda dos Figueiras, tinha um engenho e um
alambique. O engenho tinha três moendas feitas de jatobá que eram tocadas por boi. Com o
passar do tempo estas foram abandonadas e hoje não existem mais. Neste período se
produzia rapadura, açúcar, garapa, mel (melado) e cachaça. A cachaça era feita da cana
moída no engenho, depois botavam a garapa no cocho para azedar e daí a colocavam no
alambique para destilar. Devido às relações de compadrio com os Figueiras, a comunidade
tinha autorização do dono para fazer a garapa e a cachaça.
Alambique que era de ferro, mas já acabou tudo. Apurava o óleo da garapa,
para ficar azeda. Botava a garapa no cocho por uns três dias, depois botava no alambique e
tocava fogo. Daí começava a pingar a pinga. Seu Raimundo era novo quando o alambique
funcionava, por volta de 1950/60, mas se lembra muito bem de seu funcionamento.
133
Uma vez que era difícil de comprar tecido, na comunidade se plantava
algodão. Depois de colhido este era fiado pelas mulheres para fazer as linhas na roda de fiar
algodão. Após, estas eram tecidas para fazer roupa, rede e coberta. Atualmente não usam
mais roda de fiar algodão e a maioria que tinham já quebrou, mas ainda tem uma antiga na
comunidade. As mulheres ficavam a madrugada toda puxando o algodão (abrindo), lá pelas
3, 4 horas da madrugada elas ainda estavam batendo o algodão. Depois tiravam o caroço e
faziam uma pilha. Dai batiam e depois colocavam no balaio. Assim o algodão estava pronto
para fiar.
Antigamente o sal era de pedra. Este era comprado em Grajaú ou Balsas-MA,
a uma distância de 20 léguas, pois não tinha pra vender em Carolina-MA. A viagem a estas
cidades era feito com uma tropa de animal, gado e cavalo. O ponto mais difícil era a
travessia do rio Tocantins, que era realizada de canoa ou nadando. Lembram que num
determinado período foi feito um arrojo, uma embarcação de madeira que atravessava a
tropa toda.
O sabão era feito da seguinte forma: derrubavam um pé de angico,
encoivaravam a madeira e tocavam fogo. Daí usavam a cinza para fazer o sabão. O óleo
era obtido do coco babaçu que era coletado pelas mulheres no campo. Este era quebrado,
os pedaços eram colocados na panela para torrar. Daí passava no pilão para extrair o óleo.
Frutas do campo eram utilizadas para comer e fazer sucos para beber: buriti,
bacaba, cajá, araçá, farinha seca, oiti, puçá, cada um a sua época:
Quando é tempo do buriti não é do puçá, quando época do puçá não é época do buriti. Por exemplo, o buriti é de dezembro em diante a março, abril. O puçá é de setembro a outubro e a cajá também é igual com o buriti, é em fevereiro, a bacaba é igual ao buriti e a buritirana também dá igual no mesmo mês. O araçá é na época do puçá. A farinha seca, uma frutinha que as crianças gostam de comer, de colher no campo, ele é direto, também dá suco. O murici, o caju do campo, é em setembro até o fim de outubro.
Naquele tempo não havia fósforo e o fogo era aceso através de um aparelho
denominado Artifício ou Boi de Fogo. Neste, a fagulha provocada pelo golpe de uma pedra
num pedaço de ferro, chamado fusile, produzia uma fagulha que acendia uma brasa num
chumaço de algodão acomodado dentro de um instrumento feito de chifre. Ao se assoprar
esta brasa por meio de um pequeno orifício existente no fundo do aparelho, incendiava o
algodão e tinha-se, então, o fogo. Seu Raimundo nos explica como ele funcionava:
Ai então neste tempo o fósforo era difícil, ai o povo velho tirava assim um pedaço de chifre, de gado né. Serrava com serrote e quando acabava enchia com algodão, aquele chifre. Ai arrumava um pedaço de ferro ... um cabo velho de facão assim deste tamaninho, panhava uma pedra pra riba assim
134
(...) pra riscar, olha! Ali pegava fogo.
