priscila da silva

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171: o número do estelionatário O crime de estelionato é cada vez mais comum Não há como pensar no número 171 sem rapidamente imaginar a figura de um cidadão que, ao abusar da boa fé de determinados indivíduos, acabou ganhando algum tipo de benefício. Embora seja um delito cada vez mais incidente, o estelionato diferencia-se dos demais pela maneira “inteligente” com que é cometido. De acordo com o Código Penal Brasileiro, o estelionato é capitulado como crime econômico, sendo definido como “obter para si ou para outrem vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”. O crime tem pena de reclusão de um a cinco anos. Em algumas situações, o criminoso ainda necessita pagar uma multa. Casos como o do bilhete premiado são exemplos do crime de estelionato. De acordo com a Divisão de Planejamento e Coordenação - Serviço de Estatística da Secretaria de Segurança Pública, foram registrados em Porto Alegre este ano, até o mês de setembro, 3.228 casos. Enquanto que, no Estado, esse número sobe para 11.107 ocorrências registradas. Paulo Jardim, delegado da 1ª DP de Porto Alegre, explica que o golpe do bilhete premiado é muito comum na Capital, e que, embora não pareça, a vítima nem sempre acaba sendo enganada pelo fato de ser ingênua. Segundo ele, só cai quem pensa em ganhar dinheiro fácil. Nesse caso, o estelionatário age da seguinte forma: ele fica circulando na rua com um bilhete de loteria que correu naquele mesmo dia e que, em tese, estaria premiado. Ao abordar pessoas aparentemente honestas, que possuam boa índole (ou que transpareçam isso), o sujeito demostra estar visivelmente abalado e solicita a ajuda da vítima. Depois de contar que comprou o bilhete, e que o mesmo está premiado, o criminoso inventa uma estória, falando que perdeu um ente querido naquela madrugada, na maioria das vezes a própria mãe, e que precisa viajar, pois a mesma mora longe. Ele diz que não possui qualquer dinheiro e que está em desespero. Argumentando que não tem condição de viajar para resolver as questões do enterro, por exemplo, o estelionatário pede dinheiro emprestado. Como garantia, apresenta o bilhete, afirmando que, quando voltar e após ter solucionado todos esses problemas – e em retribuição à ajuda –, irá dividir parte do prêmio com aquela pessoa. Porém, como o bilhete foi

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Reportagem de Priscila da Silva para a revista Primeira Impressão.

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171: o número do estelionatário O crime de estelionato é cada vez mais comum

Não há como pensar no número 171 sem rapidamente imaginar a figura de um

cidadão que, ao abusar da boa fé de determinados indivíduos, acabou ganhando algum

tipo de benefício. Embora seja um delito cada vez mais incidente, o estelionato

diferencia-se dos demais pela maneira “inteligente” com que é cometido. De acordo

com o Código Penal Brasileiro, o estelionato é capitulado como crime econômico,

sendo definido como “obter para si ou para outrem vantagem ilícita, em prejuízo alheio,

induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro

meio fraudulento”. O crime tem pena de reclusão de um a cinco anos. Em algumas

situações, o criminoso ainda necessita pagar uma multa.

Casos como o do bilhete premiado são exemplos do crime de estelionato. De

acordo com a Divisão de Planejamento e Coordenação - Serviço de Estatística da

Secretaria de Segurança Pública, foram registrados em Porto Alegre este ano, até o mês

de setembro, 3.228 casos. Enquanto que, no Estado, esse número sobe para 11.107

ocorrências registradas.

Paulo Jardim, delegado da 1ª DP de Porto Alegre, explica que o golpe do bilhete

premiado é muito comum na Capital, e que, embora não pareça, a vítima nem sempre

acaba sendo enganada pelo fato de ser ingênua. Segundo ele, só cai quem pensa em

ganhar dinheiro fácil. Nesse caso, o estelionatário age da seguinte forma: ele fica

circulando na rua com um bilhete de loteria que correu naquele mesmo dia e que, em

tese, estaria premiado. Ao abordar pessoas aparentemente honestas, que possuam boa

índole (ou que transpareçam isso), o sujeito demostra estar visivelmente abalado e

solicita a ajuda da vítima.

