perry rhodan - 1º ciclo "a terceira potência - volume v - o supercrânio - p- 21-25.pdf
Post on 09-Aug-2015
121 Views
Preview:
DESCRIPTION
TRANSCRIPT
1
1º CICLO - A TERCEIRA POTÊNCIA
VOLUME 4
P-16 - 20
1º CICLO - A TERCEIRA POTÊNCIA
VOLUME 5
P-21 - 25
2
O Herdeiro do
Universo
Na selva do Mundo Primitivo
Volume 24
A Fuga de Thora
Volume 22
O Supercrânio
Volume 16
A Guerra Atômica Que Não Houve
Volume 21
Chave Secreta X
Volume 23
O Herdeiro do
Universo
O Herdeiro do
Universo
O Herdeiro do
Universo
O Herdeiro do
Universo
3
A Guerra Atômica Que Não Houve
A Fuga de Thora
Chave Secreta X
Na Selva do Mundo Primitivo
O Supercrânio
1º Ciclo – A Terceira Potência
Volume 05
Episódios: 21 - 25 de 49
4
Nº 21
De Kurt Mahr Tradução
Richard Paul Neto Digitalização
Vitório Revisão e novo formato W.Q. Moraes
Nenhum exército equipado com armas terrenas convencionais, por maior que
seja, pode enfrentar os recursos da antiquíssima técnica arcônida. Perry Rhodan
sabe disso perfeitamente, e não se preocupa com os remanescentes de uma divisão
espacial comandada pelo general Tomisenkow, que investira obstinadamente
contra a fortaleza de Vênus. O que causa muita preocupação ao chefe da Terceira
Potência é a evolução mais recente da política na Terra.
Com sua permanência no planeta Peregrino, Rhodan perdeu mais de quatro
anos. Agora tem de regressar com a maior urgência ao seu mundo, para que não
haja a guerra atômica...
5
I
Vista da nave capitania Wladislav Kossygin, a frota
se parecia com duas fileiras de pérolas reluzentes,
cuidadosamente enfiadas em barbantes, a distâncias
sempre iguais.
A frota se deslocava sob o brilho reluzente do Sol. Os
pontos luminosos que representavam as naves,
projetados nas telas da Kossygin, emitiam uma luz muito
mais intensa que a das estrelas destacadas contra o céu
negro.
O major Pjotkin se esforçou para
reprimir o orgulho que essa visão
ameaçava provocar em sua mente.
Era bem verdade que, comparados
com outros veículos que povoavam o
espaço, essas naves não passavam de
patos desajeitados e de longas asas.
Uma vez fora do âmbito da gravitação
terrestre, possuíam apenas uma
reserva de radiações que lhes
permitiria realizar uma manobra de
desaceleração antes de atingir a órbita
de Vênus. O resto, o mais difícil do
pouso propriamente dito, ficaria a
cargo das asas. A aterrissagem seria
aerodinâmica. Tinham que contar com
uma perda de cinco por cento. Como a
frota possuísse duzentas naves, dez
jamais chegariam ao solo de Vênus;
ou atingiriam o mesmo sob a forma de
um meteorito incandescente. Eram
estas as previsões dos cientistas.
O resultado também poderia ser
diferente, segundo Pjotkin. Talvez fosse dez por cento.
A frota levava reforços para a expedição do general
Tomisenkow. Os reforços consistiam principalmente
num suprimento de aço, uma vez que, depois do pouso,
as naves não mais estariam em condições de sair de
Vênus. Não lhes restaria qualquer reserva de radiações.
Juntamente com as quinhentas naves de Tomisenkow,
aguardariam a chegada de outra frota de reforço com
uma carga de combustível, que voltaria a colocar os
patos metálicos em condições de voar.
Pjotkin procurou calcular se mil naves seriam
suficientes para reabastecer as quase setecentas que se
encontrariam em Vênus. E se fossem? Nesse caso, em
vez de setecentas naves, mil ficariam retidas no planeta
coberto de selva.
Sessenta por cento da tripulação da frota de Pjotkin
era formada por mulheres. Pjotkin ficava se indagando o
que os planejadores teriam tido em mente ao comporem
dessa forma o pessoal conduzido pela frota. As mulheres
eram especialistas: médicas, técnicas, biólogas.
Pretenderiam instalar em Vênus algo parecido com
uma base permanente? Uma base que se tornasse
independente da Terra em todos os sentidos, inclusive no
campo biológico?
Sem dúvida Pjotkin teria encarado sua missão com
maior seriedade se soubesse que, para Tomisenkow e sua
expedição, o êxito da mesma representava a
sobrevivência. Na posição atual dos astros — o Sol se
interpunha entre os dois planetas — não havia qualquer
comunicação pelo rádio entre Vênus e a Terra. Em nosso
planeta ninguém sabia que Perry Rhodan, chefe da
Terceira Potência e comandante da supernave Stardust-
III, havia dispersado a expedição de Tomisenkow pelos
quatro cantos de Vênus e privado a mesma de quase
todos os recursos técnicos.
* * *
Naquele mesmo instante, a Stardust-III se encontrava
em sua viagem de regresso de Vênus à Terra. As
componentes motrizes da enorme nave esférica
funcionavam a plena potência e, dentro de poucos
minutos, aceleraram a nave a
um ponto extremamente
elevado. Os imensos campos
protetores e de absorção de
choques fariam com que
qualquer quantidade de matéria,
desde a minúscula partícula
cósmica até a rocha
interplanetária, se desfizessem
sob o efeito das radiações antes
de poderem se tornar perigosas
à nave.
Rhodan não apreciava esse
tipo de voo, pois, se utilizando
do sistema de micro-ondas, não
teria chances para uma rápida
localização de qualquer objeto
que cruzasse seu caminho. E o
rastreamento estrutural, que
funcionava com base em
princípios pentadimensionais,
tinha seu campo de detecção
situado a partir de uma unidade astronômica, ou seja,
cento e cinquenta milhões de quilômetros. Era bem
verdade que mesmo dentro desse raio o rastreamento era
possível; mas perdia todo o sentido, já que, numa
distância tão reduzida, o sistema de observação por
micro-ondas funcionaria praticamente com a mesma
rapidez.
Por isso a Stardust-III se deslocava numa espécie de
voo cego. Nada poderia lhe acontecer, já que os campos
protetores lhe forneceriam proteção ininterrupta. Mas ai
de quem se pusesse em seu caminho.
* * *
Na tela do radar da Kossygin surgiu uma estranha
mancha verde. Aparecera naquele instante, mas, antes
que o operador de radar desse pela sua presença, já havia
percorrido a quarta parte do diâmetro da tela.
Num movimento treinado milhares de vezes, a mão
do homem se deslocou para baixo e comprimiu a
superfície vermelha da chave de alarma. Sereias uivaram
e o telecomunicador transmitiu o alarma às duzentas
naves que compunham a frota.
Subitamente a voz de Pjotkin soou no alto-falante.
— O que houve radar?
— Objeto desconhecido aproxima-se da frota.
Velocidade... quase igual à da luz!
O operador ouviu a respiração pesada de Pjotkin.
— Que setor de nossa frota está sendo ameaçado?
Fale logo, homem!
— O centro.
Personagens Principais deste episódio:
Perry Rhodan — Chefe da Terceira
Potência.
Coronel Freyt — Representante de Perry
Rhodan na Terra.
Capitão Welinskij — Comandante de um
esquadrão de caças.
Major Deringhouse — Que dá provas de
sua qualidade de sabotador e agente secreto.
Fedor A. Strelnikov — Um novo ditador.
Marechal Sirov — O braço direito de
Strelnikov.
6
A voz de Pjotkin se tornou mais fraca quando ele se
voltou para outro microfone. O operador de radar ouviu
as ordens por ele transmitidas:
— Corrigir rota. Toda força para bombordo.
Imediatamente.
O ponto verde quase havia percorrido metade da tela
do radar. Aproximava-se inexoravelmente do centro
marcado em vermelho, que representava a posição do
observador.
O operador de radar conteve a respiração. Se a
correção não fosse completada imediatamente...
Mais dois segundos!
O homem cerrou os olhos e se agarrou ao painel,
aguardando o choque iminente.
Não houve o choque esperado. A morte surgiu em
forma de um raio azul e ofuscante, que transformou a
Kossygin num enxame de moléculas e átomos que se
disseminaram pelo espaço.
O operador de radar não percebeu nada. Uma morte
que surge com a velocidade da luz nem chega a causar
uma impressão dolorosa.
* * *
Na última fração de segundo, Rhodan fora avisado
sobre a fileira dupla formada pelas duzentas naves. Num
gesto instantâneo, levantou o braço para manobrar algum
dispositivo de comando que desencadeasse uma manobra
salvadora.
Mas era apenas um movimento reflexivo. Ao se dar
conta disso, baixou o braço; a Stardust-III já deixara para
trás a frota inimiga.
Imediatamente a nave executou uma manobra de
frenagem, utilizando toda a potência de suas
componentes motrizes. Uma desaceleração máxima —
que representava o valor mais elevado que os
neutralizadores poderiam absorver — atingiu em poucos
minutos, não uma imobilização absoluta, mas uma
redução de velocidade que permitia a observação ótica
direta da frota parcialmente destroçada.
O quadro que se apresentava nas telas da Stardust-III
era consternador. A fileira dupla de pérolas cintilantes,
que o major Pjotkin observara meia hora antes, estava
esfacelada. Impelidas pelo pânico, as naves se
dispersavam em todas as direções. Apesar disso, ainda se
percebia nitidamente a abertura que a Stardust-III fizera
naquele front.
Rhodan mandou efetuar a sondagem radiofônica.
Pretendia escutar as mensagens trocadas entre as naves.
Reconhecera seu formato e por isso sabia que se tratava
de uma frota do Bloco Oriental. Apesar disso, prestaria
socorro imediato àqueles homens, se não conseguissem
se arranjar por si.
Ouviu os informes expedidos das várias naves. O
tradutor automático traduziu as mensagens russas para o
inglês.
Rhodan ficou sabendo que, no início, a frota era
composta de duzentas naves. Trinta e quatro delas —
entre elas a nave capitania, que trazia a bordo o major
Pjotkin — haviam sido destruídas; evaporaram-se sob o
impacto dos campos protetores da gigantesca nave.
Um coronel assumiu o comando. Através de uma
série de manobras complicadas voltou a unir as naves
numa formação ordenada. Essas manobras consumiram
uma quantidade considerável de material radiante. Os
remanescentes da frota teriam dificuldades em reduzir a
velocidade a um limite que não oferecesse perigo quando
atingissem a órbita de Vênus.
Todos os observadores de radar da frota haviam
percebido a causa do desastre poucos segundos antes da
catástrofe, e agora viram o ponto verde se afastar com
velocidade moderada.
Rhodan ouviu uma série de conjecturas sobre o que
seria aquele ponto. Uma única pessoa teve a ideia de que
poderia se tratar de um veículo da Terceira Potência, mas
essa ideia foi logo abafada pelo comandante da frota.
Rhodan compreendeu a manobra. O coronel se veria
diante de um problema insolúvel se confessasse que o
inimigo dispunha de veículos capazes de atravessar uma
frota compacta de naves sem sofrer o menor dano.
Percebia-se que as cento e sessenta e seis naves que
restavam estavam em condições de prosseguir viagem
sem auxílio de fora. Face à escassez de matéria radiante,
não lhes restava outra alternativa senão prosseguir pela
rota em que já se encontravam: a de Vênus.
A Stardust-III deixou-as entregues ao seu destino e
reiniciou sua viagem.
Rhodan, no entanto, lamentou a destruição das trinta
e quatro naves espaciais. Ainda mais que o encontro da
Stardust-III com a frota do Bloco Oriental só podia ser
atribuído exclusivamente a um acaso por demais infeliz.
Era extremamente improvável que dois ou mais objetos,
que se deslocassem pelo espaço em trajetórias mais ou
menos arbitrárias, viessem se encontrar no mesmo ponto;
muito mais improvável do que duas pedrinhas atiradas
por pessoas diferentes virem a se chocar.
II
12 de junho.
Moscou.
Dez horas da manhã, tempo local.
O Estado-Maior das forças armadas do Bloco
Oriental chegara à conclusão de que o ataque aos
principais centros militares e industriais dos dois outros
blocos de nações e da Terceira Potência teria de ser
marcado para um dos próximos dias.
As condições nunca haviam sido tão favoráveis. O
Bloco Oriental instalara sua base em Vênus, e uma
poderosa frota com reforços estava a caminho desta base
— não se desconfiava da sorte lamentável de
Tomisenkow, tampouco da catástrofe que atingira a frota
no meio do caminho. Tudo indicava que a Terceira
Potência não tomara conhecimento das modificações
políticas determinadas pelo novo curso de ação do Bloco
Oriental, ou não se interessava pelas mesmas. No início
temia-se uma intervenção dos homens de Galáxia, mas
esta não se verificara.
Provavelmente isso seria devido ao fato de que Perry
Rhodan, chefe da Terceira Potência, no momento não se
encontrava na Terra, nem nas proximidades da mesma.
Em Moscou não se sabia nada sobre o paradeiro de
Rhodan.
A grande conferência do Estado-Maior foi realizada
7
no auditório de uma universidade. Todos estavam de
acordo sobre os princípios pelos quais se orientaria a
ação, e a ideia generalizada de que só faltava discutir
alguns detalhes da execução do plano encheu os generais
de certa euforia.
Um marechal búlgaro apresentou sua tese do cerco
estratégico da Federação Asiática. Foi quando um
ordenança entrou no recinto com o passo tranquilo, mas
com uma expressão de desassossego no rosto. Trazia um
papel na mão e se dirigiu ao marechal Sirov que, sentado
numa poltrona do centro da primeira fileira, dirigia a
conferência.
Sirov passou os olhos pelo papel. Os que se
encontravam mais próximos viram que franziu a testa,
levantou os olhos e encarou o marechal búlgaro até que o
mesmo estacou em sua fala. Sirov fez um gesto, se
levantou e, com o papel na mão, se dirigiu à tribuna que
o professor costumava usar para fazer suas preleções.
Espantado, mas com a maior solicitude, o búlgaro lhe
cedeu o lugar.
Sirov iniciou sua fala sem qualquer introito:
— Vou ler as notícias vindas de todas as partes do
país, que a central recebeu há poucos minutos.
— Primeiro: Às nove horas e trinta e oito minutos,
tempo de Moscou, um posto de observações
meteorológicas — fez uma pausa significativa, para que
todos compreendessem que, sob o disfarce do posto, se
ocultava um objeto muito mais importante — situado em
Nowaja Sumlja, uma ilha da região ártica, foi arrancado
do solo e carregado por um ciclone. O único
sobrevivente encontrou um radiotransmissor intacto e
enviou a notícia. Informa que, poucos segundos antes do
início do fenômeno súbito e inesperado, a escuridão
desceu sobre a Terra, como se a noite polar tivesse
irrompido com uma antecedência de quatro meses.
“Segundo: Nowosibirsk, oito horas e cinquenta e um
minutos, tempo de Moscou. Um tipo de eclipse solar cai
sobre a Terra. A base de foguetes situada nas
proximidades da cidade é atacada por uma estranha
ausência de gravidade. Os homens saem flutuando pelo
ar, as rampas de disparo se soltam de suas bases, os
foguetes são tangidos pela tormenta que desaba de
repente”.
“Terceiro: Molotov, Montes Urais, nove horas e
quarenta e quatro minutos, tempo de Moscou. Uma coisa
inexplicável obscurece o céu por instantes, provoca um
ciclone de violência inacreditável e deixa atrás de si uma
faixa de terra calcinada com cerca de um quilômetro de
largura. Todas as instalações de mineração e
processamento de minérios das usinas Sergej Iljuchin
situadas acima do solo foram destruídas.”
Sirov fez uma pausa. Sentiu certa satisfação ao
perceber que não era a única pessoa que tinha ficado
abalada com essas notícias. O pavor e o desânimo se
desenhavam em todos os rostos.
— A explicação destas ocorrências — prosseguiu em
tom áspero — provavelmente está na quarta notícia, que
vou ler.
“O posto de radar da península de Taimyr, situada no
norte da Sibéria, informa ter localizado um objeto
esférico de cerca de oitocentos metros de diâmetro, que
se desloca sobre o território de nossos Estados nas mais
variadas direções e altitudes; ao que tudo indica está
sendo dirigido”.
“Todos nós estamos lembrados dos fenômenos
ligados à súbita ausência de gravidade, registrados na
época em que a Terceira Potência começou a se
estabelecer no deserto de Gobi. Portanto, sabemos quem
é o inimigo que temos diante de nós. Não conhecemos
todas as armas de que ele dispõe, mas estamos dispostos
a lançar nossas armas contra ele. O tempo das discussões
passou; chegou a hora de agir.”
* * *
12 de junho.
Karaganda.
Cerca de 14 horas, tempo local.
Há meia hora os aparelhos da 23a esquadrilha de
caças estão em regime de rigorosa prontidão.
Fala-se num “veículo aéreo inimigo muito grande”
que, pelo que se ouve se diverte em cruzar os céus do
país em todas as direções, deixando atrás de si a
confusão e a destruição.
Os pilotos estão sentados nos seus aparelhos, com as
carlingas abertas. Pelo que se ouve, o inimigo
desenvolve uma velocidade extraordinária. Uma vez
localizado o veículo inimigo, os aviões terão que decolar
imediatamente.
O objetivo é a destruição do inimigo com todos os
meios disponíveis.
* * *
Reginald Bell, companheiro de Rhodan desde os dias
do primeiro voo humano à Lua, dirigia a Stardust-III sem
recorrer ao piloto automático. Numa tela fixada acima de
sua mesa de comando via-se o mapa do hemisfério norte
da Terra. As indicações de rota transmitidas por Rhodan
chegavam a ele através de setas e pontos vermelhos
projetados nesse mapa.
Rhodan fez o possível para poupar vidas humanas.
Sabia que a chamada revolução, que há algum tempo
arrancara o Bloco Oriental do seio do grupo das
superpotências que buscavam a distensão, só era
promovida por umas poucas pessoas ambiciosas. Os
quatrocentos milhões de pessoas que habitavam essa
região da Terra não podiam ser responsabilizados pela
reviravolta.
Mas estavam em guerra, e nem mesmo o mais
humano dos comandantes conseguiria evitar toda e
qualquer perda de vida.
Rhodan sabia quais eram os pontos vulneráveis do
inimigo. Seus agentes estavam espalhados pelos quatro
cantos da Terra, e os prisioneiros capturados em Vênus
tiveram de lhe dar as informações que desejava, quer
quisessem, quer não.
Na região de Baku, a Stardust-III acabara de
inutilizar uma usina de reatores que supria de energia
elétrica as instalações técnico-militares do litoral do Mar
Cáspio.
Rhodan introduziu no mapa projetado uma seta
branca que apontava para a Sibéria Ocidental e colocou
um ponto vermelho sobre a cidade de Karaganda.
Imediatamente Bell mudou de rota.
* * *
— Localização a duzentos e dez graus! — berrou a
voz nos fones de ouvido. — Altitude: treze mil metros.
Pista livre para a decolagem de todos os aparelhos.
8
A base aérea de Karaganda era uma das mais
modernas do Bloco Oriental. O dimensionamento
racional das pistas permitia a decolagem simultânea de
toda uma esquadrilha de caças.
O capitão Welinskij, um homem de descendência
polonesa, comprimiu o botão que fechava a carlinga e
imprimiu a potência máxima ao motor. Com a ordem de
decolar, os calços das rodas foram afastados
automaticamente. A máquina rolou pela pista, aumentou
de velocidade e subiu muito antes de atingir o fim da
pista.
Welinskij assumiu o comando da esquadrilha.
— Virar para duzentos e dez graus. Altitude de
dezoito mil metros.
Não era recomendável que um piloto de caça atacasse
da mesma altitude ou mesmo de baixo um adversário
superior em forças. Uma diferença de altitude de cinco
mil metros aumentaria consideravelmente as chances que
tinham Welinskij e seus companheiros de causar algum
dano ao inimigo.
Os aviões de caça dispunham de dois mecanismos
propulsores inteiramente independentes: um reator de
jato, acionado por ocasião da decolagem, que levaria o
aparelho rapidamente à altitude desejada, e um dos
mecanismos convencionais de turboradiações, que
permitiria, em voo horizontal, uma velocidade de mach
4, ou seja, uma velocidade equivalente a quatro vezes a
do som.
Os caças estavam equipados com foguetes e canhões
automáticos, rigidamente montados na estrutura. Não
haveria caça mais eficiente na Terra, se... há alguns anos
o primeiro astronauta americano não tivesse encontrado
na Lua os representantes de uma raça estranha,
investindo-se na herança de suas conquistas tecnológicas.
— Chaminé para todos os limpas-chaminés! Chaminé
para todos os limpas-chaminés! O veículo inimigo
desloca-se a uma velocidade de mach 15, de duzentos e
dez em direção a zero trinta. Dentro de quinze segundos
sobrevoará a cidade. Limpas-chaminés, vocês já podem
ver o inimigo. Não aguardem nova ordem de ataque.
Confirmem!
Logo se ouviu a voz do comandante da esquadrilha:
— Limpas-chaminés para chaminé. Vemos o inimigo
e atacaremos imediatamente. Fim.
Dirigindo-se aos pilotos, prosseguiu:
— Preparem-se, rapazes! Ação individual. Fim.
Welinskij observou o inimigo.
Viu uma parede tremeluzente de fogo surgir acima do
horizonte. De início era pequena e bonita; seu aspecto,
visto daquela altura, era mais ou menos o de um incêndio
na estepe.
Mas cresceu numa velocidade espantosa, parecendo
se desprender do solo, e se transformou numa esfera
ofuscante. Com um movimento automático, Welinskij
colocou os vidros antiofuscantes diante dos óculos de
proteção.
— Meu Deus! — murmurou para si mesmo. —
Falaram em oitocentos metros! Aquilo ali tem pelo
menos dez quilômetros de diâmetro.
Não teve tempo para refletir. Viu a esfera de fogo se
aproximar vertiginosamente. Supôs que fosse o inimigo,
ou que este se escondesse no seu interior. Disparou todos
os foguetes de uma só vez. Mas, de um instante para
outro, teve dúvidas se os pequenos projéteis com suas
cargas explosivas nucleares seriam capazes de causar
qualquer dano àquela bola de fogo.
Dirigiu o avião para o alto. Cerrou os olhos, pois,
apesar do vidro antiofuscante, a esfera fez com que lhe
ardessem às conjuntivas.
Welinskij foi mais feliz que qualquer dos outros
pilotos. Conseguiu manobrar seu aparelho de tal forma
que apenas roçou nos gigantescos campos protetores da
Stardust-III. O avião se esfacelou, e a força do impacto
fez com que o ejetor arremessasse Welinskij mais
algumas centenas de metros para o alto. Mas, quando
começou a descer, o paraquedas se abriu, foi atingido
pelo ar aquecido e fez com que o capitão balouçasse em
direção ao solo, são e salvo.
Os demais aparelhos se precipitaram para cima da
bola de fogo. Evaporaram-se nas nuvens causadas pela
explosão dos foguetes que eles mesmos haviam
disparado poucos segundos antes.
A luta — se é que aquilo podia ser chamado de luta
— durou exatamente cem segundos, desde o instante em
que surgiu a Stardust-III. Quando chegou ao fim, a 23a
esquadrilha de caças deixara de existir.
Só restava um vestígio insignificante: o capitão
Welinskij, que, atingido pelo redemoinho causado pela
Stardust-III, foi atirado a uma distância tal que pôde se
livrar da radiatividade desencadeada pelos foguetes.
Inconsciente, continuava em sua descida.
O destino poupara aquele homem para que pudesse
contar algo aos homens que lhe haviam confiado a
missão.
Mas às vezes o destino parece bastante míope. Se
Welinskij contasse o que presenciara, seria considerado
um idiota e encaminhado a um psiquiatra.
Enquanto isso acontecia, a fatalidade pôde se abater
sobre a Humanidade.
Perry Rhodan observava a aproximação da
esquadrilha de caças com um rosto que parecia
petrificado. Sabia perfeitamente o que aconteceria se os
caças não mudassem de rumo imediatamente.
A Stardust-III deslocava-se a uma velocidade que
equivalia a quinze vezes a do som. A uma velocidade
daquelas, o impacto dos campos protetores, cujo
diâmetro correspondia a dez vezes o da nave, fazia com
que as moléculas de ar entrassem em incandescência ou
se ionizassem. O resultado era aquela bola de fogo de
quase dez quilômetros de diâmetro, cuja visão o capitão
Welinskij jamais esqueceria.
Os foguetes disparados pelos caças detonaram na
periferia do campo protetor; no interior da nave não
chegaram sequer a provocar um tremor, por mais leve
que fosse. Mas os pilotos de caça voaram atrás dos
projéteis por eles disparados, causando sua própria
destruição.
A Stardust-III se manteve na rota, em direção à
cidade de Karaganda. Rhodan aproveitou a oportunidade
para, pela primeira vez durante aquela missão, fazer uso
de uma arma psicológica.
* * *
A alta oficialidade da base aérea de Karaganda-Leste
ficou com os rostos cadavéricos ao tomar conhecimento
da destruição total da 23a esquadrilha de caças.
Que inimigo seria aquele?!
A Stardust-III sobrevoou a cidade com velocidade
9
reduzida, produzindo uma tempestade que, em
comparação às que haviam sido desencadeadas em
outros lugares, podia ser chamada de pouco intensa. As
rajadas chegaram à intensidade onze, mas não
produziram qualquer dano à cidade ou à base.
Houve, porém, um fato muito mais interessante, a
leste da cidade, a imensa nave interrompeu sua viagem,
se imobilizou por um instante e começou a subir. Numa
altitude de quarenta mil metros voltou a se imobilizar.
Parecia pendurada no céu, causando pavor aos habitantes
de Karaganda, que não viam mais o sol, e servindo de
estímulo aos oficiais da base de Karaganda-Leste.
— Vamos atirar! — sugeriu um deles. — Devíamos
disparar todos os foguetes ao mesmo tempo.
A sugestão não foi aceita. Para causarem algum
efeito, os foguetes deveriam ser equipados com cargas
explosivas nucleares. E o comandante da base achou uma
temeridade disparar uma salva de quase cem projéteis
desse tipo na direção de um objetivo a apenas quarenta
mil metros de altura, isto é, praticamente por cima da
cabeça dos habitantes da cidade.
Todavia, o general de brigada Chandikarh se declarou
disposto a disparar um único foguete contra a Stardust-
III.
— Quero que a equipe técnica observe a explosão —
disse. — Talvez o fenômeno permita alguma conclusão
sobre a forma pela qual podemos atacar o inimigo.
Todos acharam a sugestão bastante razoável. O
disparo do foguete foi preparado como se fosse uma
experiência difícil, e marcado para as quinze horas e
trinta minutos, tempo local, a fim de que a equipe técnica
tivesse tempo para instalar seus instrumentos de
observação.
— Procure verificar a altura da explosão, fotografe o
fenômeno, meça a intensidade luminosa e as emanações
radiativas — ordenou Chandikarh. — Depois me diga o
que acha de tudo isso.
Quinze horas.
Sentado na cantina com seus oficiais, Chandikarh
tamborilava nervosamente com os dedos, esperando que
os últimos minutos passassem. A Stardust-III continuava
imóvel. Mas Chandikarh receava que reiniciasse a
viagem antes que pudessem realizar a experiência
programada.
* * *
Às quinze horas e três minutos, hora local, Perry
Rhodan pôs a funcionar o grande projetor mental. Um
enorme campo de influência hipnótica envolveu a cidade
de Karaganda e a base de Karaganda-Leste.
* * *
Às quinze horas e três minutos, dúvidas começaram a
surgir na mente do general Chandikarh: valeria a pena
realizar a experiência? Ainda às quinze horas e três
minutos chegou à conclusão de que devia ser suspensa.
Às quinze horas e quatro minutos, os membros da
equipe técnica começaram a sacudir a cabeça, pois já não
entendiam as ordens de Chandikarh. Ao mesmo tempo,
porém, se tornou perceptível a sensação generalizada de
alívio pelo fato de que não teriam mais de atirar contra o
inimigo.
Às quinze horas e cinco minutos, Chandikarh disse
aos seus oficiais:
— Sejamos francos, senhores. O que temos para opor
a um inimigo destes? Ele espalhou o pavor e a
devastação em todo o país; e isso, ao que tudo indica,
com uma única nave espacial. O que será de nós no dia
em que o inimigo lançar mão de duas ou três naves
dessas, ou mesmo de uma esquadrilha?
Um major relativamente jovem o interrompeu,
falando alto:
— Qualquer um pode adivinhar general. Nós mesmos
seremos destruídos, junto com tudo que possuímos, antes
que tenhamos tempo para dar ordem de abrir fogo.
Outros oficiais manifestaram sua concordância em
altos brados.
Chandikarh acenou a cabeça.
— Vamos redigir uma resolução — sugeriu. — Toda
a oficialidade da base de Karaganda-Leste propõe ao
Conselho Supremo do Bloco Oriental a cessação
imediata da resistência contra este inimigo e o início de
negociações. A experiência pela qual acabamos de passar
fez com que constatássemos que seria uma
irresponsabilidade continuar a luta e provocar o inimigo.
Estamos convencidos de que o Conselho Supremo,
mesmo a contragosto, também há de reconhecer que nos
defrontamos com alguém contra o qual, com os recursos
de que atualmente dispomos nada podemos.
As palavras de Chandikarh foram recebidas com
aplausos. O texto da resolução era relativamente
moderado. As ideias que lhe andavam pela cabeça eram
bem diferentes. “Façam as pazes com a Terceira
Potência, seus cabeças de vento”, assim deveria ser o
texto. Mas Chandikarh acreditava que a opinião dos
outros oficiais não tivesse sofrido uma transformação tão
radical como a sua; por isso se contentou com a redação
mais suave.
Meia hora depois, o texto foi divulgado na cidade,
onde provocou manifestações entusiásticas de apoio. A
reação deixou Chandikarh perplexo e fez com que ele
vencesse o constrangimento que sentia em transmitir o
texto para Moscou.
Hás quatorze horas, tempo de Moscou, o Estado-
Maior e o Conselho Supremo, reunidos na capital do
Bloco Oriental, estavam informados sobre a opinião que
subitamente passou a reinar em Karaganda. Palavras
duras foram proferidas; chegou-se a falar em motim.
Ficou decidido que não se tomaria conhecimento da
resolução, e que alguns homens do serviço secreto
seriam enviados a Karaganda.
Era de admirar, mas, ao que parecia ninguém estava
compreendendo toda a gravidade da situação. Era bem
verdade que ninguém contestava o fato de que o inimigo
contava com recursos técnicos mais avançados. Mas,
segundo se argumentava, um único veículo inimigo só
poderia estar num lugar de cada vez. Se a Terceira
Potência acreditava que bastava fazer cruzar uma única
nave sobre o território do Bloco Oriental, provocando as
maiores tolices para obrigar essa superpotência, armada
até os dentes, a dobrar os joelhos, estava redondamente
enganada.
* * *
Perry Rhodan acompanhou os acontecimentos que se
desenrolavam em Karaganda e Moscou, na medida em
que seus instrumentos de observação o permitiram. Não
se surpreendeu com nada. A mudança de opinião em
Karaganda era inevitável, já que o território da cidade se
encontrava sob os efeitos do projetor mental. Por outro
10
lado, os homens do Estado-Maior de Moscou não seriam
dignos do posto se, a essa altura, já entregassem os
pontos.
Às dezesseis horas, tempo de Karaganda, o major
Deringhouse — um jovem desajeitado e impetuoso que
dominava o russo graças ao treinamento hipnótico e era
um dos melhores elementos de que Rhodan dispunha —
saiu da Stardust-III num traje transportador arcônida. O
campo de deflexão do traje fez com que Deringhouse se
tornasse invisível, e o poderoso neutralizador
gravitacional suavizou sua descida. Deringhouse venceu
os quarenta mil metros que o separavam do solo em vinte
minutos. Enviou a Rhodan o sinal de OK convencionado
através do hipertransmissor, para não assumir qualquer
risco.
Depois disso, a Stardust-III pôs-se em movimento,
permitindo que, depois de uma interrupção de mais de
uma hora, o sol voltasse a brilhar no céu de Karaganda.
Antes disso, o projetor mental fizera com que a mudança
de opinião dos civis e militares de Karaganda fosse
protelada. O condicionamento pós-hipnótico só exigia
um aumento de potência de quarenta por cento em
comparação com a irradiação hipnótica instantânea.
A Stardust-III dispôs-se a cumprir seu primeiro
objetivo: inutilizar o potencial militar do inimigo.
* * *
A voz do marechal Sirov não exprimia a menor
reverência. Fedor A. Strelnikov, membro e secretário do
Conselho Supremo, a quem essa reverência seria devida,
parecia não sentir falta dela.
As últimas notícias eram tão estranhas que ninguém
se preocuparia com questões de etiqueta.
— Karaganda, Chulba, Tchyrgaki, Irkutsk, Tchita,
Blagoviechtchensk — murmurou Strelnikov, perturbado.
— Está notando alguma coisa?
Em vez de responder, o marechal Sirov pegou uma
régua e colocou-a sobre o mapa. Se as cidades de
Karaganda e Blagoviechtchensk fossem ligadas por uma
reta, as de Chulba, Tchyrgaki, Irkutsk e Tchita ficariam
nessa reta ou a poucos quilômetros da mesma.
— As resoluções são parecidas, até no texto —
prosseguiu Strelnikov. — Pede-se o fim da atividade
armamentista, o início de negociações com a Terceira
Potência, o restabelecimento das discussões com os
governos dos outros blocos com o objetivo de criar um
governo único de toda a Terra.
Levantou os olhos do papel que segurava.
— O que acha disto, marechal?
Sirov deu de ombros.
— O senhor deve achar alguma coisa — insistiu
Strelnikov.
Sirov abriu a boca para dizer alguma coisa. Mas logo
voltou a fechá-la e fez um gesto de contrariedade.
— O que é? — indagou Strelnikov.
Sirov apontou para o mapa.
— Parece que alguém voou pelo trajeto Karaganda—
Blagoviechtchensk e hipnotizou todo mundo. É a única
explicação que me ocorre. Se achar que é uma tolice, não
se zangue. O senhor fez questão de que eu dissesse.
Strelnikov não se zangou.
— Acredita que o inimigo dispõe de recursos como
este? — prosseguiu nas suas perguntas. — Acha que lhe
basta sobrevoar nosso território uma única vez para
desencadear, dentro de poucas horas, uma revolução de
que participem mais de quatrocentos milhões de pessoas?
— Vejo-me forçado a admitir esta possibilidade —
respondeu Sirov, passando a mão pelo mapa.
Em sua mente prolongou a linha até o litoral do
estreito dos Tártaros, que separa a Sibéria da ilha da
Sacalina. Qual era a cidade situada no prolongamento da
linha?
Komsomolsk.
Strelnikov seguiu seu olhar.
— Está pensando em Komsomolsk? — perguntou.
Sirov fez que sim.
Ficaram calados por algum tempo.
O telefone soou. Sirov levantou o fone e o entregou a
Strelnikov. Este deu seu nome e ficou ouvindo. Sirov
ouviu uma voz metálica, mas não entendeu uma única
palavra. Mas viu que Strelnikov empalidecia. Sua mão
estava trêmula quando recolocou o fone.
— O senhor se enganou, marechal — disse. — De
Komsomolsk não nos enviaram qualquer resolução que
sugira a paz e o início de negociações.
— Ah, é?
— Não. Em Komsomolsk as tropas se amotinaram
juntamente com a população e cortaram todas as
comunicações com a cidade.
* * *
Na noite daquele dia, tempo de Moscou, o Conselho
Supremo decidiu enfrentar a ameaça com todos os meios
disponíveis. Isso significava levar a guerra a toda a
Terra.
Só assim poderia se esperar que a gigantesca nave
espacial, que traçara estreitas faixas de revolta pelo
imenso território do Bloco Oriental, desistisse de seus
planos e passasse a cuidar do bem-estar de toda a
Humanidade, em vez de interferir nos assuntos internos
do Bloco Oriental.
Com todos os meios disponíveis... Isso significava,
ainda, o emprego da arma mais recente e terrível que a
Humanidade jamais criara com seus próprios recursos: a
bomba catalítica de fusão.
Todos estavam perfeitamente lembrados de que Perry
Rhodan, quando ainda se encontrava no primeiro degrau
da escada que o conduziria ao sucesso, evitara a guerra,
envolvendo o planeta com um campo de absorção de
nêutrons. Os nêutrons, que deviam provocar a cisão dos
átomos de urânio, foram absorvidos por aquele campo.
Nenhuma das bombas atômicas chegou a explodir,
tampouco as bombas de fusão que seriam detonadas por
uma bomba atômica.
As bombas catalíticas não poderiam ser prejudicadas
pelo campo de absorção. O processo de fusão
propriamente dito não dependia dos nêutrons; a
detonação não era conseguida por via indireta, através de
uma bomba de fissão.
A decisão de iniciar a guerra foi adotada pela
unanimidade dos membros do conselho. O ataque foi
marcado para a zero hora do dia 14 de junho, tempo de
Moscou. Os militares disporiam de vinte e seis horas
para os preparativos.
A sessão do conselho e principalmente a decisão
tomada foram estritamente sigilosas. Sabia-se
perfeitamente que nem mesmo no último segundo do
ataque deveria transpirar qualquer coisa sobre as
11
intenções do conselho.
* * *
Strelnikov e os outros membros do conselho não se
sentiriam tão seguros se soubessem que o segredo em
torno da sessão e da resolução não fora nada perfeito.
Todos os discursos, todos os apartes e todas as
indicações foram irradiados no recinto da sessão por
meio de microfones e alto-falantes. Nada disso chegaria
para fora do recinto; mas as palavras, transformadas em
impulsos elétricos, atravessaram os condutores situados
no interior da sala.
A corrente alternada produz um campo
eletromagnético em torno do respectivo condutor, e esse
campo retrata os impulsos sob a forma de modulações.
Apenas se precisaria de um receptor bastante sensível
para captar o campo eletromagnético modulado a uma
distância de milhares de quilômetros, onde sua
intensidade era centenas de vezes menor que o farfalhar
da atmosfera.
Além disso, precisava-se ter conhecimento da
situação exata da origem do campo eletromagnético. Só
assim o receptor direcional estaria em condições de
reprimir o farfalhar atmosférico e, através de um
comutador acoplado, selecionar, entre a multiplicidade
dos impulsos captados, aqueles que se revestiam de
interesse.
Qualquer técnico terreno teria apostado que ninguém
seria capaz de construir um receptor desse tipo.
Mas teria perdido a aposta. A bordo da Stardust-III
havia vários receptores com essas qualidades. Rhodan
entendeu tudo que foi pronunciado naquela sessão, não
com a mesma nitidez de quem a presenciasse, mas com
uma clareza suficiente para compreender o horror do
complô.
Sabia que o Bloco Oriental dispunha de bombas
catalíticas de fusão, contra as quais o campo de absorção
de nêutrons seria impotente. Poderia fazer partir
imediatamente a Stardust-III, que naquele instante se
encontrava cem mil metros acima da parte sul dos
Montes Urais, e submeter o Conselho Supremo à
influência hipnótica.
Mas acreditava que com uma tática diferente
alcançaria um êxito maior e mais persuasivo.
* * *
No dia 13 de junho todo mundo prestou atenção.
Perry Rhodan, chefe da Terceira Potência,
interrompeu os programas de rádio e televisão e dirigiu
uma proclamação ao mundo.
Informou todos àqueles que quisessem ouvi-lo sobre
os planos do Bloco Oriental.
Perry Rhodan se dispôs a defender a Terra contra
qualquer agressor de dentro ou de fora. Uma surpresa
especial para Strelnikov e os demais ouvintes ficou
reservada para o fim do comunicado.
Em seu televisor, Strelnikov viu o rosto de Rhodan se
aproximar dele.
— Preste atenção, Strelnikov — disse Rhodan. —
Quero preveni-lo sobre o que farei hoje de noite, se você
e seus comparsas não desistirem de seu intento. Para isso
farei uma pequena demonstração. Hoje ao meio-dia, mais
precisamente, entre as doze e as doze e trinta, hora de
Moscou, toda transmissão de energia elétrica, com ou
sem fio, será suspensa no território do Bloco Oriental.
Dispõe de uma hora e meia para tomar suas precauções.
“Sabe perfeitamente o que isso significa. Faça
aterrisar todos os aviões que se encontrem no ar e avise
os hospitais. Ou melhor, faça o que quiser. De qualquer
maneira, saberá o que vai acontecer com seus foguetes
hoje de noite. Sem eletricidade não poderão ser
disparados, nem encontrarão o alvo. E a catalise não
funciona sem os processos eletrônicos que a regulam.
* * *
Strelnikov não fez nada. Não valia a pena tomar
qualquer providência. Todo mundo ouvira o comunicado
ou soubera dele por intermédio de terceiros. Todos
sabiam o que teriam de fazer para evitar um acidente.
Pouco antes do meio-dia os médicos largaram os
bisturis, os motoristas encostaram seus automóveis, os
trens pararam por cautela, e quem tinha de visitar alguém
num dos andares superiores de um arranha-céu preferiu
subir as escadas para não se arriscar a ficar preso no
elevador.
A inteligência de Strelnikov se rebelou contra a
possibilidade de que Rhodan pudesse fazer o que
prometera. Examinou a pilha de relatórios que tinha
diante de si.
A revolta de Komsomolsk se alastrava. As tropas ali
estacionadas avançavam terra adentro. Enquanto se
mantinham na linha que ligava Blagoviechtchensk a
Komsomolsk, eram recebidas de braços abertos. Mas,
quando se desviavam dessa linha, avançando na direção
norte ou sul, defrontavam-se com a resistência oferecida
pelas tropas não submetidas à influência do projetor
mental. De qualquer maneira Strelnikov se sentiu
abalado ao perceber que mesmo nessas áreas os
revoltosos venciam prontamente as resistências que se
impunham a eles.
Até parecia que se sentiam tomados por um impulso
irresistível, inexistente nos regimentos que continuavam
fiéis ao governo.
“Que impulso será este?”, indagou Strelnikov a si
mesmo, perplexo. “Um impulso para quê?”
Manteve o televisor ligado e deixou que o programa
desfilasse diante dele, sem prestar muita atenção.
Levantou-se, foi à janela e olhou para a rua.
Eram cinco para o meio-dia.
O trânsito parara. Até os pedestres ficaram junto ao
meio-fio, aguardando o milagre.
“Que idiotas”, pensou Strelnikov, contrariado.
“Mesmo que consiga eliminar a corrente elétrica, será
que ele acha que isso será o fim?”
Strelnikov continuou a pensar. Não podia parar de
pensar. Era o homem de quem se esperava a iniciativa e
as decisões depois da lição de trinta minutos que Rhodan
pretendia ministrar ao mundo.
Ouviu-se a voz do locutor:
— Ao meio-dia transmitiremos o toque dos sinos da
torre de Spasski.
Mas ninguém ouviu o toque dos sinos. A tela
escureceu assim que a torre surgiu no fundo da paisagem
formada pelo Kremlim. Parado diante do aparelho,
Strelnikov lhe lançou um olhar sombrio.
— Apesar de tudo!... — resmungou.
12
III
No dia 14 de junho, às nove horas da manhã, tempo
local, a Stardust-III pousou em Galáxia, que até então era
a única cidade situada nos quarenta mil quilômetros
quadrados do território da Terceira Potência, situado no
deserto de Gobi.
O Bloco Oriental desistira de seus planos. Strelnikov
divulgou a notícia cerca de uma hora depois da falta de
energia elétrica. Assim mesmo a Stardust-III continuou a
sobrevoar o território inimigo, a fim de verificar se
Strelnikov dizia a verdade.
A noite desceu sobre o continente asiático; nenhum
foguete saíra das rampas de disparo. A paz fora
resguardada. Rhodan tomou providências para que,
mesmo em qualquer momento posterior, um ataque de
surpresa não pudesse ser coroado de êxito.
A Terra respirou aliviada, primeiro porque Rhodan
voltara no momento exato, e depois porque cumprira sua
promessa de evitar a guerra.
Quando a Stardust-III pousou, o coronel Freyt, que na
ausência de Rhodan exercia as funções de chefe em
Galáxia, estava de prontidão.
Uma multidão de espectadores se comprimia nos
limites do campo de pouso.
Perry Rhodan saiu da nave em companhia de seu
copiloto, Reginald Bell, e de dois arcônidas, Crest e
Thora.
Freyt parecia aliviado, mas não muito feliz, quando
Rhodan lhe apertou a mão. Entraram no carro em que
Freyt viera e Rhodan perguntou:
— Tem algum problema, coronel?
Freyt hesitou. O carro já havia chegado perto do
destino quando resolveu falar.
— Sou acusado de negligência — disse. — Afirmam
que não percebi nem preveni em tempo a evolução da
política do Bloco Oriental. Acreditam que isso ficava
dentro do campo das minhas possibilidades e não
compreendem por que não tomei nenhuma providência.
Rhodan acenou com a cabeça.
— É só isso?
Freyt parecia desolado.
— É quanto basta!
Rhodan conhecera os problemas de Freyt depois que
a Stardust-III concluíra a transição a partir do planeta
Peregrino, e surgira num ponto situado além da órbita de
Plutão.
— Tenho que lhe dizer alguma coisa — respondeu
Rhodan depois de algum tempo. — E quero que acredite
que agi com as melhores intenções.
Freyt o olhou com uma expressão de espanto.
— Nunca seria capaz de duvidar disso.
— Pois espere. Tive que tomar precauções para que,
na minha ausência, ninguém abusasse dos recursos
técnicos da Terceira Potência, para... bem, para satisfazer
suas ambições, ou para qualquer outro fim. Você
compreende?
Freyt fez que sim. Começou a compreender por que
estivera de mãos atadas. Não gostou muito, mas seu
espírito era bastante objetivo para reconhecer que
Rhodan tinha razão.
— Você recebeu instruções para interferir na política
terrena somente se a Terceira Potência fosse atacada —
prosseguiu Rhodan. — Eu não poderia confiar que você
se limitaria a estas instruções, acontecesse o que
acontecesse. As tentações com que o homem se defronta
em nossa cidade são muito grandes. Você ainda não
possui um grau de treinamento arcônida que me permita
confiar unicamente nas instruções que lhe foram
ministradas. Por isso foi submetido a um bloqueio
hipnótico, pelo qual ficou preso às minhas instruções.
Estava impedido de tomar qualquer providência contra o
Bloco Oriental, enquanto nosso território não fosse
violado.
Colocou a mão sobre o ombro de Freyt e o olhou com
uma expressão séria.
— Sei perfeitamente que não vai gostar de mim por
causa disso, Freyt. Mas não pude agir de outra forma. Da
próxima vez não será mais necessário. Quanto aos quatro
anos e meio que se passou, o bloqueio hipnótico
representa um tipo de álibi para você.
Sorriu, apenas para tentar. Sentiu-se bastante aliviado
quando o coronel Freyt retribuiu o sorriso.
* * *
Uma atividade intensa tomou conta da cidade, cuja
população crescera nos últimos anos para oitocentos mil
habitantes.
O coronel Freyt estimulara a imigração de técnicos e
cientistas. Tomara providências para que a General
Cosmic Company construísse as enormes instalações de
montagem e iniciasse a produção de naves e caças
espaciais concebidos segundo os princípios arcônidas.
A Terceira Potência dispunha de dois cruzadores
pesados da classe Terra; eram naves esféricas com
duzentos metros de diâmetro. A construção de mais dois
cruzadores se encontrava em fase bastante adiantada.
A frota de caças espaciais aumentara para dez
esquadrilhas. Eram mil e oitenta aparelhos aptos a
enfrentar as condições reinantes no espaço, e que só por
si bastariam para garantir à Terceira Potência um
predomínio absoluto sobre a Terra.
O exército era formado por dez mil homens. Estavam
equipados com armamento arcônida e equivalia pelo
menos a vinte vezes esse número de soldados
convencionais.
Rhodan passou os olhos pelos relatórios que Freyt lhe
apresentou. Sua inteligência altamente treinada não
gastou mais de trinta minutos para incorporar todos os
dados. Tudo se passara conforme ele previra.
— Não gosto de usar palavras grandiosas — disse,
dirigindo-se ao coronel Freyt. — Mas não posso deixar
de constatar uma coisa. Você foi um representante
extraordinário. Fico-lhe muito grato.
Freyt não teve tempo para se alegrar com o elogio.
Rhodan tinha ordens a dar.
— Avise os governos dos diversos blocos de que...
bem... — piscou para Freyt — como direi? Avise-os de
que ficaria satisfeito em cumprimentar seus
representantes em Galáxia quanto antes.
Freyt anotou.
— Enfatize o quanto antes — recomendou Rhodan.
— Isso significa amanhã ou depois. Acrescente que,
muito embora a guerra tenha sido impedida, considero a
situação extremamente séria, motivo por que se torna
indispensável uma série de consultas.
Freyt também anotou este trecho.
13
— Além disso, quero que designe uma pessoa de
confiança para o controle de precisão do
hipertransmissor. Quero revezar o homem que exercia
essas funções a bordo da Stardust-III. Ficou muito tempo
com os olhos abertos. Não há hora marcada para as
mensagens do major Deringhouse. Poderá ser anunciado
a qualquer momento que queira.
— Deringhouse? — perguntou Freyt, perplexo.
— Sim, Deringhouse. Larguei-o em Karaganda.
Quero que ele me ajude a atingir o segundo objetivo do
nosso plano. Sabe que devemos contar com as intenções
hostis do Bloco Oriental enquanto o atual governo
estiver no poder, não sabe?
— Naturalmente.
— Pois bem. Um belo dia prenderemos aqueles
cavalheiros de um golpe. E Deringhouse abrirá o
caminho para isso.
Em seu subconsciente, o coronel Freyt procurou
analisar a impressão que estas palavras lhe causavam.
Representavam um trecho da história mundial.
Subitamente, Freyt compreendeu que abismo imenso o
separava de Perry Rhodan. Nos últimos quatro anos e
meio supusera em várias ocasiões que fazia seu trabalho
tão bem feito como Perry Rhodan, e que, com esse
poderio imenso, qualquer um poderia dominar a Terra.
Acontece que não era tão fácil. Era necessário
conservar em quaisquer circunstâncias a noção do
alcance desse poderio. Quem se encontrasse nessa
situação ocuparia uma posição bastante exposta e não
poderia se dar ao luxo de deixar de cumprir qualquer
promessa. Em outras palavras, tornava-se necessário
jogar com a profusão das possibilidades como um
malabarista que brinca com dez bolas ao mesmo tempo.
Um agente pode fazer muita coisa que é proibida às
outras pessoas. Por outro lado, porém, não pode fazer
certas coisas que um homem normal consideraria óbvias.
O major Deringhouse trajava uma vestimenta
transportadora arcônida que, quando desejasse, o tornaria
invisível; mas por outro lado, quando fosse visível,
provocaria suspeitas em qualquer um. Deringhouse
resolveu iniciar seu trabalho em Karaganda. A cidade
com seus habitantes e soldados submetidos a uma
influência pós-hipnótica lhe parecia o melhor ponto de
partida.
No entanto, não havia dúvida de que mesmo uma
pessoa influenciada por Rhodan logo ligaria o
aparecimento de uma pessoa em trajes estranhos com o
surgimento da Stardust-III nos céus da cidade. Por isso,
Deringhouse preferiu deixar passar algumas horas antes
de entrar em Karaganda.
Não teria sido difícil a Rhodan influenciar a cidade
de tal forma que, mesmo como agente da Terceira
Potência, Deringhouse fosse recebido de braços abertos.
Mas esse estado de espírito logo se tornaria conhecido
em Moscou, e a cautela com que o serviço secreto
passaria a agir depois disso teria dificultado
desnecessariamente a tarefa de Deringhouse.
Dessa forma, o major resolveu aterrisar, invisível, nas
proximidades da aldeia de Plachowskoje, cerca de cento
e oitenta quilômetros de Karaganda. Ainda invisível, deu
uma volta pela aldeia. Foi quando aconteceu um fato
que, posteriormente, provocou nele a idéia de que o
próprio destino se empenhara em prestar auxílio a ele e à
Terceira Potência.
Plachowskoje era igual a qualquer outra aldeia da
região. Ficava à beira da estrada e quase não tinha ruas
transversais. As casas, baixas, eram rodeadas de campos
imensos, envoltos numa nuvem de pó alimentada
ininterruptamente pelas esteiras dos tratores e das
máquinas agrícolas.
Deringhouse supôs que o melhor lugar para descobrir
alguma coisa sobre o ânimo da população após o ataque
da Stardust-III seria o edifício da prefeitura, mas teve
algumas dificuldades em descobri-lo em meio às outras
casas.
Finalmente o reconheceu por causa de um pequeno
quadro de avisos, ao qual estava afixado um único
bilhete. No bilhete lia-se o seguinte:
O Conselho Municipal reúne-se hoje de noite, às 20
horas.
O aviso estava manuscrito. Deringhouse acreditava
que durante a reunião se falaria nos acontecimentos
daquele dia.
O edifício da prefeitura era formado por dois
pavimentos. Deu uma volta e viu uma ambulância
estacionada, numa área dos fundos do prédio. Pelo
letreiro, Deringhouse descobriu que o veículo vinha de
Uspenskij.
Isso era de admirar, já que a cidade de Karaganda,
muito maior, ficava mais próxima.
Deringhouse entrou no edifício e examinou o
pavimento térreo. Não ouviu nenhuma voz e por isso
abriu uma das portas que havia no hall de entrada. A
porta rangeu. Deringhouse viu uma sala semideserta. Só
havia uma mesa; atrás dela, um homem assustado se
levantou de um salto e com uma expressão de culpa no
rosto esfregou os olhos para espantar o sono.
Parecia não se perturbar muito com o fato de não ter
visto ninguém que pudesse ter aberto a porta. Suspirou,
voltou a sentar e murmurou uma expressão de alívio.
Deringhouse recuou, deixando a porta aberta. O homem
poderia acreditar que o vento a tivesse aberto. Mas, se
ela se fechasse por si, ficaria espantado.
Nesse instante Deringhouse ouviu vozes vindas do
andar de cima. Subiu a escada de dois em dois degraus
sem se incomodar com o ranger produzido por seus pés.
As vozes eram muito altas.
No andar superior havia um hall igual ao do térreo;
apenas tinha alguns metros quadrados a menos. As vozes
vinham de uma sala cuja porta estava aberta. Um homem
de uniforme e outro que parecia um camponês estavam
conversando.
Deringhouse parou diante da porta.
— O conselho faz questão de interrogar o homem
hoje de noite — anunciou o camponês — sejam quais
forem às condições em que se encontre. Falou coisas tão
estranhas que talvez tenhamos de avisar o serviço
secreto.
O homem de uniforme ergueu os ombros.
— Só posso dizer que o homem está em péssimas
condições físicas e mentais. Se for submetido a um
interrogatório hoje de noite, provavelmente não resistirá.
Mas, se não puder agir de outra forma, paciência.
“É um médico”, constatou Deringhouse. “Deve ser a
pessoa que veio na ambulância de Uspenskij.”
— Obrigado — respondeu o camponês. Parecia
aliviado. — O senhor poderia ter me causado maiores
dificuldades. Mas compreende que...
14
O médico o interrompeu com um gesto.
— Compreendo. O senhor pode melhorar sua fama
na cidade se descobrir um inimigo do Estado e conseguir
prendê-lo e entregá-lo ao serviço secreto. Por que acha
que alguma coisa não está em ordem com esse homem?
O camponês respondeu sem hesitar.
— Algumas pessoas o viram descer lá fora, de
paraquedas e assento ejetável. Estava inconsciente. Ao
ser colocado na maca, abriu os olhos. E a primeira coisa
que disse foi o seguinte: “Parem com essa bobagem.
Vocês não podem sair vitoriosos dessa luta; o inimigo é
poderoso demais.”
— Por certo estava aludindo à nave espacial inimiga
que sobrevoou esta região, não é verdade? — disse o
médico.
O camponês acenou violentamente com a cabeça.
— Contou algumas coisas confusas sobre uma
gigantesca bola de fogo e sobre vários aviões de caça que
teriam entrado nas bolas de fogo produzidas por seus
próprios foguetes e explodido. Será que uma coisa dessas
pode ser verdade? Quem afirma uma coisa dessas é um
traidor e um sabotador, não é mesmo?
O médico se mostrou cauteloso.
— Depois saberemos — respondeu.
Deringhouse não estava interessado em saber como
prosseguiria a palestra. Provavelmente estariam falando
de um dos pilotos de caça que participaram do ataque à
Stardust-III. Ao que parecia o homem estava extraindo
da série de acontecimentos a única solução aceitável, e
por isso estava prestes a ser imprensado entre as
engrenagens do serviço secreto.
Onde estaria?
Sem ser notado pelos dois homens que conversavam
numa sala de porta aberta, Deringhouse abriu
cautelosamente uma série de outras portas. Finalmente
entrou numa sala escurecida, da qual saía o ruído de uma
respiração irregular.
Havia cortinas diante das janelas para impedir a
entrada da luz ofuscante. Deringhouse fechou a porta e
esperou até que os olhos se acostumassem à penumbra.
Num dos cantos havia uma cama de campanha
bastante primitiva. Sobre a cama estava estendido um
homem. Dormia e parecia precisar do sono. O rosto
estava arranhado e desfigurado. Apesar disso parecia
simpático.
Deringhouse gravou o rosto na memória e saiu da
sala com a mesma cautela com que havia entrado. Voltou
ao pavimento térreo e, depois de espiar por vários
buracos de fechadura, encontrou uma sala um pouco
maior, em que cadeiras e bancos se misturavam
desordenadamente. Era a sala de reuniões. Por enquanto
sabia o suficiente. Saiu do edifício da prefeitura. Para
passar o tempo que faltava até o anoitecer, furtou alguns
comestíveis da única loja existente na aldeia, tirou um
jarro de água límpida do poço e matou a fome e a sede
com sua presa de guerra.
Chegou à sala de reuniões muito antes das oito.
Ocupou um lugar seguro em cima de um dos armários
encostados à parede, onde ninguém esbarraria nele. Os
membros do conselho não pareciam ser muito pontuais.
Às oito horas só havia dois homens, além de
Deringhouse. Os quatorze restantes foram chegando
entre as oito e as oito e vinte.
O homem ferido que Deringhouse vira de tarde
entrou carregado em sua cama de campanha. Não se
percebia qualquer melhora considerável de seu estado.
Mas estava acordado e se mostrava bastante interessado.
Os homens o fitaram com uma curiosidade
indisfarçada. Finalmente o homem que de tarde
conversara com o médico militar abriu a reunião.
E logo passou à ordem do dia.
— Este homem — disse, apontando para o ferido —
é, ao que lhe consta, o único sobrevivente do ataque que
a 23a esquadrilha de caças de Karaganda desfechou
contra a nave espacial inimiga que hoje sobrevoou esta
região. As declarações que prestou a respeito do ataque
são tão estranhas que achei conveniente que ele as
repetisse diante de vocês. Depois deliberaremos sobre o
que devemos fazer face às suas declarações.
“Que idiota”, pensou Deringhouse. “Depois de ter
ouvido isso, o homem não voltará a manifestar sua
opinião.”
O camponês, que devia ser o prefeito da aldeia, se
voltou para o ferido.
— Comece a falar! — ordenou. — Indique seu nome
e posto e informe tudo que julgar importante. O senhor
se encontra diante do Conselho Municipal da aldeia de
Plachowskoje que, conforme sabe, terá que deliberar a
seu respeito, já que desceu no território desta aldeia.
O ferido se apoiou sobre os cotovelos. Via-se que
isso lhe exigia um grande esforço.
— Meu nome é Jaroslav Afimovitch Welinskij —
principiou com a voz fraca. — Sou capitão e comandante
do 5o esquadrão da 23
a esquadrilha de caças,
estacionados em Karaganda-Leste. Lá pelas quatorze e
quinze decolei da base, em companhia dos meus
companheiros de esquadrilha, a fim de atacar e destruir a
nave inimiga que se aproximava da cidade de Karaganda.
Nossa missão foi um fracasso. A maior parte, ou melhor,
todos os nossos aviões foram destruídos.
Forneceu uma descrição minuciosa da bola de fogo
que havia observado, e relatou como os caças se
tornaram vítimas dos foguetes por eles mesmos
disparados. Concluiu com estas palavras:
— Parecia que para o inimigo isso não passava de
uma brincadeira. Não teve de fazer o menor esforço para
destruir nossa esquadrilha. Não precisou mexer um dedo.
A parede de fogo que espalhou em torno de si provocou
a explosão dos foguetes e, com eles, dos nossos caças.
Em minha opinião, seria uma irresponsabilidade lutar
contra um inimigo destes. Não dispomos de nada
comparável com os recursos de que ele dispõe. Quem
quisesse resistir estaria agindo com o mesmo senso de
um menino que pretendesse deter um tanque pesado com
as mãos.
O protesto foi súbito e violento, como se viesse por
encomenda. Welinskij ouviu os piores insultos; as
palavras traidor e sabotador foram as mais suaves.
Deringhouse admirou a coragem daquele homem.
Tudo seria muito mais fácil para ele se tivesse relatado a
ocorrência em termos menos fortes. Face ao intenso
treinamento hipnótico a que fora submetido,
Deringhouse sabia o que esperava o capitão: seria
denunciado aos serviços de segurança e encaminhado a
um dos postos para ser submetido a um interrogatório
bastante minucioso.
A decisão de Deringhouse estava tomada.
Mas antes de executá-la queria saber o que
15
aconteceria em seguida.
O chefe do conselho formulou a proposta que todos
esperavam: a transmissão de um aviso imediato aos
serviços de segurança.
Welinskij não manifestou qualquer oposição. Até o
fim respondeu a todas as perguntas com a maior
tranquilidade e objetividade. Depois de hora e meia de
interrogatório, as forças o abandonaram. Desmaiou e
deixou-se cair na cama.
Foi levado para fora. O chefe do conselho usou o
telefone para transmitir o aviso. Das palavras que foram
proferidas Deringhouse concluiu que o aviso foi
encaminhado ao posto do serviço de segurança sediado
em Akmolinsk, não ao de Karaganda.
Ao que parecia, conheciam a notícia de que naquela
cidade remava um espírito revolucionário depois que a
Stardust-III ali permaneceu por uma hora. Via-se que os
camponeses de Plachowskoje continuavam fiéis ao
governo.
* * *
Pela meia-noite o silêncio da grande planície foi
interrompido pelos estalos e chiados produzidos pelos
rotores de um helicóptero. Um veículo fracamente
iluminado desceu do céu nublado e aterrizou na estrada,
junto às primeiras casas da aldeia.
O prefeito, mais dois membros do conselho e dois
camponeses que carregavam a maca em que se
encontrava Welinskij estavam à espera. Welinskij havia
acordado.
Deringhouse estava invisível, parado à beira da
estrada. Observou o jovem capitão e procurou descobrir
como o mesmo se sentia. Mas Welinskij não revelava a
menor emoção.
O helicóptero dispunha de um amplo compartimento
de carga. Deringhouse não teve a menor dificuldade em
entrar sem ser notado e se acocorar junto à cama de
campanha de Welinskij.
Ouviu as pessoas conversarem por algum tempo do
lado de fora. Mas logo o motor voltou a chiar, os rotores
bateram e o aparelho se levantou com um forte
solavanco.
“Até aqui tudo bem”, pensou Deringhouse.
É verdade que pretendia ir a Karaganda, mas parece
que os acontecimentos tomaram outra direção. Será que a
modificação se revelaria útil à sua missão?
Ficou quebrando a cabeça a respeito e chegou à
conclusão de que pouco importava o ponto em que
iniciaria sua marcha propriamente dita.
De qualquer maneira teria de ir a Moscou, e tanto
fazia que partisse de Akmolinsk ou de Karaganda.
O voo para Akmolinsk não durou mais de trinta
minutos. Apesar do barulho causado pelo helicóptero
Welinskij adormecera. Só despertou quando sua maca foi
retirada do compartimento de carga.
Deringhouse saiu atrás dela, e foi então que
aconteceu o primeiro incidente.
A porta do compartimento ficava cerca de metro e
meio acima do solo. Os homens que aguardavam o
helicóptero conversavam em altas vozes; por isso
Deringhouse acreditava que não haveria o menor risco
em saltar para fora. Mas não percebeu que, próximo à
porta, havia um tipo de encaixe. Ao saltar, ficou com o
pé direito preso ali. Tombou para frente e caiu sobre o
ombro do homem que se encontrava mais próximo ao
helicóptero.
De início houve uma tremenda confusão. O homem
foi atirado para frente pela força do impacto e arrastou
mais algumas pessoas.
Mas logo todos se viraram, de pistola na mão. À luz
das lâmpadas que iluminavam o campo de pouso,
Deringhouse viu seus rostos decididos e perplexos.
— O que foi isso? — perguntou um deles.
— Alguém saltou sobre as minhas costas — disse o
homem sobre o qual Deringhouse havia caído.
— Deixe de bobagens — disse outro. — Não há
ninguém aqui além de nós!
— Pois eu lhe digo...
O homem se aproximou cautelosamente da porta e
olhou para dentro. O compartimento de carga estava
escuro.
— Há alguém aí dentro? — perguntou em voz alta.
— Saia!
Não houve resposta. Deringhouse já se levantara e se
colocara de pé junto à cabina do piloto. Viu que
Welinskij observava tudo com o maior interesse.
— Eu lhe disse que não há ninguém — disse um dos
homens que permaneceram de pé.
Mas seu companheiro não se perturbou. Deringhouse
não pôde deixar de reconhecer que era um rapaz
corajoso. Entrou imediatamente no compartimento de
carga e revistou-o. Quando voltou, tinha o rosto ainda
mais perplexo.
— É verdade, não há ninguém — disse com a voz
baixa.
Os outros riram.
Pegaram a maca de Welinskij e saíram com ela. O
homem sobre cujos ombros Deringhouse caíra voltou a
cabeça mais de uma vez, lançando olhares desconfiados
para o helicóptero.
* * *
Welinskij passou uma noite desassossegada. Sua
cama fora colocada num cubículo com cheiro de mofo
que ficava num galpão do campo de pouso. Ninguém se
incomodou com ele. Aproveitou o tempo para dormir um
pouco.
