quando a morte ronda o cais: acidentes de trabalho e
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QUANDO A MORTE RONDA O CAIS:
Acidentes de trabalho e condições de risco entre os Estivadores do Rio Grande/RS
Carlos Alberto Oliveira de Oliveira
(DFCH/UESC)
betoliva65@gmail.com.br, oliveira@uesc.br
Aqueles seres ligavam-se aos guinchos; eram parte da máquina; agiam
inconscientemente. Quinze minutos depois de iniciado o trabalho, suavam
arrancando as camisas. Só os negros trabalhavam de tamancos. E não
falavam, não tinham palavras inúteis. Quando a ruma esta feita, erguiam a
cabeça e esperavam a nova carga. Que fazer? Aqui tinha que ser até às cinco
da tarde. (JOÃO DO RIO, 1997, p. 261)
RESUMO
“Quando a morte ronda o cais” busca tematizar aspectos da figura do Estivador a partir
de alguns acidentes ocorridos no Porto do Rio Grande, na década de 1960. Em especial,
focamos os acidentes fatais ocorridos na operação de descarga dos Navios “African
Sky” (1965) e “Romney” (1966). No diálogo com a memória destes estivadores, além
de seus depoimentos, buscamos suporte na imprensa local e no arquivo do Sindicato dos
Estivadores de Rio Grande (SERG), onde foram identificadas imagens do velório de
Írio de Souza (1966). Oportuno lembrar que a tensão permanente e continuada frente ao
limite de vida e morte existente no universo portuário produz muito mais nos
estivadores, do que em outros segmentos de trabalhadores, uma consciência de risco,
face às condições de trabalho lhes exigir alto grau de destreza e tenacidade em busca
não só da proteção individual, mas principalmente coletiva. A falta de um maior apreço
pelo risco no universo portuário se consolida, diariamente, por uma tradição de ser e
pertencer à família portuária. A forma idealizada sobre si mesmo, como “guerreiros do
caís”, fez, ao longo dos anos, com que os estivadores enfrentassem as péssimas
condições de trabalho como sendo normais.
Palavras Chave: Estivadores, Acidentes de trabalho, Morte
A fim de tematizar a engenhosidade que envolve o trabalho na estiva, impõe-se
o diálogo com a própria etimologia do vocábulo estiva. “Estivar” vem do latim
“stipare”, palavra que designava a ideia de comprimir, apertar, amontoar, envolver de
maneira compacta. A derivação marítima do termo deve ter ocorrido inicialmente na
Itália e daí chegando a Portugal. A palavra italiana “stiva” é herdeira do termo latino
“stiva”. “Stiva” era na língua dos romanos a rabiça, cabo do arado, que o lavrador
segura quando trabalha e serve de leme à charrua, sem desviar de um lado ou para o
outro, como a carga bem arrumada no navio, uma vez que, o equilíbrio de um navio
depende da distribuição de peso (MINISTÉRIO DA MARINHA, 1985). “Estiva”
designava também o espaço interno do navio de popa à proa debaixo da primeira ponte,
e era o nome dado às grades de pau colocadas no porão por baixo da carga para que esta
não tocasse no costado e recebesse umidade.
A evolução das derivações do termo “estiva”, na língua portuguesa, parece
confirmar que as comunidades de estivadores surgem mesmo ao longo do século XIX.
No século XVIII e no início do século XIX, “estiva” era uma palavra marcada
principalmente pela noção de equilíbrio, sendo que “estivar” não designada ainda “a
ação de arrumar a carga do navio”, assim como o substantivo que nomeia o agente da
ação – “estivador”, “aquele que arruma a carga do navio”.
Com a substituição dos navios à vela pelos navios à vapor, os marinheiros que
estavam desembarcando com a substituição dos veleiros orientam-se para a estiva,
passando a fazer parte das comunidades de estivadores que, no final do século XIX, já
existiam em todos os portos do mundo (VELASCO E CRUZ, 1988, pp. 210-211). No
Brasil, já no começo do século XIX, a Decisão nº 17 do Conde de Aguiar, de 1812,
estabelece em Pernambuco uma “companhia de pretos”, com direitos e deveres
próprios. “Para fazer todo o trabalho que for necessário ao bem comum do comércio,
fazendo arrumar e separar a carga de cada um dos navios”. (ESTATUTOS do SERG, p.