Depois de contar que comprou o bilhete, e que o mesmo está premiado, o

criminoso inventa uma estória, falando que perdeu um ente querido naquela madrugada,

na maioria das vezes a própria mãe, e que precisa viajar, pois a mesma mora longe. Ele

diz que não possui qualquer dinheiro e que está em desespero. Argumentando que não

tem condição de viajar para resolver as questões do enterro, por exemplo, o

estelionatário pede dinheiro emprestado. Como garantia, apresenta o bilhete, afirmando

que, quando voltar e após ter solucionado todos esses problemas – e em retribuição à

ajuda –, irá dividir parte do prêmio com aquela pessoa. Porém, como o bilhete foi

adulterado, ao tentar trocá-lo, a vítima acaba se dando conta de que caiu em um grande

golpe, ficando sem o seu dinheiro e sem a parte no prêmio do suposto bilhete premiado.

“Geralmente, as pessoas que aplicam esse golpe são mais idosas, fazem cara de

humildes e são mais simples”, conta o delegado. Não há como determinar o perfil das

vítimas. Jardim, com mais de 30 anos de experiência, garante que o intelecto é

indiferente numa situação como essa. O que ele constata é que o ludibriado nem sempre

é tão ingênuo, muito pelo contrário, as pessoas acabam fazendo o cálculo do valor que

irão receber quando o dono do bilhete voltar, muito maior do que a ajuda financeira

concedida. Ou seja, a vítima acaba se deixando enganar porque, de certa forma, irá obter

alguma vantagem na situação. “Tu tens um misto de pena, com solidariedade, mas, ao

mesmo tempo, teu olho arregalou.”

Existem inúmeros golpes que configuram o 171, basta uma simples olhada nos

jornais para perceber que dezenas de pessoas são vítimas diárias. O golpe do bilhete é

apenas mais um deles. É possível identificar alguns aspectos que ajudam o

reconhecimento do perfil desse tipo de criminoso. O estelionatário apresenta

inteligência acima do nível das pessoas comuns, pois é um sujeito muito bem articulado,

com considerável poder de persuasão, além de ser extremamente envolvente, enganando

a vítima não apenas por causa do seu interesse, mas, principalmente, pelo seu poder de

sedução. Em todos os casos relatados por Jardim, não ocorreu qualquer tipo de

arrependimento do falsário. A situação é exatamente oposta. Quando interrogados, eles

contam sobre o verdadeiro prazer que é enganar o outro, sempre com uma estória

diferente e com um exibicionismo acentuado sobre as artimanhas usadas para iludir o

próximo. São pessoas que apresentam desvio de comportamento. Assumem uma

determinada personalidade e vivem nesse mundo à parte.

Em golpes como o do bilhete premiado, no entanto, não é apenas o

estelionatário que tem o objetivo de tirar alguma vantagem, a própria vítima também. O

excesso de confiança em si mesmas e a certeza de que serão beneficiadas pela sua

notável generosidade faz com que essas pessoas caiam facilmente nesse tipo de golpe.

Todas elas têm a certeza de que são espertas, apenas porque o malfeitor ofereceu algo e

fez o papel de “trouxa”, aparentemente desinformado e desesperado. A vontade de ser

astucioso e de levar algum tipo de vantagem, perfil de muitos cidadãos, faz com que a

possibilidade de cair em “contos do vigário” seja cada vez mais comum. “Todos

assumem, mais cedo ou mais tarde, que foram solidários apenas porque receberiam algo

superior aquilo que foi oferecido”, conta o delegado. Em episódios como esse, Jardim

não tem a menor dúvida ao mencionar: “Só é enganado quem se deixa enganar”. Se

realmente existe interesse em ajudar o próximo, não há porque esse cidadão ter qualquer

tipo de garantia ou de recompensa, por exemplo.

