pop/rock à portuguesa
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES
DEPARTAMENTO DE JORNALISMO E EDITORAÇÃO
Pop/Rock à Portuguesa
Trabalho de Conclusão de Curso2º semestre de 2002
Autora: Katia de Abreu PereiraOrientador: Dirceu Fernandes Lopes
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Índice
Apresentação ...................................................................................................................5
Agradecimentos ..............................................................................................................11
No início eram os Beatles e o lápis da censura ..............................................................13
“Ao longo da história fomos encenando diversas aventuras” ........................................19
O “boom” dos anos 80 ....................................................................................................31
Contracultura contra a tradição .......................................................................................40
“A música nos deixa respirar sem constrangimentos” ...................................................45
O lado negro da força .....................................................................................................54
A pop eletrônica ..............................................................................................................62
O Eterno Retorno ............................................................................................................67
“Não há um pop português” ...........................................................................................76
Apêndice .........................................................................................................................91
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Apresentação
"Rock português?! Isso existe?". Ouvi essa pergunta, acompanhada de olhares
desconfiados, durante todo o processo de concepção e execução deste trabalho. As
associações imediatas que qualquer brasileiro faz quando pensa em música portuguesa
são: o fado de Amália Rodrigues, a world music do Madredeus e a excentricidade brega
de Roberto Leal. Parecia inconcebível a ouvintes da antiga colônia lusa que se faça
música pop nas terras d'além mar. Malas prontas para a viagem, e a pergunta ainda
ecoava na minha cabeça. Via pela frente a árdua tarefa de mostrar que, sim, em Portugal
havia bom pop/rock. (Se ele tem alguma "portugalidade" ou se é mera reprodução de
modelos anglo-saxões é outra questão. E aqui vale questionar se boa parte do pop/rock
feito no Brasil, ou em qualquer outro lugar do mundo, não passa também por esses
modelos.)
É a propósito disso que vem este Pop/Rock à Portuguesa: apresentar um
panorama do que foi e é atualmente a música pop portuguesa em variadas vertentes (do
punk ao acid jazz, da eletrônica ao hip hop). Não há a pretensão de ser uma
enciclopédia em que são listados todos os artistas existentes por lá. Muitos ficaram de
fora, especialmente quando fala-se da produção atual. Impossível abarcar todos os
projetos, por mais interessantes que sejam. Impossível conhecer todos os projetos, por
mais tempo que se passe pesquisando. Não é, em absoluto, uma história definitiva do
pop português. Pelo contrário, um ponto de partida para análises mais completas.
Por certo há muito mais a dizer sobre os primórdios da pop em Portugal. Os
conturbados anos 60 não foram embalados apenas pelos Sheiks e pelo Quarteto 1111.
Mas esse nomes me pareceram boas pistas para se entender as dificuldades em se
começar a produzir música jovem em meio à uma ditadura fascista. Dois caminhos
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bastante diferentes que retratam bem à época: a inocência (de certa forma alienada),
copiada dos Beatles (ou melhor, da primeira fase do quarteto inglês), contrastando com
uma tentativa de combate às imposições de um rígido regime político (e talvez a
primeira tentativa de construir uma identidade musical portuguesa).
Os chamados cantores de intervenção são citados vagamente. Assunto que
mereceria mais atenção, não fosse minha idéia primordial falar de um pop mais próximo
do rock, do que da MPP (Música Popular Portuguesa). Afinal, foram duas músicas - "E
Depois do Adeus" (de José Calvário e José Niza, interpretada por Paulo de Carvalho) e
"Grândola, Vila Morena" (de José Afonso) - que serviram de senhas para a Revolução
dos Cravos, em 25 de Abril de 1974, que derrubou o regime fascista. De qualquer
forma, as especificidades deste tipo de música não caberiam na proposta deste trabalho.
Com redemocratização do país, nos anos 80 veio o "boom" do rock português. O
punk e a new-wave chegavam com um certo atraso à Portugal e moviam uma série de
jovens a formar bandas de rock e a cantar em português (coincidência com o que
aconteceu na mesma década aqui no Brasil?). Grupos como o GNR, UHF e Xutos e
Pontapés surgem nessa época e continuam ativos até hoje. Aparece também um "pai"
para o movimento: Rui Veloso. E vemos duas tentativas de fazer pop "genuinamente"
português. Uma delas, António Variações, vai buscar inspiração em canções populares
tradicionais. A trajetória é interrompida por uma prematura e, à época, polêmica morte.
A outra, Heróis do Mar, alia a estética neo-romântica a elementos histórico-culturais
portugueses, como a Cruz dos Templários e o tema da saudade. Seu ideólogo, Pedro
Ayres Magalhães, extingue o projeto e alça a música lusa aos quatro cantos do mundo
com o Madredeus.
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Logo o entusiasmo das gravadoras pelo tal rock português diminui. Apostas em
novas revelações já não rendem os lucros pretendidos pela indústria. Isso não impede
que haja um "levante" contra esse sistema que encara a música como mera mercadoria a
ser vendida. Uma "revolta" que toma forma na gravadora independente Ama Romanta.
Um sem número de projetos interessantíssimos, que fogem das abordagens tradicionais,
e com sua peculiar forma de fazer música (e poesia) chocam a opinião pública. Pop
Dell' Arte e Mão Morta, escolhidos para exemplificar isso, continuam na estrada
também. Agora menos marginalizados pela imprensa e pelo público, mas sem perder as
características que tanto chamaram a atenção no começo de suas carreiras.
O hip hop e a pop mais eletrônica, que atualmente desfrutam lugar de destaque
no cenário musical português, dão seus primeiros passos, ainda com status de
underground, na primeira metade da década de 90. Grupos como Da Weasel e Mind Da
Gap, hoje presença obrigatória em qualquer lista de melhores artistas portugueses, vêm
retratar a vida no subúrbio das grandes cidades. O projeto Underground Sound of
Lisbon consegue pela primeira vez levar a produção lusa para às massas fora de suas
fronteiras. Emplacam, no verão de 94, "So Get Up" nas pistas de dança de todo o
mundo. E revelam à cena clubber dois grandes disc jockeis: Rui Silva e DJ Vibe.
Antenados com as manifestações artísticas mais modernas, Pedro Abrunhosa,
Clã e Cool Hipnoise são protagonistas de uma geração que encontra no groove, no acid
jazz forma de expressar seu talento. Abrunhosa é um verdadeiro fenômeno em sua terra,
e alcança uma bem sucedida (embora não duradoura) internacionalização: é capa da
revista americana Billboard no final de 94, vende 800.000 cópias de um single no
Brasil, e faz shows por toda a parte. Mas não consegue se firmar no mercado externo.
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Conquistar público fora de sua terra parece ser a meta de alguns dos jovens
talentos portugueses deste princípio de século XXI. Há uma infinidade de bandas hoje
em Portugal produzindo boa música, cantada em inglês, na maioria das vezes. Grupos
que, em princípio, teriam chance de êxito fora de sua terra natal. Afinal, embora grande
parte da música pop consumida no mundo tenha origem nos Estados Unidos ou no
Reino Unido, recentemente presenciamos a ascensão de projetos que não vêm destes
pólos. Se os suecos do The Hives e do The (Internacional) Noise Conspirancy, ou os
islandeses do Sigur Rós (e estes nem cantam em inglês) e sua compatriota Björk
conseguem "furar" outros mercados, por que o mesmo não poderia acontecer com uma
boa banda vinda de Portugal, como o Coldfinger? Uma resposta a qual não se consegue
chegar facilmente... a indústria fonográfica tem idiossincrasias que me fogem à
compreensão. Uma Polygram (hoje Universal) lançar discos do Silence 4 no Brasil e
nos Estados Unidos e não promovê-los é algo que não entendo.
Essas peculiaridades da indústria têm levado os artistas a um caminho que talvez
seja o mais acertado, não só em termos de internacionalização: as edições
independentes. Não tendo como entrar no catálogo das majors, a saída são editoras
como a Metrodiscos ou a novíssima Subotnick, que apostam em novos talentos. Ou
ainda montar estúdios em casa e partir para "edições de autor", como os portugueses
gostam de chamá-las. Como fez o The Gift, que, depois de conseguirem grande sucesso
em Portugal (de público e de crítica), agora anda em turnês pela Europa e pelos Estados
Unidos, batendo à porta de editoras independentes que se interessem por sua música. Ou
os rapazes Fonzie, que foram a Suécia gravar um disco, entregaram-no pronto a uma
distribuidora e, por esforço próprio, conseguiram lançar seu disco no Brasil, nos EUA e
no Japão, por selos independentes.
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Nesse contexto, em que o "do it yourself", que regeu o movimento punk, é
levado às últimas conseqüências, muitos se sentem encorajados a trazer seu trabalho à
público. O número de artistas cresce exponencialmente, alguns melhores, outros piores.
Não é fácil dizer quem vai sobreviver ao tempo. Não foi fácil "eleger" as bandas que
seriam inclusas neste trabalho. Posso ter cometido injustiças (muito provavelmente as
cometi). Posso ter "apostado" em novidades que daqui há um tempo estarão esquecidas
em um canto qualquer nas lojas de disco. Mas reitero: a intenção não é sentenciar
verdades incontestáveis com este trabalho, e sim, apresentar um panorama. Um
panorama que, inevitavelmente, foi pautado por escolhas subjetivas. Um ponto de
partida, como dissera, para que se descubra o que há de pop em Portugal.
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Agradecimentos:
Aos meus pais, pelo incentivo e por serem minha ligação mais óbvia e direta com o
Portugal; à Babi, pela paciência com que escutou meus discos e idéias; ao Mário Lopes,
pela generosidade ao abrir sua agenda de telefones a uma desconhecida, e pela amizade
que veio a seguir; ao Théo e ao Dirceu, por não terem deixado com que eu desistisse; a
Alex Antunes, pelos discos, livros e conversas; a Henrique Amaro, pelas dicas e pelo
entusiasmo; à Jules, pelos animadores e-mails da madrugada; à Rita, ao Ricardo, à
Clara, à Joana, ao Mário S., à Fernanda e outros amigos portugueses (e não só), pelo
carinho com que acolheram a mim e a meu projeto; e por fim, a todos os que muito
gentilmente contaram-me um pouco de suas histórias, permitindo que eu reconstruísse
parte da trajetória do pop/rock em Portugal.
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Capítulo 1:
No início eram os Beatles e o lápis da censura
Década de 60. O mundo assistia, histérico, à ascensão definitiva da música pop.
Quatro rapazes vindos de Liverpool, na Inglaterra, embalavam toda uma geração ao som
de baladinhas com um certo ar inocente, e se preparavam para revolucionar a história da
música moderna. Na memória dos jovens dessa época ainda figurava uma imagem da
década anterior: Elvis Presley, que mais tarde seria chamado o "Rei do rock'n'roll". E
Mick Jagger e Keith Richards começavam a dar os primeiros passos de uma carreira que
duraria até hoje. Beatles, Elvis, Rolling Stones.
Década de 60. O mundo havia passado por uma guerra terrível contra ditadores
fascistas, e estava dividido em dois grandes blocos: os capitalistas e os socialistas. No
meio disso tudo, Espanha e Portugal ainda viviam à sombra, em um regime totalitarista
de extrema direita. Franco e Salazar já se perpetuavam no poder desde os anos 30,
mantendo a Península Ibérica isolada daquilo que acontecia no resto da Europa e do
mundo. Em Portugal, o nacionalismo se refletia na defesa de canções tradicionais, como
o fado, e na exaltação de valores morais conservadores, que serviam muito bem aos
interesses do regime salazarista. Sem muito contato com que se passava no cenário
internacional, como seria possível, então, que se produzisse algum tipo de música
próxima ao chamado pop rock em terras lusitanas?
"Havia nessa altura uma rádio pirata em Inglaterra, que transmitia através de um
barco, fora das águas territoriais inglesas. Era a Radio King Caroline e estava sempre a
passar as últimas coisas. Também havia amigos que viajavam muito e traziam as
novidades para a gente", explica Paulo de Carvalho, baterista e vocalista de uma das
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mais prestigiadas bandas portuguesas da época, os Sheiks. "O rock, o pop é uma música
de cultura anglo-saxônica. O que é que nós fizemos em Portugal? Nos limitamos a ouvir
a rádio. Compramos instrumentos e começamos a imitar os Beatles, os Rolling Stones,
os Shadows...", acrescenta.
Mas comprar uma guitarra em Portugal nos anos 60 não era uma tarefa muito
simples. Era muito difícil encontrar lojas que vendessem equipamentos de qualidade e
os preços eram proibitivos. As primeiras gravações dos Sheiks foram feitas sem
amplificadores, com os instrumentos ligados a rádios. Nem por isso, os garotos, que à
época tinham seus 15, 16 anos, desanimaram. Lançaram seu primeiro EP (Missing You)
em 1965, e logo estavam sendo chamados de "os Beatles portugueses". Tocavam em
festas universitárias, em bailes de colégio e nos festivais do "iê-iê-iê", que aconteciam
em Lisboa. E proporcionavam a si mesmos e ao público que os acompanhava a
sensação, pelo menos durante os concertos, de serem transportados para a Inglaterra
com que tanto sonhavam. No palco, o som, a postura, tudo era copiado dos modelos
ingleses. Na platéia não era diferente: a mesma histeria que se via nas transmissões
televisivas.
Os Sheiks foram o grupo mais popular dos anos 60 e sua história é emblemática
do que se passou com tantas outras bandas dessa época, como os Ekos, os Chinchilas,
os Jets, ou o Conjunto Mistérios. Ou mesmo a "geração" roqueira anterior, que seguia
os passos acrobáticos de Elvis Presley e Chuck Berry, como Victor Gomes ou
Fernando Conde. A história é sempre a mesma: amigos que se reúnem e decidem fazer
música como a de seus ídolos ingleses e norte-americanos. E depois de um tempo, as
bandas acabam (ou passam por sucessivas mudanças em sua composição, como
aconteceu com os Beatnicks) por que os garotos, ao completarem 21 anos, são
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convocados para o serviço militar. "A Guerra do Ultramar ajudou muito a que os grupos
acabassem", lamenta Paulo de Carvalho. No caso dos Sheiks, a carreira durou apenas
cinco anos (de 62 a 67).
Em meio a um regime político que atrapalhava a fomentação de atividades
artísticas, mantendo o país distante do que acontecia no exterior e mesmo intervindo
através da censura nas atividades culturais que fossem julgadas impróprias, o
movimento pop que se iniciava em Portugal não tinha qualquer pretensão política.
"Havia alguns artistas que tinham alguma consciência política e, portanto, lutavam
contra quem nos governava. Não creio que fosse o nosso caso, com 15, 16 anos. Se nós
realmente tivemos alguma importância social ou política foi um pouco por irreverência
própria da gente nova", comenta Paulo de Carvalho, contrapondo os grupos de "iê-iê-iê"
aos chamados "cantores de intervenção", que viam a música como forma de divulgar
um discurso político e foram peças importantes no processo de redemocratização do
país.
Paulo lembra que a censura nunca caiu sobre os grupos pop dessa época, porque
não tinham consciência política ou social da situação de Portugal. "Havia repressão para
quem conscientemente sabia que a música podia ser utilizada como uma arma. Não para
nós que fazíamos disso uma coisa ingênua. A maioria de nós queria música pela música.
Guitarra, bateria, viola e pronto. Ser conhecido. E depois havia a questão dos namoros...
as miúdas. Isso era o que verdadeiramente nos interessava. Não tinha a ver com
consciência política ou social."
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O rock de intervenção
Entretanto, havia um grupo de rock que, no começo da década de 70, seria
silenciado pelo regime fascista português. O Quarteto 1111 foi o que se pode chamar
de "a outra face" do rock feito em Portugal antes do 25 de Abril. Primeiro porque
cantavam em português (coisa rara nos grupos dessa época) e esteticamente se
diferenciavam das versões portuguesas de bandas estrangeiras. Segundo porque sua
música era engajada. José Cid, ex-vocalista da banda, acredita que sua obra ainda está
para ser descoberta. "O que se conhece do Quarteto 1111, que é a "A Lenda Del D.
Sebastião", "Os Faunos" [duas canções do primeiro EP da banda] e pouco mais, é
somente a ponta do iceberg. Porque o primeiro álbum do grupo (Quarteto 1111), que
saiu em janeiro de 70, foi silenciado uma semana depois de ser lançado, porque aborda
o problema da imigração e do colonialismo". Essas eram duas questões cruciais para
Portugal nesse período, e conscientizar a população a cerca desses problemas não era
visto com bons olhos pelos governantes. O álbum foi engavetado. Mas não era a
primeira vez que o Quarteto sofria punições. Em 67, depois de uma primeira
apresentação da banda em Angola, José Cid e seus companheiros foram proibidos de
voltar ao país africano. "Só pude voltar em 73, mas para cantar já um pop romântico",
recorda Cid.
O Quarteto 1111 se formou a partir de outra banda, o Conjunto Mistério. José
Cid era vocalista de um grupo de jazz em Coimbra e quando se mudou para Lisboa, em
65, encontrou os rapazes do Mistério, que, até então, era um grupo instrumental, a
exemplo dos ingleses Shadows. "Eles já tinham dois discos gravados e precisavam de
alguém que cantasse e escrevesse. Ficamos fechados numa garagem durante quase um
ano, e começamos a, custasse o que custasse, escrever em português. Foi assim que
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nasceu o Quarteto 1111". A vontade de cantar em português, aliada aos temas
escolhidos para as canções, rendeu à banda problemas com a censura. "Nós falávamos
da falta de liberdade de expressão, e do atraso cultural de Portugal em relação ao resto
da Europa", explica Cid. E vai além: "A censura era burra. Nos inspirava, porque nos
obrigava a encontrar metáforas para contornar as palavras".
As músicas do Quarteto também mexiam com valores e tradições do povo
português, como o Sebastianismo, por exemplo. "A Lenda Del D. Sebastião" é um dos
primeiros êxitos do grupo e, mais tarde, José Cid, já em carreira solo, compõe outra
música anti-sebastianista: "D. Sebastião Morreu". "Quando eu escrevi 'D. Sebastião
Morreu' a intenção era mesmo 'dessebastianizar' esse país. A canção era exatamente
para dizer que toda a gente é castigada por acreditar no sebastianismo. Como acreditam
no Milagre de Fátima, como acreditam que Sá Carneiro teria salvo o país se não tivesse
morrido. Há sempre um álibi para qualquer coisa", desabafa Cid.
Com tudo isso, não era de se admirar que o grupo não conseguisse agendar
muitos shows e, quando tocavam, a maior parte do repertório tinha que ser em inglês,
porque suas músicas estavam bloqueadas pelos censores. "Tínhamos muito, muito
pouco trabalho, porque éramos um grupo maldito, como eles diziam. No entanto, nunca
houve prisões nem nada disso, porque eles também sabiam que não pertencíamos a
partido nenhum", explica Cid. Ele também comenta que, certa vez, o comitê de censura
enviou uma carta às editoras pedindo para que avisassem seus artistas para tomarem
cuidado com o que cantavam. "E eu assinei imediatamente um documento à minha
editora, no qual, a liberava de qualquer responsabilidade sobre aquilo que eu cantava. A
responsabilidade era minha".
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A carreira do Quarteto 1111 termina em meados de 1975, depois de incursões
pela psicodelia e pelo rock progressivo. E é nesta última tendência que José Cid se
aventura no seu primeiro álbum solo. 10.000 Anos Depois Entre Vênus e Marte é um
álbum incompreendido na época de seu lançamento, em 76. Ele conta a história do que
seria o último no Planeta Terra. "Um cosmonauta e sua companheira fogem para o
espaço. Conhecem novas civilizações e galáxias e regressam, 10 mil anos depois, como
novos Adão e Eva. Quando o álbum saiu toda gente me chamou de louco: 'Que idéia,
que asneira! Estão todos drogados'", explica o cantor. Entretanto, quase vinte anos
depois de sua edição portuguesa, o disco é descoberto nos Estados Unidos, graças a um
músico português que mostra o álbum a um selo especializado em rock progressivo.