Pelas sete da manhã serviram-lhe um café reforçado e
perguntaram se já estava em condições de levantar.
Experimentou e conseguiu, embora dali a cinco
minutos já visse manchas coloridas diante dos olhos.
Foi levado por um longo corredor que dava para
outra sala do mesmo galpão. Um major estava sentado
atrás de uma escrivaninha.
Welinskij fez continência. O major retribuiu. Os dois
homens que haviam acompanhado Welinskij se
retiraram.
— Sente-se — disse o major. — Acho que ainda não
está muito bom das pernas.
Welinskij sentou; estava surpreso com tamanha
gentileza.
— O senhor vai contar a história mais uma vez —
disse o major com um sorriso. — Tenho diante de mim o
relatório vindo de Plachowskoje, mas não estou
entendendo bem.
Welinskij voltou a relatar tudo. Pela terceira vez
contou a história por ele vivida.
O major o escutou com muita atenção. Assim que
Welinskij terminou, perguntou:
— E daí?
16
Welinskij estava perplexo.
— Por causa destas declarações — explicou —
aquela gente de Plachowskoje fez de mim um traidor e
sabotador e me encaminhou ao serviço de segurança.
O major pareceu se divertir com esse fato.
— Meu Deus! — disse, rindo. — Se eu tivesse
passado pelo que o senhor passou, teria contado
exatamente a mesma coisa. Não vejo onde está a
sabotagem ou a traição.
Welinskij não acreditou no que estava ouvindo.
— Está falando sério? — perguntou em tom
hesitante, se inclinando para frente.
O major fez que sim.
— Sem dúvida.
— Quer dizer que posso voltar para Karaganda?
— Não pode, não.
Welinskij se assustou. Não permitiam que voltasse.
Quer dizer que havia alguma coisa.
— Seu caso foi muito comentado — prosseguiu o
major. — O Conselho Supremo nos enviou um homem
de confiança, que vai levar o senhor a Moscou. O
conselho pede que relate os acontecimentos em sessão
secreta. Evidentemente fará isso como homem livre. Não
há motivo para acusá-lo de traição, sabotagem ou
derrotismo.
Os ouvidos de Welinskij começaram a zumbir. Mal
ouviu a pergunta:
— O senhor concorda?
— Sim... sim, naturalmente.
O major preencheu um formulário. Entregou-o a
Welinskij e disse:
— Vá até o galpão C e bata à porta da sala número
vinte e cinco. Ali encontrará o homem que deverá levá-lo
a Moscou. Mostre-lhe este bilhete. Boa viagem!
Welinskij se sentia confuso. Agradeceu e se retirou.
Subitamente esquecera a fraqueza que sentia; estava
curioso para ver o homem que o levaria a Moscou.
Viajariam por terra? Por que não iriam...
Quando encontrou o galpão C esqueceu a pergunta.
Atravessou o corredor e encontrou a porta com o número
vinte e cinco. Bateu.
— Entre! — disse alguém.
Welinskij entrou.
Na sala havia uma mesa e uma cadeira. Sobre a mesa,
Welinskij viu um par de solas de bota bem frisadas. Deu
um passo para o lado e viu as pernas em que as botas
estavam enfiadas e o homem ao qual pertenciam essas
pernas.
Seu aspecto não tinha nada daquilo que Welinskij
imaginara num elemento de comunicação do Conselho
Supremo. Não havia dúvida de que tinha menos de trinta
anos. Os cabelos estavam cortados à escovinha, e os
olhos emitiam um brilho azulado.
O mais estranho naquele homem era seu
equipamento. Usava um traje que parecia uma
combinação de vestimenta de mergulhador, alpinista e
mecânico. Welinskij nunca vira coisa parecida. Com
certo respeito contemplou as coronhas das armas, que
sobressaíam dos coldres existentes na altura do quadril
ou na parte superior da coxa.
— Terminou a inspeção? — perguntou o homem,
tirando as pernas de cima da mesa.
Welinskij se lembrou do que tinha a fazer. Ficou em
posição de sentido e fez continência:
O louro — Welinskij notou que tinha perto de dois
metros de altura — fez um gesto displicente.
— Sim, já sei. O prenome é Jaroslav Afimovitch.
Capitão-comandante do 5o esquadrão da 23
a esquadrilha
de caças, estacionada em Karaganda-Leste. Correto?
— Perfeitamente — respondeu Welinskij, perplexo.
— Sou Lub — disse o louro. — Veja bem: não digo
que meu nome é Lub. Esqueci meu verdadeiro nome. Os
homens que importam me conhecem como Lub. O
senhor também me chamará assim.
— Está bem — respondeu Welinskij.
— Iremos juntos a Moscou — prosseguiu Lub.
— Perfeitamente. Permita que lhe faça uma
pergunta?
— Naturalmente.
— Por que não vamos de avião? Chegaríamos mais
cedo.
Lub deu um sorriso de escárnio.
— É um rapaz esperto, não é? Acontece que iremos
por terra.
Welinskij logo formou sua opinião. Nunca vira um
homem mais descontraído e lacônico que Lub. Não seria
fácil tirar dele alguma coisa que não quisesse revelar.
Apesar disso Welinskij o achou simpático, até muito
simpático.
Lub não se demorou muito no aeroporto. Todos
pareciam conhecê-lo, pois ninguém lhe pedia que se
identificasse. Welinskij o seguiu.
Às dez horas embarcaram num dos modernos trens
elétricos da Estrada de Ferro Transiberiana, que os
levaria a Moscou, passando por Magnitogorsk e
Kufbychev.
— É mais confortável — explicou Lub em termos
lacônicos. — Mandei reservar um compartimento só para
nós. Até pode dormir.
No momento Welinskij não tinha disposição para
isso. Enquanto o trem atravessava a paisagem numa
velocidade de trezentos quilômetros por hora, voltou a
examinar Lub. Viu que este o percebia e formulou uma
pergunta, para se antecipar a uma observação irônica:
— Que terno é esse?
Lub sorriu.
— É um traje especial — respondeu. — Não deixa
passar balas ou outras coisas desagradáveis. Além disso,
pode executar uma série de truques. Oportunamente lhe
mostrarei.
Ao que parecia quis fugir a outras perguntas, pois
ligou o televisor que se achava instalado neste como em
todos os demais compartimentos do trem sumamente
confortável. Um programa insosso se desenrolou diante
deles... até o momento em que Perry Rhodan interferiu
na rede terrena de televisão e transmitiu sua advertência
dirigida ao governo do Bloco Oriental.
Welinskij acompanhou a alocução com os olhos
atentos. Mas Lub se reclinou num canto e fez como se
achasse aquilo muito tedioso. Quando Rhodan terminou
e o programa anterior voltou ao ar, Welinskij disse:
— Será que Strelnikov concordará? Será que tomará
em consideração os ensinamentos dos últimos dias?
Lub deu de ombros.
— Como vou saber?
Welinskij se exaltou.
— Será que isso não o comove? Todo mundo deve
refletir se vale a pena se engalfinhar com um inimigo
17
destes, ou se é preferível entrar em negociações para
salvar a pátria.
Lub sacudiu a cabeça.
— Pois eu, por princípio, não quebro a cabeça sobre
estas coisas.
Welinskij achou que a atitude de Lub era repugnante,
mas não disse mais uma palavra a este respeito.
Às onze e meia o trem parou em Atbassar, uma
pequena localidade onde a parada do trem não era
prevista. Lub sorriu.
— Sabe por que o trem parou? — perguntou a
Welinskij.
— Para não se encontrar em qualquer lugar no meio
da linha quando faltar energia — disse o capitão com
toda franqueza.
Lub fez que sim. Depois disse:
— Venha comigo; vamos descer. Welinskij se
assustou.
— Por quê?
— Depois explico.
Welinskij obedeceu. Quando desceram foram
abordados pelo condutor.
— Aqui a descida não é permitida. Fiquem no trem.
— Não vou ficar coisa alguma — resmungou Lub. —
Quero esticar as pernas.
O condutor não tinha qualquer objeção. Lub marchou
em companhia de Welinskij pela plataforma arenosa.
Examinaram a cabana do guarda-trilhos e contornaram-
na.
— Fique aqui mesmo! — ordenou Lub de repente. —
Voltarei logo.
Welinskij obedeceu. Lub voltou a contornar a cabana
e retornou dali a dois minutos.
— Tudo em ordem — disse com um sorriso. —
Vamos andando.
— Para onde? — perguntou Welinskij perplexo.
Lub apontou para os telhados achatados da pequena
localidade, que sobressaíam em meio à névoa que cobria
a planície.
— Para lá. Gosto de aproveitar os intervalos que me
são impostos. Conheço pouca coisa desta terra imensa.
Gostaria de ver Atbassar.
— Vamos voltar em tempo? — perguntou Welinskij,
preocupado.
Lub deu de ombros.
— Não sei — respondeu.
Foram andando, e fizeram-no sem rebuços. Todo
mundo os via, inclusive o solícito condutor, mas
ninguém procurou detê-los. Foi outra coisa que deixou
Welinskij admirado.
Atbassar ficava cerca de seis quilômetros da estação.
Ainda não haviam percorrido a metade da estrada
poeirenta e esburacada, quando o chiado dos jatos de um
avião se fez ouvir, vindo do leste. Lub levantou o braço e
olhou para o relógio. Welinskij o viu estremecer.
— Que idiota! — disse por entre os dentes. — Por
que não aterrizou?
Pararam.
Welinskij não saberia dizer o que havia de errado
naquele avião. Mas percebeu-o assim que o ponteiro de
segundos do relógio de Lub saltou para o número doze.
De um instante para outro o ruído vigoroso dos jatos
cessou, já que o suprimento de energia das bombas de
combustível, compressores, ativadores e outros
componentes importantes do mecanismo foram
interrompidos. O chiado se transformou num uivo, e este
acabou num miserável apito. Um minuto depois das
doze, a máquina, que antes era um ponto brilhante no
azul do céu, estava transformada numa grande mancha
cinzenta.
Lub não respondeu.
O avião passou em disparada por cima da aldeia de
Atbassar.
As asas estreitas, concebidas para um deslocamento
em alta velocidade, não davam sustentação ao avião. Sua
queda foi semelhante à de uma pedra achatada.
Tudo terminou numa labareda ofuscante que surgiu
bem além da aldeia de Atbassar, e num estrondo abafado
que segundos depois percorreu a planície.
— Que Deus tenha compaixão deles! — disse Lub e
voltou a se descontrair.
Quando reiniciaram a marcha, os joelhos de
Welinskij estavam trêmulos.
Pela uma e meia chegaram à aldeia. Lub ordenou:
— É preferível que espere aqui. Quero dar uma
olhada.
Welinskij estava tão deprimido que não se encontrava
em condições de formular qualquer objeção. Sentou na
beira da estrada e esperou. Lub foi andando.
Só se sobressaltou uma vez em sua atitude
cismarenta. Foi quando, ao meio-dia e meia em ponto, os
motores dos tratores entraram em funcionamento com
um rugido e transportou uma caravana de enfermeiros e
voluntários — mas também de curiosos — em direção ao
local em que o avião havia caído.
“Provavelmente Lub não vai encontrar ninguém na
aldeia”, pensou Welinskij; mas em face do desastre que
testemunhara isso não o preocupou.
Meia hora depois se aproximou aos solavancos uma
daquelas carroças motorizadas que, nos últimos anos,
vinham sendo usadas pelos camponeses. Lub estava à
direção e, quando parou diante de Welinskij, sorriu
alegremente como se acabasse de fazer um bom negócio.
— Suba! — disse.
Welinskij subiu e sentou perto de Lub.
— Onde arranjou isso? — perguntou.
— Comprei — foi a resposta.
— Onde pretende ir?
— A Kosgorodok.
Welinskij quase ficou sem fôlego.
— O que vamos fazer em Kosgorodok? Não
pretendia me levar a Moscou?
Lub fez que sim.
— Sei que estou pedindo muito — disse. — Mas
vamos fazer um acordo. Em Kosgorodok eu lhe digo
exatamente o que está havendo. Em compensação você
promete que não fará mais perguntas. Combinado?
Welinskij refletiu.
— De acordo — disse depois de algum tempo.
Pelo que dizia Lub, Kosgorodok ficava a pouco mais
de duzentos quilômetros de Atbassar. Só chegariam no
fim da tarde, isso se não houvesse nenhum enguiço no
veículo.
18
IV
O coronel Freyt fez-se anunciar. Rhodan fez com que
entrasse imediatamente.
— Já temos a concordância dos governos da
Federação Asiática e do bloco da OTAN — disse Freyt.
— O Bloco Oriental ainda não acusou o recebimento de
nossa nota, nem deu qualquer resposta.
Rhodan acenou com a cabeça.
— Isso era de esperar. Estaremos em três, Freyt.
Conseguiu combinar dia e hora?
— Sim senhor. Amanhã, dia 16 de junho, se possível
às quatorze horas, tempo local.
— Ótimo. Já confirmou?
— Sim senhor. Fui eu que sugeri esse dia e hora.
Rhodan levantou as sobrancelhas, num gesto
zombeteiro.
— Houve alguma objeção?
— Nenhuma — respondeu Freyt com um sorriso.
— Isso representa um bom atestado da nossa
reputação.
Freyt se retirou e Rhodan voltou a mergulhar nas suas
meditações.
O que realmente o incomodava na situação atual da
política terrena não eram os desvios de que o Bloco
Oriental se fizera culpado. Os recursos técnicos e
psicológicos da Terceira Potência poderiam vencer
qualquer atitude deste tipo dentro de poucas horas.
O principal motivo de suas preocupações era a
imaturidade humana que se revelava na conduta dos
Estados do Bloco Oriental.
Rhodan não era o tipo de homem que se entregava a
ilusões. Estava firmemente convencido de que
conseguiria abrir os olhos da Humanidade não só através
da instalação da Terceira Potência, levada a efeito apesar
de todos os obstáculos e hostilidade, mas também através
de uma abundância de informações sobre os
acontecimentos desenrolados na cidade de Galáxia, que
fez fluir para todos os países da Terra através de
numerosos canais. Convencera-se de que, recorrendo a
um material ilustrativo adequado, conseguiria dentro de
um tempo muito reduzido transformar o homem num
terreno, isto é, num ser com uma visão realista de sua
verdadeira terra natal; o homem se transformaria numa
partícula de pó tão impregnado do pensamento galáctico
que consideraria ridículas quaisquer disputas
particularistas em sua minúscula pátria, e não perderia
tempo com elas.
Mas, qual a realidade atual?
Por ocasião do primeiro voo tripulado à Lua realizada
pelo homem, Rhodan encontrou no satélite de nosso
planeta os representantes de uma raça humanoide
desconhecida. Vinham de um mundo que eles chamavam
de Árcon, e que ficava a trinta e quatro mil anos-luz da
Terra. Haviam pousado na Lua com uma nave
exploradora e Crest, o chefe científico da expedição,
sofria de leucemia.
Rhodan aproveitou a oportunidade. Retornou à Terra
em companhia de Crest, a quem prometera a cura, e fez
de sua nave, pousada no deserto de Gobi, o centro da
Terceira Potência.
Crest foi curado e manifestou sua gratidão, colocando
à disposição de Rhodan os recursos criados pela
tecnologia arcônida. Rhodan se defendeu dos ataques
desfechados pelos blocos de potências terrenas e
consolidou seu pequeno Estado. Recorreu ao campo de
absorção de nêutrons, uma invenção dos arcônidas, para
impedir uma guerra que teria significado o fim da
Humanidade.
A nave exploradora arcônida era comandada por uma
mulher chamada Thora. Era a mulher mais bela e
fascinante que Rhodan já vira. Mas, na opinião da
comandante, os homens não passavam de um bando de
criaturas semisselvagens, e foi assim que ela os tratou.
No entanto essa humanidade miserável conseguiu, num
esforço inaudito e sem que Rhodan o soubesse, destruir a
nave arcônida. Quando isso aconteceu, Thora não se
encontrava a bordo, e Crest já se radicara na Terra. Thora
e Crest sobreviveram à catástrofe, e o produto mais
importante de sua civilização que conseguiram salvar foi
uma nave auxiliar esférica de sessenta metros de
diâmetro, que não poderia realizar a viagem de volta ao
seu mundo natal.
Os arcônidas não tiveram outra alternativa senão
colaborar com a Humanidade. Precisavam de um veículo
apto a enfrentar as condições reinantes no espaço. Para
obtê-lo foi criada a General Cosmic Company, dirigida
pelo mutante Homer G. Adams.
Surgiram muitos perigos. Alguns deles ameaçavam a
Terceira Potência, vindos de um ou de alguns dos blocos
de potências roídos pela inveja; outros punham em risco
toda a Terra, provocados por inteligências extraterrenas,
que haviam encontrado a pista do cruzador destruído e
esperavam encontrar em nosso planeta uma presa fácil e
abundante.
Sobreviveram a tudo. No sistema Vega, situado a
uma distância de vinte e sete anos-luz, ajudaram uma
raça desesperada na sua luta contra um grupo de
invasores reptiloides. Depois da vitória, encontraram
indicações que lhes revelaram pistas do mundo em cuja
busca a nave exploradora dos arcônidas se lançara ao
espaço: o planeta da vida eterna.
Um poderoso desconhecido fez seu jogo com eles.
Conduziu-os a armadilhas e os libertou das mesmas, para
que provassem que eram dignos de se tornarem seus
herdeiros.
Encontraram o mundo do desconhecido. Era um
planeta artificial, que percorria uma trajetória também
artificial, realizando no curso de vários séculos um
movimento de translação em torno de mais de uma
dezena de sistemas solares. Deram a esse planeta o nome
de Peregrino. Encontraram o desconhecido e com ele o
segredo da vida eterna. Mas ficaram sabendo que a vida
eterna só caberia a Rhodan e aos homens que o mesmo
julgasse dignos de receberem essa dádiva.
O grande relógio da história galáctica assinalava o
fim do tempo dos arcônidas. A vida eterna não seria para
eles. Crest e Thora encontraram o mundo que
procuravam, mas essa descoberta não lhes trouxe
qualquer vantagem.
Rhodan e os terranos seriam os homens do futuro.
Retornaram do planeta Peregrino, depois de terem
ficado longe da Terra por alguns meses, segundo sua
contagem de tempo.
Mas durante a permanência no planeta Peregrino,
onde prevalecia um tempo diferente, a Terra vivera
quatro anos e meio. Nesses quatro anos e meio as
19
pessoas ambiciosas haviam se acostumado à ideia de que
Rhodan nunca mais regressaria para intervir na política
terrena.
A Federação Asiática e o bloco da OTAN se
mantiveram na linha de cooperação interestatal já
adotada. Mas no Bloco Oriental houvera uma revolução
que fez vir à tona os elementos menos recomendáveis.
Dali em diante a discórdia voltou a reinar e, por um
triz, teria causado a guerra.
Rhodan se levantou e olhou pela janela.
Contemplou a área verde da cidade. A chuva artificial
criara um grande jardim em meio ao deserto.
Era preciso que fizesse os homens compreenderem
que teriam de obedecer até que sua inteligência estivesse
madura para a missão que a Humanidade tinha que
cumprir.
* * *
Ao chegarem perto de Kosgorodok, que não passava
de uma aldeia à margem de um reluzente lago salgado,
Welinskij e Lub se instalaram numa cabana desabitada.
Ao que parecia ninguém notou sua presença. Ninguém se
interessou por eles.
Mais uma vez Welinskij recebeu ordem para esperar
enquanto Lub foi à aldeia. Demorou mais que das outras
vezes, só voltando ao escurecer.
Welinskij se assustou quando viu na claridade da
porta que outro homem acompanhava Lub. Não saberia
dizer por que se assustou. Afinal, estava com a
consciência tranquila!
Na cabana não havia luz elétrica, mas Lub trouxera
uma vela. Acendeu-a e colocou-a no chão de terra batida.
Welinskij viu que o recém-chegado envergava um
uniforme de policial e voltou a se assustar.
Além do policial, Lub trouxera outras coisas: um pão
achatado e aromático e vários tipos de linguiça. Colocou
tudo isso no chão e disse:
— Daqui a pouco vamos comer. Mas antes disso este
homem nos contará uma coisa.
Sentaram em torno da vela. O policial não se fez de
rogado. Pôs-se a falar:
— O povo de Plachowskoje entregou um derrotista e
sabotador ao serviço de segurança de Akmolinsk.
Realmente o homem chegou a Akmolinsk, mas
desapareceu de forma misteriosa. Apareceu um homem
que, não se sabe como, conseguiu convencer o chefe do
serviço de segurança, um major, de que vinha de Moscou
e fora incumbido de levar o preso para lá. O major
entregou o preso. Quando foi interrogado a este respeito,
não soube dar qualquer explicação satisfatória. Além
disso, se recusou a admitir que o preso realmente fosse
um derrotista. Também não soube explicar essa opinião.
Há um detalhe muito importante. O preso foi
transportado de helicóptero de Plachowskoje para
Akmolinsk. Estava ferido e foi carregado em maca.
Quando foi descarregado em Akmolinsk, um dos homens
que carregavam a maca recebeu um esbarrão por trás e
caiu ao chão. Acontece que ninguém viu o homem que
fez isso, e o mesmo nunca foi encontrado.
“Outros elementos do serviço secreto seguiram a
pista do desconhecido e do sabotador. Em Akmolinsk os
dois tomaram o Expresso Transiberiano com destino a
Moscou. Em Atbassar o trem fez uma parada em virtude
da advertência sobre a interrupção do fornecimento de
energia proferida por Rhodan. O condutor do trem e o
guarda-linha são unânimes em afirmar que ninguém saiu
do trem durante a parada. Mas alguns passageiros
declaram que viram dois homens caminharem em
direção à aldeia de Atbassar. Um deles usava trajes
esquisitíssimos. É a última notícia que se teve dos dois.
Não apareceram em Atbassar. Estão sendo procurados
em toda a região.”
O policial se levantou sem que ninguém mandasse.
Virou-se, abriu a porta e desapareceu na escuridão. A
porta foi fechada atrás dele.
Welinskij notou perfeitamente que o homem se
movia como um boneco.
Sentiu que Lub o olhava e virou a cabeça.
— Então? — perguntou Lub.
— Isto é uma... uma... — gaguejou Welinskij.
— É o quê? — perguntou Lub com a voz tranqüila.
— Faz isso para me intimidar — explodiu Welinskij.
— Logo percebi que não é o homem pelo qual quer
passar. Pretende me impedir de fazer aquilo que é meu
dever. O sabotador é o senhor, não eu. É um traidor da...
Lub o interrompeu com um gesto. Nem chegou a se
aborrecer.
— Deixe de conversa — disse com toda calma. —
Quer insinuar que subornei o policial para que o mesmo
imaginasse uma história?
— Isso mesmo. E...
— Pois vá até a aldeia. Kosgorodok conta com dois
policiais. Procure o outro e diga quem é. Talvez ele seja
bastante inteligente para reconhecê-lo sem uma
apresentação. Espere para ver o que fará com você.
Welinskij se levantou.
— É isso mesmo que vou fazer — asseverou em tom
áspero. — Depois disso mandarei o policial até aqui,
para que tome conta do senhor.
Lub soltou uma gargalhada.
— Seu idiota!
Welinskij saiu.
Mas só deu alguns passos na escuridão. Afinal, por
que estava desconfiando de Lub? E se o policial tivesse
dito a verdade? Pois ele mesmo não se surpreendera com
o curso inesperado que os acontecimentos tomaram em
Akmolinsk?
“E se tudo que o policial dissera fosse verdade?...”
Outras indagações surgiram na mente de Welinskij.
Só Lub poderia dar a resposta.
Teria subornado o major em Akmolinsk? Que tolice!
Nenhum major se deixaria subornar com tanta facilidade.
Mas...
Welinskij deu meia-volta. Voltou a entrar na cabana
e, antes que Lub pudesse fazer uma observação
sarcástica, disse:
— Está bem... voltei. Deve ser um grande triunfo
para o senhor. Mas lhe prometo que irei imediatamente à
polícia sem me importar com o que poderá acontecer
depois, a não ser que forneça uma explicação plausível
sobre tudo que aconteceu desde hoje de manhã.
Lub o encarou.
— Belas palavras, patriota! — respondeu. — Eu lhe
prometi que em Kosgorodok saberia tudo, não prometi?
Talvez não goste do que vai ouvir. Mas ao pensar a
respeito use a cabeça e não o sentimento. Sente-se!
Welinskij obedeceu prontamente.
— Para começar do princípio — iniciou Lub — meu
verdadeiro nome é Conrad Ezechiel Deringhouse. A
20
responsabilidade pelo segundo nome, e também pelos
outros, cabe a meus pais...
* * *
Se Strelnikov não demonstrou muita sabedoria
política, ao menos deu provas de sua capacidade de
reconhecer uma nova situação e reagir à mesma, quando
nas primeiras horas da manhã do dia 15 de junho
transmitiu suas instruções ao Conselho Supremo.
Já se conformara com a ideia de que não convinha
subestimar as forças do inimigo, e se conduziu de acordo
com a mesma. Determinou que de nenhuma reunião do
conselho deveriam participar mais de cem membros. Era
pouco menos de um terço da totalidade dos seus
componentes.
Dessa forma evitaria que Rhodan conseguisse
dominar todo o conselho de uma só vez, através de seus
inexplicáveis recursos hipnóticos. O voto de um terço
dos membros era necessário para instaurar o debate sobre
qualquer problema, e nem isso Rhodan poderia fazer de
um golpe.
Strelnikov adotou, sem qualquer subterfúgio,
métodos de governo ditatoriais. Dava as ordens e, aos
demais membros do conselho, só cabia cumpri-las.
Enviou três divisões a Komsomolsk para reprimir a
revolta que eclodira naquela cidade.
E fez outra coisa. Interessou-se pelas estranhas
notícias que falavam de um capitão da força aérea que
desaparecera de Akmolinsk. Havia a participação de um
desconhecido ainda mais suspeito; ninguém sabia quem
era ou de onde vinha.
Strelnikov tinha certeza quase absoluta de que se
tratava de um dos agentes de Rhodan. Por isso mobilizou
todos os recursos para prendê-lo. Sabia que Rhodan fazia
muita questão do bem-estar das pessoas que com ele
colaboravam, motivo por que o prisioneiro teria um valor
inestimável como refém.
Era bem verdade que, pelas informações recebidas
até então, era de supor que aquele homem dispunha de
duas faculdades: impor sua vontade aos outros e se tornar
invisível.
Das primeiras vezes que essa afirmativa foi
formulada diante dele, Strelnikov disse que era tolice.
Mas, quando os mesmos acontecimentos foram relatados
pelas mais diversas pessoas com que os dois se
encontravam no caminho, a conclusão que se impunha
era exatamente essa, e Strelnikov se conformou com ela.
Dali em diante a polícia e o serviço de segurança
recebeu instruções de procurarem localizar o capitão
Welinskij, vigiá-lo e aguardar até que o estranho
aparecesse em sua companhia. Todos foram avisados de
que não deveriam atacar o desconhecido pela frente.
Strelnikov nem imaginava que com todas essas
instruções — desde a proibição das reuniões do
Conselho Supremo em sua totalidade até a ordem de
perseguir Welinskij — fez exatamente aquilo que
Rhodan e Deringhouse esperavam dele.
Era esta a guerra psicológica num sentido mais
elevado.
* * *
Depois das explanações de Deringhouse, a discussão
teve um fim tranqüilo. Deringhouse disse:
— Se tiver vontade de sair correndo para fazer minha
caveira em qualquer delegacia de polícia, não demorarei
em agarrá-lo. Estamos entendidos?
A ameaça era desnecessária. Deringhouse expusera
sua missão e suas ideias com a maior franqueza, sem
recorrer a qualquer meio para converter Welinskij à sua
opinião.
Este acreditou na sinceridade de Deringhouse e foi de
opinião que o plano por ele exposto só poderia ser
considerado justo e razoável, até mesmo por um patriota.
Saíram de Kosgorodok e prosseguiram na direção
oeste. Viajaram de trem, roubaram helicópteros, andaram
alguns quilômetros a pé e percorreram algumas centenas
de quilômetros de automóvel.
Nesse meio tempo, já no dia 17 de junho, haviam
chegado a Magnitogorsk. Haviam percorrido quase
metade do trecho de Akmolinsk para Moscou.
Deringhouse se dirigira a Magnitogorsk com uma
intenção bem definida. Tinha certeza de que os setores
responsáveis sabiam, ou desconfiavam, de que ele e
Welinskij se encontravam naquela cidade, e pretendia
lhes dar um osso duro de roer.
De Magnitogorsk saía uma pequena estrada de ferro
em direção a Bajmak, que ficava cerca de cem
quilômetros ao sul. Qualquer um diria que Bajmak era
um lugarejo insignificante, e ninguém saberia dizer por
que se deram ao trabalho de construir uma estrada de
ferro para lá.
Só Deringhouse e mais umas poucas pessoas sabiam.
Em Bajmak era extraído o minério de urânio mais rico
que existia na Terra. Até se falava em veios de urânio
puro que afloravam nas galerias da mina. Era evidente
que o governo se esforçava para guardar o maior sigilo
sobre a jazida. Oficialmente dizia-se que em Bajmak
haviam sido localizadas jazidas de estanho de proporções
reduzidas.
Deringhouse e Welinskij compraram passagem e
tomaram o trem para Bajmak. Mais ou menos a meio
caminho o trem parou num desvio e deixou passar um
comboio carregado de minério. Deringhouse fitou
atentamente os carros cobertos de lona. Subitamente,
Welinskij puxou-o pelo braço.
— Olhe! — chiou, apontando para frente do carro.
Olhando pelas portas envidraçadas, que permitiam a
visão de todos os carros, Deringhouse viu, dois carros
adiante, um homem uniformizado que examinava os
documentos dos passageiros. Virou a cabeça e, do lado
oposto, a uma distância igual, viu outro policial.
Abriu a janela e olhou para fora. Perto da locomotiva
e no fim da composição havia um terceiro e um quarto
policial.
— É o fim — disse Welinskij.
Não poderiam sair dessa. O traje de Deringhouse
chamaria a atenção de qualquer um e, mesmo que ele se
tornasse invisível, Welinskij não dispunha de qualquer
documento que o habilitasse a viajar para Bajmak. Além
disso, todos os policiais deviam conhecer seu rosto de
cor.
Mas Deringhouse não perdeu a calma.
Encontravam-se no terceiro carro a partir da
locomotiva. Welinskij viu que seu companheiro enfiou a
mão no bolso e passou a mexer numa arma que chamava
de projetor mental.
No vagão em que viajavam havia poucos passageiros;
apenas três operários sonolentos sentados num banco
21
próximo à porta traseira.
O policial os despertou e pediu seus documentos.
Depois de examiná-los, se dirigiu a Deringhouse e
Welinskij.
— Não temos documentos — respondeu
Deringhouse.
O policial ficou perplexo. Depois de algum tempo
disse:
— Vocês não podem estar sem documentos. Vamos
logo, mostrem!
Deringhouse deu de ombros.
— Não tenho documentos, e meu amigo também não.
O policial ficou de olhos semicerrados e franziu a
testa.
— Escute aqui! — disse, esticando as palavras. —
Que traje é esse?
Deringhouse passou os olhos pela sua roupa e
respondeu:
— É um traje de alpinista. Acabo de comprar.
— Como é seu nome?
— Lub.
— Só isso?
— Só.
— Como se chama seu amigo?
Deringhouse deixou a resposta a cargo de Welinskij.
Este fez o que se esperava dele, embora a contragosto: se
assustou e só depois de uma demora altamente suspeita
se lembrou de um nome. E por cima de tudo o nome foi
este:
— Popoff!
Na Rússia este nome é tão frequente como Silva entre
nós.
O policial logo percebeu a situação com que se
defrontava.
— Ah! — exclamou. — Esperem aí! Fiquem
sentadinhos!
Com um passo rápido se dirigiu à janela e abriu-a. O
apito soou. Os policiais postados de ambos os lados do
trem responderam.
O policial que realizara o controle de documentos a
partir do carro da frente descera depois de ter concluído
o trabalho no segundo carro.
Deringhouse endireitou o corpo e comprimiu o
acionador do projetor mental contra o metal plastificado
do vagão. Transmitiu a ordem com o máximo de
concentração. Só se descontraiu quando o trem se pôs em
movimento com um solavanco.
O policial gritou alguma coisa para seu colega. Ao
que parecia ainda não percebera que o trem se pusera em
movimento. Deringhouse se colocou atrás dele, enlaçou-
o pelos joelhos, levantou-o e empurrou-o pela janela. A
velocidade do trem ainda era muito reduzida. O policial
não se machucaria na queda.
Os outros policiais demoraram em compreender o
que estava acontecendo. O trem ganhou velocidade.
Nada lhes restou senão gritar e sacudir os punhos.
Deringhouse soltou uma gostosa gargalhada. Não
teve a menor dificuldade em tranquilizar os três
trabalhadores por meio do projetor mental. Depois se
dirigiu a Welinskij.
— Da próxima vez avise o que pretende fazer —
queixou-se este. — Assim poderei me preparar.
Deringhouse continuou a rir.
— Você foi formidável! Agiu exatamente como
alguém que tem a impressão de que foi descoberto.
— Dentro de dois minutos o pessoal de Bajmak
saberá que estamos para chegar. E então?
— Que saibam! — respondeu Deringhouse. — Era
isso mesmo que eu queria.
Welinskij o olhou com uma expressão de
perplexidade, mas Deringhouse não lhe forneceu
qualquer explicação.
— Assumi um único risco neste jogo — disse. —
Não sabia se conseguiria influenciar o maquinista sem
poder vê-lo. Mas você viu, consegui.
* * *
Thora nunca julgara necessário se fazer anunciar a
Rhodan; mas desta vez ela agira assim. Durante os trinta
segundos que se passaram, desde o anúncio até o
momento em que Thora entrou em seu gabinete, Rhodan
procurou imaginar que consequência o choque sofrido no
planeta Peregrino devia ter provocado no espírito da
arcônida, pois de repente soube se adaptar aos modos
terrenos.
A figura ereta surgiu na porta. Era bela, de uma
beleza desconcertante, com seu cabelo muito claro, quase
branco, e o brilho vermelho irradiado por seus olhos.
Mas ainda se notavam os vestígios da decepção e das
provocações que experimentara no planeta Peregrino.
Rhodan convidou-a a sentar.
— Fico satisfeito em vê-la — disse em tom amável.
— Faz bastante tempo que não me visita.
Thora ergueu as sobrancelhas.
— Sempre se leva algum tempo para vencer um
choque deste — respondeu. Aliviado, Rhodan percebeu
que ela zombava de si mesma.
A arcônida tomou lugar à frente de seu interlocutor.
— Vim por um motivo egoísta — confessou. —
Gostaria de saber, para me distrair um pouco, o que faz o
mundo.
Rhodan relatou os fatos minuciosamente e em tom de
conversa.
— Não o compreendo — disse Thora em tom de
espanto, assim que Rhodan concluiu seu relato. — No
início usa vassoura de ferro e agora prefere enfrentar o
Bloco Oriental com um único agente, quando um ataque
concentrado resolveria tudo em poucas horas. E a
solução seria muito mais convincente.
Rhodan sacudiu a cabeça.
— Thora, não entende a psicologia terrena — disse
em tom professoral. — Em minha opinião, Deringhouse
não corre o menor perigo. Nada pode lhe acontecer, a
não ser que faça uma tolice. Por outro lado posso mostrar
à Humanidade em geral, e ao povo do Bloco Oriental em
particular, que, para a Terceira Potência, uma revolução
desse tipo nem chega a representar um acontecimento
que justifique o uso de armas pesadas ou o lançamento
de bombas.
Lançou um olhar indagador para Thora.
— Compreende o que quero dizer? Inclinou o corpo
para frente. — A Humanidade deve compreender que
Rhodan só precisa fazer isto — passou a mão por cima
da mesa — para remover quaisquer dificuldades. Espere
aí! — disse, adiantando-se a uma objeção de Thora. —
Não quero brilhar à custa dos outros. Apenas quero
obrigar a Humanidade a se unir. É este o meu objetivo.
Mas não pretendo usar a força; prefiro recorrer a um
22
método especial, para fazer com que a própria
Humanidade acabe compreendendo. Se aceitasse suas
sugestões, a lembrança que ficaria dos acontecimentos
seria a de que os homens foram obrigados pela força
bruta a unir-se. E é isso que eu quero evitar.
Thora não soube o que responder. Depois de algum
tempo voltou a falar:
— Tem razão, como sempre.
Depois de mais alguns minutos de silêncio
perguntou:
— Quais são as perspectivas de voltarmos a Árcon?
A pergunta representou uma surpresa para Rhodan;
mas sua mente reagiu instantaneamente. Desde os
primeiros dias de sua cooperação com a Terra, Crest e
Thora só estavam empenhados em sua volta para Árcon.
E, mesmo quando já existiam recursos para isso, Rhodan
ficou adiando a realização desse desejo de uma
oportunidade para outra, por motivos de segurança
terrena. Sentiu que não poderia continuar assim por
muito tempo.
— Eu lhe prometi que viajaríamos para Árcon assim
que a Terra estivesse em segurança — respondeu.
Conforme era de esperar, Thora não demorou a
formular outra pergunta:
— Quando será isso?
— Aguardemos a conferência que se realizará hoje
— consolou-a Rhodan. — Se conseguirmos uma união,
mesmo imperfeita, poderemos decolar dentro de algumas
semanas.
Sabia que não era nada disso. A Terra estaria longe
de ser um lugar seguro, mesmo que a conferência que se
iniciava fosse coroada de êxito. Mas, consolando Thora,
evitou uma discussão acalorada.
— Está bem — suspirou Thora. — Depois de
tamanha espera aguentaremos mais algumas semanas.
* * *
Deringhouse fez o trem parar poucos quilômetros
antes de Bajmak e desceu juntamente com Welinskij. Os
que pretenderam impedi-lo foram influenciados
hipnoticamente para adotarem uma atitude mais
razoável.
Afastaram-se dos trilhos cerca de duzentos metros e,
andando paralelamente aos mesmos, se aproximaram de
Bajmak, ocultos pela vegetação. De um lugar elevado
viram que o trem no qual haviam viajado, ao chegar a
Bajmak, foi recebido por metade de um batalhão de
policiais. Por cerca de quinze minutos reinou uma
terrível confusão. Depois disso a tropa policial se dividiu
em vários grupos, que se deslocaram para o norte,
avançando de ambos os lados da linha férrea.
— Estão à nossa procura — disse Deringhouse.
Prosseguiram em sua marcha. Por um motivo que de
início lhes parecia inexplicável os policiais nunca se
afastavam mais de cinqüenta metros dos trilhos. Dessa
forma nunca encontrariam os sabotadores.
Posteriormente Deringhouse veio a saber que, em virtude
de suas armas superiores, os policiais receberam ordem
para não penetrarem em qualquer área onde a visão não
fosse perfeita. O comandante do destacamento policial
de Bajmak não estava interessado em enviar duzentos
policiais para o interior do matagal, e meia hora depois
ver duzentos sabotadores saírem de lá.
Welinskij e Deringhouse atingiram o lugarejo meia
hora depois, vindos do sul. Como ninguém os esperasse
de lá, conseguiram se aproximar a cem metros do
edifício em que funcionava a administração da pretensa
mina de estanho sem serem notados. Passaram o tempo
que faltava até o escurecer num matagal grande e denso,
sem que qualquer dos grupos de policiais que
patrulhavam a área os descobrisse.
Só depois das dez horas puseram mãos ao trabalho,
do qual por enquanto só Deringhouse tinha uma ideia
clara. Welinskij só sabia que no momento adequado
devia ser visto por alguém. E Deringhouse não ocultou o
fato de que isso representaria a parte mais difícil do
trabalho.
— Não se esqueça — avisou ao companheiro. — Eu
estou protegido contra as balas, mas você não. Não
assuma qualquer risco.
Aproximaram-se cautelosamente do complexo de
edifícios. Atrás da maior parte das janelas a luz já se
apagara. Só um dos barracos continuava iluminado por
uma desagradável luz fluorescente branco-azulada.
Deringhouse indicou o lugar em que Welinskij deveria
ficar.
— Aqui estará protegido — cochichou. — Voltarei
em tempo. Só se mostre o suficiente para que um policial
medianamente competente consiga gravar seu rosto.
Welinskij ficou nervoso.
— A quem vou me mostrar? Que diabo!
— A qualquer pessoa. Daqui a pouco haverá gente de
sobra nesta área.
* * *
Frunse, um georgiano, naquela noite de plantão no
barraco de vigilância, estava tranquilamente sentado à
mesa que ficava perto da janelinha com o pequeno
guichê. Para vencer o sono procurou afundar na leitura
de um jornal.
Frunse não era um homem muito instruído, mas
possuía uma vontade de ferro. Não falava o russo muito
bem, e a leitura do jornal se tornava ainda mais difícil.
Mas foi atravessando tenazmente os textos e desviou a
idéia de sono de sua mente até vencê-la definitivamente.
Estava entretido na leitura de uma notícia sobre uma
estranha mortandade do gado verificada na Sibéria
ocidental quando a porta se abriu. Frunse atirou o jornal
sobre a mesa e fitou a porta. Estava absolutamente certo
de que ninguém se aproximara do barraco. Havia um
único caminho que conduzia à porta, e apesar do esforço
exigido pela leitura teria percebido se alguém o
utilizasse.
A porta tinha fecho automático; não poderia se abrir
por si, nem permanecer aberta por tanto tempo.
Frunse se levantou. Sentia um pouco de medo, mas
precisava ver o que havia com a porta. Nesse instante ela
voltou a se fechar. Depois de hesitar um instante, Frunse
voltou à sua cadeira. Uma porta fechada não o
preocupava, e o que passou já pertencia ao passado. Mas
estava tão irritado que levou alguns minutos fitando os
espaços vazios do recinto, como se alguma coisa pudesse
estar escondida por ali.
Depois voltou a pegar o jornal.
Pouco depois voltou a se sobressaltar. Ouvira um
ruído. Olhou por cima do jornal, mas não viu nada. Só
quando voltou a ouvir o mesmo ruído percebeu a direção
de onde vinha.
O vigia se ergueu lentamente. Alguns segundos
preciosos se passaram antes que compreendesse que
23
aquilo não era obra de um fantasma, mas de alguém que
sabia perfeitamente o que queria. Atrás das duas chapas
que acabavam de ser retiradas ficava o labirinto de fios
do equipamento de segurança, cujo painel central fora
instalado na mesa de Frunse. Não entendia nada dos
detalhes técnicos da instalação; mas sabia que qualquer
invasor, inclusive um sabotador, poderia penetrar nos
edifícios da administração e nas galerias sem ser
impedido ou mesmo notado se a instalação fosse
destruída ou danificada.
Isso não podia acontecer!
Com dois saltos enormes se colocou diante da parede.
Estendeu a mão para agarrar o invisível. Mas em vez de
agarrá-lo sentiu uma pancada violenta, que o atirou para
o lado oposto da sala. Por algum tempo ficou estendido
no chão, ofegante.
O medo e a raiva lutaram em sua mente. Olhando
para cima, ele viu que as pontas dos fios embutidos na
parede se moviam, ligações eram desfeitas e outras
estabelecidas. Não compreendia, mas tinha certeza de
que o invisível arruinaria as instalações de tal forma que
alguns dias se passariam antes que pudessem ser
reparadas.
Frunse rastejou cautelosamente em direção à sua
mesa. Apoiando-se em um dos pés, ergueu o corpo, abriu
a gaveta e retirou a pistola. Por baixo da mesa fez
pontaria em direção ao lugar em que supunha estar o
invisível e, num acesso de raiva e coragem, apertou o
gatilho.
A descarga provocou um estrondo naquele recinto
pequeno. Mas o efeito foi totalmente diferente do que
esperava: o estrondo da explosão foi superado pelo ruído
metálico do impacto do projétil contra a parede. Seguiu-
se um uivo cortante e o estilhaçar do vidro. Ao se voltar,
apavorado, percebeu que o tiro disparado para frente
quebrara a vidraça atrás dele.
Mas Frunse era um homem duro, e o fato
tranqüilizador de que o estranho nem tomava
conhecimento dos seus esforços, mas continuava a
trabalhar calmamente, diminuiu o medo de que se sentia
possuído. Inclinou-se sobre a mesa e levantou o fone.
Discou apressadamente os três algarismos da polícia e
gritou:
— Aqui entrou um invisível que está destruindo as
instalações do equipamento de segurança.
Deixou cair o fone e voltou a se abrigar atrás da
mesa.
O telefonema também não perturbou o invisível. Pelo
estalo dos fios partidos e pelo crepitar das faíscas, Frunse
percebeu que continuava a trabalhar.
“Você não perde por esperar”, pensou com o ânimo
furioso. “Logo será agarrado.”
Mas não tinha nenhuma ideia clara sobre a maneira
pela qual a polícia poderia ser mais bem sucedida contra
o inimigo invisível do que ele o fora.
Soltou um grito quando, pouco antes do momento em
que, pelos seus cálculos, a polícia devia aparecer, os
estalos e o crepitar cessaram subitamente e no mesmo
instante a porta voltou a se abrir.
— Nãããoo! — gritou Frunse. — Está escapando!
Passou por baixo da mesa e correu à porta. Mas era
evidente que na escuridão não via mais do invisível do
que vira na sala bem iluminada.
Welinskij ouviu as pisadas de muitos pés. Poucos
minutos antes ouvira o tiro disparado no barraco e o uivo
da bala que ricocheteava.
As pisadas se aproximaram. Vinham da estrada e
entraram no caminho que dava para o barraco. Pouco
depois os vultos dos policiais em desabalada carreira
surgiram na escuridão.
— Nãããoo! — gritou alguém do interior do barraco,
no mesmo instante em que Welinskij saía do seu
esconderijo. — Está escapando!
Os policiais se aproximaram. Num rápido exame,
Welinskij contou oito deles. A escuridão era quase
completa, mas viram-no. O grupo estacou. Depois que
pelos seus cálculos fora visto o suficiente, Welinskij
desapareceu no matagal. Alguém gritou:
— Sigam-no! Vamos! É ele!
Mas do lado do barraco ouviu-se a voz lamurienta de
alguém que falava um péssimo russo:
— É aqui, seus idiotas! Foi daqui que ele
desapareceu!
Welinskij correu pelo matagal. Estava a quase
cinqüenta metros dos policiais quando estes se refizeram
da confusão. Dois deles continuaram a persegui-lo. Os
outros correram em direção ao barraco.
Subitamente Welinskij percebeu que alguém o
segurava pela mão. Assustou-se. Mas Deringhouse ainda
pretendia tomar outras iniciativas.
— Abrace-me por trás — ordenou a Welinskij.
Este obedeceu.
— Agora realizaremos um pequeno vôo, para nos
afastarmos daqui o mais rápido e o mais longe possível.
Neste traje está embutido um gerador que, ligado à
potência máxima, produz um campo antigravitacional
capaz de suportar nós dois. Para isso devemos dispensar
a invisibilidade. Mas de noite isso não será tão perigoso.
Antes que pudesse proferir uma palavra, Welinskij
teve a sensação de quem se encontra num elevador que
desce em alta velocidade. Seu estômago parecia se
levantar um pouco. Assim que se recuperou do susto, viu
as luzes da mina bem abaixo do lugar em que estava.
— Não tenha medo — tranquilizou-o Deringhouse.
— Não é muito confortável, mas é melhor que fugir a pé.
— Mas se eu o soltar... — disse Welinskij, falando
com dificuldade.
— Nesse caso não acontecerá nada — explicou
Deringhouse. — Continuará a voar comigo. Só se der
socos ou pontapés em mim será desviado, e assim que
abandonar a gravisfera artificial cairá. Portanto, é
preferível que continue comigo.
Riu. Mas Welinskij não estava com vontade de rir.
Em seu interior o medo do desconhecido, do nunca visto,
lutava contra a admiração provocada por esse produto de
uma tecnologia incrivelmente desenvolvida.
Depois de algum tempo se acostumou à sensação
estranha da ausência parcial de gravidade e começou a se
interessar pelo que se passava em torno dele. Pelos
contornos pouco nítidos das colinas do sul da cadeia dos
Urais, que desfilavam abaixo deles, calculou em
duzentos metros a altitude em que voavam e em cem
quilômetros por hora a velocidade. A força do
deslocamento do ar fora reduzida bastante pelo campo de
gravitação artificial. Welinskij não sentia qualquer
incômodo, mesmo quando olhava por cima do ombro de
Deringhouse.
Pelo que notava, se deslocavam na direção oeste.
24
V
Embora, na qualidade de perito militar, o marechal
Sirov participasse do Conselho Supremo apenas como
um adido viu-se diminuído como os demais quatrocentos
e quinze membros com direito de voto: foi reduzido à
simples condição de um receptor de ordens.
Mantinha-se escondido e mudava diariamente de
esconderijo.
Todos os dias, sempre numa hora diferente, entre as
oito da manhã e o meio-dia, Sirov recebia um chamado
telefônico e uma voz desconhecida lhe transmitia as
notícias mais recentes. Sempre que fosse importantes ele
as transmitia através de mais de vinte canais diferentes,
cujo emaranhado geralmente lhe era desconhecido,
fazendo-as chegar aos seus subordinados, a fim de que
estes tomassem as providências que se fizessem
necessárias.
Pelo menos três vezes por dia Sirov recebia um
telefonema de um homem que, segundo supunha, era o
secretário-geral Strelnikov. Este formulava sugestões de
como se devia reagir a esta ou aquela situação e esperava
que Sirov considerasse essas sugestões como ordens; o
que o marechal fazia com a melhor boa vontade.
Naquele dia, em 18 de junho, Sirov recebeu, logo
depois da transmissão das últimas notícias, um chamado
de alguém que falava com a voz disfarçada.
— Grande vitória — disse a voz.
— Grande êxito — respondeu Sirov. Eram as senhas
combinadas para que Sirov recebesse como ordens tudo
que lhe fosse dito em forma de sugestão.
— Temos novidades a respeito do agente de Rhodan
— prosseguiu a voz. — Ontem de noite apareceu em
Bajmak, na área de Magnitogorsk, pela forma usual e
incompreensível. Demonstrou muita autoconfiança. O
capitão Welinskij estava com ele. Safou-se mal e mal de
um controle realizado num trem. Na noite do mesmo dia
o sistema de segurança da mina de urânio foi danificado
de tal forma que o pessoal terá que trabalhar pelo menos
dois ou três dias para repará-lo.
Naquela voz notava-se um tom de triunfo. De início
Sirov ficou admirado com isso; mas logo compreendeu.
— Daí se pode concluir sem a menor dúvida —
prosseguiu a voz — que Welinskij e aquele agente
tentarão atacar a mina, e isso antes que as instalações de
segurança tenham sido reparadas. Portanto, sabemos que
nas próximas vinte e quatro horas, ou ainda nas próximas
quarenta e oito horas, os dois permanecerão em Bajmak.
Sirov compreendeu.
— Quero que mande seus melhores elementos para lá
— disse a voz. — Os dois não devem escapar!
— Entendido — respondeu Sirov. — Providenciarei
imediatamente.
— Muito bem. Por enquanto só tivemos
conhecimento de um agente que Rhodan introduziu em
nosso território. Tudo indica que realmente não haja
outro. Logo, parece que no momento não há nenhum
perigo para Moscou.
Isso representava certo alívio, não só para Strelnikov.
A palestra terminou com o estalo do fone. Sirov
baixou o gancho e discou rapidamente uma seqüência de
algarismos que sabia de cor. Transmitiu as instruções de
Strelnikov e todas as informações adicionais, e insistiu
na necessidade de que Welinskij e o agente fossem
capturados de qualquer maneira.
No curso do telefonema Sirov ouviu um ligeiro
chiado no pequeno apartamento que ocupava naquele
dia. Interrompeu a palestra e se virou. Podia ver a área
fronteira à porta; não havia ninguém. Disse para si
mesmo que algum ruído da rua devia ter chegado até lá e
continuou a falar ao telefone.
Quando terminou o telefonema, ficou sentado mais
algum tempo diante do telefone, mergulhado em
pensamentos e olhando para a janela encortinada. Depois
se levantou para pegar o maço de cigarros que se
encontrava no bolso do paletó.
Quando ia se afastando da escrivaninha, ele os viu, os
dois.
Um deles era Welinskij. Sirov vira muitos retratos
dele e o reconheceu imediatamente. O outro devia ser o
agente da Terceira Potência. Era alto e magro, tinha o
cabelo louro cortado à escovinha e seu rosto exibia um
sorriso irritante.
— Bom dia! — disse o louro com a voz amável. —
Entramos de forma um tanto estranha; queira desculpar.
Não tivemos outra alternativa. Pensávamos que...
Deu um salto enorme para o meio da sala. Era um
salto muito maior que o que Sirov pretendia dar para
alcançar a gaveta da escrivaninha.
O marechal teve a sensação de ter sido envolvido
num furacão. Numa raiva surda percebeu que o louro
alto nem quis recorrer às suas armas, sem dúvida muito
superiores; confiava apenas na força dos punhos e na
agilidade física.
Mas a raiva de Sirov não adiantou de nada. Levou
uma porção de socos doloridos antes que pudesse
levantar os braços para se proteger. Quando tentou
escapar, Deringhouse lhe bateu com ambos os punhos
em cima da cabeça. Sirov tonteou, dobrou os joelhos,
não conseguiu se manter de pé e caiu ao chão com um
baque.
A respiração de Deringhouse nem chegava a ser mais
rápida. Apenas a amabilidade havia desaparecido de seu
rosto.
— Não tente isso uma segunda vez! — avisou ao
marechal. — Dispomos de outros meios; da próxima vez
será um homem morto.
Sirov procurou se levantar. Deringhouse fez um gesto
e Welinskij veio em auxílio do marechal, arrastando-o
para uma cadeira e segurando-o. Deringhouse saiu da
sala. Voltou com um monte de fitas de plástico e as
atirou a Welinskij.
— Amarre-o! — ordenou. — Tenha cuidado. Sua
segurança depende disso.
Depois, perguntou a Sirov.
— Sabe por que estou aqui?
O marechal não respondeu. Deringhouse esboçou um
sorriso zombeteiro.
— Não venha me dizer que seu serviço de
informações é tão ineficiente. A conferência dos
governos legais das potências terrenas decidiu na tarde
de anteontem, em Galáxia, que os objetivos e métodos do
atual governo do Bloco Oriental deviam ser condenados
e exigiu a punição dos culpados por uma corte mundial.
Já deve ter ouvido falar nisso.
A essa altura Sirov já não conseguiu dominar a raiva.
— Não seja ridículo! — fungou. — Em Galáxia
25
podem decidir e exigir o que quiserem. Quem vai se
interessar por isso?
— Você — respondeu Deringhouse. — Está em
minhas mãos, e delas só sairá para ser entregue ao
carcereiro de Galáxia.
Sirov se esforçou para soltar uma risada de escárnio,
mas não conseguiu.
— Aliás, você não será o único — prosseguiu
Deringhouse em tom indiferente. — Da mesma forma
que o encontrei, ainda vou pôr as mãos em algumas
outras pessoas. Assim não sentirá tanta solidão.
Sirov lhe lançou um olhar indagador. Deringhouse
percebeu que estava interessado em saber como pudera
localizar seu esconderijo. Mas não lhe explicou.
— Afinal, você só é um dos pequenos patifes —
disse Deringhouse.
Com isso a raiva de Sirov voltou a crescer; mas por
mais que forçasse as fitas de plástico, elas não cediam.
À saída do apartamento, Deringhouse transmitiu suas
instruções a Welinskij.
— Tenha cuidado! — preveniu-o. — Não caia em
qualquer truque. É preferível nem falar com ele. Não
devo demorar. Se houver um imprevisto, use o radiador
térmico. Infelizmente não posso lhe dar coisa melhor.
Welinskij voltou ao interior da residência e
Deringhouse se retirou. Examinou o lugar da porta onde
a fechadura fora retirada cuidadosamente com o radiador
térmico. Estava oculto sob a maçaneta e só mesmo
alguém que olhasse cuidadosamente e de perto notaria
alguma coisa.
Ali não haveria qualquer perigo. Mas, se Sirov
estivesse sendo vigiado, a coisa seria diferente. Nesse
caso...
Que nada! Welinskij possuía uma arma superior e
saberia se cuidar. Desde que dispusesse de mantimentos,
poderia resistir com o radiador térmico a um exército
inteiro enquanto conseguisse manter os olhos abertos.
Até então ele, Deringhouse, já estaria de volta.
Antes de tomar o elevador para descer ao térreo,
ativou o campo de deflexão luminosa. Assim que chegou
à calçada se elevou a uma altitude de dez metros e voou
acima do trânsito.
Seu destino era a central de telecomunicações. Por ali
passavam todos os condutos telefônicos de Moscou,
inclusive os dos dez ou quinze videofones de que a
cidade já dispunha.
Deringhouse tivera a ideia de penetrar na central de
telecomunicações enquanto, em companhia de Welinskij,
viajava de Magnitogorsk a Moscou, parte de avião, parte
de trem ou de carro. Chegando a Moscou, logo
transformou a idéia em realidade. Recorreu ao projetor
mental para penetrar no edifício e pelo mesmo meio
obteve permissão de acompanhar trechos das mensagens
do setor oficial F. Recorrera à compulsão hipnótica para
obter do diretor a informação de que as mensagens
internas do governo eram transmitidas por esse setor.
A tentativa foi coroada de êxito. Depois de dez
minutos, descobriu o esconderijo do marechal Sirov.
Acompanhara a transmissão das notícias.
Por simples acaso Sirov foi o primeiro a ser
descoberto. Poderia ter sido qualquer outro membro do
Conselho Supremo.
Deringhouse sabia que, no momento, era mais
importante descobrir o esconderijo de Strelnikov,
secretário-geral do conselho.
Se conseguisse pôr as mãos nele, o êxito do plano de
Rhodan estaria garantido.
Deringhouse não subestimou o risco que correria
numa busca a Strelnikov. Para uma pessoa isolada, o
exponencial de perigo que envolvia o projeto cresceria
com o tempo, por melhor que fosse seu equipamento.
Além disso, Deringhouse percebeu pela primeira vez
que, ao se unir a Welinskij, arranjara antes um peso que
um auxílio.
Aumentou a velocidade e, dez minutos depois que
deixara Welinskij, chegou ao edifício da central de
telecomunicações.
* * *
Rhodan procedeu metodicamente. Confiava antes de
tudo na força dos seus argumentos. Não havia nenhum
problema que o preocupasse tanto como o da união da
Humanidade, e facilmente poderia influenciar os
membros e representantes dos governos no sentido de
concordarem com suas sugestões. No entanto, nada fez
para que isso acontecesse.
Agiu de igual para igual. Inscreveu-se na lista dos
oradores e a palavra lhe foi concedida em primeiro lugar.
Nenhum dos presentes acreditava que aquilo que teria
para dizer fosse mais importante que a mensagem que
solicitara a conferência.
Quem esperava que Rhodan iniciasse seu discurso
com um relato do que fizera nos últimos quatro anos e
meio — e houve algumas pessoas que acreditavam que
ele utilizaria a conferência como plataforma publicitária
— logo viu que estava enganado. Rhodan falou sobre
aquilo que, nesse meio tempo, havia acontecido na Terra.
Leu o relatório sobre a revolução no Bloco Oriental,
redigido por seus agentes. Vários detalhes chegaram ao
conhecimento público pela primeira vez. Tratava-se de
fatos que os novos detentores do poder julgavam
acobertados pelo segredo.
Rhodan estava consciente dos efeitos que suas
revelações produziriam. Por sugestão sua e sem que os
delegados se opusessem, a conferência foi irradiada pelas
potentes emissoras de televisão da Terceira Potência e
retransmitida por todas as emissoras terrenas, com
exceção das situadas no território dos Estados que
compunham o Bloco Oriental.
Rhodan repetiu as recomendações formuladas aos
governos dos blocos de potências durante as conferências
panterrenas realizadas alguns anos atrás. Provou que o
novo governo do Bloco Oriental nada fizera para cumprir
essas recomendações e, mais do que isso, infringira e
continuava a infringir as mesmas.
Mas a acusação de maior peso formulada contra os
governos do Bloco Oriental foi a de que pretenderam
desencadear uma guerra que teria significado o fim da
Humanidade, se a Terceira Potência não tivesse
interferido a tempo.
As explanações de Rhodan não duraram mais que
uma hora. Assim mesmo abrangeram toda a
problemática em formulações sucintas e precisas. Ao
concluir disse:
— Senhores sem dúvida todos têm o direito de
levantar a voz em nome daquele grupo de mais de
quatrocentos milhões de pessoas, que já haviam
26
começado a acreditar que dentro de poucos anos a Terra
seria um mundo da união, e que sofreram uma decepção
tão cruel em virtude de uma revolução que não merece
esse nome. Quero formular a seguinte proposta: a
conferência tomará uma resolução pela qual declarará
que os objetivos e métodos do Conselho Supremo do
Bloco Oriental são um procedimento criminoso e
contrário aos direitos humanos.
A proposta obteve aprovação unânime em primeira
votação.
Rhodan desceu da tribuna e deixou que outros
tomassem a palavra. Ficou satisfeito ao constatar que os
oradores seguintes, sem que o soubessem, se esforçavam
para aplainar o caminho para a outra proposta que
pretendia formular. Não interferiu nas discussões até que
julgou chegado o momento. Foi ao anoitecer daquele dia,
quando a conferência ameaçou transbordar da indignação
causada pelos métodos desumanos do regime que se
instalara no Bloco Oriental, métodos estes que foram
examinados sob os ângulos mais variados.
Levantou-se e propôs a criação de uma corte mundial
que teria a seu cargo o resguardo dos direitos humanos
em todos os pontos do globo. Ainda sugeriu que os
homens que detinham o poder no Bloco Oriental fossem
denunciados perante essa corte, trazidos à presença do
juiz e condenados.
Quando a proposta foi aceita, a grande maioria das
pessoas que se encontravam no enorme auditório de
Galáxia acreditou que a deliberação não passava de um
ato simbólico. Ninguém concebeu a idéia, e muito menos
acreditou que Rhodan conseguiria transformar a
resolução em realidade, nos seus mínimos pormenores.
Os trabalhos da conferência foram suspensos até a
manhã do dia seguinte. Nesse dia foram eleitos os juizes
da recém-criada corte mundial. A presidência foi
oferecida a Rhodan, mas este não a aceitou. O posto de
juiz supremo foi confiado a Frederick Donnifer, um
australiano que desempenhava as funções de ministro da
justiça do governo de Camberra. E logo se chegou a
acordo sobre o preenchimento dos demais cargos, ainda
mais que Donnifer formulava propostas que todos
julgavam aceitáveis.
Um orador indiano se queixou de que havia um
tribunal e um acusado, mas faltava a lei pela qual os
juízes poderiam se guiar ao proferir a condenação.
A objeção tinha fundamento. Mas logo se verificou
que o código a ser adotado poderia ser a Declaração dos
Direitos Humanos promulgada pelas Nações Unidas, que
não precisaria ser submetida a qualquer alteração.
Na noite daquele dia o tribunal foi constituído. Num
breve discurso, Rhodan ressaltou que em sua opinião o
ato representava a criação de mais uma instituição
panterrena, que oportunamente seria seguida de outras. A
mais importante e provavelmente a última seria o
governo panterreno.
A primeira iniciativa, a criação da Federação de
Defesa da Terra, não fora bem sucedida, mas valera
como primeiro passo.
Decidiu-se que, no dia seguinte, seria discutida a
forma de uma cooperação que precederia a constituição
da confederação terrena e posteriormente de um Estado
federado terreno. Os participantes da conferência se
separaram na convicção de terem feito o possível para
promover o progresso da Humanidade.
Rhodan providenciara para que seus hóspedes
recebessem um tratamento condigno em Galáxia. Tinha
certeza de que a profunda impressão que a cidade
causava nos visitantes e a hospitalidade que lhes estava
sendo dispensada representariam fatores positivos no
encaminhamento das negociações.
* * *
Meia hora se passou sem que Sirov dissesse uma
palavra. Welinskij estava sentado atrás dele e descansara
a arma de radiações no colo. Sirov não podia vê-lo. De
vez em quando, o capitão fumava um cigarro, para matar
o tempo e vencer o nervosismo.
Depois de algum tempo Sirov disse:
— Não poderia ao menos explicar o que esse homem
e a Terceira Potência pretendem fazer?
Welinskij não achou nada demais em responder à
pergunta. Deringhouse o esclarecera a este respeito, mas
Welinskij cometeu o erro de se julgar uma espécie de
missionário, a quem cabia levar a luz da verdade até
mesmo aos corações mais sombrios.
Subitamente Sirov interrompeu seu interlocutor.
Inclinou a cabeça para a frente o mais que as fitas de
plástico que lhe prendiam os ombros o permitiram.
— Está ouvindo? — cochichou.
Welinskij não ouviu nada.
— Alguém está subindo a escada — disse Sirov. —
Quem será? Seu companheiro?
Welinskij se levantou e segurou o radiador térmico.
— Vou dar uma olhada — disse.
Foi na ponta dos pés até a porta e saiu para a área
fronteira. Parou junto à entrada da residência e aguçou o
ouvido. Percebeu uma série de passos, mas talvez isso
não significasse nada. O edifício era grande, e seria de
estranhar se naquele instante não houvesse ninguém
pelas escadas.
Os passos não se fizeram ouvir nas imediações da
porta. Assim que se convenceu disso, Welinskij abriu a
porta o suficiente para enfiar a cabeça na fresta. Olhou
para a direita e para a esquerda; não havia ninguém.
Tranquilizado, fechou a porta.
No mesmo instante, ouviu um estalo surdo vindo da
sala em que Sirov se encontrava. Assustado, deu dois
passos largos, se colocou na porta de entrada e olhou
para a sala.
Sirov continuava sentado na sua cadeira... mas onde
ela estava! O marechal devia ter conseguido movê-la por
meio de vários solavancos. Naquele momento a cadeira
se encontrava ao lado esquerdo da escrivaninha e caíra
para frente. Sirov estava com o peito encostado ao canto
do móvel e teve que desenvolver um esforço tão intenso
para manter a cabeça ereta que as veias do pescoço se
incharam.
Welinskij levantou o radiador térmico.
— Não faça isso, seu idiota! — fungou Sirov. — Pelo
amor de Deus, fique onde está.
