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CHARCOSJM REFUG L

DE VIDA QUANDO

PÁRA DE CHOVERPortugal tem pequenas bolsas de águaespalhadas por todo o lado mas quaseninguém dá por elas. Os charcos tem-

porários são uma das melhores estraté-

gias contra a falta de água. Mas as secas

fora de época estão a ameaçar estes refú-gios para crustáceos do tempo dos dinos-

sauros, rãs, salamandras, tritões, libélu-lase plantas flutuantes. Há quem queiralevar charcos para os pátios das escolas

HELENA GERALDES TEXTO JOANA BOURGARD FOTOGRAFIA

á houve uma rã, que se chamava Fé-

nix, mas agora está no laboratório,dentro de um frasco com álcool, dizRicardo, dez anos, já conformadocom a triste realidade, mesmo nomeio do charco da Escola EB 2,3 D.

I Pedro IV, em Massamá, no conce-lho de Sintra.

l J O charco foi inaugurado no 3.°> s período do ano passado, no âmbi-

to da campanha nacional Charcos com Vida,promovida pelo Cibio (Centro de Investigaçãoem Biodiversidade e Recursos Genéticos daUniversidade do Porto). A escola de Massa-má é uma das 57 inscritas nesta campanha,cujo propósito é divulgar, conservar e criarcharcos temporários, corpos de água que va-riam entre o tamanho de uma poça e quaseum hectare.

Estes pequenos habitats, espalhados porcampos agrícolas ou bosques, enchem-se noperíodo das chuvas e secam no Verão, criandocondições de vida extremas. São considerados

pela União Europeia como um dos habitats

prioritários para a conservação da natureza,no âmbito da Rede Natura 2000, ainda quenos últimos anos tenham vindo a desapare-cer por causa da agricultura intensiva, porexemplo. A campanha Charcos com Vida querajudar os ecossistemas do Mediterrâneo aadaptarem-se melhor às variações climáticas,num país com 63% do território continentalem desertificação.

Dos charcos temporários dependem insec-

tos, plantas, aves e anfíbios, especialmentea rela-comum, o sapo-corredor, o sapo-de-unha-negra e o sapinho-de-verrugas-verdes.E existem dezenas de espécies de pequenoscrustáceos, como o camarão-fada, que só vi-vem nestes locais e que apuraram, ao longo demilhões de anos, estratégias para sobreviverà falta de água: enterram os seus ovos nos se-

dimentos, à espera das primeiras chuvas paraeclodir e começar tudo de novo.

Na escola de Massamá, é esta vida que estáa começar a colonizar o pequeno charco, ro-deado de árvores. De cócoras e mangas arre-gaçadas, cinco crianças estão a tirar pedras,lixo e a procurar vida animal com camaroei-ros. São o Clube escolar Charcos com Vida,

vigilantes daquele pequeno espaço, criado aum canto da escola por alunos e funcionários.É um buraco escavado no solo, impermeabili-zado com tela e, no centro, com uma pequenamassa de água onde foram colocadas pedras,alguma terra e plantas. À volta, flores amarelase lilases, por onde se passeiam dois pombosa debicar pedaços de papo-seco esquecidosno recreio.

Beatriz, 11 anos, espeta uma cana gradua-da no charco para medir a sua profundidade."Hoje tem 11 centímetros de água, professora.Não é muito...", diz, com orgulho de quemsabe, à docente Maria Gonçalves que observaa actividade científica com olhar atento.

Lara, dez anos, mergulha o camaroeiro ama-relo na água castanha. "As pessoas olham paraaqui e dizem que não há vida. Mas há, estácheio de vida", garante, ao mesmo tempo queprocura provas do que diz.

Mariana, 11 anos, e David, dez, medem o

pH da água e removem pedras que colegasmenos entusiastas atiraram para o charco. "É

difícil, há alunos da escola que não percebem.Atiram pedras, chutam bolas com força parao charco e no outro dia fizeram aviões de pa-pel que acabaram dentro de água", queixa-seMariana.

Mas, para a professora Maria Gonçalves,a importância da iniciativa é bem clara. "Es-te foi um projecto que melhorou a condiçãode um espaço na escola, um baldio, onde osalunos brincavam mas sem qualidade. Nemtinham zonas para se sentarem, nem bonitoera", diz a docente.