10.000 Anos Depois é relançado pelo Art Sulime em 94. Quatro anos depois, a revista
norte-americana Billboard nomeia o disco, em 57º lugar, entre os 100 melhores álbuns
de rock progressivo do final do século. "Isso para mim foi muito impressionante. E é um
álbum que eu hoje ouço e me sinto completamente impotente de fazer. Eu hoje não
conseguiria fazer isso", afirma Cid.
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Capítulo 2:
“Ao longo da história fomos encenando diversas aventuras”
Pedro Ayres Magalhães é idealizador e principal compositor e guitarrista da
banda portuguesa mais conhecida mundo afora: o Madredeus. Mas sua carreira como
músico não começa em finais da década de 80, quando suas composições tomam corpo
na belíssima voz de Teresa Salgueiro.
Ele já usou jaquetas de couro, calças surradas e toda a indumentária
característica dos roqueiros da época, quando em 1976, 1977, integrou uma das
primeiras bandas de punk portuguesas, os Faíscas. Depois, veio a new-wave
performática do Corpo Diplomático, que, basicamente eram os músicos do Faíscas,
reforçados pelo tecladista Carlos Maria Trindade. A seguir, Pedro Ayres criou os
Heróis do Mar, grupo fundamental na década de 80, não só por sua música (new wave
com incursões pelo eletropop, tão característico do período), mas pelas discussões que
trouxe à tona, quando, editado seu primeiro álbum, em 1981, foram taxados pela
imprensa portuguesa de fascistas.
Numa agradável manhã do verão de 2002, em Lisboa, Pedro Ayres resgatou em
sua memória mais de 15 anos da história do rock em Portugal. Inevitavelmente, falou
das dificuldades pelas quais passou em seus projetos e contou porque decidiu desplugar
os instrumentos e formar o Madredeus, que segundo ele ainda tem um bocado de rock
em sua estrutura.
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A sua primeira experiência com música foram os Faíscas, no final da década de 70.
Por que começar com o punk?
Nós estávamos em 76, 77. Tínhamos um grande fascínio pela música pop e rock dos
anos 70, e a conhecíamos bem. Não havia, no final dos anos 70, nenhuma tradição de
música elétrica em Portugal. Havia os conjuntos de baile, depois havia dois ou três
músicos de rock sinfônico [denominação genérica que se dá ao rock progressivo em
Portugal]que emulavam grupos ingleses e cantavam em inglês. Portanto, a música
elétrica não estava a ser usada como meio de transmitir mensagens sociais. Não havia o
hábito, não havia concertos, não havia nada. E nós tínhamos essa cultura da música
popular ligada a movimentos pacifistas [bandas populares na época, como os
Beatnicks, seguiam uma estética e discurso hippie]. E então, fizemos os Faíscas com o
intuito de ter um grupo que tivesse ação direta, que tivesse a ver com a vida das pessoas;
também com a idéia de compor, cantar em português; e também porque nós próprios
gostávamos de nos insurgir contra o ambiente.
Vocês tinham quantos anos mais ou menos nessa época?
Tínhamos 18... Nessa época, havia uma espécie de fatalidade em Portugal que era a
música de intervenção [após o processo que levou à Revolução dos Cravos, a música de
teor político ganha muito espaço na mídia e na vida dos portugueses, que agora viviam
em um governo socialista]. Havia mau som, concertos em cima de tratores. Uma coisa
muito despegada do tempo. Nós nos insurgimos contra isso. Nos Faíscas, nós é que
fazíamos tudo. Fazíamos os ensaios, depois montávamos os concertos, fazíamos os
bilhetes, os posters... Isso é que foi o princípio, não havia instrumentos, não havia
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amplificadores, não havia nada em Portugal. Mesmo assim, ainda fizemos vários
concertos...
Mas vocês não chegaram a gravar nada, a registrar o material.
Não. Nem nós, nem ninguém. Não gravávamos discos. Era muito difícil. Só dois anos
depois, já com o Corpo Diplomático, gravamos um LP (Música Moderna), porque a
editora gostava muito de nós desde a época dos Faíscas. Então, lá nos deram três dias de
estúdio para gravar um disco. Por isso, percebe-se bem como era pioneira a atividade.
O Faíscas durou quanto tempo?
Deve ter durado uns dois anos. O Corpo Diplomático deve ter durado isso também, uns
dois anos.
E era uma música diferente, a do Corpo Diplomático, em relação ao Faíscas.
Eu gostava imenso desse grupo. Pronto, juntamos teclados ao grupo. Na altura tinha
muito isso de colocar teclados. O núcleo dos Faíscas era eu e um guitarrista que se
chama Paulo Gonçalves. Aí, juntamo-nos ao Carlos Maria Trindade, que ainda hoje toca
comigo nos Madredeus. E assim se fez o Corpo Diplomático.
E porque a mudança? Buscar um tecladista, sair do punk rock?
A gente não saiu. Quer dizer, nós apenas fazíamos uma música elétrica dura, muito
ritmada e com muita energia. Não éramos nós que chamávamos a nós próprios de
punks. Chamavam-nos. Ao Corpo Diplomático também chamavam punk. Nessa altura
deixamos de usar as roupas de cabedal [couro] e essas coisas, estávamos em outra
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época. E tentamos criar uma coreografia para o grupo, que no fundo tinha mais a ver
com o nosso tempo, com a new wave. O Corpo Diplomático deve ter sido, em 78, 79 e
80. E em 81 já estávamos a lançar os Heróis do Mar.
Os Heróis do Mar era uma coisa bem atual, muito parecida com o que se fazia pelo
mundo, não ficava nada a dever ao que se fazia na Inglaterra, era o som
característico da década de 80...
Nós quando chegamos aos Heróis do Mar já conseguimos, por exemplo, ter para o
primeiro disco dez dias de estúdio ou oito. Gravava-se muita música ligeira. Portanto,
era difícil conseguir um bom som. Não existia a tradição da produção de discos cá.
Portanto, nós éramos pioneiros. Tivemos que sair dos ensaios para aprender a fazer isso:
saber gravar, escolher os instrumentos.
Com os Heróis do Mar, um dos músicos que entra é o Tozé Almeida, que era o baterista
de uma banda que foi pioneira também em Portugal, os Tantra [banda de rock
progressivo, com contornos psicodélicos]. E ele já tinha experiência, já tinha gravado
dois ou três álbuns com bom som, e com instrumentos elétricos. Então, ele nos
emprestava alguns instrumentos, amplificadores. Os Heróis do Mar nunca foram uma
banda produzida em estúdio. Era um grupo que gravava o que tocava.
Mas a sonoridade era contemporânea ao que se fazia na Inglaterra...
Pois é. Nós trabalhávamos tanto nos arranjos e na música que fazíamos, que a qualidade
e o bom gosto daquilo que a gente fez era bastante mais elaborado do que o que se fazia
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na época cá. E ainda hoje é. Ainda hoje o som dos nossos discos, que foram gravados há
20 anos, não é comparável aos outros todos que se foram fazendo.
O Heróis do Mar tinha toda aquela presença cênica.
Nós nos víamos um bocado como se fôssemos uma companhia de teatro. E ao longo da
história fomos encenando diversas aventuras, em cada um dos discos que nós gravamos
(ao todo foram cinco álbuns). Então, os álbuns eram temáticos.
Os Heróis do Mar era música elétrica, mas de dança. Entretanto, havia poucas
discotecas naquela época. Digamos que foi uma cultura que foi se apercebendo ao longo
dos anos 80. À essa altura, se saísses à noite - e nós éramos novos e gostávamos de sair
à noite para dançar - passavas uma noite inteira e só ouvias música em inglês. Não havia
mais nada. E nós queríamos fazer mesmo música para as pistas. Em português.
Mas, depois de algum tempo de trabalho, as músicas de vocês tocavam nas
discotecas.
Logo tivemos êxitos... "O Amor", "A Paixão" são singles que tocaram todo o verão em
todo o lado. Uma coisa incrível! Mas nós tínhamos por um lado essa dimensão, mas por
outro temos que relacionar o nosso trabalho com a nossa cultura, com a expressividade
de Lisboa nessa época. Se em um ano fazíamos 30 concertos só 10 é que tinham
equipamento suficiente, e contexto suficiente para o concerto soar como nos
gostávamos. Porque os outros 30, 40, as instalações, os palcos, o som... tudo isso era
sempre uma coisa a meio caminho. Foi uma grande luta fazer sobreviver esse grupos. E
sobreviver nós próprios como músicos e autores.
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Foi uma grande luta conosco próprios. Porque nessa altura, tocamos em França, em
Espanha, enfim. Com essa experiência, vínhamos para Portugal e tínhamos a noção de
que não só o equipamento não era o da indústria (como devia ser) como o público não
sabia o que havia de fazer em nossos concertos. Porque não existia a cultura de vídeo.
Fazias um grande espetáculo e fica tudo a olhar, a ver-nos dançar e tocar. Ficavam a
olhar, sem saber como se comportar.
Isso, se deve a um grande atraso do país, cuja exceção foi apenas dois ou três jornalistas
que escreviam de maneira diferente sobre a música, e que tinham uma outra cultura
sobre a música popular no mundo inteiro, e podiam enquadrar aquilo que a gente fazia
por conta do resto. Os Heróis do Mar são um grupo que durante esse anos todos tem
dificuldades em expor a sua especulação artística, diferente entre um ano e outro, entre
um álbum e outro, entre uma fase e outra.
E somos um bocado empurrados para a imagem do primeiro disco. É difícil depois
renovar a mensagem porque ficaram muito marcados esses dois primeiros anos do
grupo. Nos outros anos nos sentimos um bocado presos nesse determinismo inicial. E
no entanto, agora em 2002 se juntaram a EMI e a Polygram para reeditar todos os
nossos discos e as pessoas vão poder ver que nós gravamos ao longo dos anos 80 e que
se houve uma coisa que os Heróis souberam fazer foi renovar-se a si próprios em cada
momento.
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E agora com o relançamento dos discos, você acha que as pessoas vão poder ter
uma idéia do todo, entender melhor a obra de vocês?
Eu espero que as pessoas tenham pelo menos a idéia do extraordinário, da dimensão que
foi o trabalho dos Heróis do Mar. Quer dizer, era tabu muita coisa. A partir dos anos 80,
era tabu falar do nosso país, era tabu encontrar influências nas raízes portuguesas, que
não fosse para falar do pão, da habitação. Era tabu falar de amor. Tudo era muito difícil.
E nós arranjamos formas de o fazer, na nossa língua, sem cair no mau gosto e sempre,
penso eu, com grande inventividade.
É um pouco por causa disso que houve toda aquela polêmica em que se taxou os
Heróis do Mar de fascistas?
Isso aconteceu quando saiu o nosso primeiro disco. Estávamos no princípio dos anos 80,
havia o movimento neo-romântico na Europa, que era o Spandau Ballet, Duran Duran, a
música dos sintetizadores. E as pessoas, os músicos vestiam-se como os salteadores
escoceses ou coisas assim... Havia uma grande identidade visual das bandas. E nós
decidimos fazer o mesmo. O nosso grupo também queria lançar a importância da moda
cá em Portugal. E decidimos fazer uma espécie de montagem, como se o Heróis do Mar
[primeiro disco da banda] fosse uma epopéia dos portugueses. E nos outros discos, não
se fala nem do Vasco da Gama, nem de nenhuma pessoa, nem de nenhuma data. Apenas
tentamos fazer uma nova leitura, digamos, uma leitura de emoções e sentimentos dessas
características dos portugueses. E, encarnamos no palco essas figuras. Fizemos umas
fardas com peles, e tambores, e usamos bandeiras. E falamos das fogueiras e da guerra,
do fascínio do oriente, do fascínio pela África.
26
E infelizmente para nós, nessa altura essas coisas eram tabus em Portugal. E portanto, as
idéias que dominavam a imprensa em Portugal eram de que o país não devia ser um
país, devia ser uma república internacionalista, não devia haver fronteiras, devíamos
pertencer ao bloco dos países soviéticos, ou então cair sob a ameaça do imperialismo
americano... Havia uma propaganda fora de época igual àquela que devia ter sido feita,
se calhar, no início do século XX, mas que aqui só começou a ser feita abusivamente
nos anos 80. Nós fazíamos as coisas também com a idéia de provocar esses tabus,
porque achávamos que tínhamos o direito de viver tranqüilamente como portugueses e
com a nossa história. Mas na altura havia muitas feridas. Havia as feridas da
descolonização.
É um pouco confundirem nacionalismo com fascismo?
Nacionalismo não. Patriotismo. Queriam negar às pessoas todas, nessa altura, o direito
de gostarem da história de seu país em particular. Tinham que gostar da história do
mundo, da história geral. Um mundo sem fronteiras, um mundo sem histórias. A
história era só a história da economia. E nós, éramos novos e achávamos isso
completamente contingente àquela época. E quisemos provocar reações. Então, sim
senhor, falamos em Portugal. Nem pudemos pôr Portugal em nenhuma letra. Não se
podia dizer o nome do país sem ser chamado de fascista! Então, não pusemos a
palavra...
Mas faziam referências à história.
Fazíamos referência à História, mas de forma metafórica. E usamos a cruz da Ordem
dos Templários, que é a cruz das caravelas. Quer dizer, é a única coisa que não
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dividimos com mais ninguém. Depois eu vim saber que houve uma espécie de
maquinação em que quiseram nos empurrar como se fôssemos uma manobra da direita
em Portugal. E nós éramos um grupo completamente independente! Disseram que
recebíamos dinheiro e favorecimentos... umas grandes fantasias. Porque a esquerda
perdia terreno em relação àquilo que se julgou poder fazer depois da revolução.
Principalmente terreno político. Perdia muito terreno, mas tinha muita implementação
nos meios de comunicação e então, inventaram que nós éramos fascistas. Vinha nos
jornais...
Isso, então, era uma coisa que vinha da imprensa?
É. Vitimizaram-nos dizendo "não, são uns fantoches da direita". Umas fantasias. Foi
muito chato. Para nós foi uma grande dor, porque achamos uma grande injustiça.
Mas esse rótulo depois...
Pesou durante anos. Acho que ainda hoje deve pesar. Não se fala dos Heróis do Mar
sem vir com essa coisa dos fascistas. Uma estupidez completa. Mas foi uma surpresa tão
grande que de um grupo musical surgir toda essa discussão sobre um partido político
que mais ninguém se esqueceu.
Seis meses depois disso estávamos a receber uma placa do sindicato dos jornalistas a
agradecer, quando o nosso trabalho foi reconhecido pela Rock and Folk, e andamos a
fazer turnê com o Roxy Music pela Europa.
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Chegaram a conseguir uma internacionalização?
Não... Fomos editados em Espanha e França. Fizemos alguns shows por lá. Mas acho
que é importante lembrar uma coisa. A música era interessante e original. O grupo
tocava muito bem e tinha boa imagem. Mas como era um grupo de rock, não só tinha
muitos instrumentos como era caro produzir um concerto (equipamentos e essa coisa
toda). E então, nós tivemos essas oportunidades todas de tocar, mas, como para fazer a
nossa arte gastávamos muito dinheiro, era muito difícil promover o grupo.
De modo que, foi desse sofrimento, dessa sensação de impotência que tínhamos aqui em
Lisboa quando éramos convidados a ir para o Festival X, Festival Y (não havia cachê, a
banda era desconhecida, era para nos promover; e não tínhamos como chegar lá, não
tínhamos um caminhão, nem nada), foi com essa preocupação que eu criei os
Madredeus.
Foi o final do Heróis do Mar e veio o Madredeus?
Não. Foi ao mesmo tempo. Os Heróis do Mar acabam em 89, e os Madredeus começam
em 85. Eu quis fazer um grupo portátil, em que fosse possível tocar em qualquer lado,
só com um carro. Poucos instrumentos, pouco equipamento, pouco backlight. Um grupo
em que fosse possível fazer um grande concerto para levar longe.
E na música, vocês foram buscar mais elementos da tradição portuguesa...
O caminho era o mesmo. Só mudaram os instrumentos. É o mesmo caminho dos Heróis
do Mar. Mesmo nas letras. É o mesmo estudo. É a saudade, é a essência portuguesa, é a
história de Portugal. É o universalismo português: é o Brasil, é a África, é a Índia, é
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Macau. É mesmo o mundo. Só que com menos instrumentos. Só com uma viola, um
acordeão, um violoncelo, um cardiotone, fizemos o Madredeus. E íamos viajar em um
carro. Não havia dinheiro, mas a gente tocava a mesma, em um castelo. Fazíamos um
grande concerto. Havia pouco equipamento e o concerto era bonito na mesma. Percebia-
se tudo o que a Teresa dizia, ouvia-se a poesia, ouviam-se os instrumentos. Pronto. Foi
mudar as expectativas. No início nos queríamos power, não é? Queríamos luzes,
queríamos equipamentos e não havia.
E partindo para uma coisa mais acústica ficou mais fácil de transportar, de
apresentar.
Foi exatamente essa idéia. Eu passei dez anos - toda essa história que estou a contar, os
Faíscas, Corpo Diplomático, Heróis do Mar - com problemas desses. Grandes convites
para ir a festivais ou tocar em França ou Espanha, e sem hipótese nenhuma de
transportar o equipamento. Era impossível. Ainda hoje, os Madredeus, somos muito
famosos e tal, mas somos um grupo completamente independente. A atividade do grupo
é igualzinha a que era a dos Faíscas, é independente, interventiva, provocatória.
E a aceitação dessa nova proposta que vocês tinham como Madredeus, aqui em
Portugal, foi boa? Conseguiram logo uma editora?
Não, para não haver grandes rescisões de contrato (como ainda existia os Heróis do
Mar), gravamos sem contrato. Com duas pistas, durante duas noites. O primeiro disco
do Madredeus foi gravado assim. Com o primeiro DAT [um gravador digital com
apenas dois canais de áudio] que houve cá. Gravamos as músicas todas que tínhamos e
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foi muito bem recebido pela crítica. Claro, houve muita gente que disse que estava mal
tocado, que éramos uns putos [moleques].
Os Dias de Madredeus sai em 87. Depois, à altura nos perguntavam qual era a nossa
idéia. Não era um grupo para dançar. Nós dizíamos que queríamos fazer recitais em
castelos e jardins, nos teatros velhos. Queríamos, como qualquer grupo, fazer a apologia
pela música. E o grupo era amador até 91, quando fizemos a primeira turnê nacional.
Você já disse em entrevistas que o Madredeus tem um bocado de rock...
Sim, porque é também uma linguagem construída em grupo. Se fores ver a autoria das
músicas, vais reparar nisso. Sempre foi uma linguagem criada coletivamente, sob a
minha direção, mas de certeza que convidamos toda a gente a participar, a escrever
canções. Portanto, isso é uma grande característica da música popular, nos grupos de
rock, que é quando a música deixa de ser escrita por um único compositor e passa a ser
elaborada em conjunto.
Depois tem a ver também com a independência e com a iniciativa sui generis. Os
Madredeus não correspondem à continuação de um estilo que exista. Os Madredeus
procuraram durante esse tempo todo se libertar da idéia de que a música tradicional de
Lisboa é obrigatoriamente o fado. Tentamos todo o tempo fazer uma coisa que seja
também um recital de poesia; que seja cantado em português, e não é música para
dançar. Embora tenha sido usado em muitos balés. É uma criação diferente, como rock.
Não segue nenhuma escola, nenhum estilo pré-determinado, se não a liberdade de seus
autores.
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Capítulo 3:
O “boom” dos anos 80 (ou a descoberta de um negócio rentável)
O rock português não teria se tornado um fenômeno nos anos 80 não fosse uma
senhora do Porto viajar até Lisboa com algumas fitas cassetes dentro de sua bolsa e
bater à porta da maior editora do país, a EMI-Valentim de Carvalho. O rock português
não teria um "pai" não fosse uma mãe ter acreditado no talento e nos sonhos de seu
filho. Rui Veloso talvez tivesse passado o resto de sua juventude tocando blues
timidamente para uma escassa platéia de amigos e familiares, não fosse a audácia de sua
mãe. "Foi ela quem trouxe minhas fitas para a Valentim de Carvalho, sem eu saber, me
roubou-as", lembra Veloso.