65) Sinalizando que sua organização foi uma das primeiras experiências de regulação
das atividades dos estivadores, com certas prerrogativas, que permanecem até hoje nos
Sindicatos de Estivadores Brasileiros.
Compreender a figura emblemática do estivador requer uma leitura que abarque
a natureza de suas relações de trabalho no ambiente portuário, investigando as
características marcantes de seu ofício, onde são flagrados carregando, arrumando,
empilhando, enfim estivando. Na efetivação desta trajetória, tornou-se importante
enfrentar os estereótipos constituídos sobre estes sujeitos, percebendo suas ações no
convés e nos porões dos navios. A dificuldade em dialogar com estes personagens, bem
como de penetrar em seus cotidianos, ancora-se, em grande medida, na existência de
imagens distorcidas sobre os “Homens do Porto”. (OLIVEIRA, 2000, p. 57)
Tais estereótipos adquiriram historicidade, desde o instante em que os portos
nacionais ampliaram sua importância, com a inserção do Brasil na economia capitalista
mundial. Imagens de trabalhadores no cais passam a fazer parte do cotidiano das
cidades portuárias, sendo captadas de diferentes maneiras pelos observadores de
plantão: jornalistas, literatos, higienistas, engenheiros, políticos, etc. Ao serem
difundidas na sociedade, de forma estigmatizada, expressam valores e opiniões que
passam a ser aceitos como inquestionáveis, como por exemplo, de “homens brutos”.
Tais ideias, com o passar do tempo, acabam por permear o senso comum, sendo
observadas pela própria categoria – com certa carga de preconceito – e intrometendo-se,
por vezes até nos textos acadêmicos que exploram a temática dos “Homens do Porto”.
O estigma de ser estivador não é recente. Desde o começo do século XX, surge a
figura do “trabalhador de prancha”, em grande parcela, ex-escravos. Tal situação
acabará por construir e fortalecer a ideia do estivador como um sujeito bruto, que
sobrevive da força de seus músculos. João do Rio, escritor carioca do início do Século
XX, em seu artigo “Os trabalhadores da estiva” (1904), contribui com a construção de
uma imagem preconceituosa dos estivadores.
“(...) Homens de excessivo desenvolvimento muscular, eram todos pálidos –
de um pálido embaciado como se lhes tivessem pregado à epiderme um papel
amarelo, e assim, encolhidos, com as mãos nos bolsos, pareciam um baixo-
relevo de desilusão, uma frisa de angústia”. (p. 257)
Como pode ser constatado, o estigma envolvendo a figura do estivador não é
recente e vem sendo forjado ao longo dos anos. No cinema, tais imagens foram muito
bem exploradas na obra de Elia Kazan, “On the waterfront” (1954).
A construção e disseminação destas imagens sobre a figura do estivador ganha
força tratando-se, em especial, de descendentes de escravos e libertos, com profundas
raízes na história da profissão. Para a realização das atividades econômicas
desenvolvidas no cais, tanto escravos quanto libertos trabalhavam como carregadores ou
estivadores, marinheiros, remadores, barqueiros e condutores de veículos, através do
sistema de ganho – forma pecuniária paga aos libertos por serviços urbanos, e aluguel –
cessão de escravos a terceiros, sob pagamento, para serviços em manufaturas e oficinas.
(ANDRÉ, 1998, p. 40)
Identificar os estivadores em meio às categorias que constituem os “Homens do
Porto”, não tem sido tarefa fácil. Em linhas gerais, aos estivadores compete a carga e a
descarga de mercadorias no convés e porões dos navios sendo que a atividade de terra,
no caís, é de competência dos trabalhadores em serviços portuários, também chamados
de doqueiros, ou arrumadores, como é o caso do Porto de Rio Grande.
Desenvolver esta distinção é fundamental, uma vez que no início do século XX,
por exemplo, a imprensa também denominava de “estivador” a todo e qualquer
trabalhador do porto. Isto pode ser explicado, em torno de que o trabalho de estiva era
feito a bordo e principalmente no interior dos porões do navio.