Eterna dor de cabeça

Para José Eduardo Meira, 37 anos, a situação foi completamente diferente do

exemplo do bilhete, embora também seja caracterizada como estelionato. Em 1992, ele

foi vítima de assalto e teve seus documentos roubados. Somente 15 anos depois, ao

tentar abrir uma conta bancária para receber o salário do seu novo emprego, José

descobriu que seus documentos haviam sido utilizados em compras e financiamentos

realizados em São Paulo no ano de 2006.

Ao ser informado que possuía diversas restrições de crédito em seu nome,

iniciou uma peregrinação que durou cerca de três meses, desde buscar na polícia o

registro do assalto, descobrir em quais empresas e que transações haviam sido feitas e

enviar declarações e documentos atestando o roubo e as fraudes de seus dados, além de

solicitar o cancelamento dos respectivos débitos. Ainda hoje, mesmo cinco anos após

ter comprovado que foi vítima de estelionato, José Eduardo passa por situações

embaraçosas por causa do ocorrido. “Recentemente, ao procurar uma loja para fazer um

cartão, fui informado de que já constava no sistema um cadastro em meu nome, e que eu

estava bloqueado por registro de fraude”, conta. Só depois de muitas horas no

atendimento eletrônico, disponibilizado pela própria empresa, ele finalmente conseguiu

suspender os cartões que haviam sido feitos e solicitar um novo, desta vez com suas

informações corretas. Em outro estabelecimento, foram necessários cerca de 60 dias até

que ele conseguisse atualizar o cadastro que havia sido criado pelos estelionatários.

Embora a pena para os crimes de estelionato seja de um a cinco anos, sujeita à

multa, o delegado Paulo Jardim conta que dificilmente um estelionatário permanece na

cadeia. Ele explica que inúmeros desses criminosos conseguem ter suas penas

flexibilizadas através do pagamento de multas ou cumprimento de penas alternativas,

pois eles não são considerados criminosos que oferecem risco iminente à população.

Segundo o delegado, a superlotação dos presídios e a precária condição do sistema

carcerário acabam influenciando a decisão dos juízes e interferindo negativamente nesse

tipo de condenação. Além disso, várias vítimas do famoso 171 não chegam a prestar

queixa por vergonha da situação em que acabaram se envolvendo.

BOX

Quando o barato sai caro

Enquanto eu aguardava pelo delegado Paulo Jardim, na sala de entrada do

plantão da 1ª DP de Porto Alegre, presenciei uma moça – que não quis se identificar –

prestando queixa sobre um dano causado ao seu veículo. Achei particularmente estranho

alguém que teve o carro arrombado no outro lado da cidade ir até aquela delegacia

registrar ocorrência. Ela me explicou que, por já ter sido vítima de estelionatários,

sempre procura a polícia, até mesmo para não haver mal entendido. Conversa vai,

conversa vem, me senti mais à vontade para perguntar qual o tipo de estelionato que a

mesma havia sofrido. Tendo a certeza de que seu nome não seria publicado, ela contou

que havia encontrado nos classificados de um renomado jornal um anúncio de venda de

um veículo ano 2011 por menos da metade do preço original, e que acabou se

interessando pela compra do automóvel. Visivelmente constrangida quando sugeri que

deveria haver algo errado, ela apenas sorriu e continuou a falar. O dinheiro foi

depositado na conta bancária que estava no anúncio, e o veículo foi entregue. Porém,

quando o automóvel foi ser vistoriado para a transferência dos documentos, a família

descobriu que se tratava de um veículo que havia sido roubado na semana anterior. O

mesmo acabou sendo apreendido pela polícia, e a compradora teve um prejuízo superior

a R$ 30 mil. “Jamais imaginei que se tratava de um carro roubado, ainda mais porque o

anúncio era de um jornal conhecido. Só comprei porque estava muito mais barato do

que na loja”, contou. O fato de pagar um valor consideravelmente mais baixo,

diferentemente do que ocorre com a maioria das pessoas, fez com que ela perdesse todo

o seu dinheiro e ficasse sem o tão almejado veículo. A estudante acabou sendo mais

uma vítima. Uma pessoa obteve vantagem em função do prejuízo financeiro dela.