Com seu primeiro álbum, Ar de Rock, de 1980, conquistou uma editora e todo o
país. Canções de apelo pop, rock leve com uma levada bluesy e uma das melhores
música de todo o rock lusitano "Chico Fininho" (que rompeu o tabu de se falar sobre
viciados em drogas publicamente), renderam a Rui Veloso milhares de cópias vendidas
e o título de "pai do rock português". "Eu fiquei famoso do dia para a noite, não é? E
toda gente toca as músicas em todo o lado. Em discotecas, nas rádios, nos parques...
Ficou muito conhecido esse disco. E realmente o cantar em português foi importante",
afirma Veloso, que acredita que ter impulsionado outros artistas a gravarem
composições em português. E é nisso que ele vê a "paternidade" que a imprensa lhe
confere.
Entretanto, o título é bastante injusto. Como já foi visto, não foi na guitarra de
Rui que o rock português começou suas atividades. Quando o menino vindo do norte de
Portugal entoava seus acordes em todas as rádios do país, muitos já haviam deixado sua
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marca nas mal traçadas linhas da história do rock lusitano, desde finais da década de 50.
Rui pode ter sido aquele que primeiro atraiu a atenção da indústria e da mídia para o
rock feito em Portugal e cantado em português. Mas não foi o primeiro a fazê-lo. Até
porque ele mesmo, quando começou a carreira (antes de gravar o primeiro disco),
compunha com o amigo, e exímio letrista (um dos mais importantes de Portugal) Carlos
Tê, canções em inglês. "Quando nos sugeriram que compuséssemos em português,
torcemos o nariz. O Carlos estava habituado a fazer música em inglês e foi um bocado
complicada a adaptação. As primeiras letras que ele escreveu em português são as que
estão no Ar de Rock", comenta Veloso.
Atribuir a ele a iniciativa pioneira de cantar em português é injusto mesmo se
considerarmos, como alguns, que o "nascimento do rock português" se dá na década de
80 (hipótese discutível já que o argumento para tal é que o rock que se fez anteriormente
era cópia chapada dos modelos norte-americanos; a pergunta que fica é se o rock que se
faz a partir de então não é também calcado em referências e parâmetros anglo-saxões,
como de fato é todo o rock). Em 1980, quando se edita Ar de Rock, já se escutava nas
rádios da capital a canção "Jorge Morreu" dos UHF, há quase um ano.
Vindos da maltratada Almada (cidade dormitório, vizinha de Lisboa à margem
sul do Tejo), António Manuel Ribeiro e seus companheiros começaram suas atividades
no final da década de 70 com um som sujo e duro, bastante influenciado por Jim
Morrison e o seu The Doors. "Jorge Morreu", que conta a história de um amigo da
banda que se suicidou cansado do "dia-a-dia asfixiante, cínico, necrótico, de uma cidade
pobre de contactos humanos" (como escrevem na contracapa do EP homônimo), foi o
primeiro hit do grupo, em 1979, e pavimentou o caminho para o sucesso que viria com a
edição do álbum À Flor da Pele, pelo qual receberam disco de ouro, em 1981.
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"Nós sentíamos a mesma raiva que sentíamos que vinha lá de fora. Mas
queríamos senti-la em português, cantá-la em português. Em 74 tinha havido uma
revolução para nós muito importante. E digamos que entre 74 e 78, quando nós
começamos a tocar a sério, com o nome UHF, nós queríamos fazer coisas a nossa
maneira. Fomos buscar precisamente a música rock como fator de agressão, fator de
penetração, digamos", explica António sobre o surgimento do UHF. Durante algum
tempo o grupo ficou restrito ao chamado circuito underground. Mas logo no início dos
anos 80 ganham projeção nacional.
Para o líder da banda o sucesso se explica porque o rock vinha preencher uma
lacuna cultural que havia em Portugal nessa época. "Acho que estava-se a espera
daquilo, acho que a juventude naquele momento estava a espera de alguém, de um
grupo que sinalizasse uma ruptura. E nós fizemos essa ruptura com o passado. Era
mesmo o passado de antes de 74, a música fuleira que havia na altura e também alguma
música que apareceu depois, chamada música revolucionária que era muito, muito
pobre. Havia (e há) grandes cantores nesse país, Zé Mário Brandes, Sérgio Godinho,
José Afonso... é indiscutível. E são para mim um referência, talvez mais na poesia do
que na música. Mas musicalmente eles eram pobres. Era tudo com uma viola. Uma
viola e uma flauta. E nós viemos para agredir. E para agredir é preciso chegar lá e dar
um grande soco. E a música rock tem esse soco." E ao que parece, o soco veio, e veio
com força.
Afinal, a descoberta!
"Já havia rock português desde o final dos anos 50. Agora, o rock português a
sério, com uma estrutura profissional, com vendas discográficas importantes,
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espetáculos regulares; com uma indústria capaz de suportar os concertos e a produção; e
editoras, que também tiveram que se modernizar, crescer... isso só aconteceu nos anos
80", comenta o líder do UHF.
O estouro, ou "boom" do rock em Portugal aconteceu a partir do sucesso do
UHF e de Rui Veloso. Daí em diante, muitos discos editados, muitos concertos, toda
uma indústria se desenvolveu em torno do pop/rock. O jornalista António Duarte, em
seu livro A Arte Eléctrica de Ser Português (Livraria Bertrand, 1982), fornece algumas
pistas para que se compreenda o fenômeno que aconteceu em Portugal na década de 80.
"A existência de programas radiofônicos e de jornais especializados mais vivos, mais
progressistas e mais abertos à nova música cantada em português, a aposta e
investimentos - e depois algum oportunismo - das editoras nacionais na fabricação de
um novo mercado discográfico, o apuramento das técnicas promocionais, o aumento do
poder de compra da juventude e a utilização de uma linguagem simples direta e
quotidiana nos discos editados explicam, genericamente, a explosão do 'fenômeno' do
rock 'português'. Rock que desde há vinte e cinco anos é cantado em português e em
inglês, com algumas boas provas de qualidade, mas que nunca tinha sido boom".
No início da década de 80, as editoras desataram a contratar artistas que faziam
rock em português. Tinham descoberto a fórmula do sucesso (ou do lucro) com Ar de
Rock e À Flor da Pele, e seguiram-se dezenas de lançamentos de bandas e mais bandas,
como os Taxi, que foram a coqueluche adolescente à época com "Chiclete" (nome mais
do que apropriado para a canção que lançou o grupo de pop bubblegum, altamente
vendável), mas depois sumiram.
A indústria fonográfica contava ainda com a ajuda da mídia. Aos semanários que
já existiam desde finais da década de 70 - como os extintos Rock Week e o Se7e - veio
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se juntar o Blitz, em 1984, que logo se tornou o mais importante veículo de divulgação
musical em Portugal. Da mesma forma, impulsionavam o público a consumir a
produção nacional programas como o Pop Off, na televisão (havia apenas dois canais,
ambos estatais, nesse período, a RTP 1 e a RTP 2), e Rolls Rock, na Rádio Comercial.
Não tardou para que começassem a surgir lugares onde as bandas pudessem
fazer seus shows. Em 1980, o inesquecível Rock Rendez-Vous (raro encontrar algum
português com mais de 30 anos que não se lembre com saudade desse local), aparece e
se torna o palco mais importante da capital portuguesa, a partir do qual bandas como
Xutos e Pontapés conquistaram seu público. Mais tarde, em 1984, o Rock Rendez-Vous
viria a promover os famosos Concursos de Música Moderna, revelando muitos talentos
como os Mão Morta. O hoje mítico Festival Vilar de Mouros, volta em 1982 (houve
uma edição em 1972 e depois um hiato) e se mantém até hoje, como um dos eventos
musicais mais importantes do país (um festival que dura quatro dias e acolhe mais de 30
mil pessoas, reunindo músicos portugueses e grandes nomes do rock internacional).
Irreverentes e polêmicos
Um dos grupos mais interessantes desse começo de década é o GNR (ou Grupo
Novo Rock). Marcaram sua new-wave à portuguesa, desde o início, pela irreverência,
das letras e da postura da banda. "O próprio nome GNR é uma provocação. GNR, ou
Guarda Nacional Republicana, é uma polícia de choque, uma coisa antiquada,
ultrapassada, com farda antiga... é uma polícia que na época do fascismo reprimia as
pessoas", esclarece o vocalista Rui Reininho. Já no primeiro single "Portugal na CEE"
(antes mesmo de Reininho, famoso por seu humor ácido, integrar a banda) ironizavam a
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maneira idílica com que muitos portugueses estavam encarando a entrada do país na
União Européia (à época ainda chamava-se Comunidade Econômica Européia).
A entrada de Reininho no primeiro LP, Independança, em 1981, e o fato de ele
se tornar a partir de então o responsável pelas letras do grupo veio afirmar o humor
como característica incontornável do GNR. Reininho escreve canções onde o nonsense
e o jogo de palavras não nos deixam conter o riso, mesmo quando o teor dos textos é
crítico (como quando fala da futilidade e da decadência do cotidiano oitentista em
"Absurdina"). E em palco, as performances do grupo levavam a cabo a máxima de Gil
Vicente de que "é rindo que se castigam os costumes".
Ao longo dos anos, a banda sofreu uma série de mudanças em sua formação,
numa história tão rocambolesca que verdadeiramente se parece com enredo de novela
televisiva. O núcleo fundador do GNR era Victor Rua, Alexandre Soares e Toli César.
Em seguida, entra Reininho e eles lançam Independança, em que no lado B ousaram
uma faixa experimental de 27 minutos chamada "Avarias". Simplificando a trama,
acontece que Rua gosta muito do resutlado de "Avarias" e acaba entrando em contato
com outros músicos (ligados à música eletrônica minimal) e decidindo que quer dar esse
rumo à sua carreira. Sai da banda (entretanto alega que "demitiu" o restante do grupo e
não que saiu) e segue uma carreira na área musical que lhe interessa. Obviamente a
questão vai parar em juizo e tudo o mais por causa de direitos de propriedade
intelectual, tanto de algumas músicas como do nome do grupo, que Rua, reivindica para
si. Entra no lugar de Rua, o guitarrista Jorge Romão, e fica sendo esta a formação da
banda até 1986, quando Soares deixa o GNR, segundo o próprio "por divergências
estéticas".
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É verdade que o rumo estético que o grupo deu a seu trabalho passou a não
agradar a todos. Muitos fãs viram com restrições álbuns como Mosquito, considerado
"muito comercial". Sobre as críticas às mudanças na sonoridade do grupo, Reininho é
taxativo: "Vendemos mais de 100 mil discos e tem aquela gente mais branché que acha
que já é mais comercial. Eu gosto do que faço e gosto que chegue ao maior número de
pessoas".
Outra banda que tem a irreverência como marca são os Xutos e Pontapés. Sem
novelas envolvendo o entra e sai de músicos, como nos GNR, os Xutos conservam
praticamente a mesma formação desde o princípio de sua carreira, nos idos de 1978. Zé
Pedro, Tim e Kalú à época do "boom" não foram contratados por nenhuma major.
Tiveram seus discos editados por uma gravadora independente, a Rotações. Não fizeram
sua carreira nos programas de rádio ou na TV. Mas nos palcos do Rock Rendez-Vous,
onde são recordistas de apresentação (mais de 20 durante os nove anos da casa). O
hard-rock (que por vezes visitava também o punk) dos Xutos só alcançaria sucesso
comercial no final da década. E viriam a influenciar bandas como Peste & Sida e
Censurados, que mesclam punk ao hard-core.
No começo, foram tidos como "banda maldita" por sua agressividade (não só nas
guitarras), mas nas letras. Duas em especial chocaram a opinião pública portuguesa,
"Mãe" e "Ave Maria", por tratarem de incesto e religião, respectivamente. Hoje, a banda
é tida como das mais importantes no país. A crítica não se cansa de dizer que "são uma
banda de palco", para elogiar os inesgotáveis shows, que mostram muita energia apesar
dos mais de 20 anos de estrada.
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Portugalidade?
Rock português, simplesmente porque feito em Portugal. É a conclusão que
muitos chegam. Não estão de todo errados. Mas vale mencionar que houve louváveis
tentativas de tentar "aportuguesar" a estética rock. Os Heróis do Mar, de Pedro Ayres
Magalhães, por exemplo. Technopop falando de saudade, um sentimento tão caro aos
portugueses. A Cruz dos Templários e a história do povo português sempre
acompanhando a banda. E toda a polêmica relacionando-os a uma suposta estética neo-
fascista. Vocais que lembram o tradicional fado e, eventualmente, a manipulação de um
instrumento ou outro que dá um toque étnico às canções (como o sintetizador e a
guitarra em "Saudade", primeiro êxito do grupo). Dos Heróis do Mar derivaram duas
outras bandas relevantes para o cenário pop português. Esteticamente muito semelhante
aos Heróis, temos o Sétima Legião. E uma versão sem sintetizadores, seriam os Delfins.
"Estou Além"
Unindo a tão procurada "portugalidade" à irreverência, aparece um rapaz, com
roupas estranhas, cabelos coloridos e brincos cantando "Povo Que Lavas No Rio",
cantiga popular tradicional, imortalizada por Amália Rodrigues. Um escândalo. Duplo.
Primeiro foi considerado "herege" por ter dado uma feição pop à cantiga. Em seguida,
chamado "paneleiro" (gay) por sua indumentária.
Talvez o mais inventivo dos artistas portugueses - especula-se se não teria sido
ele a traçar os rumos do que seria o "verdadeiro" pop (não tão rock) português -
António Variações morreu muito cedo (em 1984, com 40 anos), deixando apenas dois
álbuns editados (o primeiro, Anjo da Guarda, produzido pelo GNR, o segundo Dar e
Receber, pelos Heróis do Mar). E mais uma vez foi alvo de comentários pejorativos
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(desta vez não musicais, sua obra já havia conquistado público e crítica). Em uma época
em que a Aids era tida como "praga homossexual", levantou-se o debate (outra vez) a
cerca da sexualidade de Variações, quando é internado com problemas respiratórios
muito graves e vêm a falecer em pouquíssimo tempo.
"Estou Além", uma de suas canções define bem o que era o artista. Um homem
que tentou mesclar as experiências recolhidas em suas viagens pela Europa (morou em
Londres e Amsterdã) e a tradição popular que tanto o encantava desde a infância, na
pequena aldeia na região do Alto Minho onde foi criado. Não era músico. Compunha,
como conta Pedro Ayres Magalhães, "as músicas com uma pandeireta... depois
tínhamos que ajustar as coisas aos tons". Além de seu tempo, conheceu o sucesso pouco
antes de deixar a vida, escutando pela primeira vez uma canção sua no rádio quando já
estava no Hospital.
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Capítulo 4:
Contracultura contra a tradição
Veio a explosão. A indústria investiu pesado nas revelações do pop nacional,
mas, como era de se esperar, logo o mercado começou a se retrair a partir da metade da
década. Muitas bandas que apareceram no rastro do sucesso dos "fundadores" somem.
Entretanto, uma cena interessantíssima começa a se desenvolver em torno de um bairro
lisboeta famoso pelos artistas que nele residiram e por sua tradição progressista. Campo
de Ourique, última morada do poeta Fernando Pessoa. O bairro de onde partiram as
primeiras pedras da revolução que derrubou a monarquia portuguesa em 1910.
Foi este local que serviu de cenário para um surto criativo dos mais intensos que
a terra de Camões assistiu. Música como arte. Música pela música. Mensagens
contundentes. Melodias e arranjos diferentes do lugar-comum feito pelo rock vendido
pelas grandes editoras. Bandas que se posicionavam contra o sistema, como o Linha
Geral, com seu "Hino À Nossa Luta", ou o Grito Final, com as críticas às
convocatórias para "Ser Soldado" e ao "Bairro da Fome". Grupos que se aventuravam
em linguagens musicais inusitadas para o grande público, como o Mler Ife Dada, que
recriava uma atmosfera de cabaré em suas canções, ou o Pop Dell' Arte, que
experimentou de tudo um pouco. Ou ainda uns Ena Pá 2000, irreverentes até os ossos.
E uma Mão Morta, vinda do norte do país, para dar bons tapas no conservadorismo da
sociedade portuguesa.
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Do it yourself
"Eu quis formar uma banda porque era meu sonho, fazer música, desde miúdo. E
quando eu descobri na faculdade que eu podia, quando eu queria, ter um certo carisma
provocador... Também tem a ver com o punk, não musicalmente, mas em termos de
atitude, eu identificava-me. O punk e a new wave mostraram que qualquer pessoa podia
fazer música, se tivesse algo a dizer. Era tocar, pronto." A declaração é de João Peste,
vocalista do Pop Dell Arte, e reflete o pensamento dessa geração. O "do it yourself" foi
a força motriz de Peste, não só para a banda, mas para uma editora, a Ama Romanta,
que se encarregou (por algum tempo) de promover a esse rock "marginal".
A fundação da Ama Romanta foi motivada pelo Concurso de Música Moderna
do Rock Rendez-Vous (RRV), em 1985, onde o Pop Dell' Arte havia ganho o prêmio de
originalidade e a oportunidade de gravar um EP pela gravadora do RRV. (No ano
anterior, quando estreou o concurso, fora o Mler Ife Dada quem foi congratulado pela
originalidade; no ano seguinte, o Mão Morta.)
Peste conta que quando o RRV ofereceu o EP houve um problema com uma das
músicas. Era regra da casa que só se editassem músicas cantadas em português, e um
dos temas do Pop Dell Arte era, como define o músico, "um poema fonético". "Turin
Wellisa Strada" não poderia, portanto, entrar no disco. "Eu pensei: 'temos a
oportunidade de gravar um disco, mas não vamos gravar um disco como eles querem.
Vamos gravar um disco nosso', e comecei a pensar se não seria possível formar uma
editora", relata Peste. Juntou-se então à Maria João Serra e criou a Ama Romanta. "O
objetivo incial, da minha parte, era editar os Pop Dell' Arte. Depois pensei, se calhar era
mais giro [legal] como apresentação fazer uma coletânea com muitos temas".
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E apareceu Divergências, em 1986, reunindo boa parte do "pessoal" de Campo
de Ourique. Mas o grande destaque da coletânea não foi nenhuma banda. Foi uma
entrevista dada pelo sociólogo Paquete de Oliveira a Peste em que discutem a ameaça
das "ditaduras culturais". Para Peste, que também é sociólogo, a entrevista serviu como
uma espécie de manifesto da Ama Romanta. "Pretendíamos dar um contributo, por mais
ínfimo que fosse, ao combate às ditaduras culturais, nesse caso através da música. Não
era para estar a dizer que música é que as pessoas deveriam ouvir, mas para dar
alternativas para as pessoas poderem escolher o que querem ouvir". O vocalista do Pop
Dell' Arte acredita que a entrevista servia para "legitimar a existência de cultura
independente... música independente, cinema independente, teatro independente etc."
O choque
Havia outras editoras independentes em Portugal nesse período (a Rotações, que
lançou os Xutos e Pontapés; a Fundação Atlântica, comandada por Pedro Ayres
Magalhães, e a gravadora do RRV). Mas nenhuma delas apareceu com um discurso tão
contundente como o da Ama Romanta. "Acho que nunca ninguém tinha questionado
dessa forma um país, que, ainda por cima, viveu o fascismo por 50 anos, como o
nosso... as pessoas levaram com essa... e uma música que achavam estranha", lembra
Peste, que para além de colocar o discurso de Paquete no álbum de estréia da Ama
Romanta, fazia questão de citá-la nas entrevistas que dava à altura. "Era um choque para
muita gente".