Welinskij hesitou. Estava perplexo. Só quando Sirov
deixou a cabeça pender para frente e seu rosto se
desfigurou numa careta de deboche percebeu o que
realmente estava acontecendo.
Numa espécie de movimento reflexo levantou a
pesada arma térmica. O dedo se entortou junto ao
gatilho. Mas no mesmo instante foi agarrado por um
27
turbilhão ensurdecedor e seus pensamentos se apagaram.
* * *
A paciência de Deringhouse foi submetida a uma
prova dura. Strelnikov não parecia ser um dos usuários
mais assíduos do telefone. No curso de uma hora não
chegou a dar sinal de vida.
A não ser que o homem que, no início de cada
telefonema, dizia “grande vitória” e obtinha a resposta
“grande êxito” fosse Strelnikov. A possibilidade não
podia ser desprezada.
Depois de duas horas Deringhouse abandonou seu
posto de escuta. Anotara a posição do aparelho que
costumava ser usado pela “grande vitória”. Daria uma
olhada no local. Se não conseguisse nada, poderia voltar.
Saiu da central de telecomunicações às onze horas e
trinta e cinco minutos; dez minutos depois chegou à Rua
Vinte e Oito de Outubro, onde ficava o esconderijo de
Sirov. Logo viu a aglomeração que se formara diante do
prédio e não duvidou um instante que alguma coisa
acontecera com o marechal. Estava invisível; entrou
cautelosamente pelo largo portal, para não esbarrar em
ninguém, e voou pela escadaria em direção ao oitavo
andar, onde ficava a residência de Sirov.
Diante da residência notou um grupo de homens
uniformizados. Ainda percebeu uma fenda de uns dez
centímetros de largura, que descia pela parede do
corredor.
Parou no corredor, esperando que os policiais
deixassem a porta livre. Ouviu que, no apartamento,
houvera uma explosão cercada de circunstâncias bastante
estranhas. Ao que parecia ninguém sabia dizer quem era
o ocupante da residência, e ninguém tinha a menor ideia
sobre a causa da explosão.
Depois de ter esperado quinze minutos, Deringhouse
chegou ã conclusão de que qualquer perda de tempo
representaria um risco. Lançou mão do projetor mental.
Os policiais obedeceram à ordem que lhes foi transmitida
e afastaram-se para o lado, liberando a porta.
No interior do apartamento pelo menos seis policiais
se mantinham ativos. Deringhouse obrigou um por um a
se submeter à sua vontade e entrou no escritório de
Sirov.
No lugar em que antes existia a porta, abria-se um
enorme buraco. O soalho estava quebrado e parte do teto
desabara por cima da porta. Pelo buraco, via-se o
apartamento do nono andar.
Era estranho que a explosão quase não causara
nenhum dano no interior da sala. Uma prateleira de
livros caíra e seu conteúdo se espalhara pelo chão. Era
só.
O livro que fora atirado mais longe estava perto da
mão de um homem que a explosão erguera no ar e atirara
ao chão.
Era Welinskij.
Deringhouse se abaixou sobre ele, enquanto os
policiais, obedecendo ao seu comando hipnótico, se
enfileiravam junto à parede. Welinskij estava deitado de
bruços. Deringhouse o virou de costas e percebeu à
primeira vista que estava morto.
Welinskij!
Deringhouse cerrou o punho. Fora um jovem tão
entusiasta e tolo! Não deveria tê-lo deixado a sós com
Sirov, a raposa velha.
Mas ia lhes mostrar o que receberiam em troca desse
assassinato.
* * *
Dali a quinze minutos se encontrava novamente na
rua. Percebeu o risco que corria. Sirov fugira e era mais
que natural que acreditasse que ele, Deringhouse,
voltasse nas próximas horas para revezar Welinskij.
Mesmo um homem invisível equipado com uma arma
psicológica poderia ser capturado, desde que o número
de perseguidores fosse suficiente e estes agissem com
bastante habilidade.
No curso dos quinze minutos examinara o buraco
aberto pela explosão. Mesmo quem não fosse perito em
explosivos perceberia que a carga fora colocada de tal
maneira que mais de noventa e cinco por cento do efeito
explosivo se desenvolveria verticalmente para cima, a
partir da soleira da porta. Welinskij devia estar ali
quando a bomba foi detonada ou provavelmente ainda
estaria no hall, com a porta entreaberta.
Deringhouse também encontrou o detonador. Era um
botão de aparência inofensiva que se encontrava sobre o
tampo da escrivaninha. Perto desta se encontrava a
cadeira em que Sirov estivera sentado, ainda com os
restos das fitas de plástico.
Deringhouse pôde fazer a reconstituição mental dos
acontecimentos. Por algum motivo, Welinskij saíra da
sala. Pobre-diabo! Nunca deveria ter feito uma coisa
dessas. Sirov aproveitou o tempo para escorregar com a
cadeira para junto da escrivaninha e, no momento em
que Welinskij abriu a porta para entrar, se inclinou para
frente e comprimiu o botão com a testa.
Aquele apartamento devia pertencer ao governo. A
bomba fora colocada ali quando foi comprado ou
construído pelo governo. Quem colocou a bomba
naquele local demonstrou muita habilidade. Qualquer um
que se encontrasse num aperto conseguiria fazer com que
seu inimigo fosse à porta sob qualquer pretexto. Desde
que nesse preciso instante conseguisse colocar a mão, ou
qualquer coisa que se movesse, em cima do botão, o caso
estaria liquidado.
Para Sirov estava liquidado; e além de tudo o
marechal se apossara do radiador térmico de Welinskij.
Deringhouse compreendeu que o incidente exigia
uma modificação dos seus planos. Há esta hora
Strelnikov já devia ter sido prevenido e naturalmente
abandonara seu esconderijo; se realmente era a “grande
vitória”.
De qualquer maneira Deringhouse resolveu dar uma
olhada no esconderijo. Muitas vezes uma pessoa que se
vê obrigada a sair às pressas deixa uma pista. Tirou o
bilhete com a anotação do bolso e o leu de maneira que
ficasse dentro do campo de deflexão.
Era na Rua Kujbyschev. Deringhouse se lembrou de
que a rua ficava num bairro da zona leste. Dispôs-se a
subir quando notou um movimento acima de sua cabeça.
Olhou e viu um trançado fino de fios metálicos, que uma
turma de trabalhadores procurava firmar nos telhados de
ambos os lados da rua.
Assustou-se. Virou a cabeça e viu que o mesmo
trançado cobria a rua em todos os lados. Além disso, em
cada esquina, o mesmo descia dos telhados até a rua. E
subitamente dezenas de policiais surgiram de ambos os
lados daquele trecho de rua.
Era a armadilha perfeita!
28
Deringhouse não teve ilusões. O alcance de seu
projetor mental não ultrapassava cinqüenta metros. A
essa distância poderia, quando muito, submeter dez
homens à sua vontade, desde que eles estivessem bem
juntos.
Imaginou quais seriam as ordens transmitidas a estes
policiais. Não deviam sair do lugar. E estavam tão
encostados um ao outro que nem mesmo um cachorro de
tamanho médio conseguiria passar entre eles.
Provavelmente estavam preparados para mobilizar
reservas assim que um deles saísse do lugar, deixando
uma passagem. Naturalmente nas ruas laterais várias
companhias de polícia estariam de prontidão, preparadas
para acudir ao primeiro chamado e ajudar a encurralar o
homem invisível.
A esse homem invisível seria impossível exercer um
domínio mental simultâneo sobre todos os policiais.
E a tela de arame?
Não havia a menor dúvida de que era mantido sob
observação. Telas de arame deste tipo costumavam ser
fabricadas para as mais variadas finalidades. Submetidas
a uma corrente elétrica de reduzida intensidade,
indicavam, através de um instrumento não muito
complicado, em que ponto eram tocadas. Na altura dos
telhados aconteceria a mesma coisa que nas ruas
transversais, se procurasse sair da armadilha por lá.
No entanto, não podiam saber se ele se encontrava na
armadilha. Portanto, só precisava esperar alguns dias até
que os policiais fossem embora e retirassem as telas.
Alguns dias!...
Não podia esperar nem mesmo algumas horas. Cada
minuto perdido na atividade dava a Strelnikov novas
oportunidades de apagar sua pista.
Também poderia se libertar à força. Ainda possuía o
radiador de nêutrons. Poderia abrir uma brecha e escapar.
Mas se lembrou do que acontecera em Vênus. O fogo
concentrado das armas automáticas seria dirigido sobre a
brecha. Se o campo defensivo do traje recebesse uma
solicitação energética muito intensa, tanto o campo de
deflexão como o campo de neutralização gravitacional
seriam eliminados. Se tornaria visível e teria que se
mover no solo.
Sentiu-se tomado pelo nervosismo quando viu que a
polícia se preparava para uma operação de grande
envergadura. Viu caminhões que evacuavam os
moradores das vizinhanças e equipes de operários
ocupadas em pregar as janelas desse trecho da Rua Vinte
e Oito de Outubro.
Dessa forma, quando se pusessem a revistar as casas,
não poderia usar qualquer janela para fugir, sem ser
percebido.
O homem que preparara a operação com tamanha
rapidez devia ser dotado de uma inteligência
extraordinária. Não se esquecera de nenhum detalhe que
pudesse representar uma escapatória para o homem
invisível dotado de energias hipnóticas.
Não teria mesmo escapatória?
Deringhouse teve uma ideia. De início foi vaga e
fugaz; antes que compreendesse, saiu de sua mente. Mas
ele a trouxe de volta e fez passar várias vezes pela
cabeça. Seria uma possibilidade?
O risco era enorme. Mas antes assumir um risco que
perder uma oportunidade.
Afinal, o que poderia lhe acontecer?
VI
— O que fizeram em Bajmak foi um truque e nós
caímos nele — declarou Sirov.
Seu aspecto não melhorara muito desde o instante em
que Deringhouse lhe dera a sova. Não tivera tempo para
mudar de roupa. Através de um chamado de emergência,
descobriu o esconderijo de Strelnikov e para lá se dirigiu
pelo caminho mais rápido.
Quando soube o que havia acontecido, Strelnikov
logo procurou retribuir o golpe. Incumbiu um jovem
coronel do serviço de segurança de capturar o agente de
Rhodan se este, conforme era esperado, voltasse à Rua
Vinte e Oito de Outubro.
— É claro que foi um truque — resmungou para
Sirov. — Queriam que acreditássemos que a mina de
urânio os manteria ocupados por mais alguns dias,
quando na verdade já se encontravam em Moscou.
Os olhos de Sirov brilharam.
— Mas conseguimos enganá-los!... — gabou-se.
Strelnikov deu uma ducha fria no seu otimismo.
— Por enquanto — disse. — Só por enquanto.
Sirov se acalmou.
— O que pretende fazer? — perguntou.
— Mandar levá-lo a um lugar seguro — foi a
resposta lacônica de Strelnikov.
Sentou atrás da escrivaninha e preencheu um
formulário. Sirov viu que colocou sua assinatura
embaixo do mesmo.
— Tome isto — ordenou. — Dirija-se ao endereço
indicado. De lá será devidamente encaminhado. Depois
aguarde minhas instruções.
Sirov fez continência.
— Pegue meu carro — prosseguiu Strelnikov. —
Está estacionado na frente da porta. Aí — apontou para o
bilhete que Sirov segurava na mão — receberá o
tratamento de que precisa. Além disso, lhe darão um
uniforme novo, ou então um jogo de trajes civis.
Sirov executou uma meia-volta impecável e se retirou
da sala. Strelnikov aguardou até que o ruído dos passos
sumiu e deu um telefonema. Ao terminar se reclinou na
poltrona e sorriu. Parecia satisfeito.
* * *
Deringhouse voltou ao prédio em que residira o
marechal Sirov.
“Se alguém tiver que morrer”, pensou amargamente,
“que seja um deles, não um inocente.”
Os policiais ainda se mantinham ocupados na
residência de Sirov. Fez com que o projetor mental
exercesse sua influência sobre eles. Deixou para trás sete
homens e levou três ao sótão da casa. O elevador fora
desligado, provavelmente porque poderia proporcionar
ao homem que procuravam uma oportunidade de sair
rapidamente e sem ser notado.
No sótão havia várias claraboias. Deringhouse
colocou cada policial junto a uma delas. Ainda estava
escondido atrás do campo de deflexão, mas ouviam sua
voz e obedeciam às suas ordens.
— Acertem os relógios! — ordenou.
A resposta veio logo. Ao que parecia a polícia
moscovita dispunha de excelentes relógios. Não foi
necessário corrigir nenhum deles.
29
— As doze e quarenta em ponto — prosseguiu
Deringhouse — os senhores abrirão as clarabóias e
sairão para o telhado. Subam à cumeeira e não deixem
que nada os perturbe. Repitam!
A ordem foi repetida. Deringhouse estava satisfeito.
Saiu do sótão e flutuou escada abaixo até atingir o térreo.
Não sabia se numa das outras casas havia uma
claraboia que não tivesse sido trancada. Mas acabou
vendo uma; no telhado da última casa antes da
transversal que se dirigia para o sul. Provavelmente
serviria de passagem aos policiais escondidos atrás das
cumeeiras dos telhados, com as pistolas automáticas
engatilhadas.
Deringhouse não teve a menor dificuldade em
penetrar na casa. Sua suposição se confirmou: teve que
passar o tempo de espera num canto daquele sótão
poeirento, para não esbarrar em qualquer dos policiais
que entravam e saíam pela claraboia.
Uma única vez, quando houve uma pausa, se arriscou
a enfiar a cabeça pela abertura para sondar o terreno.
Conforme esperava, naquele telhado, ao contrário dos
outros, a tela de arame fora estendida ao menos dois
metros acima da cumeeira, a fim de que os policiais
pudessem se mover livremente por baixo dela.
Provavelmente fora presa ao outro lado do telhado por
meio de isoladores.
Doze e trinta e cinco.
Muita coisa poderia acontecer. Era possível que
algum superior notasse a falta dos três policiais na
residência de Sirov e os descobrisse no sótão. Não os
deixaria lá, isso era certo.
E então?
Então poderia voltar a quebrar a cabeça, e enquanto
fizesse isso Strelnikov se afastaria cada vez mais.
É agora!
Alguns segundos se passaram sem que acontecesse
nada. Um policial enfiou as pernas pela claraboia e
saltou para dentro.
O que teria saído errado?
Outro policial entrou pela porta e subiu ao telhado
pela claraboia.
O plano falhara.
Nesse instante começou a gritaria.
— Saiam daí! Desçam do telhado! Ficaram malucos?
Num instante, Deringhouse se aproximou da
claraboia e flutuou suavemente através da mesma.
Agachou-se no telhado e olhou para a casa de Sirov. Os
três policiais obedeceram às suas ordens. Sem se
preocuparem com os gritos de advertência subiram pelo
telhado, cuja inclinação não era muito acentuada. Cada
um se dirigia diretamente da respectiva claraboia para a
cumeeira. Os outros, que lhes apontavam as pistolas
automáticas, pareciam quebrar a cabeça para descobrir
atrás de qual deles o agente de Rhodan se escondera.
O plano de Deringhouse era este. Era provável que
ninguém soubesse que o pequeno projetor mental, que
cabia perfeitamente no bolso, lhe permitia transmitir
ordens pós-hipnóticas. Se suas suposições fossem
corretas, os outros policiais acreditariam que sempre se
encontrava perto dos três colegas que andavam como
sonâmbulos. Pensariam que se encontrava no telhado da
casa de Sirov, não naquele em que eles mesmos estavam
postados.
Às doze horas e quarenta e um minutos, o mais ágil
dos três policiais chegou à cumeeira do telhado e tocou
na tela metálica. Em algum lugar bem próximo, um
instrumento de medida reagiria e desencadearia um
alarma, uma sereia ou uma campainha.
E depois...
Deringhouse viu com seus próprios olhos o que
aconteceu depois. Ouviu o zumbido e as batidas
características dos helicópteros, antes de vê-los subir das
ruas próximas. Não pôde deixar de admirar aquela
organização, que permitia uma ação tão rápida.
Os pilotos dos helicópteros sabiam perfeitamente em
que lugar deviam se postar. Formaram um círculo
estreito, poucos metros acima da cumeeira da casa de
Sirov. Menos de um minuto se passara desde o momento
em que o primeiro policial tocara a tela, e todas as peças
começaram a disparar.
Nesse meio tempo, os outros dois policiais também
haviam atingido a cumeeira. Caíram sob a primeira
salva, escorregaram ruidosamente telhado abaixo e
desapareceram atrás da borda.
Os helicópteros continuaram a disparar. Não se
interessaram pelos três policiais, mas pelo homem
invisível. Posteriormente Deringhouse soube que
acreditavam que, apesar de sua invisibilidade, ele seria
vulnerável ou, o que muito se aproximava da verdade,
que o campo de deflexão poderia ser desativado pela
solicitação energética excessiva dirigida ao campo
protetor, com o que o homem se tornaria visível.
De qualquer forma sua hora havia chegado. Flutuou
para a cumeeira, contornou cuidadosamente um grupo de
policiais que olhavam nervosamente para os helicópteros
e desceu pelo outro lado do telhado. Chegou ao ponto em
que a tela estava presa ao telhado e a arrancou.
Acreditava que não haveria qualquer risco. Sem dúvida o
dispositivo de alarma, que devia ter sido instalado num
posto policial não muito distante, teria sido colocado em
atividade permanente em virtude da ação dos três
policiais.
Levou um minuto para abrir na tela, muito resistente,
uma brecha que permitisse sua passagem. Ninguém se
interessou por ele. O último perigo, o da observação
direta, foi afastado pela curiosidade que a ação dos
helicópteros provocou entre os policiais.
Às doze horas e quarenta e quatro minutos,
Deringhouse estava livre. Para fugir a todo risco, desceu
a meia altura numa das ruas vizinhas e se dirigiu para os
bairros do leste, onde ficava a Rua Kujbyschev.
* * *
— E agora — disse Strelnikov ao homem de teatro
— mande o major entrar. Quero conversar com ele.
O homem obedeceu. Retirou-se; dali a trinta
segundos o major Kalenkim entrou. Nunca vira o homem
que o chamara; mas sabia que devia executar fiel e
prontamente qualquer ordem partida do mesmo.
Fez uma continência impecável.
— Preste atenção — disse Strelnikov. — Quero lhe
explicar uma coisa. Pode parecer muito confuso e
complicado, mas com sua inteligência...
* * *
Doze e cinquenta e nove. Deringhouse penetrou no
prédio da Rua Kujbyschev sem ser visto. Tratava-se de
um daqueles feios prédios de apartamentos de quinze
30
andares.
O aparelho de que a “grande vitória” se servira nos
seus telefonemas ficava no apartamento 13 C.
Deringhouse flutuou para cima. A porta do
apartamento estava fechada, e no corredor havia algumas
pessoas. Deringhouse esperou até que entrassem em seus
apartamentos ou no elevador. Depois abriu a porta,
dirigindo o radiador por alguns segundos contra a
fechadura. O fluxo neutrônico extremamente intenso
provocou uma série de reações nucleares que
transformou os materiais da fechadura em outras
substâncias que não eram dotadas de qualquer coesão.
Quando abriu a porta, uma reluzente poeira metálica
radiativa caiu da fechadura.
Deringhouse entrou. Pensara que o apartamento
estivesse vazio. Strelnikov tivera tempo de sobra para dar
o fora.
Mas, para surpresa sua, viu um homem sentado no
chão do hall. Mantinha a cabeça inclinada para a frente e
tinha os olhos semicerrados. Uma faixa vermelha se
estendia pelo lado direito do rosto.
Era um homem velho, de cabelos brancos. Ao que
parecia não notou que a porta se abrira; não se mexia.
Sobre seus joelhos havia um bilhete. Deringhouse
conseguiu decifrar as letras desajeitadas:
Agente da Terceira Potência! Strelnikov fugiu. Posso
dizer onde está. Ele me bateu.
A primeira ideia que acudiu a Deringhouse foi a de
que caíra numa armadilha. Quem seria aquele homem?
Procurou avaliar a situação. Pelo aspecto, aquele
velho devia ter sido o criado ou o secretário de
Strelnikov. Como secretário poderia ter ouvido algumas
coisas faladas diante de Strelnikov. Era perfeitamente
possível que soubesse da existência de um agente da
Terceira Potência e estivesse informado sobre as
capacidades extraordinárias de que o mesmo era dotado.
Escrevera o bilhete na suposição de que o agente entraria
no apartamento como um homem invisível.
Strelnikov batera nele; a cicatriz estava ali. Para se
vingar oferecia informações sobre o paradeiro de
Strelnikov.
— Levante-se! — disse Deringhouse.
O velho estremeceu; provavelmente estava dormindo.
— Onde... quem...? — gaguejou.
— Estou à sua frente — disse Deringhouse. — Sou o
agente da Terceira Potência. Parece que está disposto a
me levar ao lugar em que posso achar Strelnikov.
Por um momento teve a impressão de que o velho
superestimara sua própria coragem. Tremeu de medo e
só se levantou com muito esforço.
— Eu... eu... — gaguejou. Deringhouse veio em seu
auxílio.
— Não tenha medo de mim. Como é seu nome?
— Nikolaj.
— Pois bem, Nikolaj. Sabe para onde Strelnikov
fugiu?
Nikolaj fez que sim.
— Como ficou sabendo?
— Ouvi a conversa que teve com um jovem oficial
que veio a este apartamento.
— Quer me levar para lá? — perguntou Deringhouse.
Nikolaj confirmou com um forte aceno de cabeça.
— Por que lhe bateu? — indagou Deringhouse.
Nikolaj deu de ombros.
— Ao sair disse: “Tome isto por andar me
espiando!”, e bateu no meu rosto com um chicote.
Com os olhos chamejantes, Nikolaj fez um
movimento distraído da mão em direção ao lado direito
do rosto.
Deringhouse respondeu com um aceno de cabeça.
— Esse tipo de gente nunca escapa ao seu destino —
murmurou. — Podemos sair logo?
Enquanto desciam no elevador, Nikolaj disse que o
esconderijo de Strelnikov ficava em lugar bem próximo.
Seria mais prático andarem a pé.
* * *
O major Kalenkim estava à paisana. Encostado a uma
casa de esquina, assumiu a atitude de quem aproveita o
último dia de férias para ver a fábrica do lado de fora e
ter pena dos pobres-diabos que têm de trabalhar a uma
hora daquelas.
Trazia na boca um cigarro que já se apagara há muito
tempo. Não era fumante e só usara o cigarro para
oferecer uma imagem mais autêntica.
Não precisou de muita paciência. Cerca de quarenta e
cinco minutos depois de assumir seu posto, o homem que
teria que vigiar desceu a rua e passou a mão direita atrás
da cabeça.
O sinal convencionado! O homem era este.
Antes de chegar ao portão da fábrica, dobrou para o
lado e seguiu o caminho estreito que ladeava o muro de
cerca de três metros de altura que cercava toda a área da
fábrica. O major Kalenkim tocou no relógio de pulso
que, na verdade, não era nenhum relógio. Com isso
estabeleceu um contato que desencadeou o sinal de
alarma para os homens que, num ponto mais distante,
aguardavam o momento de entrarem em ação.
Abandonou a esquina em que se instalara tão
confortavelmente e seguiu o homem que, a intervalos
regulares, repetia o sinal convencionado, para assegurar a
Kalenkim que tudo continuava bem com ele.
O caminho estreito parecia feito especialmente para
acompanhar alguém às escondidas. Pequenos tratores
com fileiras de reboques carregados ou vazios passavam
sem cessar, e entre eles marchavam os trabalhadores.
Três equipes de trabalhadores de construção estavam
ocupados em reparar o muro em vários pontos.
Kalenkim tinha boas chances de passar despercebido
em meio a tamanha confusão.
O homem que, de tempos em tempos, passava a mão
atrás da cabeça passou por um portão lateral e entrou na
área da fábrica. Kalenkim o seguiu a uma distância
segura. Estava convencido de que dali em diante tudo
daria certo.
A enorme caldeira de eliminação de vapor dos
reatores da fábrica, que garantiam a esta um suprimento
de energia que não dependia da rede urbana, não ficava a
mais de cem metros.
* * *
Enquanto caminhavam, Nikolaj e Deringhouse não
trocaram uma palavra. Nikolaj ia à frente, confiante de
que o agente o seguia.
Levou-o até o portão de uma fábrica estatal e ao
chegar lá dobrou para a esquerda. Ao lado do muro o
caminho conduzia a um portão lateral, por onde Nikolaj
entrou, em meio à confusão formada pelos veículos e
31
trabalhadores, penetrando no terreno pertencente à
fábrica, ao que tudo indicava sem ser percebido.
Dirigiu-se diretamente a uma enorme caldeira
metálica que, em local um pouco distante da fábrica
propriamente dita, se erguia a uma altura de oitenta
metros.
Depois de ter deixado para trás a massa de
trabalhadores que poderiam ter ouvido a estranha
conversa de Nikolaj com um homem invisível, este disse:
— Strelnikov não está escondido muito no alto, mas
na sala de vigilância, situada a meia altura. O elevador
externo vai para lá. Está vendo?
Deringhouse viu o elevador e a pequena fileira de
janelas que interrompia a lisura da parede metálica a uma
altura de cerca de quarenta metros.
— Vamos adiante! — ordenou. Ninguém os deteve
quando tomaram o elevador e subiram. Abandonaram o
elevador e entraram, com Deringhouse à frente, na
primeira das salas de vigilantes.
Nikolaj parecia sentir medo de novo.
— Se ele me vê — cochichou — vai...
— Não tenha medo — disse Deringhouse. — Venha!
Ultrapassada a porta pela qual haviam entrado, havia
mais duas portas.
— Para onde devo ir? — perguntou Deringhouse.
Nikolaj não sabia.
— Tentarei aqui — disse Deringhouse e se dirigiu à
porta que ficava na parede lateral da sala.
Nikolaj não o viu, mas viu a impressão deixada pelo
impacto das botas no plástico macio do soalho. E parou
perto da porta.
— Está aberta — disse Deringhouse e a empurrou.
Nikolaj levantou a mão. Parecia ser um gesto
inofensivo, como se quisesse se segurar na parede.
Mas, antes que sua mão a alcançasse, o cano de uma
arma surgiu diante dele e a voz enérgica de Deringhouse
disse:
— Basta, meu velho! Se levantar a mão mais um
centímetro, não assistirá ao seu triunfo.
Nikolaj empalideceu. Sua mão começou a tremer,
hesitou um pouco e foi baixada. As pisadas de
Deringhouse se aproximaram pelo soalho de plástico. O
cano da arma atravessou o ar em sua direção.
— Tire a peruca! — ordenou Deringhouse.
Nikolaj hesitou um pouco, mas obedeceu. Contorceu
o rosto quando a cabeleira branca saiu.
Por baixo da cabeleira surgiu uma calva reluzente, a
calva do secretário-geral Strelnikov.
* * *
— Respeito sua coragem — disse Deringhouse,
depois de ter abandonado a invisibilidade. — Mas devia
ter imaginado que o plano não tinha a menor
possibilidade de êxito. Dessa forma nunca conseguiria
pôr a mão em mim.
Strelnikov recuperara boa parte de seu autocontrole.
E sabia que o jogo estava definitivamente perdido.
— Como descobriu? — perguntou.
— Foi de uma forma muito estranha. Você me disse
que Strelnikov o havia batido e fez um movimento de
mão em direção ao lado direito do rosto. Acontece que o
maquilador colocou a cicatriz do lado esquerdo. Isso já
me deixou desconfiado. Quando nos dirigíamos para cá
notei seu gesto, a mão que passava atrás da cabeça, e
descobri o homem ao qual o sinal se dirigia. O que está
fazendo agora?
— Está esperando que eu apareça e lhe diga que você
está preso no interior da caldeira.
— Para que os gestos?
— Tínhamos de contar com a possibilidade de que
você me submetesse a uma influência hipnótica. Só faria
aqueles gestos enquanto fosse dono da minha vontade. O
major Kalenkim tinha instruções de executar outro plano
assim que eu deixasse de fazer os gestos, dando a
entender que você havia conseguido dominar meu
espírito.
— Os trabalhadores com os tratores e os carros na
verdade são policiais, não são?
— São. Iriam trancar a caldeira assim que se
encontrasse lá dentro.
— E como eu teria entrado lá? Por um alçapão que
fica junto à porta?
Strelnikov fez que sim.
— A chave está aqui — apontou para um botão quase
invisível que ficava perto da porta. — Esta porta foi
colocada há duas horas. Você teria caído diretamente na
caldeira.
Deringhouse acenou com a cabeça.
— Nesse caso eu não teria conseguido ativar o campo
de neutralização gravitacional em tempo, ou você teria
enchido a caldeira de vapor.
— Era esta a minha intenção. Será que você ainda
teria uma chance?
Deringhouse ergueu os ombros.
— Não sei. Provavelmente não. Comprimiu um botão
e viu que, diante da porta, uma parte do soalho
desapareceu.
— O que pretende fazer? — perguntou Strelnikov.
— O que pretendo fazer é o seguinte — apressou-se
Deringhouse a dizer — você encontrará um pretexto
plausível para fazer com que os membros do conselho
compareçam amanhã, às nove horas da manhã, à Praça
das Nações. Há dois dias foi constituída uma corte
mundial e decidiu-se a condenação dos homens que
detêm o poder no Bloco Oriental. Você e seus comparsas
serão julgados.
Strelnikov estava muito sério.
— Só se me hipnotizar.
Deringhouse sacudiu a cabeça.
— Um chefe de Estado hipnotizado não me serve.
Você comparecerá a juízo, não voluntariamente, mas na
posse plena de suas faculdades mentais; você, os outros
quatrocentos e quatorze membros do conselho com
direito de voto e os adidos. E principalmente o marechal
Sirov. Deste eu faço questão.
Deringhouse lançou um olhar demorado para seu
radiador de nêutrons.
— Sabe perfeitamente o que o espera se não cumprir
minhas ordens.
Strelnikov baixou a cabeça.
— Para começar — prosseguiu Deringhouse — diga
àquele major que está lá embaixo que dê o fora, e isso
pelo meio mais rápido possível. E não se esqueça de
passar a mão atrás da cabeça quando der a ordem.
* * *
No dia 18 de junho, Perry Rhodan propôs à
32
conferência que a recém-criada corte mundial fizesse
alguma coisa para cumprir a resolução do dia 16: os
homens do regime que detinha o poder no Bloco Oriental
deviam ser acusados e julgados.
A proposta provocou uma discussão acalorada. Os
representantes da Federação Asiática duvidaram da
exequibilidade do projeto. Os representantes dos Estados
da OTAN manifestaram dúvidas de outra espécie.
O motivo verdadeiro foi a sensação desagradável que
se apossou da maioria dos representantes ao pensarem
que um governo ainda no poder seria convocado a juízo.
De repente se assustaram com a coragem
demonstrada dois dias antes, por ocasião da resolução
simbólica.
Mas Perry Rhodan demonstrou cabalmente e com
certo sarcasmo que uma assembleia como esta se
desprestigiaria se tomasse uma resolução e frustrasse sua
execução. Prontificou-se a colocar à disposição da corte
mundial os recursos técnicos que se tornassem
necessários à execução do plano. De noite declarou com
uma franqueza contundente:
— Não terão qualquer dificuldade. Já tomamos todas
as medidas para realizar a prisão dos membros do
Conselho Supremo do Bloco Oriental.
Na manhã do dia 19 de junho, a Stardust-III decolou
de Galáxia com sua preciosa carga de membros dos
governos de todos os países do mundo. Desenvolvendo
grande velocidade, penetrou no território do Bloco
Oriental, sem ser atacada, as oito e cinquenta, tempo de
Moscou, desceu cuidadosamente na área imensa da Praça
das Nações. Uma rampa energética foi descida, e o
presidente da corte mundial, Frederick Donnifer, saiu da
enorme nave em companhia de seus aliados e de Perry
Rhodan, chefe da Terceira Potência.
Ao que parecia alguém tomara providências para
evitar que algum curioso entrasse na Praça das Nações.
A área estava completamente vazia, com exceção de um
pequeno grupo de pessoas.
Frederick Donnifer, que ainda não se acostumara à
sua elevada posição, lançou os olhos em torno quando
pôs os pés no solo; parecia inseguro.
— Um momento! — pediu Rhodan. — Aí vem
Deringhouse; quer apresentar seu relatório.
Um homem se destacou do pequeno grupo.
Caminhou para o lugar em que se encontrava a
delegação.
Deringhouse não deu a menor atenção ao juiz.
Dirigindo-se a Rhodan, anunciou:
— Deringhouse relatando. As ordens foram
cumpridas. Os membros do Conselho Supremo devem
chegar dentro de poucos minutos.
Rhodan deu um sorriso e ordenou:
— Major, repita esta informação perante o senhor
Donnifer, presidente da corte mundial.
Donnifer se adiantou. Deringhouse deu meia-volta e,
fazendo continência, repetiu seu breve relato. De olhos
semicerrados, Donnifer disse:
— Major, tem certeza de que todos virão para cá?
— Certeza absoluta — respondeu Deringhouse.
Voltando-se ligeiramente em direção a Rhodan,
prosseguiu:
— Não confiei muito que executassem a ordem de
Strelnikov, ainda mais que, de vários quilômetros de
distância, perceberão que a Stardust-III pousou na praça.
Cada um dos membros do conselho será acompanhado
por uma escolta de oficiais devidamente influenciados.
Esses oficiais cumprem minhas ordens: trarão seu
homem, quer ele queira, quer não.
Nesse instante a primeira limusine preta atravessou o
cordão de policiais que isolavam a Praça das Nações.
Logo foi seguida de outras. Todas elas descreviam uma
curva, se dirigiam à área de estacionamento e deixavam
sua carga. Parecia que a gigantesca esfera da Stardust-III
não impressionava os homens que se encontravam nos
veículos. Notava-se perfeitamente que muitos dos
membros do conselho vieram porque sua escolta não lhes
deixara outra alternativa.
Deringhouse fez com que os membros do conselho
fossem reunidos num lugar. O grupo foi cercado pelos
membros das escoltas, para impedir qualquer fuga.
Deringhouse pôs-se a contar. O conselho era formado
de quatrocentos e quinze membros com direito de voto e
oitenta e nove adidos. Sirov foi um dos últimos que
compareceu ao ponto de reunião.
As nove e quinze, Deringhouse voltou a se aproximar
de Frederick Donnifer e anunciou:
— O Conselho Supremo está pronto para receber
suas ordens.
Donnifer assumiu posição e, valendo-se de um
pequeno microfone ligado a um alto-falante existente nos
fundos da praça, disse:
— Os representantes dos Estados pertencentes à
Federação Asiática e à OTAN, que em conjunto
representam cerca de seis sétimos da Humanidade,
decidiram formar uma corte mundial, que já foi
constituída. A essa corte cabe resguardar os direitos
humanos em todo o mundo.
“Os senhores — num gesto pouco autoritário,
apontou o dedo para o grupo dos membros do conselho
— são acusados de terem cometido uma violação
grosseira e contínua dos direitos humanos das pessoas
que habitam o território sob sua autoridade. Intimo-os a
se submeterem a esta corte, que deliberará sobre as
medidas a serem adotadas em virtude dos delitos que
cometeram”.
“A conferência dos representantes dos governos fará
com que os cidadãos de seu país possam eleger
livremente os homens que deverão governá-los. Um
governo provisório tomará todos os preparativos para as
eleições.”
Nesse instante a porta de saída da Stardust-III se
alargou, e o passadiço brilhante cresceu igualmente. Um
grupo de cinquenta robôs de combate arcônidas saiu da
nave. De início seus passos foram silenciosos. Mas, ao
atingirem o solo, seus pés bateram ruidosamente.
Formaram um segundo círculo, mais estreito, em torno
dos membros amedrontados do Conselho Supremo.
— Aqui está a prova de que a corte mundial dispõe
dos recursos necessários para executar suas decisões —
prosseguiu Donnifer.
Não houve a menor hesitação. Diante dos poderosos
robôs, a massa compacta dos membros do Conselho
Supremo subiu pelo passadiço e desapareceu no interior
da Stardust-III.
* * *
Donnifer tomou as providências necessárias para que
o Bloco Oriental não ficasse sem governo na época de
33
transição. Perry Rhodan lhe deu alguns conselhos. No
entanto, nem ele nem qualquer outro membro da Terceira
Potência participaram da escolha dos membros da
administração provisória.
A Stardust-III saiu de Moscou às treze horas, tempo
local, e chegou a Galáxia no fim da tarde.
Rhodan anunciou que, em comemoração ao êxito
notável alcançado pela corte mundial, e ainda em
lembrança ao dia em que a primeira nave construída pelo
homem — a velha Stardust — se libertou da influência
da Terra e voou à Lua, ofereceria um banquete para fazer
aquilo que os membros da conferência esperavam desde
o primeiro dia.
Preparou um relatório sobre a evolução da Terceira
Potência desde o dia de sua formação. Providenciou a
apresentação de filmes que proporcionariam aos
delegados informações detalhadas sobre os
acontecimentos que se desenrolaram nos setores do
espaço mais próximos da Terra e nos mais afastados.
A impressão causada pelo relatório foi tamanha que
ninguém notou quando, durante a apresentação, um
ordenança se dirigiu a Rhodan. Pediu a seu ajudante que
lhe desse um pedaço de papel e rabiscou apressadamente
algumas palavras. O ordenança pegou o papel e
desapareceu.
Pelas onze horas o relatório estava concluído. A onda
de aplausos foi dirigida à Terceira Potência com seu
imenso acervo de realizações, e especialmente a Perry
Rhodan, que em passos comedidos caminhou em direção
a uma pequena tribuna.
Quando os aplausos cessaram, começou a falar. Sua
voz tinha um tom solene, que dificilmente alguém teria
ouvido antes.
— Senhores, eu não quero abusar de sua atenção —
iniciou. Por um instante prestou atenção à confusão
desconcertante que os tradutores simultâneos, cada qual
agindo numa direção diversa, faziam de suas palavras. —
Mas, antes que termine este dia memorável, quero
assinalar dois fatos.
“O dia 19 de junho será feriado legal no território da
Terceira Potência, em comemoração aos acontecimentos
desenrolados hoje e em lembrança ao primeiro voo do
homem à Lua. E, para exprimir sua confiança na breve
união de todos os povos da Terra, a Terceira Potência
modifica o nome de Galáxia que passa a ser Terrânia.”
Fez uma pausa. Aplausos começaram a irromper, mas
Rhodan interrompeu-os com um gesto.
— O segundo acontecimento não é tão agradável —
disse em tom áspero. — Como sabem, na Lua existem
duas bases. Uma delas está submetida à jurisdição do
Bloco Oriental e a outra pertence aos Estados da OTAN.
“Às vinte e duas horas e dez minutos, duzentos
foguetes de grande alcance dotados de cargas explosivas
de fusão catalítica foram lançados da base do Bloco
Oriental em direção à Terra. Sabem perfeitamente que
pouquíssimos homens continuarão vivos se os foguetes
atingirem o alvo. Pouco importa qual seja o ponto da
superfície terrestre em que fica esse alvo”.
“Os foguetes deveriam chegar à Terra amanhã, às
cinco horas da manhã aproximadamente, tempo local.
Mas sinto-me feliz em poder lhes comunicar que uma
esquadrilha de caças espaciais, comandada pelo major
Nyssen, acaba de chegar ao setor do espaço em que se
encontram os foguetes e dentro de poucos minutos
provocará sua detonação.”
No mesmo instante a luz se apagou. Na tela
gigantesca que permitia a reprodução tridimensional de
qualquer filme, surgiu a imagem do espaço com seus
bilhões de pontos luminosos.
Perplexos, os membros da conferência se mantiveram
em silêncio. Rhodan voltou-se para contemplar a
imagem. A cena era filmada por um caça espacial que se
encontrava a algumas dezenas de milhares de
quilômetros da esquadrilha comandada por Nyssen.
As bombas começaram a detonar. Até então
invisíveis, foram se transformando em manchas brancas
e luminosas, que logo cresceram de tamanho e ocuparam
seu lugar no espaço com a luminosidade de um novo sol.
A luz dos duzentos foguetes iluminou o imenso salão
com maior intensidade do que as lâmpadas poderiam
fazê-lo. Os espectadores cerraram os olhos para suportar
a luminosidade.
Rhodan deixou que a imagem agisse no espírito dos
espectadores até que a luminosidade começou a se
desvanecer. Lentamente desligou o projetor e, com a
mesma lentidão, voltou a acender as lâmpadas.
Viu diante de si uma massa de rostos apavorados.
Rostos de gente que, em última análise, devia sua
salvação ao homem que se encontrava diante deles.
— Acredito — disse Rhodan com a voz tão baixa que
mal conseguia ser entendido — que esta projeção provou
a todos que a união definitiva da Humanidade constitui
uma necessidade premente.
Um único agente da Terceira Potência, equipado com algumas das surpresas da
tecnologia arcônida, fora suficiente para instalar a confusão num país inteiro e prender o
principal instigador da discórdia.
Mas nem por isso conseguiu a união definitiva da Humanidade. Enquanto essa união não
se realiza, Perry Rhodan não pode estabelecer contato com o mundo de Árcon.
Thora, um dos últimos representantes da dinastia reinante de Árcon, começa a se
impacientar e foge.
A Fuga de Thora é o título do próximo volume da série Perry Rhodan.
34
Nº 22
De Clark Darlton Tradução
A. F. Immergut Digitalização
Vitório Revisão e novo formato W.Q. Moraes
Terceira Potência entrou na posse de um fabuloso legado — a tecnologia dos
arcônidas. Dispõe, portanto, dos meios para exercer uma pressão irresistível e
conseguir, em curto prazo, a almejada unificação política da Terra. Mas Perry
Rhodan julga imprudente seguir o caminho da coação, pois ele — que a essa
altura já se tornou imortal — encara as coisas agora sob um ângulo de visão bem
diferente que muitos outros — Thora, por exemplo.
Ela, a arcônida, chegou ao fim da paciência e quer retornar a Árcon, custe o
que custar. Perry Rhodan, porém, não lhe concede permissão para partir, já que só
tenciona estabelecer contato com Árcon à frente de uma Terra unida. E então
Thora empreende a fuga...
35
1
Três monstros metálicos, prateados e reluzentes,
esticavam as proas cônicas ameaçadoramente no céu
perenemente azul do continente asiático. No seu aspecto
externo assemelhavam-se àquelas naves espaciais que
tinham rompido uma nova era ao realizarem os primeiros
voos entre a Terra e a Lua.
Mas a semelhança era apenas externa.
Produzidas pelo estaleiro espaçonáutico da
Terceira Potência, as três naves
representavam um novo tipo de destróier:
maiores do que os caças espaciais
comuns, contavam com uma tripulação de
três homens e eram capazes de atingir a
velocidade da luz. Seu armamento
consistia em canhões de radiação de longo
alcance e podiam se envolver em
anteparos energéticos que nenhuma
potência da Terra tinha condições de
despedaçar.
Os três destróieres eram os
primeiros exemplares de sua classe e até
agora só tinham realizado um único voo
experimental. E como nenhuma
deficiência havia sido constatada durante
este teste, o maior estaleiro da Terra
iniciaria, em breve, a produção em série
deste novo modelo.
O extenso campo de provas da
Terceira Potência estava deserto sob o
calor inclemente do sol da tarde. Na
distância cintilavam os arranha-céus de Terrânia,
inicialmente chamada de Galáxia, a futura capital da
Terra unida. À esquerda, localizava-se o estaleiro, um
complexo imenso e aparentemente desordenado, onde
extensos galpões se alternavam com construções
cupulares.
Com passos mecânicos e regulares, as sentinelas
marchavam em torno dos três destróieres. Não olhavam
nem para a direita nem para a esquerda, como se
soubessem que o seu serviço de patrulha não fazia
sentido algum, pois era impossível que alguém chegasse
tão perto das naves sem a devida autorização. E não
havia intrusos ou estranhos na área deste estaleiro; disso
se encarregavam as barreiras eletrônicas.
As sentinelas não trajavam uniformes. Sua
vestimenta consistia num tecido metálico curioso, que
emitia um brilho prateado à luz do sol. E seus olhos não
eram olhos orgânicos e sim lentes de cristal. Não eram
homens. Eram robôs.
Com reações desprovidas de qualquer sentimento,
obedeciam à ordem de vigiar aquelas três naves espaciais
novinhas em folha. Tinham que ficar de olho em alguém
que jamais conseguiria se aproximar. Mas, se os seus
cérebros positrônicos registravam este absurdo com
espanto ou não, ninguém poderia dizer.
O lago salgado de Goshun ficava à direita,
estendendo sua superfície lisa como um espelho até o
horizonte. Deste lado, o perigo de uma aproximação
indébita era menor ainda, pois o lago se situava
inteiramente dentro da zona de bloqueio.
E mesmo assim esta calma era ilusória.
Enquanto a Humanidade em peso se preparava
para comemorar o décimo aniversário do primeiro voo
lunar, e os homens, num clima de expectativa crescente,
não desviavam o olhar dos televisores, alguém tomou
uma resolução. Estava farto de esperar que certas
promessas fossem cumpridas, e decidiu agir.
Vindo do sul, um carro se aproximou do campo
de provas, deslizando a cem quilômetros por hora pela
pista lisa de concreto, limpa e isenta de poeira. Não
reduziu a velocidade quando chegou perto da primeira
barreira. Os tateadores
eletrônicos examinaram o
veículo e os ocupantes... e
liberaram a passagem.
As duas barreiras
seguintes reagiram da
mesma forma.
O carro, um elegante
modelo esportivo, se dirigiu
em linha reta aos três
foguetes, reduzindo
gradualmente a velocidade.
Duas das sentinelas-robô
tinham alterado o trajeto da
sua ronda mecânica e se
aproximaram do carro. Os
braços esquerdos, dobrados
num ângulo curioso,
ocultavam armas
energéticas que ninguém
conseguia ver. Bastaria o
menor impulso para
transformar essas criaturas
metálicas, aparentemente inofensivas, em máquinas
mortíferas, capazes de cuspir energia letal.
Mas este impulso não veio.
Os tateadores eletrônicos examinaram o padrão
encefálico daquele ser humano, que tinha descido do
carro, e deram-no como “aprovado”. Apresentava as
características exigidas. Os dois robôs baixaram os
braços e franquearam o caminho. Com um sorriso
irônico — ao menos assim parecia — o desconhecido
passou pelos robôs e parou a poucos metros deles.
E lá estavam elas, as três naves espaciais. Prontas
para partir. Com trinta metros de altura, ainda podiam ser
consideradas gigantes — limitada a comparação a outras
naves terrenas. O seu interior abrigava tremendas
reservas de energia e agregava propulsores fantásticos,
que nenhum cérebro humano havia concebido. Com
essas naves podia-se atravessar o sistema solar em
questão de horas e, se assim se desejasse, alcançar a
estrela mais próxima dentro de quatro anos e meio.
Os robôs retomaram o trajeto da sua ronda
interrompida. O desconhecido, ou melhor, o seu padrão
encefálico não significava qualquer perigo no sentido da
programação. O estranho podia passar. Sim, podia fazer
até mais do que isso, sem disparar o impulso específico
que significava “perigo” para aqueles cérebros
positrônicos.
Durante longos minutos, aquele vulto alto ficou
parado na solidão do deserto, observando, pensativo, as
três naves. O uniforme justo acentuava a esbelteza do
corpo e, com um pouco mais de acuidade, podia-se
reconhecer que o desconhecido... era uma mulher. Um
Personagens Principais deste episódio:
Perry Rhodan — Chefe da Terceira
Potência.
Coronel Freyt — Representante de Perry
Rhodan na Terra.
Capitão Welinskij — Comandante de um
esquadrão de caças.
Major Deringhouse — Que dá provas de
sua qualidade de sabotador e agente secreto.
Fedor A. Strelnikov — Um novo ditador.
Marechal Sirov — O braço direito de
Strelnikov.
36
boné ocultava o cabelo longo e claro, que o sol fazia
cintilar em tom quase branco. Os olhos avermelhados
revelavam determinação. Mas também uma tristeza mal
velada.
Com um último olhar, a mulher contemplou o
lago salgado, o enorme estaleiro e a distante cidade de
Terrânia. Depois, se dirigiu lentamente à mais próxima
das três naves espaciais.
Era o destróier C, designado abreviadamente por
D.C.
A escotilha de entrada de D.C. estava fechada,
mas uma estreita escada metálica a ligava ao solo. Ao pé
dessa escada estava um dos robôs, que nem se mexeu
quando a mulher se aproximou e parou diante dele. O
braço esquerdo pendia frouxo e imóvel ao lado do corpo.
Um brilho morto emanava daquelas lentes de cristal.
A mulher leu a designação na pequena plaqueta
que o robô ostentava no peito.
— Ocupe o seu lugar, R.17 — disse ela, num
idioma duro e desconhecido. — Vamos decolar para um
voo experimental.
Em vez de se mexer, o robô respondeu, na mesma
língua:
— Não recebi nenhuma ordem para realizar um
voo desses.
A mulher fez um gesto impaciente.
— Eu, Thora de Árcon, estou lhe dando esta
ordem agora!
R. 17 não reagiu da maneira esperada.
— A ordem de Perry Rhodan prevalece, Thora.
Os olhos da mulher brilharam de raiva. Era como
se lançasse chispas de fogo contra o robô renitente.
— Perry Rhodan é um homem, R.17, e eu sou
uma arcônida. Portanto a minha ordem vale mais que a
de Rhodan.
— Vale mais também que uma ordem de Crest?
Por um instante a mulher vacilou, depois lançou a
cabeça na nuca, num gesto de irritação.
— Crest está sob a influência de Rhodan, portanto
ele não conta. Por que você pergunta?
— Porque, de acordo com as disposições de
Crest, temos que obedecer a todas as ordens de Rhodan,
seja qual for o seu teor. Por isso, não podemos agir
contra as ordens de Rhodan. Isto é lógico, ou não?
A mulher refletiu durante alguns segundos, depois
acenou lentamente.
— Sim, isto soa lógico; você sempre age
logicamente, R.17?
— A lógica é à base da minha existência.
— Muito bem — disse a mulher e olhou
pensativa, para os traços quase humanos do robô. —
Então me responda algumas perguntas.
— Com prazer, Thora de Árcon.
— Perry Rhodan chegou a proibir expressamente
um novo voo experimental de D.C.?
— Não.
— Ele, além disso, proibiu que eu participasse de
tal voo experimental?
— Não.
Ela acenou, satisfeita.
— Portanto, você agiria contra uma proibição, se
levasse essa nave para Vênus, por exemplo?
— Dentro dessas limitações, não.
— Está vendo? — disse Thora e soltou um
suspiro de alívio — então você também não vai infringir
qualquer regulamento se fizer o que eu estou lhe
pedindo.
Parecia que uma expressão de dúvida tinha
aparecido no rosto de R.17.
— Mas eu não recebi nenhuma ordem de Rhodan
para esse voo.
— E isso era necessário? — Thora mostrou-se
surpresa. — Você está recebendo esta ordem agora, e de
mim. Você não está proibido de receber ordens minhas,
ou está?
— Não estou não.
Thora sorriu. O sorriso não teve qualquer
influência sobre as regiões psíquicas do robô. Mas a
lógica irrefutável daquela pergunta, sim.
— Não, não estou proibido de aceitar ordens suas
— repetiu R.17.
— Então podemos partir?
R.17 ainda estava vacilante. Desde que isso fosse
possível, não devia se sentir muito bem dentro da sua
pele metálica. Mas também não encontrou qualquer
argumento lógico que lhe permitisse recusar
taxativamente o cumprimento das exigências de Thora.
A mulher pertencia àquela raça que o tinha construído.
Rhodan era apenas um habitante desse planeta, que se
chamava Terra, se bem que era um espécime singular
desses habitantes. Por assim dizer, R.17 sentia-se mais
chegado a Thora do que a Rhodan, muito embora tivesse
que obedecer às ordens deste, em virtude do
condicionamento a que Crest o havia submetido. E R.17
jamais deixaria de cumprir essa ordem que o obrigava a
prestar obediência. Aliás, nem poderia fazê-lo sem
provocar um curto-circuito, que o destruiria totalmente.
Por outro lado, se obedecesse a Thora, não estaria
agindo diretamente contra ordens de Rhodan. E,
portanto, não estaria correndo perigo.
R.17 acenou.
— Sim, podemos partir. A disposição reza que
nenhum estranho deve se aproximar desta nave. Thora de
Árcon não é uma estranha.
— Muito bem, então não vamos perder mais
tempo. Programe o curso para o planeta Vênus e decole o
mais depressa que puder. Quero verificar em quanto
tempo podemos alcançar a nossa base no segundo
planeta deste sistema. Saber disso pode ser muito útil
num caso de emergência.
Meio pesadão, o robô galgou lentamente a escada
e abriu a escotilha. Thora esperou impaciente, que
desaparecesse no interior da nave para depois segui-lo
apressadamente. Um aperto de botão, e a pesada
comporta externa se fechou. O elevador antigravitacional
levou Thora e R.17 em poucos segundos para a central
de comando, que se situava na proa do destróier.
Sentaram-se nos assentos giratórios.
Enquanto o robô estava calculando o curso, os
propulsores começaram a zumbir em regime de
aquecimento. E, em algum lugar no interior do destróier,
o possante reator iniciou a produção das inconcebíveis
quantidades de energia, necessárias para liberar a nave da
força de atração da Terra e, mais tarde, projetá-la através
do espaço com a velocidade da luz. O automático gerou
os campos de gravitação artificiais, que neutralizariam
qualquer empuxo devido à aceleração majorada. Aos
poucos, todo o complicado mecanismo de uma
37
tecnologia inimaginável entrou em serviço.
Thora pôs-se a esperar. Sabia que seu intento
tinha dado certo. Somente mais alguns minutos e esse
planeta odiado desapareceria como uma bola azul no mar
do infinito. Vênus não passava de uma escala, porque
seria loucura rematada querer alcançar a pátria, a mais de
trinta mil anos-luz de distância, com uma nave que mal
alcançava a velocidade da luz. Mas em Vênus existia
uma hiperestação radiofônica e, com auxílio dela, seria
possível requisitar de Árcon o envio de uma nave de
resgate. R.17 acenou para Thora.
— Está tudo pronto, vamos decolar. Observe a
tela de imagem para se inteirar do desempenho de D.C.
Rhodan proibiu expressamente voar à velocidade
máxima. Autorizou-a apenas para um caso de
emergência. Mesmo assim, devemos chegar em Vênus
dentro de hora e meia. No momento, o planeta se
encontra do outro lado do Sol.
— E qual é à distância?
— Duzentos e trinta e oito milhões de
quilômetros.
— E a que velocidade podemos voar?
— A setenta e cinco por cento da velocidade da
luz.
Thora não respondeu e continuou a esperar. R.17
agarrou uma alavanca e puxou-a para frente. Nada
parecia acontecer, mas a imagem na tela se modificou
rapidamente.
D.C. decolou sem recorrer aos pulsos-
propulsores. Os projetores antigravitacionais
neutralizaram a atração da Terra e os campos repulsores
locomoveram a massa da nave espacial, agora
desprovida de peso.
O chão embaixo da nave se afastou
repentinamente e caiu no infinito. Em velocidade
alucinante, edifícios, estradas, rios, cordilheiras e
desertos lançavam-se, de todos os lados, em direção ao
centro do campo de pouso. O campo de visão se ampliou
até que, de repente, o terreno desapareceu, cedendo lugar
a uma superfície roxa e escura.
O universo!
Em menos de dez segundos, o destróier havia
atravessado a atmosfera da Terra e agora se lançava
vertiginosamente espaço adentro.
Por um instante Thora acreditou ter vislumbrado
um ponto brilhante no canto direito da tela. Mas sumiu
tão fugaz quanto havia aparecido, de maneira que ela não
se preocupou mais com essa aparição. Depois,
praticamente na direção do voo, avistou o Sol, cujo
brilho intenso estava sendo absorvido por possantes
jogos de filtro.
A esta altura, a Terra já tinha se reduzido a um
globo, que rodava pacificamente através do céu
estrelado. Ficou cada vez menor até que se tornou apenas
uma estrela bastante luminosa.
Thora soltou um suspiro. Olhou para o piloto-
robô.
R.17 retribuiu o olhar.
— Parece ser uma nave muito boa — constatou.
— Sim, é uma nave muito boa, mas não
suficientemente boa para aquilo que eu tenho em mente,
R.17.
O robô não fez perguntas. Manteve-se em silêncio
e controlou o curso, calculando e corrigindo.
Estavam perigosamente perto do Sol...
* * *
Já fazia alguns anos que esta estação orbital
tripulada girava em torno da Terra.
A tarefa que lhe cabia realizar, em conjunto com
duas outras estações, era a de garantir a recepção dos
programas da televisão terrena em qualquer parte do
mundo. As três estações pairavam a uma altura em que
sua velocidade orbital correspondia exatamente à da
rotação da Terra. Assim, permaneciam constantemente
acima do mesmo ponto da superfície terrestre.
O telegrafista Adams tinha plena consciência da
sua responsabilidade quando estabeleceu a ligação com
as duas outras estações, a fim de preparar a transmissão
do programa de Terra Television.
Hoje fazia mais um ano que a primeira expedição
espaçonáutica tripulada havia decolado da América sob o
comando do major Perry Rhodan — um homem
inteiramente desconhecido até aquela data. A Stardust —
era este o nome daquela nave espacial pioneira —
pousou na Lua, descobriu a nave naufragada da
expedição espacial dos arcônidas e retornou à Terra com
Crest, o chefe dessa malograda expedição. E foi assim —
o próprio Adams sabia disso — que toda essa história
tinha começado.
Mas Adams sabia também que essa história não
terminaria tão cedo.
Com um intervalo de segundos, as estações II e I
confirmaram o estabelecimento do contato. Adams
chamou a Terra. A grande estação transmissora em
Terrânia acusou o recebimento da mensagem. Estava
tudo pronto para a transmissão, que o mundo inteiro iria
ver e ouvir.
O telegrafista Adams recostou-se
confortavelmente na sua poltrona. Não tinha mais muito
que fazer, pois, desse momento em diante, tudo se
processaria automaticamente. Mas nem por isso Adams
deixaria de assistir a essa transmissão. Pois era o próprio
Perry Rhodan que, dentro de instantes, iria dirigir a
palavra à Humanidade.
Um turbilhão de estrelas apareceu no monitor,
transformando-se gradativamente na imagem familiar da
Via Láctea, que rodava lentamente através do nada.
Era o símbolo de Terrânia, a capital da Terceira
Potência.
Em seguida, a tela apresentou as feições
marcantes de um homem. As profundas rugas no rosto e
em torno da boca faziam-no parecer mais velho do que
devia ser.
— Aqui fala o coronel Michael Freyt, de
Terrânia. Ao ensejo de mais um aniversário do primeiro
voo tripulado à Lua, vai lhes dirigir a palavra Perry
Rhodan, chefe da Terceira Potência e amigo dos
arcônidas. Peço a sua atenção para este importante
pronunciamento.
O rosto de Freyt desapareceu e foi substituído por
outro. Ouviu-se o ligeiro estalo que acompanhava a
ligação das instalações de tradução simultânea. Assim
que fossem pronunciadas as palavras de Perry Rhodan já
estariam sendo traduzidas para todos os idiomas do
mundo.
“É até curioso”, constatou o telegrafista Adams,
pensativo, “como esse Freyt e Rhodan são parecidos.
38
Bem que podiam passar por irmãos. O mesmo vulto
esguio, os mesmos olhos cinzentos, as mesmas rugas em
torno da boca e do nariz. Até mesmo o olhar é igual,
penetrante e objetivo! Mas Rhodan é o mais moço dos
dois, ou será que me engano? Já não deve ser tão jovem,
mas não aparenta. Gostaria de saber, como ele consegue.
E o uniforme lhe assenta muito bem. Faz anos que ele
despiu a farda de um piloto de provas americano e
passou a envergar esse uniforme aí. Um rebuliço e tanto,
aquele, na época...”
Mas infelizmente Adams perdeu as palavras
introdutórias de Perry Rhodan, pois uma campainha de
alarma ressoou através da central da estação radiofônica
e o arrancou das suas recordações. Levantou-se de um
pulo da poltrona e saiu correndo em direção à porta.
Alarma na estação sempre significava perigo.
Mas o caso parecia não ser tão grave assim. O
telegrafista de serviço havia captado o eco de um objeto
na sua tela de radar. Porém, esse objeto não se
identificou e passou com incrível velocidade quase rente
à estação, desaparecendo na direção da Lua. E só podia
ter vindo da Terra.
— Não se identificou, não foi? — disse Adams,
algo surpreso. — Já consultou Terrânia?
— Ainda não.
— Então faça isso ligeirinho! — recomendou
Adams. Consolou-se com o fato de que mesmo os
discursos mais interessantes invariavelmente começavam
com introduções enfadonhas. Certamente não perderia
grande coisa, se aguardasse mais um pouco.
A resposta de Terrânia veio imediatamente.
— Daqui nenhuma nave decolou. Forneça dados.
Fornecer dados! Essa era boa. A nave — se é que
era uma nave — tinha passado com tamanha velocidade
que nada, ou quase nada, pôde ser constatado. Talvez a
filmagem automática pudesse jogar luz nesse mistério. O
filme estava acabando de sair do revelador.
Mostrou uma nave de uns trinta metros de
comprimento e diâmetro reduzido. Assemelhava-se a um
torpedo. Velocidade: impossível de ser determinada, mas
certamente não inferior a cem quilômetros por segundo.
Adams sacudiu a cabeça, enquanto o seu colega
transmitia os dados. Se realmente existisse uma nave
dessas, só podia ter sido produzida nos estaleiros
misteriosos de Perry Rhodan. E desses se sabia muito
pouco. Sabia-se apenas que...
A resposta de Terrânia foi surpreendente:
— Procurem imediatamente obter novos dados da
estação lunar. Principalmente quanto ao curso
presumível da nave. Estamos também interessados em
saber a velocidade com que passou nas proximidades da
Lua. Obrigado pela sua ajuda. Aguardamos novas
comunicações. De nossa parte, já começamos a
investigar o caso.
Isso foi tudo.
O operador de radar olhou para Adams.
— Bem, que acha disso? História estranha, não é?
Adams acenou lentamente com a cabeça.
— Tudo que se relaciona com esse Rhodan é
estranho. Só gostaria de saber se essa nave partiu
contrariando ordens.
Virou-se e voltou à sua sala, sem tomar
conhecimento da expressão espantada do seu colega.
Chegou a tempo de ouvir Perry Rhodan dizer da
tela do televisor:
— ...e assim, com o auxílio dos arcônidas,
criamos a Terceira Potência que até agora conseguiu
apaziguar todos os conflitos entre os dois blocos de
poder remanescentes da Terra. Sim, porque após os
últimos acontecimentos, não podemos mais considerar o
Bloco Oriental como uma potência mundial; temos como
certo que, mais dia, menos dia, será anexada pela
Federação Asiática. Mas, como as relações políticas
entre a Federação Asiática e a OTAN são bastante
harmoniosas, não está mais tão longe o dia em que a
idéia de um governo mundial possa se transformar em
realidade.
“Os senhores todos sabem que o estabelecimento
de um governo mundial ocupa lugar de destaque entre os
meus objetivos políticos. Os arcônidas, que naufragaram
na Lua, tornaram-se nossos aliados. E isto porque, apesar
do seu tremendo potencial tecnológico, se viram
obrigados a aceitar o auxílio da Terra. Como
consequência imediata dessa aliança, vi colocado em
minhas mãos um poder que me permitiria facilmente
implantar o governo mundial pela força. Mas continuo
convicto que este seria o caminho errado. O governo
mundial, como eu o imagino, deve nascer
espontaneamente e ter as condições para uma evolução
natural, como qualquer organismo em crescimento; e,
podem acreditar isso vai acontecer dentro de bem pouco
tempo. Assim como as diversas nações tiveram que
renunciar ao seu orgulho mesquinho para poder se aliar
às organizações orientais ou ocidentais, algum dia os
dois grandes blocos de poder vão reconhecer que
somente uma Terra unida poderá exercer um papel
histórico na galáxia”.
“Muita coisa foi realizada nesses últimos anos.
Graças ao apoio tecnológico dos arcônidas, eles mesmos
soberanos de um imenso império estelar a mais de trinta
mil anos-luz de distância, a Terceira Potência conseguiu
construir uma frota espacial capaz de proteger nosso
planeta contra qualquer agressão externa. Já mantemos
um vivo intercâmbio comercial com uma raça
extraterrena. Há alguns anos, conseguimos repelir uma
invasão procedente do universo. No deserto de Gobi, foi
erguida a mais moderna metrópole do mundo: Terrânia, a
antiga Galáxia. A Terra abandonou, portanto, o seu
tradicional isolacionismo e se tornou um fator que os
próprios arcônidas não vão poder desprezar... no dia em
que descobrirem a Terra”.
“Acabo de abordar um assunto que, pela sua
importância, precisa ser esclarecido com toda franqueza.
Só há dois arcônidas que sabem da existência da Terra:
Crest, o cientista-chefe da malograda expedição que
encontramos na Lua, e Thora, a comandante daquela
expedição. Até hoje, fui bem sucedido nos meus esforços
de impedir que esses dois arcônidas estabelecessem
contato com Árcon, seu planeta de origem. O meu
empenho nesse sentido tem uma explicação muito
simples: se os arcônidas, em Árcon, soubessem da
existência da Terra, considerariam da maior importância
incorporar o nosso planeta ao seu império, porque, aos
seus olhos, somos subdesenvolvidos e carentes de apoio
político e tecnológico.
“Crest e Thora prometeram adiar o seu retorno a
Árcon até que a Terra estivesse pronta para receber os
arcônidas. Mas a Terra só estará pronta para este
39
encontro no dia em que puder recepcionar a delegação do
Grande Império arcônida como um planeta forte e unido.
Mas não haverá uma Terra unida se não houver um
governo mundial. Creio que todos compreenderam por
que venho dedicando uma atenção toda especial a este
problema”.
“Há anos que a Terceira Potência está empenhada
nos preparativos para a implantação de um governo
mundial. E vai chegar o dia em que todas as nações da
Terra terão à sua disposição a inconcebível tecnologia
arcônida, atualmente em nossas mãos. A General Cosmic
Company, fundada por mim, tornou-se sem dúvida
alguma o maior fator de poder político-econômico do
nosso mundo. Não constitui exagero afirmar que a
G.C.C. controla a produção da Terra. Nós determinamos
o valor monetário e de câmbio. E posso relevar que a
G.C.C. um dia vai introduzir uma nova moeda mundial;
dispõe dos meios para isto.