Numa primeira imersão sobre o universo dos estivadores, afloram impressões do
homem que possui um comportamento rude e grosseiro com os demais, dentro e fora do
ambiente de trabalho e que frequentemente se envolvia em brigas, arruaças, pequenos
furtos, alcoolismo e prostituição. (PINHEIRO, 1999, p. 102)
“(...) essa imagem que se faz da estiva... poderia se fazer por todas as classes,
NE... Por isto aí... de brigão, confusão... isto ai existe em todas as classes. É
que naestiva, ficou aquela tradição, de que o estivador é aquele homem rude,
ignorante... e, no entanto, tem muita gente boa, que não tem nada a ver com o
que se pensa do estivador, né... porque ficou isso ai do estivador, de ser um
sujeito truculento... é o que imaginam de um estivador, né... talvez o que a
própria mídia... a imprensa no caso... imagina, porque se vê muito na
televisão essa coisa aqui... parece estivador, isto é coisa de estivador...
aquela imagem do estivador... um sujeito grosso, alto e forte...”
(Depoimento de Nadir Alves de Oliveira)
A fim de dar visibilidade às ações dos estivadores, bem como descortinar a
própria ambiguidade destas imagens, procedeu-se a busca das evidências sobre seu
cotidiano, a partir de fragmentos encontrados na imprensa local. Sua presença nas
páginas do Jornal “Rio Grande”, torna-se visível especialmente nas ocorrências
policiais, com destaque para as arruaças, brigas de vizinhos, desentendimentos de casais
e acidentes de trabalho, alguns fatais.
Na reportagem intitulada “MOTORISTA AGREDIDO POR ESTIVADOR”,
publicado no “Rio Grande”, contata-se um episódio de certo modo curioso, onde o
envolvimento de um estivador dará relevo significativo ao mesmo. Na denúncia
apresentada ao Plantão da Primeira Delegacia de Polícia, Neri Rodrigues de Mello,
comunica que seu filho Aristeu Goulart Mello, motorista do taxi prefixo 137 fora
“vítima de uma violenta agressão à mão armada”, por parte do estivador Luis Oliveira.
Detalhe instigante vincula-se ao fato de que o proprietário do táxi, Neri de
Mello, era estivador. O que nos permite inferir que ou ele omitiu esta informação, ou o
próprio jornal entendeu por bem ignorá-la. Em seu relato, Neri afirmou que “Luis
solicitou a Aristeu que lhe fizesse uma corrida de táxi, até o Bairro Getúlio Vargas”.
Chegando ao local, o estivador pediu para que o motorista se dirigisse à cidade de
Pelotas [distante aproximadamente 60 quilômetros]. Como tinha ordens para não viajar
naquele horário, Aristeu disse que naquela hora era impossível. Não conformado com a
resposta do motorista, o estivador sou do revolver e “colocou o cano da arma junto ao
peito de Aristeu, fazendo uma série de ameaças em tom violento”. Logo após,
abandonou o local, dizendo ao partir, “que se o motorista fizesse queixa à polícia do
ocorrido iria se arrepender”. (10 de Novembro de 1970)
O ofício tem seus segredos, nas são segredos que não se aprendem na escola:
cada navio era diferente, as cargas eram diferentes e a combinação de mercadorias
também variava muito. O saber fazer era algo assimilado e apreendido através da
transmissão de conhecimentos dos mais antigos, adquiridos pela experiência ao longo
dos anos, sendo uma tradição no porto, onde os segredos da profissão, que não eram
poucos, têm que ser transmitidos pelas instruções práticas e pelo exemplo dado no
convívio com os mais velhos, num aprendizado cotidiano. (GITHAY, 1992, p. 131)
“Hoje tem apostilha, mas [quando ingressou como sócio, em 1956] aprendia
no dia a dia, quem tinha boa vontade... porque lá em baixo prá trabalhar, é
horrível... encher caçamba lá... quando tá na esteira ia na boa, agora, quando
era de picareta trabalhando com fosfato, cloreto de amônia...” (Depoimento
de Arlindo Schimidt)
Os estivadores trabalham em grupos chamados de ternos, um para cada
guindaste e em cada porão. Supondo que o terno tenha doze homens, oito trabalharão no
porão e quatro no convés. Destes, dois ficaram no guindaste e os outros no portaló como
ajudantes, pois a borda da escotilha impede que o guindasteiro veja precisamente onde
está depositando a carga. Os ternos trabalhavam sob a coordenação dos contramestres
de porão. Os contramestres seguem, por sua vez, a orientação do Contramestre Geral do
navio, ou Capataz e este se subordina ao encarregado da firma estivadora – o Preposto,
que por sua vez, atendia ao comandante do navio.