O assombro com que a produção da Ama Romanta era recebido não parou em
Divergências. Peste recorda o lançamento do primeiro disco do Pop Dell' Arte. "O Free
Pop foi um escândalo. Certos setores da crítica atacaram o disco ferozmente, outros
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elogiaram. Ficamos entre epítetos de fraude e gênios". Segundo ele, boa parte da crítica
não estava preparada para aceitar coisas novas. "Eram uns gajos que achavam que a
música portuguesa ou era o Rui Veloso ou... e não aceitavam as coisas mais novas, da
nova geração. Houve um que escreveu um artigo que dizia assim: 'eu já recebi esse
disco há mais de um mês, ouvi-o e decidi que não ia escrever nada sobre ele porque não
valia a pena. Mas pensando melhor, e com o intuito de informar as pessoas, eu acho que
tenho que escrever que isto é (e isso é o título do artigo) exemplo de tudo o que um
disco não deve ser: de como não se deve cantar, de como não se deve escrever, de como
não se deve gravar, de como não se deve produzir, de como não se deve fazer uma
capa'. Acho que foi o artigo mais elogioso que eu já tive...". Imagina-se o impacto que
um disco do Pop Dell' Arte, banda com declarada influências do movimento dadaísta,
tinha sobre apreciadores do bluesman Veloso.
O mesmo tipo de estranhamento por parte de alguns setores da crítica aconteceu
com o Mão Morta. Canções que falavam de crimes e sexo, afrontando os valores
tradicionalistas portugueses. Guitarras agressivas e, principalmente, a persona Adolfo
Luxúria Canibal. Se nos registros em estúdio o torpor e a lascividade que sua voz um
tanto "satânica" dava às músicas já escandalizavam os mais pudicos, suas performances
ao vivo não deixavam pedra sobre pedra. O ápice da subversão mão-mortiana aconteceu
em 1989, quando em um concerto no RRV, Adolfo deu um golpe em sua perna com
uma faca. Mais tarde, em março de 1993, ele daria a seguinte declaração em uma
entrevista ao Blitz: "O ambiente na sala estava pesadíssimo, havia necessidade de
aplacar um bocado as coisas e eu pensei que o sangue poderia acalmá-los... o sangue
assusta. Afinal, o sangue acabou por ser demais e eu percebi que tinha feito asneira".
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Ama Romanta Sempre
Em 1989, depois de lançar 20 discos de variados artistas (incluindo um Victor
Rua pós-GNR), a Ama Romanta encerrou suas atividades. "Estava mais ou menos
condenada a desaparecer porque ela começou com dívidas", explica Peste. "Contra
todas as expectativas levamos a coisa até onde podíamos. Eu não tinha qualquer tipo de
jeito, e nem tenho, para coisas organizadas, contábeis... a minha sócia também não sabia
tratar dessas coisas e, era complicado... impostos, e mais não sei o que, e papeladas... e
eu não me dou nada bem com isso. As dívidas estavam cada vez a aumentar mais, até
que tivemos que parar."
O Pop Dell' Arte acabara no mesmo ano, mas volta a se reunir três anos depois,
após um "auto-exílio" de Peste em Londres, e continua "vivo" até hoje. O Mão-Morta
nunca parou, embora sua formação tenha mudado diversas vezes, e se consolidou como
uma das mais importantes bandas portuguesas de sempre.
No final da década de 90, entretanto, alguns discos da Ama Romanta foram
reeditados pela gravadora Música Alternativa. Divergências se tornou Ama Romanta
Sempre e ganhou mais algumas faixas. A propósito disso, Peste se lembra de um artigo
publicado no Blitz sobre essas reedições: "o gajo que faz a crítica aos discos reeditados
pergunta-me 'mas ainda existem pessoas dessas em Portugal?', ou seja, capaz de
fazerem um disco, independente de estar mal gravado ou não. Pronto, foi um disco que
teve coragem, que marcou, e até esteticamente tem coisas interessantes".
45
Capítulo 5:
“A música é o espaço que nos deixa pensar sem constrangimentos”
Um dos principais grupos do "rock marginal" português foi o Mão Morta.
Vindos do norte do país, da cidade de Braga, mexeram com os alicerces da cultura
portuguesa. Sua música é fruto de um momento histórico cultural peculiar em uma
cidade igualmente ímpar para que se desenvolvesse o tipo de arte que eles fizeram (e
ainda fazem). Letra e música em total comunhão: a mesma agressividade expelida pelas
guitarras pode ser sentida na poesia cantada; a lascividade com que as palavras se
contorcem acompanha as batidas e arranjos de cada composição.
Com uma dezena de ótimos álbuns editados (mesmo não sendo a música a
principal atividade destes senhores), colecionam elogios de crítica e público em
Portugal, bem como prêmios (como o de Originalidade no festival do extinto Rock
Rendez-Vous, em 1986, e o de Carreira do jornal Blitz, em 2001). No "currículo" do
Mão Morta podemos incluir também inenarráveis shows, sejam de abertura para estrelas
internacionais como Nick Cave & The Bad Seeds, The Jesus & Mary Chain e The Fall,
ou os concertos em nome próprio, sempre marcados pela atmosfera pesada e
angustiante.
Adolfo Luxúria Canibal (não poderia haver melhor nome para o vocalista desta
banda), que hoje vive em Paris, contou, por e-mail, um pouco da história de um dos
grupos mais (in)tensos da música portuguesa. Falou de como a banda de formou e da
importância que a música tem na vida dos Mão Morta. "A liberdade criativa deixa de o
ser se está dependente da sobrevivência física".
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Havia em Braga uma grande efervescência cultural, nos anos 80, época em que o
Mão Morta começou. Como era esse cenário artístico na cidade e de que maneira
isso tem a ver com a formação e a proposta do Mão Morta?
É verdade que Braga teve uma grande efervescência cultural no início dos anos 80.
Digamos que foi o encontro de duas gerações, num momento histórico muito particular.
Mas o melhor é começar do início... Braga, em termos de importância, é a 3ª/4ª cidade
de Portugal (a disputa é com Coimbra...), mas, em termos culturais, sendo uma cidade
muito marcada pela Igreja (foi 'pertença' da Santa Sé até o século XVII) e com uma
existência civil ligada quase exclusivamente ao comércio, sempre foi um local muito
fechado e estéril (excetuando a arquitetura e as artes decorativas de motivo religioso,
com expoente máximo no barroco). Era uma cidade beata, onde praticamente toda a
gente se conhecia, com meia dúzia de famílias dominantes. Os "filhos de família" iam
estudar para as três universidades do país (Coimbra, Porto e Lisboa) e, desde 69, muitos
vinham de lá ligados a organizações de extrema-esquerda, maoístas ou trotsquistas.
Com o 25 de Abril de 74, e os anos revolucionários que se lhe seguiram, toda esta gente
veio para a rua e, como aconteceu no resto do país, em Braga a extrema-esquerda
alastrou para as faixas liceais e ao operariado em formação, sobretudo na indústria têxtil
e na construção civil.
Só que em Braga, local de onde havia partido o golpe de 28 de Maio de 26 que deu
origem à ditadura de Salazar, o poder religioso, no Verão de 75, organiza-se e leva as
massas católicas a opor-se à revolução, incendiando sedes de partidos e organizações de
esquerda, colocando bombas, assassinando figuras emblemáticas, financiando e
apoiando logisticamente organizações bombistas, como o ELP (Exército de Libertação
47
de Portugal) ou o MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal), etc. Este
processo acaba em 76/77, com a vitória do Partido Socialista nas primeiras eleições
democráticas. Mas, entretanto, uma grande fatia da juventude ligada à extrema-esquerda
tinha evoluído da rigidez maoísta ou trotsquista para posturas mais radicais e
alternativas, para um anarquismo de contornos fluídos e uma vivência de contracultura,
com consumo de drogas e um individualismo crescente, na procura de um quotidiano
sem entraves e pautado pelo prazer. É claro que uma existência assim acabou a
dispersá-los para fora de Braga, alguns para o estrangeiro (Paris, Bruxelas, Berlim...). E
os que ficaram pela cidade, com a normalização democrática e o retorno ao
cinzentismo, arrastavam os seus dias mergulhados no tédio.
Com a democracia, Braga cresce, duplica de tamanho, triplica, ganha uma Universidade
e deixa de ser uma cidade de famílias para se encher de rostos anônimos. No estrangeiro
acontece o punk, que começa a dar repercussões em Portugal (sobretudo Lisboa) a partir
de 78/79. É um incentivo ao "faça-você-mesmo", que indiretamente está na origem do
"boom" do rock português de 80-82. Mas antes da explosão midiática, com o Rui
Veloso e os UHF, foi um movimento subterrâneo, primeiro com os Faíscas, depois com
os Xutos & Pontapés e, sobretudo, os Corpo Diplomático.
Eu tinha ido para Lisboa, cursar Direito, no ano letivo de 78/79, e acompanhei toda essa
efervescência do punk lisboeta, os primeiros concertos dos Xutos, os dos Corpo
Diplomático... Tudo era novo, excitante, e fácil de fazer! Nas idas a Braga, nas férias,
tentei passar à prática - mas as pessoas com quem me dava, sobreviventes da revolução,
ou estavam no estrangeiro ou sem alento nem força anímica, agarradas ao free jazz e ao
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tédio. Acabei por encontrar em dois estudantes liceais, colegas do meu irmão, os
cúmplices para o ato. Formamos os Bang-Bang em 80, grupo que nunca saiu da sala de
ensaios, uma dependência do liceu onde um deles estudava. Em 81, sempre nas férias
escolares, formamos os Auaufeiomau.
Entretanto tinha havido o "boom" do rock português e por todo o lado surgiam grupos,
como cogumelos. Em Braga tinha aparecido um grupo de miúdos, chamado WC, com o
qual o meu irmão tocava harmônica, e nós fomos vê-los ensaiar e ao seu primeiro
concerto. Como não tínhamos baterista nem local para ensaiar (nem aparelhagem...),
convidamos o vocalista do grupo (Miguel Pedro) a tocar bateria na nossa banda -
passamos a ter baterista, ensaiávamos na garagem onde eles ensaiavam e com a
aparelhagem deles! Estreamo-nos na passagem de ano 81-82, numa festa "marginal"
organizada numa serração desativada, propriedade da família de um amigo do grupo
(essa serração, denominada A Fábrica, viria a ser, nos anos seguintes, um local
obrigatório e mítico do escasso circuito de concertos em Portugal, e onde, a par do Rock
Rendez-Vous, os Xutos ganharam a sua legião de fãs).
O fim-de-ano é uma época (Natal) em que toda a diáspora bracarense está na cidade e
toda a gente estava nessa festa. E, não sei porquê (as coisas deviam estar maduras para
isso, apenas precisavam de um abanão...), o concerto foi um sucesso. A geração da
revolução, ex-maoístas, ex-trotsquistas, ex-freaks [hippies], encafuada em Braga ou em
trânsito pelo país ou pelo estrangeiro, e a nova geração, contemporânea do punk,
encontraram nele uma base de trabalho comum. Os Auaufeiomau transformaram-se
rapidamente num grupo mutante, numa redoma suficientemente aberta por onde
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passaram músicos diversos, aspirantes a músicos, pessoas que apenas queriam divertir-
se de uma forma criativa, e alargou-se ainda mais, para abarcar trabalhos de fotografia,
de pintura, de cinema, de escrita... Outros grupos musicais surgiram, com pessoas que
tinham passado pelos Auaufeiomau, ou só para desenvolverem idéias mais específicas,
como os Ruge Ruge, os Fanfarra Atroz, os Comédia Selvagem, os Humpty
Dumpty, etc.
De repente, toda a gente queria fazer coisas e toda a gente fazia coisas! O ativo núcleo
inicial, de uma quinzena de pessoas, alastra, começa a agregar universitários da novel
Universidade do Minho, atrai pessoas do Porto, mesmo em Lisboa começa a haver
repercussão do que se vai passando em Braga, sobretudo após o espetáculo "Rócócó Faz
o Galo" (Abril 83), que teve sessões esgotadas, e onde os Auaufeiomau encenam, com
música, teatro e dança, uma história sobre o grau zero da existência com recurso aos
personagens clássicos da Comedia Dell' Arte. Faziam-se filmes em super 8,
performances, concertos, exposições, lançavam-se livros, revistas, montou-se uma rádio
pirata, abriram-se bares (Braga não tinha nenhum local de encontro, à parte os cafés, e à
noite não havia para onde ir, a não ser para casa uns dos outros, que começavam a ser
pequenas para tanta gente) como o Deslize e o Zanzibar, que serviam como locais para
exposições, performances e concertos, organizavam-se grandes festas. Tomou-se conta
do inativo CineClube de Braga (uma forma de ir buscar financiamento, que começava a
faltar), faziam-se semanas culturais, com poesia, teatro de rua, música, cinema, enfim,
toda a gente se divertia! Mas tanta atividade começou a criar fraturas no núcleo mais
ativo, a que não foi alheio a entrada da heroína como droga mais consumida.
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Por outro lado, toda esta efervescência atraiu os empresários da noite para Braga, que
ficou enxameada de bares, clubes e boites abertos toda a noite. As pessoas, pouco a
pouco, foram deixando de executar as idéias, foram mesmo deixando de as ter,
embaladas pelo eldorado do pó e das adolescentes que pululavam sob o neon das pistas
de dança, e Braga acabou por passar a uma fase seguinte, a do divertimento noturno.
Os Mão Morta, quando surgem, em finais de 84, surgem no início da decadência da
efervescência cultural bracarense, quando se dão as primeiras fraturas visíveis no seio
do núcleo ativista - pode mesmo dizer-se que são disso conseqüência. E acabaram por
ser os herdeiros da postura que esteve na sua gênese...
Como foi que o Mão Morta foi parar na Ama Romanta? Havia semelhanças na
cena bracarense com a cena de Campo de Ourique?
Não havia qualquer contato nem qualquer semelhança entre a cena bracarense e a cena
de Campo de Ourique. Os Mão Morta estrearam-se ao vivo em Janeiro de 85, no Porto,
nas instalações de uma coletividade local chamada Orfeão da Foz. Esse concerto, que
englobava outras atividades e outros grupos, era organizado por uma rapariga de Braga,
que fazia parte do núcleo ativista bracarense, agora a viver no Porto, juntamente com
um grupo de pessoas do movimento alternativo da cidade, conhecidos como a Tertúlia
de Espinho. No âmbito desta Tertúlia de Espinho movia-se um grupo de garagem
chamado Os Cães, A Morte e o Desejo, mais tarde Cães Vadios, que estavam na
assistência e que gostaram muito do nosso concerto. Não sei qual a origem da relação
entre eles, mas Os Cães, A Morte e o Desejo e a Tertúlia de Espinho tinham contatos
51
com a cena de Campo de Ourique, vindo o grupo, aliás, a fazer parte da coletânea de
estreia da editora Ama Romanta, Divergências (86).
Quando no fim desse ano de 85 fomos tocar ao Porto, ao bar Aniki-Bóbó, o grupo
estava novamente na assistência e no fim do concerto veio falar conosco, fazendo-nos
uma entrevista para um fanzine que editavam, o Cadáver Esquisito. Foi aí que nos
falaram do João Peste e da Ama Romanta, e do disco que estava para sair
(Divergências), coisas que nós desconhecíamos. Disseram-nos ainda que tinham falado
ao Peste de nós, que éramos um bom grupo para meter na coletânea, mas já tinha sido
demasiado tarde, porque já não havia espaço. No início de 86 fomos tocar a Lisboa, à 1ª
eliminatória do III Concurso de Música Moderna do Rock Rendez-Vous, estava na
assistência a irmã do João Peste, que fez um artigo super-elogioso no fanzine que
editava, o Enfim Sós.
Eu continuava a estudar Direito em Lisboa e, de vez em quando, ia almoçar com os
meus avós, que viviam em Campo de Ourique e que tinham por hábito comer num
restaurante do bairro chamado O Gigante. Normalmente, almoçava no mesmo
restaurante um casal e dois filhos, um rapaz e uma rapariga, sempre vestidos de preto.
No filho vim a reconhecer mais tarde o João Peste, quando fui ver um concerto onde
tocavam os Pop Dell' Arte, no ISCTE (Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da
Empresa), onde o Peste estudava Sociologia. Um dia, depois de almoçar, quando
esperava o elétrico, vem ter comigo o Rui Vargas, co-editor do Enfim Sós, que eu não
conhecia, entregar-me um exemplar do fanzine. Ainda nesse ano de 86, depois de um
concerto em Sintra, o José Pedro Moura [baixista do Pop Dell' Arte que depois tocou
52
baixo no Mão Morta até 2000], que estava na assistência, vem ter comigo felicitar o
concerto e convidar-me para aparecer por Campo de Ourique. Julgo que foi na
seqüência que conheci o João Peste e foi feito o convite para editar na Ama Romanta.
Por que é que nunca fizeram da música um meio de vida? Sempre mantiveram
suas profissões "tradicionais" em paralelo com a atividade artística?
O não viver da música foi uma opção natural, tomada desde o início (se pode-se chamar
opção a uma escolha que nunca foi objetivamente equacionada nem discutida, porque
intrínseca ao desejo que nos levou para a música). A música, para nós, nunca foi vista
como profissão mas como liberdade criativa e a liberdade criativa deixa de o ser se está
dependente da sobrevivência física. Gostamos da música não porque ela nos permita
viver sem horários nem superiores hierárquicos, fugir a um qualquer destino de trabalho
assalariado, mas porque ela nos canaliza o questionamento entre nós e o mundo, é o
espaço vazio que nos deixa respirar e pensar sem constrangimentos. Ora se tivéssemos
que pagar a renda de casa com os rendimentos da música, isso seria um
constrangimento...
Sempre mantivemos outras atividades a par da música, ora como estudantes ora como
"profissionais". Eu fui jurista, advogado, e agora, em Paris, escrevo crônicas, faço
reportagens, estudos de viabilidade financeira, traduções... O Miguel Pedro [bateria] é
jurista, Diretor do Departamento Jurídico da Câmara de Braga. O António Rafael
[teclas] é Técnico de Turismo, trabalha como free-lancer para a Junta de Turismo do
Alto-Minho. O Sapo [guitarra] é vendedor de instrumentos musicais, subgerente da
Valentim de Carvalho Eletrônica, Ldta. O Vasco Vaz [guitarra] é sociólogo no
53
Ministério da Justiça. A Joana Longobardi [baixo] inicia a sua carreira de designer,
depois de ter acabado o curso o ano passado. Esta pluralidade de atividades não só nos
arranca do meio unidimensional dos fazedores de música como acaba por ser muito rica
de experiências e por nos aproximar do mundo real de toda a gente. Claro que também
tem um lado negativo, que é basicamente a falta de disponibilidade para arrancarmos
para o estrangeiro, tentar a internacionalização...
54
Capítulo 6:
O lado negro da força
Desde meados dos anos 80, a cultura hip hop torna-se uma das mais
interessantes manifestações artísticas nos Estados Unidos. Protagonizado por jovens
negros que vivem no subúrbio das grandes cidades americanas, o hip hop não tarda a
ecoar do outro lado do Atlântico. Já no fim da década de 80, podia-se encontrar na
Margem Sul do Tejo grupos dançando break nas ruas e fazendo algum rap
despretensioso entre amigos, como os B Boys Boxers, de onde sairia um dos mais
famosos rappers portugueses, General D. Cantavam em inglês, por vezes, misturando
algumas expressões do calão africano, próprio das comunidades negras em Portugal (a
maior parte delas foi formada a partir da vinda de imigrantes das antigas colônias
lusitanas na África).
Nomes como Beastie Boys, Public Enemy e The Disposable Heroes of
Hiphoprisy faziam a cabeça dessa juventude suburbana, que se identificava com o
discurso dos "irmãos" norte-americanos. "Eram moleques de rua que viam de uma
forma muito poderosa e cheia de conteúdo o que ia nas comunidades, não diria negras,
mas as que mais sofriam", explica Virgul, um dos vocalistas do Da Weasel, um dos
projetos mais comentados no cenário musical nos últimos anos.
"Não fazemos hip hop convencional, puro. Misturamos muito reggae, rock e
hard-core", conta o baixista João Nobre (ou Jay Jay Neige, como é conhecido na banda).
O Da Weasel lançou seu primeiro EP (More Than 30 Mother Fuckers), em 1992, com
letras em inglês. "Na altura, pro PacMan [Carlos Nobre, principal vocalista e letrista da
banda] era muito mais fácil compor em inglês já que as referências eram quase todas
55
norte-americanas", comenta Virgul. Entretanto, no primeiro álbum Dou-lhe Com a
Alma, de 1995, as palavras de PacMan vêm na língua mãe, facilitando a transmissão e a
compreensão de suas mensagens. "O Pac não conseguia no início se expressar em
português. Quando tentou, viu que de fato era muito mais fácil dizer exatamente o que
se pensa, com uma recepção e uma identificação muito maior do que cantando em
inglês", enfatiza Jay Jay.
