priscila da silva
Post on 16-Mar-2016
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171: o número do estelionatário O crime de estelionato é cada vez mais comum
Não há como pensar no número 171 sem rapidamente imaginar a figura de um
cidadão que, ao abusar da boa fé de determinados indivíduos, acabou ganhando algum
tipo de benefício. Embora seja um delito cada vez mais incidente, o estelionato
diferencia-se dos demais pela maneira “inteligente” com que é cometido. De acordo
com o Código Penal Brasileiro, o estelionato é capitulado como crime econômico,
sendo definido como “obter para si ou para outrem vantagem ilícita, em prejuízo alheio,
induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro
meio fraudulento”. O crime tem pena de reclusão de um a cinco anos. Em algumas
situações, o criminoso ainda necessita pagar uma multa.
Casos como o do bilhete premiado são exemplos do crime de estelionato. De
acordo com a Divisão de Planejamento e Coordenação - Serviço de Estatística da
Secretaria de Segurança Pública, foram registrados em Porto Alegre este ano, até o mês
de setembro, 3.228 casos. Enquanto que, no Estado, esse número sobe para 11.107
ocorrências registradas.
Paulo Jardim, delegado da 1ª DP de Porto Alegre, explica que o golpe do bilhete
premiado é muito comum na Capital, e que, embora não pareça, a vítima nem sempre
acaba sendo enganada pelo fato de ser ingênua. Segundo ele, só cai quem pensa em
ganhar dinheiro fácil. Nesse caso, o estelionatário age da seguinte forma: ele fica
circulando na rua com um bilhete de loteria que correu naquele mesmo dia e que, em
tese, estaria premiado. Ao abordar pessoas aparentemente honestas, que possuam boa
índole (ou que transpareçam isso), o sujeito demostra estar visivelmente abalado e
solicita a ajuda da vítima.
Depois de contar que comprou o bilhete, e que o mesmo está premiado, o
criminoso inventa uma estória, falando que perdeu um ente querido naquela madrugada,
na maioria das vezes a própria mãe, e que precisa viajar, pois a mesma mora longe. Ele
diz que não possui qualquer dinheiro e que está em desespero. Argumentando que não
tem condição de viajar para resolver as questões do enterro, por exemplo, o
estelionatário pede dinheiro emprestado. Como garantia, apresenta o bilhete, afirmando
que, quando voltar e após ter solucionado todos esses problemas – e em retribuição à
ajuda –, irá dividir parte do prêmio com aquela pessoa. Porém, como o bilhete foi
adulterado, ao tentar trocá-lo, a vítima acaba se dando conta de que caiu em um grande
golpe, ficando sem o seu dinheiro e sem a parte no prêmio do suposto bilhete premiado.
“Geralmente, as pessoas que aplicam esse golpe são mais idosas, fazem cara de
humildes e são mais simples”, conta o delegado. Não há como determinar o perfil das
vítimas. Jardim, com mais de 30 anos de experiência, garante que o intelecto é
indiferente numa situação como essa. O que ele constata é que o ludibriado nem sempre
é tão ingênuo, muito pelo contrário, as pessoas acabam fazendo o cálculo do valor que
irão receber quando o dono do bilhete voltar, muito maior do que a ajuda financeira
concedida. Ou seja, a vítima acaba se deixando enganar porque, de certa forma, irá obter
alguma vantagem na situação. “Tu tens um misto de pena, com solidariedade, mas, ao
mesmo tempo, teu olho arregalou.”
Existem inúmeros golpes que configuram o 171, basta uma simples olhada nos
jornais para perceber que dezenas de pessoas são vítimas diárias. O golpe do bilhete é
apenas mais um deles. É possível identificar alguns aspectos que ajudam o
reconhecimento do perfil desse tipo de criminoso. O estelionatário apresenta
inteligência acima do nível das pessoas comuns, pois é um sujeito muito bem articulado,
com considerável poder de persuasão, além de ser extremamente envolvente, enganando
a vítima não apenas por causa do seu interesse, mas, principalmente, pelo seu poder de
sedução. Em todos os casos relatados por Jardim, não ocorreu qualquer tipo de
arrependimento do falsário. A situação é exatamente oposta. Quando interrogados, eles
contam sobre o verdadeiro prazer que é enganar o outro, sempre com uma estória
diferente e com um exibicionismo acentuado sobre as artimanhas usadas para iludir o
próximo. São pessoas que apresentam desvio de comportamento. Assumem uma
determinada personalidade e vivem nesse mundo à parte.
Em golpes como o do bilhete premiado, no entanto, não é apenas o
estelionatário que tem o objetivo de tirar alguma vantagem, a própria vítima também. O
excesso de confiança em si mesmas e a certeza de que serão beneficiadas pela sua
notável generosidade faz com que essas pessoas caiam facilmente nesse tipo de golpe.