“Depende apenas de vocês e de seus governos
para que tudo isso se torne realidade o mais breve
possível. Pois o dia X não pode continuar a ser uma data
imprevisível do futuro. Entretanto, não pretendo recorrer
à força, faço questão de reiterar isto mais uma vez, se
bem que não teria a menor dificuldade em implantar o
governo mundial por coação”.
“Porém não posso mais esperar muito tempo por
uma razão bem simples: a cada dia que passa Crest e
Thora pedem com mais insistência que lhes conceda
permissão para reverem a pátria. E não posso continuar a
me opor a esse justo anseio porque, em nome da
Humanidade, eu assumi uma dívida de gratidão com os
arcônidas. Sem o fabuloso auxílio tecnológico que
recebemos deles, hoje ainda nos encontraríamos nos
umbrais da navegação espacial e deveríamos nos dar por
felizes se, anos após o voo pioneiro à Lua,
conseguíssemos enviar os primeiros foguetes a Vênus.
Portanto, como viram, é bastante exíguo o prazo de que
os senhores dispõem para chegar a um acordo político.
Mas, assim que o governo mundial tiver sido empossado,
vamos poder enfrentar Árcon... e também o desafio
representado por uma galáxia inteira”.
“Agora passo a esboçar, em linhas gerais, como
imagino a constituição de um governo mundial...”
O telegrafista Adams esticou as pernas um pouco
mais. Honestamente, não estava muito interessado nos
pormenores da organização desse projetado governo
mundial. Certo, a ideia em si não era ruim, mas, se os
políticos dos dois blocos de poder a topariam, era outra
questão. Afinal a rebelião do Bloco Oriental contra
Rhodan havia revelado sobejamente quão pouco
conformados os políticos do mundo estavam em ter que
aceitarem a supremacia tecnológica da Terceira Potência.
Seja como for, os militares do Bloco Oriental haviam
sofrido uma derrota decisiva em Vênus. Os exércitos
desembarcados tinham se perdido nos pântanos e selvas
do planeta virginal e foram dados como desaparecidos. E
a base de Rhodan havia repelido todo agressor
automaticamente, empregando as armas de comando
positrônico.
Adams deu um suspiro. Talvez seu colega já
soubesse algo de novo a respeito daquela nave
misteriosa. Por uns instantes, Adams voltou a prestar
atenção no discurso, e ouviu Rhodan dizer que cogitava
colocar a frota de caças espaciais existente sob o
comando do governo mundial. Adams levantou-se e
dirigiu-se à central de radar.
Chegou na hora certa.
Na tela do aparelho que ligava a estação com
Terrânia, via-se o rosto excitado de um homem um
pouco corpulento, que lutava para recuperar o fôlego.
Como um peixe fora d’água, constatou Adams. Depois
tentou se lembrar quem era aquele homem. Não lhe era
estranho, já o tinha visto alguma vez. Ora, com mil
diabos, esse não era Reginald Bell, o amigo de Rhodan?
Membro da tripulação do primeiro voo à Lua e atual
ministro da segurança da Terceira Potência?!
Enquanto fechava a porta atrás de si, examinou
aquele rosto com mais atenção.
A imagem na tela tridimensional e colorida
reproduzia as feições de Bell com fidelidade
impressionante.
— Ande ligeiro, sua pata choca! — ofegou Bell,
irado. — Eu preciso saber o curso dessa nave que você
observou. Será que o raio daquela estação lunar ainda
não enviou resposta?
— Acabou de chegar — disse o colega de Adams,
tranquilamente, e consultou um bloco de apontamentos.
— Mas por que este rebuliço todo? Será que a nave não
teve autorização para decolar?
— Vá a...
Reginald Bell quase que se engasgou ao cortar
bruscamente a sua observação que tanto prometia. Mais
calmo e objetivo, prosseguiu:
— Logo vai saber se teve ou não autorização.
Agora as informações, se não for pedir demais.
— A nave foi localizada e examinada pelos raios
tateadores das instalações da Lua, apesar da enorme
velocidade que estava desenvolvendo. O curso não
sofreu qualquer alteração. Continua orientado mais ou
menos em direção ao Sol.
— Em direção ao Sol? — gemeu o homem na tela
de imagem. — O que será que essa mulher biruta
pretende fazer no Sol?
— Quem? — perguntou o operador de radar,
todos ouvidos.
Bell ignorou a pergunta e comentou:
— Por mim pode ficar lá, assando até se tornar
digerível! Bloco de gelo de uma figa! Sol!
O telegrafista arreganhou os dentes.
— Posso chamar sua atenção para o fato — disse
ele — de que na direção do Sol não existe apenas o Sol.
— O que quer dizer com isso? — berrou Bell,
enfurecido, para uma fração de segundos depois se tornar
lívido. Como por encanto, o rubor da sua face se
transformou num cinza-pálido. — Não apenas o Sol...
Caramba! Você tem razão! Por que não disse isso logo?
Obrigado pela informação, oportunamente vou lhe
mostrar minha gratidão.
— Então me diga o que está se passando —
implorou o operador de radar, exasperado; mas a tela já
estava escura.
Bell tinha se despedido à sua maneira.
Adams encolheu os ombros.
— Não leve isso tão a sério, John. Dizem por aí
que esse Reginald Bell é esquisito como quê.
O telegrafista ainda não se conformou.
— Que diabo de nave terá sido essa? Parece que a
sua decolagem levantou um bocado de poeira!
40
— A nave nem tanto — vaticinou Adams. —
Creio que quem levantou mesmo a poeira foi aquela
mulher que Bell citou. Também não é vantagem levantar
tanta poeira. Afinal, a nave partiu do deserto de Gobi!
— Piada infame! — comentou o operador de
radar, furioso. — Se eu tivesse a menor noção da
realidade, poderia ganhar um montão de dinheiro. Eu
conheço um pasquim...
Adams franziu a testa e voltou para sua própria
central. A transmissão continuava perfeita e Adams se
sentou aliviado na poltrona.
Perry Rhodan ainda estava falando.
— ...e hoje, nesta data, não vivemos mais na
ilusão de sermos as únicas inteligências no universo. Não
estamos sozinhos, muito pelo contrário. Estamos na
mesma situação dos habitantes de uma ilha isolada no
Pacífico, que até agora se julgaram os únicos homens
sobre a face da Terra, e de repente são obrigados a
constatar que estão circundados ou mesmo cercados por
enormes continentes, povoados por milhões e milhões de
pessoas. Haveria algo mais natural para esses homens do
que esquecerem suas desavenças mesquinhas e se unirem
para enfrentar o desconhecido?
Perry Rhodan fez uma pausa.
No mundo inteiro não houve um único
telespectador que tivesse estranhado essa pausa, porque
não existe homem que consiga falar ininterruptamente.
Mas Adams não se encontrava na Terra e sim na estação
orbital III. Além disso, ele sabia daquela nave misteriosa
que tinha causado um rebuliço tão grande no ministério
da segurança da Terceira Potência. E mais ainda. Adams
também sabia que Rhodan dispunha de um exército de
mutantes, em cujas fileiras militavam, entre outros,
excelentes telepatas.
E Adams não possuía apenas essas informações,
possuía também uma rara facilidade de combinar fatos...
Não era possível retirar Rhodan sem mais nem
menos de frente das câmaras de televisão; afinal de
contas, estava se dirigindo ao mundo. Mas era preciso
colocá-lo a par do ocorrido, se fosse importante. E era
importante; o comportamento de Bell tinha demonstrado.
Portanto...
Não, realmente não foi difícil para o telegrafista
Adams concatenar corretamente os acontecimentos que
se desenrolavam na tela.
Perry Rhodan silenciava e parecia estar refletindo.
Olhava para um ponto imaginário à sua frente com os
olhos ligeiramente cerrados. Era como se estivesse
ouvindo uma voz que estava se dirigindo a ele do
invisível. Uma ruga profunda apareceu na sua testa. Por
um momento, uma expressão de mau humor brilhou nos
seus lábios. Dirigiu o olhar novamente para as lentes das
câmaras e o tom da sua voz se manteve inalterado
quando disse:
— Mas ainda há muitos problemas a resolver, e
eu só posso pedir a todos que confiem em mim. Confiem
também nos arcônidas, aconteça o que acontecer. Basta
que um deles resolva entrar em contato com Árcon para
que o perigo de sermos descobertos aumente
tremendamente. Pois esta mensagem poderia, por um
acaso, revelar a nossa existência a uma das numerosas
raças belicosas do universo. E desnecessário salientar o
que isso significaria para uma Terra desunida.
“Finalizando, desejo lembrar mais uma vez a
todos que hoje não comemoramos apenas mais um
aniversário do início da verdadeira navegação espacial,
mas também a consolidação definitiva da paz. A Terceira
Potência ama a paz. Mas ao mesmo tempo é a sua
defensora mais intransigente e, como tal, não hesitará um
instante sequer, em empregar, sem a menor
contemplação, todo seu poderio para defendê-la, toda vez
que se veja ameaçada em qualquer parte do mundo.”
Após esse final um pouco abrupto, Rhodan se
inclinou ligeiramente perante o seu auditório invisível e
depois se dirigiu rapidamente para uma porta nos fundos,
pela qual desapareceu. Esta porta permaneceu nas telas
de imagem ainda durante algum tempo, antes que o
coronel Freyt aparecesse para anunciar que em breve o
ministro da segurança da Terceira Potência, Reginald
Bell, ia dirigir a palavra ao mundo, abordando questões
de defesa no caso de uma invasão.
Freyt ainda pediu que os telespectadores
desculpassem um pequeno intervalo, uma vez que Bell
estava sendo retido por alguns assuntos internos.
O telegrafista Adams efetuou as ligações
necessárias e depois se pôs a esperar.
Tinha a impressão de ter se tornado testemunha
de acontecimentos sumamente importantes e de
consequências ainda imprevisíveis.
* * *
A esta altura, o Sol já era uma imensa bola de gás
incandescente, que passava rapidamente à esquerda da
nave espacial. As enormes protuberâncias que projetava
no universo pareciam querer agarrar o destróier C, mas
este era rápido demais para poder ser alcançado pelas
turbulentas massas gasosas. Deslocava-se a uma
velocidade próxima à da luz.
O robô R.17 ocupava, praticamente imóvel, o
assento diante dos controles, a maioria dos quais havia
transferido para o comando automático. Só vez por outra
procedia a uma ligeira correção do curso, que era
influenciado pela tremenda força gravitacional do Sol.
R.17 manteve-se em silenciosa expectativa.
Ao passarem pela estação lunar, R.17 havia
cumprido a ordem recebida, e anunciado o nome de
Thora como comandante do destróier. Mas antes que a
estação pudesse responder, já tinha desaparecido no
negrume do vazio total.
Desta vez, Thora não admitiria que ninguém a
impedisse de realizar o seu intento. Durante dez anos —
se computado o curioso lapso de tempo em Peregrino, o
planeta da vida eterna — tinha se submetido à vontade
férrea de Rhodan. Mas acabou chegando à conclusão que
Rhodan nem pensava em permitir que ela e Crest
retornassem a Árcon.
Antes de mais nada, Rhodan queria ver
implantado o seu ambicionado governo mundial, a fim
de não passar por vexame diante dos arcônidas. É claro
que perseguia esse objetivo sob o pretexto barato da
eterna ameaça de uma invasão.
Bem, se Rhodan não estava disposto a lhe
conceder a permissão, paciência, agiria por conta própria
para exercer o seu direito inalienável de rever a pátria.
Chegar a Vênus já era meio caminho andado, pois lá
existia um meio pelo qual poderia se comunicar com o
distante planeta Árcon. Era o emissor hiperespacial, que
41
levaria as suas palavras através do universo com
velocidade superior à da luz.
E Árcon enviaria uma nave para resgatá-la.
E o seu cativeiro chegaria ao fim...
Neste ponto, algumas dúvidas se infiltraram nos
pensamentos de Thora. Não tinha segredado o seu plano
a Crest, e ele tinha todo o direito de conhecê-lo. Mas
Crest estava do lado de Rhodan. Portanto, teve que agir
sozinha.
Todavia...
Segundos transformaram-se em minutos. O Sol
diminuía cada vez mais na esteira da nave, enquanto que
à frente, em meio às miríades de estrelas, Vênus
despontava como um ponto fulgurante que crescia
vertiginosamente, transformando-se num disco e,
finalmente, num globo branco.
Com olhos ardentes, Thora fitou o planeta que se
aproximava. Lá se encontrava o objeto dos seus anseios:
a gigantesca estação radiofônica estelar dos colonos
arcônidas desaparecidos dez mil anos atrás. No entanto,
o fabuloso automatismo da base que haviam construído
ainda hoje se encontrava em perfeitas condições de
funcionamento.
E isto incluía as terríveis armas defensivas,
criadas por uma tecnologia inconcebível, e que
protegiam a estação radiofônica e o cérebro positrônico.
Thora conhecia a localização exata da base.
Construído de acordo com um projeto arcônida, o
destróier apresentava todos os requisitos para ser
identificado como nave dos arcônidas pelos raios
tateadores da instalação de bloqueio da fortaleza. Não
encontraria qualquer obstáculo para pousar. Thora sabia
quão estarrecedor era o armamento desta fortaleza, e de
que meios o gigantesco cérebro positrônico dispunha
para se defender.
Afastou todas as dúvidas e receios do pensamento
e disse a R.17:
— Precisamos desacelerar.
— Já estamos desacelerando — respondeu o robô.
— Só que não reparou nisso. É que os campos de força
neutralizam qualquer alteração. Mas veja, a imagem de
Vênus está aumentando apenas lentamente.
Tinha razão.
Aquela esfera luminosa já estava bem próxima,
mas na realidade só crescia vagarosamente. A densa
camada de nuvens ocultava a superfície, mas Thora se
lembrava muito bem que aquilo que no momento não
podia ver era um mundo primitivo. Enormes superfícies
de água e mares pré-históricos cobriam uma grande parte
do planeta Vênus e, assim, se constituía para os homens
num imenso labirinto de água, pântanos e selvas
gigantescas. E nesses pântanos sem fim viviam enormes
sáurios, que somente há poucos séculos tinham
conquistado a terra firme.
A selva era praticamente impenetrável. Mesmo
com o auxílio dos meios da técnica mais moderna, ali era
praticamente impossível percorrer trechos maiores a pé.
Quem caísse nessa selva estava perdido. Sucumbiria em
breve, vítima dos sáurios, dos pântanos ou das plantas
carnívoras.
Para seres humanos a atmosfera venusiana era
respirável. Apesar do alto teor de dióxido de carbono,
continha oxigênio suficiente para alimentar a corrente
sangüínea. Nas camadas superiores a percentagem de
impurezas de origem vulcânica e de gases nobres
aumentava consideravelmente. E a camada de nuvens,
que quase sempre pairava a grande altura, transformava
Vênus numa estufa enorme, na qual a vegetação
proliferava exuberantemente.
Um dia completo em Vênus tinha a duração de
dez dias terrestres. Isto equivalia, portanto, a cento e
vinte horas de claridade, seguida de igual período de
noite escura. O ano planetário durava 224,7 dias
terrestres.
A força gravitacional e a velocidade de liberação
eram ligeiramente inferiores às verificadas na Terra. O
Sol estava a cento e oito milhões de quilômetros, e
fornecia energia calorífica superabundante.
Não era um mundo muito hospitaleiro, mas, há
milhões de anos, não tinha sido outro o aspecto da Terra.
Algum dia, Vênus seria habitado; talvez fossem até os
descendentes dos homens que, num futuro remoto,
transformariam este planeta fértil num paraíso.
Mas, no momento, Vênus era tudo, menos um
paraíso. “O planeta do inferno”, assim Bell o tinha
chamado certa vez numa conversa com Thora.
Casualmente, a arcônida se lembrou dessa denominação,
quando o destróier penetrou nas camadas superiores da
atmosfera e começou a baixar lentamente.
A velocidade já era bem reduzida. Vagarosamente
as nuvens claras e esfarrapadas deslizavam diante das
vigias. Parecia que se deslocavam para cima.
Na tela de radar se delineavam os contornos de
enormes e altas cordilheiras. E no planalto de uma dessas
cordilheiras localizava-se a base dos antigos arcônidas; e
esta base abrigava o cérebro positrônico e a hiperestação
radiofônica.
O robô R.17 reassumiu o controle da nave.
Orientou-se pelos instrumentos e determinou a posição
do alvo. Nenhuma instrução havia sido gravada no seu
cérebro que o proibisse de pousar nas proximidades da
base venusiana.
De repente, não havia mais nuvens embaixo do
destróier. Era como se D.C. tivesse mergulhado num mar
de gás e agora estivesse flutuando no fundo. O sol ficou
reduzido a uma mancha clara que brilhava através das
massas gasosas, nas quais originava violentos turbilhões,
mas que só raramente atingiam a superfície do planeta.
Thora olhou para baixo e se arrepiou.
Tinham atravessado um oceano e estavam se
aproximando da costa. A visão era surpreendentemente
clara e lá longe, no horizonte, amontoavam-se altas
cordilheiras, encimadas por cumes achatados. Do sopé
até a metade da altura ainda havia vegetação. Daí para
cima, só se via a rocha desnuda. De frestas escuras
emergia uma cintilação branca. Thora sabia que eram
imensas quedas d’água, que alimentavam sem cessar os
pantanais nas selvas.
As selvas...
Além das cordilheiras e dos mares, não se via
outra coisa senão selvas. Estendiam-se em todas as
direções por baixo do destróier... um tapete verde, do
qual despontavam algumas rochas isoladas, e rasgado em
alguns trechos por vastas superfícies de água, que
brilhavam num tom esverdeado e traiçoeiro. Aqui e ali,
esta superfície de aspecto tóxico era agitada e uma
enorme cabeça aparecia, oscilando indecisa na
extremidade de um pescoço longo e esbelto, para, em
42
seguida, desaparecer novamente dentro d’água.
A nave continuou a baixar.
— O alvo está a oitocentos quilômetros de
distância — disse R.17 calmamente e sem qualquer
emoção. — Vamos pousar ou voltar?
— Vamos pousar... é claro! — respondeu Thora.
A sua voz também soava calma, se bem que no seu
íntimo rugia uma tempestade difícil de ser amainada.
Dentro de poucas horas saberia ao certo se era mais forte
e inteligente que Rhodan... ou não.
— Algum sinal dos raios tateadores da estação?
R.17 lançou um olhar aos instrumentos.
— Por enquanto, não.
“Ainda estamos muito longe”, pensou Thora.
Lembrou-se que a zona de bloqueio se estendia
num raio de quinhentos quilômetros em torno da
fortaleza, incessantemente controlada pelo cérebro
positrônico, que examinava todo objeto que se
aproximava. Quem fosse reconhecido, mas não tivesse a
devida autorização, ficava apenas proibido de tentar o
pouso dentro da zona de bloqueio. Mas, se o intruso
revelasse ser um estranho, era imediatamente abatido,
sem qualquer aviso prévio. Thora sabia que não corria
esse perigo, porque o padrão das suas ondas encefálicas a
identificaria como arcônida. Mais importante, porém, era
o fato de que o destróier era uma nave de características
inteiramente arcônidas. O emissor de códigos, que fazia
parte do seu sofisticado equipamento, se encarregaria de
responder corretamente às perguntas do cérebro
positrônico.
— Faltam seiscentos quilômetros — disse R.17,
mecanicamente.
Thora olhou de relance para o armário embutido
da central. Continha todas as armas de fogo necessárias
para o caso de um pouso de emergência em território
desconhecido. Encolheu os ombros num gesto
displicente. Não precisaria de uma arma. Também, para
quê?
— Estamos chegando perto da zona de bloqueio
— comentou R.17.
Thora empertigou-se na poltrona e olhou,
fascinada, através da vigia para a superfície do
fumegante inferno de Vênus. Nada havia se modificado
desde a última vez que tinha estado aqui. A nave
deslizou por cima de um lago circundado por rochas
íngremes, cobertas até o cume por uma vegetação rala.
Atrás dessas rochas se encontrava um daqueles
numerosos platôs elevados; eram imensos planaltos que
se estendiam bem acima do nível dos pântanos. Nesses
platôs, as condições de vida eram razoavelmente
suportáveis.
— Desça mais um pouco! — ordenou Thora, mas
não sabia por que o disse.
O robô obedeceu sem proferir palavra. Mas a
altura não tinha menor influência sobre os raios
tateadores da fortaleza. Agarraram aquela nave que, para
eles, era estranha e exigiram o código de identificação...
Mas não receberam nenhuma resposta. E tudo isso se
processou de forma inteiramente automática e sem
qualquer indício visível. Os instrumentos de D.C. apenas
indicaram que a nave havia sido localizada. Mais nada.
Por isso, o que aconteceu em seguida, se
constituiu numa surpresa completa.
Na borda do platô, um trecho de rocha deslizou
para o lado. Da fresta negra emergiu um cano reluzente,
que parecia envolto em espirais coruscantes. Ergueu-se
devagar até apontar ameaçadoramente para aquela nave
que voava a baixa altitude. A quinhentos quilômetros de
distância, correntes de impulsos percorriam complicados
aparelhos, abriam e fechavam contatos; ativaram relês e
originaram, finalmente, um comando positrônico. Um
emissor radiofônico se encarregou de transmitir este
comando imediatamente para o canhão desintegrador na
zona de bloqueio.
Nem de longe R.17 e Thora tinham contado com
a possibilidade de serem derrubados por meio de um tiro
direto. O raio energético aniquilador dissolveu o campo
estrutural cristalino da nave e sublimou toda a matéria.
Automaticamente, R.17 apertou o botão do
dispositivo de ejeção.
A proa do destróier tinha sido decepada como que
por um corte de navalha, de modo que praticamente toda
a central de comando ficou exposta. Como por um
milagre, o abastecimento de energia ainda funcionava.
Mas o mecanismo estava emperrado.
Desesperada, Thora agarrou-se aos encostos da
poltrona. A nave estava ligeiramente adernada e
cambaleava em direção àquele inferno verde. Através da
vigia, que se encontrava abaixo dela, Thora vislumbrou
que ainda iriam pousar naquele platô... se é que essa
queda brusca pudesse ser chamada de pouso.
Talvez as copas das árvores pudessem amortecer
o impacto.
“Por quê?”, perguntou Thora a si mesma nos
últimos segundos de lucidez, “por que este cérebro-robô
mandou nos abater, por quê?”
Depois, o choque violento parecia lhe cravar as
pernas no corpo. A dor lancinante ainda lhe atravessou o
cérebro antes que perdesse os sentidos de vez. R.17 bateu
com a testa nos instrumentos de controle...
2
Reginald Bell se encontrava no centro de
operações do Ministério da Segurança da Terceira
Potência. Todos os fios da vasta rede de comunicações
convergiam para as suas mãos. Em toda a volta da sua
mesa cintilavam as lâmpadas de aviso, brilhavam as telas
de imagem, zumbiam os videofones. E os comunicados
se sucediam sem cessar.
Todos se referiam à inesperada fuga de Thora.
John Marshall, o telepata do Exército de
Mutantes, estava em pé ao lado de Bell.
A poucos instantes, havia enviado a sua
mensagem mental para Rhodan e agora acabava de
receber a confirmação. Com um gesto distraído, enxugou
o suor da testa.
John Marshall era australiano e tinha descoberto
relativamente tarde que possuía o dom de poder ler os
pensamentos de terceiros. Por uma compulsão
automática, havia se aliado a Perry Rhodan, tornando-se
um dos seus mais importantes colaboradores. A causa da
sua faculdade extra-sensorial residia no efeito produzido
pela radiatividade cada vez mais intensa da atmosfera da
Terra. O número de mutantes já era bastante grande, mas
poucas pessoas sabiam disso. Mesmo entre os próprios
43
mutantes, havia muitos que levaram anos até
descobrirem as suas capacidades excepcionais.
— Daqui a pouco ele está aí — disse John
Marshall a Bell.
Crest, o arcônida, preferiu se manter um pouco
afastado nos fundos da sala. Seu vulto alto erguia-se
acima das telas de imagem. O cabelo branco destacava-
se das paredes escuras, enquanto os olhos albinos
emitiam um brilho avermelhado.
Para ele, o incidente com Thora era mais do que
embaraçoso. É claro que, no íntimo, podia compreender
os motivos que a levaram a fugir. Mas considerava
imperdoável que ela tivesse agido de maneira tão
leviana. Sua atitude irresponsável ameaçava o sucesso do
Projeto Terra.
A raça dos arcônidas tinha atingido — e até
atravessado — o ponto culminante da sua evolução. A
continuar essa estagnação, essa passividade, o império
dos arcônidas, erigido durante milênios, estaria fadado a
desmoronar. Decadentes e prepotentes por natureza, os
arcônidas algum dia se tornariam vítimas do seu próprio
poderio.
Crest havia compreendido isso claramente. Via
nos habitantes da Terra os futuros herdeiros do Grande
Império arcônida. Estava plenamente convicto que, se
algum dia o império fosse entregue a esses homens
decididos e que não recuavam diante de nada, estaria em
boas mãos. Ao menos melhor do que nas mãos daqueles
seres que também pertenciam ao império colonial dos
arcônidas, mas que, apesar da sua inteligência, não
tinham nada em comum com o homem. Sem dúvida o
império estaria mais bem cuidado nas mãos dos terranos
do que, por exemplo, nas nadadeiras dos habitantes das
Plêiades ou nas asas dos pterodátilos do sistema Rígel.
Sem falar, evidentemente, nos tópsidas.
Crest estava procurando sucessores para os
arcônidas e acreditava tê-los encontrado nos terranos.
Havia submetido Perry Rhodan e Reginald Bell a um
treinamento hipnopédico, transmitindo-lhes todo o saber
do universo. Sistematicamente, Crest preparava Rhodan
para a tarefa que teria de cumprir. No fundo do seu
coração, o arcônida denominava o seu plano de Projeto
Terra.
E agora a concretização desse plano corria perigo
por causa da atitude de Thora.
A porta se abriu e Perry Rhodan entrou na central.
Deu um aceno ligeiro a Crest e Marshall, e dirigiu-se a
Bell:
— Algo de novo?
— Uma porção de coisas, Rhodan; nem sei por
onde começar.
— Sugiro que comece do início. Mas seja breve,
não temos muito tempo.
— Thora partiu uma hora atrás com o destróier C.
Passou pela Lua na direção de Vênus, sempre emitindo o
sinal de identificação. Deve ter levado o piloto-robô a
bordo. Não foi detida. Se aumentou a velocidade
suficientemente, já deve ter pousado em Vênus.
Rhodan cerrou os olhos.
— Não é difícil entendê-la, Bell. Esperamos
demais para cumprir a nossa promessa. Foi apenas a
ânsia de rever Árcon, que a levou a fugir.
Crest pigarreou.
— É muito nobre de sua parte, Rhodan, querer
desculpar Thora, mas precisamos encarar a realidade.
Sejam quais forem os seus motivos, ela não agiu
corretamente; cometeu uma injustiça. Se ela conseguir
penetrar naquela fortaleza, vai pôr em funcionamento a
hiperestação radiofônica. Como ex-comandante da nossa
expedição, pode fazê-lo. Agora, pense o senhor mesmo
nas consequências que isso poderá acarretar.
Rhodan se lembrou, com um arrepio, da invasão
dos Deformadores Individuais que havia conseguido
rechaçar. A mensagem radiofônica que Thora tencionava
enviar de Vênus se irradiaria sem perda de tempo por
todo o universo. E bastava que fosse captada por alguma
raça estranha e belicosa para que a situação se tornasse
extremamente grave. Os seres inteligentes, que
casualmente interceptassem essa mensagem, tratariam
logo de determinar a direção da sua origem. E qual não
seria a sua surpresa ao constatar que existia um sistema
habitado neste trecho remoto da Via Láctea! E
Inevitavelmente, a Terra seria descoberta. Uma Terra
despreparada e desunida, pronta para ser colonizada, no
sentido interestelar.
As consequências eram imprevisíveis.
— Gostaria de saber o que ela fez para enganar as
sentinelas-robô — murmurou Rhodan, pensativo — já
tem algum relatório?
— Já! — esbravejou Bell e bateu numa pilha de
anotações. — As sentinelas declararam que tudo se
passou de maneira inteiramente oficial. Thora se
aproximou, falou com o piloto do destróier e depois
partiu com ele. Declararam, ainda, que não a impediram
de decolar porque não tinham recebido qualquer ordem
nesse sentido.
— Claro que não tinham essa ordem! — rosnou
Rhodan. — Também, quem teria imaginado que Thora
fosse quebrar sua palavra!
Desta vez foi Crest quem a defendeu.
— Ela devia estar supondo que jamais retornaria a
Árcon, se não agisse dessa maneira.
— Quer me parecer — respondeu Rhodan, com
um ligeiro sorriso — que este não tenha sido o único
motivo da fuga de Thora. Lembre-se apenas do planeta
da vida eterna. O imortal me concedeu a permissão e me
proporcionou os meios para obter uma prolongação da
vida. Autorizou-me, ainda, a concedê-la a qualquer
terrano que eu julgasse digno. Essa permissão não incluía
os arcônidas, porque essa raça já tinha atingido e
ultrapassado o ápice da sua evolução. Isso significa que
os terranos ainda se encontram no ramo ascendente do
desenvolvimento. Thora é orgulhosa e prepotente, Crest.
Não conseguiu suportar essa humilhação e quis se vingar
à maneira dela. Queria me mostrar que era mais forte do
que eu. Só que não tem a menor noção do que está
causando com isto. O seu desejo de voltar para Árcon é
perfeitamente compreensível, mas a sua estupidez é
imperdoável.
— O que vai fazer agora, Rhodan?
Bell ergueu a cabeça; estava interessado na
resposta. No mínimo tão interessado quanto Crest.
Rhodan disse, com vagar:
— Vou seguir Thora com o destróier A. Agora
mesmo. Vou levar John Marshall e Son Okura comigo.
Bell, chame um carro. Não preciso de mais nada. Afinal,
o equipamento necessário encontra-se a bordo.
Crest fez um gesto de desaprovação, mas depois
44
baixou a mão lentamente e sacudiu a cabeça, resignado.
Na convivência com Rhodan já se havia habituado a
muita coisa. Esses homens tomavam as suas decisões
com uma rapidez... inacreditável!
Bell encarou Rhodan.
— E eu? — perguntou, com a cara de uma criança
que não tinha recebido o seu presente de Natal. — Por
acaso vou ficar aqui, chupando o dedo?
— Não é uma má ideia — respondeu Rhodan,
como que aceitando a sugestão. — Mas fique tranquilo;
você vai nos seguir com o destróier B, assim que for
possível. Infelizmente não podemos cancelar as
solenidades programadas sem mais nem menos; por isso
você vai ter que me substituir. Se não me engano, o
coronel Freyt já anunciou o seu discurso na televisão.
Espero que você esteja suficientemente preparado.
— Eu? Fazer um discurso na televisão?! —
indignou-se Bell, o sangue lhe afluindo ao rosto. — Para
falar sobre quê?
— Ora, sobre o que poderia ser? Questões de
defesa, evidentemente. Você vai falar sobre as
possibilidades de defesa da Terra no caso de uma invasão
interestelar. Um tema bastante atual. Assim que as
solenidades estiverem encerradas, você parte. Está claro,
Bell?
Bell acenou sombriamente.
— Está claro, sim.
Empertigou-se na poltrona e fitou firmemente os
olhos cor de aço de Rhodan.
— Mas uma coisa eu lhe digo. Se por causa desse
discurso eu chegar tarde para tomar parte naquela
algazarra lá em Vênus, você vai ver o que é bom!
— Avise Son Okura — disse Rhodan, sem tomar
conhecimento da ameaça de Bell.
— Por que logo Okura? — perguntou Bell,
enquanto estabelecia a ligação com o posto de comando
do Exército de Mutantes. — Qual a utilidade dele nessa
missão?
— Ele é o nosso perceptor de frequências, como
você sabe. Os olhos dele são capazes de reparar todas as
ondas invisíveis e, em especial, os raios infravermelhos.
Esta faculdade torna Okura um auxiliar indispensável na
escuridão. Lembre-se que a noite em Vênus dura cinco
dias terrestres. Além disso, Okura tem o raro dom de
poder ver radiação de calor. Com isso, consegue
reconhecer a impressão calorífica de um objeto que já foi
removido há horas. Não há melhor colaborador nessa
aventura que Son Okura.
Bell transmitiu suas instruções pelo rádio e depois
acenou.
— Sim, é verdade. Mas o fraco dele são as pernas.
É uma negação para andar, quanto mais para correr. Aí,
um teleportador seria melhor.
— Esse vai com você. Nos destróieres só há lugar
para três homens. Até o piloto-robô eu não vou poder
levar.
— Por que você não pega uma nave maior?
Rhodan refletiu durante um instante.
— Você está me dando uma boa ideia. Não vai
me seguir com o outro destróier e, sim, com uma nave
auxiliar. Pode enchê-la de mutantes. Mas estou quase
certo que não serão necessários — Rhodan sorriu. — Até
que você chegue, já acabou tudo.
Bell respirou com dificuldade, à cata de uma
resposta apropriada. Mas ao olhar para Crest pensou duas
vezes. Lembrou-se, que o arcônida nunca tinha achado
muita graça nas suas pilhérias meio esquisitas.
Portanto, desistiu de dar uma resposta. Limitou-se
a encolher os ombros e a dizer, sarcasticamente: —
Vamos ver.
* * *
Enquanto Bell discursava diante das câmaras de
televisão, o destróier A estava se projetando espaço
adentro. O curso tinha sido programado. Comandada
pelo piloto automático, a nave atingiria em breve a
velocidade da luz e depois seria novamente desacelerada.
Rhodan estava sentado na poltrona do piloto. O
assento à sua direita era ocupado por Marshall, enquanto
Okura, o japonês franzino, se encolhia na poltrona à
esquerda. Ignorando a existência de lentes de contato e
causando sério desgosto aos inovadores fanáticos, o
japonês usava óculos, lentes grossas montadas numa
armação fina. Era uma verdadeira ironia do destino:
justamente o homem que conseguia ver todas as ondas
luminosas invisíveis tinha que recorrer a óculos para
poder reconhecer os objetos iluminados pela luz normal.
Mas a visão de Okura realmente não era das melhores.
Estava trabalhando como opticista numa fábrica de
máquinas fotográficas, quando os caçadores de talentos
de Bell o descobriram, convidando-o a se incorporar ao
Exército de Mutantes de Rhodan.
— Será que Thora vai pousar junto à estação? —
perguntou Marshall.
— Suponho que sim — respondeu Rhodan, sério.
— O objetivo dela é inteirar Árcon da existência da
Terra, para que venham apanhá-la. O transmissor se
encontra na estação; portanto, ela vai tentar pousar lá.
— Quando me tornei mutante, fui treinado aqui
em Vênus — disse Okura, com aquele seu jeito tranquilo
e discreto. — É uma droga de lugar, se me permitem a
expressão.
— Não temos opção, Okura — disse Rhodan,
acenando. — Por outro lado, creio que não vamos ter
muita ocasião de nos expor aos perigos dessa selva.
Assim que pousarmos junto da estação, vou dar a minha
contraordem ao cérebro positrônico. Se Thora ainda não
chegou ao transmissor, pode ser detida.
— Só faço votos que não cheguemos tarde demais
— murmurou Marshall e cerrou os dentes. — Nem é
bom pensar no que poderia acontecer.
Rhodan manteve o olhar fixo em frente, onde
Vênus começava a se delinear como um disco luminoso.
— Tem razão — concordou — é inimaginável o
que poderia acontecer.
Depois silenciaram.
E tudo transcorreu rapidamente. Vênus tornou-se
cada vez maior e depois o destróier penetrou na
atmosfera. Determinaram a posição da estação e
constataram que a noite venusiana estava para cair. Em
breve ficaria escuro... durante cinco longos dias.
No momento, isso não causava maiores
preocupações, mas, mesmo assim, Rhodan se sentiu
aliviado por ter trazido Okura. Tinha sido uma decisão
previdente, que mais tarde pagaria juros.
Rhodan consultou a marcação dos instrumentos.
— Mil e quinhentos quilômetros a oeste. Vamos
baixar mais para poder ver alguma coisa. Se ao menos eu
45
soubesse onde Thora se encontra nesse momento!
A selva deslizou rapidamente por baixo da nave
em direção a leste, onde já estava escurecendo.
Sobrevoaram um pequeno mar pré-histórico, depois uma
cordilheira bastante alta e novamente selvas e pântanos.
Aos poucos, tornava-se cada vez mais difícil distinguir a
paisagem que passava por baixo deles.
— Faltam oitocentos quilômetros. Bem longe, à
sua frente, o horizonte ficou difuso e se mesclou à
camada de nuvens. Por trás dessa massa leitosa pairava
uma mancha vermelha, o sol poente. Somente daqui a
cinco dias voltaria a nascer.
— Só mais seiscentos quilômetros — disse
Rhodan. — Dentro de cinco minutos atingimos a zona de
bloqueio.
Marshall acenou, automaticamente.
— Também não temos o que recear.
Foi nisso que Marshall se enganou. Tanto, quanto
Thora antes dele.
Mais uma vez a instalação eletrônica de vigilância
da estação dos arcônidas entrou em silencioso
funcionamento. Mais uma vez os raios tateadores se
lançaram sob o recém-chegado e o examinaram. A
ultimação de fornecer o sinal de identificação foi
ignorada. A intimação foi repetida, mas o destróier A não
respondeu.
Rhodan tinha esquecido que as instalações
codificadoras dos três destróieres ainda não haviam sido
preparadas positronicamente. Que isso lhe tivesse
escapado na pressa de seguir Thora, era compreensível;
mas era totalmente imperdoável, se consideradas as
consequências, mesmo levando em conta que tinha sido
o mesmo fato que impedira Thora de alcançar o seu alvo.
Rhodan não conseguiu realizar uma única
manobra de esquiva, pois ficou ofuscado pelo raio
desintegrador que, subitamente, rompeu a escuridão. Um
forte abalo fez estremecer o corpo metálico e arrancou
Rhodan do assento. O horizonte girou diante da vigia e a
nave começou a tombar.
Felizmente o raio só tinha atingido a popa,
destruindo o sistema propulsor. A proa e a central de
comando continuavam intactas.
Num gesto automático, o punho de Rhodan
golpeou o botão de dispositivo de ejeção.
Ao contrário do que havia ocorrido com o
destróier de Thora, o dispositivo funcionou e lançou a
central de comando completa para fora da nave. Graças
aos protetores antigravitacionais embutidos, a cabina se
manteve em posição horizontal. Os jatos de emergência
entraram imediatamente em ação, fazendo-a deslizar para
o lado, afastando-a da zona de bloqueio. Por isso não foi
alvo de novo disparo.
Muito lentamente o teto verde da selva se
aproximou.
Vislumbraram a cintilação traiçoeira das poças
pantanosas. Um rasgo na parede traseira permitiu que o
repentino silêncio na cabina fosse rompido pelo bramido
abafado de um sáurio. Lá embaixo, no pântano,
divisaram indistintamente algo que se movia, lerdo e
pesadão. Okura estremeceu.
— Essas bestas — gemeu — já farejaram a sua
presa.
— Suponho — objetou Marshall — que só está
falando simbolicamente!
O japonês não deu resposta. Conhecia o planeta
Vênus.
O agregado de emergência da central de
comando, agora separada da nave, fez os pequenos
reatores arcônidas trabalharem sem cessar. As torrentes
de corpúsculos que produziam eram suficientes para
reduzir drasticamente a velocidade da queda. A cabina
baixava muito mais devagar do que se estivesse presa a
um paraquedas.
Olhando para o lado, Rhodan viu algo que
despencava, cambaleante. Era o resto do seu destróier,
que não teve a mesma boa sorte de cair para fora da zona
de bloqueio. Por isso, recebeu um novo disparo, que o
atingiu no meio. Num abrir e fechar de olhos a matéria
foi transformada em gás.
A cabina continuou a descer lentamente.
— Tomara que a gente não caia no meio de um
desses lagos! — murmurou Okura preocupado. Devia ter
um verdadeiro pavor dos sáurios.
— Essa cabina foi feita para flutuar —
tranquilizou Rhodan e lançou um olhar crítico ao redor.
— Só espero que não falte alguma arma naquele armário.
O destróier ainda não estava pronto para entrar em
operação. A prova disso é que fomos derrubados. A
instalação codificadora estava incompleta. Se o nosso
arsenal também não estiver completo...
— E também não dispomos de um transmissor.
— Só temos os rádios nas pulseiras de múltipla
utilidade. Mas são fracos demais para podermos alcançar
a Terra.
Encontravam-se agora a uns cem metros de altura
e já conseguiam divisar o presumível local do pouso. A
paisagem não apresentava aspectos muito contrastantes.
Não viam nenhum daqueles traiçoeiros lagos pantanosos,
somente o teto alto e irregular daquela floresta virginal.
— Não pode nos acontecer grande coisa, ao
menos durante o pouso — constatou Rhodan,
tranqüilizando os companheiros. — Agora, o que vai
acontecer depois...
Deixou em aberto as diversas possibilidades.
As copas mais altas estavam chegando cada vez
mais perto. Rhodan sabia muito bem que, quando as
atingissem, ainda poderiam estar bem longe do chão
propriamente dito. Os troncos dessas enormes árvores
primitivas não raro apresentavam um diâmetro de quinze
metros e alturas até cento e cinquenta metros, eram
verdadeiros gigantes. Entre elas proliferavam os parasitas
da selva tropical, também sensivelmente maiores que
seus congêneres na Terra.
O chão da cabina tocou os primeiros galhos e
afundou lentamente no leito relativamente fofo das
copas. Os reatores ainda estavam funcionando, reduzindo
a velocidade da queda.
E depois a cabina parou de baixar.
Jazia, um pouco adernada, no meio daquele mar
verde onde havia afundado. O crepúsculo começou a
baixar, tingindo as nuvens eternas de negro. O
crepúsculo no oeste reluzia como se um imenso incêndio
estivesse consumindo este mundo.
Rhodan resolveu não esperar mais e desligou os
agregados.
Bruscamente, a cabina recobrou o seu peso
normal, carregando os galhos nos quais se apoiava.
Alguns não resistiram à súbita sobrecarga, e quebraram.
46
Os outros cederam e a cabina começou a escorregar.
Antes que Rhodan pudesse tomar qualquer
contramedida, a cabina inteira tombou para o fundo,
capotando e se chocando violentamente por várias vezes
contra troncos e galhos. Finalmente, após longos
segundos, a queda foi sustada por alguns galhos bem
mais grossos que resistiram ao impacto.
Surpreendentemente, a central de comando havia
chegado ao repouso em posição quase normal.
Somente agora tinham pousado, de fato, em
Vênus.
Quando, minutos mais tarde, John Marshall
voltou a si e sentiu a forte dor na testa, começou a
desconfiar que o fim da perseguição a Thora estava mais
longe do que nunca. Ergueu-se e viu que Okura estava
inclinado sobre Rhodan, examinando a sua cabeça.
Captou os pensamentos do japonês e ficou sabendo, o
que se havia passado.
Okura se virou.
— Pelo visto se machucou bastante.
Bateu em cheio com o rosto. Está todo
ensanguentado. Só espero que não seja grave...
Marshall se recuperou rapidamente. Ainda
ligeiramente zonzo, dirigiu-se a Okura, apoiando-se na
parede. Rhodan estava esticado no chão da cabina,
respirando fracamente. A pancada devia ter sido violenta.
O japonês cambaleou ligeiramente quando se
levantou. O chão estava inclinado e era preciso se
habituar a este fato. Okura encontrou ligaduras e
medicamentos no pequeno armário embutido da farmácia
de bordo. Aplicaram uma injeção revigorante a Rhodan e
conseguiram fazê-lo ingerir um remédio contra febre.
Quando começou a respirar mais profundamente, os dois
homens juntaram as poltronas e colocaram Rhodan sobre
esta cama improvisada, entregando-o ao sono benéfico.
Okura ainda medicou o ferimento de Marshall, e
só depois tratou de si mesmo.
— É claro que eu fui atingido nas pernas — disse
ele, com resignação — é de amargar. Logo no meu ponto
fraco. Sempre caminhei com dificuldade, quanto mais
agora. Receio que vou ser um fardo durante uma marcha
através da selva.
Marshall empalideceu.
— Não pode estar falando sério! Acredita mesmo
que precisamos descer naquele inferno lá embaixo?
Cheio de sáurios e aranhas gigantes e sei lá o que mais
vive nessa mata? Não, nem dez cavalos vão me arrancar
desta árvore. Aqui estamos relativamente seguros.
— Concordo — disse o japonês com um sorriso
afável. — Na penitenciária também se encontra uma
segurança relativa; só que lá ao menos não se perde
tempo e nem se morre de fome.
John Marshall não soube o que responder.
Desviou o olhar de Rhodan e olhou através da
vigia para aquele crepúsculo difuso e esverdeado.
Podia jurar que uma sombra enorme estava se
deslocando lá embaixo. Um bramido prolongado rompeu
o silêncio da selva.
Apesar do calor Marshall começou a sentir um
frio gélido.
* * *
Quando, horas mais tarde, Perry Rhodan se mirou
no espelho, levou um susto.
Um corte profundo, que ainda sangrava,
atravessava-lhe a fronte de lado a lado. Sem aquele
organoplasma especial dos arcônidas levaria semanas
para cicatrizar. O olho direito, fortemente inchado,
desfigurava-lhe as feições, a ponto de torná-lo quase
irreconhecível.
Recostou-se com um suspiro e deixou que o
japonês lhe enfaixasse novamente a testa.
— Meus melhores amigos não me reconheceriam
— murmurou. — Sei que Bell vai ter um motivo para
ficar me gozando.
— Vou quebrar os ossos dele todinhos se ele se
atrever a fazer isso! — ameaçou Marshall.
Rhodan deu um sorriso fraco.
— Duvido que o consiga, pois estão por demais
protegidos por aquelas grossas camadas de banha.
Rhodan esperou que a bandagem fosse
completada e depois acrescentou: — Qual é a nossa
situação, e o que vamos fazer?
Son Okura retrocedeu meio passo e submeteu sua
obra a um exame crítico.
— O seu ferimento não é grave. Mas o fato é que
estamos presos no meio desta selva, sem qualquer
possibilidade de comunicação com a Terra. Perdemos a
nave espacial e, com isso, qualquer meio de estabelecer
contato com a cúpula energética da fortaleza venusiana.
Portanto, não podemos contar com o auxílio de ninguém.
Nossa única chance consiste em alcançarmos a base, ou
esperar que Bell nos encontre por uma mera casualidade.
— Mas temos os minitransmissores — observou
Marshall.
— Não vão nos adiantar grande coisa, porque seu
alcance é muito limitado. Quando a central foi ejetada da
nave, ficamos separados dos aparelhos radiofônicos. Que
isso nos sirva de lição. Daqui por diante um transmissor
vai fazer parte do equipamento obrigatório de todas as
cabinas de salvamento ejetáveis. Quanto a Bell, é claro
que só podemos entrar em contato com ele se a sua nave
passar ao alcance dos nossos minitransmissores. Mas,
esperar que isso aconteça, é confiar demais no acaso.
Não seria uma temeridade ficar aguardando que ocorra o
improvável, enquanto Thora mobiliza todos os horrores
do universo? Rhodan acenou, concordando.
— Okura tem razão, Marshall. Só há uma
alternativa: é preciso chegar antes de Thora e impedi-la
de penetrar na fortaleza. Mas não vejo motivo algum
para crer que ela tenha tido mais sorte que nós. Afinal, o
codificador da nave dela também não estava ajustado.
Resta-nos esperar que ela tenha sobrevivido à queda.
Marshall rosnou, irado:
— Por mim, ela pode ter quebrado o pescoço.
— Eu não diria uma coisa dessas — respondeu
Rhodan, num ligeiro tom de censura. — Não se deve
desejar mal a ninguém, apenas impedi-lo de cometer
algum mal. É uma ilusão pensar que a violência possa ser
combatida. E tem mais: Thora pode quebrar o pescoço
que isso não nos ajuda em nada. Continuamos presos
aqui do mesmo jeito.
— O sentido das minhas palavras não era bem
esse — disse Marshall, tentando atenuar sua expressão
irrefletida. — O que eu quis dizer é que eu tenho uma
raiva dos diabos dessa mulher extraterrena.
Com um sorriso suave, Okura observou:
47
— Mas só da extraterrena, não é?
Rhodan se levantou algo vacilante e se apoiou na
parede. Ainda estava meio tonto daquele longo desmaio.
Sob o olhar atento dos dois companheiros, ensaiou os
primeiros passos cautelosos e se dirigiu à vigia. Lá fora
reinava o negrume da noite venusiana. Mas, mesmo se
fosse dia claro, Rhodan não poderia agora ter pensado
em sair da cabina. Ainda se sentia fraco demais para
enfrentar a estafante marcha através desse mundo
primitivo, sem falar nas ameaças desconhecidas que
ocultava.
Por outro lado, quanto mais tempo perdesse em
esperar, tanto maior se tornava o perigo de um colapso
total de tudo o que havia criado até agora. Poderia ser
substituído pelo coronel Freyt, certo; mas bastava que se
tornasse do domínio público que Rhodan, o chefe da
Terceira Potência, não tinha regressado de um voo a
Vênus e que era muito provável que os sáurios o haviam
devorado, para que... bem as consequências eram
inimagináveis. O nacionalismo latente de alguns
políticos ambiciosos voltaria à tona e salvaria as pátrias,
transformando os futuros terranos novamente em
homens. E isto era exatamente o pior que lhes poderia
acontecer. Recairiam no estágio das concepções
nacionalistas bitoladas, tornando-se presa fácil para
qualquer invasor do universo.
Essa conclusão só admitia uma única decisão.
E Rhodan a externou:
— Precisamos procurar chegar à base. Primeiro,
vamos dormir durante mais algumas horas, para
recuperar as forças, depois partimos. Trajes de
exploradores nós não temos, tampouco mantimentos
suficientes. Quer verificar o armamento?
Okura abriu o armário embutido. Bem
arrumadinhos nos suportes, lá estavam três jeitosos
irradiadores de impulsos. E mais nada.
— Ao menos alguma coisa — rosnou Marshall.
— Matar sáurios com essas armas é até covardia.
Para Rhodan isto não parecia ser o problema
principal.
— Só dispomos disso? Nada de pistolas
automáticas ou espingardas?
Olhou ao redor.
— E os víveres e a água?
A expressão de Okura era de pura lamentação.
— Temos alguns concentrados e uns poucos litros
de água. Talvez o suficiente para dois ou três dias. Mas
podemos viver da caça.
— Engano seu! — Rhodan sacudiu a arma. — O
raio energético de uma pistola de impulsos positrônicos
queima e gaseifica instantaneamente toda e qualquer
matéria. Mesmo de um sáurio não sobraria praticamente
nada se o disparo for um pouco excessivo.
— Então — disse Marshall — basta prestar
atenção no disparo. É só matar o bicho e suspender fogo.
Além disso, como sabem, nunca deixo de andar sem o
meu velho e fiel revólver — apontou para o bolso. —
Pode ser obsoleto, mas não me desfaço dele, por mais
que Bell me goze.
— É o que eu vou fazer agora — resmungou
Rhodan. — Não me vai dizer que pretende derrubar um
sáurio com este brinquedo?
— Não estou pensando em sáurios. Afinal,
existem também animais menores em Vênus. Talvez
sejam até mais saborosos.
Okura acenou, satisfeito.
— Marshall não deixa de ter razão. Eu também
acredito que vamos conseguir carne. Talvez encontremos
até frutas. Lembro-me que, durante o nosso período de
instruções aqui em Vênus, serviram-nos frutas em
quantidade. Tenho certeza de que vou reconhecê-las, se
existirem por aí. Mas eu estou mais preocupado com a
água. Afinal, não podemos beber essa porcaria dos
pântanos. Faço ideia de como deve estar pululando de
bactérias!
— Existe uma substância na farmácia de bordo —
disse Rhodan — que substitui a fervura. É só jogar o
pozinho na água e as bactérias desaparecem. Depois, é só
filtrá-la para retirar as eventuais impurezas tóxicas. Esse
processo substitui até a destilação. Agora, se for preciso,
nada nos impede de ferver a água. Lenha existe aos
montes no chão da floresta.
— É, lenha molhada ou úmida! Não vai nos
adiantar grande coisa.
Okura meteu a mão no armário da despensa e
exibiu um pequeno pacote.
— Quem é que está falando o tempo todo em
lenha? Veja aqui, Marshall. Sabe o que é isso? Argila
energética! Rende cem vezes mais que álcool. Com esse
negócio aqui podemos preparar três refeições diárias
durante três meses. Faltam somente os bifes de sáurios.
Marshall torceu o nariz.
— Nunca na vida comi carne de sáurio! —
lamentou-se.
— Então está mais do que na hora de começar —
constatou Rhodan e sentou-se novamente no leito
improvisado. — Arrumem tudo que possa ser de
utilidade e depois vão dormir. Não sei quando vamos ter
nova oportunidade para dormir em paz.
Fechou os olhos e, pouco depois, a respiração
regular mostrou que Perry Rhodan estava decidido a
recuperar as forças para enfrentar a aventura que se
avizinhava.
Uma aventura que, de um segundo para o outro, o
havia feito regredir da era da mais moderna tecnologia
para a pré-história.
* * *
E lá estavam eles, escorados nos galhos grossos
de uma enorme árvore, cinquenta metros acima do solo
traiçoeiro da selva. Cipós da grossura de um braço
pendiam de todos os lados, e facilitariam a descida.
Rhodan lançou um último olhar para a segurança
da cabina, que agora abandonariam para sempre.
Segundo sua estimativa, a base arcônida com a guarnição
de robôs devia se situar uns quinhentos quilômetros para
oeste. Uma distância que, devido à fauna e flora pré-
históricas, se constituía num obstáculo praticamente
intransponível.
Verificou se o irradiador de impulsos estava bem
preso ao cinto e pendurou no espaço o saquinho que
continha a sua ração de água e víveres concentrados.
Depois, escolheu o galho mais apropriado para seguir
Marshall, que já havia iniciado a descida. Okura forçava
a vista, olhando para baixo.
— Estamos com sorte. Há uma pequena clareira.
Nenhum sinal de animais.
48
O próprio Rhodan sempre voltava a ficar
fascinado quando tinha ensejo de constatar a facilidade
com que esse mutante conseguia enxergar na mais
completa escuridão. E agora mal se via um palmo diante
do nariz! Em algum lugar, longe daqui, um vulcão devia
ter entrado em erupção; talvez na cordilheira mais
próxima. Uma débil luminosidade avermelhada
penetrava na floresta, emprestando um ligeiro tom
rosado a tudo que se via. E isto, na realidade, era
praticamente nada.
— Podemos prosseguir daqui — gritou Marshall,
lá de baixo. — Esses cipós formam uma verdadeira
escada de cordas.
Rhodan tateou com os pés, à procura de um apoio.
Encontrou-o e desceu lentamente. Teve a impressão que
aqui em cima, nas árvores, talvez pudessem avançar mais
rapidamente que no chão enganoso da selva. Mas
somente a prática confirmaria isto. Talvez pudessem
mudar de método à luz do dia.
Levaram três horas para atingir o chão firme.
Okura consultou a bússola de pulso.
— Temos que prosseguir nessa direção, se não
houver algum obstáculo. Pelo que eu consigo ver, não há
pântanos por aqui. E o chão está relativamente seco.
Rhodan sentia uma forte dor de cabeça,
consequência do seu ferimento.
“Mesmo um imortal”, pensou amargurado, “não
está livre de sofrer de enxaqueca.”
Enquanto caminhava atrás de Okura, os
acontecimentos no planeta da vida eterna se
desenrolavam mais uma vez em sua mente. Haviam
seguido o rastro que os conduziu, através da galáxia e do
tempo, até Peregrino, o planeta solitário. E lá vivia
aquele ser imortal do passado, que revelou a ele, Rhodan,
parte do segredo da conservação permanente das células.
E ainda lhe proporcionou a oportunidade de se submeter
ao fisiotron, a ducha celular, que sustava o processo de
envelhecimento por certo período — para ser mais
preciso, durante sessenta e dois anos, na contagem de
tempo terrestre. E aquele ser determinou que apenas os
terranos pudesse se utilizar da ducha celular, se Rhodan
assim o permitisse.
Além de Rhodan, somente Bell havia sido
contemplado com uma prolongação da vida.
Daqui a sessenta e dois anos Rhodan procuraria
de novo aquele ser. Com o auxílio do grande cérebro
positrônico, calcularia as coordenadas espaciais exatas
daquele planeta errante e o revisitaria. Mas seis decênios
constituíam um período de tempo bastante longo. E
quanta coisa poderia acontecer até lá...
De repente Okura parou. Forçou a vista como se
perfurasse a escuridão ambiente, e esticou a mão para
trás, à procura de Rhodan. Marshall havia se chocado
contra Rhodan e sufocou uma imprecação.
— O que houve? — Okura sussurrou:
— Algo está se locomovendo lá em frente. Uma
sombra grande. Não consigo distinguir exatamente o que
é. Ouvir, não se ouve nada.
— Então também não é um sáurio, porque esses a
gente ouve a quilômetros de distância.
Rhodan silenciava os ouvidos aguçados.
Instintivamente sua mão se fechou sobre a coronha do
irradiador.
O japonês suspirou aliviado.
— Talvez seja outro animal qualquer. De
qualquer maneira, não enxerga tão bem como eu, porque
ainda não nos reparou. Está se desviando para a direita,
penetrando na floresta. A julgar pelos contornos, tem o
tamanho e o aspecto de um gorila. Talvez já existam
macacos em Vênus.
— Pelo amor de Deus! — gemeu Marshall.
Rhodan se dirigiu a ele.
— Por quê? Tem algo contra os macacos?
— Não é bem isso, mas, se realmente existirem
macacos em Vênus, daqui a cem mil anos nossos colonos
vão ter aborrecimentos sem fim com os venusianos... ao
menos na minha opinião
Rhodan deu uma risada quase inaudível.
— Queria ter as suas preocupações, Marshall!
Não tem outras, por acaso?
Marshall rosnou algo ininteligível, mas não deu
resposta. Okura reiniciou a caminhada, seguido de perto
por Rhodan, que protegia novamente o rosto com as
mãos.
A noite ainda duraria quatro dias terrestres e, se
não sofressem atraso por algum motivo inesperado,
talvez pudessem percorrer uns cem quilômetros até o
nascer do sol.
Uma perspectiva deveras auspiciosa.
Cinco horas mais tarde Rhodan esticou a mão e
agarrou o japonês pelo ombro.
— Precisamos descansar Okura. Se continuarmos
a esbanjar nossas forças desse jeito, nunca vamos chegar
à base. Assim que descobrir um lugar apropriado, vamos
repousar por algumas horas. Talvez encontremos uma
clareira.
— Posso fazer uma sugestão? — o japonês parou.
— Que tal se subíssemos novamente numa árvore?
Tenho certeza que, alguns metros acima do solo,
encontramos um galho suficientemente largo para nos
acomodar a todos. Aqui embaixo eu teria que ficar de
olhos bem abertos o tempo todo, pois a selva deve estar
cheia de perigos ocultos. A meu ver, as árvores oferecem
uma segurança relativamente maior.
— O que me causa espanto — admirou-se
Marshall — é que ainda não encontramos terreno
pantanoso pela frente. Tivemos uma sorte incrível.
— Também só percorremos cinco quilômetros —
observou Rhodan.
Okura encontrou uma árvore que lhe parecia
adequada e foi o primeiro a subir. Dez metros acima do
solo encontraram um galho largo, que se estendia
horizontalmente através de um emaranhado de cipós. O
conjunto formava uma espécie de caverna, na qual os
homens se sentiram imediatamente seguros.
Marshall assumiu a função de cozinheiro.
Quando os concentrados começaram a se
dissolver na água e o fogo incolor flamejou debaixo da
panela, os três homens até que se sentiram bastante
confortáveis.
— Estou chegando à conclusão, de que a coisa
não está tão ruim assim — observou o australiano
alegremente, mexendo a sopa. — Já pensaram como vai
ser quando for dia claro? Aí mesmo é que vamos
marchar que nem uns andarilhos!
Ninguém viu a expressão cética de Rhodan...
Okura talvez, mas Marshall nunca. Rompendo o silêncio
que se seguiu, Okura disse:
49
— Só que ainda vai passar um bocado de tempo
até o dia claro chegar!
Sem proferir palavra, Marshall continuou a mexer
na sua panela.
3
Meio oculto por véus de nuvens, o sol de Vênus
preparava o seu ocaso. Aquela mancha difusa atrás da
camada de bruma parecia perder o poder luminoso e por
isso tornou-se mais colorida. Os raios de luz, refratados
pelas nuvens e névoas, produziram no céu monótono de
Vênus um espetáculo que brilhava em todas as cores do
espectro. Aos poucos, o vermelho começou a
predominar, mergulhando este mundo primitivo num tom
rosado, e o inferno verde parecia querer se transformar
num paraíso de cores estonteantes. Até mesmo as
superfícies pantanosas, de brilho tão traiçoeiro, se
apresentavam agora como a palheta furta-cor de um
pintor divino que, invisível, zelava pela sua obra em
constante modificação.
O mundo de Vênus suspendia a respiração quando
a longa noite se iniciava. Era como a rendição da guarda.
Os enormes sáurios regressavam das florestas e se
ocultavam na segurança do seu antigo elemento. Às
dezenas, rolavam por cima dos colmos altos do junco,
transformando as cores variadas do pântano num
turbulento espectro gigante, que fazia lembrar galáxias
coloridas, percorrendo trajetórias infindáveis através do
nada, rodando eternamente e procurando em vão por um
destino.
À distância, reluziam as rochas desnudas das
cordilheiras. Pareciam cobertas por fogo líquido. Entre as
rochas cintilavam, prateadas, as quedas d’água. Quando
se pulverizavam lá embaixo, no teto da mata virgem, era
como se um arco-íris enorme estivesse se alastrando, na
tentativa de encobrir o mundo com suas cores
transparentes.
Enquanto os sáurios iniciavam o longo repouso
noturno, os seres vivos da escuridão começaram a
acordar. O curto intervalo da transição chegou
bruscamente ao fim, quando o sol desapareceu no
horizonte mormacento e candente.
Em voo silencioso, mas grasnando
estridentemente, enormes aves lançavam-se através do
crepúsculo, sobre pântanos e florestas, à cata de presa.
Gigantescas borboletas noturnas cambaleavam em
direção ao sol poente, tentando em vão alcançá-lo.
Na borda do platô, no alto daquelas rochas que se
erguiam como uma ilha do mar verde da floresta, alguns
homens observavam, emocionados, o soberbo espetáculo
da natureza. Não constituía novidade para eles, mas
invariavelmente ficavam enfeitiçados toda vez que o
contemplavam.
Tempos atrás, haviam trajado uma farda. Mas
agora esses uniformes estavam tão esfarrapados que
ninguém mais os podia reconhecer. Parecia que apenas
os cintos evitavam que esses farrapos despencassem de
vez. As calças estavam enfiadas em botas dilaceradas, e
alguns dos homens tinham os ombros envoltos em peles
grosseiramente trabalhadas. Porque, com o sol poente, a
temperatura caía sensivelmente.
Os cabelos eram longos, assim como as barbas
emaranhadas. Mas, apesar do aspecto estranho, eram
indiscutivelmente homens da Terra longínqua.
Um deles, um sujeito troncudo e forte, de cara
larga, protegia a vista com a mão.
— É mais bonito que na Terra — disse, num
idioma que soava como russo. — Talvez fosse isso que
levou os outros a resolverem ficar aqui para sempre.
— E bem provável general Tomisenkow. Não há
outra explicação. Perderam o juízo.
O ex-comandante da expedição do Bloco
Oriental, que Rhodan havia desbaratado, sacudiu a
cabeça com veemência.
— Não creio que a atitude deles possa ser
explicada de maneira tão simples. Deve haver outras
razões mais complicadas. Vênus é um mundo selvagem,
mas é um mundo livre...
— Por acaso nós não somos livres também? —
perguntou um dos homens, meio na espreita.
— Liberdade, e liberdade... será que não existem
diferenças? A liberdade não é um conceito da
relatividade e do dogma político? A liberdade pode ser
imposta, mas também se pode conquistá-la.
— Coisas estranhas, essas que o senhor disse,
general! — comentou um outro homem, pensativo, e
olhou para a vasta planície que se estendia em direção ao
oeste. Lá também se erguiam pequenas ilhas rochosas, e
na luz crepuscular via-se que de uma delas subia uma
coluna de fumaça. — Não foram justamente os rebeldes
que disseram a mesma coisa?
— Foram eles, sim. Mas não se limitaram a
palavras; agiram. Tanto assim que se separaram de nós,
porque não queriam regressar à pátria depois do fracasso
da nossa invasão. Tínhamos ordens de conquistar a base
venusiana de Rhodan. Não conseguimos. Rhodan
destruiu nossas naves e nos abandonou indefesos nesta
selva. Mas ele sabia que o homem pode sobreviver aqui.
Os rebeldes também sabem disso. Todo seu plano está
baseado nesse fato. E é nesse ponto que reside a
diferença entre nós e eles. Nós queremos retornar à Terra
com um único intuito: preparar uma nova invasão. Mas
os rebeldes decidiram permanecer em Vênus para
colonizá-lo. Só que, com os meios escassos de que
dispõem, estão fadados a um fracasso. Mas parece que
isso eles não entendem.
— Pode ser, mas o fato é que já destacaram a sua
gleba e iniciaram o cultivo do solo. Vênus é muito fértil.
Tipo da terra ideal para colonos.
— O ponto de vista dos rebeldes é tão válido
como qualquer outro — admitiu o general, meio a
contragosto. — Mas, apesar disso, continuam sendo
amotinados que se recusam a cumprir ordens. E
amotinados, a gente costuma enforcar!