Hoje a cena hip hop é uma das mais ativas em Portugal. Grupos como o Sam
The Kid, Dealema, Micro, Chullage lançando discos (quase sempre em edições
independentes) sempre muito elogiados pela crítica, Mind Da Gap e Da Weasel se
consagrando nos festivais de verão. A voz da Margem Sul, de "Almada City", como se
vê grafitado nos muros da cidade, nunca teve tantos representantes. Mas nem sempre foi
assim. "Sem dúvida o movimento cresceu. Quando começamos, era tudo muito
embrionário, havia apenas algumas boas mostras, como o General D e os Black
Company, que se calhar estavam bem mais preparados do que nós", lembra o baixista
do Da Weasel.
A cena hip hop 'tuga (como eles abreviam carinhosamente) permaneceu
totalmente underground até 1994, quando a Sony Music decide reunir boa parte do
material produzido até então em uma coletânea chamada Rapública. Era um momento
em que o interesse pelo rap norte-americano tinha aumentado consideravelmente em
Portugal. Nada mais sensato do que editar artistas locais que faziam algo similar. O
grande êxito radiofônico de Rapública foi "Nadar", do Black Company. A canção não
tinha o teor contestador, de denúncia, mas serviu para abrir portas para que o
movimento se firmasse. Dentre os grupos que fizeram parte da coletânea, estavam ainda
além dos Black Company, Boss AC, Zona Dread, Family, Os Líderes da Nova
56
Mensagem entre outros. No mesmo ano, o brasileiro Gabriel, o Pensador entra no
mercado português passando a ser uma referência de como "rapar" em língua
portuguesa. Gabriel mantém algum contato com artistas da cena local, mais
especificamente com General D com quem se apresentou ao vivo em uma de suas idas a
Portugal. No ano seguinte, a exposição conseguida com Rapública foi consagrada na
entrega dos Prêmios Blitz. General D foi escolhido como o artista do ano, e Da Weasel
foi o melhor grupo de 1995.
Entretanto, a indústria não estava interessada em manter o hip hop. Rapública
havia sido lançado, com a intenção clara de aproveitar um momento em que o rap
internacional atraía as atenções dos jovens portugueses. Dessa forma, à parte da edição
da coletânea, o hip hop volta ao underground luso, onde se solidifica, e a partir de 98,
99, explode com força total, por iniciativa própria, sem apoio de grandes editoras.
Clareando... o groove
Quando se fala em anos 90 em Portugal uma figura vem imediatamente a mente:
Pedro Abrunhosa, que com os seus Bandemónios, foi a "vedete" da década. Um tipo
esquisito, um tanto misterioso, sempre de óculos escuros e de pele branca. As
influências de sua música, entretanto, não poderiam ser mais negras: do funk de James
Brown ao jazz, culminando no que os modernos gostam de chamar de acid jazz. O
sucesso vem logo no primeiro disco, Viagens, de 1994, que tem como convidado o
saxofonista Maceo Parker (que trabalhou com James Brown). Já neste primeiro
trabalho, Abrunhosa parte para uma internacionalização, fazendo shows em países como
Brasil, Estados Unidos, Espanha, França e Itália. Viagens lhe rendeu ainda disco triplo
57
de platina, um mega-hit "Não Posso Mais", e uma capa da revista Billboard em
dezembro de 94.
A carreira de Abrunhosa é a prova cabal de que a internacionalização de um
artista passa quase que necessariamente por esforços da gravadora. No caso dele, a
Polygram (hoje Universal), que além de lançar tanto Viagens quanto Tempo, o terceiro
álbum do artista, em 1996, em todo o mundo, agendou shows e promoveu decentemente
o trabalho do artista, agendando shows para divulgar os álbuns. No Brasil, Abrunhosa
fez algumas apresentações, incluindo uma em parceria com Elba Ramalho, no Festival
Vinho do Porto, em 1997, realizado no Memorial da América Latina com apoio do
ICEP (Investimentos, Comércio e Turismo de Portugal) e do Ministério da Cultura
Brasileiro, e o single "Se eu fosse um dia o teu olhar" (tirado do álbum Tempo) figurou
na trilha sonora da novela global Por Amor e vendeu 800.000 cópias em apenas um ano.
Todo esse sucesso meteórico abriu espaço na mídia (e consequentemente no
mercado) para outras bandas de acid jazz em Portugal, como o Clã e o Cool Hipnoise,
que já vinham desenvolvendo seu trabalho antes de todo o burburinho e do estouro em
torno de Pedro Abrunhosa.
O Clã havia se formado em 92 e suas primeiras apresentações acontecem em
pequenos bares do Porto dois anos mais tarde. Hélder Gonçalves, mentor do grupo,
assim como Abrunhosa, vinha de uma escola jazzy e essa influência é notável em suas
composições, assim como o hip hop e o soul. Mas ao contrário do que acontece no
trabalho de Abrunhosa, o Clã tem uma componente rock mais acentuada. A guitarra de
Hélder dá um tom mais "pesado" às músicas sem que, no entanto, se perca o groove
próprio das bandas de acid jazz.
58
A vocalista da banda, Manuela Azevedo, explica que em 95, quando começaram
a procurar uma editora para lançar seu primeiro álbum, ainda havia pouca disposição em
se apostar em sonoridades desse gênero: "Nossa tentativa era de integrar a música
portuguesa com outras coisas que estava a vir naquela época: hip hop, acid jazz,
referências mais modernas. No entanto, esse tipo de música cantada em português era
algo muito novo e não era visto com muito bons olhos pelas editoras". Ainda este ano, o
grupo consegue um contrato com a EMI-Valetim de Carvalho para lançar Luso
Qualquer Coisa (que iria a público apenas em 1996) "impulsionados" pelo sucesso de
vendagem de Viagens e as comparações são inevitáveis. "Apanhamos pessoas a dizer
que estávamos a seguir o estilo do Abrunhosa, quando na verdade éramos
contemporâneos dele", desabafa Hélder. Manuela acrescenta que "havia uma grande
expectativa em torno do grupo por causa das apresentações ao vivo, o fato de a
gravadora ter segurado o álbum por quase um ano fez com que tivéssemos problemas na
divulgação de Luso Qualquer Coisa".
O primeiro álbum do Clã entretanto é bastante elogiado pela crítica e a banda foi
aclamada como um dos projetos mais interessantes do ano pelo semanário Blitz. Mas
êxitos radiofônicos e forte exposição midiática só vieram com o sucessor, Kazoo
(1997); mais especificamente com a canção "Problema de Expressão", cuja letra é de
Carlos Tê (tradicional parceiro de Rui Veloso). Kazoo rende a Manuela o Prêmio Blitz
de melhor voz feminina em 97.
A parceria de Hélder e Tê acontece desde o primeiro registro sonoro do Clã. "Na
época, nós não estávamos totalmente satisfeitos com algumas letras e o Mário Barreiro
[produtor musical e ex-Jáfumega] sugeriu que procurássemos o Tê, que era uma pessoa
mais experiente e podia nos dar alguns conselhos. E ele não só nos deu bons conselhos
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como gostou bastante do projeto e logo na altura se tornou nosso cúmplice nessa área",
recorda o guitarrista.
No terceiro e mais bem acabado álbum da banda, Lustro (2000), além da
colaboração habitual de Tê, outros artistas foram convidados a escrever letras para o
Clã, entre os quais Sérgio Godinho, monstro sagrado da música popular portuguesa. A
parceria com Godinho vinha do Projeto Afinidades, na Expo '98, que mais tarde seria
levado a outros palcos portugueses em uma mini turnê que culminou no álbum
Afinidades editado em 2001. Outro que participou como letrista em Lustro foi o
brasileiro Arnaldo Antunes.
Tanto Hélder quanto Manuela têm uma paixão declarada pela música brasileira e
neste álbum, além dos elementos já citados presentes na sonoridade da banda, podemos
notar alguma bossa incorporada às composições de Hélder. "Nós reparamos no trabalho
do Arnaldo Antunes por causa de discos da Marisa Monte, do Gilberto Gil etc.", afirma
Hélder. "A maneira como Arnaldo trabalha a música, especialmente a língua portuguesa
nos interessa imenso", complementa Manuela. O contato com Arnaldo foi intermediado
por um produtor português (Paulo Junqueira) que havia trabalhado no Brasil durante
algum tempo. "O Paulo [Junqueira] enviou os discos a Arnaldo, que respondeu dizendo
que tinha gostado do nosso trabalho e enviando três letras para que nós escolhêssemos.
Foi assim que surgiu 'H2Homem'", conclui Hélder.
O acid jazz também flerta com a música brasileira no trabalho do Cool
Hipnoise. Jazz, alguma bossa, soul, funk, percussões africanas e elementos de
eletrônica e de hip hop - tanto na música (scratches), quando nas letras (letras que falam
dos problemas dos afro-lusitanos, das drogas às mazelas sociais e seqüelas da guerra
60
colonial). Os três disco da banda mostram uma evolução sonora de acordo com os
"avanços" tecnológicos.
No primeiro, Nascer do Soul (1995), as seções de metais dão à maioria das
músicas um ar bem jazzy, mas o funk e o groove marcam forte presença, e fazem pensar
se não seriam os Cool Hipnoise uma filiação dos Jafumega, banda que misturava esses
mesmo ritmos, além de alguma música latina, na década de 80, quando a maior parte
dos grupos portugueses se dedicava ao punk ou à new-wave. Nos álbuns seguintes,
Missão Groove (1997) e Música Exótica para Filmes, Rádios e TV (2000), a eletrônica
e o hip hop dão um tom mais moderno ao trabalho, sem que se perdesse a identidade
musical apresentada no début. Numa versão especial de Missão Groove incluíram uma
versão de "Águas de Março" lado a lado com uma versão de "One Love", do Massive
Attack, e de "Don't Stop Till You Get Enough", de Michael Jackson. Em Música
Exótica... a tônica é dada pelo dub, pelo funk e pelo drum'n'bass. Neste álbum, a carioca
Fernanda Abreu empresta sua voz e a canção "Dois" para os rapazes do Cool Hipnose.
Soul Brothers
Misturando rock'n'roll, soul e hip hop, já na curva para o século XXI, surge no
cenário luso uma das mais empolgantes bandas da nova geração portuguesa: o
Wraygunn. Nos shows, a irreverência e o senso de humor peculiar de Paulo Furtado,
líder da banda, ficam evidentes. Quase sempre sem camisa, se apresenta com os
seguintes escritos no peito: "Soul Power" e uma sete indicando a região pélvica no
moço. "Power" é a melhor maneira de resumir o som do Wraygunn. Na mesma medida
em que as canções nos trazem suingue e uma vontade quase incontrolável de dançar, as
guitarras têm uma potência incrível, mostrando que o rock'n'roll vive ali. Três vozes
61
(duas masculinas e uma feminina) fazem com que as músicas ora tenham um tom mais
gospel – Raquel Ralha canta como um anjo ou como uma diva, conforme a necessidade
–, ora sejam baladas ou blues, com a grande maioria das letras em inglês. "O conceito
da banda é misturar influências diversas, sem cair no óbvio. Usamos batidas de hip hop,
bases rítmicas de soul, guitarras de blues, a voz lírica da Raquel, meio gospel, meio
R&B... poderíamos ter uma cantora negra, mas essa opção seria muito batida", explica
Paulo. E para reproduzir tudo isso nos concertos, a banda teve de "crescer" do EP
Amateur (1999) para o primeiro álbum Soul Jam (2001). Antes contavam com quatro
integrantes, agora são sete. "Precisávamos de mais opções sonoras. Não queríamos fazer
um disco que depois não pudéssemos apresentar ao vivo", completa o líder da banda.
Paulo é o tipo de pessoa para quem a música é uma paixão. Antes de criar os
Wraygunn, era guitarrista dos Tédio Boys, importante banda "punkabilly" dos anos 90.
Hoje, além de manter a banda, desenvolve um projeto a solo chamado The Lendary
Tiger Man. "Uma one-man band tipo aquelas coisas que existiam no começo do século
XX nos Estados Unidos", define. "É uma coisa bem mais específica, blues. Não pode de
modo algum chegar a muitas pessoas", acrescenta. Para lançar este projeto, bem como
os próximos discos do Wraygunn e outros trabalhos que sejam interessantes, fundou em
2002 o selo Subotnik, sediado em Coimbra. "O caminho parece ser esse, editar material
de maneira independente e depois ir atrás das majors para a distribuição", conclui.
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Capítulo 7:
A pop eletrônica
O número um na parada britânica de singles no começo 2001 era português. Um
DJ chamado Rui Silva (ou Rui Da Silva, para os ingleses). "Touch Me", uma house
com elementos de trance, embalou festas na virada para o século XXI em todo o
mundo. Sorte? Não. A carreira do DJ e produtor português já vinha sendo acompanhada
pela cena clubber desde 1994, quando o selo Tribal distribuiu internacionalmente "So
Get Up" do Underground Sound Of Lisbon (duo formado por Rui, que à época
assinava Doctor J, e por Tó Pereira, mais conhecido como DJ Vibe).
"So Get Up" fez o verão de 94: de Ibiza a Los Angeles. A música era uma
remixagem dos renomados produtores americanos Danny Tenaglia e Júnior Vasquez,
para o tema "Get Up", que constava no primeiro álbum do USL lançado em Portugal em
93. O companheiro de Rui, DJ Vibe, além de se consolidar como um dos melhores e
mais requisitados DJs em sua terra, como residente do Kremlin (um dos clubes lisboetas
mais conhecidos nos anos 90), também ganhou as pistas do mundo impulsionado pelo
sucesso do USL, tendo passado por discotecas de toda a Europa, dos Estados Unidos, e,
inclusive, pela Love Parede alemã.
Darin Papas, um surfista e artista multifacetado (escultor, fotógrafo e escritor)
californiano que viveu em Portugal nos anos 90, era dono da voz e das palavras de "Get
Up" (que originalmente era um poema de Papas). O "hit" abriu portas para que ele
conseguisse um contrato com uma editora portuguesa e lançasse seu projeto Ithaka, em
que pode-se notar as raízes musicais de Papas, fincadas no hip hop de Los Angeles, cuja
efervescência, desde o final da década de 80, foi captada pelas lentes de sua máquina
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fotográfica. Flowers and the Color of Paint foi o primeiro disco do Ithaka, em parceria
com Pedro Passos (DJ Grizzly), e com colaborações de artistas portugueses, como
General D e Francisco Rebelo (baixista do Cool Hipnoise). A recepção da crítica ao
trabalho que misturava rap, soul, blues e música eletrônica fez com que Papas assinasse
com uma major, a Norte Sul. Depois de quatro discos editados em terras lusas, Papas
regressou a Los Angeles, onde continua com seus projetos.
Trip à moda da casa
Fora das pistas, ouvia-se um eco de Bristol. Três Tristes Tigres traziam a
Portugal sonoridades próximas do que artistas como Massive Attack, Portishead e
Tricky faziam na Inglaterra. "Diziam que fazíamos trip hop, nós respondíamos que
fazíamos trip pop, porque era uma coisa meio à trip mas não tinha elementos de hip
hop, que são próprios do estilo", explica Alexandre Soares, ex-GNR, responsável pelas
guitarras e programações do grupo. Sobre as semelhanças dos Tigres com a cena
inglesa, Alexandre acrescenta: "Andávamos em um universo que é real, mas ao mesmo
tempo há alguma 'sugestão', um universo alterado... Era uma vivência urbana, se calhar,
próxima, mesmo que estivéssemos longe. São ao mesmo tempo pessoas em sítios
diferentes a passar pelas mesmas experiências. Foi por aí a proximidade... não por ouvir
os discos deles".
Os Tigres se formaram em 92 e no início Ana Deus e Regina Guimarães foram
“testando” o terceiro elemento do grupo: primeiro Ricardo Serrano, depois Paula Souza.
Alexandre aparece tocando guitarra como convidado no primeiro álbum, Partes
Sensíveis, um ano mais tarde. Entretanto, a saída de Paula faz com que o guitarrista
passasse a integrar definitivamente a banda. Sua entrada é notada na sonoridade dos
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Tigres, que se torna mais experimental e mais eletrônica. Alexandre, que desde a sua
saída do GNR vinha desenvolvendo trabalhos no campo da eletroacústica, fazendo
trilhas para espetáculos de dança e projetos a solo que classifica como "pouco
importantes", traz elementos mais "modernos" à música do grupo. "No começo era uma
coisa mais acústica, um bocado cabaré, piano e voz e pouco mais, com textos
feministas, com muito humor. Quando entrei, trouxe a maquinaria...", conta Alexandre.
Guia Espiritual, segundo registro da banda, assinala essa virada e rende aos
Tigres dois Prêmios Blitz em 1996, ano em que é lançado: melhor álbum nacional e
melhor grupo nacional. Dois anos mais tarde, vem a obra-prima Comum, o nome mais
irônico que este trabalho poderia ter. A exímia produção, assinada por Alexandre e por
Joe Fossard (inglês radicado em Portugal, considerado um dos melhores produtores em
terras lusas atualmente), está em qualquer lista de melhores discos portugueses da
década. A eletrônica assume lugar de destaque oscilando entre o trip hop (impossível
não comparar, apesar da explicação do músico) e o drum'n'bass, sem entretanto que a
habilidade com a guitarra de Alexandre seja descartada: ora usada como base para os
bits digitais ("Linha Turva"), ora cortando a melodia com riffs distorcidos ao melhor
estilo rock ("Falsa Parte"), ora com uma belíssima guitarra portuguesa (que
acompanhada de cellos da o tom em "Visita de Estudos").
Se não podemos dizer que Bristol ecoou no trabalho dos Tigres por faltar ao
último nuances de hip hop, o mesmo não pode ser dito do Coldfinger. Em seu primeiro
álbum, Lefthand, de 2000, a influência de Massive Attack é inegável. E scratches de hip
hop não faltam. Elogiados pela crítica desde seu début, o Coldfinger (Margarida Pinto e
Miguel Cardona) são um dos mais promissores projetos da nova safra pop portuguesa.
Sua música é delicada, fundindo melodias jazzísticas com arranjos eletrônicos (que
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passam pelo downbeat e pelo drum'n'bass). A poesia de Cardona, quase sempre em
inglês, toma corpo na belíssima voz de Margarida levando o ouvinte ora à introspeção
contemplativa, ora à uma vontade incontrolável de se levantar e dançar.
O terceiro trabalho do duo (o segundo foi Return To Lefhand, uma releitura das
canções com que estrearam), Sweet Moods & Interludes, editado em 2002, mostra um
Coldfinger mais ciente de sua identidade musical. As influências já não pesam de
maneira tão óbvia. O hip hop ganha mais espaço, quer pelo uso dos scratches, quer pela
participação de Ace, MC do Mind Da Gap. Linhas suaves de pianos (tocados por
Margarida) estão presentes em todo o registro, emoldurando uma bela narrativa sobre
encontros e desencontros na cidade.
Com uma sonoridade um pouco mais densa, o The Gift também envereda pelos
caminhos da pop eletrônica intimista. Já no primeiro disco, Digital Atmosphere, de 97,
receberam elogios da crítica especializada e a atenção de algumas editoras. Entretanto,
nenhum contrato foi assinado, devido à banda cantar em inglês, permanecendo o The
Gift como um grupo independente. No ano seguinte, Vinyl alçou a banda ao sucesso,
sendo considerado o melhor disco nacional do ano pelo jornal Diário de Notícias. A
parti daí, partem para o exterior, se apresentando na Expo 2000 em Hanover, e no
festival Eurosonic, na Holanda.