Último Artifício ou Boi de Fogo existente na comunidade e demonstração de seu uso por Seu Cirilo
Vários moradores antigos tinham boi de fogo, mas na atualidade este é o
último existente na comunidade. Este veio do Maranhão e foi passado de pai para filho e
hoje pertence a Seu Cirilo. Neste instrumento falta o fusile e a pedra. Esta pode ser de
vários tipos, mas se for um cristal tem um rendimento bem melhor. Já o fusile pode ser feito
a partir de qualquer pedaço de ferro, mas tem uma ciência envolvida em seu preparo. Este
deve ser embebido num preparado de pimenta malagueta e sabão de pequi. O preparado e
o ferro são enrolados em um pano e tudo é colocado no fogo para queimar bem. Quando o
ferro está vermelho ele é imediatamente jogado na água. A partir daí o ferro está temperado
e passa a ser considerado um fusile.
Segundo Seu Cirilo, para quem tinha prática era ligeiro para acender o fogo.
O fogo originado do boi de fogo tinha amplo uso, mas em especial possuía alguns usos
mágicos. Quando se utilizava o mesmo para tocar fogo na derrubada para limpar a área
para o plantio da roça, esta não dava praga. Para o mesmo, o fogo assim aceso dá bem
devagar e não dá prejuízo a ninguém, já o fogo aceso com o fósforo é violento e ligeiro. Ele
dá uma demora, o fogo é demoroso, já o fogo do fósforo é ligeiro.
135
Segundo o Relatório Agronômico, são as seguintes as práticas produtivas:
7-ASPÉCTOS SÓCIO-ECONÔMICO E CONDIÇÕES DE VIDA DOS QUILOMBOLAS 7.1-Posse e Uso das Terras: Por determinação judicial as famílias atualmente estão ocupando uma área de terras de 91,3503 ha, pois em 08/10/2008 elas haviam sido despejadas por sentença judicial, retornando ao território em 08/01/2009, também por decisão da justiça, até que o INCRA efetue os trabalhos de regularização fundiária do Território. 7.8-Entidades de Crédito: A comunidade não tem acesso a esse benefício. 7.9-Armazenamento: Ainda não possuem produção suficiente para armazenarem, pois retornaram há 1ano e 4meses para área, após o despejo judicial, mas dispõem de paióis rústicos para essa função. [...] 7.11-Produção Agrícola Pecuária e extrativismo: A produção agrícola e pecuária já é suficiente para o consumo das famílias quilombolas, pois possuem cultivados: - Mandioca: 04 ha comunitários e mais um terreiro em cada uma das 10 casas - Arroz: 01 ha comunitário contendo também bata-doce, feijão, milho, fava, gergelim, abóbora, maxixe, quiabo, melancia, mamão, melão e banana. - Horta: Possuem uma horta comunitária com couve, alface, tomate, cebolinha, coentro e berinjela, pimentão e jiló. - Eqüinos: possuem 06 éguas e 03 potros. - Frangos caipira: Possuem 40 unidades. - Ovos Caipira: produzem 06 dúzia por mês. - Polpas: produzem para comercialização mais de 20 bolas de 01 Kg de buriti, e consomem sucos de buriti, bacaba e buritirana em abundância durante a safra. - Pequi: utilizam bastante o fruto como alimento, extração do óleo de pequi e para produzir sabão, atualmente só utiliza para consumo próprio (Pádua, 2010, 2-4).
136
CONCLUSÃO
O território proposto
O território proposto engloba toda a área de ocupação histórica da
comunidade na região. Conforme levantado ao longo deste trabalho, evidencia-se que esta
ocupação formou vários núcleos populacionais ou mesmo residências isoladas
acompanhando as áreas mais férteis das matas de beira do rio João Aires e ribeirão
Gameleira, dos córregos do Garimpo, Chico Grande, Maria Viúva e Grotão ou dos brejos do
Grajaú, Guará, Sabino, Santina, Paulina, Melquiades, Lourenço e Chupador, todos incluídos
na atual proposta de delimitação. Para tanto, conferir mapa da página 28.