Nos termos, os estivadores – face ao sistema de rodízio, acabam trabalhando
com os mesmos “companheiros de escala”, interagindo em termos diretos, face à face.
Nisto, a confiança mútua é condição que impera, sobretudo num sistema de ganho por
produção. Além do que, o critério de laços pessoais, consiste num antigo patrimônio dos
operários, forjando a imagem da “família estivadora” (SILVA, 1995, p.12)
Discutindo a situação dos estivadores do Porto de Santos, Maria Lúcia Githay
sinalizará que, além do sistema de trabalho ocasional e dos preconceitos que separam os
“Homens do Porto” de outros grupos de trabalhadores, o trabalho do porto era em si
perigoso e insalubre (1992, p. 117 – nota 39) Entretanto, tal situação faz com que os
próprios estivadores criem estratégias para lidarem com tais perigos.
Aspectos vinculados às tensões provocados pelos riscos no ambiente de trabalho
aparecem em várias de suas manifestações. Entretanto, o perigo e a insalubridade não se
caracterizariam como motivos suficientemente fortes para afastá-los do ofício de
estivador.
“... na estiva a gente só acha uma coisa difícil, quando o dinheiro não
convém... Ai a pessoa chega e diz “Ah! Mas isto aqui é assim, aqui ali e
coisa e tal...” se for um serviço que seja bem remunerado o estivador corre
todo e qualquer tipo de risco, porque num terno que vá doze homens, se tem
um ou dois que realmente se preocupe com acidente, ou risco de vida com a
carga, seja perigoso... o restante quer dinheiro... (Depoimento de Francionil
Alves de Oliveira)
A tensão permanente e continuada frente ao limite de vida e morte existente no
universo portuário produz muito mais nos estivadores, do que em outros segmentos de
trabalhadores, uma consciência de risco, face às condições de trabalho lhes exigir alto
grau de destreza e tenacidade em busca não só da proteção individual, mas
principalmente coletiva. Novamente, fica enfatizada a importância do ganho, pois não
podem deixar passar a oportunidade de “encher as latinhas”. Sobretudo, no sistema de
trabalho ocasional, estando submetidos às determinações do fluxo portuário para
obterem os meios de sobrevivência.
“(...) por esta razão que eu tedigo, quando não tem previsão de um ganho
bom, ai a gente impõe as dificuldades. Com este material eu não trabalho...
esse guincho não presta, isto aqui tá estragado... esse cabo aqui tá
rebentado... quer dizer, embarga mesmo, se for o caso, agora se for bom, a
gente não vê empecilho nenhum... só quer trabalhar”. (Depoimento de
Vladimir Luiz Lobo Guimarães)
Figura 1: Carregamento de Couro. Década de 1960. Acervo do SERG.
Quanto à avaliação da carga, quanto menor o dispêndio de tempo e esforço
físico do estivador, melhor será considerado o serviço. Havendo desta forma uma
distinção entre “trabalho nobre” (estivagem em chapa de aço) e “trabalho não nobre”
(carga “a granel”), que requer manejo de mercadorias explosivas. O que lhe confere o
estatuto de “trabalho bom”, é a taxa de periculosidade que incide sobre o salário. Em
suma, é a questão da remuneração que qualifica o trabalho do estivador (SARTI, 1981,
pp. 22-23), levando-o a “responder a chamada”, ou “meter o cartão”.
A falta de um maior apreço pelo risco no universo portuário se consolida,
diariamente, por uma tradição de ser e pertencer à família portuária. Pois quando se trata
de estar nesse tipo de trabalho, dever ser destemidos diante do limite de vida e morte,
como algo rotineiro e normal na beira do cais.