A voz grave de Sónia Tavares, um baixo bem marcado, teclados (muitos
teclados) e samplers dão um tom sombrio às canções, enquanto o saxofone, violoncelo e
violinos criam uma atmosfera etérea, e melodias (assim como no Coldfinger) pendendo
para o jazz, resultando num trabalho harmônico. Com o terceiro álbum, Film, editado
em 2001, o The Gift se firmou definitivamente em sua terra natal. Agora, depositam
suas fichas no mercado externo. O grupo tem viajado com os discos debaixo do braço
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em pequenas turnês pela Europa e pelos Estados Unidos, batendo à porta de editoras
independentes que se interessem por lançar seu interessantíssimo trabalho fora de
Portugal.
Nova safra
Cada vez mais comuns são as incursões da jovens bandas portuguesas nos
caminhos das experimentações eletrônicas. Projetos como o Hipnótica oscilam entre
uma lounge music com ares refinados e uma house (por vezes tech-house) capaz de
incendiar pistas de dança. Estão para o Moloko, como o Coldfinger está para Massive
Attack. Se os ingleses tem "The Flipside" contrastando com "Fun For Me", os
portugueses tem "Japan Underground" e "Closer". Mas vale ressaltar que Hipnótica
pende mais para um lounge do que para as pistas. O mesmo lounge, aliás, em que
podemos colocar o LF Cool, com seus lampejos funk por vezes lembrando um
Jamiroquai mais "digital".
Para as pistas, Portugal oferece um sem número de DJs nas mais variadas
vertentes da eletrônica moderna, como Morrice (techno), Frank Murrel (house), DJ
Pena (trance) e Huma-Noyd (drum'n'bass). E ainda uns Blasted Mechanism que fazem
dançar com sua salada rítmica: da África à Rússia, passando pelo techno e pelo dub.
Há que destacar ainda o trabalho feito pelo ex-Mler Ife Dada, Pedro D'Orey em
seu projeto Word Song, em homenagem ao poeta Al Berto: um livro e um disco, em
que a poesia é cantada (quase declamada) ao som de bits eletrônicos, linhas de baixo e
teclados muito fortes. A sonoridade passa, inevitavelmente, pelo downbeat, pela bossa-
nova e pelo acid jazz.
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Capítulo 8:
O Eterno Retorno
O ano de 1998 marcou uma virada no mercado português. Uma virada parecida
(embora oposta) com a que aconteceu no início da década de 80, quando houve o
"boom". Se àquela época as gravadoras haviam "descoberto" no pop/rock cantado em
português uma (supostamente) inesgotável fonte de lucros, agora foi a vez da língua
inglesa ocupar esse espaço. O estouro veio com Silence Becomes It, o elogiadíssimo
primeiro álbum do Silence 4, que logo no seu lançamento conquistou primeiro lugar nas
paradas. De certa forma, podemos dizer que este sucesso abriu portas para que outras
bandas que cantavam em inglês conseguissem atrair a atenção da mídia e das
gravadoras.
Irônico pensar que as belas e melancólicas canções do Silence 4 ficaram
"encubadas" durante dois anos justamente por as letras não serem em português. A
banda se formara em 1995, mas apenas conseguira um contrato (com a Universal) para
editar suas canções depois de muitas idas a festivais independentes e da inclusão de uma
versão de "Little Respect" (sem as afetações eletrônico-oitentistas do Erasure) em uma
coletânea contra o racismo entitulada Sons de Todas as Cores, em 1997. David Fonseca,
líder e vocalista da banda, comenta que não esperavam tanto sucesso. "Quando
surgimos, havia um grande descrédito comercial em qualquer banda portuguesa que
cantasse em inglês. Nunca nenhuma banda tinha conseguido vender discos em Portugal
desta forma. Foi uma surpresa para todos (inclusive nós próprios) quando o fenômeno
se instalou".
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Para David, compor em inglês não tem a ver diretamente com a famigerada
internacionalização. "A língua inglesa pode ser uma forma de chegar a outros países,
mas também pode tornar o processo mais difícil, visto haver milhares de bandas por
esse mundo fora à espera de uma oportunidade... Quando comecei a escrever músicas,
não usava as minhas próprias letras, mas sim as letras de um amigo meu chamado
Bruno Urbano. Todas as letras que ele escrevia eram em inglês, por isso a sonoridade da
música ganhou imediatamente uma característica da qual já não me quis desassociar.
Acho que a grande influência que a música anglo-saxônica tem sobre mim também é
uma pista válida sobre o porquê de fazer música em inglês".
Com o segundo álbum, Only Pain is Real (2000), o sucesso se repetiu e o
Silence 4 consolidou sua posição na cena pop/rock portuguesa e começou algo como
uma “internacionalização” de sua música fazendo shows na Espanha e na Inglaterra e
levando seus discos para os Estados Unidos. No Brasil, a Polygram (hoje Universal)
havia editado Silence Becomes It, um ano antes. No entanto, não houve qualquer esforço
de promoção. Encontrava-se o disco, meio por acaso, perdido nas seções de música
portuguesa em mega-stores, misturados à obra de Amália e do Madredeus, e não na
seção de pop/rock internacional, onde deveriam estar. O máximo de exposição que a
banda teve em terras brasileiras foram os clipes de "My Friends" e "To Give"
(respectivamente tirados de Silence Becomes It e de Only Pain is Real) no finado
programa Mondo Massari da MTV Brasil. Algo inexplicável para uma banda que tinha
tanto potencial quando um Travis ou um Coldplay para emplacar no mercado brasileiro.
Silence 4 marcou a entrada de portugueses cantando em inglês nos tops de
vendas e nas play lists das rádios nacionais. Hoje a quantidade de bandas que fazem uso
da língua inglesa para se expressar é imensa: do pop inspirado nos Smiths do Austin ao
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nu-metal do Slamo. Influências que inevitavelmente vêm de fora de Portugal, de
modelos ingleses e americanos, e são assimiladas em tentativas de se produzir boa
música, e, quem sabe, com algum diferencial.
Nesse contexto, é de se destacar o trabalho de um original e "dramático" Belle
Chase Hotel, que vai buscar influencias tão díspares quanto David Bowie e Glenn
Miller, ou o rock e o tango, e que não se prende ao inglês como forma de expressão: vão
ao francês, ao português e ao "brasileiro". Na canção "São Paulo 451", do segundo
álbum da banda, La Toilette des Étoiles, há uma boa tentativa de se abrasileirar o
sotaque luso do vocalista JP Simões. O Brasil parece ser uma referência para o grupo de
Coimbra, que nessa mesma música evoca explicitamente Chico Buarque, nos arranjos e
linhas melódicas. O disco de estréia Fossa Nova evoca o movimento brasileiro não
apenas no título, mas em grande parte das canções.
Por outro lado, temos um Plástica que, apesar de ter boas canções, de grande
apelo pop (daquelas que você escuta uma vez e já está cantando junto), não acrescenta
nada em relação ao modelo em que se inspiraram. O rótulo de "Suede português" cai
sobre os rapazes desde sua primeira aparição em uma coletânea de novos talentos
chamada Optimus 2000: We've Been Watching You. A maneira como o vocalista Vitor
Raposo canta lembra absurdamente Brett Anderson. Em palco, o português oscila entre
o carisma de Anderson e o tom blasé de outro inglês famoso, Liam Gallagher. Paulo
Ventura, empresário da banda e presidente da editora independente Metrodiscos,
responsável pela compilação que lançou o grupo, conta que Vitor sequer conhecia
Suede quando entrou para a banda: "Quando ele fez o teste, não demos conta da
semelhança. Só depois de a canção estar gravada é que percebemos. Falei com ele e o
Vitor disse que não conhecia o Suede. Nós é que lhe demos os discos para que
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percebesse que queríamos que ele evitasse o registro tão parecido. Mas o problema é
que é o registro natural dele". Ventura lembra que na gravação do álbum de estréia da
banda, Pop Songs & Rock People, editado pela Valentim de Carvalho, "o produtor
tentou que ele cantasse de outra maneira, mas não resultou". "Eu tenho lá culpa de que o
rapaz seja bonito como o Brett Anderson, tenha charme e classe como o Brett
Anderson? É pop! O que vamos fazer se ele tem um registro vocal próximo ao do outro?
Nada. Nem ele, nem eu. Ele canta bem", conclui o empresário. Acredite-se ou não na
explicação de Ventura, a semelhança entre Plástica e Suede é inegável.
Um bom exemplo do que seria se "apropriar" de um modelo em benefício
próprio é o Bypass. Poderíamos enquadrá-los como uma banda "post-rock" (embora
esse seja um rótulo um bocado vazio), tal os escoceses do Mogwai, os islandeses do
Sigur Rós, ou os americanos do Tortoise. O que fazem? Desconstróem canções. "Nós
tentamos manter a energia e a força do rock, com guitarra, baixo e bateria, mas
adicionamos instrumentos que são pouco característicos deste estilo, como o
parlophone. Também tentamos fugir da estrutura básica das canções pop/rock: parte
um/refrão/parte dois...", explica Eduardo Raon, guitarrista da banda. Antenados com o
que de mais atual se faz hoje no rock mundial, mas sem simplesmente reproduzir o que
escutam. Na mesma linha experimental, há o Stowaways, que mexem mais com
texturas sonoras (menos com as estruturas propriamente), lembrando um pouco
Radiohead pós-Ok Computer. As duas bandas partiram para um caminho que, ao que
tudo indica, parece ser o mais acertado: edições independentes. O Bypass conseguiu um
contrato para lançar seu EP de estréia com a Metrodiscos graças a um concurso no qual
ganharam o primeiro prêmio. Stowaways foram além, e produziram e gravaram eles
próprios o primeiro EP.
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O mesmo fizeram os meninos do Fonzie. Os integrantes da banda de punk
melódico juntaram dinheiro e foram à Suécia gravar seu début Built To Rock. Voltaram
para casa com o CD prontinho debaixo do braço. E ao invés de começarem a procurar
uma editora portuguesa que os quisesse lançar, pensaram logo no mercado externo.
"Fomos buscar uma editora que pudesse lançar logo o álbum em toda a Europa, nos
Estados Unidos e na América do Sul", esclarece Hugo Maia, vocalista da banda. Ele
conta que foi mais fácil conseguir um selo nos Estados Unidos (Jumpstart Records) do
que em Portugal, porque a banda havia conseguido alguma visibilidade no meio
underground quando venceram um concurso promovido pelo grupo americano
Millencolin, de quem a banda é fã confessa. "Ganhava quem fizesse a melhor cover de
um tema deles. O prêmio era publicidade no site do Millencolin", conta Hugo. Ele
acrescenta que outro fator importante que ajudou o Fonzie a conseguir levar seu
trabalho para fora de Portugal foi a participação de Ingemar Jansson, vocalista do No
Fun At All. "Ele nos passou muitos contatos para começarmos a divulgar nosso
trabalho", comenta.
Depois de assinarem com a Jumpstart Records, foi a vez da Movieplay
portuguesa, que teoricamente tem os direitos de distribuição do grupo no resto da
Europa. Em seguida, o Fonzie contatou o selo brasileiro Barulho Records, que está
responsável pelos rapazes por aqui, e no Japão são representados pelo Underground
Liberation Force Records. Para Hugo e sua banda a internacionalização é a única saída a
um mercado tão pequeno como o português. Eles assumem que sim, cantam em inglês
para poder tocar fora de seu país. "Portugal não tem muito a cultura do punk, do rock.
Se ficássemos só aqui seria complicado", avalia Hugo.
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Em algum lugar do passado...
A mesma sensação de que Portugal não era lugar para a sua música, sentiram os
Tédio Boys em meados da década de 90. Influenciados pelo grupo norte-americano The
Cramps, os Tédio Boys ficaram conhecidos por suas performances insanas ao som do
que chamavam de "punkabilly". O ex-guitarrista do grupo Paulo Furtado, hoje líder do
Wraygunn, desabafa: "não éramos viáveis em Portugal". A banda sobreviveu durante
dez anos sempre no underground. Editaram três de seus quatro discos nos Estados
Unidos, pelo conceituado selo independente Elevator, fizeram turnês pelo circuito
underground norte-americano, chegando a tocar em uma festa de aniversário de Joe
Ramone, por convite do próprio, em uma dessas passagens pela terra do Tio Sam. "Ele
ouviu dois concertos nossos em Nova York e convidou-nos. É bastante curioso, porque
de repente és uma banda portuguesa e chegas em Nova York e és convidado para tocar
no aniversário de Joe Ramone. E eram poucas bandas, todas mais ou menos conhecidas
dele", lembra Paulo, contrastando o fato com o pouco reconhecimento que o grupo tinha
em Portugal na altura. Ele recorda que os Tédio Boys eram postos de lado pela imprensa
durante os anos 90. "As pessoas levam um tempo a reconhecer as coisas, hoje os Tédio
Boys são considerados referência. Se calhar é porque a geração que está hoje nos jornais
é a mesma que a nossa, cresceu ouvindo o mesmo que nós".
Tédio Boys são hoje de fato referência no rock português. E são também um
verdadeiro celeiro de bandas. Dos cinco integrantes da banda, apenas um não está hoje
trabalhando como músico, o baixista André. Paulo fundou os Wraygunn e mantém seu
projeto solo Legendary Tiger Man. O vocalista Tony Fortuna hoje comanda o
barulhento d3o. O baterista Kaló toca bateria e canta no eletrizante Bunnyranch. E o
guitarrista Vitor Torpedo foi para Londres, onde tem colhido criticas mui elogiosas ao
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punk '77 do seu The Parkinsons (o semanário inglês NME colocou a banda entre as 10
imperdíveis para 2002, e os chamou de "a resposta mais suja e esnobe do Reino Unido
aos Strokes").
Idéias distorcidas
Bem longe das praias do punk rock, surge, ainda em finais da década de 80, o
More República Masónica. Rock barulhento, guitarras pesadas e distorcidas. A
primeira aparição do grupo foi no 6º Concurso de Música Moderna do Rock Rendez-
Vous. E logo chamaram a atenção, não apenas por sua música inspirada na escola
alternativa americana (Dinosaur Jr. e Sonic Youth, entre outros), mas por terem
quebrado deliberadamente as regras do concurso, apresentando um tema em inglês
quando as normas diziam que apenas canções em português poderiam concorrer.
"Partimos do princípio de que quando alguém quer criar alguma coisa deve criá-la com
a liberdade total para fazer o que quer que seja e exprimir-se da maneira que quiser",
justifica o baixista Jorge Dias.
O More República é uma banda alternativa. Independente. No som e na atitude.
Foram das primeiras bandas a editarem seus discos por conta própria. "Nós começamos
a gravar um disco, investimos nosso próprio dinheiro e depois fomos procurar alguém
para lançá-lo", lembra Jorge a propósito do primeiro Mini-LP da banda More More
More. As auto-edições continuam hoje, ainda que agora a banda seja contratada da
Metrodiscos. Apesar de, como diz Jorge, "a banda ter um percurso discreto", o álbum
Chemical Love Songs rendeu ao grupo um hit, "Answer Machine", e críticas bastante
boas, ao disco que foi produzido por Jack Endino (que havia trabalhado com Nirvana
em Bleach). Mesmo com "Answer Machine" destoando um pouco do restante do disco,
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que é bem mais pesado, Jorge acredita que "a escolha de uma música mais acessível
transportou a banda para o olhar das pessoas". "Ouviram falar de nós, ouviram a nossa
música", completa.
Outra banda que também foi buscar referências na cena underground americana
de fins dos anos 80, começo dos 90 foi o Blind Zero. "Nascemos, em 94, um bocadinho
à sombra do movimento grunge, de bandas como Nirvana, Pearl Jam, Alice In Chains
etc. E isso nos deu visibilidade à altura", afirma o vocalista Miguel Guedes. Entretanto,
o rótulo de "Pearl Jam português" pesou bastante sobre o grupo. "Durante anos andamos
a dar entrevistas em que falávamos mais dos Pearl Jam do que de nós próprios", emenda
Miguel lembrando que a comparação no início até era agradável e procedia, mas depois
tornou-se insuportável. "Nosso primeiro disco [Trigger, 1995] era dentro do grunge,
talvez um pouco mais pesado até; o segundo [Redcoast, 1997] é, em algum sentido,
mais pop; e este terceiro [One Silent Accident, 2000] é uma volta às raízes do rock, mais
zepeliniano, se calhar. É a tentativa de fazer o nosso disco de rock", enfatiza.
O monstro fala português
Difícil encontrar uma banda com influências vindas do rock alternativo
americano ou inglês, mas que cante em português. Difícil, mas não impossível: Ornatos
Violeta, formado em 91, no Porto, justamente por quatro amigos que eram fãs de
Violent Femmes. Segundo o ex-tecladista da banda, Elísio Donas, a influência do
Violent Femmes ficou no início da banda, quando ainda tocavam apenas em bares e
pequenos festivais amadores. Em 97, quando lançaram o primeiro disco Cão! a
sonoridade da banda mesclava pop/rock com ska e funk. Este primeiro álbum foi muito
bem recebido pela imprensa e os singles "Punk Moda Funk", "A Dama do Sinal" e
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"Mata-me Outra Vez" indicaram ao público a genialidade do poeta e compositor
Manuel Cruz, vocalista do Ornatos.
O Monstro Precisa de Amigos, editado no final de 1999, um dos melhores discos
do pop português, rendeu à banda quatro prêmios Blitz no ano seguinte: grupo do ano,
álbum do ano, voz masculina nacional e melhor canção nacional ("Ouvi Dizer). Outra
música que merece destaque em O Monstro... é "Capitão Romance": pop com arranjos
de fado, belíssima, e com a participação do líder dos Violent Femmes, Gordon Gano.
É pena que a pequena obra-prima do Ornatos Violeta tenha sido também o
último registro de originais da banda, que anunciou seu fim em 2002, deixando um
lugar a ser preenchido pela nova geração de artistas pop/rock portugueses. Ao que
parece o mercado já anda novamente saturado de bandas que soem como inglesas ou
americanas. Os catálogos nacionais das grandes gravadoras estão cada vez mais
enxutos, e elas preferem continuar jogando com o time que vem (ou bem ou mal)
"ganhando" há alguns anos, do que apostar suas fichas em novos talentos, que não são
meras reproduções de artistas do exterior. Talvez seja a hora de um novo "boom". De se
(re)descobrir a língua como forma de expressão poética. E quem sabe de remexer um
pouco no passado da música portuguesa e encontrar meia dúzia de referências que
valham a pena. O "pop/fado" de "Capitão Romance" pode ser uma boa pista.
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Capítulo 9:
“Não há um pop português”
Mais de 50 anos se passaram desde que o primeiro músico português empunhou
uma guitarra para imitar seus ídolos norte-americanos e ingleses e começou a fazer algo
que se possa chamar de rock. Entretanto, ainda é questionável se existe mesmo um rock
à moda portuguesa, ou se ele não passa de pastiche do que se faz fora do país. O
radialista Henrique Amaro, um dos maiores impulsionadores do pop/rock português nos
últimos dez anos, acredita que não. Que a identidade musical portuguesa ainda não está
construída. Para Amaro, faltam referências aos jovens músicos para que possam criar
algo novo, diferente do que se faz no resto da Europa e do mundo. Falta "descobrir a
língua". Falta pararem se de preocupar com a internacionalização e olharem mais para
as raízes, para o próprio país.
O radialista concedeu essa entrevista em agosto de 2002, nos estúdios da Antena
3, uma das principais rádios jovens de Portugal. É desse estúdio que Amaro comanda há
oito anos o programa "Rádio Clube", em que se dedica a divulgar a nova música
portuguesa, e lusófona, nomeadamente brasileira, que ele considera um exemplo a ser
seguido em Portugal, no que diz respeito à construção de uma identidade. Cita os
Tropicalistas e o movimento Mangue Beat como fundamentais para que o pop brasileiro
se tornasse o que é hoje. Para seus "afilhados", a nova geração do pop/rock português,
deixa um recado: "se eu não tiver qualquer tipo de informação em relação ao meu
passado, eu sinto que não sou capaz de construir um futuro com referência no país."
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No seu programa, além de novos artistas portugueses, você passa muita música
brasileira. Por que isso?