Conforme levantado ao longo deste trabalho, evidenciam esta ocupação os
diversos mangais, áreas de quintal formado a época da ocupação e que após abandonados
resistiram até a atualidade, os diversos restos de tapera velha ainda encontrados em campo
como estacas, pedras de alicerce e restos de utensílios (garrafas, instrumentos de ferro e
etc.), os vários cemitérios de criança ou de anjinho e os depoimentos recolhidos tanto de
membros da comunidade como de vizinhos e visitantes da área em tempos pretéritos.
Assim, de uma ocupação original que se inicia ainda no século XIX no Canto
do Garimpo, a comunidade se espalha e ocupa sem contestação toda a área do vértice
formado pelo João Aires e o Gameleira ao longo do mais de século de ocupação do
território. É somente no meado do século XX, com a chegada de ocupantes não quilombolas
que se instalam na região da beira do ribeirão Gameleira, que a comunidade perde a área
oriental e passa a ocupar apenas a região central e ocidental do território. Foi exatamente
esta configuração ocupacional da comunidade que foi levantada por técnicos do GETAT na
década de 1980. Isto fica muito claro ao se folhear os processos da época e constatar que
consta do levantamento primário da situação ocupacional da região o nome de vários
membros da comunidade, indicando que a mesma estava, então, de posse desta área.
É exatamente nesta época, com a chegada dos fazendeiros Deusdete e
Francisca, que esta área que sobrou para a comunidade passa a ser igualmente disputada.
No período ainda inicial desta disputa, vários destes nomes constantes do levantamento
primário “misteriosamente” desaparecem e no momento da titulação são substituídos por
nomes de pessoas de fora. Não obstante, demonstrando o forte vínculo da comunidade com
o seu território étnico, mesmo sobrepujados em seus direitos no momento da regularização
da área pelo GETAT, esta não desiste e resiste por mais 30 anos até a atualidade.
Assim, com o duplo objetivo de proporcionar condições para a reprodução
física e social da comunidade e propiciar o acesso da mesma aos marcos de sua trajetória
histórica na região, foi construída em consenso com a Comunidade Quilombola do Grotão a
137
atual proposta de delimitação. Visando recuperar toda esta área historicamente ocupada
pela comunidade a área a ser titulada inclui os lotes de nº 177, 178, 179, 180, 183, 184, 185,
186, 187, 188, 189 e 190 da Gleba Furnas I.
Na configuração da atual proposta nos preocupamos em não fracionar
nenhum lote, incluindo ou excluindo totalmente cada um deles, de acordo com a condição
de ter sido ou não ocupado anteriormente pela comunidade e de fazer parte da
reivindicação da mesma. Assim, se utilizou de linhas retas secas que configuram as divisas
entre os lotes acima citados e os lotes 120, 121, 175 e 181, estes totalmente exteriores ao
território proposto. Estas linhas secas são todas formadas por cercas atualmente existentes.
Para além destas divisas, se utilizou tanto o rio João Aires como o ribeirão Gameleira como
divisa natural para fechar o perímetro proposto.
Cercas já existentes utilizadas para a delimitação do território
Trabalho de delimitação da equipe do INCRA e foz do Gameleira no João Aires, o extremo sul da divisa
Planta do território proposto da Comunidade Quilombola do Grotão
138
139
Ata da reunião com a comunidade que definiu a proposta de delimitação territorial
140
Assembléia da comunidade que definiu o território reivindicado
Ressalta-se, para maior precisão da atual proposta, que duas outras peças
técnicas, uma interna ao INCRA e outra externa a sua equipe de trabalho, chegam as
mesmas conclusões aqui apresentadas. A forma de ocupação tradicional do território
proposto, assim como muitos dos limites aqui apontados, foi igualmente levantada por outra
equipe de pesquisa ligada a FACDO de Araguaína (Abreu et al, 2008), conforme
anteriormente apresentado neste relatório. Igualmente, o Relatório Agronômico apresentado
por técnico do INCRA da SR 26 – TO que compõe a equipe de elaboração do RTID
apresenta resultados idênticos:
O território delimitado constitui-se em sua integralidade de terras tituladas pelo GETAT, entre os anos de 1985 e 1987. Todas essas áreas foram arrecadadas nos termos da Lei 6.383/76, e estavam dentro da faixa de abrangência do Decreto-Lei 1.164/1971, dentro da Gleba Furnas I, arrecadada e matriculada em nome da União. Não constatamos no território delimitado, a incidência de unidades de conservação, de reservas indígenas, nem terras de faixa de fronteira ou áreas de segurança nacional. [...] Somos favoráveis à regularização fundiária do Território Quilombola Grotão, com área de 2.096,9455 ha, situado no município de Filadélfia, pois o
141
quantitativo de área, bem como seus aspectos físicos e bióticos são suficientes para a reprodução física, econômica, social e cultural dessa Comunidade. É direito garantido pela Constituição Federal, que em seu Artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, que estabelece: ...”Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Os estudos efetuados pela equipe de vistoria, especialmente através do laudo antropológico mostram que se trata de uma comunidade arraigada à lide da terra aonde vem residindo há mais de 150 anos (Pádua, 2010: 02 e 08).