O soldado maltrapilho e embrutecido ao lado de
Tomisenkow levou a mão instintivamente ao pescoço e
se certificou que sua cabeça ainda estava firmemente no
lugar previsto pela natureza. Sua mão direita estava
fechada em torno da coronha da arma energética que
trazia no cinto. Cerrou os olhos ligeiramente e olhou na
direção do acampamento dos rebeldes. Ainda havia
claridade suficiente para poder reconhecer todos os
detalhes através de um bom binóculo. E lá também havia
sentinelas, que, por sua vez, estavam olhando para o
campo oposto. Eram os únicos homens em Vênus,
50
pertenciam ao mesmo bloco de potências... e apesar disso
eram inimigos mortais, e se combatiam com todos os
meios de que dispunham.
O general Tomisenkow estava se virando para
voltar à sua cabana quando um ofuscante raio luminoso
rompeu o crepúsculo. Era como se um relâmpago tivesse
atingido o meio do platô, no qual as tropas de invasão,
derrotadas e náufragas, haviam se estabelecido.
Trovoadas não eram nenhuma raridade em Vênus. Mas a
época não era essa.
Com um estrondo avassalador, a onda de choques
varreu por cima dos homens derrubando alguns deles.
Tomisenkow conseguiu se agarrar a uma árvore. Com
olhos arregalados fitou o céu pálido, tentando reconhecer
o ponto incandescente que caía lentamente, como um
meteoro gigante.
Por todos os fantasmas do inferno... aquilo era
uma nave espacial!
Mas não podia ser uma nave de Rhodan.
Pois aquelas diabólicas armas defensivas da
fortaleza extraterrena tinham-na atacado e derrubado.
Seria uma nave de suprimentos da pátria?
Claro que era! Não havia outra explicação. Antes
que conseguisse tomar uma resolução, um novo raio
rompeu a escuridão. Porém, aquela nave que estava
caindo não foi mais atingida; desapareceu atrás das copas
das árvores altas.
Quando a nova onda de choques tinha passado
por cima dele, Tomisenkow voltou correndo.
— Sargento Rabov, pegue alguns dos seus
homens e tente encontrar aquela nave derrubada. Pode
ser que não haja sobreviventes, mas mantimentos e
armas são sempre bem-vindos. Ande ligeiro, antes que
escureça de vez.
O sargento, um sujeito pequeno, de cabelos
escuros e olhos ágeis, acenou vivamente.
— Vou levar o holofote, general. Vamos
encontrar essa nave, pode contar com isso. Não quer vir
conosco?
Tomisenkow franziu as sobrancelhas. O que
restava da antiga disciplina?! Estava na hora de coibir
esses abusos de confiança.
— Tenho coisa mais importante para fazer! —
rosnou, irado, e se afastou em direção às cabanas ao pé
do pequeno cone rochoso.
Começou a se sentir um solitário no meio de seus
homens.
O sargento Rabov acompanhou a retirada brusca
do seu comandante com uma expressão impassível.
Tinha estreitado os olhos, o que lhe emprestava um
aspecto nitidamente mongol. Mas ele não era mongol, e
sim um musculoso ucraniano. E muitos dos seus
camaradas encontravam-se no acampamento dos
rebeldes. Na próxima oportunidade...
Afastou esses pensamentos desagradáveis e
seguiu o general a uma grande distância. As sentinelas
permaneceram na beira do platô, aguardando o próximo
disparo ofuscante.
Mas esperaram em vão.
* * *
Quando Thora acordou já era noite cerrada.
Suas pernas ainda estavam doloridas e só
conseguia mexê-las com dificuldade. Ainda bem que as
pontadas agudas que lhe atravessavam os quadris eram
suportáveis.
Cautelosamente, Thora apoiou os braços no
encosto da poltrona, fez um esforço e conseguiu se
levantar. O chão embaixo dos seus pés estava levemente
inclinado e tinha que tomar cuidado para não escorregar.
Ligou a iluminação, mas tudo permaneceu escuro.
Com um golpe brusco, puxou a alavanca da bateria de
emergência para baixo. Imediatamente as lâmpadas se
acenderam. E Thora viu o robô R.17.
Não havia mudado de posição, a testa ainda
encostada no painel dos instrumentos. O braço direito,
dobrado, repousava sobre a mesa estreita em frente aos
controles, enquanto o esquerdo pendia frouxo, dos
ombros.
Quando lhe ocorreu que R.17 talvez estivesse
morto, Thora se sentiu acometida de uma angustiante
solidão. Consertos de pequena monta não constituíam
problema para ela. Mas, se uma das complicadas peças
positrônicas internas estivesse danificada, R.17
permaneceria para sempre na selva venusiana, se não
fosse encontrado antes disso.
Diante da vigia reinava a escuridão. Só lá longe,
no horizonte, ainda havia o fraco brilho avermelhado do
sol poente. A nave destruída jazia sobre uma clareira. As
copas das árvores haviam amortecido o primeiro
impacto, mas, mesmo assim, era um verdadeiro milagre
que a nave tivesse resvalado sem maiores choques até o
chão. Somente o último trecho da queda tinha resultado
num baque mais violento, que luxou ligeiramente as
pernas de Thora e condenou R.17 à imobilidade.
Thora esticou os membros e constatou, satisfeita,
que não havia sofrido qualquer fratura. Sua preocupação
imediata era o robô. Com movimentos habilidosos, que
denotavam uma longa prática, abriu a caixa torácica de
R.17 e, com uma lanterna, iluminou aquela confusão de
transistores, conexões e outras pecinhas eletrônicas. Até
onde pôde constatar nada havia sido inutilizado.
Pensativa, Thora recolocou a placa no peito do robô,
prendendo-a com os grampos magnéticos. Não havia
mais dúvida; já sabia onde estava o defeito. A fronte de
R. 17 havia se chocado com violência demasiada contra
o painel dos instrumentos.
Thora retirou a tampa de vedação do crânio do
robô e mal conseguiu acreditar no que viu. Um dos cabos
principais tinha se soltado e agora pendia, inútil, em
meio aos minúsculos tubos de arconita.
Thora encontrou material de solda na caixa de
ferramentas e, poucos minutos depois, já tinha
consertado o defeito. R.17 acordou. Ergueu a cabeça,
olhou para Thora e perguntou:
— O que se passou? Eu fiquei desativado.
— Foi um cabo que se soltou só isso. Fomos
derrubados pelos canhões-sentinelas da base. Parece que
o codificador não funcionou direito. A base deve ficar a
uns quinhentos quilômetros daqui. E agora?
— Vamos esperar — respondeu R.17. Para ele,
esta conclusão era evidente. Dispunha de tempo.
— Esperar? Esperar o quê? Esperar que nos
encontrem? Vênus é desabitada. Se Rhodan estiver à
minha procura, vai voar para a base. Duvido que lhe
ocorra a idéia de que eu possa ter sido abatida. Como é
que estão os nossos aparelhos radiofônicos?
51
R.17 se levantou e caminhou, curiosamente
inclinado para frente, em direção a porta da cabina de
rádio. Sua postura meio adernada era o efeito do
giroscópio de estabilização, novamente em
funcionamento. R.17 não precisava se adaptar ao plano
inclinado do chão, nem dependia da posição do centro de
gravidade.
Thora permaneceu na central e olhou pela vigia,
tentando reconhecer os objetos lá fora. Sorte sua que o
crepúsculo em Vênus durava cinco vezes mais tempo
que na Terra, pois, assim, pôde habituar a vista aos
aspectos da vizinhança.
A nave jazia levemente inclinada, numa clareira
coberta de pedregulhos. Apenas algumas árvores isoladas
formavam a orla de uma floresta, que não era típica das
selvas pantanosas das regiões baixas. Só isto já constituía
um fato auspicioso, que Thora aceitou com satisfação.
R.17 voltou à central de comando.
— Os aparelhos radiofônicos não funcionam e
também não podem ser consertados — constatou, com
objetividade. — Assim, não podemos contar com
auxílio, a não ser que deem por nossa falta. Afinal,
Rhodan está a par do nosso voo experimental, eu
suponho.
— Não, Rhodan ignorava isso; ao menos até a
hora da nossa decolagem. Parti sem permissão, para
estabelecer contato com Árcon através da hiperestação
em Vênus. Rhodan não queria que Crest e eu
regressássemos a Árcon.
O robô estacou no meio da cabina. Cravou os
olhos de cristal naquela mulher.
— Infringiu ordens de Rhodan? Sabe que fui
condicionado a obedecer apenas Rhodan. Pelo que fez,
tornou-se minha adversária.
— Nos encontramos na mesma situação.
— Apesar disso, deve ser punida.
O orgulho de Thora foi duramente atingido. Ela, a
arcônida, pertencia à raça dominadora que havia criado
esse robô. E agora esse engenho, sua própria criação, lhe
dizia que ela merecia ser castigada. Até o poder sobre os
robôs Rhodan havia retirado das mãos dos arcônidas!
— Está certo; Rhodan deveria me punir —
admitiu ela, evitando soar ilógica. — Mas ele só vai
poder fazer isso quando eu chegar à presença dele viva.
Portanto, é sua obrigação me levar a Rhodan... para a
base venusiana. Porque só lá vamos encontrá-lo.
O robô R.17 reconheceu que a arcônida tinha
razão. Acenou com a cabeça — coisa que ele fazia muito
bem, pois os engenheiros arcônidas não haviam deixado
de dotar os seus robôs com essas reações.
— Muito bem, vamos à base venusiana para
esperar por Rhodan.
Isso, é claro, era fácil de dizer e difícil de realizar.
— A partir desse momento, sou responsável pela
sua segurança, pela sua vida — constatou R.17,
secamente. — A senhora transgrediu a lei de Rhodan e,
portanto, é minha prisioneira. A nave está inutilizada, por
isso vamos partir o mais depressa possível para não
perder tempo.
— E víveres para mim? — lembrou-se Thora,
quase perdendo o fôlego de susto.
O robô apontou para os armários embutidos na
parede.
— Lá se encontram armas, medicamentos, água e
concentrados previstos para uma tripulação de três
homens. No caso, dá folgadamente para duas semanas.
Vou lhe permitir o uso de uma arma, porque isso serve
ao meu propósito.
Thora teve que engolir mais essa. Um robô
permitir a ela, a arcônida, o porte de uma arma! Decidiu,
no íntimo, que assim que pudesse mandaria transformar
R.17 em sucata.
Pegou o irradiador de impulsos e o afixou ao
cinto. Depois enfiou os concentrados num pequeno saco,
que entregou ao robô, encarregando-se ela mesma de
levar os medicamentos. R.17 se ofereceu para carregar o
vasilhame de água.
— Vou levar também o holofote — decidiu
Thora; estremeceu quando se lembrou daquela selva
mergulhada na escuridão que a esperava lá fora. Em
outras circunstâncias, Thora teria aguardado o raiar do
dia venusiano. Mas tanto o seu procedimento quanto seu
pensamento eram exclusivamente norteados pela
obsessão de alcançar a base, custasse o que custasse. E
assim resolveu partir em plena escuridão, pois sabia que,
a cada minuto que se passava, diminuíam as suas
chances de poder entrar em contato com Árcon. Rhodan
não ficaria de braços cruzados na Terra, esperando que
ela realizasse com sucesso o seu desígnio.
— A escuridão não é problema — tranquilizou-a
R.17. — Consigo ver muito bem no escuro se ligar
minha instalação infravermelha. E para enfrentar seres
hostis, disponho do meu irradiador de neutrônios —
ergueu seu braço esquerdo. — Vou levá-la em segurança
para a fortaleza.
Somente agora Thora se recordou que Vênus era
habitado principalmente por sáurios enormes. Estava
começando a perder a coragem, mas o desânimo foi logo
vencido pela vontade fanática de realizar o seu intento e
de se defrontar com Rhodan. Monstro algum conseguiria
detê-la.
Lançou um último olhar pela vigia e depois abriu
a porta de emergência. Estava ligeiramente emperrada,
mas, quando R.17 a forçou com o seu corpo possante,
abriu-se com um estridente rangido. A atmosfera
venusiana, ainda quente e úmida, penetrou na cabina e,
com ela, os odores da natureza.
R.17 foi o primeiro a sair. Desceu a escada
estreita e se postou no solo duro e seco, esperando por
Thora. Seus olhos artificiais vararam a escuridão e viram
tudo como se o sol estivesse pairando no céu escuro,
mergulhando a paisagem em luminosa claridade.
É claro que isso Rabov e seu pessoal não podiam
saber.
Encobertos pelo manto da escuridão, os homens
do Bloco Oriental aproximaram-se cautelosamente
daquela nave espacial derrubada. Não sabiam ao certo
quem a havia conduzido a Vênus. Essa gente podia
pertencer tanto à OTAN quanto à Federação Asiática.
Uma luz emanava da vigia de observação. E nessa luz se
moviam as sombras de duas pessoas. Era só o que se
podia distinguir. Depois, a porta se abriu e dois vultos
deixaram a nave, ou aquilo que tinha sobrado dela.
A luz na central permaneceu acesa.
O sargento Rabov fez um sinal aos seus homens.
Agarraram as armas e tentaram varar a escuridão com
seus olhos. A luz na nave espacial lhes fornecia um
ponto de referência, mas nada viam daqueles dois
52
homens que tinham acabado de descer. Deviam ter
parado debaixo da nave, pois não se mexiam mais.
Com sua voz desprovida de qualquer emoção,
R.17 se dirigiu a Thora:
— Tivemos uma sorte inacreditável. Lá na frente
há seres humanos. Consigo vê-los nitidamente. São
quatro homens armados. Estão se aproximando de nós.
Se eu quiser, posso matá-los.
Thora se refez rapidamente do impacto da
surpresa.
— Não, não faça isso! Por que quer matá-los? São
inimigos?
— A atitude deles não denota intenções pacíficas.
Observaram a queda da nave e agora vieram para
saquear. Talvez foram até eles que nos derrubaram.
— Você sabe muito bem que fomos derrubados
pela sentinela eletrônica da base — disse Thora,
sacudindo a cabeça. — Quem são esses quatro homens?
Você consegue reconhecer algum deles?
— Têm o aspecto de quem vive nesta selva há
anos.
Como um raio, a intuição invadiu a mente de
Thora: eram as tropas de desembarque do Bloco
Oriental! E isso significava inimigos potenciais.
Mas seriam inimigos também aqui, nas selvas de
Vênus, onde um dependia do outro?
Thora sacudiu os ombros.
— Pode ser que não caiamos no seu agrado, R.17,
mas primeiro vamos tratar de saber o que querem de nós.
Mantenha-se pronto para intervir, se for preciso. Quero
falar com eles. Vamos deixar que se aproximem; afinal
de contas, eles não sabem que você os vê.
Thora e o robô observaram em silencio a
cautelosa aproximação de Rabov e seus homens. Menos
de três passos os separavam, quando Thora disse em
inglês, a língua na qual era mais fluente:
— Desejam alguma coisa de nós?
O susto que o sargento levou foi tamanho que
ficou inteiramente desnorteado. Podia esperar tudo,
menos ser interpelado por uma voz feminina, vinda da
escuridão. Tropeçou e se esparramou no chão. Sua arma
se chocou estrondosamente contra a rocha. Soltou uma
florida imprecação em russo.
Ainda esticado no chão, disse:
— Só viemos para oferecer ajuda. Posso saber
quem são?
R.17, que podia ver o sargento perfeitamente
bem, respondeu:
— Agradecemos toda ajuda que nos possa prestar.
Suponho que os senhores pertençam às tropas do general
Tomisenkow.
A esta altura, Rabov já se havia refeito do susto e
se levantou. A voz daquele homem na escuridão soava
curiosamente dura e mecânica, se bem que o inglês que
falava era perfeito. E o sargento entendia inglês muito
bem. Portanto, esse pessoal que tinha sido derrubado era
da OTAN.
— Sim, somos gente de Tomisenkow.
— Eu não entendi, o que o senhor disse. —
constatou R.17, sem qualquer acanhamento. Não tinha
competência para interpretar corretamente expressões
idiomáticas.
Thora disse rapidamente:
— É claro que precisamos juntar forças, se
quisermos sobreviver. Aliás, como é que foi que nos
encontrou tão depressa?
Rabov tinha se aproximado lentamente e foi
apanhado pelo feixe de luz, que vinha da cabina. Seu
aspecto maltrapilho, embrutecido, não era de molde a
causar a melhor das impressões, quanto mais despertar
confiança. Thora sentiu calafrios ao imaginar o que
poderia acontecer se caísse nas mãos de sujeitos tão
rudes. Ainda bem que estava acompanhada por R.17;
certamente saberia como protegê-la.
Durante os primeiros instantes, Rabov nem
prestou atenção no detalhe dos cabelos brancos e dos
olhos albinos, avermelhados. Só via a mulher. Fazia
muitos meses que ele e seus camaradas não viam uma
mulher. Rabov era um sujeito tenaz e valente, mas aquela
visão insólita o fez ficar encabulado. Inseguro, trocava
constantemente de pé, e finalmente balbuciou:
— Vimos sua nave ser derrubada. Nosso
acampamento não é longe daqui. Fomos enviados pelo
general Tomisenkow.
— Ótimo! — disse Thora, que instintivamente
agarrou a chance que vislumbrou.
— Então nos leve ao seu general. Temos muito
que falar com ele.
Rabov acenou. Depois se lembrou que ainda
havia outras perguntas importantes a fazer.
— Foram os únicos que sobreviveram à queda?
— Fomos os únicos passageiros — respondeu
Thora, sem se importar com a surpresa de Rabov. —
Vamos logo! Não tenho nenhuma vontade de passar a
noite inteira em pé aqui.
O sargento Rabov começou a desconfiar que os
papéis houvessem sido trocados, mas seu instinto o
impedia de se indispor com essa mulher. Por isso
ordenou aos seus três companheiros que guardassem as
armas e iniciassem a caminhada de volta ao
acampamento. Ele mesmo resolveu andar ao lado de
Thora, sem dar muita atenção ao outro sobrevivente. Em
sua opinião, devia ser o comandante da nave derrubada.
Por uma questão de gentileza, Rabov se virou para R.17,
que até agora tinha se mantido na escuridão, e disse:
— Espero que não tenha se ferido.
O robô respondeu, com toda objetividade:
— Apenas um cabo se soltou, mas esse defeito
nós conseguimos consertar. Agora, quanto à nave, essa
está perdida.
O sargento Rabov necessitou de vários segundos
para reparar no aparente absurdo da resposta.
— Um cabo?! — murmurou. Não estava
entendendo. — Onde é que esse cabo se soltou?
— Dentro de mim; eu não lhe disse?
Rabov estancou. R.17 que não reagiu com
suficiente rapidez, esbarrou contra o sargento. Por pouco
Rabov não se esparramou mais uma vez no chão. Tinha a
impressão de ter sido abalroado por um tanque ligeiro.
Aturdido pela surpresa, se agarrou a Thora que,
felizmente, conseguiu se escorar numa árvore.
O braço esquerdo de R.17 se ergueu
ameaçadoramente.
— Quem... O quê? — gaguejou Rabov,
desconcertado.
Thora se livrou do sargento e sacudiu a cabeça,
indignada.
— Não seja tão impetuoso, meu amigo. Meu
53
companheiro é um robô. O que tem isso de tão
espantoso?
É claro que o sargento Rabov não conhecia
nenhum robô arcônida, mas ele sabia que, na Terra,
somente a Terceira Potência possuía robôs. Como é que
esse pessoal da OTAN havia conseguido botar as mãos
nesses robôs? Ou então, um novo pensamento lhe varou
o cérebro, será que esses dois não eram da OTAN? Mas
então por que tinham sido derrubados?
Havia algo de podre nessa história, e Rabov
resolveu ir direto ao assunto.
— Pertencem à Terceira Potência?
— Duvidou disso? — retrucou Thora e fez um
gesto impaciente com a mão que, além de R.17, ninguém
mais viu. — Vamos ficar parados aqui eternamente?
Rabov lançou um olhar furtivo na direção onde
supunha que estivesse o robô, e pôs-se novamente em
movimento.
Uma mulher e um robô... nunca na vida, nem ele
nem o general Tomisenkow haviam capturado uma dupla
tão estranha.
4
O ruído estranho fez Son Okura acordar.
No primeiro instante, ainda tonto de sono, foi
incapaz de se lembrar que tipo de barulho tinha sido esse,
e muito menos de imaginar o que o teria produzido.
Levou até vários segundos para se lembrar onde estava.
Depois, sua mente se desanuviou. Sim... junto
com John Marshall e Perry Rhodan, encontrava-se num
galho largo, dez metros acima do solo de Vênus, em
meio à selva daquele planeta virginal. A escuridão era
total. Em algum ponto no oeste, situava-se a base
arcônida, implantada no alto de uma cordilheira. E atrás
deles, no leste, jaziam os escombros calcinados da sua
nave espacial.
E ouviu novamente aquele barulho.
As pernas lhe doíam bastante, mas isso não
preocupava Okura no momento. Ativou a parte mutada
de seu cérebro... e, de repente, a noite se tornou dia claro
para ele. Podia ver.
A menos de dois metros, encontrava-se Rhodan,
meio deitado, as costas recostadas contra um galho não
muito grosso. Ao lado dele, numa posição encolhida,
estava Marshall, que dormia de boca aberta e roncava.
Sua mão direita estava enfiada no bolso e Okura teria
apostado a sua ração de água que, mesmo no sono, não
largava o coldre daquele revólver obsoleto.
Era um ruído arrastante e vinha da esquerda, onde
o enorme tronco da árvore gigante se erguia em direção
ao teto da floresta, a mais de cem metros de altura.
Okura manteve-se imóvel, tentando descobrir a
origem daquele ruído. Quando a descobriu, ficou mais
imóvel do que antes. Por um instante seu coração parou
de bater, mas depois o sangue lhe afluiu à cabeça com tal
violência que Okura teve a impressão que fosse estourar.
Lentamente, aquela coisa amarela se deslocou
sobre a bifurcação do galho e se arrastou, em ondas
regulares, em direção aos três homens.
Nunca antes em sua vida Okura tinha visto um
verme-lesma venusiano. Era até provável que homem
algum antes dele tivesse posto os olhos nesse animal.
Vivia oculto nas profundezas das incomensuráveis
florestas. De dia, refugiava-se nas cavidades de troncos
gigantes apodrecidos, e só abandonava o seu esconderijo
à noite. Sua alimentação consistia em todas as matérias
orgânicas: plantas, madeira mole... e carne. Tudo que
também fosse lento ou, melhor ainda, imóvel, constituía
a sua presa.
No entanto, não se podia considerar o verme-
lesma como uma fera, ou um animal predador, na
acepção costumeira da palavra.
De qualquer maneira bastou o aspecto deste bicho
para que o medo estarrecesse Okura, incapaz de realizar
o menor movimento. Com olhos arregalados fitou aquele
ser horripilante, que se aproximava lentamente dele.
Realmente fazia lembrar uma lesma, ao menos no
que dizia respeito à cabeça. Longas antenas, que
oscilavam constantemente, estendiam-se para frente, à
procura de algum obstáculo. Na extremidade dessas
antenas, constatou Okura, localizavam-se os pequenos
olhos. A outra parte do animal era o verme propriamente
dito. Um corpo alongado e flexível, sem pernas visíveis.
Os movimentos dos diversos segmentos anulares eram
responsáveis pela locomoção do verme-lesma.
O que mais infundia pavor era aquela bocarra
voraz. Possuía três fileiras de dentes afiadíssimos,
capazes de triturar praticamente tudo que conseguissem
agarrar. Isso incluía ossos, sem a menor dúvida.
Okura interrompeu suas reflexões, quando viu que
o animal parou de avançar. Os olhos nas pontas das
longas antenas dirigiam-se ao japonês, como se também
fossem capazes de enxergar na escuridão. Talvez até o
pudessem. Seja como for, o animal devia ter farejado a
sua presa e agora estava tentando descobrir, se esta era
suficientemente lenta, para não mais lhe poder escapar.
Okura viu que o verme media, no mínimo, cinco
metros de comprimento. Chegou à conclusão que ele e
mais um de seus companheiros caberiam folgadamente
no interior desse corpanzil, principalmente se a
deglutição fosse precedida do devido processo de
redução. O pensamento sumamente desagradável de
eventualmente ser devorado com toda calma ali no alto
daquele galho, restituiu a Okura o raciocínio e a
capacidade de ação.
Com um movimento rápido, arrancou o irradiador
do cinto e abriu o fecho de segurança; certificou-se que a
lâmpada de controle estava acesa e constatou que a
energia disponível era suficiente para liquidar dez desses
horripilantes animais. A arma na mão devolveu a
coragem a Okura, e desalojou o resto do medo
angustiante que se tinha aninhado no seu coração.
Nenhum ser vivo em Vênus conseguiria resistir a um
moderno irradiador de impulsos dos arcônidas.
O verme-lesma parecia ter chegado à convicção
que uma tentativa poderia trazer resultados satisfatórios.
Os segmentos anulares do corpo voltaram a se
locomover, e mais uma vez se fez ouvir aquele ruído
arrastante, que havia arrancado Okura do sono. O
japonês lançou um olhar preocupado aos dois
companheiros, que dormiam profundamente; depois
encolheu os ombros. Talvez não se assustassem tanto a
ponto de cair da árvore, quando o chiado da descarga os
despertasse do sono merecido.
A pequena distância permitiu fazer pontaria
54
precisa e Okura apertou o botão disparador. O fino raio
energético acertou em cheio a cabeça daquela criatura
estranha, mas perigosa. As antenas, os olhos, aquela boca
voraz, e a parte superior do corpo amarelo
desapareceram no clarão da chama energética,
instantaneamente sublimados. O resto do corpo do
verme-lesma se contorceu violentamente, e resvalou do
galho, precipitando-se com um estalo de encontro ao
solo.
Rhodan acordou numa fração de segundos.
Ergueu-se e viu que Okura estava tentando apagar as
chamas com o pé, antes que se alastrassem para as folhas
secas e os cipós.
— Que foi que houve Okura?
— Uma espécie de serpente. Rastejou em nossa
direção, mas acordei a tempo. Aliás, acho que é boa hora
de reiniciarmos a marcha.
Marshall virou o corpo pesadamente para o outro
lado.
— Que barulheira é essa? — reclamou sonolento.
— Ainda é noite escura. Será que nunca se consegue
dormir em paz?
— Escapou por pouco de dormir em paz para todo
o sempre! — explicou Rhodan, com toda calma, e se
levantou de vez. — Ainda bem que Okura acordou na
hora exata para impedir que o dragão nos devorasse.
— Como é que é?
Marshall ainda estava cansado demais para se
inteirar da realidade dos fatos nos pensamentos de
Okura.
— É mesmo. Algum monstro. Uma espécie de
serpente, se quiser. Okura descobriu o bicho no último
segundo e o matou. Será que não ouviu nada?
Marshall se sentou ao lado de Rhodan. Sacudiu a
cabeça.
— Como é que eu posso ter ouvido alguma coisa,
se eu estava dormindo?
Após essa constatação bastante lógica, tratou de
preparar o almoço. Aquele trecho do galho, onde o
verme-lesma havia exalado o último alento, ainda estava
em brasas e fornecia iluminação suficiente. Meia hora
depois, já estavam novamente marchando através da
floresta. Okura, de arma na mão, ia à frente e sondava a
vizinhança. O chão ainda se apresentava seco. Mas,
como o terreno caía constantemente num declive quase
imperceptível, era inevitável que dentro em pouco
chegassem à região pantanosa. Os três homens
aguardavam esse momento com os mesmos receios.
Algo rumorejava na mata, à direita. Marshall, que
formava a retaguarda, ergueu a arma, mas não encontrou
alvo algum naquela escuridão. Algo os acompanhava, a
menos de dez metros de distância, atravessando a
vegetação densa com passos pesados. Marshall começou
a sentir uma ligeira pressão em seu cérebro. Sem muita
esperança de obter um resultado positivo, Marshall
ativou a sua capacidade telepática... e teve uma surpresa.
Era incrível, mas estava realmente captando os
pensamentos de um desconhecido. Eram pensamentos
bastante primitivos e superficiais, que se ocupavam
principalmente com presa e comida, mas não deixavam
de ser pensamentos.
— Tem alguém à direita! — sussurrou
suficientemente alto para que Okura e Rhodan o
pudessem ouvir. — Consegue vê-lo?
O japonês olhou na direção indicada e acenou.
— É a mesma sombra que observamos ontem.
Aquela silhueta de um gorila. Garanto que é um macaco.
Enquanto não nos atacar, não precisamos nos preocupar
com ele. Só estou admirado que ele não toma
conhecimento de nós. E é impossível que ele não tenha
nos reparado.
— Talvez pensa que também somos macacos —
murmurou Rhodan e lembrou-se dos quinhentos
quilômetros que ainda tinham de percorrer. Aos poucos,
começou a se amaldiçoar por ter partido no encalço de
Thora tão despreparado e sem qualquer medida de
segurança. Por que não havia escolhido uma nave já
testada e perfeitamente equipada?
Continuaram a caminhar com disposição, sem se
importar com seu acompanhante invisível. Finalmente
chegaram às margens de um pequeno lago e acharam o
lugar apropriado para passar um novo período de
descanso. Um murmúrio distante e abafado vinha da
escuridão em frente.
Rhodan perguntou a Okura se conseguia
reconhecer alguma coisa.
— Não estou muito certo — respondeu o japonês,
vacilante — mas, se os meus olhos não me enganam, lá
adiante há uma depressão com alguns pântanos e um
curso d’água. Atrás dela, ergue-se uma cordilheira.
Consigo ver algumas quedas d’água bastante grandes. E
lá em cima, no platô, a floresta é menos densa. Lá vamos
poder avançar com maior rapidez.
Resolveram acender uma fogueira. O solo já se
apresentava úmido mas, poucos metros acima do solo,
encontraram lenha suficientemente seca. As chamas
espalharam claridade e lançaram sombras grotescas
contra a cortina da noite. Okura mantinha-se vigilante e
vasculhava a redondeza sem cessar; mas sua
preocupação era infundada. Os animais de Vênus
conheciam o fogo apenas sob a forma de vulcões em
erupção, e tinham razão para temê-lo.
A água do lago era impotável. Marshall, que
preparava a refeição, observou meio desalentado que
daqui a pouco teriam que começar a caçar, se não
quisessem morrer de fome. Alertou, ainda, que a água
estava escasseando. Rhodan tranqüilizou-o, lembrando
que o dia venusiano já não estava longe e que lá em
frente havia aquelas quedas d’água.
Desta vez não dormiram todos ao mesmo tempo.
Revezaram-se e, assim, sempre havia um a vigiar o sono
tranqüilo dos outros.
* * *
Lá pela meia-noite chegaram ao pé daquele
paredão quase vertical.
O sol só nasceria daqui a sessenta horas; não era
possível esperar tanto tempo. Durante a marcha através
da baixada pantanosa Okura havia conseguido abater um
pequeno animal com o revólver de Marshall. Com isso,
dispunham de carne suficiente para as próximas
refeições. E agora, quando se encontravam diante
daquele paredão, ouviram ao lado o estrondo de uma
enorme queda d’água.
— Um bom lugar para ficar e descansar de
verdade — decidiu Rhodan. — Podemos acender outra
fogueira e improvisar um muro com alguns desses blocos
de pedra. Isso vai nos proporcionar segurança suficiente
55
para uma pausa. E depois vamos subir até aquele platô
Okura olhou para cima. Seus olhos privilegiados
vararam a escuridão perene da noite venusiana. Embora a
temperatura houvesse baixado sensivelmente, ainda fazia
muito mais calor do que numa noite de verão na Terra.
— Não consigo determinar isso com muita
precisão — disse Okura mas aquele platô está a trezentos
metros acima da baixada, no mínimo.
— E também não temos cordas! — comentou
Marshall.
Rhodan liquidou as duas objeções.
— Não temos outra escolha. Além disso, é bom
considerar que uma marcha através do platô é bem
menos fatigante e perigosa que qualquer caminhada
através da selva ou dos pântanos. Se algum dia Vênus for
colonizada, os homens só vão poder viver no alto dessas
ilhas rochosas. Bem, visto isso, vamos tratar do nosso
assado. Marshall acenda uma fogueira! Okura
desembrulhe sua caça!
Quando as chamas da fogueira se ergueram,
constataram que o animal abatido apresentava muito
pouca semelhança com uma caça terrestre. Era
quadrúpede, mas as quatro pernas eram tão curtas que
Okura acabou tendo a impressão de ter caçado um bassê
avantajado. E aquele focinho estreito e afilado, fazia
lembrar também um cachorro, enquanto que as orelhas,
em pé, não tinham muito que ver com um bassê de raça
pura. De um rabo, não havia nem sinal. E em lugar de
pelo, o animal possuía apenas pele lisa e escorregadia.
— Parece um porco-espinho de barba feita! —
rosnou Marshall, lambendo os beiços furtivamente. —
Ninguém gosta mais de animais que eu, mas, um bicho
gozado desses, eu não queria ter em casa nem de graça.
Vamos tratar de comê-lo!
— Tenho certeza que é bem mais saboroso que
aqueles concentrados — comentou Rhodan e pôs-se a
observar, interessado, com que habilidade Marshall
estava preparando o assado.
Duas horas mais tarde estavam saciados e se
recostaram no paredão ligeiramente aquecido, as mãos
entrelaçadas sobre os estômagos repletos.
— Excelente! — elogiou Marshall sua própria
arte culinária. — Precisamos nos lembrar dessa receita!
— Faltou o sal — murmurou Rhodan e sentiu que
estava ficando com sono.
— Podemos chamar esse bicho de porquinho
bassê — sugeriu Okura, não menos sonolento.
Silenciaram. E, de repente, esse silêncio foi
interrompido por um tiro.
Ouvir um tiro num planeta não habitado por
homens era algo tão surpreendente e fora de propósito
que as mentes não registraram esse fato incomum de
imediato. Marshall fitava as chamas, perdido em
pensamentos. E, para um observador neutro, deveria ter
sido interessante acompanhar suas reações.
Marshall apurou os ouvidos, acenou várias vezes
com a cabeça, e finalmente disse:
— Alguém devia estar caçando um porquinho
bassê, e acertou logo no primeiro tiro.
Resolveu atiçar o fogo e depois viu os olhos
arregalados dos dois companheiros. De repente, ficou
lívido:
— Deus do céu, alguém deu um tiro!
De um só salto, Okura estava de pé.
— Impossível! Quem poderia ter sido? Rhodan
estava tão perplexo quanto os outros, mas a sua mente
funcionava com maior rapidez e com raciocínio mais
lógico. Numa fração de segundos, registrou o fato do
tiro; concluiu que só poderia ter sido disparado por um
homem e que, portanto, havia homens em Vênus; e no
mesmo instante descobriu de que tipo de homens se
tratava. Ao mesmo tempo, se recordou do aspecto
geográfico do local onde as tropas de Tomisenkow
haviam desembarcado, e logo em seguida foram
desbaratadas; chamou à memória a sua própria posição, e
chegou à mesma conclusão. Lá em cima, naquele platô,
viviam os navegantes espaciais, dados como
desaparecidos. Acenou para Okura.
— Por que acha que é impossível? Não somos os
únicos homens em Vênus. Além disso, também poderia
ter sido Thora.
— A arcônida jamais vai lidar com armas de fogo
terrestres — disse o japonês, sacudindo a cabeça.
— Então, por exclusão, só restam os homens de
Tomisenkow — disse Rhodan.
— O pessoal do Bloco Oriental? — Marshall
ainda mantinha a cabeça inclinada. — O que esses caras
querem aqui?
— Caçar...
Rhodan foi interrompido por um novo tiro,
seguido dos estampidos de uma salva inteira. A resposta
não se fez tardar; uma fuzilaria irregular veio de outra
direção. Aquilo não era uma caçada. Era um combate
entre dois grupos que se defrontavam na região. E isso
alterava a situação. Rhodan olhou pensativo para aquele
paredão, que se erguia quase a pique.
— Não vejo mais sentido em subir ao platô. Se
me reconhecem, acabam comigo em três tempos. Pois é a
mim que devem sua sorte atual; ao menos, é o que eles
pensam. Por outro lado, eles possuem fuzis, e com esses
a gente pode caçar. Seu revólver foi útil, Marshall, mas
também não vai nos salvar por muito tempo. Portanto,
um de nós vai ter que tentar estabelecer contato com eles.
— Uma tarefa arriscada como quê! — murmurou
Okura. — Mas eu poderia tentar, porque eu consigo
enxergá-los mais cedo do que eles a mim.
— De noite, sim. Eu acho que devemos subir
juntos ao platô. Depois, resolvemos o que vamos fazer.
Enquanto arrumavam os seus pertences, ainda
ouviram alguns tiros esparsos. Embrulharam o resto da
carne em folhas secas, abasteceram-se de água e,
finalmente, reduziram a fogueira sem, porém, extingui-
la.
— Será que não podíamos dormir mais algumas
horas? — quis saber Marshall. — Sei que estamos com
pressa, mas também não com tanta assim.
Rhodan inclinou a cabeça e aguçou os ouvidos.
Nenhum som veio do alto. O silêncio reinava novamente
naquele platô. Rhodan acenou.
— De acordo. Mais cinco horas de sono e depois
partimos. Eu só não entendo por que é que estão se
batendo. Gostaria de saber qual é o pomo da discórdia.
Okura se estendeu embaixo de uma saliência de
rocha e disse:
— O pomo da discórdia é Vênus, ora essa! Como
os conheço, eles se engalfinharam porque não chegaram
a um acordo quanto ao tipo de sociedade mais adequado
para os futuros venusianos.
56
Rhodan acenou, com uma expressão séria no
rosto.
— Pode ser que tenha razão, Okura. Mas, se esse
for o caso, estão brigando à toa, porque jamais vai caber
a eles resolver este assunto.
— E quem é que não briga por uma coisa dessas?
— murmurou Marshall e fechou os olhos. A julgar pela
sua expressão, desejava sonhar com bifes de porquinhos-
bassê, mas não pensar a respeito de absurdos.
A fogueira se extinguiu lentamente. Escureceu.
E tudo continuou escuro, até que um súbito clarão
rompeu as trevas. Mas isso só aconteceu horas mais
tarde.
* * *
Quando o sargento Rabov entregou Thora e o
robô no quartel-general de Tomisenkow, ficou admirado
com a indisfarçada satisfação demonstrada pelo seu
comandante supremo. Depois, em cumprimento às
ordens recebidas, se embrenhou na mata à frente de uma
patrulha de vinte homens, numa operação de
reconhecimento da ilha rochosa dos rebeldes. Se possível
devia fazer alguns prisioneiros, pois Tomisenkow queria
saber se estavam planejando um ataque contra ele.
O caminho era longo e conduzia através de
pântanos, baixadas e florestas, mas Rabov não o estava
percorrendo pela primeira vez. Conhecia as marcações
que levavam ao platô do inimigo; por isso não tinha
dúvidas que encontraria esse caminho sozinho... no
momento oportuno.
Mas esse dia ainda não havia chegado.
A patrulha de Rabov não era a única em operação
nesta noite. Do lado oposto, um pequeno exército de uns
duzentos homens aproximava-se do platô no qual se
haviam instalado os rebeldes. Esses homens faziam parte
de outro bando sedicioso das tropas de Tomisenkow. Por
razões puramente ideológicas, este bando não era
partidário de nenhuma das duas facções, mas
representava o pacifismo absoluto. E agora estava
empenhado em impingir esse pacifismo aos rebeldes; se
preciso, com o emprego da violência.
Um tenente de nome Wallerinski comandava o
destacamento.
Wallerinski e seus homens chegaram primeiro.
Escalaram a ilha rochosa dos rebeldes e pegaram as
sentinelas de surpresa. Fiel aos seus princípios pacifistas,
Wallerinski não matou as sentinelas, apenas as
aprisionou. Mas isto não o impediu de interrogá-las com
todos os requintes da arte de arrancar informações, a fim
de que revelassem o esconderijo dos rebeldes.
Uma hora mais tarde, o destacamento de
Wallerinski topou com o posto avançado dos rebeldes.
Mas o homem não estava dormindo, e conseguiu soltar
um tiro de alerta, que acordou o acampamento. Dez
minutos depois, o tiroteio começou.
Rabov e seus vinte homens ainda se encontravam
a alguns quilômetros do platô dos rebeldes quando
ouviram os tiros. Discutiram o fato e chegaram à
conclusão que, nas redondezas, deviam existir outros
grupos daquele exército desbaratado, e que se combatiam
mutuamente.
E essa triste verdade só tinha uma explicação: a
culpa era daquela natureza inóspita, que transformava
conhecidos em estranhos e impedia que se mantivessem
as relações de amizade.
Rabov ia dar a ordem para prosseguir a marcha,
quando um dos seus homens veio correndo em sua
direção.
Agitado, e quase sem fôlego, o homem balbuciou:
— Luz! Lá na frente há uma fogueira. Pode-se vê-
la com toda a nitidez!
— Lá embaixo? — quis saber Rabov.
— Sim, no pé do paredão. Talvez os rebeldes
instalaram um posto avançado lá.
— É, um posto avançado com uma fogueira, para
que possam ser vistos a quilômetros de distância — disse
Rabov com ironia. Tinha certeza que a verdade era bem
outra, mas qual seria não podia imaginar. Senão teria
refletido um pouco mais, antes de emitir sua ordem: —
Vamos descer, para ver quem são!
E assim, duas horas mais tarde, Rabov olhou para
três homens adormecidos, que acordaram imediatamente
quando os feixes dos holofotes incidiram nos seus rostos.
Como tinham aspecto bem tratado e não trajavam
o uniforme daquele exército desbaratado, Rabov se
dirigiu a eles em inglês. Tinha o vago pressentimento
que aquela mulher havia mentido ao afirmar que somente
ela e o robô se encontravam naquela nave espacial
derrubada.
— Estão sob a mira de vinte fuzis! — advertiu —
portanto, não tentem agarrar as pistolas. Um dos meus
homens vai agora recolher suas armas. Se estiverem de
acordo, acenem.
Perry Rhodan reconheceu que tinha cometido um
erro fatal. Era realmente um contrassenso querer dormir
tranquilamente num terreno onde se realizava um
tiroteio. Agora teria que arcar com as consequências.
Baixinho, sussurrou para Okura:
— Consegue reconhecer alguma coisa?
— O sujeito não está mentindo, não — cochichou
o japonês em resposta. — Estamos cercados, e vejo os
fuzis apontados para nós. Podíamos liquidar alguns
deles...
— E qual é a nossa chance?
— Bem, eu diria um para dez.
— É muito pouco — sussurrou Rhodan e, depois,
disse em voz alta: — Mande vir o seu homem para
apanhar as armas. Quem são vocês?
— Vai ficar sabendo disso quando chegar a hora.
Foram os senhores que atiraram ainda há pouco?
— Se está se referindo àquele tiroteio, sinto ter
que desapontá-lo. Foi realizado lá em cima, no platô.
Sem oferecer resistência, Rhodan deixou que lhe
tirassem o irradiador de impulsos do cinto e constatou,
com satisfação, que Marshall conseguiu ficar com o
revólver oculto no fundo do bolso. Okura não fez uma
cara muito feliz, quando lhe retiraram a arma. Pela
primeira vez não sorriu.
— Muito bem — disse o homem atrás do holofote
— agora vamos conversar um pouco.
Quando emergiu da escuridão, Rhodan conseguiu
finalmente vê-lo. Um aspecto pouco alentador, constatou
no íntimo, fazendo votos para que outro não o
reconhecesse; Não era realmente uma perspectiva muito
agradável cair nas mãos daqueles homens que ele, por
assim dizer, havia entregue a um destino incerto em
Vênus.
— Eu sou o sargento Rabov, do exército do
general Tomisenkow — apresentou-se Rabov. — E
57
quem são os senhores?
Essa pergunta exigia uma resposta clara. Ou ao
menos uma resposta, pensou Rhodan, que não soasse
suspeita.
— Faço parte de uma expedição — disse ele,
cauteloso — que recebeu a missão de testar a vigilância
da fortaleza venusiana de Rhodan.
— Quem o enviou?
— Ora, quem havia de ser?
— Os americanos?
— É possível.
Rabov considerou isto como uma resposta
positiva. Só não conseguia explicar por que aquela moça,
lá em cima no platô, havia mentido, e por que esses três
se tinham separado dela e do robô.
— Suponho que vieram sozinhos. Foram
derrubados?
— Adivinhou.
Rabov refletiu. Ainda não era hora de exibir todos
os trunfos. O prisioneiro não precisava saber que ele já
havia encontrado os outros sobreviventes. Era sempre
bom deixar o adversário na incerteza a respeito da sua
situação. Isso era um princípio básico antiquíssimo e de
uma eficiência mais que comprovada. Todavia, era bem
interessante ouvir que esse homem admitia pertencer à
OTAN, enquanto a mulher afirmava representar a
Terceira Potência.
— E onde foi derrubado? Rhodan apontou para
leste.
— Lá, em cima da selva. Os canhões nos
apanharam.
— Ah! — fez Rabov, sem estar convencido. —
Quer dizer que não foram derrubados sobre um platô e
sim sobre a selva? E depois vieram para cá a pé?
— Isso mesmo. Há algo de estranho nisso?
Rabov não deu resposta. Estava diante de uma
encruzilhada. O que seria mais acertado: levar os
prisioneiros ao acampamento de Tomisenkow ou
entregá-los, como presente introdutório, nas mãos dos
rebeldes, aos quais pretendia se aliar? Além disso, ainda
era preciso descobrir quem era aquele terceiro grupo que
havia atacado os rebeldes de surpresa. Talvez fosse
melhor esperar até que não houvesse mais dúvida quem
seria o vitorioso.
A prudência venceu e Rabov tomou sua decisão.
— Vamos levá-los conosco — disse ele a
Rhodan. — Vamos andando, homens! Quero ver o que
se passou lá em cima. Talvez abocanhemos a parte do
leão!
A escalada se revelou demorada e não isenta de
perigos.
Alguns dos homens de Rabov serviram de guia,
pois conheciam a trilha secreta suficientemente bem para
encontrá-la também na escuridão. Rhodan, Marshall e
Okura iam ao meio, seguidos de Rabov. Os demais
soldados da patrulha formavam a retaguarda.
Após sete horas, houve um período de descanso e
Rabov avisou que agora não faltava muito para atingirem
o platô. Rhodan estava admirado com o comportamento
inesperado do sargento. Tinha como certo ser tratado
com aspereza e severidade e, no entanto, Rabov
mostrava-se reservado e, às vezes, até mesmo gentil.
Bem, esse pessoal não sabia quem eram seus prisioneiros
mas, mesmo assim, a consideração que lhes dispensavam
era surpreendente. Rhodan resolveu não se esquecer
desse detalhe.
Notava-se que Marshall queria segredar algo a
Rhodan, sentado ao seu lado. Mas a presença constante
de Rabov impediu que o fizesse e, assim, Marshall
resolveu aguardar uma ocasião mais propícia.
Dez minutos depois, reiniciaram a escalada e
meia hora mais tarde alcançaram o platô. Na distância,
ouviu-se novamente o pipoquear de tiros. Okura
caminhava, agora, ao lado de Rhodan e, na primeira
oportunidade, sussurrou rapidamente:
— Quer que eu fuja? Para mim é fácil!
Disso Rhodan não tinha dúvida. O japonês podia
enxergar no escuro, e, além disso, nenhum dos três
prisioneiros tinha sido manietado. Se Okura
permanecesse nas proximidades, poderia intervir a
qualquer momento, caso a situação viesse a se tornar
crítica.
Rabov havia percebido o cochicho e se aproximou
curioso.
— Preferia que se mantivessem em silêncio —
disse em tom cortês, porém firme.
Rhodan deu um aceno afirmativo para Okura e
depois se dirigiu a Rabov:
— Não se preocupe, eu o acompanharia também
de livre e espontânea vontade. Acha que gostaria de ficar
sozinho na selva? Não, se alguém pode me ajudar, é o
senhor.
Rabov parecia estar mais tranquilo.
E de repente Okura desapareceu. Além de
Rhodan, ninguém mais percebeu a fuga do japonês, pois
cada qual estava cuidando de si, procurando não tropeçar
em pedras soltas ou troncos de árvores tombados. Aquele
tiroteio distante tinha chegado mais perto. Portanto, os
combates prosseguiam.
O terreno em frente já era bem menos acidentado.
Na distância havia claridade, como se a floresta estivesse
em chamas. Provavelmente o acampamento dos rebeldes
havia sido incendiado. A fuzilaria era intensa,
entremeada pelas detonações de pequenas granadas.
Mais além se ouviu o ribombar de um canhão.
Rhodan constatou, satisfeito, que não estavam
empregando armas atômicas. Era um sinal de que os
futuros colonos de Vênus ainda não eram tão civilizados
a ponto de recorrerem às últimas conquistas da
tecnologia humana.
As primeiras balas passaram sibilantes, sobre as
cabeças dos homens. Sem perda de tempo, todos se
jogaram no chão. Rabov estava deitado ao lado de
Rhodan, a quem não perdia de vista um instante sequer.
O incêndio, que devorava a aldeia dos colonos situada
atrás do pequeno bosque, fornecia luz suficiente. As
poucas árvores, espalhadas na vizinhança imediata, não
ofereciam qualquer possibilidade de abrigo.
— Onde é que está seu japonês? — ofegou
Rabov, mexendo nervosamente na pistola. — Não vai
me dizer que ele...
— Não está longe daqui — explicou Rhodan, sem
mentir. — Talvez resolveu examinar a situação mais de
perto. Para ser honesto, eu também não me considero
propriamente um prisioneiro seu. Seja sensato, Rabov; é
esse o seu nome, não é? Pode ser que estejamos
defrontando com um inimigo comum. Devíamos nos unir
antes que ele nos obrigue a isso.
58
— As ordens que recebi não foram no sentido de
entrar em combate com o inimigo e, sim, para fazer um
reconhecimento geral da situação. Preciso saber quem
realizou esse ataque de surpresa ao acampamento dos
rebeldes.
— Rebeldes, por quê? — admirou-se Rhodan.
— Amotinaram-se contra Tomisenkow e
resolveram permanecer em Vênus, de livre e espontânea
vontade, para se tornarem colonos.
— Que mais poderiam fazer? Tomisenkow não
está de acordo com essa decisão?
— O general só quer realizar a tarefa de que foi
incumbido: conquistar a base venusiana de Rhodan.
Rhodan sacudiu a cabeça.
— Isto é tão absurdo quanto inútil. Na Terra,
Rhodan e o Bloco Oriental já selaram a paz. O exército
de Tomisenkow foi dado como desaparecido.
Rabov silenciou. Então os rebeldes estavam certos
quando resolveram iniciar uma vida nova em Vênus.
Mas então quem era esse pessoal que havia assaltado os
rebeldes? Outro grupo do qual nada se sabia?
Rabov decidiu botar as cartas na mesa.
— Não sei quem você é, mas vou lhe dizer uma
coisa: você mentiu para mim. Você não pertence à
OTAN e sim à Terceira Potência de Rhodan. Por que me
ocultou isso?
— O que lhe faz pensar isso?
— Apenas sei que é verdade. Não obstante, você
foi derrubado pelos canhões de Rhodan. E isso eu não
entendo. Tem alguma coisa contra Rhodan?
— Não contra a pessoa dele — disse Rhodan,
numa autocrítica cheia de ironia — apenas contra sua
leviandade.
— Essa eu também não entendi! — Rabov
sacudiu a cabeça e olhou para frente, onde o clarão de
uma explosão rasgou o crepúsculo. Alguns tiros
pipocaram perigosamente perto. Passos apressados
arrastavam-se sobre o pedregal. Contra o horizonte em
chamas destacavam-se as silhuetas de homens que
corriam em todas as direções. A agitação estava
aumentando.
— Como sabe que eu pertenço à Terceira
Potência? — perguntou Rhodan e olhou para Marshall.
Antes que Rabov pudesse responder, o telepata disse:
— Uma nave foi derrubada sobre outro platô.
Rabov foi até lá e encontrou uma mulher e um robô. Os
dois se encontram agora nas mãos do general
Tomisenkow.
Deliberadamente Marshall não citou nomes, mas
Rhodan compreendeu imediatamente que Thora não
tinha chegado à fortaleza venusiana. Também tinha
fracassado no seu intento. A essa altura, já devia ter
revelado a sua identidade e isso tornava a situação mais
crítica, porque o general Tomisenkow jamais entregaria
voluntariamente um trunfo tão alto.
— Isso é verdade? — perguntou Rhodan,
dirigindo-se a Rabov.
O sargento acenou perplexo.
— Como é que ele sabe disso?
Rhodan ignorou a pergunta.
— Quem é essa mulher?
— Não disse o seu nome, porém admitiu
pertencer à Terceira Potência. Mas ela mentiu quando
disse que veio apenas na companhia do robô. O senhor
estava com ela, e depois se separaram. Por quê?
Rhodan vislumbrou sua chance. Se não
descobrissem um elo entre ele e a fuga de Thora, era bem
provável que também não fosse reconhecido. Por outro
lado, Tomisenkow não sabia que Thora tinha fugido e
estava sendo perseguida. E imediatamente reconheceria
nela a arcônida.
Uma situação confusa.
Mas, no próximo instante, Rhodan se veria
obrigado a interromper seus pensamentos.
Subitamente um fulgor relampejou rente ao seu
rosto e o estampido de um tiro quase lhe estourou os
tímpanos. Alguém soltou um grito e tombou
pesadamente. De toda parte, surgiram vultos indistintos e
se lançaram sobre os homens calmamente deitados no
chão.
Rhodan viu que Marshall se levantou de um só
salto e mergulhou entre os arbustos ao lado. Durante
algum tempo, ouviu os passos que se afastaram
apressadamente, mas decidiu não seguir o exemplo de
Marshall, embora soubesse que dificilmente teria outra
oportunidade tão propícia para fugir.
Mas a nova situação exigia que permanecesse
junto a Rabov para o que desse e viesse.
Aos gritos selvagens da luta corpo a corpo
misturaram-se de repente, exclamações de surpresa.
Tornou-se evidente que os atacantes tinham cometido um
engano, tomando os adversários por rebeldes. Em voz
alta alguém intimou Rabov e seus homens a se renderem.
Disse que poderiam ficar de posse das armas, mas que
era preciso negociar, antes de continuar com essa
carnificina inútil.
Essa proposta pareceu bastante sensata a Rabov.
Ordenou a seus homens que cessassem o fogo. Todos
obedeceram menos quatro; mas esses quatro nunca mais
poderiam obedecer a ninguém, pois estavam mortos.
O adversário inesperado também havia sofrido
baixas, mas, nessa confusão generalizada, não era
possível determinar prontamente o número exato. Rabov
estava novamente do lado de Rhodan, a mão sobre a
coronha da pistola automática. Parecia não ter percebido
que Marshall havia fugido. Mas também podia ser que
soubesse do fato, e só não achava o momento propício
para discutir o assunto.
Alguém acendeu um archote primitivo. Um
homem alto, de barba negra, atravessou o círculo de luz e
parou diante do sargento, no qual devia ter reconhecido o
comandante daquele destacamento.
— Quem são vocês? — perguntou, em tom
arrogante. — Pertencem aos rebeldes?
— Podia fazer a mesma pergunta ao senhor! —
retrucou Rabov. A arma na sua direita apontava para o
chão. — O senhor matou quatro dos meus homens!
— Quer dizer que não são rebeldes? É curioso.
Então são homens do general Tomisenkow?
— E se for o caso?
— Não melhora em nada a situação... a sua, bem
entendido. Não queremos ter nada com ninguém; nem
com Tomisenkow, nem com seus adversários!
— Se é assim, por que atacaram os rebeldes?
O outro não deu resposta a esta pergunta. Disse:
— Vamos continuar a conversar na aldeia. Sigam-
me até lá. Se forem sensatos, vai ser fácil encontrar uma
solução. Os sobreviventes da aldeia já se aliaram a nós.
59
— A vocês; afinal de contas quem são vocês?
O desconhecido estufou o peito.
— Eu sou Wallerinski, o presidente dos pacifistas.
Rabov acenou lentamente e lançou um rápido
olhar para Rhodan. Depois seus olhos fitaram os quatro
soldados mortos, vítimas daquele ataque de surpresa.
— Ah! Agora estou entendendo — disse ele, e
deu um suspiro. — Quer dizer que vocês são pacifistas?
Parece inacreditável, mas até em Vênus já estão
realizando um baile de máscaras de dogmas humanos.
Todo mundo trocou de papel e se disfarça com mantos
alheios. Pacifistas transformaram-se em assassinos e
incendeiam uma aldeia. Rebeldes tornam-se colonos
pacíficos e são escorraçados da sua gleba. Tropas
regulares levam uma vida de bandidos. Realmente é uma
situação muito clara e inequívoca!
— O que quer dizer com isso? — vociferou
Wallerinski furioso.
Rabov encolheu os ombros.
— Entendeu muito bem o que eu quis dizer! —
retorquiu e acrescentou: — Vá lá; vamos acompanhá-lo.
Mas vou avisando logo: não vamos permitir que nos trate
como prisioneiros!
No íntimo, Rhodan teve de admitir que estava
simpatizando com o sargento Rabov.
* * *
Favorecido pela escuridão, Okura conseguiu se
manter perto da patrulha desde o momento de sua fuga.
Testemunhou o assalto e o surpreendente armistício e,
quando viu Marshall fugir, fez com que o australiano o
encontrasse. Juntos, começaram a seguir os dois grupos
que marchavam para a aldeia e se vigiavam mutuamente,
abertamente desconfiados.
— Devíamos tirar Rhodan do meio daquele
pessoal — murmurou Okura, que não conseguiu se livrar
de certo sentimento de culpa. Mas Marshall sacudiu a
cabeça.
— Não é o que ele quer. Eu agora consigo captar
bem os seus pensamentos, e há mensagens para nós no
meio deles. Ele quer ficar junto desse Rabov, porque só
esse sabe onde Thora se encontra. No momento, ele não
corre perigo. Se a situação se tornar crítica, quer que o
libertemos junto com Rabov. Mas, se possível, sem
derramamento de sangue.
— E como é que vamos saber se a situação ficou
crítica ou não? — objetou o japonês, ainda céptico. —
Não gostei nem um pouco desse cara que apareceu por
último.
— Wallerinski? É um fanático inofensivo.
— Será que existem fanáticos inofensivos? —
observou Okura, que tinha suas dúvidas. — Mesmo o
fanático mais burro pode ser perigoso. Por falar nisso,
gostaria de saber que causa esse Wallerinski defende tão
fanaticamente!
— O pacifismo! — respondeu Marshall
sombriamente. — Consegue ver bem agora?
— Lá na frente está a aldeia. Metade foi destruída
pelo incêndio e os escombros ainda estão fumegando. Os
habitantes fugiram. Se a sua afirmação foi correta,
estamos diante da obra de um pacifista.
Havia amargura nas palavras do japonês. Sabia
quantos abusos já tinham sido cometidos em nome do
pretenso pacifismo. E sabia isso de experiência própria.
Hoje, qualquer um encobria as intenções agressivas sob o
manto do pacifismo e afirmava que suas ações serviam
unicamente à causa da paz. Graças a Deus, as coisas
haviam mudado desde que existia a Terceira Potência.
Mas, em Vênus, a história da Humanidade ainda se
encontrava no limiar.
Okura e Marshall pararam na orla da clareira. Se
avançassem mais, corriam o risco de serem descobertos.
Mas, mesmo que o japonês perdesse agora Rhodan de
vista, Marshall continuaria em comunicação com ele, se
bem que essa comunicação era apenas unidirecional.
Infelizmente o dom telepático de Rhodan era muito
limitado, porém ele sabia que Marshall conseguia captar
seus pensamentos. E foi desta maneira que o australiano
ficou sabendo de tudo que se passava naquela aldeia,
apesar de não poder utilizar o rádio de pulso.
A ampla sala de reuniões estava repleta de
homens e também algumas mulheres, que pertenciam ao
grupo rebelde. Wallerinski galgou uma mesa, ergueu as
duas mãos e pediu silêncio. Lançou um olhar ligeiro para
um punhado de prisioneiros no fundo da sala, certificou-
se que as saídas estavam devidamente guarnecidas por
sentinelas, e depois começou a falar.
— Homens e mulheres! — gritou com uma voz
autoritária e nada agradável. — A luta entre nós
terminou. Tomamos a resolução acertada de nos unir. De
agora em diante, vamos trilhar juntos o caminho do
futuro. Queremos que a paz reine em Vênus, mas para
que isso se torne realidade é preciso eliminar uma última
ameaça, a maior de todas. E essa ameaça é o general
Tomisenkow. Insiste em realizar o intento suicida de
atacar a base de Rhodan. Foi motivo bastante para nos
separarmos dele. Vocês fizeram o mesmo, se bem que
por uma razão diferente: querem se tornar colonos
pacíficos e melhorar suas condições de vida. Mas antes
que possamos nos dedicar ao nosso trabalho,
Tomisenkow tem que ser eliminado, e é preciso inculcar
nos seus homens a convicção de que nossos objetivos são
melhores. E para isso, precisamos de um líder.
Lá da porta alguém gritou:
— Wallerinski é o nosso líder! Vai nos trazer a
liberdade!
Rhodan acenou lentamente.
— É assim que começam todas as guerras! —
sussurrou tão baixinho que só Rabov, que estava ao seu
lado, pôde ouvi-lo.
O sargento não respondeu. Pressentia que,
fatalmente teria que tomar mais uma decisão portentosa.
Só não podia imaginar o que essa decisão envolvia.
5
Até nova ordem, o Exército de Mutantes de Perry
Rhodan ficou sob o comando de Reginald Bell, ministro
da segurança da Terceira Potência. Um dos efeitos da
radiação liberada pela bomba atômica de Hiroshima foi
certa alteração no sangue das vítimas, e, pouco menos de
vinte anos após aquele terrível evento e que apareceram
os primeiros mutantes. Entre eles havia telepatas, aos
qual nenhum pensamento dos seus semelhantes ficava
oculto. Havia localizadores, que captavam ondas
encefálicas e podiam reconhecer o estado de ânimo de
60
terceiros. Havia ainda os telecinetas que, graças à energia
da mente, conseguiam locomover matéria através de
grandes distâncias. Já os teleportadores empregavam a
força do pensamento para se desmaterializarem o que
lhes permitia transportar a si mesmos através de longos
percursos.
O único membro extraterreno do exército secreto
dos mutantes era Gucky, o rato-castor do planeta
Vagabundo. Durante uma escala, esse ser — que não
chegava a ter um metro de altura — havia se escondido
sorrateiramente a bordo da nave espacial e, a partir desse
momento, pertencia ao reduzido círculo dos amigos mais
íntimos de Rhodan.
Isso podia parecer estranho, mas, apesar do seu
aspecto, Gucky não era um animal. Era um ser
inteligente, capaz de pensar e raciocinar. Sob a
orientação de John Marshall, havia aprendido inglês e até
intercosmo: e agora estava apto a se comunicar
perfeitamente nesses idiomas. Gucky costumava se
sentar diante dos visitantes de Rhodan, apoiando-se na
cauda de castor. E todos achavam aquela criatura “muito
engraçadinha”. Mas, invariavelmente, levavam um susto
tremendo quando de repente, dizia:
— Bem, e o senhor como tem passado,
cavalheiro?
E ainda por cima era o melhor telecineta de todo o
corpo de mutantes! Foi um custo fazê-lo perder o hábito
de brincar voluntariamente com essa faculdade; porém
agora já não havia naves espaciais que decolavam sem
razão ou canhões de radiação que disparavam sozinhos.
Mas não era só isso. Gucky possuía ainda vários outros
talentos, entre os quais se destacava uma extraordinária
capacidade telepática, ainda mal explorada. Tratava-se,
enfim, de um verdadeiro gênio universal.
Entre ele e Bell reinava uma espécie de
antagonismo amistoso, fato que se revelava toda vez que
se encontravam. Como hoje, quando Bell convocou o
Exército de Mutantes para explicar os detalhes da nova
missão.
As solenidades foram encerradas com o discurso
de Bell e o mundo voltou ao dia-a-dia. Bell se lançou ao
trabalho. Estava preocupado. O destróier de Rhodan
tinha sido avistado pela estação lunar para, em seguida,
desaparecer na direção de Vênus.
E, a partir daquele momento, não havia mais
notícias dele ou de Thora. As hiperestações radiofônicas
mantinham os receptores ligados noite e dia, porém,
nenhum comunicado veio de Vênus. Isso foi o suficiente
para que Bell se lembrasse da ordem de Rhodan.
Convocou os mutantes, expôs a situação e lhes ordenou
que se apresentassem a bordo do girino número cinco,
dentro de meia hora.
Aquela nave esférica, designada no código das
comunicações pela palavra girino, tinha um diâmetro de
sessenta metros, e era capaz de voar com velocidade
superior à da luz. Do ponto de vista terrestre, podia ser
considerada como a nave espacial perfeita; entretanto,
arcônidas a utilizavam apenas como nave auxiliar dos
seus couraçados espaciais da classe império.
Bell finalizou sua exposição sucinta, dizendo:
— ...portanto, algo pode ter acontecido a Rhodan.
Exijo o máximo empenho de todos e que ajam com
rapidez e decisão. Vamos levar cinqüenta soldados-
robôs, além de dez caças espaciais com os respectivos
pilotos. Alguma pergunta?
Bell olhou ao redor.
— Muito bem, então dentro de trinta minutos;
podem se retirar!
Ia sair rapidamente da sala, mas quase esbarrou
em Gucky, que estava ocupando o vão da porta.
— Só uma perguntinha — disse o rato-castor,
exibindo seu único dente roedor, o que significava que
estava rindo.
Mas isto não implicava que também estivesse de
bom humor. Bell sabia disso, ao menos devia ter sabido.
— Fale logo, estou com pressa!
— Eu sou membro do Exército de Mutantes e,
portanto, vou participar dessa missão. Ou não?
— Você? Quer ir a Vênus para cometer uma das
suas travessuras? E causar confusão geral? Nem pense
nisso!
Bell ia forçar a passagem, porém Gucky bloqueou
o caminho.
— Vou contar isso a Rhodan! — ameaçou,
mudando de tática.
— Por mim, pode contar a ele o que você quiser
— grunhiu Bell e tentou em vão levantar o pé. Era como
se estivesse pregado ao chão. — Pare com essa
brincadeira, seu anão! Prender o meu pé! Isto é
insubordinação!
— Posso ir com vocês ou não?
Bell sentiu que o sangue lhe afluía à cabeça.
Alguns dos mutantes tinham se aproximado e estavam
começando a rir.
— Não pode, não! — decidiu Bell, se bem que
agora ainda poderia ter evitado uma derrota ignóbil. —
Não mesmo! Essa missão requer homens, não um
Mickey Mouse!