Além disso, segundo a professora, aquelecharco é um laboratório vivo permanente,onde se pode sempre recolher informaçãoque depois é levada para a sala para observa-

ção. "É um caldo cheio de vida microscópica.Ultimamente, têm-nos aparecido seres vivos

um bocadinho maiores, as daphnias, que en-cantaram os miúdos. Mesmo aqueles que nãoestavam inscritos no clube vieram ver e dis-

seram 'já somos cientistas', felizes com estadescoberta."

As daphnias, o género mais conhecido de

pulgas de água em Portugal, são antigas co-nhecidas de Maria José Caramujo, bióloga doCentro de Biologia Ambiental (CBA) da Facul-

A falta de chuva fez baixar o nível de águano charco da Escola D. Pedro IV. "Já chegou a

ter 40 centímetros, mas agora está quase sem

água", diz a professora Maria Gonçalves.Ricardo, que continua a trabalhar com afin-

co, ficou "desmoralizado" por ver a água qua-se a desaparecer. "Mas temos um plano parapuxar água de uma fonte natural que existena escola", conta. Além de trocar a tela queimpermeabiliza o charco - rota por causadas pedras atiradas lá para dentro -, esta é

uma das melhorias a fazer no futuro. Mas,mesmo com pouca água pelo menos uma vezpor semana, são feitas medições da tempe-ratura, da profundidade e do pH, garante a

professora.Rui Rebelo também é investigador do Cen-

tro de Biologia Ambiental da Universidade deLisboa e responsável pela criação de uma redede dez charcos temporários na Herdade da Ri-beira Abaixo, em Grândola, estação de campodaquela faculdade. Os dois primeiros foramescavados por si em 2004 e hoje são aquelesque têm mais biodiversidade. "Pelo menosnove espécies de anfíbios já se reproduziramlá e já foram colonizados por vegetação aquá-tica, que, normalmente, demora mais tempo.Estão óptimos", salienta. Os restantes foramcriados em 2010 e no final do ano estavam a

ser usados pelo sapo-corredor e pela rã-de-focinho-pontiagudo. "A biodiversidade está

preparada para aguentar a seca; desde quechova durante dois ou três meses, mantém-se", diz Rui Rebelo.

Mas no país há muitos charcos que este anonão chegaram a encher e outros que só tive-ram água uma semana. Algo já está a mudarem Portugal. "Vamos continuar a ter charcos,mas serão cada vez mais iguais. Com menoschuva, os 'quase permanentes' estão a tornar-se 'muito efémeros' e estes estão a desapare-cer", diz o biólogo. Rui Rebelo salienta que oscharcos temporários são muito importantespara manter a humidade no solo: "São reser-vatórios de água, mesmo depois de já ter aca-bado de chover."

Maria José Caramujo também nota, com al-

guma preocupação, o caminho que os charcos

temporários têm pela frente, num país ondeos regimes de precipitação se tornam maisinstáveis. "Estes charcos não são importantesapenas para a biodiversidade, mas tambémpara travar a erosão dos solos. São sistemas

que, mesmo no Verão, têm ervas frescas e umsolo mais húmido e muito estável. Nas regiõesáridas e com ventos, os charcos não contri-buem para o pó em circulação", afirma. Antesda agricultura intensiva, e de serem terrapla-nados para cultivo, os charcos eram utilizados

para dar de beber ao gado e como reservas deerva fresca para o Verão.

"Agora, a situação é preocupante", admi-te Rui Rebelo. Mas não é de hoje. Em 1991,Pedro Beja, biólogo do Cibio, fez o primeiroinventário de charcos temporários, no Par-

que Natural do Sudoeste Alentejano e CostaVicentina. Foram encontrados, com a ajudade fotografia aérea, 295 charcos. Em 2009fez-se novo inventário e tinham desaparecido45%. "É a perda, quase sem se dar por isso,de uma biodiversidade que estava em todoo lado", disse na altura este investigador aoPÚBLICO.