“Somos os guerreiros do cais. A maioria que conheço são de uma formação
guerreira (...) são homens destemidos não se importam com chuva, trovões,
temperaturas altas ou com periculosidade no trabalho (...) As condições de
trabalho exige que ele seja um homem forte, destemido que não tenha
nenhum vestígio de medo (...) ele não pode ser um temerário (Estivador, apud
ANDRÉ,1998, p. 218)
A forma idealizada sobre si mesmo, como guerreiros do cais, faz com que os
estivadores enfrentem as péssimas condições de trabalho como sendo normais. Deste
modo, o acidente surge como fato rotineiro. Na realidade, o corpo torna-se, ante de
tudo, um meio de garantir a sobrevivência para si e sua família. Temos, no entanto que
ponderar que esse comportamento de risco é acompanhado de inúmeras estratégias
cotidianas para minimizar o perigo. “É um serviço muito perigoso, mas que tu aprendes
a conviver com o perigo... qualquer cara que tenha tirado Engenharia de Segurança, ele
não permitiria nenhuma operação no Porto. Hoje... imagina como era antes...”
(Depoimento de Vladimir Luiz Lobo Guimarães)
Fig. 2 – Estivadores no porão de Navio Frigorífico (Década de 1960). Acervo do SERG.
As indicações desses depoimentos, para produzir mais e obter maior ganho,
tornam visíveis o comportamento de risco que os portuários avulsos de Rio Grande,
desenvolvam no cotidiano e que tendem a ultrapassar os limites de segurança:
“... tu trabalhas debaixo de carga suspensa, que as vezes arrebenta... tu sobes
numa escadinha quebra-peito que tu sabes como é que é [fazendo referência a
um diálogo anterior] Em que caiu farelo de soja, que é um troço gorduroso e
depois choveu... e que aquilo está escorregadio... tu primeiro limpas com uma
mão para pegar com a outra... mas como o serviço vai te dar dinheiro e tu não
queres ver ele parado... tu vê que a escada do porão tá ruim, ou obstruída tu te
seguras no cabo do guincho e o cara te leva lá em baixo do porão... [e
desenvolvendo uma estratégia para minimizar os riscos no ambiente de
trabalho] os estivadores fazem muito disto... então tu corres uma série de
riscos... vi uma série de acidentes, mas muito menos do que o ambiente
propiciava”. (Depoimento de Vladimir Luiz Lobo Guimarães).
Os acidentes com maior gravidade, em que pese às condições de risco a que
estavam submetidos, não eram em número expressivo, pelo menos a partir de uma
leitura da imprensa. Entre os acidentes de trabalho no Porto de Rio Grande, destaca-se,
pela repercussão (JORNAL RIO GRANDE, 29.07.1965), episódio ocorrido no navio
de bandeira liberiana “African Sky”, noticiado entre as páginas policiais com o título
“TRES ESTIVADORES MORTOS EM ACIDENTE NA ORLA DO CAES” (Jornal
RIO GRANDE, 28.07.1965). Na ocasião, quando acontecia a descarga a bordo do
“African Sky”, o “pau de carga” caiu, atingindo os estivadores Gabriel Ramalho,
Ordelino Lages1 e Oswaldo Martins Ferreira.
Na sua edição de 10 de Maio de 1966, o “Rio Grande” apresenta a reportagem
“LINGADA DE MADEIRA CAIU SOBRE ESTIVADOR CAUSANDO-LHE A
MORTE”. Na ocasião, é narrada a morte do estivador Irio de Souza, “vítima grave e
lamentável acidente ocorreu, ontem às 18:45 hs, no Porto Nôvo, onde se sucedia o
descarregamento do navio inglês “Romney”, com madeira”.
Fig. 3 – Velório do Estivador Írio de Souza (1966). Acervo do SERG.
111 Natural de Rio Grande, nascido em 08 de abril de 1912. Foi Sócio Fundador do SERG. Conforme
Fcha nº 571, pasta nº 29 do Arquivo do SERG.