Assim sendo, não nos resta a menor dúvida de que a atual proposta além de
justa para com os anseios da comunidade, efetivamente representa uma garantia de sua
reprodução física e social. Além do mais, por se tratar de área regularizada pelo próprio
poder público, sua conversão em território quilombola é perfeitamente plausível de ser
executada de forma mais ágil pelo INCRA, uma vez que os títulos incidentes não
apresentarão qualquer vício de documentação.
Recomendações
O objetivo principal deste relatório é garantir os direitos constitucionais da
Comunidade Quilombola do Grotão. No entanto, para além da regularização territorial,
comunidades quilombolas têm o direito de acessar políticas públicas que promovam a sua
inclusão social e apóiem seu desenvolvimento. Busca-se assim garantir uma melhoria da
qualidade de vida das comunidades em um verdadeiro processo de „cidadanização‟.
Entendemos que os planejadores de ações concretas nestas comunidades
sempre devem ter em mente o respeito à realidade e ao contexto local. Neste sentido, deve
ser estritamente evitado a introdução de novidades mirabolantes que não condizem com o
mesmo. O ideal neste processo não é a elaboração de grandes projetos e sim o
estabelecimento de um diálogo prévio com a comunidade no sentido de se revelar suas
potencialidades. Entendemos que somente se estabelecendo uma parceria entre o saber
cientifico e o tradicional é que será possível descobrir quais as atividades produtivas que
tem respaldo na prática do grupo e potencialidade de expansão e inserção no mercado local
e regional.
Neste sentido, nos propomos a traçar algumas considerações e
recomendações com base naquilo que apreendemos da realidade da comunidade quando
de nossa pesquisa de campo. Se o desejo é efetivamente potencializar o desenvolvimento
desta comunidade pensamos que se deve partir da infra-estrutura já existente, expandindo-a
paulatinamente. Assim, atividades produtivas descritas no Capítulo V deste relatório são as
ideais para serem apoiadas.
Fomos informados de que quando estas linhas estão sendo escritas está em
142
curso à instalação de energia elétrica na comunidade, por intermédio da política pública do
Governo Federal chamada Luz para Todos. Desta forma, para além dos benefícios mais
óbvios da eletrificação de uma comunidade – iluminação de casas, acesso a água
encanada, etc. –, esta poderia servir para evitar um dispêndio inútil força da força de
trabalho do grupo nas tarefas produtivas. A novidade da eletrificação poderia servir de base
a um projeto de motorização44 das atividades tradicionais como a fabricação de farinha.
Evitando-se os grandes e complexos equipamentos, poderiam ser adquiridos
equipamentos elétricos simples que já se encontram disponíveis no mercado, como um
pequeno engenho moedor de cana ou um ralador de farinha, comumente conhecido caititu,
instrumento que já é de conhecimento e seu uso é de domínio do grupo. Da mesma forma,
com equipamentos simples e manuais poderia ser melhorado o sistema de prensagem e
secamento da massa da mandioca assim como o forno de torrefação da farinha. Essas
medidas propiciariam uma substancial diminuição do esforço dispendido e um ganho no
tempo de fabricação destes produtos. Isso possibilitaria um aumento de produção que
permitiria a venda dos excedentes.