José Teixeira, do Cibio, coordena a campa-nha Charcos com Vida e está de visita à escolade Massamá, rodeado por lara, Ricardo, Maria-

na, Beatriz e David, que disparam perguntas.Ricardo apanhou duas rãs perto da casa do tioe quer saber se as pode pôr no charco e Ma-riana fica surpreendida por não se dever pôrpeixes nem cágados nestas pequenas massasde água. Lara, Beatriz e David querem fotocó-

pias de uma folha com desenhos de répteis eanfíbios. E a professora e José Teixeira sorriem

perante o entusiasmo."O número de charcos temporários tem

vindo a diminuir na Bacia do Mediterrâneo.Por isso, queremos mostrar às pessoas como

os charcos são importantes, sensibilizá-las emotivar a sua conservação", explica José Tei-xeira.

A campanha, que envolve 5000 pessoas,arrancou em 2010 e criou desde então 16

charcos, para além dos 958 que inventariou."Quem mais tem aderido são as escolas, quefazem actividades pontuais ou algo mais a lon-

go prazo, como a construção de um charco",acrescenta.

Também há câmaras municipais a partici-par, como a do Porto - que já tem dois charcos

nos jardins da cidade e, em conjunto com oCibio, identificou as zonas mais importantespara a sua conservação - e a da Maia, que jáeliminou peixes invasores. "Tivemos também18 particulares que nos contactaram para sa-ber como podiam melhorar os seus charcos",adianta.

osé Teixeira é, ele mesmo, um en-tusiasta pela vida destes habitats."Têm uma biodiversidade muitoparticular, própria de ambientesextremos, muito mais interessantedo que um lago com peixinhos ver-

I melhos e pouco mais. " Como as lu-tas entre rãs macho, as paradas que

l J fazem às fêmeas eas aventuras de> S animais com capacidades de adap-

tacão impressionantes. Por exemplo, o sapo-corredor consegue acelerar o seu ciclo larvarse o charco começar a secar antes do tempo,para se reproduzir e sair do sítio antes queseque. E depois há os insectos aquáticos, osescaravelhos de água e as larvas de libélulas,predadoras vorazes com uma armadura bocal

projectada a alta velocidade para capturar as

suas presas, como as larvas de anfíbios."Há exemplos fantásticos de adaptação. Há

insectos que têm formas muito interessantesde respirar debaixo de água, como aquelesque guardam o ar em bolhas debaixo das asas

para irem gerindo ou ainda aqueles que usamtubinhos que fazem lembrar tubos de mergu-lho." Mesmo a nível microscópico, há uma bio-diversidade imensa, com largas centenas de

pequenas algas e crustáceos. "Normalmenteas pessoas não se apercebem de que aquelasmassas de água são importantes, ainda têmuma carga pejorativa, as tais águas estagna-das", afirma José Teixeira.

Mas na sala do laboratório da escola D. Pe-dro IV, entusiasmo é coisa que não falta. Ostrês microscópicos estão todos ocupados com

cabeças de gente miúda a espreitar para as

daphnias trazidas do charco. "Olha, aqui vê-se o coração a bater, os intestinos e os olhos",explica Beatriz. E, vistas assim ao microscópi-co, as pulgas de água parecem seres dos abis-mos nas maiores profundidades dos oceanos,transparentes e de formas estranhas, a agitaras patas felpudas. "Parecem monstros. Masmonstros giros", diz David.

Então e do que é que gostam mais no char-co? "Gostamos de tudo", respondem, maisou menos ao mesmo tempo e a olhar para os

sapatos. "Até parece que ali não há vida. Masestá cheio de vida, a sério", insiste lara. "Sim,já sabemos. Já disseste isso duas vezes...", re-preende David.

Ricardo não esquece a Fénix, a primeira rãdo charco, e vai buscá-la ao armário ao fun-do da sala, dentro do frasco com álcool. Comcuidado, abre a tampa e põe o pequeno ani-mal na palma da mão. Quer mostrá-la, paraprovar que aquilo que tinha dito no início eraverdade. O charco da sua escola já teve rãs eele e os amigos querem garantir que isso vol-tará a acontecer.

A Escola D. PedroIV, em Massa má,foi uma das 57inscritas nacampanha Charcoscom Vida. Noplano anterior, ocharco criado no

espaço do recreioque antes era umbaldio. Em cima,lara observa umaamostra de água

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