Eu acho que há uma certa coincidência entre o que aconteceu em Portugal e no Brasil
em relação à música pop. Não estamos a falar de uma tradição grande. Estamos a falar
de uma coisa recente. Nós tivemos o primeiro surto de rock nos anos 80 e o de vocês é
em 84, quando acaba a ditadura militar. As coisas hoje no vosso país, se calhar
aceleraram por um lado, no nosso foram por outro lado, isto do ponto de vista de uma
identidade musical. Nessa altura, pode-se falar de um hip hop brasileiro, de um pop
brasileiro. Em Portugal não. Não há um pop português. Não há um hip hop português.
Até porque é uma geração que ainda não descobriu a língua. A vossa já descobriu.
Por isso é que eu achei que era interessante começar a por uma nova geração de bandas
brasileiras quando começo a fazer o programa aqui. Ouço o primeiro do Chico Science,
Da Lama ao Caos, ouço o Usuário, do Planet Hemp, ouço uma série de discos que me
marcaram e que eu começo a dar divulgação a esse tipo de projetos. E no início as
pessoas cá sempre tendem a franzir o olho... Por que? Porque a maior parte dessa nova
geração acha que no Brasil só há axé, só há MPB... Agora até acham engraçado e
dizem: "eh, pá... como é que há tanto já falavas disso e ninguém dava nada, e agora já
estamos todos a espera de qual é o novo disco de não sei quem". Quer dizer, há um
nicho de mercado, que fique compreendido. Começas a falar do Arnaldo Antunes, do
Lenine, uma série de nomes que há já um grupo de pessoas que está atento. Não por
acaso a Adriana Calcanhoto, embora seja uma artista que se calhar é uma coisa mais
adulta, mas já chega aqui e enche os Coliseus, vende discos o que há sete anos atrás
não...
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Seu programa já tem quanto tempo?
Eu faço rádio há mais tempo. Aqui na Antena 3, portanto, para todo o país há oito anos.
E um programa, que é pioneiro na rádio portuguesa, por ser um programa diário
dedicado à música portuguesa, e a... vamos chamá-la lusófona, muito embora eu não
toque grupos cabo-verdianos ou africanos, porque eu não tenho conhecimento de causa
para mexer nisso. Então, basicamente tem uma fatia, uma porcentagem pequena de
brasileiros, e portugueses.
Várias pessoas comentam que você é um grande incentivador da música
portuguesa no rádio, por tocar coisas novas e...
Sim. Isso é um bocado de identidade. Eu quando começo a pegar gosto pela música e
comprar discos, eu sentia vontade de comprar o novo dos Police ou dos Bauhaus, mas
sempre tive uma grande... sempre gostei de ouvir as coisas... e quando eu começo ter
dinheiro para comprar discos tenho 11, 12 anos é a altura que surgiu esse "boom" do
rock português. Então, eu sempre tive afinidades, comprava os "meus Paralamas", os
"meus Titãs", percebes? Quer dizer, aquilo que para vocês foram os Paralamas, os Titãs,
Barão Vermelho... eu comprei cá. Então, depois dei seguimento à carreira deles.
Comecei a achar graça a construção das músicas, a diferença estética entre todos, as
letras, os espetáculos.
Quando entrei para a rádio... basicamente o meu gosto é mais musical do que de rádio.
Minha ligação com a rádio não é... há muita gente que tem aquela paixão de trabalhar na
rádio. Eu não. Eu gosto de música e me uso da rádio para mostrar a música que eu
gosto. Sempre tive um certo gosto (não foi naquela perspectiva de serviço público, de
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ser obrigado a...) de construir o meu programa de autor, em que tinha por finalidade
divulgar os grupos emergentes que existiam em Portugal, quer era através de edições
independentes, quer através dos que chegavam às multinacionais, quer através das fitas
demo. Ora, o que foi que aconteceu? Quando começa, há oito anos atrás (aqui porque eu
já tinha passado por uma rádio em Lisboa que também tinha um impacto grande, a
Rádio Energia), há uma geração de pessoas que cresceu a ouvir rádio, e que começou a
comentar o meu nome com essa característica. Então, a olhar para o meu nome era
sinônimo de que era um programa onde podiam ouvir os novos grupos portugueses.
Portanto, esse miúdos cresceram com isso, como eu cresci com outros locutores de
rádio, o António Sérgio e outros tantos que para mim foram muito marcantes. Por isso é
que as pessoas referenciam.
Você cresceu ouvindo música portuguesa e agora trabalha com isso... como é que
avalia essa trajetória do rock em Portugal, do pop/rock português?
Por um lado bem, se falarmos do ponto de vista do desempenho de músicos, do
desempenho técnico, os músicos de hoje são bem melhores, bem melhores,
tecnicamente do que aqueles de há 20 anos atrás. Se acompanharmos do ponto de vista
de estrutura, temos uma estrutura em Portugal hoje que não existia há 20 anos. Nesse
aspecto há uma evolução. Agora, se falarmos do ponto de vista da criação de uma
música pop portuguesa, eu acho que o balanço é terrível. Não temos isso. Agora,
também podemos discutir porque é que não temos isso.
É assim, fazendo uma comparação com o Brasil, em Portugal não tivemos uma
Tropicália. Em Portugal não houve uma série de referências que vocês tiveram e que
80
vos ajudaram a construir uma música pop (quando eu digo música pop estou pondo
tudo... estou a falar dos Racionais MCs, estou a falar de tudo um pouco, do Planet
Hemp, do Marcelo D2...).
Durante os anos 60 havia o que? Grupos a imitarem os Beatles. Nos anos 70 apareceram
os grupos, os chamados cantores de intervenção, que há três que podiam ser grandes
referências (são para alguns não são para todos), que são o Sérgio Godinho, o José
Mário Branco e o Zeca Afonso. O Fausto também. Figuras de referências que não foram
adotadas... Estão a ser descobertas agora. Quero com isso dizer que não há referências
no passado para essa construção da música pop nacional.
E depois, temos um problema grande, também. Que é olhar mais para a Europa do que
para o próprio país. As pessoas que tem hoje 30 anos ou 20... na televisão não houve
programas de música, na rádio pouca música portuguesa passou... Então as referências...
o crescimento deles se fez com o que? Fez-se com referências inglesas ou americanas.
Portanto, Portugal, enquanto vocês, como um país grande, estão relativamente afastados
da América, e muito afastados da Europa, Portugal não. Portugal está na Europa e tem
também, como qualquer país do mundo, muita informação americana. Então, o
crescimento desses jovens músicos foi com referências exteriores. Há pouca auto-estima
em relação à música local. Quer dizer, é falta de referências. E não houve nenhum
abanão, não houve um choque... se calhar não houve nenhum talento como os
tropicalistas conseguiram e como o Mangue Beat depois conseguiu também.
81
Você acha que isso de buscar referências no passado é essencial para se construir
uma identidade?
Eu creio que sim. Nem que seja para descobrir a língua. Porque assim, se não existisse
Tropicália... Repara, a Tropicália junta o que? Junta uma série de características
próprias, da região e do país, com um bocadinho de Beatles, com um bocado das coisas
que estavam a acontecer. Cá o que é que se fez? De fato só olhamos para os Beatles, não
olhamos para o país. Eu creio que sim. Eu acho, como dizia o Chico Science, é
"organizar o passado", uma referência qualquer em relação ao passado... eu acho isso
fundamental. Não podemos desgrudar o passado das coisas. Se eu não tiver qualquer
tipo de informação em relação ao meu passado, eu sinto que não sou capaz de construir
um futuro com referência no país.
Mas a questão da língua, quando houve o "boom" nos anos 80, GNR, UHF, Xutos
e Pontapés... cantavam em português...
Cantavam, de fato cantavam. Mas repara, o Rui Veloso começa a cantar em inglês,
depois é que passa para o português. Os GNR para mim são os grandes construtores,
estão na gênese daquilo que poderia ser a música pop portuguesa. O álbum primeiro do
GNR, o Independança, é um monumento à música portuguesa. Ainda porque não é
fundamentalista em relação à língua. O GNR em sua carreira tem temas em italiano,
francês, inglês, português... algumas vezes até misturados. Não sei. Se calhar já eram
adultos. Acho que depois teve a ver, se calhar, com uma certa saturação. Na altura até
houve muitos grupos a cantar em português. Mas depois já era uma linguagem tão
banalizada que não furou. Já houve tantos sucessos de edição, tantos sucessos de letras
pobres, que aquilo já era grupo de baile, que não vingou. Mas se tu repares o que é que
82
ficou... o que é que nós recebemos de 80? UHF, GNR, Xutos e Pontapés, Heróis do
Mar... E repara que desses grupos todos, os Heróis do Mar conseguem fazer algo
original daquilo que depois podemos chamar de uma pop portuguesa e não têm qualquer
tipo de descendência. Não há descendência...
Os mais jovens não vão buscar nem essas referências mais próximas...
Os Delfins se calhar... os Delfins foram mais ou menos, mas não conseguiram. Foram
um bocado do ponto de vista ideológico, mas pouco do ponto de vista musical, buscar
referências aos Heróis do Mar. Portanto, há grupos e não há filiação. No Brasil, há
filiação. Dos Paralamas há filiação. Há filiação da Legião Urbana... dos Titãs. Cá não. A
única filiação que houve mais ou menos fincada foi com os Xutos e Pontapés. Os outros
não tiveram.
Quem seriam as filiações do Xutos?
Os Peste & Sida foram-no. Os Censurados foram.
A geração mais punk?
Sim. Os Xutos e Pontapés basicamente o que faziam na altura era acentuadamente rock,
mas uma vertente punk rock. Uma espécie de Clash portugueses. Ainda hoje vendo em
palco, vídeos da altura, apresentações ao vivo da altura, até do ponto de vista estético,
da emblemática da banda, roupas, a indumentária é um bocado Clash, que era "a" banda
da altura. O Zé Pedro, que foi o ideólogo da banda (um dos... são quatro personalidades
muito fincadas), Clash era a banda de adoração dele. Esses ainda deixaram alguma
descendência.
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GNR e outros... você não vê isso?
GNR... os Mler Ife Dada poderão ser uma descendência do ponto de vista de ser uma
banda liberta, dos experimentos. Era uma banda de pop, mas que também tinham um
bocado de pop experimental. Não era um pop rígido: ponte/refrão/parte um/parte dois/
ponte/refrão/parte um/parte dois... Os Mler Ife (e isto já estamos a falar em 84, o álbum
só sai em 87, o Coisas que Fascinam que é um disco também marcante), do ponto de
vista de língua é uma banda que procura... tem temas em egípcio... a Anabela Duarte, a
vocalista, era antropóloga, então tentava criar uma espécie de imaginário Mler Ife
Dada... Mas de resto...
Então tens isso. Essa "classe" de 80, 82, do "boom". Depois tens uma espécie de
renascimento no final da década, 86, 89... Tens os Mler Ife Dada, os Delfins começam a
aparecer... enfim, sem ser tão marcante como o início da década de 80, é de algum
modo um reabilitar da cena portuguesa. E depois há um apagamento total. Com
lançamentos, é claro, a indústria não parou de lançar discos, mas do ponto de vista de
movimento, de muitos grupos a acontecer..
Isso não volta a acontecer nos anos 90, não?
Sim, mas mais para frente... é praí 94, que coincide com o início da rádio, que surge o
hip hop, e uma geração toda que consegue fazer seus primeiros discos: os Cool
Hipnoise, os Da Weasel, os Turbojunkie, no Porto, os Ornatos Violeta, o Pedro
Abrunhosa. Portanto, há uma espécie de geração groove. Uma pop meio dançável. Me
parece que é mais uma cena. Pronto. E depois, algumas foram diminuindo, outras foram
amadurecendo até chegarmos aos dias de hoje, em que tens ótimos discos, do ponto de
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vista estético e técnicos, mas continua a haver uma inexistência de uma música pop
portuguesa. Mais tarde ou mais cedo isso vai aparecer. Esse encontro com a língua...
mais tarde ou mais cedo tem que aparecer.
Hoje, pelo menos a idéia que eu tenho, de 98 para cá, praticamente as bandas todas
a cantar em inglês...
Quase todas. Dos melhores discos para mim lançados esse ano, é do Sam The Kid...
umas coisas com hip hop... A história do hip hop português é engraçada. A cena surge
no início da década de 90, espalhada. Em 94 ela estava coletada no Rapública, que é o
primeiro disco, quer dizer havia experiências pequeninas no passado...
Mas é o primeiro disco que consegue algum tipo de exposição.
É o primeiro disco a conseguir exposição midiática. Muito grande. Um hit, que era o
"Nadar", dos Black Company, e mesmo nessa altura há muita gente ainda a cantar em
inglês. Não vou dar isto como um dado, tem discussão, mas quem é que em parte é
fulgral para o hip hop passar ao português? Os Da Weasel, com seu primeiro disco...
Pac Man é um dos melhores letristas da música portuguesa na atualidade. O primeiro
disco deles lançado em 94 é cantado em inglês. Quem é que aparece no meio dessa
coisa toda e faz o pessoal do hip hop mudar? Quer dizer, perceber, ter uma referência?
O Gabriel, o Pensador. Na primeira vez que vem a Portugal. Quer dizer, levas com uma
maneira nova de fazer hip hop e com uma escrita que ninguém tinha tido... quer dizer,
não havia nenhuma referência de como era escrever isso para o português. E a pessoa
que vem mostrar isso em Portugal é o Gabriel, o Pensador, com o sucesso estrondoso do
seu primeiro disco. Está aí uma referência, e o hip hop cresceu...
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E depois, o que é que está acontecer hoje em dia? O pessoal que compõe as bases de hip
hop está a perceber que há vinil português como referência, estão a vasculhar vinis a
procura de pedacinhos de coisas antigas portuguesas que os vão fazer distinguir dos
americanos, dos franceses... Portanto, o hip hop em Portugal, além de através do hip
hop poderes ter um espelho do país (sob o ponto de vista lírico), estão também a
conseguir uma identidade musical que os diferencia do resto.
E agora com o estouro dos Da Weasel (em 2002 tocaram em quase todos os
festivais)...
Em todo o lado... todo o lado... a banda tá... E repara, o Rapública veio em 94, depois...
os discos de hip hop... o que é que aconteceu? Os Black Company, a Sony contratou.
Fez dois discos e a banda morreu. Os Da Weasel, que são uma banda que tem uma
componente hip hop, é tipo Planet Hemp, não é uma banda de hip hop, tem uma
componente de hip hop. Depois os Mind Da Gap. Mas quase todos os anos eram esses
dois. Quando não aparecia um, aparecia o outro. As coisas estavam reduzidas a duas ou
três referências. Agora temos os Micro, os Sam The Kid, o Phil, os Dealema... enfim,
tem saído muitos discos de hip hop, tudo auto-edições, que algo também que Portugal
está a descobrir agora. Portanto, acho a nova música portuguesa, como eu lhe chamo,
está a construir-se. Todos os anos há um dado novo, uma coisa nova. Aprendem uma
coisa nova.
86
E excetuando o hip hop, o que mais você destacaria dentro do que se faz hoje em
Portugal?
Eh, pá... uma espécie de um nova música tradicional portuguesa. Mais ou menos como
aquilo que vocês têm no Brasil com o Mestre Ambrósio, por exemplo, acho que também
vamos tendo aos poucos uns novos artistas... Há um novo fado. Até o próprio fado,
depois da Amália, quase não tivemos um conjunto de grandes nomes como estamos
tendo agora, é o caso do Camané, a Cristina Branco, a Mísia... enfim. E eu destaco
depois essa nova música tradicional portuguesa com os Gaiteiros de Lisboa, acho que
são dos melhores coletivos de música em Portugal...
E eles vão buscar coisas tradicionais...
Vão, de uma perspectiva urbana. Mas não há aquela coisa de fundir com máquinas, não
tem que ser necessariamente naquela idéia de "ah, eu ponho aqui uns scratches por cima
e é moderno". Não tem nada disso. Eles são fundamentalistas em relação ao
tratamento... trabalham só do ponto de vista orgânico. Instrumentos de sopro, têm
cordas, muita percussão.
Outras coisas ligadas mais à pop?
Este ano (2002) temos quatro discos, pelo menos até agora, os mais marcantes. Esse do
Sam The Kid; o disco do Bullet, um disco de instrumentais, feito por um tipo que
trabalhou nos Da Weasel e que saiu neste último disco, o Armando, compositor
excelente; o Coldfinger; e os Blasted Mechanism, um disco muito bom, mais uma vez
ele vai buscar instrumentos a China e não sei o que, e traz para um tipo de Cabo-Verde,
mas respirar Portugal, não respira e eu acho que isso é prioritário. Porque há uma coisa
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cá, que vocês não tiveram, se calhar porque o vosso mercado é grande e um bocado por
causa da dimensão do país, e as pessoas cá, a maior parte dos músicos, sempre tentaram
conquistar o exterior antes de conquistar o interior, o que é uma idéia... não tem
qualquer tipo de cabimento.
E ninguém conseguiu isso...
Claro, não tem qualquer tipo de cabimento. Não consegues vender no exterior uma
coisa que não vingou no seu próprio país. Não tem muito nexo. E também, a maior
parte, nunca perceberam que essa coisa de internacionalização não é só música.
Internacionalizar... tocar na MTV ou ir para o Top inglês... não é só música. Isso é
música e milhares de euros. Muito dinheiro. Não é só música. Os Gift está a passar por
isso na pele. Contatos com a Virgin, uma auto-iniciativa fortíssima, mas estão a passar
isso na pele. De certeza que só vão conseguir editar os discos lá fora, por editoras...
minúsculas. Mas essa perspectiva de que internacionalização é o disco lá fora...
O que você acha que tem que acontecer para Portugal começar a exportar música?
Exceto o que já exporta, é claro (fado, Madredeus...)
Portugal já exporta muita música. Se fores ver, o que é que exporta? Aquilo que as
pessoas lá fora não têm... os Madredeus, nenhuma parte do mundo há igual. Exporta um
bocadinho de fado novo, com Camané... Exportou os Moonspell...
São mais conhecidos na Alemanha do que em Portugal.
São bastante conhecidos cá também... mas na Alemanha têm um culto... entram pro top
de lá. Mas por que? Porque também tinham uma característica... os Moonspell criaram
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um imaginário, um bocado culto ao negro... mas falam muito, no país não tanto, mas
vão buscar referências tipo os lobos, tem um álbum chamado Wolfheart, mas vão buscar
um pouco aquele cinzentismo, aquela cor negra que às vezes predomina num retrato de
Portugal. Portugal vai ficar sempre preso a esse lado cinzento, nós não somos
brasileiros, percebes? Não temos aquela alegria... E eles vêm buscar um pouco esse tipo
de discurso. E no início é até uma coisa parva, que chamariam Lusitanian Metal... que é
uma coisa um bocado barroca. Mas que no início deu para pegar. E depois juntaram-se a
uma editora que é a Century Media, que agora tá na falência, mas na altura era a melhor
editora do mundo pro estilo deles. E sediada fora de Portugal. Eles "nascem" lá fora.
Primeiro através de umas independentes francesas depois através da Century Media.
Portugal já exporta música... o que é que falta para exportar mais? não sei...
Exportar o que se houve aqui, o que você toca no seu programa...
O que é que falta para exportar uns Ornatos Violeta... Não faço idéia, acho que falta
dinheiro.
Mas a questão é só econômica?
É... bom, pelo menos eu acho que há uma série de grupos em Portugal que por muito
bons que sejam não marcam qualquer tipo de diferença em relação a outros que estão
por aí. De certeza que também há grupos na Suécia muito bons que eu também não
conheço, que estão a se debater com o mesmo dilema de se exportarem.. Mas acho que
há duas coisas: uma é essa demarcação, fazer uma coisa mais identificativa, fazer um
som próprio, ter uma identidade própria, para se diferenciar do que se está a fazer no
resto da Europa e no resto do mundo; e a outra tem a ver com o ponto de vista
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executivo, é econômica, é de agenciamento, é de management... é o lado burocrático. E
isso tinham os Moonspell, tinham os Madredeus... tinham suporte do ponto de vista
empresarial muito forte. Quer dizer, o conquistaram. E os The Gift estão a tentar
arranjar isso agora. Temos que diferenciar também o que é que nós queremos. É chegar
ao número 1 do top inglês? O primeiro lugar na virada do milênio no top inglês era
português. Era o Rui da Silva com "Touch Me", que é um DJ, faz música de dança... E
assim que se faz crescer a música portuguesa? Não é. Isso são histórias para o
imaginário. Não passa disso.