No depoimento de um estivador que se encontrava a bordo e, que, portanto,
presenciou o acidente, evidenciam-se as condições de risco a que os estivadores se
submetiam no ambiente de trabalho. A riqueza na descrição do fato, não consegue
esconder a alteração da voz no momento em que se refere a seu companheiro “... o
finado Írio, que entrou comigo na estiva” vitimado por acidente,
“... Suspenderam uma lingada de madeira, como estropo novo... eram 48
pranchão de tábua... eram dois guincheiros, um suspendeu de terra e
naturalmente que o outro puxou prá lingada vir pro centro do porão. E esse
que suspendeu de terra... largou o tambor ligeiro e a lingada disparou...
porque tem que largar devagarinho... Quando esse largou ligeiro, a lingada...
vem assim, né [fazendo gestos] então, quando largou de lá, ela bateu na boca
da escotilha, que é a boca do porão... Bateu e correu o estropo novo... ai
quando ele correu, ela desequilibrou e veio de ponta. Caiu de ponta e foi
deitando... quando deitou aqueles 48 pranchão, ela veio na boca da escotilha,
da coberta e fez assim ó [fazendo gestos] fez um seio... E bateu. Tava o
Bebeto, o meu colega de um lado. O finado Írio de Souza, no centro. Que
entrou comigo... todos entraram comigo na estiva2, e eu do outro lado. A
lingada caiu nos peitos desse meu colega” (Depoimento de Francionil Alves
de Oliveira)
Para uma categoria forjada num ambiente onde o importante era evidenciar sua
condição de valentes, guerreiros e destemidos, conviver com a morte, mesmo
aparentando ser algo rotineiro e normal, na sua atividade laboral, se traduz num dos
momentos de maior coesão, compaixão e solidariedade.
2 Os três estivadores que se encontravam no Terno, eram Bagrinhos. Ingressaram como sócios em
Dezembro de 1964.
Fig. 4 – Cortejo Fúnebre do Estivador Írio de Souza (1966). A presença numerosa de estivadores e
familiares visibilizam a importância destes na construção da Cidade Portuária. Acervo do SERG
As imagens (Fig. 3 e 4) do Velório e Cortejo Fúnebre do Estivador Írio de
Souza, permitem constatar a presença desta categoria na comunidade local. A multidão
que toma o trajeto entre a Sede do Sindicato (Fig.3) até o Cemitério Local são bastante
significativas.
REFERÊNCIAS:
ANDRÉ, Marlene Monteiro. A consciência de periculosidade e as estratégias defensivas
dos portuários avulsos no contexto portuário de Vitória/ES. São Paulo: PUC/SP, 1998.
(TD em Serviço Social)
Arlindo Schimidt, Estivador Aposentado. Entrevista realizada em 31 de Julho de 1998.
Francionil Alves de Oliveira, Estivador Aposentado. Entrevista realizada em 06 de
Outubro de 1996.
GITHAY, Maria Lúcia Caíra. Ventos do Mar: trabalhadores do porto, movimento
operário e cultura urbana em Santos (1889 – 1914). São Paulo/Santos: EDUNESP/PMS,
1992.
JOÃO DO RIO. A alma encantadora das ruas. (Org. Raúl Antelo). São Paulo: Cia. das
Letras, 1997. (Retratos do Brasil)
Jornal Rio Grande. Edições de 1965 a 1970.
Nadir Alves de Oliveira, Estivador aposentado. Entrevista realizada em 23 de Janeiro de
1997.
OLIVEIRA, Carlos Alberto de. Quem é do mar não enjoa: memórias e experiências dos
estivadores do Rio Grande/RS (1945-1993). São Paulo: PUC/SP, 2000, p. 57. (TD em
História Social)
PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A cidade sob os ombros: trabalho e conflito no porto
de Manaus (1889 -1925). Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1999.
SARTI, Ingrid. O porto vermelho: os estivadores santistas no sindicato e na política.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
SILVA, Fernando Teixeira da. A Carga e a Culpa – os operários das Docas de Santos:
Direitos e Cultura de Solidariedade (1937 – 1968). São Paulo/Santos: HUCITEC/PMS
1995.
Vladimir Luiz Lobo Guimarães, Conferente aposentado. Entrevista realizada em 30 de
Julho de 1998.
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