Todas elas têm a certeza de que são espertas, apenas porque o malfeitor ofereceu algo e
fez o papel de “trouxa”, aparentemente desinformado e desesperado. A vontade de ser
astucioso e de levar algum tipo de vantagem, perfil de muitos cidadãos, faz com que a
possibilidade de cair em “contos do vigário” seja cada vez mais comum. “Todos
assumem, mais cedo ou mais tarde, que foram solidários apenas porque receberiam algo
superior aquilo que foi oferecido”, conta o delegado. Em episódios como esse, Jardim
não tem a menor dúvida ao mencionar: “Só é enganado quem se deixa enganar”. Se
realmente existe interesse em ajudar o próximo, não há porque esse cidadão ter qualquer
tipo de garantia ou de recompensa, por exemplo.
Eterna dor de cabeça
Para José Eduardo Meira, 37 anos, a situação foi completamente diferente do
exemplo do bilhete, embora também seja caracterizada como estelionato. Em 1992, ele
foi vítima de assalto e teve seus documentos roubados. Somente 15 anos depois, ao
tentar abrir uma conta bancária para receber o salário do seu novo emprego, José
descobriu que seus documentos haviam sido utilizados em compras e financiamentos
realizados em São Paulo no ano de 2006.
Ao ser informado que possuía diversas restrições de crédito em seu nome,
iniciou uma peregrinação que durou cerca de três meses, desde buscar na polícia o
registro do assalto, descobrir em quais empresas e que transações haviam sido feitas e
enviar declarações e documentos atestando o roubo e as fraudes de seus dados, além de
solicitar o cancelamento dos respectivos débitos. Ainda hoje, mesmo cinco anos após
ter comprovado que foi vítima de estelionato, José Eduardo passa por situações
embaraçosas por causa do ocorrido. “Recentemente, ao procurar uma loja para fazer um
cartão, fui informado de que já constava no sistema um cadastro em meu nome, e que eu
estava bloqueado por registro de fraude”, conta. Só depois de muitas horas no
atendimento eletrônico, disponibilizado pela própria empresa, ele finalmente conseguiu
suspender os cartões que haviam sido feitos e solicitar um novo, desta vez com suas
informações corretas. Em outro estabelecimento, foram necessários cerca de 60 dias até
que ele conseguisse atualizar o cadastro que havia sido criado pelos estelionatários.
Embora a pena para os crimes de estelionato seja de um a cinco anos, sujeita à
multa, o delegado Paulo Jardim conta que dificilmente um estelionatário permanece na
cadeia. Ele explica que inúmeros desses criminosos conseguem ter suas penas
flexibilizadas através do pagamento de multas ou cumprimento de penas alternativas,
pois eles não são considerados criminosos que oferecem risco iminente à população.
Segundo o delegado, a superlotação dos presídios e a precária condição do sistema
carcerário acabam influenciando a decisão dos juízes e interferindo negativamente nesse
tipo de condenação. Além disso, várias vítimas do famoso 171 não chegam a prestar
queixa por vergonha da situação em que acabaram se envolvendo.
BOX
Quando o barato sai caro
Enquanto eu aguardava pelo delegado Paulo Jardim, na sala de entrada do
plantão da 1ª DP de Porto Alegre, presenciei uma moça – que não quis se identificar –
prestando queixa sobre um dano causado ao seu veículo. Achei particularmente estranho
alguém que teve o carro arrombado no outro lado da cidade ir até aquela delegacia
registrar ocorrência. Ela me explicou que, por já ter sido vítima de estelionatários,
sempre procura a polícia, até mesmo para não haver mal entendido. Conversa vai,
conversa vem, me senti mais à vontade para perguntar qual o tipo de estelionato que a
mesma havia sofrido. Tendo a certeza de que seu nome não seria publicado, ela contou
que havia encontrado nos classificados de um renomado jornal um anúncio de venda de
um veículo ano 2011 por menos da metade do preço original, e que acabou se
interessando pela compra do automóvel. Visivelmente constrangida quando sugeri que
deveria haver algo errado, ela apenas sorriu e continuou a falar. O dinheiro foi
depositado na conta bancária que estava no anúncio, e o veículo foi entregue. Porém,
quando o automóvel foi ser vistoriado para a transferência dos documentos, a família
descobriu que se tratava de um veículo que havia sido roubado na semana anterior. O
mesmo acabou sendo apreendido pela polícia, e a compradora teve um prejuízo superior
a R$ 30 mil. “Jamais imaginei que se tratava de um carro roubado, ainda mais porque o
anúncio era de um jornal conhecido. Só comprei porque estava muito mais barato do
que na loja”, contou. O fato de pagar um valor consideravelmente mais baixo,
diferentemente do que ocorre com a maioria das pessoas, fez com que ela perdesse todo
o seu dinheiro e ficasse sem o tão almejado veículo. A estudante acabou sendo mais
uma vítima. Uma pessoa obteve vantagem em função do prejuízo financeiro dela.
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