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91
APÊNDICE
Alguns artigos e entrevistas que publiquei sobre o assunto após a finalização deste
trabalho em 2002.
Malhas que o destino teceVozes do trip hop português sobrepõem a imagem de uma Amália pós-moderna a uma Beth Gibbons ibérica
“O fado é saber que não se pode lutar contra aquilo que temos. É aquilo que não
podemos mudar". A definição é da diva Amália Rodrigues, a melhor e certamente a
mais conhecida intérprete do estilo tradicional português. A palavra fado significa
destino, um destino tão inevitável que por mais que se tente negá-lo, não se pode dele
escapar. Talvez isso explique o fascínio dos portugueses por uma música de linhagem
triste e melancólica. Talvez ajude a compreender por que grupos de trip hop e eletrônica
downbeat como Lamb, Morcheeba, Hooverphonicsg e Gotan Project alcançam um
sucesso em terras lusas - vendem muitos discos, lotam shows e encabeçam festivais de
verão - que não encontram em outros lugares do mundo.
Claro que existe também um interesse dos portugueses por sonoridades mais
“quentes” - e isso, qualquer brasileiro que visite o país vai constatar rapidamente em
conversas regadas a cervejas no Bairro Alto (zona boêmia de Lisboa). Mas sempre
como algo estrangeiro e que muitos deles julgam não serem capazes de fazer. Como me
disse Henrique Amaro, que tem um programa na Antena 3, uma das rádios jovens mais
populares por lá: “Portugal vai ficar sempre preso a esse lado cinzento. Nós não somos
brasileiros, percebes? Não temos aquela alegria".
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Qualquer pessoa que tente compreender o que faz um artista, por melhor que seu
trabalho seja dentro de determinado gênero, ser reconhecido fora de sua terra vai
esbarrar no quesito originalidade. Quando falamos de música portuguesa, isso fica
muito claro. O que você, caro leitor, conhece da música produzida por lá? Além do
fado, provavelmente, o Madredeus – que embora não se proponha a fazer releituras de
fados ou coisa assim, tem lá sua raiz bem fincada, e o tal espírito português marcado em
suas canções. Mas há um sem-número de outros artistas fazendo música interessante na
“terrinha". E talvez não seja mero acaso o fato de alguns dos projetos mais criativos
estarem nas incursões pela eletrônica, especialmente pelo trip hop.
As atmosferas densas, por vezes sombrias, e as paisagens sonoras sugestivas do
estilo criado em Bristol conseguem ser captadas pelos portugueses de maneira tão eficaz
que nos faz questionar se não seria o downtempo a versão pós-moderna do fado. Figuras
femininas que com sua voz e presença fazem ecoar tanto a imagem de uma Amália
nascida no século XXI quanto uma Beth Gibbons latina. Maquinária eletrônica,
reverberações de guitarras, linhas de baixo bem marcadas e batidas desaceleradas
emolduram letras que falam de encontros e desencontros, de amor, de saudade – e de
todos esses temas decorrentes no imaginário pop.
É curioso ver que, para alguns desses artistas portugueses, a relação com o tipo
de música feita por gente como o Massive Attack e Tricky não é de causa-e-efeito ou
mesmo de influência. “Andávamos em um universo que é real, mas ao mesmo tempo há
alguma ‘sugestão’, um universo alterado... Era uma vivência urbana, se calhar, próxima,
mesmo que estivéssemos longe. São ao mesmo tempo pessoas em sítios diferentes a
passar pelsa mesmas experiências. Foi por aí a proximidade... Não por ouvir os discos
deles”, comenta Alexandre Soares, o homem por trás das guitarras e programações do
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Três Tristes Tigres, formado no início da década de 90, portanto, contemporâneo da
turma de Bristol. Ao lado de Regina Guimaraes e Ana Deus, que dividem os vocais e as
letras, Alexandre é responsável por um dos melhores discos portugueses de sempre,
Comum (1998). Uma pequena obra-prima (que nome irônico leva esse álbum), que ora
pende para o downbeat, pra para o drum’n’bass, e ainda conta com a belíssima “Visita
de Estudos”, na qual Alexandre exibe seus dotes à guitarra portuguesa.
Um discurso parecido, para se referir à proximidade de suas músicas com a
estética trip hop, é adotado por João Pedro Coimbra, líder do Mesa. Em entrevista ao
jornal Público, ele diz que não costuma ouvir artistas contemporâneos quando está
compondo justamente para não contaminar a criação e credita às experimentações com
equipamentos eletrônicos o resultado de seu trabalho. O primeiro álbum do grupo,
editado em outubro passado, Mesa, revela uma infinidade de possibilidades musicais -
jazz. blues. pop, bossa. algo rock - mas sempre gerando um produto final coeso que é,
essencialmente, eletrônico. Aqui, é Mônica Ferraz quem dá cara e voz ao grupo, uma
das revelações da jovem geração lusitana.
Outros expoentes do que se poderia chamar de uma “geração downbeat" em
Portugal são o Coldfinger e o The Gift. Em ambos, também é através de uma voz
feminina e cheia de personalidade que a música nos chega aos ouvidos. A voz suave de
Margarida Pinto nos conduz a uma viagem contemplativa pelas melodias criadas por
Miguel Cardona para o Coldflnger. Em seu primeiro álbum, Lefthand (2000), é
impossível não pensar em Massive Attack. Dois anos depois, Sweet Moods & Interludes
traz uma banda mais madura, mais ciente de si, com scratches e linhas de piano
delicadas se juntando a bases eletrônicas, resultando em um registro singular e
iluminado.
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Por caminhos mais escuros, nos guia a voz grave de Sónia Tavares que,
juntamente com Nuno Gonçalves, John Gonçalves e Miguel Ribeiro, forma o The Gift.
Baixo forte, teclados e samplers dão um tom sombrio às canções, enquanto saxofone,
violoncelo e violinos criam uma atmosfera etérea. Com três discos lançados (Digital
Atmosphere, de 1997, Vinyl, de 1998, e Film, 2001) são considerados um dos mais
interessantes projetos portugueses hoje e, assim como o Coldfinger, estão buscando
maneiras de “furar” o mercado externo.
Se essa empreitada vai dar certo, não é possível afirmar. O The Gift, por
esforços próprios (sem qualquer ajuda da Universal, que editou seus discos em
Portugal), tem feito shows no resto da Europa e nos Estados Unidos. Miguel Cardona,
do Coldfinger, agora é sócio de uma gravadora independente, a Lisbon City Records, e
vende seus discos online. Potencial para “ganhar o mundo”, se dependesse apenas da
qualidade artística, qualquer dos grupos citados nesse artigo tem. Como canta Amalia:
“sabe-se lá / quando a sorte é boa ou má / sabe-se lá / amanhã o que virá I (...) ninguém
foge ao seu destino/ nem para o que guardado”.
Publicado originalmente em dezembro de 2003, na revista B*Scene
95
O preço da liberdadeTrês décadas depois, a liberdade conquistada com a Revolução dos Cravos permite a Portugal um panorama musical com algumas idiossincrasias mas repleto de bons artistas*
Trinta anos atrás, Portugal amanheceu diferente, liberto de uma ditadura
totalitarista de direita que perdurava desde os anos 30. Era início de primavera e as ruas
estavam repletas de pessoas celebrando a liberdade, entregando cravos umas às outras.
25 de abril de 1974 é, certamente, a data mais importante da história contemporânea
portuguesa e, muito provavelmente, um marco para a cultura do país.
Sob a égide do fascismo, Portugal passou boa parte do século vinte imerso em
suas próprias trevas. Praticamente sem contato com mundo lá fora, a efervescência
cultural dos anos 60 e 70, por exemplo, ecoou muito timidamente por lá. No âmbito pop
(que é do que aqui vamos tratar) mais pelo isolamento do que pela censura
propriamente. Ainda assim, como é natural a qualquer juventude bem informada
(mesmo que para isso fosse preciso sintonizar rádios piratas inglesas ou "contrabandear"
discos quando algum conhecido ia viajar) tiveram lá os portugueses os "seus" Elvis
(Vitor Gomes e Fernando Conde), os seus Beatles (Os Sheiks) e a sua psicodelia-hippie
(Beatnicks). Mas tudo muito calcado nos modelos que seguiam, cantando em inglês,
sobre o amor - já que assim, não incomodavam ninguém. Os únicos que ousaram
incomodar, tocando na grande ferida da época (a Guerra Colonial) foram censurados,
claro (mas sem violência - menos mal): o Quarteto 1111, de onde saiu José Cid, autor
do disco 10.000 Anos Depois Entre Venus e Marte, indispensável a qualquer um que
diga gostar de rock progressivo.
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Vieram os capitães de abril e com eles as chaves para destrancar as portas que
separavam Portugal do resto da Europa. O punk logo começou a dar as caras, e ainda
hoje é um gênero com bastantes seguidores por lá. Mas até o começo dos anos 80 ainda
não havia estrutura para a indústria cultural e ainda se vivia uma certa ressaca
revolucionária. Os chamados "cantores de intervenção" como José Afonso e Sérgio
Godinho (para citar os mais consistentes) ocupavam lugar de destaque. Isso não
impediu que se começasse a semear aquilo que seria depois chamado de o "boom" do
rock português (que tal como aqui, aconteceu nos anos 80). Entretanto, criou-se uma
dicotomia, a meu ver, complicada: de um lado o teor mais político, revolucionário; de
outro, jovens vestindo roupas de couro que acabavam se preocupando mais em olhar
para a Europa do que para si mesmos.
Atenhamo-nos ao segundo caso. A new-wave "Portugal na CEE", primeiro
single do GNR, é bastante representativa disso. Trata do deslumbre que existia por
serem finalmente parte da Europa. Nenhum problema. Globalizar é bom, ao contrário
do que muitos dizem. E a geração do chamado "boom" da qual faz parte o GNR, o UHF
(com inspirações a The Doors) e Rui Veloso (tido como "pai" do rock português) fez
isso. Alargaram os horizontes da música pop, sem renegar a si mesmos. Olharam para
fora, mas cantavam o que viviam (a juventude é mais ou menos igual em toda parte, por
isso, os temas também não variavam muito) e na língua em que sentiam tudo aquilo
(embora a questão da língua, em alguns casos, estivesse mais ligada a uma lógica de
mercado do que artística).
Mas voltando um pouco ao calor pós-Revolução dos Cravos, houve uma
história, no mínimo, curiosa, e ilustrativa da maneira como hoje, muitos grupos
renegam até mesmo a língua portuguesa (haverá coisa mais pertencente a essência de
97
um povo do que sua língua?). O outro grande nome do "boom" foi o Heróis do Mar (que
acabou dando origem ao grupo português mais famoso mundo afora, o Madredeus).
Pedro Ayres Magalhães e seus amigos eram entusiastas de outra vertente pop muito em
voga nos anos 80: o new-romantic. E, como é sabido, são característicos do estilo os
tecladinhos, os sintetizadores e toda uma indumentária teatral evocando mitos e
tradições. Salteadores escoceses, no caso do Spandau Ballet. As grandes navegações e a
Cruz dos Templários, no caso dos Heróis do Mar. Pois bem, passados tantos anos em
um regime em que a tradição era tão exaltada, vocês podem imaginar que isso causou
problemas: foram acusados de neo-fascistas em um artigo de jornal, o que, obviamente,
causou furor.
É aqui entra o que eu vou chamar de "complexo de europeu". Por terem sido
submetidos de maneira tão ostensiva e por tanto tempo a um confinamento em suas
fronteiras e tradições, quando se viram diante do mundo, numa atitude altamente
compreensível, fecharam os olhos a suas origens, àquilo que poderia os diferenciar do
restante. O caso Heróis do Mar é o mais emblemático, até porque depois provou por a +
b que o que pode realizar o sonho de ultrapassar as fronteiras é (pelo menos essa é a
maneira mais simples) esse diferencial. Provou isso quando Pedro Ayres se tornou o
músico português mais conhecido em todo o mundo com o Madredeus, que ele próprio
diz que usa as mesmas matrizes, só que agora em formato acústico, que sempre usou em
sua música (antes do Heróis ele teve um grupo punk chamado Corpo Diplomático).
Esse "complexo de europeu" é o que justifica os Tédio Boys terem flopado na
década de 90. A banda de punkabilly, como eles próprios se intitulavam, nunca chegou
a sair verdadeiramente dos porões do underground. Se julgam incompreendidos em seu
país e tem como maior glória o fato (certamente louvável) de terem lançado discos nos
98
Estados Unidos e de terem tocado numa festa de aniversário de Joe Ramone a convite
do próprio. Mas sempre correndo por trilhos subterrâneos, o que é muito pouco para a
ambição que tinham. O Tédio Boys acabou e dele surgiram quatro bandas bastante boas:
Wraygunn, d3o, Bunnyranch e Parkinsons (estes agora radicados na Inglaterra). Todas
fazendo rock em inglês, em parte para tentar furar o mercado externo, em muito porque
dizem não conseguir sentir o rock em português. Esse sentimento parece ser comum aos
jovens músicos portugueses. Os rapazes do Fonzie têm o mesmo discurso em relação ao
seu emocore. E vão pelo mesmo caminho dos Tédio Boys: discos editados no Japão,
nos Estados Unidos e no Brasil. Talvez tenham mais sucesso na empreitada, visto que o
século XXI parece mais aberto à música não vinda dos eixos tradicionais (EUA e Reino
Unido) e as teias do underground são hoje mais fortes.
Poderia escrever um calhamaço só citando bandas que seguem esse mesmo
discurso. (Poderia citar montes de bandas independentes brasileiras também, que dizem
o mesmo... parece que é impossível a alguns ouvidos que a música pop soe bem em
outra língua que não o inglês.) Não quero com essa observação condenar os que usam a
língua de Shakespeare. O artista é, antes de tudo, livre para fazer o que bem entender.
Nem acho que reside na língua o principal problema de identidade musical de qualquer
banda. Quero apenas pontuar que enquanto fizerem música da mesma maneira que seus
ídolos fazem não vão alçar grandes vôos fora de sua terra. Por melhores que sejam. O
Silence 4, por exemplo, tornou-se um fenômeno a partir do verão de 98 e manteve-se no
top de vendas até a banda terminar. Era uma banda realmente muito boa. David Fonseca
honra as influências que tem. Lançaram o primeiro disco aqui no Brasil e ninguém ficou
sabendo. O disco esgotou, sabe deus como, e nunca repuseram os estoques. Não houve
promoção, o que talvez tivesse tornado o fim da história diferente - mas isso nunca
99
saberemos. O Coldfinger e o Gift têm álbuns magníficos. E estão na luta para emplacar
seus discos fora de Portugal. Acho provável que consigam. O público de música
eletrônica é bastante curioso. Mas nunca serão no mundo o que são em Portugal - onde,
talvez, pudessem até ser maiores.
Voltando a liberdade trazida pela Revolução dos Cravos, depois de exposto o
"complexo de europeu", que ela causou, não podemos deixar de ver também suas
benesses - que são infinitamente mais numerosas, felizmente. O próprio fato de os
artistas terem se aberto a novas influências (ainda que muitos estejam apenas as
reproduzindo, em vez de assimilá-las para criar algo novo, diferente) é resultado dessa
liberdade.
Imagino um mundo sem Revolução dos Cravos e não acho espaço para a luxúria
do Mão Morta, para a insanidade do Pop Dell Art. Não consigo ver reconhecida a
poesia feminista e libertária e as experimentações eletrônicas dos Três Tristes Tigres (e
conseqüentemente não ouço o disco do Mesa, que para mim é como uma continuação
do excelente trabalho dos Tigres, JP Coimbra como herdeiro do legado de Alexandre
Soares). Não teria visto emergir o monstro Ornatos Violeta (que infelizmente, teve vida
curta). Não vejo o Belle Chase Hotel, flertando, em português, em inglês e em francês,
com Chico Buarque e Fernando Pessoa na poesia de JP Simões. Não consigo conceber
Pedro D'Orey nos revelando Al Berto, com o Word Song. Também não enxergo o
encontro do Clã com Ségio Godinho. Não escuto nada vindo da periferia de Lisboa e do
Porto, dos afrodescendentes, retornados após a Guerra Colonial. Não há hip hop. Não há
o Sam The Kid. As fitas perdidas do Bullet não são encontradas. O caldeirão do Blasted
Mechanism não ferve. Nem me tranqüilizam as paisagens sonoras do Bypass ou do
Stoaways. Um mundo bastante triste, portanto.
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Trinta anos depois da Revolução isso tudo é possível. Minha aposta, agora que
as feridas do salazarismo estão cicatrizando, é que o "complexo de europeu" cada vez
mais ceda espaço a criação espontânea, livre de verdade. Como apontei acima, isso já
está acontecendo. Trinta anos depois de sepultadas as trevas do conservadorismo e da
tradição é hora de exumar o cadáver e ver se não há lá nada de bom que se aproveite.
Pode haver boas surpresas. Se para nada servir, que vasculhem ao menos na memória e
encontrem aquele espírito aventureiro e conquistador que moveu os portugueses há mais
de 500 anos. Há hoje na música tanto a ser explorado quanto havia naquele tempo nos
mares.
* Sem a pretensão de querer comentar toda a arte feita por nossos patrícios, pegamos a
música como exemplo para avaliar as implicações da Revolução dos Cravos no Portugal
moderno. Se querem uma desculpa que não a minha quase completa ignorância sobre as
outras artes lusas, tenhamos em conta "Grândola, Vila Morena", que serviu de senha
para a revolução. Uma música, e não um livro, um quadro, uma peça de teatro ou filme.
Mas que este artigo suscite a vontade do leitor em descobrir a recente (e interessante)
produção cultural na terra de Camões.
Publicado originalmente em abril de 2004, na revista eletrônica B*Scene
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Mitos, monstros e rotas alternativas da música portuguesa
Chega a ser irônico, mas, para muitas pessoas, pensar em música portuguesa
ainda é lembrar de Amália Rodrigues. A saudade, a melancolia... o fado. Mas o mundo
gira e, claro, a lusitana roda. O fado? Vai bem. Perguntem aos novos fadistas: a Mariza,
ao Camané e a Mísia. Como o mar há mais de cinco séculos, a música é território vasto
e com muito a ser explorado.
Os instrumentos para desbravar novos horizontes podem ser os triviais baixo,
guitarra e bateria. Nos anos 80, duas bandas foram os "Vascos da Gama" no cenario
musical português. Quando o rock ja havia deixado de ser uma brincadeira de moleques
rebeldes para dar muito dinheiro a senhores engravatados, duas figuras rebelaram-se
contra o status quo. Do norte do país, acena a Mao Morta de Adolfo Luxúria Canibal.
Sexo, violência e outros tabus chocam a opinião pública embalados por canções
vigorosas, lascivas e soturnas. Em Lisboa, emerge a irreverência pop dell Arte de João
Peste. De incompreendidos a importantes bandas portuguesas, as duas pavimentaram o
caminho para grupos como o Belle Chase Hotel, que mistura poesia, tango, MPB,
música de cabaré e rock.
Mudam os tempos, e os instrumentos também. Cada vez mais a eletrônica serve
aos que procuraram novidade, e surgem projetos que encaram a tecnologia como parte
do processo criativo e não como seu fim. Gente que alia programações a guitarras e
baixos, criando atmosferas densas, como o The Gift. Outros que constroem climas
jazzísticos sublimes juntando a maquinaria delicadas linhas de piano e baixo, como o
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Coldfinger. Ou então os que injetam sofisticação e abusam de texturas em canções pop
de efeito devastador, como o Mesa.
Por isso, é irônico que a música portuguesa esteja fadada a ser associada as belas
e tristes músicas interpretadas por Amália. Soa como se todos acreditassem no tal
destino, e ele tivesse reservado aos portugueses apenas uma diva de voz e olhos
profundos. Todos, menos os portugueses.
O fado, novamente, vai muito bem. Ele é como o Tejo, e como diz o poema do
mestre Caeiro, não é mais belo que os rios que correm pelas outras aldeias.
Publicado originalmente em junho de 2004, na revista Jungle Drums
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