Outras atividades tradicionalmente desenvolvidas, como o plantio de
hortaliças e verduras nos quintais, poderiam ser retomadas se fosse garantido um simples
sistema de irrigação, uma vez que a água é abundante. Cursos poderiam ser oferecidos
para igualmente aprimorar as técnicas utilizadas pela comunidade e possibilitar uma boa
produção. Mercado para esta produção existe, pois as cidades vizinhas são grandes
consumidoras de verdura, mas não a produzem.
Da mesma forma que percebemos estas potencialidades, o Relatório
Agronômico elaborado por técnico do INCRA igualmente levanta que:
Existe a viabilidade de exploração do território com atividades agrícolas, pecuária, artesanato, pequenas indústrias de farinha e doces de frutas do cerrado, e até mesmo do turismo. Para que essas atividades possam ser efetivadas de forma sustentável, poderá a comunidade encomendar os projetos técnicos junto às entidades especializadas, pois em face da existência de recursos orçamentários e financeiros nas várias esferas Ministeriais que administram o Programa “Brasil Quilombola”. É a garantia do acesso à terra, relacionada à identidade étnica como condição essencial para a preservação dessa comunidade, é uma forma de compensar a injustiça histórica cometida contra essa comunidade, aliando dignidade social à preservação do patrimônio material e imaterial brasileiro. Alterar as condições de vida na comunidade por meio da regularização da posse da terra, do estímulo ao desenvolvimento sustentável e o apoio as suas associações representativas são objetivos estratégicos (Pádua, 2010: 08). Assim como estas sugestões, outras ainda poderiam ser levantadas. No
44
Spindler (1973) diferencia entre os processos de „motorização‟ e „mecanização‟. No primeiro não se altera o sistema empregado, ocorrendo apenas a substituição do trabalho braçal por máquinas o que facilita o serviço ou aumenta a produtividade. No segundo esta substituição se dá de forma plena, ocorrendo uma alteração radical do sistema localmente utilizado.
143
entanto, preferimos não alongar em propostas, uma vez que entendemos que estas devem
se originar da própria comunidade. Uma verdadeira extensão rural que priorizasse o diálogo
com os diversos saberes e práticas presentes em nosso campo, respeitando as
especificidades e os tempos de cada comunidade, poderia impulsionar o desenvolvimento
de nossas comunidades tradicionais.
Considerações Finais
Este estudo procurou romper com o silêncio imposto que mantêm na
invisibilidade diversos grupos humanos menos favorecidos econômica e socialmente. Para
tanto procuramos dar voz a comunidade quilombola, assim como aos grupos camponeses
seus vizinhos. Neste processo, procurou-se acessar a memória coletiva para que fossem
reveladas as marcas legitimadoras da pretensão territorial do grupo, assim como as suas
aspirações.
A partir daí foi possível descrever a origem comum da Comunidade
Quilombola do Grotão. Descrevemos ainda o processo histórico de resistência e fuga da
escravidão, assim como da conquista e manutenção do território, através de uma resistência
a diversos tipos de esbulho. Apresentamos também as marcas da identidade e os critérios
de inclusão e pertencimento à comunidade assim como as relações econômicas e sociais
estabelecidas pelo grupo com a sociedade envolvente/includente. Por fim, demonstramos as
formas de uso do ambiente e historiamos o processo de mudança das práticas e saberes
produtivos em decorrência da perda territorial.
É com base nestas características que confirmamos a identidade étnica de
remanescente de quilombos da Comunidade Quilombola do Grotão, conforme processo de
auto-atribuição, anteriormente já estabelecido pelo grupo. É com base no estudo e na
legislação vigente que apresentamos uma proposta de delimitação territorial que visa
garantir a reprodução social das atuais e das futuras gerações da comunidade.
Já é tempo da sociedade brasileira reparar de uma vez por todas sua dívida
histórica com o povo negro. Para tanto, uma vez concluídos os demais estudos técnicos,
deve o Estado cumprir sua obrigação constitucional garantindo a esta comunidade
quilombola a apropriação efetiva de seu território e a construção de sua sustentabilidade.
Somente após estes passos é que estarão dadas as plenas condições para a reprodução da
existência material e simbólica do grupo que atualmente encontram-se ameaçadas.
Roberto Alves de Almeida Antropólogo – INCRA – DFQ Brasília-DF, janeiro de 2011
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