Não deveria ter dito isso. Gucky sentia-se
mortalmente ofendido toda vez que alguém o apelidava
de Mickey Mouse.
Bell sentiu que a pressão no seu pé estava
cedendo, mas isto pouco lhe adiantou.
De repente, se tornou leve como uma pluma.
Apoiado na cauda de castor, Gucky estava sentado diante
dele e o observava fascinado. Exibia o dente solitário
num riso manhoso. O pelo castanho da nuca se eriçou,
formando uma gola lanosa.
— É sua palavra definitiva? — estridulou,
tremendo de excitação.
A voz de Gucky já era esganiçada por natureza,
mas adquiria uma estridência fora do comum quando o
seu dono estava emocionado.
— É definitiva, sim! — berrou Bell, a plenos
pulmões, apesar de saber que não adiantaria nada e quais
seriam as consequências. Queixar-se a Rhodan também
seria totalmente inútil, pois esse só iria rir dele a valer.
Fato é que Gucky tinha umas tantas regalias; e sabia tirar
o máximo proveito delas.
Uma ligeira rigidez apareceu no olhar meigo de
Gucky, sinal que estava se concentrando. E Bell ficou
definitivamente liberto da gravidade... e começou a subir
como um balão. Mãos invisíveis abriram a janela, e Bell
flutuou para fora.
E lá ficou pairando, trinta metros acima do piso
de concreto, sustentado apenas pelas formas telecinéticas
de Gucky.
Exibindo um riso triunfante, Gucky bamboleou
61
até a janela, galgou o parapeito com um salto elegante, e
pôs-se a observar o amigo, que devolveu o olhar com
uma expressão de raiva impotente.
— Como é? — piou Gucky, alegremente. — não
vai mudar a sua decisão? Afinal, você tem que admitir
que eu sou um aliado bastante capaz.
— É, mas duvido que consiga fazer flutuar um
sáurio — resmungou Bell e olhou para baixo, apavorado.
Seus pés estavam apoiados em nada. — Além do mais,
isso não passa de pura extorsão!
— Que palavra mais feia! — indignou-se Gucky e
fez com que Bell caísse dois metros. — Um homem
educado não usa um termo desses!
— Não faz ideia dos termos que tenho em mente
em relação a você! Está bem; vou pensar no caso. Mas
agora me faça entrar!
— Quero saber se vou participar dessa missão, ou
não! — insistiu Gucky.
Parecia não tomar conhecimento da presença dos
outros mutantes, que acompanhavam o espetáculo com
vivo interesse. Nenhum deles ousou interferir, porque
Bell poderia se estatelar no fundo. Mas Gucky não via
perigo algum; confiava nas suas forças.
Bell deu um aceno convulsivo e tentou encostar
as mãos na parede do prédio.
— Está bem; você vem conosco, mas sob uma
condição.
— Qual é? — quis saber Gucky, desconfiado, e
fez desaparecer o dente.
— Você tem que me prometer que vai se
comportar direitinho, e fazer tudo que eu lhe mandar. E
nada de travessuras em Vênus! Entendido?
O rato-castor fez Bell pousar suavemente no
peitoril e acenou vivamente com a cabeça.
— De acordo. Mas se você não cumprir sua
palavra, deixando-me aqui, vou fazê-lo voar para a Lua
sem traje espacial!
Sem uma palavra, Bell pulou do peitoril e se
dirigiu à porta.
A telepata Betty Toufry corou subitamente e fixou
um olhar estarrecido nas costas de Bell.
O ministro da segurança da Terceira Potência
devia ter pensado uma imprecação terrível e, ao mesmo
tempo, bastante obscena.
* * *
O general Tomisenkow observou sua visita
inesperada com indisfarçada satisfação. Realmente, a
sorte o havia bafejado além de qualquer expectativa.
Thora havia caído em suas mãos! Logo Thora, a
colaboradora íntima de Rhodan! Logo ela, a arcônida, a
quem Rhodan devia todo o seu poder!
Tomisenkow pôs-se a matutar no que tinha
acabado de ouvir. Era preciso aprender a lidar Com
Thora, a não contrariá-la. Talvez assim pudesse ser
levada a revelar, um dia, alguns dos segredos dos
arcônidas. Seria tão absurdo imaginar que isso pudesse
acontecer? Tomisenkow achava que não. Afinal, a nave
de Thora não tinha sido derrubada pelas armas do
próprio Rhodan?
— É lastimável, realmente lastimável! — disse o
general, cheio de simpatia. — E estão achando que tudo
não passou de um engano lamentável?
— Absolutamente não foi um engano — disse
R.17, com voz rangente. Parecia que tinha chegado a
época da sua revisão anual. Era preciso lubrificar, com
urgência, alguns dos mancais da sua laringe artificial. —
A instalação eletrônica de vigilância não nos reconheceu.
— Não acha possível que Rhodan mandou
derrubá-los de propósito para que não pudessem penetrar
na base de Vênus? — perguntou Tomisenkow, ardiloso.
— Isto é absurdo! — objetou Thora. — Rhodan
ainda não podia ter chegado aqui!
— Ah! Quer dizer, que ele ainda vem?
Thora mordeu os lábios. Volta e meia cometia o
erro de subestimar os homens. Por pouco não se traiu.
Agora era tarde demais para tirar Rhodan da jogada.
— É possível — disse ela, procurando uma
evasiva. — Tudo é possível. Talvez seja até possível ao
senhor explicar por que pretende me deter aqui. Sabe tão
bem quanto eu que o meu robô pode destruir todo seu
acampamento. Vai me fornecer agora as provisões
pedidas e os soldados? Ou quer que eu tente chegar lá
sozinha?
— Vai pensar duas vezes antes de empreender
algo contra mim, pois sozinha está praticamente
indefesa! Só com esse robô, nunca vai chegar à base a
mais de quinhentos quilômetros daqui. Portanto, a
senhora depende de mim. Bem, quero me aproveitar da
sua situação precária. Vou ajudá-la. Vou levá-la à base,
caso as barreiras não nos detenham.
— Essas reagem ao padrão dos cérebros
arcônidas, portanto, não constituem perigo.
— Ótimo! E, quando estiver diante da base, o que
vai fazer, e o que vai acontecer comigo?
— Pode regressar, são e salvo.
O general Tomisenkow deu um sorriso manhoso.
— Quanta generosidade de sua parte, nobre
arcônida! Quando Rhodan a salvou na Lua a senhora o
recompensou, dando-lhe o poder sobre a Terra. Agora eu
a salvo aqui, e está querendo me despachar com uma
mera esmola. Aliás, esmola coisa nenhuma! O que
pretende me dar já possuo há muito tempo. Segurança?
Essa eu tenho! Não, minha cara, se quiser chegar à
fortaleza vai ter que pagar um preço condizente... ou
pode tentar ir sozinha!
Tomisenkow sabia que Thora jamais chegaria à
base sem ajuda, um fato que ele pretendia explorar. Além
disso, era seu propósito, separar Thora do robô na
primeira oportunidade, para aprisioná-la. Não existia
refém melhor do que Thora.
Principalmente se era verdade que Rhodan estava
se dirigindo para cá.
Nem por um instante Thora acreditou na
sinceridade desse homem. Agora mesmo poderia ter
dado uma ordem de aniquilamento total a R.17. Mas, de
que lhe valeria isso? Além disso, ela não sabia com que
armas os homens de Tomisenkow estavam equipados.
Talvez até conseguissem eliminar o robô, e nesse caso
ela estaria perdida de fato. Pesou bem as palavras, antes
de pronunciá-las:
— Não tenho saída. Vou precisar do seu auxílio.
Reconheço, também, que vou ter que pagar por ele.
Vamos aguardar o romper do dia. Aí podemos discutir os
detalhes. Até lá, peço que me dê um alojamento para
mim e o robô.
— Esse também precisa dormir? — perguntou
Tomisenkow, com ironia.
62
Thora sacudiu a cabeça e disse reservada:
— Ele não. Mas eu preciso.
* * *
Rhodan, Rabov e seus homens não podiam ser
considerados como prisioneiros, na acepção normal do
termo. A começar pelo fato de que puderam ficar de
posse das armas. Foram alojados numa grande choupana,
diante da qual Wallerinski postou imediatamente
algumas sentinelas; não para vigiá-los, como afirmou, e
sim para protegê-los.
Rhodan pediu a Rabov que lhe devolvesse a arma
bem como a dos seus dois companheiros. O sargento
anuiu prontamente ao pedido. Talvez pressentia que,
num futuro próximo, necessitaria do auxílio desse
estranho misterioso.
— O que vai acontecer agora? — perguntou
Rhodan. Achava que Rabov devia conhecer melhor a
mentalidade dos seus patrícios. — Acredita que o grupo
de Wallerinski vai atacar as tropas do general?
— É mais do que certo!
— E não acha que, na posição que ocupa, tem o
dever de alertar Tomisenkow?
Rabov vacilou. Aquele grupo de colonos rebeldes,
aos quais ele quis se unir, praticamente não existia mais.
Detestava Wallerinski por causa das suas frases
empoladas. Nesse caso, seria melhor ficar ao lado do
general Tomisenkow. Rabov acenou.
— Sei que é meu dever avisá-lo; mas como vou
sair daqui sem despertar suspeita?
— Não se preocupe com isso; eu só queria saber
de que lado o senhor está. Meus dois amigos vêm nos
buscar. Um deles consegue ver mesmo de noite, e vai
poder nos conduzir em segurança através da escuridão. E
eu recuperei as minhas armas, com as quais eu poderia
liquidar essa bagunça toda em questão de segundos...
mas para que...
Rhodan se concentrou esperançoso de que
Marshall pudesse captar seus pensamentos agora. Se o
conseguisse, então ele e Okura já deviam estar a caminho
da aldeia para libertá-lo. Talvez não fosse também má
ideia ir ao encontro deles.
Virou-se para Rabov:
— Que sabe daquela mulher e do robô, cuja nave
foi destruída sobre o planeta? Ela está em segurança?
— Está sim — Rabov arreganhou os dentes —
mas é uma segurança relativa. Faz muito tempo que os
nossos homens não veem uma mulher!
— Então não vão ficar muito contentes com a sua
prisioneira! — vaticinou Rhodan, irado. Sabia que, se
fosse preciso, o robô poderia transformar Tomisenkow e
sua força armada em cinza radiativa; entretanto,
violência não resolve problemas. — Diga a seus homens
que vamos apanhá-los mais tarde. Não temos mais tempo
a perder. Meus amigos já estão nos esperando. Lá na orla
da floresta, em direção leste se não me engano.
Rabov deu suas instruções. Depois o sargento e
Rhodan saíram da choupana.
Quase no fim da rua ardia uma fogueira, rodeada
por alguns homens, cujas silhuetas as chamas revelavam.
Provavelmente estavam cansados e preferiam mil vezes
estar dormindo.
Perto da choupana não havia ninguém.
Rhodan agarrou a mão de Rabov e confiou mais
na sua intuição do que nos seus olhos. Enquanto
caminhava, com passos seguros em direção leste,
pensava constantemente na sua posição, para que
Marshall tivesse mais facilidade em encontrá-lo.
Se Marshall não estivesse dormindo agora.
Aquela aldeia semicalcinada ficou para trás. Lá na
frente, em direção ao bosque, estava ficando mais escuro.
Uma luz relampejou por alguns segundos. Depois
Rhodan ouviu que alguém atravessava os arbustos com
passos seguros. Ninguém caminhava assim de noite, a
não ser que portasse uma lâmpada e pudesse ver.
— Okura?
— Sim!
Era como se o sopro de uma brisa alcançasse o
ouvido de Rhodan através do silêncio da escuridão.
Claro, Okura não sabia quem estava com ele. Um
descuido de Marshall, não contar esse detalhe ao
japonês.
— Sou eu — sussurrou Rhodan. — Rabov está
comigo. Vai nos levar ao general Tomisenkow... e a
Thora.
Rhodan sentiu que o sargento estremeceu.
— Vou levá-los a quem? — e, como não recebeu
resposta, acrescentou: — Thora! Não é a arcônida?
E após mais uma pequena pausa perguntou:
— Quem é o senhor?
— Está tudo em ordem? — perguntou Rhodan e
depois se dirigiu ao sargento: — Não se preocupe
inutilmente, meu caro Rabov. Apostou no cavalo
vencedor do páreo... mas, ainda pode escolher outro, se
quiser. Leve-nos a Tomisenkow e deixe todo o resto
comigo!
E assim aconteceu que três grupos diferentes
tencionavam fazer uma visita ao general desaparecido;
claro que cada qual por razões próprias... igualmente
diferentes.
Bell vinha para procurar Rhodan, cujo paradeiro
ele desconhecia.
Wallerinski armou-se de violência para implantar
a paz onde não havia guerra.
E Rhodan queria libertar Thora que, por seu lado,
não fazia a menor questão de ser libertada por Rhodan.
Ao menos não agora.
6
A distância era relativamente pequena; por isso
Bell dispensou o salto através do hiperespaço, não
acelerando o girino número cinco até a velocidade da
luz. A Terra se tornou rapidamente uma estrela brilhante,
o Sol passou pela esquerda, e depois Vênus, radioso,
dominou o setor do céu diante da proa.
Um estalo acompanhou o desligamento do piloto
automático. Bell voltou a assumir o comando da grande
nave esférica. Conhecia perfeitamente a localização da
base em Vênus e, pelos seus cálculos, havia constatado
que ela ainda se encontrava mergulhada na noite
venusiana. O sol nasceria somente daqui a quarenta
horas.
Aos poucos, Bell começou a ficar intranquilo.
Se tudo tivesse decorrido normalmente, há muito
tempo Rhodan teria enviado alguma notícia. Será que
63
não tinha encontrado Thora na base? E, se não, o que
teria acontecido a Thora? Talvez ela nem tivesse se
dirigido a Vênus, ousando realizar um voo interestelar
com aquele destróier.
Bell virou a alavanca do intercomunicador e
estabeleceu a comunicação visual com a sala radiofônica.
Lá, Tanaka Seiko estava de serviço. Seiko era japonês,
técnico de altas frequências, e o rastreador do Exército
de Mutantes. Sem o auxílio de qualquer aparelho,
conseguia captar as ondas eletromagnéticas e, o que era
mais surpreendente, conseguia ouvir as emissões
irradiadas por homens, em todas as frequências de ondas.
Não havia homem mais indicado para a estação-
receptora da nave.
Seu rosto apareceu na tela de visão.
— Chefe?
Bell gostava de ser chamado assim. Era um sinal
de respeito e admiração. Também não era ele o substituto
direto de Rhodan? Era algo que encheria qualquer um de
justo orgulho.
— Nada, ainda?
— Não captei um pio de Vênus até agora! —
Seiko sacudiu a cabeça. — E como se lá não houvesse
homem algum.
— O que provavelmente não está certo, porque,
se eu me recordo direito, também às tropas desaparecidas
do Bloco Oriental possuem aparelhos radiofônicos. Mas,
o que me intriga demais, é que nem Rhodan, nem Thora
deram sinal de vida até agora; isto é um bocado
inquietante!
— Os minitransmissores são fracos demais para
essa distância.
— Mas não os aparelhos do destróier!
— Talvez apresentaram algum defeito.
— O quê?! Os aparelhos radiofônicos dos
destróieres?
— Quem sabe...
Bell refletia febrilmente, mas não encontrou
qualquer explicação. Seria possível?... Não, era melhor
nem pensar nisso! Aliás, não havia razão para isso. Pois,
quem poderia ter impedido Rhodan de pousar em Vênus?
A instalação de vigilância positrônica da hiperestação o
reconheceria, evidentemente.
— Está bem, Seiko, mantenha o receptor ligado.
E comunique imediatamente qualquer novidade. Vou
agora iniciar as manobras de pouso.
Vênus, uma bola brilhante, já tinha se aproximado
bastante. O lado direito ainda estava na escuridão.
Mediante uma pequena evolução, Bell colocou a nave
exatamente sobre a zona da meia luz. Depois, começou a
baixar.
Quando o casco da nave entrou em contato com
as camadas superiores da densa atmosfera, o girino
número cinco foi sacudido por um violento abalo que
arrancou Bell da poltrona. Enquanto se levantava, meio
aturdido, perscrutando rapidamente os controles, a porta
da central se abriu e vários dos mutantes entraram
correndo.
Ralf Marten segurou-se na parede.
— O que está se passando com você, Bell? Está
querendo nos matar a todos?
Bell lançou um olhar de desprezo para aquele
teutojaponês, esguio e de cabelos escuros.
— Está com medo? Mas, honestamente, eu
mesmo não sei o que aconteceu. Espere um momento,
Seiko está me chamando.
O rosto do telegrafista estava lívido quando
apareceu na tela de imagem. Mexia nos seus aparelhos.
— Mensagens radiofônicas — disse ele, sem
interromper os manejos. — Da hiperestação. Deve ser o
cérebro positrônico. Recusa a permissão para o pouso.
— O quê? — berrou Bell. Seus cabelos curtos e
ruivos se ouriçaram ameaçadoramente e transformaram-
se numa verdadeira escova de aço. Uma ira repentina
brilhava nos seus olhos. — Que ideia maluca é essa?
Pergunte a esse robô idiota qual a razão da sua recusa!
Bem que Seiko tentou, mas seus esforços foram
em vão. Com uma obstinação irritante, a instalação do
cérebro positrônico enviava constantemente a mesma
mensagem, sem tomar conhecimento das tentativas
desesperadas do japonês.
— A chave secreta X foi ativada. Qualquer
aproximação na atmosfera de Vênus será impedida com
o campo repulsor hipergravitacional. Repito: a chave
secreta X foi ativada...
Repetia essa mensagem incessantemente, como se
estivesse gravada numa fita sem fim.
Finalmente Bell desistiu, e ordenou a Seiko que
vasculhasse toda gama de frequências, à procura de
algum outro sinal radiofônico. Desligou o
intercomunicador e se dirigiu a Marten:
— Nessas condições, Rhodan também não
conseguiu pousar. O cérebro positrônico deve ter
enlouquecido.
Bell não podia saber que esse procedimento
estranho nada mais era do que uma consequência lógica
dos acontecimentos precedentes. O próprio Rhodan havia
programado a chave secreta X no cérebro positrônico
durante a sua última visita à base venusiana.
O cérebro tinha recebido a ordem de erigir o
campo repulsor indistintamente diante de qualquer um,
conhecesse ele o código ou não, se antes tivesse
registrado alguma ocorrência que pudesse ser
considerada suspeita.
E esse estado de programação havia sido atingido
naquele instante em que o cérebro derrubou os dois
destróieres. Eram naves da frota de Rhodan, sem dúvida,
mas não conheciam o código secreto.
O girino número cinco também era uma nave de
Rhodan, e essa conhecia o sinal. Mas agora já era tarde
demais. O campo repulsor havia sido erigido e só podia
ser novamente eliminado por uma chave especial dentro
da fortaleza.
Somente um arcônida, ou o próprio Rhodan,
podiam penetrar na base, graças ao padrão característico
das suas ondas encefálicas.
E com isto tinha se chegado a um ponto morto,
que só poderia ser superado por Thora ou Rhodan, mas
nunca por Bell.
No momento talvez fosse até bom que Bell não
soubesse disso. Sua raiva daquele cérebro positrônico
teria atingido proporções incomensuráveis.
A nave esférica girava em torno de Vênus a uma
altura constante. Não podia baixar mais, porque aquele
anteparo energético a impedia de fazê-lo. Ver, também
não se via nada, já que os aparelhos eram incapazes de
perfurar a densa camada de nuvens. Apenas Wuriu
Sengu, com sua visão raio-X, conseguia enxergar a
64
superfície do planeta. A sua faculdade de poder
trespassar a matéria sólida com o olhar proporcionou-lhe
a oportunidade de ver selvas, pântanos, mares e
cordilheiras, mas isso em nada contribuía para sair do
impasse.
— Agora eu tenho certeza — murmurou Bell,
desesperado — que algo aconteceu a Rhodan. Se a culpa
for daquele cérebro positrônico, vou transformá-lo em
sucata com estas minhas mãos!
Ralf Marten sacudiu a cabeça.
— É um propósito meio difícil de realizar, porque
ninguém; repito ninguém pode pousar em Vênus no
momento. O planeta encontra-se totalmente isolado. Não
sei o que aconteceu, mas sei que as instalações
automáticas da base são de uma confiabilidade a toda
prova. Não há poder no mundo que possa impedi-las de
cumprir rigorosamente com o seu dever.
— Dever! — gemeu Bell, nervoso. — O que esse
monturo idiota de lata entende de deveres? Era sua
maldita obrigação ajudar a nós e a Rhodan. Em vez
disso... bolas!
Chamou Seiko na central radiofônica.
— Precisa emitir constantemente e procurar
estabelecer uma ligação com Rhodan. Deve estar lá
embaixo, entre selvas, pântanos e sáurios.
Com um suspiro, que denotava sua profunda
aflição, recostou-se na poltrona do piloto e se entregou
aos seus pensamentos sombrios.
E por baixo da nave rodava, com infinita lentidão,
o planeta encoberto, que se recusou a revelar os seus
segredos.
* * *
Durante a descida do platô notaram os primeiros
indícios da aurora.
Longe, no leste, Rhodan vislumbrou um tênue
brilho na escuridão impenetrável. Os primeiros raios
lançaram-se do horizonte para as camadas superiores das
nuvens, tingindo-as num tom róseo. Mas a luminosidade
se alastrava muito lentamente e, no momento, era
impossível definir a posição do sol atrás daquela faixa de
claridade incipiente.
Isto ainda levaria horas.
Durante a marcha através da escuridão da noite
venusiana, Okura os havia alertado constantemente
contra todos os obstáculos que encontrava e, assim,
conseguiram chegar até aqui em segurança. Não havia
sinal de possíveis perseguidores, e era mais do que
provável que só daqui a algumas horas a sua fuga seria
descoberta.
Isso servia aos propósitos de Rhodan. Não tinha a
menor intenção de se intrometer na briga daquelas tropas
de invasão desbaratadas, as quais, no íntimo, ele já os
considerava como os primeiros colonos venusianos. Mas
não deixaria de alertar Tomisenkow; se conseguisse
chegar até ele. E isto, pensou Rhodan, ainda era meio
incerto.
Entre os dois platôs, estendia-se a baixada com
seus pântanos traiçoeiros. Rabov disse que a travessia era
menos perigosa à noite, porque assim que o dia raiasse os
sáurios despertavam e saíam do seu esconderijo à
procura de alimento. Disse, ainda, que na grande maioria
eram herbívoros, o que, porém, não os impedia de
atacarem outros seres vivos, se neles vissem
concorrentes ou intrusos indesejáveis.
Rhodan e seus companheiros confiavam
plenamente nas suas infalíveis armas energéticas e
tranquilizaram Rabov, que portava apenas a pistola de
serviço, com a qual, realmente, não poderia enfrentar
aqueles gigantes pré-históricos. Víveres não constituíam
preocupação, porque ainda possuíam algumas provisões
e alcançariam o acampamento de Tomisenkow dentro de
vinte horas, na pior das hipóteses. E, se a água
escasseasse, poderiam se reabastecer no rio que
atravessava a baixada.
Quando chegaram ao local, onde Rabov os havia
capturado de surpresa, já havia claridade suficiente para
poder reconhecer a vizinhança imediata. E não ficaram
muito satisfeitos com o que viram.
A queda d’água precipitava-se num rio, que corria
velozmente e desembocava num imenso lago. Ao longo
das margens desse lago, explicou Rabov, serpenteava o
caminho através da baixada. A margem era constituída
por mata cerrada, da qual se levantava um denso
nevoeiro que se mesclava com as nuvens baixas. A leste,
uma mancha difusa pairava na neblina mormacenta — o
sol.
Havia movimento no lago. Aqui e acolá, via-se
um remoinho e depois apareciam os enormes corpos de
sáurios dos mais diversos tipos que, de uma maneira
geral, apresentavam grande semelhança com aqueles
que, em priscas eras, tinham povoado a Terra. Alguns
permaneciam na água rasa e começavam a pastar
embaixo da superfície. Estes eram os menos perigosos.
Outros, porém, nadavam ou caminhavam
pesadamente até a margem, galgavam a terra firme e,
bamboleantes, desapareciam na floresta, onde se
dedicavam a devorar pequenas árvores sem a menor
dificuldade.
Rhodan havia assistido àquela movimentação com
olhos semicerrados. Soltou um suspiro e disse a
Marshall:
— Até que enfim vai poder verificar se sáurios
pensam, e o que eles pensam. Acredita que os cérebros
deles são capazes de emitir correntes de pensamentos?
— E por que não? — respondeu o telepata,
pensativo. — Tenho para mim que os pensamentos deles
não devem lá ser coisa muito sensata ou lógica, mas seria
muita presunção negar-lhes qualquer capacidade de
pensar. Todo ser vivo pensa, até a formiga. Só o homem
tem a pretensão de achar que é o único ser racional. Isto
o distingue do animal, mas de forma alguma no sentido
positivo. Bem, nós astronautas somos diferentes daqueles
que nunca tiraram o pé da Terra. Se tínhamos algum
preconceito, o perdemos pelo contato com o universo.
Sabemos que a raça dominante de um planeta pode ter o
aspecto de um réptil, e isto fez nascer em nós o respeito
pelo animal terrestre. Involuntariamente, não vemos num
cachorro apenas o animal mas, sim, um verdadeiro ser
vivo, que só se distingue de nós, pelo fato de pensar de
maneira diferente.
— Quer dizer que vê um parentesco entre a nossa
capacidade de aceitar raças estranhas e extraterrenas e o
amor que dedicamos ao animal da Terra? — espantou-se
Rhodan, apesar de estar começando a imaginar qual seria
a conexão.
— Perfeitamente — disse Marshall, em tom
convicto. — Pode ser atrevimento de minha parte, mas
vou mais longe ainda. Em minha opinião, apenas quem
65
ama verdadeiramente os animais está em condições de
avançar universo adentro e estabelecer contato com os
habitantes de planetas estranhos. Somente um homem
desses possui a compreensão necessária para não recuar
horrorizado diante de formas de vida as mais
impossíveis. Ao contrário, vai aceitá-las como são e
reconhecer que têm os mesmos direitos; fato que, algum
dia, poderá ser decisivo no estabelecimento da paz em
todo o universo.
Rhodan não deu resposta. Olhou para a selva
mormacenta lá embaixo; sabia que outro não tinha sido o
aspecto das planícies na Terra, milhões de anos atrás.
Naquela era, o animal havia sido o soberano do planeta,
porque o homem só apareceu muito mais tarde. Devia a
sua existência ao animal, assim como o animal à planta.
Sucedendo-se, um substituía o outro, e todos eram
interdependentes. Um não existiria se não tivesse havido
o outro. E nem um podia passar sem o outro.
E apesar disso, todos viviam da luta entre si...
Rhodan arrancou-se dos pensamentos.
— Não vai haver problemas; não há sáurio que
resista aos nossos irradiadores de impulsos. Só espero
não ter que matar muitos. Eles pertencem a esse mundo,
e esse mundo é deles. Vamos indo.
Rabov ia à frente, seguido de Rhodan, enquanto
Marshall e Okura formavam a retaguarda. Alcançaram
rapidamente a margem do extenso lago pantanoso, mas
Rabov se manteve suficientemente afastado para não
terem que atravessar terreno molhado demais. Debaixo
das gigantescas árvores, o chão ainda se apresentava
relativamente seco, era praticamente impossível que aqui
topassem com algum sáurio.
Tudo estava correndo satisfatoriamente, até que
contornaram a última enseada, deixando o lago para trás.
Não tinham escolha. Teriam que atravessar um capinzal
de uns cinco quilômetros de largura, onde só em alguns
pontos espalhados se erguia uma árvore solitária. Aqui, o
capim atingia uma altura de cinco metros, o que lhes
tolhia inteiramente a visão. O chão era úmido e cedia.
Caminhavam como que por cima de uma esponja
gigantesca, e nem de longe se sentiam tão seguros quanto
na selva.
Rabov apontou em direção ao alvo, que se
destacava das névoas arroxeadas como um bloco de cor
escura.
— Esta é a trilha que costumávamos percorrer;
mas só à noite. Daqui a pouco voltamos a pisar em
terreno seco.
Apressou os passos para sair o mais depressa
possível da zona perigosa. Rhodan o seguiu vigilante, de
arma na mão.
De repente, Rabov emitiu um grito agudo,
arrancou a pistola do cinto e disparou o pente inteiro na
floresta de capim à sua frente. Depois recuou e esbarrou
contra Rhodan, que teve dificuldade para se manter em
pé.
Okura esticou o braço e apontou para frente, onde
os colmos do capim subitamente se separaram. Rhodan
pensou que o sangue fosse lhe congelar nas veias quando
viu o monstro que se arrastava em direção a eles, sem se
importar com os projéteis de Rabov, que haviam
ricocheteado em sua pele. Devia ter uns dez metros de
comprimento e se assemelhava a um dragão pré-
histórico. Deslocava-se sobre quatro patas e nas costas
ostentava uma crista, constituída por placas ósseas. Os
olhos na pequena cabeça brilhavam com uma expressão
traiçoeira. Da boca larga do réptil, pendiam tufos de
capim e raízes de árvores.
— Um estegossauro — murmurou Rhodan,
indeciso. — A rigor, é um herbívoro inofensivo. Se não
estivéssemos exatamente no seu caminho...
— Atire logo — implorou Rabov, tremendo como
vara verde. — Vai nos esmagar! Eles atacam os homens,
eu já vi isso mais de uma vez!
Marshall se afastou um pouco para o lado e
ergueu a arma. Rhodan olhou para ele e sacudiu a
cabeça.
— Aguarde, Marshall.
Okura parecia compreender que, apesar da
situação, Rhodan queria ganhar tempo para fazer uma
experiência. Por isso, também se afastou da trilha,
mantendo-se quase oculto no capim que a margeava.
Rhodan acenou quase imperceptivelmente, nas não
desviou o olhar do estegossauro.
O enorme animal arrastava o corpo pesado através
do capim, aproximando-se cada vez mais. Seguia os
movimentos dos homens com olhos ágeis, porém não fez
qualquer menção de atacá-los. Rhodan havia agarrado
Rabov pela mão, puxando-o para perto de si. A poucos
metros de distância, o sáurio passou pelos homens, sem
lhes dedicar maior atenção. Esmagou o capim à sua
frente como um rolo compressor, deixando atrás de si
uma verdadeira estrada de uns quatro ou cinco metros de
largura, pela qual arrastava a cauda couraçada. Segundos
depois, voltou a pastar pacificamente.
Quando Rhodan se virou com um sorriso
triunfante para Marshall, viu a expressão de espanto no
rosto deste.
— Pensou! — murmurou Marshall, ainda
aturdido. — Esse bicho pensou!
— E o que foi que pensou?
Marshall sacudiu a cabeça.
— Pensou com tanta clareza que cheguei a
acreditar que um homem estivesse diante de mim!
— Diga logo o que o bicho pensou, Marshall!
Será que o monstro o desnorteou?
— O que pensou foi o seguinte: “Será que vale a
pena esmagar estas pragas nocivas?”
— Pragas nocivas?
Marshall acenou.
— Sim, foi isso que ele pensou; e se referiu a nós!
Rhodan deu um sorriso fraco.
— Não é muito lisonjeiro, mas reforça a teoria a
respeito da qual estávamos filosofando ainda há pouco.
Que é impressionante, é. Mas vamos embora; não temos
tempo a perder. De qualquer maneira, estou satisfeito
que não foi preciso matá-lo. O bicho pensou, e por isso
merece viver.
Percorreram alguns metros da estrada aberta pelo
estegossauro; depois Rabov enveredou pela direita. Não
tinha entendido uma única palavra da conversa e devia
achar que os seus três companheiros haviam ficado
birutas. Mas não se atreveu a fazer perguntas.
Pouco depois, chegaram àquele paredão quase a
pique, e iniciaram a escalada. Seguiram por uma trilha
bastante batida e duas horas depois alcançaram a beira do
platô.
Rabov olhou cuidadosamente ao redor, mas
66
parecia não encontrar o que estava procurando. Um
pouco perplexo, virou-se para Rhodan.
— Não vejo as sentinelas. Isto é estranho.
Normalmente havia dois homens postados aqui.
— O acampamento de Tomisenkow fica longe?
— perguntou Rhodan; já havia recolocado a arma no
cinto.
— Uns dez minutos, não mais do que isso.
— Então vamos.
O fato de não ter encontrado sentinelas parecia
preocupar Rabov sobremaneira. Simplesmente não lhe
entrava na cabeça que Tomisenkow tivesse relaxado de
tal maneira sua habitual vigilância. Logo ele, que era a
desconfiança personificada.
— Atrás daquelas rochas se encontram as
primeiras cabanas — murmurou Rabov, e ia acrescentar
mais alguma coisa, porém os acontecimentos que se
precipitariam nos próximos segundos impediram que o
fizesse.
Era como se o inferno tivesse explodido.
Um silvo agudo fez com que Rhodan e seus dois
companheiros se jogassem ao solo, numa fração de
segundo. Rabov, porém, não reagiu com a mesma
rapidez. Onde estava, foi atingido pela saraivada de uma
metralhadora, oculta entre os arbustos. Cambaleou
durante uns dois ou três segundos, depois tombou
pesadamente ao chão.
Agora estavam sem guia, e teriam que achar
sozinhos o caminho que levava a Thora. Rhodan sabia
disso. E não precisava se certificar. E sabia também
que...
Uma dor lancinante varou-lhe o ombro direito.
Era como se alguém o tivesse trespassado com um ferro
em brasa. Também tinha recebido um tiro.
O general Tomisenkow devia ter concentrado
suas tropas na aldeia, substituindo as sentinelas e postos
avançados por uma instalação de defesa automática. E
isto significava morte certa para quem tentasse se
aproximar da aldeia.
Marshall já sabia o que tinha acontecido. Apesar
das balas sibilantes, ergueu-se de um pulo e se
aproximou de Rhodan para examiná-lo.
— Felizmente o tiro não afetou nenhum osso.
Mas temos que sair daqui. Okura ajude-me.
Rhodan gemia de dor, contudo tentou auxiliar
Marshall e o japonês, quando o arrastaram alguns metros
para trás. E, como por encanto, cessou de repente o
matraquear das metralhadoras ocultas por toda parte.
Rhodan e os companheiros já se encontravam fora da
zona de bloqueio.
Rabov estava morto. Nunca mais necessitaria de
ajuda. Ao menos, não precisava mais se decidir a favor
de Wallerinski ou de Tomisenkow.
Marshall e Okura sentiram-se aliviados quando
Rhodan declarou que estava em condições de caminhar
sozinho. Por via das dúvidas ampararam-no, um de cada
lado, e trataram de colocar distância entre eles e aquela
traiçoeira armadilha mortal. Contra esta, nem mesmo os
irradiadores de impulsos seriam eficazes, porque não se
conseguia discernir alvo algum.
Longe, atrás deles, ouviram uma voz de comando
e um tiro solitário. Alguns homens gritaram e depois se
fez novamente silêncio.
— Vamos ficar no platô? — quis saber Marshall.
Rhodan reprimiu suas dores.
— Por enquanto, podemos nos abrigar naquela
floresta, à direita. Não consegue descobrir o que esses
homens pretendem? Afinal, a distância não é tão grande
assim.
— Vou deixar isso para mais tarde, quando tiver
sossego suficiente para me concentrar — observou
Marshall. — Primeiro, precisamos levá-lo a um lugar
seguro e tratar do seu ferimento.
Rhodan resolveu não dar resposta. Sabia que
podia confiar nos companheiros; além disso, precisava
poupar suas forças.
Penetraram profundamente na floresta que, aqui,
não era muito densa e finalmente encontraram uma
gigantesca árvore, de tal maneira enleada por trepadeiras
que seria fácil galgá-la. Rhodan praticamente dispensou
auxílio, pois só precisou da mão esquerda para se alçar
pouco a pouco. Vinte metros acima do solo da floresta,
encontraram um galho bastante largo e. achatado, que se
estendia quase na horizontal, perdendo-se no
emaranhado dos galhos vizinhos. Uma verdadeira cortina
de cipós pré-históricos oferecia proteção para todos os
lados. Haviam encontrado uma cabana natural no alto da
árvore e que, mais tarde, ainda poderiam reforçar por
meio de galhos flexíveis.
O ferimento de Rhodan não era grave; a bala
havia atravessado o ombro de lado a lado. Marshall
aplicou um curativo e fez Rhodan tomar um remédio
contra febre. Dez minutos depois, a respiração regular do
ferido mostrou que tinha caído no profundo sono da
convalescença. Mas Okura e Marshall continuavam
intranquilos.
— Bem, cá estamos — disse Okura, sussurrando,
a fim de não acordar Rhodan. — Thora caiu nas mãos
desse Tomisenkow, e nós estamos trepados nessa árvore
como macacos indefesos, e esperamos que aconteça um
milagre. E Bell? Deus sabe onde se encontra. Não deve
estar se precipitando; também não tem noção que tudo
saiu ao contrário. Mas, a essa altura, devia começar a se
preocupar um pouco.
É claro que Okura não podia saber que Bell estava
bem acima deles, girando em torno de Vênus no girino
número cinco, igualmente à espera de um milagre que
lhe permitisse o pouso nesse maldito planeta. O aparelho
radiofônico estava em funcionamento ininterrupto,
tentando estabelecer comunicação com alguém. O
receptor permanecia mudo.
Com uma expressão melancólica, Marshall
checou as provisões.
Constatou que eram bastante minguadas.
— Não dá para aguentar muito tempo — disse ele
— a não ser que voltemos a caçar.
— Só daqui a três ou quatro dias Rhodan vai
poder mexer novamente o braço — constatou Okura. —
Ao menos até lá devíamos ficar na proteção dessa
cabana.
— Ah! — resmungou Marshall e se acomodou.
— Eu vou dormir. Vai ficar acordado?
— Se eu não ficar quem fica? — respondeu
Okura, com um sorriso cansado. Ajeitou-se da melhor
maneira que pôde, com as costas apoiadas no tronco da
árvore, e colocou o irradiador de impulsos sobre os
joelhos.
* * *
67
Após algumas horas de sono e uma refeição
reforçada, Rhodan recuperou a costumeira energia.
Graças aos excelentes medicamentos, a ferida sarou, e já
começara a cicatrizar. Em instante algum chegou a estar
com febre.
Analisaram a situação.
Depois de terem considerado todos os pontos,
Rhodan fez um resumo:
— ...portanto, é uma ilusão pensar que podemos
estabelecer contato com Tomisenkow. Guarda Thora
como a menina dos olhos, e não vai perder a
oportunidade de fazer umas tantas exigências para
libertá-la. De Bell, não temos notícia alguma. Já deve ter
pousado na base há muito tempo; a não ser que o cérebro
positrônico ativou a chave secreta X programada por
mim. Nesse caso, é claro que não vai poder pousar; aliás,
ninguém mais pode pousar em Vênus.
— Se for assim, como vão poder nos resgatar? —
perguntou Okura, preocupado.
— Só resta uma única possibilidade: vou ter que
alcançar a base a pé, para poder reprogramar o cérebro
positrônico. Mas isso fica para depois. Antes, quero
libertar Thora.
— Mas o senhor acabou de dizer... — começou
Marshall, porém logo emudeceu. Devia ter vasculhado
indiscretamente os pensamentos de Rhodan. — Tinha me
esquecido dela! — murmurou, concluindo sua
observação.
Okura olhou de um para o outro sem entender
nada. Não sabia ler pensamentos e, assim, também não
sabia a que Marshall estava se referindo. Rhodan notou a
perplexidade do japonês e pôs-se a explicar do que se
tratava.
— Quando, muitos anos atrás, pousamos pela
primeira vez em Vênus, topamos com aquelas focas
semi-inteligentes nas margens do mar pré-histórico.
Nossos telepatas conseguiram se comunicar com elas, e
acabamos por nos dar muito bem com esses seres. Houve
até uma ocasião, em que pude auxiliá-los, prestando-lhes
um grande favor. Talvez não tenham esquecido isto e
estejam prontos a saldar sua dívida de gratidão. Seria um
absurdo se quiséssemos todos os três empreender a longa
marcha para aquele mar, que se situa no leste. E só um
telepata pode se comunicar com estas focas e lhes
explicar o que desejamos delas. Vamos discutir os
detalhes mais tarde, mas acho difícil que encontremos
uma solução melhor.
— Um telepata?! — gemeu Marshall e
empalideceu um pouco. — Portanto, está se referindo a
mim! Eu... marchar sozinho através dessa floresta?
Brincou nervosamente com a larga pulseira, que
abrigava uma série de instrumentos minúsculos.
— Não acha melhor tentar estabelecer
comunicação com Bell?
— Isso também, mas se a chave secreta X foi
ativada, a tentativa não vai nos ajudar em nada. As focas
conhecem o caminho para a base e, portanto, podem nos
guiar. Não adianta estrebuchar, Marshall, não vai poder
escapar ao seu destino. Okura e eu vamos permanecer
aqui, aguardando o seu regresso. Se ocorrer algo de novo
em relação a Tomisenkow, vamos deixar uma mensagem
para você neste local.
— E as provisões? Vamos viver de quê?
— Tem a sua pistola e pode caçar — tranquilizou-
o Rhodan. — Nós vamos tentar fazer o mesmo com os
irradiadores de impulsos.
— Não é necessário — asseverou Okura e puxou
uma pesada pistola do bolso. — Não vi razão alguma —
acrescentou, como que a se desculpar — para deixar a
arma de Rabov cair nas mãos dos homens de
Tomisenkow. Essa pistola nos garante mais carne do que
podemos comer.
Rhodan acenou, satisfeito.
— Ótimo! Então está tudo decidido, Marshall.
Sugiro que agora durma mais algumas horas. Depois
vamos discutir os detalhes finais.
* * *
Já era dia em Vênus. A claridade havia
atravessado o teto da floresta, removendo todos os véus
ocultantes da noite. A cabana na árvore flutuava num
mar de orquídeas multicoloridas, que pareciam enormes
águas-vivas boiando num lago verde. Escaravelhos
coloridos rastejavam apressados, sobre os galhos e
troncos. Mais acima, ouviam-se os grasnidos e gorjeios
dos habitantes alados da selva.
Com certo desânimo, Marshall se despediu de
Rhodan e Okura, e desceu do esconderijo. Lá embaixo,
ainda parou por um instante, e acenou para os
companheiros. Depois se virou e iniciou a longa marcha
para leste, em direção àquele mar pré-histórico. Viram-
no desaparecer na vegetação cerrada e, pouco depois, já
não ouviam mais os passos cautelosos.
Agora Rhodan e Okura estavam sozinhos naquela
cabana no alto da árvore.
Por enquanto, estavam condenados à inatividade.
Teriam que aguardar o regresso de Marshall. Mas isso
poderia levar vários dias. Seria dia claro por mais cento e
vinte horas. Se Marshall conseguisse realizar sua tarefa
dentro desse prazo, teriam dado um grande passo para a
frente. Se não...
Okura brincava distraidamente com a pulseira de
utilidade múltipla quando, de repente, ouviu uma voz
baixa que emanava do alto-falante do minitransmissor:
— ...chamando Perry Rhodan; atenção, estamos
chamando Perry Rhodan; responda Perry Rhodan!
Aquela voz estava se tornando cada vez mais alta,
como se o emissor estivesse se aproximando a grande
velocidade. Repetia essa mensagem sem cessar.
Rapidamente Okura ligou o rastreador e olhou
quase verticalmente para cima. Uma expressão de dúvida
se delineou no seu rosto. Rhodan deu um sorriso, que era
um misto de contentamento e resignação.
— É a voz de Bell, Okura. Acuse o recebimento
da mensagem!
Segundos depois, ouviram Bell soltar um grito
alto, que denotava surpresa ao mesmo tempo que alívio.
— Com mil diabos, Rhodan, onde é que você
está? Estou procurando você como uma agulha no
palheiro. Por que você não entrou em contato antes?
— Calma Bell, uma coisa depois da outra. Onde
você se encontra?
— A bordo do girino número cinco e não posso
pousar. Aquele maldito cérebro positrônico...
— Bem que desconfiei que fosse isso! —
interrompeu Rhodan e suspirou. — Aquela chave secreta
foi ativada e ninguém pode pousar em Vênus. É, Bell,
não tem remédio; você vai ter que voltar à Terra e
68
aguardar o meu chamado. Vou tentar chegar à base. No
momento, você não pode me ajudar!
— E Thora?
— Está em boas mãos — respondeu Rhodan, com
um ligeiro traço de ironia.
— Não vou voltar para a Terra! — disse Bell, de
repente. Sua voz já soava novamente mais baixa, porque
a distância estava aumentando. — Vou circular por aí,
até poder pousar. E fim do papo!
Quando Bell dizia fim do papo, nada mais podia
alterar o seu ponto de vista. Rhodan sabia disso.
— Muito bem, por mim pode ficar orbitando em
torno de Vênus o tempo que quiser. Okura e eu vamos
brincar de Tarzan aqui na floresta, enquanto Marshall
negocia com as focas venusianas. No momento, está tudo
na mais perfeita ordem. Recomendações minhas aos
mutantes!
A resposta de Bell veio tão débil que se tornou
ininteligível; mas Okura estava pronto a jurar que tinha
sido um palavrão.
Rhodan deu um sorriso meio forçado. Voltou a
sentir dores. Recostou-se contra aquela cortina de cipós
gigantes. Acima da sua cabeça pendia uma orquídea cor
de sangue, do tamanho da cabeça de um homem.
— Vai ficar xingando o tempo todo ou eu não o
conheço. Não há coisa que ele deteste mais do que ficar
de mãos atadas, enquanto os outros estão mergulhados
até o pescoço nas aventuras mais malucas.
— E nem pode assistir ao espetáculo! — disse
Okura, sorrindo, e apontou para o alto, onde a eterna
camada mormacenta pairava acima do teto da floresta.
Rhodan fechou os olhos e acenou.
Pensou no quanto tinha que realizar. Tarefas
gigantescas o aguardavam. Havia iniciado a obra da sua
vida ainda outro dia, mal tinha lançado a pedra
fundamental. Em algum lugar da Via Láctea, o Grande
Império estelar dos arcônidas estava começando a
desmoronar.
Talvez, neste preciso instante, a anos-luz de
distância, novas frotas de invasão estivessem decolando,
a fim de fazerem uma visita de surpresa à Terra.
No momento não podia agir. O destino tinha lhe
tirado a responsabilidade das mãos. Mas Rhodan sabia
que, algum dia, essa responsabilidade lhe seria restituída
mil vezes mais pesada.
E enquanto os sáurios pastavam nas baixadas,
enquanto Thora com mal reprimida raiva negociava o
seu preço com Tomisenkow, enquanto Marshall
percorria sozinho a solidão da selva e Bell orbitava em
torno de Vênus com ira impotente, enquanto tudo isso
acontecia, Perry Rhodan dormia o sono da convalescença
definitiva; e lá estava Son Okura, atento e vigilante, para
que ninguém perturbasse os sonhos do seu amo e senhor.
A hora da decisão, que parecia tão próxima,
estava agora mais longe do que nunca, oculta nas brumas
de um futuro remoto...
Também os imortais podem cometer tolices!
Quando Thora fugiu, Perry Rhodan cometeu a tolice de segui-la com uma nave espacial
que ainda não estava em condições de emitir o código de identificação exigido pela base de
Vênus.
A consequência disso foi à imediata ativação da Chave Secreta X, que fez de Perry
Rhodan um prisioneiro de Vênus.
Chave Secreta X é o título do próximo volume da série Perry Rhodan.
69
Nº 23
De W. W. Shols Tradução
Richard Paul Neto Digitalização
Vitório Revisão e novo formato W.Q. Moraes
Para impedir Thora de penetrar na fortaleza de Vênus e estabelecer contato
com Árcon, Perry Rhodan seguiu a arcônida, mas não se lembrou de que os novos
destróieres espaciais ainda não estavam em condições de irradiar mensagens em
código que pudessem atingir o cérebro positrônico da fortaleza.
Acontece que um robô nunca age irrefletidamente, guia-se apenas pela lógica;
e é assim que, face à aproximação não anunciada de Thora e Rhodan, o
comandante dos robôs da fortaleza de Vênus manipula a Chave Secreta X, que
fecha hermeticamente o planeta...
70
I
— Nem que os senhores se arrebentem — disse
Reginald Bell depois de uma discussão cansativa — não
voltaremos à Terra. Continuaremos na órbita de Vênus
que estamos percorrendo. Entendido?
O pequeno grupo de pessoas que se encontrava na
sala de comando acenou com a cabeça. Nenhum deles
demonstrou qualquer entusiasmo com a decisão
aparentemente tresloucada de seu comandante.
Conformaram-se, porque era Bell que dava as ordens. E
todos os membros do Exército de
Mutantes estavam conscientes de que
mesmo uma ordem aparentemente
absurda devia ser executada.
Bell desempenhava as funções de
comandante interino do Exército de
Mutantes de Perry Rhodan. Nesta
posição não podia se dar ao luxo de
cometer enganos.
E aqui tudo indicava que um
engano fora cometido.
— Parece que alguma coisa não
está certa — prosseguiu Bell em tom
irritado. Seu indicador estendido fez
alguns movimentos ameaçadores para
baixo. — Quem serve ao chefe da
Terceira Potência, quem prestou
juramento perante Perry Rhodan, não
pode abandoná-lo, por piores que
estejam às coisas. Os senhores
querem voltar para a Terra. E depois?
Sabem perfeitamente que nosso chefe
está praticamente só ali embaixo, na
selva de Vênus...
Wuriu Sengu, um mutante
baixote, mas largo e robusto, arriscou
uma objeção:
— Okura deve estar com ele:
provavelmente Marshall e Thora
também estão.
— Thora saiu sozinha numa nave — interrompeu
Bell. — Se é que teve alguma companhia, foi a de um
robô. Rhodan, Marshall e Okura seguiram-na em outra
nave. Desde que sabemos que aquele cérebro positrônico
da fortaleza de Vênus ficou maluco e, com base na chave
secreta X, programada por Rhodan, subitamente não
mais reconhece seu mestre e senhor e o repele com todos
os recursos técnicos de que dispõe, não estou convencido
de que Perry e Thora estejam juntos. Tudo indica que as
naves deles caíram, e os dois estão expostos aos perigos
da selva de Vênus.
Sengu tentou dissipar o pessimismo de Bell:
— O chefe aludiu ao fato de que Thora, a arcônida,
está bem.
— Para sermos exatos — insistiu Bell — o chefe
disse muito pouco. Não teve tempo para maiores
explicações. O contato pelo rádio foi interrompido em
dois minutos, e até agora estamos tentando em vão
estabelecer novo contato. O cérebro positrônico da
fortaleza de Vênus, além de erigir uma barreira de
quinhentos quilômetros, impede nosso pouso e não
permite qualquer comunicação com as estações de rádio
situadas na superfície do solo. De qualquer maneira, os
pequenos emissores e receptores de pulso com que
Rhodan se acha equipado estão fadados ao fracasso.
Acredito que nem mesmo nosso potente emissor de
bordo consiga romper a barreira. Uma vez ajustado para
uma situação de defesa, o cérebro positrônico dá
cumprimento cabal à sua tarefa. É um produto da técnica
arcônida. Não esqueçam este detalhe.
O mutante Tanaka Seiko fez um gesto respeitoso com
a cabeça.
— Já falamos sobre isto. E agora o senhor mesmo
reconhece que somos impotentes.
Por que vamos ficar nesta órbita
se não podemos fazer nada por
Rhodan?
Bell fez uma pausa. Seu olhar
duro passou de um para outro dos
interlocutores, mas, por causa da
cor dos seus olhos, não conseguia
ser tão penetrante como ele
desejaria para se dar um aspecto
autoritário.
Ali estavam os melhores
homens do seu grupo de elite.
Eram mutantes selecionados entre
os membros do exército secreto
de Rhodan, todos eles nascidos
nos primeiros anos que se
seguiram à Segunda Guerra
Mundial. Vinham das regiões de
Hiroshima e Nagasaki, onde as
primeiras bombas atômicas da
história da Humanidade haviam
causado muita desgraça. Mais
uma vez, porém, a artimanha da
sequencia grandiosa dos
acontecimentos históricos fez com
que também ali surgissem as
exceções que confirmariam a
regra. Depois de vários decênios,
constatou-se que o inferno desencadeado com o
lançamento das primeiras bombas atômicas sobre o
Japão não trouxe apenas a desolação, a morte e a doença.
Em alguns casos, explicáveis certamente com base nas
leis da genética, houve pequenas modificações nas
características hereditárias, que se processaram segundo
as leis causais da evolução. Os filhos das pessoas que
sofreram esse tipo de influência vieram ao mundo com
dons parapsicológicos.
Havia, por exemplo, Tanaka Seiko, que possuía um
sexto sentido que lhe permitia a recepção de ondas de
rádio: e ainda o espia, que era Wuriu Sengu, um homem
que não tinha a menor dificuldade em enxergar através
da matéria compacta.
O olhar de Bell se fixou em Tako Kakuta.
— Estou me referindo a você, Tako. Não acha que o
cérebro positrônico deixou de considerar um fato?
— Está aludindo à minha capacidade de
teleportação?
— Isso mesmo. O cérebro positrônico da fortaleza de
Vênus tem dez mil anos. Nem por isso vou afirmar que
seja pré-histórico. Afinal, foi montado pelos membros de
uma expedição arcônida cujos conhecimentos técnicos
naquela época já eram muito mais avançados que os da
Personagens Principais deste episódio:
Perry Rhodan — Chefe da Terceira
Potência; transformou-se em
prisioneiro de Vênus.
John Marshall e Son Okura —
Companheiros de Rhodan na prisão.
Reginald Bell — Que não consegue
estabelecer contato com o chefe.
Thora — Cuja fuga precipitada da
Terra termina em fracasso.
Tako Kakuta — Cujas capacidades
teleportativas são a última esperança
de Bell.
General Tomisenkow — Um
comandante de divisão sem divisão.
Coronel Raskujan — Que a atmosfera
de Vênus transforma num elemento
amotinado.
71
Humanidade dos nossos dias. Acontece que há dez mil
anos ainda não existiam no planeta Terra os mutantes
dotados de capacidade parapsicológicas. Logo, a
conclusão que se impõe é a de que este cérebro não tem
capacidade de ser programado para a defesa contra um
teleportador.
— Então quer que eu...
Tako Kakuta se interrompeu. Lançou um olhar
assustado para a tela de imagem, regulada para captar a
superfície de Vênus. Sob a esfera de sessenta metros de
diâmetro formada pela nave Good Hope-V — conhecida
no código de comunicações como girino número cinco
— deslizava, como que em câmara lenta, a paisagem
virgem e selvagem do planeta Vênus. Não se percebiam
os detalhes. Só vez por outra a espessa camada de nuvens
permitia a visão da superfície do planeta. Eram florestas
verde-escuras, um mar azul-escuro, que por vezes
chegava a jogar reflexos, e uma rocha marrom-
acinzentada, que na região da calota polar era coberta de
grossas camadas de neve. A imagem apresentada pela
tela mostrava muito menos do que o teleportador via com
os olhos da lembrança e da fantasia. Tako permanecera
em Vênus por longas semanas. Sabia que ali um labirinto
o aguardava.
— Isso mesmo — disse Bell em tom sério. — Quero
que desça e entre em contato com Rhodan. Se conseguir
encontrá-lo, o resto será brincadeira. Juntamente com o
chefe somos uma equipe invencível. Além do mais,
vamos conseguir o que pretendemos. Levaremos Rhodan
à fortaleza pelo caminho mais rápido, para que possa dar
novas instruções ao cérebro.
— Naturalmente — disse Sengu com um tom de
otimismo na voz. — Por que a ideia não nos acudiu
antes?
— Foi porque muitas vezes somos inclinados a
considerar uma barreira energética arcônida como algo
de perfeito e absoluto. O contato com a tecnologia
arcônida nos transformou em animais guiados pelo
instinto, que no subconsciente chegam a acreditar na
perfeição. Prepare-se, Tako! É apenas um pulo: você
conseguirá.
— A distância chega a ser ridícula. Há tempo vivo
pensando num salto e já teria descido por conta própria
se...
— Se?
— Se não fosse a selva. Já a conheço. Mesmo um
teleportador pode se perder nela, se ficar desorientado.
Além disso, a gente está sujeita a se encontrar com
vermes antropófagos de todos os tipos, diante dos quais
até mesmo a reação instantânea de fuga de um
teleportador será inútil.
— Está com medo?
— Sempre sinto um pouco de medo quando tenho
que descer diretamente para o inferno. Mas não é isto
que importa. Lá embaixo deve haver vários homens que,
a qualquer momento, têm de estar preparados para
defender sua vida. Acontece que preciso de um objetivo
definido. Enquanto não o tenho, eu posso teleportar uma
infinidade de vezes sem encontrar Rhodan.
— Deixe isso por minha conta. O cérebro positrônico
de bordo armazenou todos os dados relativos à manobra.
Também dispomos da localização goniométrica da
última mensagem transmitida por Rhodan. Encontra-se
exatamente a cento e vinte quilômetros a oeste do grande
mar primitivo, situado na região norte do planeta. Mais
exatamente, está a oeste do braço de mar de quase
trezentos e cinquenta quilômetros de largura que penetra
profundamente no continente norte.
— Os dados ainda são muito vagos.
— Sei disso. Acontece que não disse que você vai
saltar neste minuto.
Bell afastou o teleportador com um gesto violento e
se aproximou do cérebro positrônico de bordo.
— Venham todos! Prestem atenção para que Tako e
eu não cometamos qualquer engano. Ponho a mão no
fogo se não conseguirmos determinar a posição de
Rhodan com uma margem de erro não superior a
quinhentos metros. Se não aterrisar nos braços do chefe,
Tako, você terá que se dar ao incômodo de chamá-lo.
— Naturalmente.
A interpretação dos dados armazenados foi mais
rápida do que se esperava. Os círculos gravados no
cérebro reagiram prontamente. Na lâmina milimetrada do
último estágio da interpretação ótica, surgiu à projeção
de uma reprodução fotográfica da superfície de Vênus,
baseada em medições anteriores.
O mais difícil foi a sintonização individual de Tako
Kakuta diante do problema.
Sua mente tinha de realizar uma pontaria muito exata,
e para isso precisava de uma concepção concreta do
lugar que desejava atingir através da teleportação.
Em Vênus só podia contar com esse recurso em
escala bastante limitada. Vista de cima, a selva parecia
um tapete infinito, que numa concepção ligeira oferecia
um milhão de pontos geográficos equivalentes.
— Enxugue o suor, rapaz. Eu lhe dou uma ajuda.
Poucos segundos depois a rede cartográfica foi
introduzida no aparelho. Muito embora ela só
representasse um recurso criado na mente, que não
retratava qualquer realidade na superfície do planeta, ela
se revelou de alguma utilidade.
— A orientação está excelente — disse Tako Kakuta
depois de algum tempo. — Faça o favor de não
modificar a regulagem dos graus geográficos. O curso da
nave também parece correto. Dentro de uns dez minutos
deveremos atingir o ponto mais favorável para o salto.
Todos lançaram um olhar automático para seus
relógios. Além dos cronômetros de bordo, que
registravam o tempo segundo o calendário terrestre, os
membros da tripulação traziam consigo os chamados
relógios de Vênus. A rotação de Vênus é cerca de dez
vezes mais lenta que a da Terra. Por isso a duração do
dia de Vênus é dez vezes maior.
Naquele instante, o ponto que, segundo o cérebro
positrônico da Gold Hope-V, correspondia à posição
atual de Rhodan, ficava na zona crepuscular móvel. Isso
significava que para os amigos que se encontravam na
superfície de Vênus um novo amanhecer começara a
raiar há pouco tempo.
Os que se orientavam pelo tempo de Vênus
encontravam-se pouco antes das setenta e oito horas.
Faltavam cinco minutos para alcançar a posição de
salto mais favorável.
Enquanto os homens esperavam em silêncio, a tensão
crescia. Mas se alguém que se encontrava a bordo
acreditava que a intenção de Tako Kakuta era
impossível, não o dizia. Depois que o cérebro da
fortaleza de Vênus instalara todas as barreiras
72
concebíveis, a teleportação de um mutante poderia
representar a última possibilidade de transpor essas
barreiras.
Faltavam três minutos.
Wuriu Sengu, o espia, soltou um gemido de
contrariedade. Depois de vários segundos de extrema
concentração, durante os quais aparentemente mantinha
os olhos fitos no nada, descontraiu o corpo e, num gesto
de desânimo, se atirou numa poltrona.
Essa demonstração de pessimismo, que facilmente
poderia se transmitir aos outros, deixou Bell bastante
aborrecido.
— O que houve Wuriu?
— Procurei reconhecer alguma coisa embaixo da
camada de nuvens. É claro que consigo ver mais que
vocês. Para os outros a superfície de Vênus não passa de
uma triste camada de nuvens e neblina, enquanto eu vejo
nela um paraíso luminoso e colorido. Mas o que importa
no momento são os detalhes; é claro que a uma distância
destas não consigo reconhecê-los. Apenas sei que,
aproximadamente há trinta quilômetros ao sul do ponto
determinado pelo cérebro, existe um planalto quase
totalmente livre de vegetação. Mas supõe-se que o chefe
se encontre em meio à selva mais densa.
— Você quer dizer que, se foi inteligente, tentou
atingir o planalto?
— Naturalmente. Para um náufrago representa a
melhor proteção contra a fauna imprevisível do planeta.
— Talvez tenha razão. Mas lá embaixo os problemas
devem parecer um pouco mais difíceis do que se
apresentam quando vistos através de nosso cérebro
positrônico. Seja como for, podemos confiar
irrestritamente no resultado da localização goniométrica.
Tenho certeza de que dentro de quinze minutos
saberemos mais alguma coisa. Está preparado, Tako?
Faltava um minuto para atingir a posição de salto.
O teleportador confirmou com um aceno de cabeça.
Além do equipamento usual, trazia um traje arcônida
especial afivelado às costas. Todos sabiam o que
significava isso. Assim que tivesse encontrado Rhodan,
esse traje os ajudaria a alcançar a fortaleza de Vênus no
mais curto espaço de tempo. Uma vez lá, Rhodan poderia
modificar a programação do cérebro positrônico. Com
isso o domínio da Terceira Potência sobre o planeta seria
imediatamente restabelecido. O traje especial arcônida
representava um recurso técnico extraordinário.
Relativamente leve, era facilmente adaptável acima da
vestimenta comum e transformava seu portador num
verdadeiro Ícaro, num homem voador, já que o
neutralizador gravitacional nele embutido eliminava a
gravidade de um planeta de média força de atração. O
defletor de ondas luminosas e o campo protetor
energético faziam com que o homem que o envergasse se
tornasse invisível e invulnerável.
Ainda bem que esse tipo de pensamento restituía o
otimismo aos homens. Assim que Tako Kakuta
entregasse o traje a Perry Rhodan, o episódio do
naufrágio teria chegado ao fim.
— Faltam dez segundos — disse Reginald Bell. —
Prepare-se, Tako!
— Já vou saltar.
Para os membros do Exército de Mutantes o
desaparecimento de um teleportador era um
acontecimento a que estavam acostumados há anos.
Apesar disso, na situação especial em que se
encontravam, representava algo de extraordinário e
misterioso. Um homem normal sai pela porta. Ou atira-se
num poço antigravitacional. Mas um teleportador
permanece no mesmo lugar. Através de um processo
puramente mental de concentração, transfere-se para o
chamado hiperespaço, desmaterializando-se da mesma
forma que uma nave espacial no início do processo de
transição. Volta a se materializar com a mesma rapidez
no lugar de destino.
O corpo de Kakuta não se desvaneceu aos poucos: de
repente tinha desaparecido. Um ligeiro ruído foi
produzido pelo ar que preencheu o súbito vácuo.
Antes que alguém pudesse respirar, o lugar em que se
encontrara Kakuta estava completamente vazio.
— Agora precisamos ter um pouco de paciência —
disse Bell em tom professoral. Fez menção de imitar
Wuriu Sengu, que se inclinara numa poltrona para
aguardar confortavelmente. Mas antes que atingisse o
lugar um grito fez com que voltasse a cabeça.
O espia, que se levantara de um salto, olhava
perplexo para o corpo que se contorcia no chão da sala
de comando.
Tako Kakuta se debatia num sofrimento indizível.
Seu grito transformara-se num choro convulsivo, que
logo foi interrompido por fortes acessos de tosse.
Ralf Marten, o teleótico do Exército de Mutantes, deu
um salto para trás quando Kakuta, de olhos fechados,
segurou sua perna e procurou enlaçá-la num gesto de
fúria e de súplica.
— Ficou louco! — exclamou Tanaka Seiko. —
Vamos todos agarrá-lo de vez e amarrá-lo. Não sabe o
que está fazendo.
Era verdade que o teleportador parecia não saber o
que estava fazendo. Em compensação, os outros não
sabiam o que deviam fazer. Kakuta sentia os efeitos de
uma estranha experiência. Não poderiam tratá-lo ao
mesmo tempo como doente e como malfeitor. E tudo
indicava que estava antes doente que louco.
— Devemos ajudá-lo! — declarou Marten.
Sua atitude era de compaixão e desconfiança.
Também os outros homens alargaram o círculo em
torno de Tako Kakuta. Procederam assim por puro
instinto. Mas a razão teria de intervir.
— Ralf, concentre-se sobre seu cérebro — ordenou
Bell. — Diga o que está vendo e ouvindo.
A mutação espiritual de Ralf Marten permitia-lhe
desligar temporariamente seu próprio eu para receber
determinadas impressões sensoriais através dos olhos e
dos ouvidos, sem que a pessoa apossada por essa forma
percebesse qualquer coisa.
Marten se concentrou. Foi acometido pela rigidez
típica do mutante que está trabalhando. Logo voltou a se
descontrair e sacudiu a cabeça.
— Tako não me diz nada. O que está vendo e
ouvindo é indefinível. Não nos reconhece. Sua percepção
está confusa como se fosse um...
Marten hesitou.
— Fale logo — insistiu Bell. — Acha que Tako está
louco?
O teleótico acenou com a cabeça, numa atitude pouco
convincente.
— Era exatamente isto que eu pretendia dizer.
Acontece que não sou nenhum médico. Não atribua
73
muita importância às minhas impressões.
— Ora, Tako, vá para o inferno! Você está nos
confundindo ainda mais. O cérebro de Tako não pode
deixar de retratar certos reflexos. Passou cinco segundos
fora da nave. Não pode ter se transformado num idiota
dentro de um espaço de tempo tão curto.
O teleótico deu de ombros; parecia perplexo.
— Não posso dizer mais nada que possa esclarecer o
assunto. Se o cérebro dele reflete a breve experiência
pela qual acaba de passar, no que diz respeito às
impressões óticas e acústicas, só posso afirmar que essa
experiência deve ter sido indefinível e maluca.
— Não o maltrate — recomendou Wuriu Sengu. —
Afinal, não é nenhum telepata.
— Obrigado pela lição — retrucou Bell bastante
contrariado. — Quer dizer que não temos outra
alternativa senão aceitar a sugestão de Tanaka. Caímos
todos ao mesmo tempo em cima... Um momento está se
acalmando.
De repente Tako Kakuta ficou quieto. Só a respiração
rápida e forte traía sua excitação. Depois de algum tempo
abriu os olhos e encarou os amigos, sem que neles se
refletisse qualquer conhecimento.
— Tenham paciência! — pediu Bell. — Ao que
parece o nervosismo está diminuindo. Não podemos
livrá-lo das dores enquanto não soubermos qual é sua
origem.
Bell se aproximou do teleportador.
— O que houve Tako? Diga alguma coisa!
Demorou mais alguns minutos até que o japonês
reagisse ao ambiente que o cercava. Os traços de seu
rosto pareciam se tornar menos confusos.
— Meu Deus, Bell, por que não me ajuda?
— Ajudarei assim que me explicar o que há com
você.
— Sinto dores.
— Onde?
— Em toda parte. Nas costas, na cabeça... Ninguém
agüenta três horas naquele inferno.
Seus companheiros lançaram olhares indagadores.
“Realmente está doido”, pareciam dizer seus rostos.
— Ficou fora de três a cinco segundos — constatou
Tanaka Seiko. — Não é possível que, num espaço de
tempo tão curto, tenha pousado em Vênus e retomado à
nave.
— De qualquer maneira passou por uma experiência,
e por uma experiência muito intensa — observou o
comandante. — Deem uma mão. Vamos colocá-lo no
sofá do camarote ao lado.
Bell ajoelhou perto dele e abriu o fecho éclair do
colarinho. Isso devia representar um alívio para Tako,
pois ele disse com a voz bem perceptível:
— Obrigado!
Levaram-no ao camarote vizinho sem que ele se
opusesse. Kakuta mantinha uma atitude totalmente
passiva e inofensiva. Engoliu um comprimido de
analgésico, conforme haviam mandado.
— Sente-se melhor? — perguntou Bell.
— Obrigado, estou um pouco melhor.
— Graças a Deus! Você se comportou de tal maneira
que seus companheiros pensaram que estivesse louco. Já
se sente em condições de relatar o que houve?
— Não há muita coisa a relatar. Não cheguei a
descer. É impossível chegar à superfície do planeta.
— Ninguém esperava que nos poucos segundos em
que esteve ausente pudesse ter chegado a Vênus. Além
disso...
— Por que vive falando em alguns segundos? —
perguntou Kakuta desconfiado. — O inferno me segurou
por várias horas, antes conseguir me livrar dele.
— Está bem — interrompeu-o Bell. — Não vamos
discutir ninharias. O que importa é saber qual foi o erro
que cometeu.
— Como é que um teleportador pode cometer um
erro? Você não está em condições de dizer aos seus
olhos e ao seu cérebro como deve se processar o
fenômeno da visão: da mesma forma eu não posso
exercer qualquer influência sobre o fenômeno da
teleportação. É um dom natural que funciona segundo
suas próprias leis.
— Hum! — refletiu Bell em voz alta. — Se não
cometeu nenhum erro, não adiantará repetir a
experiência.
— Nem penso em repetir este tipo de experiência!
Desculpe. Não interprete minhas palavras como uma
manifestação de rebeldia às suas ordens. Não sei
explicar.
— Você aludiu ao inferno.
— É o único nome que posso dar àquilo. Encontrava-
me no nada. Apesar disso tudo eram martírio e dores. Só
consigo encontrar uma explicação.
— Qual é essa explicação?
— O cérebro me repeliu. A chave secreta X repudia
tudo que, de qualquer maneira, assume uma forma
existencial. A energia de ordem superior inclui-se nessa
classe. Depois que nosso pouso se tornou impossível,
tivemos de nos conformar com uma interrupção total das
comunicações radiofônicas. E agora temos de nos
conformar com o fato de que os fluxos energéticos do
espaço de cinco dimensões também são repelidos.
Durante o estado de desmaterialização devo ter me
encontrado num campo temporal de ordem superior.
— O que vem a ser isso?
— Veja a divergência sobre o tempo durante o qual
estive ausente. Todos dizem que não estive fora da nave
mais que cinco segundos. Na verdade estive a caminho
muito mais que isso...
Para provar sua afirmativa Tako Kakuta ergueu o
braço esquerdo onde, ao lado da pulseira de finalidade
múltipla, surgiu o mostrador do cronômetro.
— Meu relógio está adiantado duas horas e meia.
Esta prova é suficiente?
Foi suficiente. A tripulação da Good Hope-V
refugiou-se numa atitude resignada. Nesse instante
compreendeu de vez que não mais poderia prestar auxílio
a Perry Rhodan, que se encontrava na selva de Vênus.
Rhodan e o pequeno grupo de homens que o
acompanhava dependiam exclusivamente de seus
próprios recursos. Teriam de encontrar a solução.
II
John Marshall corria para salvar a vida.
Correr era sua principal ocupação nos últimos dias.
Fugia dos homens do planeta Terra e dos animais de
Vênus. Todo o planeta parecia conspirar contra sua
pessoa.
74
Fungando caiu por cima de uma raiz que atingia a
altura de seu joelho. Rolou por cima do ombro como um
paraquedista que toca o solo e se voltou para ver o bicho.
A raiz oferecia bastante proteção, enquanto a ameaça só
viesse da frente.
Olhou para cima. O tronco era liso. Os primeiros
galhos ficavam a dez metros de altura. Era impossível
subir. O bicho chegaria antes. E contra seus cem metros
de comprimento provavelmente a mais alta das árvores
de Vênus não representaria uma proteção segura.
A cabeça comprida e pontuda do verme branco e
gosmento surgiu por entre a vegetação. A dois metros
acima do solo, executou um movimento ligeiro para a
direita e para a esquerda e arriscou mais um salto para
frente.
Marshall encontrara o bicho há cerca de uma hora.
Desesperado, pegou a carabina automática de fabricação
russa que trazia consigo. O susto pelo fato de que poderia
revelar sua posição aos perseguidores humanos
sobrepujou o medo que o monstro venusiano lhe
causava. Há muito tempo o gigantesco verme gosmento
era conhecido como uma subinteligência absoluta: suas
perigosas reações eram atos puramente instintivos. Mas
quem fosse enlaçado por ele não teria tempo para fazer o
testamento.
Uma arma automática convencional era praticamente
ineficaz contra a massa de carne nojenta daquele
monstro, cujas dimensões pareciam infinitas. Por isso
mesmo, passado o primeiro susto, Marshall pegara o
radiador de impulsos e abrira um fogo ininterrupto de
vinte segundos sobre aquela massa branca. O resultado
foi apenas uma divisão do bicho que, transformado em
dois, reiniciou a perseguição. A fuga consumiu as
últimas energias de Marshall.
Naquele instante, estava deitado atrás da raiz, que se
erguia diante dele como uma muralha protetora.
Que tal se atirasse bem de frente?
Era apenas uma ideia, e ao que tudo indicava até
então ninguém a havia experimentado. Um ataque lateral
resultava na divisão daquele corpo de cobra. E um ataque
de frente? Penetraria por todo o corpo.
Era este o cálculo. Já não tinha forças para correr.
Mas ainda lhe restavam forças para fazer pontaria e
apertar o gatilho.
O telepata John Marshall ergueu a arma. A parte
superior da raiz proporcionava um bom apoio, que
permitiria uma pontaria segura.
A conta tinha que dar certo. Tinha que dar porque sua
mente não podia conceber a ideia de que pudesse morrer
longe de toda a civilização humana e sem qualquer
pessoa que testemunhasse sua morte.
A cabeça do monstro balançava por cima da alça de
mira. Mas ainda não se encontrava numa posição
adequada para o tiro, já que o corpo estendido ainda
formava um ângulo obtuso com o eixo do radiador de
impulsos.
Quando o animal se encontrava a menos de vinte
metros de distância, Marshall percebeu que, de repente,
aquele ser mudara de intenções. Na verdade, falar de
intenções em relação a um bicho dotado de tão reduzida
capacidade cerebral já representava uma concessão. Não
possuía qualquer inteligência digna de nota. Só agia
através de reflexos condicionados. E isso fornecia a
explicação do comportamento irracional do verme.
Deslizou em direção à árvore, passou do lado oposto
do tronco de seis metros de diâmetro e, numa grotesca
estupidez, prosseguiu seu caminho em direção à
vegetação rasteira não muito distante.
John Marshall conteve a respiração. O que o obrigou
a tanto não foi apenas a ansiedade, mas também o cheiro
penetrante e inexplicável para um homem vindo do
planeta Terra. O verme levou mais de quinze minutos
para passar. Enojado, perplexo e aliviado, Marshall
seguiu a extremidade posterior do monstro, que num
movimento aparentemente inofensivo mergulhou na
selva.
Em algum lugar o verme encontraria um buraco
profundo repleto de pólipos. Mergulharia ali e viveria
numa simbiose harmoniosa com aquelas criaturas.
Marshall enxugou o suor da testa. Mas a lembrança
da ponta branca da cauda do verme logo o fez despertar.
Há uma hora, quando cortara aquele animal com o
radiador de impulsos, as duas extremidades pareciam
enegrecidas e carbonizadas. Pouco depois a crosta devia
ter caído da mesma forma que na outra metade do verme
logo voltara a crescer uma cabeça.
As peculiaridades incríveis da fauna de Vênus eram
conhecidas há anos, e por isso Marshall sabia
perfeitamente que ainda não se livrara do perigo.
Se aquele verme se transformara em dois, a culpa era
dele mesmo. E o segundo verme surgiu no momento
exato em que voltou a olhar para frente.
O que teria levado o primeiro a ignorá-lo de repente?
E isso depois de uma hora de perseguição intensa e
metódica!
Uma única explicação acudiu a Marshall. Os
movimentos do fugitivo irritaram a fera e sempre
voltaram a despertar sua atenção sobre ele. Assim que se
abrigou atrás da raiz e se manteve imóvel, o cérebro
primitivo daquele ser deixou de reconhecer o objetivo. A
tática de se fingir de morto tinha validade em qualquer
mundo onde a luta da vida se desenvolvia segundo leis
eternas.
Mas a nova esperança de Marshall logo se revelou
enganosa.
O segundo verme não era mais inteligente que o
primeiro. Apenas o acaso quis que rastejasse na direção,
exata da raiz atrás da qual Marshall se abrigara.
Desta vez teria que se defender. No último instante,
percebeu que não poderia participar do espetáculo apenas
como espectador. O movimento rápido com que levantou
o radiador de impulsos bastou para despertar a atenção
do animal.
A cabeça branca e pontuda disparou para frente. Os
primeiros cinco ou seis metros do corpo formavam uma
reta perfeita.
A conta estava dando certo.
No sentido longitudinal daquele corpo não havia
qualquer divisão ou qualquer encapsulamento. Cada um
dos anéis transversais do corpo poderia formar um novo
organismo. Assim que fosse atingido pela energia mortal,
morreria.
A certeza do êxito incutiu nova coragem naquele
homem. Reunindo as últimas forças, saltou para fora do
seu esconderijo e atacou. Como que tomado de uma sede
de sangue, percorreu os quarenta e tantos metros do
corpo do animal e, disparando ininterruptamente, traçou
uma linha de fogo contínua sobre o corpo branco e
75
descorado.
Perto da trilha gosmenta, que prosseguia por mais
alguns quilômetros, as forças o abandonaram e ele caiu
ao solo. Vencera. O que lhe restava era um desamparo
total. Nem mesmo o cheiro nojento e penetrante evitou
que adormecesse instantaneamente.
Quando despertou, o sol ainda se encontrava bem no
oriente, atrás de um véu de neblina branquicenta. Seu
primeiro olhar foi para o cronômetro. Dormira nada
menos de seis horas do tempo terrestre. E continuava
vivo.
Os nervos estavam um pouco mais calmos. E os
membros obedeciam novamente à sua vontade.
Naquelas seis horas parecia ter dormido o sono
inocente de uma criança. E toda criança tem um anjo de
guarda. Mas, no futuro, Marshall não deveria confiar
nesse anjo de guarda.
Olhou para o sol que se levantava ao leste. Para uma
orientação mais precisa, servia-se da bússola giratória
embutida na pulseira de múltipla finalidade. A fuga do
verme fez com que desse uma volta, desviando-se alguns
quilômetros de sua rota. Bem, isso não lhe causava
maiores preocupações. Apenas faria com que atingisse a
costa um pouco mais ao norte. O que importava era que
atingisse o mar. Não devia ficar a mais de trinta
quilômetros. Face às suas forças minguadas, ainda era
uma distância muito grande. Poderia significar que teria
de marchar mais uns três ou quatro dias terrestres. Ou
uma semana, talvez mais.
Preferiu não fazer cálculos mais exatos quanto ao
futuro. A marcha pela selva privara-o de grande parte do
seu otimismo.
A fome e a sede constituíam os fenômenos mais
regulares. Sorveu um gole de água da garrafa que trazia
de reserva; melhorara o sabor do líquido com alguns
restos de chá concentrado. Sua refeição consistiu em
duzentas e cinquenta gramas de carne fria. Quando a
carne acabasse, teria que se lançar novamente à caça.
Mas isso teria tempo. Até que a fome voltasse a atacar.
Lambeu os restos da gordura dos dedos e pôs-se em
marcha na direção leste. O mar devia ficar nessa direção.
E no oeste as patrulhas do general Tomisenkow deviam
estar à sua procura. Proteger-se dele parecia mais
importante para essa gente do que se defender dos
monstros venusianos.
Naquela área a vegetação rasteira era bastante
escassa. O solo era menos úmido que nas baixadas. Nos
primeiros quilômetros a marcha não foi cercada de
maiores dificuldades. A visibilidade era boa. O dia
venusiano que rompia, trazendo consigo um futuro
incerto, constituía um desafio para uma espécie de
balanço intermediário. Quem não sabe muito bem o que
fazer dali por diante e formula indagações sobre o
sentido que possam ter seus esforços, faz bem em
procurar se lembrar de como tudo começou.
Fazia alguns anos que John Marshall, o telepata do
Exército de Mutantes de Perry Rhodan, pisou pela
primeira vez no solo de Vênus. Naquela oportunidade foi
descoberta no hemisfério norte uma fortaleza misteriosa,
construída por uma raça extraterrena, os arcônidas. A
fortaleza datava da época em que os homens do planeta
Terra começavam a aproveitar o invento da roda, a se
arriscar cautelosamente mar afora em embarcações
primitivas e a lançar as bases da geometria euclidiana.
Pelo que se dizia naquela época os arcônidas de
Vênus, cujo planeta natal ficava a milhares de anos-luz
do sistema solar, chegaram a fundar uma colônia na
Terra. Mas esta submergiu com a lendária Atlântida.
Muitos séculos depois, se verificou o segundo
encontro entre os homens e os arcônidas. A primeira
nave lunar americana, comandada pelo então major Perry
Rhodan, descobriu na face oculta da Lua uma nave
espacial arcônida que realizara um pouso de emergência.
Os únicos sobreviventes entre os tripulantes da nave
eram o chefe científico da expedição, chamado Crest, e
Thora, a comandante da nave. Auxiliado pela
supertecnologia arcônida, Rhodan instalou no deserto de
Gobi um novo poder político neutro. Após isso,
comandou a primeira expedição a Vênus, que descobriu
a fortaleza situada no norte. As instalações inteiramente
automatizadas e positronizadas levavam uma vida
autônoma. O grande cérebro robotizado dirigia a defesa
das fortificações segundo uma programação
antiquíssima. Rhodan foi o único que conseguiu regular
sua frequência cerebral de tal maneira que o cérebro
reagisse melhor aos seus comandos que aos de um
arcônida.
Vários anos de evolução terrena e de expedições
importantes nas áreas interestelares fizeram com que o
planeta Vênus, com sua fortaleza, recuasse para o
segundo plano do interesse público.
Mas no Bloco Oriental surgiu um grupo de
conspiradores que resolveu ignorar os acordos
celebrados com Rhodan, dando causa a novas
complicações.
Grande número de naves espaciais russas decolou em
direção a Vênus, para transformar o planeta numa
colônia do Bloco Oriental.
O empreendimento não foi bem sucedido. Enquanto
na Terra as divergências políticas puderam ser reduzidas
a uma medida tolerável, a expedição de conquista
comandada pelo general Tomisenkow foi se
transformando numa farsa. Não conseguiu se aproximar
do cérebro positrônico instalado em Vênus. O
combustível das naves espaciais fora suficiente apenas
para a viagem de ida. Uma frota de abastecimento foi
dizimada em virtude de um choque casual com a nave de
Rhodan; quando atingiu Vênus, perdera grande parte de
suas naves.
Os russos transformaram-se em prisioneiros de
Vênus. Levaram uma vida selvagem. A expedição
desagregou-se. Grupos de rebeldes separaram-se do
grosso da tropa que se mantinha fiel ao comando de
Tomisenkow. Alguns fanáticos paranoicos, como o
tenente Wallerinski, acreditavam chegada a hora de
implantar um novo tipo de pacifismo, que teria que ser
imposto pela força das armas.
Muitas vezes Marshall refletira sobre a provável
situação estratégica no planeta Vênus. Mas tudo não
passava de suposições. Só de uma coisa tinha certeza: o
general Tomisenkow conseguira reunir os remanescentes
de suas tropas numa poderosa unidade. Era só a ele que
devia temer, pois suas patrulhas grudavam-se nos seus
calcanhares. Por duas vezes nos últimos dias mal e mal
conseguira escapar aos seus perseguidores.
As forças desagregadas, como as dos pacifistas
comandados pelo tenente Wallerinski, também poderiam
se tornar perigosas. Mas só por acaso poderia haver um
76
encontro com elas em meio à amplidão daquelas
florestas e estepes.
Mas as preocupações da equipe de Perry Rhodan não
eram apenas estas.
Foi só pela obstinação da arcônida Thora que se
viram nessa situação complicada. Há anos Thora
empenhava-se pelo regresso ao mundo distante de
Árcon. Diante da falta de compreensão de Rhodan,
apoderou-se de uma nave espacial terrestre e,
acompanhada unicamente de um robô, decolou em
direção a Vênus. Na pressa se esqueceu do sinal
codificado de identificação, motivo por que a barreira
instalada pelo cérebro positrônico frustrou seus planos.
Perry Rhodan, que não pensara em outra coisa senão na
imediata perseguição de Thora, teve destino igual ao
dela.
Ambas as naves viram-se detidas pelo campo
energético, que protegia a fortaleza num raio de
quinhentos quilômetros. Suas naves caíram e, de uma
hora para outra, viram-se numa situação igual à do corpo
expedicionário russo. Thora logo fora aprisionada por
Tomisenkow, e Rhodan ainda não conseguira libertá-la.
Mais do que isso, durante um combate noturno foi
atingido no ombro, o que o pôs fora de ação por algum
tempo. Não estava em condições de realizar marchas
prolongadas. Por isso só o mutante Son Okura, que tinha
problemas de locomoção, permanecera em sua
companhia.
Marshall recebera uma missão especial, que o levara
à selva inteiramente só, e o obrigava a atingir o litoral do
mar do norte.
Estacou. A debilidade física acelerava a transpiração,
obrigando-o a recorrer, com frequência cada vez maior,
ao lenço para enxugar o suor.
Valeria a pena?
Lançou um olhar aflito para a pulseira de múltipla
finalidade, que entre outros equipamentos incluía um
potente minitransmissor. Mas Perry Rhodan havia
proibido expressamente o uso do rádio quando houvesse
possibilidade de ser ouvido e localizado pelo
goniômetro.
A missão especial também se ligava a um encontro
havido há vários anos. Naquela oportunidade, a equipe
de Rhodan encontrara na costa oriental do braço de mar
de trezentos e cinquenta quilômetros de largura uma
espécie de focas semi-inteligentes, cuja mentalidade
inspirava bastante confiança.
Depois que Rhodan fora ferido no ombro, os
quinhentos quilômetros de marcha que o separavam da
fortaleza de Vênus transformaram-se num infinito.
Mesmo que a cura fosse rápida, era provável que, por
mais algumas semanas, a ferida constituísse um sério
fator negativo para o chefe da Terceira Potência. Para
sobreviver a esse tipo de provação, o homem deve gozar
de boa saúde.
Nessa situação, a melhor ideia que poderia ter
acudido àqueles homens era a das focas. Se é que alguém
poderia prestar um auxílio, seriam elas. E se havia
alguém que pudesse entrar em contato com elas, era o
telepata John Marshall, que atingiu o mar pelas noventa e
quatro horas.
Quando saiu da vegetação, estacou subitamente. À
súbita visão do mar, ficou desconfiado, pois o
subconsciente já lhe incutira a ideia de que nunca
atingiria seu destino. Mas pôs-se a correr. A praia estava
coberta de juncos que iam até a altura dos joelhos.
Seguia-se uma faixa de areia amarelenta e limpa. E
depois vinha a água. Marshall só parou quando sentiu a
mesma tocar seus tornozelos.
As focas!
Procurou se concentrar. Colocou todo o desespero de
sua situação no grito telepático de socorro. Depois de
dois minutos se descontraiu. Seu cérebro assumiu uma
atitude passiva, sintonizando-se para a recepção.
As impressões que penetraram nele eram mais que
assustadoras.
O ambiente aparentemente morto estava cheio de
vida. Essa vida ocultava-se nos juncos e na água. E
pensava. Eram pensamentos inumanos. Situavam-se
muito abaixo do nível de inteligência compreensível.
Não passavam de uma série de emoções, de reações
instintivas situadas num primitivo nível animalesco. Não
tinham a clareza de uma fórmula matemática; antes,
deixavam o campo livre para as interpretações, como
uma pintura abstrata. Apesar disso Marshall acreditou
poder extrair de tudo isso uma interpretação inteligível.
Teve de compor essa interpretação com um misto de
ganância, inveja, fome e agressividade. Era o concerto
oferecido pelas almas das criaturas mais baixas. Os tons
provenientes das criaturas mais desenvolvidas, das focas,
achavam-se ausentes.
Decepcionado, Marshall esteve a ponto de abandonar
o exercício cansativo da concentração. Subitamente,
porém, um sinal de alarma soou em seu cérebro. Um
pensamento concebido numa mente humana surgiu
dentro de seu círculo de alcance. Era um pensamento
mortífero, vindo da costa.
Por pouco não deu um salto e saiu correndo. Mas
lembrou-se em tempo que naquela situação sua vida
dependia de sangue-frio. O pensamento girava em torno
do ato de matar. E a intenção era tão nítida que até
mesmo a vítima, John Marshall, estava perfeitamente
fixada.
“É o espião da Terceira Potência, o lacaio de
Rhodan. Há dias você anda fugindo de nós. Mas agora
chegamos ao mar e você não poderá prosseguir. Você
tombará morto. Não merece nossa compaixão. Devia
chamá-lo. Devia mostrar-lhe o cano da arma e o fogo,
mas acontece que você é um dos homens de Rhodan. E
com estes não se deve assumir o menor risco.”
Marshall sabia que atrás dele, na orla da floresta,
existia uma mira, e que naquele instante sua omoplata
esquerda dançava diante da mesma. O homem apontava
a arma para seu coração... Assim que se virasse, o tiro
seria disparado.
Não se virou: atirou-se na água.
Naquele lugar a água era tão rasa que não cobria seu
corpo. Mas os juncos que cresciam na praia ofereciam
certa proteção.
No momento em que se deixou cair o tiro foi
disparado, mas o projétil passou por cima dele.
O pensamento que surgiu a seguir na orla da floresta
foi uma ideia de pânico.
O assassino já não via sua vítima e pensou em fugir.
A reação de Marshall despertou reações supersticiosas
em sua mente. Mas logo o temor dos superiores e o medo
da selva venusiana interpuseram-se nestes fragmentos de
ideias.
77
“Preciso matá-lo! Preciso matá-lo, senão nunca mais
conseguirei viver tranquilo perto de Tomisenkow.”
John Marshall rastejou pela água rasa, rolou até a
margem e se escondeu entre os juncos, onde permaneceu
imóvel.
“Os Rhodan são feiticeiros! O medo é de
enlouquecer. Só quando todos os Rhodan estiverem
mortos teremos sossego e poderemos dormir sem
pesadelos. Preciso matá-lo!”
A ideia foi se aproximando, e com ela o assassino.
Também se atirara ao solo, abrigando-se nos juncos para
lançar seu ataque. Mas a atividade de seu cérebro traiu
sua posição. Ergueu a cabeça por cima dos juncos.
Marshall conhecia a direção. Bastou-lhe girar sua arma
por um centímetro para a esquerda e apertar o gatilho.
Quando se levantou e foi para junto do inimigo, só
encontrou um morto.
— É estranho! Dizem que somos os Rhodan, quando
só existe um homem que usa este nome.
Marshall sabia que estava só. Caminhando ereto,
dirigiu-se para a vegetação protetora da selva. Um
sorriso brincava em torno de seus lábios. Era um sorriso
de orgulho. Na terminologia do inimigo, também ele era
um Rhodan.
III
O General Tomisenkow transferira seu quartel-
general para um ponto situado cinquenta quilômetros a
leste. Estava situado num planalto que se erguia em meio
à selva com uma vegetação escassa. Isso facilitava sua
defesa no caso de um ataque lançado por um dos grupos
rebeldes. Era bem verdade que na selva encontraria um
esconderijo melhor. Mas não estava muito interessado
em ficar sem ser reconhecido. Todos sabiam que se
instalara nessa área. E todos sabiam que a tropa que se
mantinha fiel a ele era numericamente superior a todas as
outras. E essa superioridade colocava-o numa posição
em que não precisava temer um confronto aberto.
As barraquinhas e cabanas de plástico emergiam em
meio à vegetação de pouco menos de dois metros de
altura. Todo o perímetro do acampamento estava
protegido por uma linha compacta de sentinelas.
De seis em seis horas a senha era modificada, o que
dificultava bastante a infiltração de rebeldes. A patrulha
que fora mandada no encalço do telepata John Marshall
era composta de apenas doze homens e não dependia da
senha. Tomisenkow conhecia pessoalmente cada um
desses homens.
Subitamente o sargento Kolzov viu um pano branco
que se erguia em meio à vegetação.
— Senha!
— Sou o tenente Tanjev do comando avançado.
Preciso falar com o general.
— Levante os braços! Pode passar.
Um homem se levantou de um salto e se aproximou
com os braços erguidos.
— Está bem, tenente. Vá na direção daquele arbusto
redondo. O general mora à esquerda. Há alguma
novidade?
— Não ouvi sua pergunta, Kolzov. Preciso falar com
o general, não com o senhor.
O tenente Tanjev tinha o aspecto de um soldado sadio
que há vários dias se mantinha numa atividade
ininterrupta. E isso correspondia aos fatos. Tomisenkow
recebeu-o sem demora. Ao entrar fez uma continência
impecável.
“Os homens ainda estão em boas condições”, pensou
Tomisenkow satisfeito. Recebeu Tanjev com um sorriso
benévolo, atrás do qual se ocultava a curiosidade.
— Vejo que ainda está vivo, tenente. Quais são as
novidades?
— Aquele homem chegou ao mar, general.
— Que homem?
— Como sabe, há quatro dias houve uma batalha de
rebeldes ao sul do planalto. Conforme constatamos, pelo
menos três elementos da Terceira Potência participaram.
— Isto são fatos conhecidos, tenente — interrompeu
o general. — Acho que veio trazer alguma novidade.
— Pois um desses homens foi sozinho em direção ao
leste, e saímos em sua perseguição conforme nos foi
ordenado.
— Foram instruídos para matá-lo ou trazê-lo para cá.
Já conseguiram?
O tenente Tanjev hesitou.
— Ainda não conseguimos capturá-lo, general. Não é
fácil agarrar um homem só, quando o mesmo esteja
prevenido.
— Quem poderia tê-lo prevenido? Em Vênus quase
não há gente.
— O soldado Lvov cometeu um erro. Correu à frente
do grupo por conta própria. Não gosto de pôr a culpa nos
mortos.
— Quer dizer que Lvov está morto?
— Sim, general. Encontramos seu cadáver na praia.
— Quer dizer que aquele homem solitário do grupo
de Rhodan foi o elemento mais capaz. Será que nem com
uma superioridade de doze para um e com todas as
vantagens estratégicas o senhor está em condições de
cumprir uma missão destas?
A benevolência desapareceu por completo do rosto
de Tomisenkow.
— Por que veio até aqui, tenente? Para anunciar seu
fracasso?
— Vim pedir reforços, general. Atingimos o mar e,
para estarmos seguros, devemos controlar pelo menos
dez quilômetros de costa. Além disso, julgo necessário
que cada grupo seja composto ao menos de três homens.
Precisamos dessa superioridade, que na verdade nunca
passará de uma inferioridade.
— O que quer dizer com essa frase contraditória,
tenente?
Tanjev voltou a hesitar.
— General, o senhor sabe perfeitamente o que andam
contando por aí...
— É aquela história do gigante e do feiticeiro, não é?
— disse Tomisenkow em tom áspero. — Não venha me
dizer que vai falar seriamente nos termos das fantasias
propagadas pelas revistas de fim de semana. Se o grupo
comandado pelo senhor é composto de gente ingênua,
mandarei recolhê-lo ao acampamento e o substituirei por
uma tropa composta de gente adulta.
— Às ordens, general! Cumpriremos nosso dever.
Mas acho que os reforços são indispensáveis.
— Por causa dos dez quilômetros de costa?
— Sim, general — respondeu Tanjev em tom
78
submisso.
— Muito bem; o senhor os receberá. Tomisenkow
escreveu um bilhete.
— Apresente isto ao coronel Popolzak e escolha os
melhores elementos. Espero que da próxima vez que se
apresente possa comunicar uma ação bem sucedida.
Obrigado.
— Obrigado, general. Mais uma pergunta. A
suspensão das comunicações pelo rádio continua de pé?
Num caso urgente uma mensagem radiofônica será mais
apropriada...
— Pode retirar-se, tenente — interrompeu
Tomisenkow. — Darei novas instruções quando julgar
conveniente. A suspensão continua de pé. Tenho motivos
para isto.
Dali a uma hora o tenente Tanjev saiu do quartel-
general, acompanhado de vinte e cinco soldados.
Durante essa hora o general não quis falar com
ninguém. As informações de Tanjev levaram-no a
refletir, embora não o reconhecesse perante os outros.
Ele mesmo achara instintivamente que havia algo de
verdadeiro naqueles boatos que nunca silenciavam. Mas
não havia nada de tangível. Era apenas o milagre dos
êxitos de Perry Rhodan e da Terceira Potência, que já se
prolongavam por dez anos. Devia haver alguma
explicação para o fato.
Pensou em Thora, a arcônida aprisionada. E no robô
R.17, que nunca saía de seu lado.
Sua mão se fechou. Deu uma pancada na mesa de
lona e despedaçou-a. Nem por isso sua exaltação
diminuiu.
Dirigiu-se à saída da barraca.
— Coronel Popolzak — gritou em meio ao
amanhecer de Vênus.
O coronel engatinhou para fora da barraca vizinha.
— Às ordens, general.
— Venha cá! Preciso de cinco homens de absoluta
confiança.
— Pois não. Logo os mandarei.
— Deixe-me terminar! Não quero ver estes homens.
Ninguém deve vê-los. Daqui a pouco darei um passeio
com a prisioneira, fora do acampamento.
Tomisenkow explicou mais alguns detalhes e dirigiu-
se à cabana que abrigava Thora e seu robô.
— Olá, miss Thora. Posso entrar?
— Ah, é o general. Desde quando resolveu praticar a
cortesia?
Saiu da cabana e, num gesto de desafio, atirou seu
longo cabelo branco para a nuca. Tomisenkow evitou o
olhar zombeteiro de suas pupilas avermelhadas. Esse tipo
de duelo com aquela mulher sempre o deixara irritado.
— Quero convidar a distinta senhora para um
passeio. Acho que concordará em desfrutarmos juntos
esta linda manhã de Vênus.
— Vamos — respondeu Thora numa surpreendente
concordância. — Deve ter um estoque daqueles assuntos
com que costuma me entreter de forma tão agradável.
Tomisenkow sabia perfeitamente que até então
nenhum dos assuntos por ele abordados havia sido do
agrado da arcônida. E o assunto a ser tratado hoje seria
ainda mais desagradável. A malícia voltou a animá-lo.
— Aguarde a surpresa, madame.
— Estou certa de que conseguirá surpreender-me,
general. Por exemplo, esse canhão que traz nas costas...
Tomisenkow trazia um fuzil a tiracolo.
— Talvez tenhamos que penetrar em terreno difícil.
Não preciso explicar à senhora, que conhece
perfeitamente as condições reinantes em Vênus, que
certos animais podem se tornar bastante perigosos.
— Em minha opinião, o R.17 será suficiente.
— Talvez seja suficiente para proteger a senhora.
Mas estou convencido de que não moverá um dedo se
alguma coisa acontecer a mim. Por isso, peço-lhe que
deixe por minha conta a escolha da maneira pela qual
vou proteger minha pessoa.
As sentinelas postadas na saída do acampamento
fizeram continência quando Thora, o general e R.17
passaram diante deles.
— Por que vamos nos afastar tanto? — perguntou a
arcônida de repente. Estaria desconfiando de alguma
coisa?
Tomisenkow conseguiu esboçar um sorriso.
— Não se preocupe madame. Não nos afastaremos
do acampamento mais que a distância de um tiro. Se
estiver entrevendo a ideia de fugir com o auxílio de seu
amigo artificial, ou mesmo de fazer algum mal à minha
pessoa, deixe que eu a previna em tempo. Quero lhe falar
a sós.
— Isso poderia ser feito na barraca do senhor.
— Deixe a decisão por minha conta. E procure se
concentrar para dizer a verdade, no seu próprio interesse.
— Devo interpretar isso como uma ameaça?
— Sinta-se ameaçada enquanto não obedecer às
minhas ordens. Conte alguma coisa sobre seus mutantes.
— Sobre quem?
— Sobre seus mutantes. Refiro-me àquelas pessoas
misteriosas, sobre as quais a imprensa mundial andou
publicando uma porção de tolices. Acontece que deve
haver algo de verdadeiro em tudo aquilo. Sabe
perfeitamente que dependemos um do outro. O próprio
Rhodan dificilmente terá uma chance na selva de Vênus.
Deixou sua superioridade técnica em casa. E antes que
atinja a fortaleza do norte seu corpo apodrecerá nos
pântanos.
— No entanto, o senhor acredita nos mutantes.
Admitamos a hipótese de que estes realmente existem.
Neste caso a superioridade de Rhodan não seria imensa?
Mesmo sem os recursos tecnológicos? Ainda acontece
que o senhor se engana ao acreditar que Rhodan veio a
este planeta em minha companhia.
— Rhodan está aqui! — disse Tomisenkow em tom
áspero. — Não adianta negar.
— O que acabo de lhe dizer é a verdade, general. O
que adiantaria ratificar a mesma? Ao que parece está
mais bem informado sobre o paradeiro de Rhodan do que
eu. Se ainda se encontra na Terra, ele me tirará daqui
antes que se passe mais um dia de Vênus.
— Pois antes que esse dia de Vênus chegue ao fim,
teremos atingido as montanhas do norte. E assim que
estivermos de posse da fortaleza, tenho todo o planeta
sob meu controle. Se os planos secretos da senhora
preveem outra coisa, só posso ter pena, madame. Se unir-
se a mim, levará o tipo de vida que lhe agrada. A outra
alternativa seria continuar a ser minha prisioneira para
sempre. E posso lhe assegurar que disponho de meios
para tornar sua vida bastante desagradável.
— Não tenho a menor dúvida. Toda vez que me diz
uma coisa desagradável, suas palavras correspondem à
79
verdade. Acho que devemos voltar general. Nossa
palestra é inútil.
— E os mutantes?
— Conheço os mutantes da Terceira Potência —
disse Thora. — Alguns deles sabem ler pensamentos.
Outros podem influenciar os pensamentos de alguém. Os
chamados teleportadores transferem-se de um lugar para
outro por força do pensamento. A qualquer momento
encontram-se no lugar em que querem estar. Se eu fosse
uma teleportadora, poderia chegar à fortaleza de Vênus
dentro de dois segundos.
— Rhodan é um mutante?
— Isso seria novidade para mim. Por que diz isso?
— Enviei uma patrulha que o vem perseguindo há
dias. Rhodan já atingiu a grande baía do mar do norte.
Está numa armadilha. Admitamos que não seja um
mutante. Neste caso posso ter certeza de pôr as mãos
nele dentro de dois dias terrestres.
Thora não deixou perceber quão profundamente a
notícia que Tomisenkow acabara de dar-lhe a comovia.
Embora ao sair da Terra praticamente tivesse fugido de
Rhodan, acreditava que este seria o homem mais
indicado para libertá-la. Depois que seus planos se
frustraram com a queda sobre a selva de Vênus, já estava
arrependida no seu íntimo da sua ação precipitada.
— Se acredita que ele se instalou em algum lugar da
costa do mar do norte, vá buscá-lo. Não posso impedi-lo.
Naquele instante um tiro foi disparado nas
proximidades. Uma bala ricocheteou e, assobiando, foi
bater contra a rocha.
— Proteja-se! — gritou o general, mas correu mais
uns vinte metros antes de se atirar ao solo.
Thora desapareceu imediatamente. Mas o robô
continuava de pé e enviou um breve raio energético para
a floresta, que logo começou a arder.
Seguiu-se uma salva de tiros de armas manuais.
Era evidente que o ataque se dirigia exclusivamente
contra a arcônida, pois o fogo se concentrou sobre o
lugar em que se abrigara.
No mesmo instante o robô saltou para frente.
Ninguém acreditaria que pudesse ser tão ágil. Seu
corpo foi cercado por uma camada tremeluzente, que
parecia de ar quente.
“Será um campo energético?”, foi à pergunta que
acudiu a Tomisenkow.
Pouco importava! Segurou o fuzil por baixo do braço
e colocou um projétil superdimensional no cano; parecia
uma granada de fuzil.
R.17 havia procurado um abrigo. A floresta foi
coberta por um fogo energético ininterrupto. Logo depois
os tiros das armas convencionais cessaram. O general
completou a pontaria. Puxou o gatilho. O campo
energético do robô revelou-se impotente contra a granada
atômica.
R.17 volatilizou-se numa ligeira nuvem
incandescente.
Poucos segundos depois Tomisenkow encontrava-se
ao lado de Thora.
— Paço votos de que a senhora tenha passado sã e
salva por tudo isso, madame. Posso ajudar?
O tom de voz e as palavras do general deixaram a
arcônida ainda mais confusa. Não conseguiu dissimular o
choque. R.17 ainda representava certo apoio moral para
ela, mesmo como prisioneira. O ataque parecera
verdadeiro. Mas quando ouviu as palavras de
Tomisenkow percebeu que se deixara cair numa
armadilha.
Ignorou a mão que se estendia em seu auxílio e
levantou-se sozinha.
— O senhor é um homem ordinário! Thora estava
furiosa.
Isso fez com que Tomisenkow gozasse seu triunfo
com mais intensidade. E nem desconfiava de que na boca
daquela mulher a palavra homem representava uma
ofensa muito grave.
— Vamos voltar madame. Imagino que a perda de
seu protetor metálico deve tê-la atingido profundamente
e que a continuação do passeio não constituirá um bom
descanso. Vá para a cama e descanse um pouco.
— Isso o senhor me paga, general.
— Por que justamente eu?
— O senhor não vai querer negar que essa manobra
infame foi tramada pelo senhor.
— É claro que não. A senhora dá provas de sua
elevada inteligência por ter descoberto isso tão depressa.
Saiba perder esportivamente, madame.
Thora cuspiu diante dele. Vira algum homem fazer
isso e pouco se importou com o fato de que um gesto
desse tipo não ficava muito bem para uma dama. Aliás,
não tinha o menor interesse em guardar as formalidades
terrenas. Quando se enfurecia, perdia toda inibição.
Tomisenkow já conhecia sua prisioneira há bastante
tempo; sabia que, enquanto ela se encontrasse nesse
estado, não seria fácil conversar com ela. Sem dizer uma
palavra deu-lhe as costas e se dirigiu ao acampamento.
Cem metros atrás dele Thora passou pela sentinela. Um
soldado seguiu-a a certa distância para verificar se
realmente se recolhia à sua cabana.
O general mobilizou um grupo que se pôs a controlar
o incêndio da floresta. O estoque de extintores a seco era
muito reduzido, mas foi suficiente para manter o fogo
sob controle. A flora suculenta de Vênus não era um
combustível muito eficiente. Naquele planeta não se
conheciam secas prolongadas que permitissem o
ressecamento das florestas e das estepes.
Tomisenkow era de uma obstinação proverbial.
Voltou a se dirigir a Thora para perguntar sobre os
mutantes.
— Fora, seu bárbaro! — gritou Thora e respirou
profundamente para amontoar novos insultos sobre o
russo. Mas o sorriso zombeteiro que seu rosto exibia
tirou-lhe a fala. Deu-lhe as costas e não disse mais uma
palavra.
O general usou uma linguagem mais gentil.
— Em certa oportunidade a senhora me ameaçou,
dizendo que o R.17 poderia destruir toda a tropa sob meu
comando. Levei suas palavras a sério. Será que vai me
dizer que tudo não passava de um blefe inocente?
Thora não respondeu.
— Pois bem, seja o que quiser! — resmungou
Tomisenkow. — Não acredite que continuarei disposto
por toda vida a prestar contas à senhora. A senhora me
ameaçou, e eu nunca ocultei o fato de que para mim o
robô representava um obstáculo. Fui mais rápido, e a
senhora se encontra sob meu poder, mais que antes.
Ainda dispõe de duas horas para descansar. Depois
levantaremos o acampamento e marcharemos na direção
nordeste. A fortaleza de Vênus cairá. Não tenha a menor
80
dúvida. E quem assumirá a herança de seus antepassados
arcônidas serei eu, só eu. Com a senhora ou sem a
senhora, pouco importa.
Não obteve resposta. Depois de algum tempo saiu,
dando de ombros.
Ao passar pela praça central do acampamento, viu a
tábua negra colocada junto aos alojamentos da
companhia de prontidão. Popolzak mandara afixar outro
papel em que estavam escritos os nomes dos cinco
homens tombados no combate contra o R.17.
Tomisenkow procurou reprimir a indagação sobre a
finalidade dessa ação. Quando entrou em sua barraca
sentia dor de cabeça.
* * *
Dali a cinco horas terrestres seu pequeno exército se
encontrava em marcha. A gravitação pouco intensa de
Vênus tornava mais fácil aos homens carregar os
preciosos equipamentos e os mantimentos que
conseguiram salvar do pouso malogrado. Não era muito,
se comparado com aquilo de que precisariam nos
próximos meses. Tanto mais avarentos seriam no trato do
que lhes restava. Quem deixasse para trás qualquer coisa,
por desleixo ou comodidade, era chamado a prestar
contas. Neste ponto as ordens de Tomisenkow eram
inequívocas.
Há meses fora realizado um levantamento da
situação. Dali em diante as vistorias e os controles eram
realizados a curtos intervalos. Todo fósforo, todo pacote
de alimento desidratado, todo cartucho era registrado.
Quem disparasse um tiro tinha que dar contas e
apresentar um relatório.
As unidades de vanguarda e de retaguarda eram as
que conduziam menos carga. Deviam ser dotadas de
maior grau de mobilidade. De cada vez que Tomisenkow
fazia sua tropa empreender uma marcha mais
prolongada, para transferir seu quartel-general mais um
pedaço para o nordeste, voltava a surgir à indagação se
sua disposição otimista se justificava face à força de
combate de seu exército.
Nas baixadas pantanosas da selva não havia
possibilidade de manter a coluna bem unida. Às vezes a
vegetação era tão espessa que tinha de ser removida por
meio de granadas atômicas. Tratava-se de armas limpas,
cujo processo de fusão nuclear não causava qualquer
radiação perigosa. Mas sempre havia o perigo de um
incêndio na floresta. Assim a utilização das granadas
atômicas tinha de ser reduzida a um mínimo, face à
pequena reserva de substâncias extintoras de que
dispunham.
O caminho aberto pelas primeiras unidades tinha que
ser utilizado pelo restante da tropa. Por isso muitas vezes
a coluna se estendia por vários quilômetros.
Vista a situação sob esse ângulo, Tomisenkow não
tinha por que se orgulhar com o fato de que ainda
dispunha de cerca de meio regimento. Durante a marcha
sempre deixava um flanco exposto ao ataque até mesmo
de um inimigo mais fraco. E seria uma arrogância dizer
que um inimigo como Perry Rhodan era fraco.
Por isso Tomisenkow sempre se mantinha nas
proximidades de Thora. E ele o fez com tamanha
pertinácia que esta recuperou a fala. Deu a entender sem
rebuços que não gostava de sua companhia.
— Infelizmente não posso considerar seus
sentimentos. Preciso de um refém de que possa lançar
mão se Rhodan atacar. E se tiver a ideia de tirá-la à
força, devo ter a possibilidade de matá-la antes que isso
aconteça.
Tamanha franqueza chocou Thora, que se refugiou na
altivez que lhe era peculiar.
Eram cento e treze horas quando uma patrulha
comunicou ter achado uma carabina automática russa.
Um cabo apresentou a arma ao general.
— Descobrimos uma fogueira a cerca de três
quilômetros ao sul, general.
— Uma fogueira?
— Sim, general, uma fogueira apagada. A lenha
carbonizada já estava fria. Esta carabina estava oculta
sob o capim, embaixo de uma árvore. O pessoal deve tê-
la esquecido.
— E são nossos patrícios. É uma vergonha ver como
essa gente se perde quando não é mantida sob controle. É
o senhor que comanda a patrulha?
— Sim, general.
Antes que o cabo pudesse se dirigir ao coronel que
marchava a cinquenta metros dali, uma salva abafada de
armas de infantaria soou na selva próxima.
— Procurem uma cobertura! — gritou alguém. A
ordem era desnecessária. Num reflexo instintivo os
homens atiraram-se ao chão e viraram-se para a direita.
Enquanto caíam os fuzis foram empunhados
automaticamente.
Depois do primeiro ataque, o silêncio passou a reinar.
Até mesmo os pássaros de Vênus, que cantavam nas
copas das árvores, suspenderam seu concerto. Alguns se
afastavam, batendo ruidosamente as asas.
Outros estariam enfiando as cabeças sob as penas.
Alguns tiros foram disparados nas fileiras do grupo.
— Que diabo! — gritou Popolzak. — Só atirem
quando virem alguma coisa. Todo tiro deve acertar o
alvo.
A resposta veio em forma de uma rajada de
metralhadora disparada pelo inimigo desconhecido.
— São uns idiotas — resmungou Tomisenkow, com
o nariz dois centímetros acima do solo. — Com esta
vegetação não conseguem atingir um homem por um tiro
direto a uma distância de vinte metros. E esta folhagem
gosmenta come as balas como o mata-borrão come a
tinta. Oh, desculpe, madame!
Só agora o general percebeu que mantinha Thora
apertada contra o chão. Enquanto a mão direita segurava
a coronha da carabina automática, o braço esquerdo
enleava a nuca da arcônida como se fosse uma tenaz.
— Se machuquei a senhora não foi por querer. A
senhora é muito preciosa para que possa me arriscar a
perdê-la dessa forma. Aqueles rebeldes são os que menos
estão em condições de dizer quando a senhora deve
morrer. São piores que assaltantes. Posso ajudar em
alguma coisa?
— Solte-me e dê-me uma arma. Sei lidar com ela.
— Não tenho a menor dúvida — disse Tomisenkow,
esticando as palavras. Num gesto hesitante pôs a mão
para trás. Subitamente segurou uma pistola de seis tiros e
passou-a a Thora.
— Tenha cuidado, madame. Está carregada e só se
presta a uma luta corpo a corpo.
— Para mim basta — disse com uma expressão
indefinível no rosto.
81
IV
Son Okura, os visores de frequências que tinha
dificuldades de andar, e Perry Rhodan, chefe da Terceira
Potência, não formavam a equipe mais adequada para
uma marcha a pé em Vênus. Ainda mais quando o
objetivo ficava a nada menos de quinhentos quilômetros
em linha reta, e havia como obstáculo um braço de mar
de trezentos e cinquenta quilômetros de largura, que um
belo dia também teria de ser vencido.
Desde o início a dificuldade de andar de que padecia
Son Okura teve que ser incluída nos cálculos. A ferida no
ombro de Rhodan só surgira posteriormente, quando os
dois homens e John Marshall se viram envolvidos num
combate entre os rebeldes e os pacifistas do tenente
Wallerinski. Nem por isso Rhodan perdeu o bom humor.
Tratava-se de uma perfuração direta na altura da axila.
Nenhum osso e nenhum músculo importante haviam sido
atingidos. Os medicamentos arcônidas apressaram a
cura, mas apesar de tudo as pontadas e as coceiras que
sentia a toda hora convenceram Rhodan de que ainda não
se encontrava em plena forma.
— Deve se tratar!
As advertências de Okura eram obstinadas. Voltara a
construir uma cabana numa árvore, fechando o chão e as
paredes com trepadeiras e folhas largas. Para baixo a
camuflagem era completa.
— Estas cabanas montadas em árvores servem para
gente que saiba viver, mas não para pessoas que querem
ir para a frente — resmungou Rhodan, contrariado.
— Acho que estamos de acordo: resolvemos andar
seguros. Aliás, na situação desvantajosa em que nos
encontramos, não temos outra alternativa.
— Tenho minhas dúvidas; é bem possível que
estejamos participando de uma corrida. Se Tomisenkow
e Thora chegarem antes de nós à fortaleza escavada na
rocha, ninguém nos garante que não entrarão. Como
arcônida, Thora é portadora de um cérebro reconhecido.
— Acredita que ela nos trairia?
— Tanto faz que haja traição ou não. Os homens do
Bloco Oriental a têm nas mãos. Podem forçá-la.
— OK — disse Okura com um sorriso. — Estou
convencido de que ganharemos a corrida. Com toda
lentidão, ainda somos mais rápidos que o general
Tomisenkow. Não conseguirá arrastar seu exército pela
selva com a mesma rapidez dos corpos inválidos. Depois
do patrulhamento que realizei ontem, tenho certeza de
que os remanescentes do exército de Tomisenkow estão
bem próximos. Isso significa que já recuperamos algum
terreno e tenho certeza de que chegaremos à costa antes
dele. Quanto a Marshall, não há dúvida de que não
precisamos nos preocupar com ele.
— Gostaria de ter seu otimismo — disse Perry
Rhodan. — Acontece que não devemos pensar apenas
em termos táticos, mas também em termos estratégicos.
Você se esquece das relações mais importantes entre os
fatos.
— Não compreendo.
— Até aqui pensamos apenas nos homens com que
nos encontramos diretamente. Mas vamos começar do
início para descobrir as causas e o sentido de tudo aquilo.
— A causa de nossa presença neste planeta é a fuga
de Thora.
— Muito bem. Agora pense nos russos.
— O Bloco Oriental invadiu o planeta Vênus sob o
comando do general Tomisenkow. E nós lhes
atrapalhamos os planos. A divisão de Tomisenkow está
praticamente aniquilada. Ao que tudo indica só um
pequeno grupo de homens continua a obedecer suas
ordens.
— Continue. Mas não pense apenas nos desertores.
Deve haver mais gente na superfície de Vênus.
Son Okura refletiu.
— Gente do Bloco Oriental?
Perry Rhodan fez que sim.
— É claro que sim, meu caro.
— Está aludindo à frota de abastecimento? Bem, já
me lembrei disso. Deve estar lembrado de nosso
encontro com o sargento Rabov, que foi morto durante
um combate. Contou muita coisa, mas nunca aludiu ao
pouso da frota de abastecimento.
— Pois é justamente isso! Provavelmente o próprio
Tomisenkow não sabe nada a respeito disso. Mas tenho
para mim que essa frota deve ter pousado. O Bloco
Oriental mandou duzentas unidades. Destruímos trinta e
quatro quando o campo energético de nossa nave
atravessou, por coincidência, o centro da frota. É
possível que outras naves tenham sido destruídas durante
o pouso. Mas aposto que mais de cem veículos espaciais
conseguiram descer em Vênus.
Son Okura empalideceu.
— Santo Deus! Isso significaria...
Não foi necessário terminar a frase. Ambos sabiam o
que isso significava. Em algum ponto de Vênus devia
haver outra tropa, que dispunha de um equipamento
muito melhor.
— Não há dúvida de que a frota de abastecimento se
destinava ao general. O fato de que até hoje não se
apresentou a ele — prosseguiu Rhodan em tom
indiferente — apenas prova que também este clube
declarou sua independência. A independência parece
grassar em Vênus como uma epidemia.
Não falaram mais no assunto, embora fosse muito
interessante. Seus planos previam um repouso de seis
horas. E no momento a restauração das forças era mais
importante que todas as especulações estratégicas.
Durante a marcha teriam tempo para as mesmas.
* * *
Dormiram o tempo previsto e puseram-se a caminho.
Okura já não saberia dizer quantas cabanas construíra
nas árvores de Vênus. Tornara-se mestre nessa arte. As
construções iam ficando cada vez melhores e mais belas.
Apesar disso tinham de ser abandonadas para sempre.
Falavam nesses pequenos aspectos sentimentais
quando enjoavam de conversar sobre os grandes
problemas. Geralmente calavam-se de vez depois que os
primeiros quilômetros de marcha chamavam à sua
lembrança o fato de que o planeta Vênus com suas selvas
representava uma provação interminável.
No dia seguinte — por uma questão de hábito
costumavam contar o tempo pelo calendário terrestre —
ouviram tiros. Rhodan, que ia à frente, parou
imediatamente. Antes que pudesse dizer qualquer coisa,
ouviu-se outra salva.
— É uma batalha. Pelos meus cálculos é bem ao
norte.
82
— Só pode ser no norte, pois é lá que Tomisenkow se
encontra.
Seguiu-se a detonação de uma bomba ou de uma
granada. Depois disso o silêncio voltou a reinar.
Esperaram mais quinze minutos. Mas o tiroteio não se
repetiu.
— O que acha Son?
— Devem ter montado acampamento. Numa posição
defensiva vai ser fácil para eles repelir os ataques de
Wallerinski.
— Quem sabe se foi Wallerinski.
Formularam outras suposições, que não se
aproximavam da verdade. Não sabiam que o general
Tomisenkow acabara de destruir o robô R.17.
— Vamos ficar mais à esquerda — decidiu Rhodan.
— Estamos a uma distância muito grande do pessoal do
Bloco Oriental. A prudência não deve ser exagerada.
— A prudência nunca pode ser exagerada —
declarou Okura.
A lição fez o chefe sorrir.
— É claro que não. Ainda existe a possibilidade de
que alguém possa precisar de nós. Thora, por exemplo.
O plano de Rhodan foi executado. Depois de
percorridos outros dez quilômetros, uma cabana foi
construída numa árvore e ocupada imediatamente. Antes
de dormir fizeram as tentativas rotineiras de estabelecer
contato pelo rádio com Bell. Operavam obstinadamente
as antenas escamoteáveis do tamanho de uma agulha.
Mas tal qual nos dias anteriores, a Good Hope-V não
respondeu.
— A chave secreta X — resmungou Rhodan. —
Parece que é muito eficiente.
— Ou então Bell já regressou à Terra.
— Prometeu exatamente o contrário. Seja como for,
dependemos exclusivamente de nós mesmos. Boa noite,
Son.
— Boa noite, chefe.
* * *
Desta vez o tiroteio os despertou. Okura logo sentiu a
mão de Rhodan, que se colocara em seu braço num gesto
de advertência.
— Fique quietinho, rapaz! Estão bem à frente da
nossa porta.
Realmente parecia que os tiros estavam sendo
disparados bem embaixo da árvore. Mas era uma ilusão.
A abóbada de folhas, formada pelas árvores de cerca de
cinqüenta metros de altura, produzia efeitos acústicos
perturbadores.
Espiaram pelas folhas da cabana.
— Não vejo nada — disse Okura.
— Com a visibilidade de que dispomos isso seria
muito difícil — resmungou Rhodan em tom nervoso. —
Gostaria de saber... ora, é lá!
Apontou com o dedo. Seu companheiro já havia visto
o movimento. Eram homens que se deslocavam entre a
vegetação rasteira, a uns cem metros de distância.
Mais alguns tiros foram disparados. De início eram
isolados. Mas logo se seguiu uma salva.
— A batalha está sendo travada mais à esquerda, pelo
menos a quinhentos metros daqui. Mas aquilo que se
mexeu lá embaixo foi um homem.
— É claro que foi. Vi uma cabeça.
— Muito bem. Vou dar uma espiada.
— Fique aqui, chefe; será...
Rhodan interrompeu-o com um gesto.
— Não farão coisa alguma comigo. Sei me cuidar.
Fique aqui e mantenha nossa posição. Aconteça o que
acontecer, não se traia com um tiro. Aquilo que fica por
ali quando muito é o alojamento de um grupo de
rebeldes. Mas quem sabe se essa gente não tem alguma
comida para nós. Temos necessidade premente de um
reabastecimento de munições e mantimentos.
Son Okura estava acostumado a obedecer. Limitou-se
a confirmar com um aceno de cabeça.
Perry Rhodan desceu pela borda da plataforma. Se
não descesse muito depressa, o risco de ser descoberto
não seria grande. A folhagem densa das trepadeiras que
parasitavam as árvores fornecia-lhe uma excelente
cobertura, que descia até o solo.
Teve que descer uns vinte metros. Para aliviar o
ombro direito, colocou quase todo o peso do corpo sobre
a mão esquerda.
Chegou ao solo sem ser visto, e aqui a visibilidade
ainda era menor. Mas lembrava-se da direção que devia
seguir e foi avançando. A batalha certamente desviaria a
atenção daquela gente. Nos alojamentos dos rebeldes
ninguém consideraria a possibilidade de que alguém
pudesse se encontrar nas suas costas. Um perigo maior
que o dos soldados desertores poderia provir dos animais
de Vênus, e Rhodan teve bastante juízo para dedicar sua
atenção também à vizinhança imediata.
Ao que parecia o destino resolvera ajudá-lo.
Conseguiu se desviar das lagartas, dos besouros e das
borboletas que dançavam no ar. Poderiam ser venenosas,
mas não se interessavam por ele. Um ataque partido dali
seria pura coincidência.
As trepadeiras representavam um obstáculo mais
difícil. Às vezes formavam uma verdadeira cerca viva.
Teve que se espremer entre elas, e por vezes via-se
obrigado a dar ao seu corpo a configuração de uma
cobra. Se quisesse cortar aquela vegetação resistente,
gastaria muito tempo. Além disso, as plantas poderiam
estar submetidas a uma espécie de tensão estática. Nos
dias anteriores Rhodan via várias vezes uma trepadeira
cortada chicotear o ar com um silvo, como a corda
retesada de um arco de atirar. O barulho poderia traí-lo.
E se um homem recebesse um impacto pouco feliz, isso
poderia significar a morte.
Quando se encontrava a uns trinta metros do
acampamento, fez uma pausa prolongada. As mãos e o
rosto estavam arranhados. Pegou o lenço e enxugou o
suor que lhe penetrava nos olhos; viu que havia sangue
misturado ao mesmo.
Apenas uns arranhões e alguns pedaços de pele
esfolada, foi o comentário silencioso que a descoberta
provocou nele. Mas atrás desse comentário ocultava-se
uma pergunta menos animadora. A selva misteriosa de
Vênus poderia ser tratada com tamanho desdém? Era
bem verdade que nos últimos anos, os botânicos haviam
esclarecido muita coisa a respeito da flora de Vênus. Mas
só uma fração reduzida das espécies existentes pôde ser
classificada e determinada segundo seus componentes
químicos. Qualquer espinho aparentemente inofensivo
podia trazer em si o germe da morte.
Rhodan fez um esforço para se libertar dessas idéias.
Concentrou-se sobre os homens que se encontravam à
sua frente.
83
Há anos falava um russo excelente; por isso não teve
a menor dificuldade em acompanhar a conversa daqueles
homens. Era verdade que se mostravam bastante
lacônicos. Apenas mencionaram que estavam cansados e
achavam que o ataque de Wallerinski contra a tropa de
Tomisenkow era muito arriscado. O resto da conversa foi
conduzido em voz tão baixa que Rhodan não
compreendeu nada.
Teria que chegar mais perto.
Seus movimentos tornaram-se mais cautelosos e já
não avançava tão depressa. A intensidade do combate
que se travava à distância aumentara ainda mais e
dificilmente os rebeldes voltariam num breve espaço de
tempo, a não ser que Wallerinski sofresse uma derrota
grave e fosse levado de roldão pelas tropas de
Tomisenkow.
Finalmente Rhodan viu uma pequena clareira. Ou
melhor, um lugar em que o capim havia sido pisado. Não
tinha mais de vinte metros de diâmetro. Mas acima desse
lugar as copas das árvores fechavam-se numa cobertura
espessa, não deixando penetrar mais luz que em qualquer
outro lugar. As flores coloridas em forma de orquídeas
que as trepadeiras ostentavam pareciam abandonadas
naquela semiescuridão.
Rhodan viu cinco homens.
Quatro deles dormiam, ou ao menos estavam
estendidos no capim. O quinto, sentado, recostara-se a
uma árvore e fumava um cachimbo.
O equipamento que aqueles homens vigiavam
provocou a inveja de Rhodan. Pareciam dispor de uma
grande profusão de armas manuais; além de algumas
caixas, cujas inscrições eram bastante reveladoras, havia
ao menos umas quarenta ou cinquenta carabinas
automáticas jogadas embaixo de uma árvore, bem perto
do lugar em que Rhodan se encontrava.
— O presidente não devia ter tanta pressa com suas
concepções — disse um dos homens deitados no capim.
— Afinal, a ideia de impor a paz pela força nada tem de
original.
— Você tem umas ideias esquisitas — disse outro. —
Enquanto Tomisenkow não quiser a paz, nós temos que
lhe dar uma lição.
— Quer dizer que só poderemos ser verdadeiros
pacifistas quando todo mundo for?
— Que bobagem! Já somos verdadeiros pacifistas.
Até parece que você andou dormindo durante as aulas.
O homem que fumava cachimbo fez um gesto
aborrecido.
— Parem com essa conversa de adolescentes. No
momento só importa o que o presidente consegue fazer.
Esse tiroteio já está demorando demais. Quando um
ataque não dá certo no primeiro instante, vejo as coisas
pretas.
— Igor, você ainda vai se dá mal com esse tipo de
conversa. O presidente sabe o que quer. Deposito toda
confiança nele.
— O presidente se sentirá muito orgulhoso com isso,
Mitja. Mas sei perfeitamente que para ele você não passa
de um sabe-tudo. E o presidente não gosta desse tipo de
gente.
— Pense o que quiser. Ele gosta de mim conforme
desejo. Se estiver aludindo aos bons conselhos que lhe
dei, posso lhe assegurar que Wallerinski ficou muito
grato. O projeto da armadilha nas árvores será executado
assim que chegarmos ao rio.
— Não diga! Você conseguiu convencê-lo? Por que
resolveu atacar o general hoje?
— Pergunte a ele! De qualquer maneira meus
conhecimentos táticos bastam para que eu saiba que, por
aqui, uma armadilha nas árvores seria um jogo de loteria.
Mas no rio o general não poderá deixar de usar a
passagem situada acima das cataratas. Conforme deve
estar lembrado, do lado oposto existe um desfiladeiro
bem profundo. Terá que passar por lá. Basta que no
momento exato nos encontremos em cima das árvores
e...
— Calem a boca! — queixou-se outro dos homens.
— Se cada um de vocês quiser gritar mais que o outro, o
barulho fará com que as patrulhas de Tomisenkow
estejam aqui antes dos nossos companheiros. Mitja, você
está de sentinela. Abra os olhos e os ouvidos. E os outros
vão ficar deitados. Se não estiverem gostando, contem ao
presidente. Mas não me causem problemas.
O último dos interlocutores parecia ser um oficial
subalterno. De qualquer maneira possuía certa
autoridade. Perry Rhodan não gostou nem um pouco.
Enquanto os homens conversavam, se distraíam. Mas
agora o menor ruído poderia revelar sua presença.
De outro lado, porém, o barulho produzido pelas
criaturas que habitavam a floresta ainda poderia ser
usado como cortina sonora. Bastava aguardar o bater das
asas de um pássaro ou o chamado de algum bicho que se
encontrasse numa árvore para que Rhodan pudesse se
mover sem ser ouvido. Apenas, a operação progredia
mais lentamente do que fora planejada.
Com uma trepadeira da grossura de um dedo fez uma
espécie de laço. Havia uma alça na ponta. Fez o artefato
avançar centímetro por centímetro, até enfiar a alça por
cima do cano de uma carabina. Com um puxão fechou a
alça, que encontrou apoio no dispositivo de mira.
Demorou uma infinidade até que conseguisse se apossar
da arma. E ainda lhe faltava um suprimento suficiente de
munições e mantimentos.
A presa seguinte que escolheu foi uma caixinha com
a inscrição “extrato de carne”. O laço teria que ser um
pouco maior. Conseguiu aproximá-lo do objetivo. Mas
quando deu o puxão final, a caixa tombou ruidosamente.
A sentinela se levantou imediatamente.
— Stoj! — soou seu comando, embora não pudesse
ver Rhodan. No mesmo instante os outros soldados
puseram-se de pé e num gesto automático pegaram as
armas.
Rhodan percebeu imediatamente que diante dessa
bateria de carabinas prontas para disparar não teria a
menor chance de fugir. Para compensar a inferioridade
de forças teria que recorrer à inteligência e ao blefe.
Levantou-se calmamente, apontando o cano da
carabina recém-capturada para o chão.
— Levante as mãos! — foi à ordem que recebeu.
Evidentemente não tomou conhecimento dessa
ordem. Aparentemente contrariado, passou por cima de
uma raiz e chegou mais perto das cinco sentinelas.
— Pare imediatamente!
Rhodan fez exatamente isso. Seu rosto exibiu um
sorriso matreiro e a expressão de um superior
insatisfeito.
— Quem está no comando? — indagou em tom
autoritário, num russo impecável.
84
Sua atitude autoconfiante deixou os cinco perplexos.
Nenhum deles se lembrou de repetir a ordem de levantar
as mãos.
— Que diabo! Será que todo mundo perdeu a fala? —
esbravejou Rhodan, prosseguindo na aplicação da mesma
receita. — Que tiroteio é esse? Será que estes guerreiros
de salão pertencem ao seu grupo?
Finalmente um dos homens do Bloco Oriental pôs-se
a falar.
— Meu nome é Ilja Iljuchin, senhor.
— Não tem nenhuma graduação?
— As graduações foram abolidas desde que o
presidente Wallerinski...
— Cale a boca!
Perry usou um tom cada vez mais arrogante, pois
esperava que uma voz de comando retumbante não
deixaria de produzir algum efeito.
— Fiquem sabendo que sou o comissário Danov, R.
O. Danov. O governo do Bloco Oriental, formado há
trinta dias, desembarcou unidades pesadas em Vênus,
para restabelecer a paz e a ordem. A breve palestra que
mantive com os senhores me deu a impressão de que na
divisão de Tomisenkow surgiram costumes bastante
estranhos, que dificilmente contarão com a boa
compreensão do governo. Recomendo-lhes que
procurem se lembrar imediatamente do seu juramento e
dos seus deveres.
— Não pertencemos à divisão de Tomisenkow,
comissário.
Rhodan viu Mitja dar um soco nas costelas do
interlocutor. Mas nem por isso a confissão de
amotinamento poderia ser retirada.
— Mais tarde falaremos sobre os detalhes. Por
enquanto façam parar esse tiroteio estúpido. Qual foi o
nome que disse há pouco? Wallerinski?
— Tenente Wallerinski, comissário.
— Muito bem! Esses dois aí seguirão imediatamente
para informá-lo sobre a nova situação. A partir de hoje os
comissários detêm todo poder de comando em Vênus.
Quero que o tenente e seus companheiros estejam aqui o
mais tardar dentro de trinta minutos. O que estão
esperando?!
Rhodan olhara instintivamente para os dois pacifistas
que lhe pareciam ter um caráter mais independente.
Precisava se livrar deles por algum tempo. Obedeceram.
Sem esboçar o menor protesto, puseram-se a caminho
em direção ao norte. Quando desapareceram entre a
vegetação, Rhodan ainda tinha três inimigos diante de si.
Essa alteração favorável da relação de forças deixou-o
mais otimista.
— Soltem as carabinas. Enquanto não tiverem
renovado seu juramento, não posso concordar que usem
armas.
Por alguns segundos parecia que Rhodan estava
forçando a situação, que os três pacifistas estavam
percebendo o blefe. Os homens hesitaram. Mas logo teve
início um jogo de que mal chegou a ter consciência.
Rhodan ainda mantinha o cano da arma abaixado. O
aspecto que oferecia aos pacifistas não se tornaria mais
convincente se, ao erguer a pesada carabina, esta lhe
caísse da mão. O ombro ferido ainda não suportaria
tamanho esforço.
Mas seus olhos não haviam sido afetados. A potência
daquele olhar, que não podia ser confundida com a
hipnose corriqueira, mas antes representava o resultado
de um treinamento hipnótico arcônida, continuava
intacta.
A hesitação daqueles homens poderia se tornar
perigosa.
— Larguem as armas! — voltou a ordenar.
Proferiu estas palavras sem deixar se arrastar ao tom
de berreiro de um oficial subalterno. Mal chegou a
levantar a voz, mas esta não deixou de produzir o efeito
desejado.
Os pacifistas obedeceram.
— Meia-volta volver!
Estas palavras foram proferidas no tom incisivo de
um comando de pátio de quartel.
Mais uma vez os pacifistas, perplexos, obedeceram.
Rhodan abaixou-se, apanhou as armas e atirou-as
para trás de si. Todas, com exceção de uma. Tratava-se
de uma pistola leve, que conseguia manter erguida apesar
das dores que sentia no ombro.
— Meia-volta volver! — foi o comando que soou a
seguir. Mais uma vez fitou os três homens de frente.
Desta vez a pistola conferia-lhe uma superioridade total.
Até a experiência seguinte foi coroada de êxito, muito
embora uma pessoa menos treinada para uma obediência
cadavérica naquela oportunidade já lhe estaria causando
problemas. Mas para aqueles homens Rhodan era o
comissário R. O. Danov. Fizeram-lhe o favor de se
amarrar uns aos outros com cipós finos, mas muito
resistentes. Perry cuidou do resto. Amarrou-os a três
árvores diferentes, com o rosto voltado para o norte, e
ainda lhes colocou uma mordaça.
Depois de terem sido submetidos a esse tratamento,
os três pacifistas poderiam chegar à conclusão de terem
caído num golpe atrevido. Mas essa conclusão chegou
cinco minutos depois da hora.
Por mais algum tempo ouviram ruídos atrás de si, e
esses ruídos davam a entender que o estranho inimigo se
mantinha ocupado com seus pertences. Depois de algum
tempo o ruído dos passos e das trepadeiras tiradas do
caminho às pressas se afastou.
Se não fossem as mordaças, a essa hora uma praga
dramática sairia dos lábios dos três homens logrados.
* * *
Ao chegar à sua árvore, Perry Rhodan dispôs-se a
transmitir o sinal convencionado para cima. Mas Son
Okura já se encontrava a seu lado.
— Quando ouvi que você falava em voz alta, percebi
que tinha sido descoberto. Foi por isso que desci.
— Pois terá que subir de novo para apanhar nossa
bagagem. Temos que desaparecer o mais rápido possível.
Deixe para lá; mais tarde explico.
O visor de frequências arregalou os olhos para as
duas carabinas pesadas, as pistolas e a sacola com
conservas. Mas logo se pôs em movimento e foi buscar
as bugigangas que se encontravam na cabana.
— Temos que levar tudo isto — disse Rhodan em
tom indiferente. — Quanto antes. Dentro de vinte
minutos Wallerinski encontrará três homens amarrados
em seu acampamento, e se a essa hora não nos
encontrarmos a uma distância razoável, nossa situação
poderá se tornar bem difícil.
— Aguentarei alguns quilômetros — disse o pequeno
85
Okura em tom confiante e pegou mais de metade da
bagagem.
Encontravam-se numa baixada. Às vezes a floresta
era tão densa que até parecia que fora montada por um
gigante, segundo um modelo sofisticado. Por maiores
que fossem os esforços, o deslocamento não poderia ser
muito rápido. Apesar disso, cada passo que conseguiam
dar representava mais um pedaço de segurança
reconquistada. A selva venusiana tinha muita vitalidade
e, segundo as concepções humanas, corria à frente do
tempo.
Certa vez Reginald Bell afirmara que bastava olhar
atentamente durante dois minutos para ver o crescimento
das plantas. Isso correspondia à verdade. Dali a meia
hora terrestre os perseguidores dificilmente
reconheceriam o caminho aberto por Rhodan e Okura.
* * *
— Minha munição acabou — fungou Thora perto do
general. Este lhe passou dois pentes de balas.
— São os únicos que ainda tenho comigo. Quando
tiverem acabado terá de rastejar duzentos metros para
atingir nosso grupo de abastecimento, se é que este ainda
se encontra em nosso poder. Só atire quando o inimigo
estiver perfeitamente visível.
— Como queira, general.
A batalha já se prolongava por quinze minutos. Mais
de trinta homens estavam reunidos em torno do general,
assumindo uma formação defensiva.
Nenhum dos pacifistas de Wallerinski se arriscara a
se aproximar dessa fortaleza em miniatura a menos de
cinquenta metros.
A ordem de economizar a munição não se dirigia
apenas a Thora. Tomisenkow mandou que a mesma fosse
transmitida de homem para homem.
— Só atirem quando tiverem certeza absoluta de que
vão acertar. Não poderei arrancar munição do ar.
Ninguém pensou em levantar ou abandonar a posição
defensiva. O contato com o restante da tropa havia sido
interrompido. Mas o tiroteio ininterrupto que vinha de
várias direções provava que, em outros pontos, posições
semelhantes haviam sido instaladas. Tomisenkow estava
convencido de que Wallerinski já não mantinha um
controle exato da situação. Por duas vezes ouvira a voz
do tenente ambicioso, que afinava de raiva, dar suas
ordens ao longe.
— Ouça madame. O presidente está ficando rouco de
tanto gritar. É um presidente. Ouviu bem? Um rapazola
desses quer ser presidente! Vênus está transformado num
hospício. Olhe! É assim que se faz. Aposto como nem
estava prestando atenção. Ali à esquerda, perto das três
orquídeas roxas, está um morto. É um pacifista que
resolveu brincar de guerra...
Tomisenkow encerrou suas palavras com uma risada
áspera.
Dali a uma hora estava rouco como seu inimigo. Só
cochichava quando transmitia suas ordens nervosas.
De repente Wallerinski suspendeu o combate. Suas
ordens foram ouvidas nas posições de Tomisenkow.
— Pode ser uma armadilha — disse Thora.
Os outros partilharam a suspeita manifestada por ela
e aguardaram mais algum tempo. Depois disso, o general
despachou mensageiros para frente e para trás e ordenou
à tropa que se mantivesse bem unida. Os oficiais foram
convocados para uma conferência. Os soldados e
sargentos tiveram que recolher os mortos.
Era uma atividade cansativa, que atrasou a marcha
por algumas horas. Mas não era a única desvantagem que
sofriam.
— O senhor ainda passará por muitas decepções
neste planeta — dissera Thora há pouco tempo. E agora
se lembrou dessas palavras.
Encontraram mais de cinquenta mortos. Mais da
metade pertencia ao grupo de Wallerinski. Mas nem por
isso a tropa de Tomisenkow ficou completa.
— Estão faltando vinte e sete homens — declarou
Tomisenkow durante a conferência de oficiais. — Pode
dar alguma explicação, coronel?
Popolzak deu de ombros.
— Provavelmente alguns mortos não foram
encontrados.
— Mas não podem ter sido vinte e sete.
— Talvez o resto se tenha unido a Wallerinski. O
senhor estaria em condições de dizer com quem cada um
dos seus homens simpatiza?
— Ora essa coronel! Que falas heréticas são estas?
Parece que até o senhor já foi infectado por este planeta.
— Todos nós estamos infectados, senhor general.
Cada um segundo sua predisposição individual. O senhor
também não escapou.
— Queira se explicar melhor!
— O senhor vive na ilusão de que ainda comanda
uma tropa disciplinada. Carrega pela selva uma
burocracia que mesmo em condições normais seria
considerada uma superorganização. O que há atrás disso?
Tudo está apenas no papel. E é com esses papéis
cobertos de relatórios, prestações de contas e relações de
objetos que o senhor se diverte na sua barraca de
comando. Mas do lado de fora as coisas são bem
diferentes. Os homens estão esfarrapados, não ligam para
qualquer disciplina assim que se encontram fora das suas
vistas e maldizem seu modo irreal de ver as coisas. Se
este resto miserável de uma divisão aerotransportada
ainda se encontra com o senhor, isso é devido somente
ao instinto gregário dos homens. Se pudessem, já teriam
fugido há tempo. Mas para onde quer que corram, o
inferno se abrirá diante deles. Só ficam por medo e pelo
instinto de autoconservação. Mas não acredite que ainda
pensam que o senhor é capaz de nos levar a um paraíso.
Mesmo seus planos com a fortaleza de Vênus soam
como uma fala impregnada de sonho e de lenda.
Depois da longa fala de Popolzak reinou um silêncio
total.
O general empalidecera até a raiz dos cabelos. Sua
resposta aniquiladora não veio.
— É verdade? — perguntou depois de algum tempo.
Falava muito baixo e, todos sabiam, ele não o fazia
apenas para poupar suas cordas vocais cansadas.
Suas palavras não despertaram qualquer eco.
Ninguém se atreveu a comentar o problema.
— Está bem — disse Tomisenkow depois de algum
tempo. — Refletirei sobre suas palavras, coronel. Acho
que a esta hora todos estamos tão nervosos que não
podemos dar um tratamento objetivo ao tema.
A tropa prosseguiu em sua marcha.
Às cento e quarenta e três horas atingiram o rio e
usaram a passagem que ficava acima das cataratas. O
86
amplo desfiladeiro representava um convite para
prosseguir na marcha.
De repente um cabo trouxe um bilhete que um
soldado encontrara pregado a uma árvore.
— Não passe pelo desfiladeiro general — leu
Tomisenkow. — Os pacifistas instalaram-se nas árvores
e planejaram um ataque maciço.
— Que diabo! Quem iria me escrever uma careta
dessas?
Thora foi à única que poderia responder à pergunta,
pois conhecia a letra. Mas preferiu não fazê-lo.
V
John Marshall sentia que havia chegado ao fim das
suas forças.
Metade de uma manhã em Vênus representa muito
mais que um dia inteiro na Terra. E durante todo esse
tempo Marshall sempre voltara a se esforçar para
despertar a atenção das focas.
Sabia que residiam na margem oposta do braço de
mar. Essa distância, que era superior a trezentos e
cinquenta quilômetros, poderia induzir dúvidas até
mesmo no otimista mais inveterado. Mas, de outro lado,
o mar era o habitat natural dessas semi-inteligências
animais. Não era de supor que nadassem muito longe e
se aproximassem da margem em que Marshall se
encontrava?
Por que não o ouviam?
Teriam seguido um instinto nômade e procurado
outra região? Mas quando um bando de focas desse tipo
abandona certa área, esta passa a ser ocupada por outro
bando da mesma espécie. Em meio à vitalidade de Vênus
não poderia existir um vácuo biológico.
John Marshall se afastara bastante. A dois
quilômetros a oeste do ponto em que havia atingido o
mar, uma península rasa penetrava profundamente na
água. Não passava de um banco de areia. A vegetação
cessava depois de cem metros. As pegadas das botas de
Marshall formavam um rastro de um quilômetro, que
parecia conduzir a uma solidão sem esperança, a um
beco sem saída.
Encontrava-se na ponta da península. Estava cercado
de água de três lados. O mar estendia-se até o horizonte.
A cadeia montanhosa do norte escondia-se atrás da
curvatura da terra.
Por que as focas não o ouviam?
A intensidade de seus chamados telepáticos foi se
tornando cada vez menor. Intercalou pausas cada vez
mais longas, para recuperar as forças. Mas não era
apenas a debilidade física que reduzia seu poder de
concentração: a depressão psíquica o afetava muito mais
profundamente.
Por que não o ouviam?
A pergunta incessantemente repetida levou a novo
choque, quando subitamente acreditou ter encontrado
uma resposta. As frequências não combinam! O emissor
e o receptor devem estar sintonizados segundo os
princípios mais elementares da física. Marshall se
lembrou do primeiro encontro com as focas. Naquela
oportunidade precisaram de uma bateria completa de
instrumentos para possibilitar o contato entre os animais
e os homens. A linguagem das focas era transmitida pela
faixa do ultrassom e por isso mesmo não era perceptível
ao ouvido humano. Tornava-se necessário transformar o
ultrassom através de um conversor de frequências: após
isso a linguagem das focas tornava-se inteligível através
de um analisador cerebral e de um codificador
positrônico.
Por alguns segundos, Marshall parecia perplexo.
Logo se deu conta de que não concluíra seu raciocínio
sobre o problema. Afinal, não era possível que Perry
Rhodan fosse um idiota para mandá-lo sozinho para a
selva a fim de executar uma tarefa que não tinha as
menores perspectivas de êxito.
“Sou um ótimo telepata”, foi esta a ideia que Rhodan
impôs à sua mente. “Por isso posso dispensar esses
recursos tecnológicos. As ondas de pensamento sempre
são ondas de pensamento, a frequência não muda. Isso
se aplica às focas e a mim. Têm de me ouvir. A não ser
que sejam tão fleumáticas que resolveram ignorar meu
pedido de socorro.”
Estendera-se na areia para ter um descanso total de
pelo menos trinta minutos. Não mexeria um dedo. Não
pensaria em nada.
Quando os trinta minutos haviam passado, cavou um
buraco com a mão e enterrou os objetos que trazia
consigo. O buraco se encheu de água. Mas as conservas e
a carabina pesada eram imunes à umidade.
Aliviado da bagagem foi entrando mar adentro, até
que conseguiu mergulhar completamente. Sabia do
perigo que corria. A água gosmenta e viscosa, totalmente
diferente da que conhecemos na Terra, corria quase
como o óleo. Estava muito mais impregnada de algas e
micro-organismos que o nosso mar e poderia lhe reservar
surpresas de que a ciência humana não desconfiava. Mas
Marshall não tinha outra alternativa.
A água transmite as ondas sonoras com maior rapidez
e intensidade que o ar. Por que a mesma coisa não
poderia acontecer com as ondas emitidas por um cérebro
telepático?
Mergulhou completamente e se concentrou. Procurou
usar um vocabulário bem simples, para que as focas não
tivessem dificuldade em compreendê-lo.
Durante as pausas que fazia punha a cabeça fora da
água para respirar.
Repetiu o jogo cinco vezes. Da última vez, os
projéteis disparados por uma carabina automática
atingiram a água perto dele, obrigando-o a voltar a
mergulhar imediatamente.
No mesmo instante esqueceu as focas. Atrás dele
havia homens que eram muito mais perigosos que o
mundo selvagem de Vênus com seus mistérios.
Uma vez embaixo da água, avançou para a direita até
que os pulmões vazios o forçaram a vir à tona. Deitou de
costas, para poder respirar sem pôr a cabeça toda fora da
água. Seus olhos revirados captaram um grupo de seis
homens, que se aproximavam pela península sem
demonstrar a menor preocupação de se abrigar. Tinham
consciência de sua superioridade. Ao que tudo indicava,
já vinham observando Marshall há bastante tempo:
provavelmente teriam percebido que deixou suas armas
na ponta da península. Talvez acreditassem mesmo que
já o haviam liquidado. Não atiravam mais e não corriam,
apenas andavam apressadamente.
A altura do banco de areia ainda oferecia alguma
87
proteção: desde que Marshall se comprimisse bem ao
solo, não seria visto. Era evidente que não poderia
permanecer na água nem mais um segundo. Se os
homens do Bloco Oriental chegassem antes dele ao lugar
em que se encontrava sua bagagem, não teria a menor
chance.
Enquanto se encontrava na água, deslocou-se por
meio de movimentos rítmicos dos pés até sentir chão
firme embaixo das costas. Depois disso, girou o corpo
para ficar de barriga para baixo e rastejou para frente.
Ao abrir o buraco em que enterrara sua bagagem,
formara involuntariamente um monte de areia, que agora
poderia salvar sua vida.
Rastejou um pouco para a esquerda, até que o monte
de areia ficasse exatamente na linha de visão dos seis
homens. Depois voltou a rastejar para frente e atingiu
suas armas e sua bagagem sem ser visto.
Os seis homens se encontravam a pouco mais de
duzentos metros.
Enterrou-se mais um pouco no chão molhado e
segurou as duas armas que trazia consigo: a pesada
carabina automática que havia apresado e o radiador de
impulsos facilmente manejável. Quando sentiu a coronha
encostada ao seu ombro teve uma sensação de alívio.
Respirar três vezes... apontar.
O cano descansava sobre o monte de areia. A
pontaria era fácil.
Puxou o gatilho. No último instante atirou o cano
para cima: não queria atingir ninguém. Seria um tiro de
advertência. A decência exigia que ele o desse.
Será que a decência compensaria nessa luta
implacável?
Marshall não sabia. Nem por isso estava arrependido
do que havia feito.
Seus inimigos se assustaram. Se eles tivessem se
virado e corrido, Marshall nunca teria concebido a ideia
de fazer pontaria sobre suas costas. Mas a opinião
daqueles seis homens era diferente. Jogaram-se ao chão e
iniciaram o ataque.
A série de impactos produzidos pelas armas de
infantaria atirou a sujeira para o alto. Marshall logo
percebeu que o pequeno monte de areia que tinha diante
de si não poderia substituir um abrigo subterrâneo. Não
devia ter mais nenhuma consideração, se estivesse
interessado em sair vivo daquela armadilha.
Os homens queriam matá-lo. Seus pensamentos eram
idênticos aos do homem que teve que matar poucas horas
antes.
Marshall largou a carabina e pegou o radiador de
impulsos. Não via os inimigos.
Abriu um fogo ininterrupto de dez segundos, formado
exclusivamente por energia térmica. A energia
desprendida pela arma bastaria para incendiar uma
parede de aço. E as chances do homem seriam muito
menores num inferno desses.
Os seis homens deviam estar mortos. Apesar disso
Marshall esperou mais uma hora antes de fazer qualquer
movimento.
Já eram sete os homens que tivera que eliminar. Era
evidente que com isso não liquidara o grupo inimigo. Ao
que parecia haviam colocado toda uma tropa de choque
no seu encalço. A floresta poderia ocultar uma
companhia inteira.
Suas suspeitas logo se confirmaram. Um tiro isolado
soou ao longe. Na costa surgiram dois homens que
corriam apressadamente por um desfiladeiro.
A demonstração feita com a arma de impulsos
térmicos tornara o inimigo mais cauteloso. Mas este não
tinha necessidade de assumir qualquer risco. Marshall
estava preso na armadilha. A península de cerca de
oitocentos metros de comprimento só se ligava à terra
firme por uma estreita faixa de terra. Se tentasse escapar
por ali, se transformaria no alvo de atiradores de elite
escondidos na floresta. E se atirasse às cegas para a
floresta estaria fazendo a maior tolice que se poderia
imaginar. Diante da selva de Vênus, até um radiador
arcônida de impulsos térmicos não passava de um
brinquedo ridículo.
John Marshall não teve outra alternativa senão
melhorar sua posição atual. Deitado de lado, abriu com a
carabina sulcos profundos na areia. Aos poucos foi se
formando uma cavidade achatada, na qual se abrigaria
deitado. A água que foi se infiltrando não deveria
incomodá-lo.
Também o monte de areia foi reforçado, não tanto em
altura, mas principalmente em largura. Sua massa devia
ser suficiente para resistir ao projétil disparado por uma
arma pesada de infantaria. Nem poderia pensar na
possibilidade do inimigo se equipar com lança-granadas
ou canhões leves.
Quem dera que as focas chegassem! Bem que estava
precisando de um aliado. Mas será que ajudariam um
homem a lutar contra outros homens? Sem dúvida, se
este homem fosse um telepata.
O que lhe inspirava maiores esperanças era a
lembrança de Perry Rhodan, que pretendia segui-lo
lentamente em companhia de Son Okura. Onde estariam
a esta hora?
Marshall apalpou a pulseira, que além de outros
equipamentos continha um minitransmissor. As
comunicações pelo rádio haviam sido proibidas. Mas
Rhodan permitira o uso do emissor em caso de
emergência. Portanto, a decisão caberia ao próprio
Marshall.
Será que o consideraria um covarde se expedisse um
pedido de socorro? Hesitou alguns minutos. Por fim,
num gesto decidido, puxou a rodinha que ativava o mini-
transmissor. Com a unha puxou a antena. O aparelho já
estava regulado para a frequência combinada.
— Alô, Perry Rhodan! Aqui fala John Marshall.
Estou chamando Perry Rhodan. Encontro-me numa
situação de emergência.
Esperou.
Passaram-se dez segundos. O impulso transmitido
pelo emissor causaria a ativação automática do receptor.
Finalmente veio a resposta.
— Rhodan falando! O que houve Marshall?
Conseguiu alguma coisa?
— Não. As focas não dão sinal de vida. Tentei
durante várias horas. Há gente do Bloco Oriental que
está no meu encalço. Conseguiram me cercar. Encontro-
me numa península em que não existe qualquer
vegetação. Minha única proteção consiste num monte de
areia. O inimigo está protegido na floresta. Tenho uma
segurança relativa diante de armas leves de infantaria.
Mas tenho de contar com a possibilidade de que a
patrulha inimiga consiga trazer ou já disponha de
morteiros. Não há dúvida de que estão atrás de mim.
88
Pode fazer alguma coisa para me ajudar?
— Que diabo, John! Você está mesmo em maus
lençóis. Ainda bem que me avisou. Neste momento reina
a maior confusão nas fileiras de Tomisenkow e dos
rebeldes. Por enquanto não nos preocuparemos com os
goniômetros dos mesmos. Okura e eu conseguimos
passar na frente das tropas do general. Já temos uma boa
vantagem. Calculo que dentro de quatro horas
poderemos chegar ao lugar em que se encontra. Aguente
até lá. A partir das cento e cinquenta horas transmita um
vetor de rádio de dez em dez minutos, para que possamos
tomar logo a direção correta. Não desanime, Marshall!
Nós o tiraremos daí.
Pouco depois do fim da palestra radiofônica, os
soldados que se encontravam na praia voltaram a atirar.
Em três pontos, Marshall reconheceu o fogo dos canos
das armas e respondeu prontamente com o radiador de
impulsos térmicos.
A mil metros de distância a arma de radiações ainda
atingia o alvo com mais de dois terços de sua energia. Na
beira da floresta surgiu uma incandescência azulada que
produziu uma forte condensação da suculenta vegetação.
Num instante um pequeno trecho da linha costeira se
cobriu de uma densa camada de neblina.
— Hum — fez Marshall, satisfeito. — Nem contava
com este efeito da minha arma. Abrirei um pequeno fogo
de barragem e envolverei essa gente na neblina. Isso os
irritará e os manterá ocupados por algum tempo.
* * *
— Vamos, Okura! Somos dois inválidos, mas temos
de aumentar nossa velocidade mais um pouco. Será que
você consegue?
O mutante tentou esboçar um sorriso confiante, mas
não conseguiu. Rhodan viu que o rapaz estava realizando
um esforço que ultrapassava sua capacidade.
— Venha cá, Son. Passe as três carabinas,
espingardas e o saco de mantimentos. É minha vez de
fazer o papel de burro de carga.
— Não fale como se eu até aqui tivesse levado a
carga sozinho. E não se esqueça do seu ombro.
— Bobagem! Meu ombro está em vias de se curar.
Passe para cá essas bugigangas e pegue o facão. Nos
quilômetros que se seguem você irá à frente. Terá
bastante para fazer.
O gracioso japonês obedeceu. Continuaram a avançar
pela selva.
Há muito haviam deixado para trás a passagem pelo
rio.
Rhodan, que havia recebido o pedido de socorro de
Marshall, não pôde permanecer por mais tempo nas
proximidades de Thora. Tinha de chegar ao mar quanto
antes. Só lhe restava fazer votos de que alguém da tropa
de Tomisenkow tivesse encontrado o bilhete que
continha a advertência sobre a armadilha montada por
Wallerinski.
A hora já passara e não se ouvira nenhum tiro.
— É claro que encontraram o bilhete — asseverou
Okura. — Se Tomisenkow tivesse passeado embaixo
daquelas árvores em que Wallerinski se mantinha a
espreita, já teríamos ouvido o barulho de outra batalha.
— Se for assim, por enquanto Thora está em
segurança. Não demorará muito e nós a tiraremos de lá.
Assim que a noite descer sobre o planeta, você será nossa
arma mais potente, Okura...
Perry Rhodan estava aludindo à capacidade de ver as
frequências, de que Okura era dotado. Embora para
enxergar normalmente Okura precisasse de óculos, ele
possuía olhos que dificilmente outro homem conhecia.
Sua visão penetrava profundamente nas faixas do
ultravioleta e do infravermelho. Isso significava que
enxergava muito bem de noite.
— Quando a noite descer sobre o planeta... — repetiu
Okura. Pelo tom em que pronunciava as palavras, até
parecia que ansiava pela noite. — Não sei por que, mas
acho a divisão do tempo na Terra muito mais simpática
que a que temos aqui. Até o anoitecer faltam mais de três
dias. E até lá temos de libertar Marshall da situação
crítica em que se encontra.
— Não é até lá — asseverou Rhodan em tom áspero.
— Acho que o tempo de que dispomos é muito menor.
Os últimos quilômetros foram percorridos com uma
relativa facilidade. Isso não dependia tanto da natureza
do terreno, mas antes da rotina que adquiriram ao lidar
com a selva.
Captaram regularmente o vetor transmitido por
Marshall e isso lhes permitiu seguir pelo caminho mais
curto.
Pelas cento e cinquenta e duas horas, Rhodan afirmou
que estava cheirando o mar.
— Muito cuidado, Son! — advertiu. — Esta floresta
está cheia de combatentes sem escrúpulos.
Subitamente viram o mar junto de si. A visão os
surpreendeu um pouco. Poucos minutos antes ainda se
viram diante de uma vegetação densa e rebelde.
— Hum — resmungou Rhodan. — Não se vê muita
coisa. Que neblina!
Okura sorriu.
— É uma neblina muito estranha, mas não me
incomoda nem um pouco. Se não me engano ela vai se
tornando cada vez mais densa para o lado esquerdo.
— Você não está enganado, Son. Consegue enxergar
alguma coisa?
— Enxergo muito bem. A menos de trezentos metros
daqui pelo menos vinte homens estão deitados na orla da
floresta.
Estão simplesmente deitados no capim, porque
acreditam que a neblina os protege contra a visão.
— E Marshall?
— A península fica pouco adiante.
— Ah, sim. Vejo a ponta lá fora. E vejo um ponto
negro. Deve ser John. Não compreendo como a neblina
pode se concentrar num espaço tão reduzido. No resto da
área a visão é perfeita.
Okura não soube responder.
— Quer que avance sozinho? — perguntou. — Será
fácil achar o meu caminho.
— Um momento: isso tem tempo. Rhodan enfiou as
mãos numa sacola que tirara dos pacifistas. Retirou duas
cargas explosivas.
— Acho que isso os despertará. Voltaram à floresta e
aproximaram-se do grupo inimigo por trás. Colocaram as
duas cargas explosivas num flanco do grupo e regularam
os detonadores para uma diferença de trinta segundos.
Depois se retiraram apressadamente. Muito bem
abrigados, acompanharam o desenrolar dos
acontecimentos.
— Falta um minuto — murmurou Rhodan.
89
Okura confirmou com um aceno de cabeça.
A primeira carga explodiu.
— Levantaram-se e estão correndo confusamente de
um lado para o outro. Gritam alguma coisa...
— Estou ouvindo.
— A maioria deles procurou uma cobertura no
próprio local.
— E os outros?
— Três estão fugindo, para o oeste. Vão correndo
pela praia. Um deles parece ser corajoso: caminha em
direção à floresta. Está com a carabina em posição de
atirar.
— Diz que isso é coragem? Esse sujeito ficou
maluco.
Os trinta segundos passaram.
A segunda carga explosiva detonou. A confusão nas
fileiras inimigas foi total. Todos esperavam novas
detonações, cuja origem por enquanto era desconhecida.
Face a isso teve início uma retirada geral para o oeste,
que degenerou até que cada um corria o mais que podia.
Corriam pela costa, pois na praia o deslocamento era
mais fácil.
— O acesso à península está livre — disse Okura em
tom exaltado.
— Vamos, meu filho — decidiu Rhodan. Assumiram
suas posições no início da península.
— Verifique o terreno a oeste — ordenou Perry,
mantendo-se ocupado com o rádio. — Venha, John.
Libertamos a passagem. Você nos encontrará no ponto
exato em que a península se liga à terra firme.
— Pelo sagrado Universo, chefe! Isso foi um trabalho
bem feito. Já dispõe de peças de artilharia?
— As explicações ficam para depois. Antes de mais
nada quero ver se ainda está inteiro.
Quando o vulto de John Marshall surgiu na neblina,
novas detonações rugiram ao longe. Pela sua intensidade
concluía-se que eram cargas de grosso calibre.
— O que foi isso? — gemeu Son Okura.
— Acho que foi um bombardeio — disse Rhodan em
voz baixa, falando entre os dentes. — Vivo dizendo que
alguns cavalheiros que se encontram em Vênus erraram
nos seus cálculos.
VI
Haviam escapado da armadilha de Wallerinski. Mas,
quando o general Tomisenkow viu os quatro helicópteros
que se lançavam ao ataque, soube que fugira da chuva
para entrar no chuveiro.
A primeira salva de bombas caiu quase toda na selva.
Apenas as últimas três detonações vinham da área em
que Tomisenkow supunha sua vanguarda.
— Isso é traição. Chamarei essa gente a prestar
contas...
— Procure se abrigar — interrompeu-o uma voz. Era
o coronel Popolzak. — Espalhem-se pela floresta de
ambos os lados do caminho.
Num instante o desfiladeiro bem visível parecia
varrido. Apenas algum material deixou de ser retirado.
Mais uma vez as cargas de TNT foram lançadas em
meio à confusão da selva, atirando para o ar uma mistura
de galhos, árvores inteiras e cipós.
Dentro de dois minutos tudo chegou ao fim.
— Voltarão — afirmou Thora, que com uma
repugnância indisfarçável removeu a sujeira de sua
roupa.
— O que é que a senhora sabe? — berrou
Tomisenkow.
Thora deu de ombros.
— Não sei nada, general. O ataque não foi
desfechado pelo meu exército. Mas procure refletir
intensamente. Deve ter reconhecido as insígnias dos
aparelhos.
— Os helicópteros são do Bloco Oriental, madame.
Conheço-os pelo tipo. São os maiores, os mais rápidos...
— Já sei. Os maiores, os mais rápidos e
provavelmente os primeiros do mundo — respondeu
Thora em tom zombeteiro.
— Cale-se! Eu lhe...
De tanto nervosismo ninguém deixava que o outro
terminasse. O general interrompeu Thora. E o coronel
Popolzak interrompeu o general.
— Deve haver mortos, general. Tem alguma ordem
para mim?
— Não está em condições de decidir a respeito disso,
coronel? Mande recolher os mortos e reúna a divisão.
Preciso falar com todo mundo.
Tomisenkow olhou para a arcônida. Subitamente
segurou-a pela mão.
— A senhora virá comigo.
Thora foi obrigada a segui-lo para a coluna de
comunicações, que há vários meses só existia pelo nome.
Os telegrafistas eram soldados de infantaria esfarrapados
como os demais.
— Kossygin! — berrou Tomisenkow.
Um cabo surgiu entre um montão de aparelhos.
— Às ordens, general.
— A proibição das comunicações radiofônicas está
suspensa. Ligue um microfone e um rolo de fio
magnético para gravar o som.
— Não quer se comunicar em código?
— Que diabo! Não faça perguntas, cabo.
— Desculpe general, que frequência devo ligar?
— Ora essa! A frequência normal! Acha que quero
ter uma conversa particular? Fique aqui mesmo,
madame. Não vai fugir para a selva justamente agora!
Thora só recuara alguns passos para sentar num
tronco tombado. Para surpresa de todos, sorriu.
— Não se perturbe general. Não vou fugir.
Kossygin fez uma prova, gravando e reproduzindo
sua própria conversa.
— O emissor está preparado, general.
— Aqui fala o general Tomisenkow, comandante da
divisão aerotransportada Vênus. Ordem destinada aos
quatro helicópteros. Pousem imediatamente em minha
área e se apresentem. Acusem o recebimento e declinem
o nome do oficial que se encontra no comando.
Para surpresa geral a resposta foi imediata.
— Aqui fala o coronel Raskujan. Quero
cumprimentá-lo, general. Infelizmente vejo-me forçado a
decepcioná-lo se acredita que pode me dar ordens. Na
verdade, sugiro que capitule. Incondicionalmente,
compreendeu? Depois poderemos conversar
tranquilamente sobre os detalhes.
— Será que ficou louco coronel? De onde veio a esta
hora? Há um ano seu nome me foi indicado como o do
90
subcomandante de uma frota de reforços. Será que levou
doze meses terrestres para percorrer a distância da Terra
até aqui?
— A viagem foi um pouco mais rápida. — disse
Raskujan com uma risada irônica. — Permita que lhe dê
alguns esclarecimentos sobre a situação atual. A frota de
reforços pousou há onze meses na superfície de Vênus.
Acontece que não havia mais qualquer divisão que
merecesse o apoio trazido pela mesma. General eu quero
que fique sabendo que sou a única pessoa que dá ordens
em Vênus.
— Isso é um ato de insubordinação! — fungou
Tomisenkow para dentro do microfone que, de tanta
exaltação, mal conseguia segurar. — O senhor foi
destacado para o meu serviço pela autoridade espacial e
tem o dever de se apresentar a mim.
— É o que acabo de fazer. Espero que não se
incomode com a demora.
A voz de Raskujan porejava de ironia, o que fez com
que o general perdesse o resto de autocontrole que ainda
lhe sobrava.
— Repito pela última vez, coronel Raskujan.
Apresente-se imediatamente. Não vou discutir os
detalhes pelo rádio. Se não obedecer a esta ordem, será
chamado a prestar contas perante a instância mais
elevada.
— O senhor não está avaliando corretamente a
situação — respondeu Raskujan, passando a usar um tom
mais amável e objetivo. — A instância mais elevada sou
eu. Veja no ano passado um trecho de história. É um
pedaço de passado que devia lhe ensinar alguma coisa.
Quem dispõe de todo poder em Vênus sou eu, o coronel
Raskujan. O planeta está submetido às minhas ordens.
Pode acreditar que disponho dos meios para impor
minhas ordens a quem se opuser. Não confunda seu
bando de assaltantes com a divisão que já foi, general.
Repito minha oferta. Recomende aos seus soldados
embrutecidos que se entreguem incondicionalmente.
Estou disposto a transformar todos eles em pessoas
decentes e civilizadas. Tratarei cada um, segundo sua
capacidade e boa vontade. Com isto eu me despeço
senhor Tomisenkow. O senhor sabe como me encontrar.
O general ainda berrou para dentro do microfone
alguma coisa que soava como traidor. Mas era evidente
que o interlocutor já não estava recebendo a mensagem.
Subitamente aquele homem, submetido a uma série
de provações que atingiam o limite de sua capacidade
psíquica, mergulhou no silêncio. Pôs a mão no pescoço.
— Não force sua voz — aconselhou Thora com a
frieza que lhe era peculiar.
Seu sorriso não dissimulava o fato de que a derrota
daquele homem a alegrava.
— Como é que uma coisa dessas podia acontecer,
madame? Esse sujeito, o tal do Raskujan, já serviu numa
companhia comandada por mim. Conheço-o como a mim
mesmo. Era um ótimo soldado, e nada fazia desconfiar
de que um dia enlouqueceria.
— Em Vênus todo mundo enlouquece. Será que o
senhor acha que ainda é normal?
— Acontece que eu sou general e ele é coronel. Isso
devia bastar.
— Parece que em Vênus não basta, general. Já ouvi
falar num ditado que corre pela Sibéria. “Moscou é
longe”, costumam dizer. E nunca essa frase se aplicou
melhor a qualquer pessoa que ao senhor e a seu rival.
Aqui Raskujan começou tudo de novo. É outro planeta,
outra vida. Os fatos são estes.
— Acontece que ele usa o mesmo uniforme que eu.
Isto também é um fato.
— É possível que já tenha tirado o uniforme. Além
disso, os termos que usou durante a palestra e os
helicópteros que comanda causaram a impressão de que
o senhor se encontra diante de um poderio militar
perfeitamente organizado. Não há dúvida de que é o mais
forte. Mas por que digo estas coisas? O senhor tem olhos
que enxergam e sabe perfeitamente que os destroços de
sua divisão não passam de um grupo embrutecido.
— Madame! — indignou-se Tomisenkow, mas
interrompeu-se quando viu seu olhar gelado.
Parecia que entre os dois fora erguido um muro
invisível que não permitia qualquer contato. As palestras
ligeiras que mantinham vez por outra não podiam alterar
esse fato.
O coronel Popolzak anunciou que a divisão se
encontrava em forma.
Haviam encontrado trinta e oito mortos, que foram
amontoados num lugar um pouco afastado.
— Tiramos suas armas e seus papéis e depositamos
tudo no estado-maior.
— Está em ordem — disse Tomisenkow com um
aceno de cabeça, como se aquele instante o mais
importante fosse a exata contabilização.
— Está tudo em ordem, com exceção dos feridos —
observou Popolzak.
Tomisenkow lançou-lhe um olhar irritado, como se
nem tivesse pensado nessa possibilidade.
— Há quinze feridos — prosseguiu o coronel.
— O Dr. Militch não está cuidando deles?
— Está cuidando conforme pode. Mas como sabe
quase não dispomos mais de medicamentos e ataduras.
— Tem de se arranjar conforme pode. Para isso é
médico.
Popolzak nunca vira o rosto de Tomisenkow tão
estreito e decaído como estava hoje. E nunca ouvira o
chefe falar com tamanha indiferença nos mortos e nos
feridos. O surgimento de Raskujan devia tê-lo excitado e
deprimido terrivelmente.
O general revistou a tropa. Não se podia falar numa
divisão formada diante de seu superior. Nem em número,
nem pela apresentação dos homens. Os grupos estavam
reunidos o mais próximo que a vegetação intensa
permitia.
Dirigiu um discurso aos homens, no qual exprimiu
sem rebuços tudo aquilo que já transmitira pessoalmente
a Raskujan pelo microfone.
— Tivemos perdas — concluiu. — Mas não porque o
coronel Raskujan, o desertor, seja o mais forte, mas
apenas porque nos atacou à traição. Há um ano o
governo do Bloco Oriental mandou que seguisse para
Vênus a fim de nos apoiar. Empregaremos todos os
meios de que dispomos para obrigá-lo a prestar a
obediência que nos deve. Estamos prevenidos e
saberemos nos adaptar à situação. Mais alguns
quilômetros, e chegaremos ao mar. Nossa marcha
prossegue pelas baixadas da selva, onde a visibilidade é
nula. Os grupos de observação do inimigo não nos
encontrarão antes de atingirmos nosso objetivo. A
prisioneira arcônida garantirá nosso acesso à fortaleza de
91
Vênus. No mesmo instante em que chegarmos lá,
ajustaremos nossas contas com Raskujan. Nem que lance
cem helicópteros contra nós. Não poderá resistir ao nosso
poder e será obrigado a se submeter. Os destacamentos
devem se preparar para iniciar a marcha. Os chefes de
companhia devem se apresentar ao Dr. Militch. O
transporte de todos os feridos que não podem se
locomover deve ser garantido. Muito obrigado.
* * *
A neblina artificial já se desvanecera.
Rhodan, Marshall e Okura penetraram um trecho na
floresta. Não se via mais nada dos homens do Bloco
Oriental, que se retiraram em direção ao oeste. Mas havia
o risco de que também penetrassem no mato e
procurassem se aproximar sorrateiramente. Uma vez que,
depois da detonação das duas cargas, não houve outras
explosões no local, poderiam se reanimar.
Rhodan era de outra opinião.
— As duas cargas que detonamos aqui não passam de
brincadeira em comparação com aquilo que acaba de
acontecer ali na selva. Não há dúvida de que foram
bombas. Não me consta que qualquer dos grupos que
conhecemos disponha de armas de calibre tão grosso. Só
há uma explicação, que já me ocorreu há bastante tempo.
— Está pensando na frota de reforço dos russos, não
é?
— Isso mesmo. Conforme sabem, há tempo vivo
quebrando a cabeça para descobrir onde pode ter ficado a
frota que há cerca de um ano surpreendentemente
lançamos numa confusão completa pouco antes de sua
chegada a Vênus. Eram duzentas naves, e destruímos
apenas trinta e quatro. Uma parte deve ter pousado em
Vênus. Mesmo que grande parte das máquinas restantes
tenha sido destruída no planeta, um cálculo grosseiro nos
leva à conclusão de que algumas devem ter chegado.
— Acredita que elas se mantiveram escondidas por
um ano? — perguntou Marshall em tom incrédulo.
— Por que não? Talvez isso se tornasse necessário
por razões de ordem tática.
Naquele instante o ribombar de outra série de
explosões atravessou a paisagem.
— Trata-se de bombas explosivas comuns —
constatou Marshall. — Devem ser os russos. De qualquer
maneira não se trata de uma expedição da Terceira
Potência.
— Desista dessa esperança, John. Se Bell não
consegue descer, nenhuma outra nave conseguirá. A
barreira erguida pelo cérebro positrônico é
intransponível. Por isso também se torna evidente que
essa gente que agora está lançando as bombas já se
encontrava aqui quando nós chegamos. E devem dispor
de aviões.
Os dois mutantes não sabiam o que dizer.
— De qualquer maneira há um certo paradoxo
naquilo.
— Só para quem não sabe o que há atrás disso —
asseverou Perry Rhodan.
Subitamente estacou. Okura e Marshall também
inclinaram a cabeça para o lado, como se prestassem
atenção a um ruído distante.
Um rugido leve e abafado enchia o ar. Não era o
ribombar do bombardeio.
— Olhem! — disse Okura de repente e apontou para
o sudeste. Rhodan e Marshall não viram nada.
— São helicópteros. Santo Deus, não os reconhece
mais?
— Pelo ruído parece que tem razão, Son. Mas devem
estar voando naquelas nuvens baixas.
— Naturalmente. Desculpe não me lembrava.
— Continue a observá-los. Estou interessado em
saber que direção vão tomar.
Num gesto instintivo manipulou seu receptor. Fez o
seletor de freqüências percorrer a faixa usual das ondas
ultracurtas. O condensador seletivo pôs-se a funcionar
automaticamente quando houve uma recepção.
Rhodan encostou a pulseira ao ouvido e testemunhou
a palestra travada entre o general Tomisenkow e o
coronel Raskujan. Marshall e Okura seguiram seu
exemplo, pois ambos usavam uma pulseira igual à de
Rhodan.
O diálogo breve e exaltado foi bastante instrutivo.
Rhodan esboçou um sorriso de satisfação, mas logo se
tornou sério.
— Tive razão. Seguiremos essa gente, desde que nos
façam o favor de prosseguir por mais algum tempo nas
suas transmissões pelo rádio. Uma das feições
características de grande parte da Humanidade consiste
no fato de sempre ter que viver na discórdia, esteja onde
estiver. Aqui em Vênus temos alguns cidadãos comuns
do planeta Terra, e já vivem quebrando a cabeça uns dos
outros. Acontece que o cosmos está à nossa porta, e
temos de aprender a lidar com essas coisas. Parece que a
palestra chegou ao fim. Que pena!
— Não acha que devíamos escutar mais um pouco?
— sugeriu Okura.
— É claro que sim. No momento não temos coisa
melhor para fazer. Mas basta que um de nós cuide disso.
Penetraram mais um pedaço na floresta. Marshall e
Okura, que tinham os melhores dons de observação
natural, cuidaram da retaguarda. Rhodan observou o
terreno em direção ao litoral e manteve seu receptor em
atividade.
Os helicópteros já haviam desaparecido sobre o mar,
atrás da linha do horizonte. Finalmente, depois de
passados mais de noventa minutos, palavras voltaram a
soar no éter. Tratava-se de uma ligeira palestra entre um
dos pilotos e a base. Mas isso bastou para que Rhodan
realizasse a localização goniométrica. O resultado foi
registrado imediatamente na pequena bússola giratória
que também se encontrava na pulseira, para que pudesse
ser interpretado posteriormente.
— Já localizamos o quartel-general de Raskujan.
A exclamação despertou a atenção dos dois
companheiros.
— Onde fica? É muito longe?
— Um momento! Não sou nenhum mágico! Com a
antena goniométrica só posso determinar a coordenada.
Temos a direção, e isso já vale muito.
Rhodan tirou o livro de anotações do bolso e
desenhou um croqui da parte norte do planeta. Registrou
o mar primitivo com o braço de trezentos e cinquenta
quilômetros que se estendia terra adentro os acidentes da
área em que se encontravam e o bloco continental com a
tão cobiçada base de Vênus.
— No momento estamos aqui. Aqui, mais ao sul,
foram lançadas as bombas, e os helicópteros voltaram
92
por esta rota.
Traçou uma linha para o nordeste, que atravessava a
enseada e prosseguia terra adentro no lado oposto.
— A segunda coordenada deve ser estimada —
prosseguiu. — Mas como dispomos de uma série de
dados, poderemos calcular a distância com um grau de
precisão bastante satisfatório. Conhecemos o tempo de
voo dos helicópteros. Além disso, sabemos que seu
percurso toca um ponto geográfico bastante crítico. Fica
aqui...
Fez uma cruz na folha de papel e os dois amigos
compreenderam imediatamente de que se tratava. A cruz
ficava na periferia da abóbada energética de cinquenta
quilômetros de diâmetro que cercava a base de Vênus. E
ficava no ponto exato em que doze meses antes Rhodan
lançara um ataque contra as forças de Tomisenkow.
Numa faixa de vários quilômetros, a paisagem fora
transformada em terra morta. Toda a vegetação fora
extinta.
— É a picada gigante — disse John Marshall em tom
pensativo.
— É claro — confirmou Rhodan. — Para qualquer
um que ande vagando por Vênus, o Eldorado só pode ser
nossa base. Raskujan quer entrar na fortaleza, da mesma
forma que nós e Tomisenkow. E foi por isso que durante
um ano não se preocupou com os grupos esparsos. Está
alojado nessa grota que transformamos em terra
queimada. É o campo de pouso ideal para as naves
espaciais e fica a poucos quilômetros da abóbada
energética. Cavalheiros, tenho a impressão de que
devemos cuidar de Thora. Thora e eu somos as pessoas-
chaves para o acesso à fortaleza! Raskujan deve estar de
olho em Thora.
— Mas nesse caso não poderia se lançar sem mais
nem menos a um ataque contra Tomisenkow — objetou
Okura. — Precisa de Thora viva.
— Naturalmente. Provavelmente soube através de
outros grupos esparsos como anda a situação. Os colonos
ou alguns desertores do grupo de pacifistas terão contado
tudo. Por certo o bombardeio não passa de uma
demonstração, através da qual pretende mostrar seu
poder a Tomisenkow. Um helicóptero permite uma
pontaria tão exata que até se pode errar o alvo de
propósito. Se minhas suposições forem corretas, dentro
em breve Raskujan tentará raptar Thora. Devemos nos
antecipar a ele.
Fazia horas que não se via nem se ouvia nada da
patrulha formada pelos homens do Bloco Oriental.
Provavelmente se juntaram à sua tropa. O bombardeio
seria um motivo mais que suficiente para isso.
Rhodan voltou a olhar para o relógio. O entardecer de
Vênus já ia bem adiantado. Eram cento e sessenta e seis
horas, e aqui no norte os dias eram mais curtos que as
noites.
— Não temos muito tempo. Vamos embora, minha
gente.
Voltaram a entrar na floresta. A direção em que
encontrariam Tomisenkow e Thora era fácil de
determinar. Avançaram com bastante rapidez.
Até que o lagarto das árvores atacou.
Rhodan já advertira os companheiros de que nas
horas de crepúsculo deveriam dedicar uma atenção
especial ao imprevisível mundo animal do planeta.
Naquela hora do dia quase tudo estava de pé. Os animais
diurnos preparavam-se para voltar aos seus ninhos ou
cavernas. E os animais notívagos iam começando suas
excursões.
Dez minutos depois de iniciada a marcha, Marshall
teve que matar uma barata gigante de três pernas. O
animal correu para cima deles com um terrível chiado.
Só esse barulho nojento fizera com que fosse notado em
tempo.
— Por que será que esse bicho faz um barulho desses
ao atacar? — perguntou Marshall depois de tê-lo
liquidado silenciosamente com o radiador de impulsos
térmicos. — Assim ele só se trai.
— Certos animais assustam suas vítimas de tal
maneira que as mesmas ficam rígidas de pavor. Uma
tática dessas também serve para fazer presas. Se não
fosse assim, essa espécie não se teria mantido até os dias
atuais.
A explicação era convincente.
Trinta minutos depois começou o verdadeiro
desastre.
Marchavam em fila indiana: Okura, Rhodan,
Marshall.
O lagarto das árvores deixou que Okura passasse. Por
algum motivo desconhecido o animal atacou o chefe.
Estendeu sua cauda preênsil de uma altura indefinível
e numa fração de segundos deu várias voltas em torno do
tórax de Rhodan. Este ainda conseguiu soltar um grito.
Mas logo o animal lhe apertou o peito de tal maneira que
nem conseguia respirar.
Num gesto instintivo Rhodan pôs ambas as mãos
naquela cauda coberta de cabelos lisos. Deixara cair o
fuzil no primeiro contato. Acontece que suas mãos
representavam um instrumento ridículo em comparação
com a força desenvolvida nos vários metros dessa parte
do corpo do lagarto. Rhodan não pôde fazer nada.
Depois de dois segundos já se encontrava na altura da
cabeça de Marshall.
Num gesto instintivo o mutante levantou o radiador
de impulsos, mas não se atreveu a atirar. O crepúsculo
que caía, e que sob a densa folhagem ainda espalhava
uma escuridão muito maior, não permitia uma
visibilidade adequada. E aquela cauda executava
movimentos pendulares tão intensos que Marshall não
podia se arriscar a atirar. A vítima foi arrastada para o
alto aos solavancos.
— Okura! — gritou Marshall.
O japonesinho já se virara.
— Está bem, John. Largue a arma. Isto é para mim.
O visor de frequência não experimentava tantas
dificuldades de visão. Viu o laço tríplice daquele rabo de
cobra. Viu o tronco do lagarto que ia engrossando
progressivamente e que, vinte metros adiante, se perdia
em meio à folhagem.
Até então só conheciam esse animal através de
descrições. Pelo que se dizia seu aspecto era semelhante
ao de um jacaré. Dali provinha o nome, tirado da
biologia terrestre. Porém um exame mais detido logo
revelara as diferenças.
A cauda preênsil tinha cerca de quatro vezes o
comprimento do resto do corpo. Desempenhava uma
função tão importante como o rabo dos macacos. O
lagarto propriamente dito tinha o corpo curto e coberto
de pelos lisos como um castor. Vivia principalmente nas
árvores. Até chegava a construir ninhos.
93
O lagarto simplesmente tirara Perry Rhodan do
caminho. Este já se encontrava a uns sete ou oito metros
acima do solo quando Okura conseguiu levantar seu
radiador de impulsos térmicos.
O laço com o ser humano surgiu diante da alça de
mira. Mas logo Okura viu a parte mais espessa da cauda.
Puxou o gatilho. Um raio contínuo de cinco segundos fez
com que executasse dois movimentos pendulares. A
ponta da cauda se destacou do tronco e caiu ao chão.
Okura e Marshall saltaram para o lugar em que
Rhodan se encontrava, para libertá-lo quanto antes. De
início procuraram fazê-lo da mesma maneira pela qual se
desata um cordão de sapato. Mas logo perceberam que
aqui teriam de lançar mão de energias de outra espécie.
Ainda perceberam que um êxito inicial não deve
tornar a pessoa despreocupada. Só pensavam em tirar o
chefe do laço.
— Cuidado! — gritou Okura de repente e empurrou
Marshall para o lado.
O animal furioso saltou de cima da árvore. Chegou ao
solo perto de Rhodan. Apesar da pequena distância não
se via se este fora atingido mais uma vez.
Agora o alvo era bem grande. Nem mesmo Marshall
hesitou em atirar. A uma distância reduzidíssima
levantou o radiador de impulsos térmicos e puxou o
gatilho. O corpo se estendeu, empinou uma última vez e
se imobilizou de vez.
— Está morto — disse Okura e voltou a saltar para
frente.
Com todo azar Rhodan ainda tivera muita sorte. Por
poucos centímetros não fora esmagado pelo corpo
daquele gigante.
— Chefe! — gritou Marshall e procurou apalpar a
cabeça de Rhodan.
— Está inconsciente — disse Okura. — Vamos,
John, ajude-me. Não poderemos abrir o laço com as
nossas forças. Além de tudo a ponta do rabo está presa
sob o corpo do animal.
— Estou vendo. Como poderei ajudar?
— Temos de nos arriscar a dar dois cortes térmicos
para seccionar a cauda o mais perto possível do corpo de
Rhodan. Só assim poderemos libertá-lo.
Marshall deu um aceno automático com a cabeça.
Não se sentiu muito bem quando se pôs a executar essa
tarefa. Mas não havia outra alternativa. Teve que reunir
todo o sangue-frio e reduzir a abertura do foco ao
mínimo.
— OK — disse depois de algum tempo. — Estou
pronto.
— Pois atire — pediu Okura sem fazer o mesmo. —
Aqui embaixo enxergo um pouco melhor, mas minha
mão não está disposta a uma tarefa destas. Não quero ter
meu chefe na consciência.
— Ah, então você não quer. Mas os outros...
— Não enlouqueça agora, Marshall. Se alguém de
nós tem os nervos em bom estado, é você. Se acredita
que sou um covarde, poderemos tirar a prova em outra
oportunidade. Hoje não. Este seria o momento mais
inadequado.
— Está bem — interrompeu Marshall e fez pontaria.
Ambos os tiros foram bem sucedidos.
— Então! — disse Okura, enquanto o atirador
enxugava o suor da testa.
A libertação de Perry Rhodan foi uma questão de
segundos. Com um gemido rolou para o lado e ficou
deitado de costas. Sua respiração era regular.
— Será que quebrou alguma coisa na queda?
— Não acredito. Em Vênus uma queda de oito
metros é muito menos perigoso que na Terra. Além
disso, a ponta da cauda foi uma espécie de mola. Só o
aperto no tórax...
Marshall interrompeu-se. Rhodan abrira os olhos e
pusera a mão no ombro. Os amigos compreenderam
imediatamente. Arrancaram sua camisa e viram que a
ferida causada pelo tiro voltara a se abrir.
Um dos três pôs-se a praguejar. Lembraram-se dos
remédios que já haviam se acabado há tempo.
— Sente dores? — perguntou Okura. Rhodan
conseguiu esboçar um sorriso.
— Acho que conseguirei andar, meus caros. Apenas
esta velha ferida... — interrompeu-se para cerrar os
dentes por algum motivo desconhecido. — Ajudem-me a
levantar. Quero experimentar as pernas.
As pernas estavam em ordem. Mas o braço direito
estava insensível e imóvel. Rhodan só poderia usar a
mão esquerda.
— Sinto muito. Vocês não poderão carregar a
bagagem sozinhos. E nem devemos pensar em nos
separar mais uma vez. Teríamos que caminhar pelo
menos cinco horas para chegar ao lugar em que
Tomisenkow se encontra. Vamos voltar ao mar.
— E Thora?
— Esperaremos por ela. É bem verdade que será um
jogo arriscado. Raskujan pode ser mais rápido.
— Não há dúvida de que Raskujan será mais rápido.
Possui helicópteros. Quanto a nós, nem sabemos se
Tomisenkow passará por aqui com sua preciosa
prisioneira.
— Sabemos, sim — afirmou Rhodan. — O objetivo
de todos os grupos é a base de Vênus. Tomisenkow terá
de passar por aqui. É claro que não sabemos se passará
alguns quilômetros mais a leste ou a oeste. Mas a praia é
visível por um longo trecho. Se tivermos de esperar até o
escurecer, Okura nos garantirá uma vantagem ainda
maior.
A decisão de Perry Rhodan foi acatada. Puseram-se a
caminho para voltar à costa, onde se manteriam na
expectativa.
— Talvez volte a chamar as focas — disse Marshall.
— Quem sabe se a hora não é mais propícia.
Quando se encontravam a algumas centenas de
metros da orla da floresta, voltaram a ouvir ruído de
motores.
— Os helicópteros estão voltando! — exclamou
Okura bastante exaltado. — Quem dera que já
estivéssemos fora da floresta.
— Quer bancar o guarda de trânsito? — disse
Rhodan com um sorriso. — Aliás, é bom que abra os
ouvidos. Por enquanto só ouço um.
— Um único? Deve ser a patrulha de Raskujan, não
é?
O ruído se tornou mais forte e mais abafado. O
rangido mais lento das paletas horizontais deu a entender
que o aparelho se dispunha a pousar.
— Se for um helicóptero de transporte que vai largar
algumas centenas de soldados por aqui nós estaremos
perdidos — observou Rhodan. Apesar disso prosseguiu
na sua marcha. Queria lançar quanto antes um olhar
94
sobre a faixa costeira.
VII
Fazia várias horas que a divisão espacial dizimada,
comandada pelo general Tomisenkow, se pusera a
caminho. Com o discurso que, além do apelo a uma
obediência determinada pelo juramento e da promessa de
um futuro tranquilo e poderoso, continha tudo que pode
ser exigido de um bom propagandista, o general
conseguira mais uma vez reunir a tropa desmoralizada
em torno de si.
Depois que o coronel Popolzak e Thora não
admitiram a menor dúvida quanto aos planos de
Raskujan, Tomisenkow parecia ter se conformado com a
idéia de que o coronel desertor não se apresentaria a ele.
Deixara de fazê-lo durante um ano e também deixaria de
fazê-lo no futuro. Thora permitiu-se mais uma de suas
observações cínicas.
— Bem, acredito que dentro em breve Raskujan se
apresentará ao senhor. No entanto, não o fará para
capitular, mas para apontar a pistola contra seu peito.
Pouco depois se encontraram com a patrulha do
tenente Tanjev, que se retirara do mar primitivo. Tanjev
apresentou um relato minucioso dos acontecimentos. A
detonação das duas cargas explosivas foi interpretada
como um indício de que as tropas de Raskujan já deviam
ter se fixado nos trechos da floresta que ladeiam a costa.
Essa circunstância exigia um cuidado redobrado.
Também os homens do Bloco Oriental olhavam para
o relógio com uma frequência cada vez maior.
As pausas intercaladas na marcha se tornaram cada
vez raras e mais breves.
Para frente! Foi à única divisa. Deviam atingir a
costa antes do anoitecer.
Thora, que ultimamente dera para desenvolver uma
estranha predileção pelos provérbios humanos, veio a
dizer posteriormente, face a um acontecimento
inesperado, que nunca se deve fazer a conta sem o dono
do restaurante.
Na ponta da coluna, que marchava a uns cem metros
de distância subitamente surgiram um barulho. Logo
depois se ouviram vários tiros disparados por pistolas e
carabinas automáticas.
— É Raskujan! — disse Tomisenkow em tom aflito,
revelando o quanto esse problema o preocupava.
Acontece que não era o coronel.
Era a própria hostilidade de Vênus.
Popolzak ia à frente com um grupo de dez homens
bem equipados. Marchavam bem juntos. Os três homens
que iam à frente traziam facões largos e abriam o
caminho. Seus golpes eram decididos e rotineiros. Os
galhos e as trepadeiras saltavam para o lado no ritmo de
suas batidas. As plantas costumam agir assim em
silêncio, numa atitude fatalista.
Acontece que uma das plantas deu um grito e
assumiu uma atitude defensiva. À primeira vista parecia
ser uma árvore como qualquer outra. Só quando esboçou
uma reação ruidosa e saltou para o lado, os homens
perceberam que se encontravam diante de um vampiro
carata.
Tudo se passou num espaço de poucos segundos. O
vampiro carata costuma permanecer imóvel por dias,
camuflando-se sob a forma de uma árvore. Esse disfarce
constitui sua proteção mais segura contra os inimigos
naturais. Mas quando é atacado reage com uma rapidez
surpreendente. Possui outra arma, muito mais perigosa
que seu disfarce. Suas folhas, que lembram as da
palmeira carata, natural da América do Sul, estão
semeadas no lado inferior com milhares de pequeninas
glândulas venenosas. E o animal sabe agarrar sua vítima.
Cerca de uma dezena dessas folhas se estendeu
enquanto o grito de dor ainda estava soando. A maior
parte do grupo encontrava-se ao alcance daqueles braços
venenosos. Os gritos de pavor dos homens misturaram-se
aos sons aflitos emitidos pela árvore. Os corpos eram
segurados com a força de tenazes de aço. Foram atirados
para o alto e as glândulas venenosas procuravam
instintivamente qualquer trecho de pele desprotegida.
Assim que a encontravam, começavam a agir. Pequenos
ganchos preparavam o processo destrutivo, riscando a
carne até que sangrasse. Uma vez aberta uma veia da
vítima, por minúscula que fosse, o veneno mortal
penetrava no organismo.
Alicarim, o quirguiz, foi o último homem do grupo
de vanguarda.
Era um talento natural, mesmo antes de ter
frequentado a escola dura de Vênus. Num gesto
instintivo segurou o homem que ia à sua frente pela gola
do uniforme e puxou-o para trás. No mesmo instante
levantou a carabina e pôs o dedo no gatilho.
— Afaste-se, Boris, afaste-se.
Alicarim reforçou o apelo com um desesperado
pontapé. Depois esvaziou o pente de balas para dentro da
massa disforme. Pouco depois Boris participou do
tiroteio. Só pararam quando o vampiro carata e suas
vítimas jaziam imóveis.
Tomisenkow correu para frente.
— Alicarim! Será que ficou louco? Dê-me sua
carabina.
O quirguiz obedeceu.
— Cuide bem dela, general. Ainda precisaremos.
— Seu assassino! — esbravejou Tomisenkow. —
Acaba de matar oito dos meus melhores homens.
Inclusive o coronel Popolzak...
— Se acredita que fiz isso porque gosto, está
enganado. Ainda não viu que isto é um vampiro carata?
O general estacou e olhou com mais atenção.
— É isso mesmo — confirmou Boris. — Não
tivemos outra alternativa, general. Ninguém poderia
fazer mais nada por esses homens.
O Dr. Militch realizou um breve exame, conforme
mandava o regulamento, e confirmou as palavras de
Boris.
Tomisenkow devolveu a carabina de Alicarim.
— Desculpe, Ali. Devemos muito ao senhor. Está
disposto a assumir o comando na ponta? Eu lhe darei
alguns elementos de primeira categoria.
— Obrigado, general. Pode confiar em mim.
A marcha prosseguiu. Não havia tempo para enterrar
os mortos. Dentro de quatro horas teriam que chegar ao
mar.
* * *
Son Okura inclinou a cabeça para trás.
— Você pode atingi-lo com uma pedrada —
cochichou. — É um helicóptero pequeno. Apenas cinco
95
homens desceram.
— Alguém ficou dentro do aparelho?
— Não: todos desceram.
— Está bem. Vamos até lá: eu mesmo vou avaliar a
situação.
Rhodan viu que os soldados de Raskujan marchavam
em direção ao mato. No mesmo instante concebeu seu
plano.
— Vamos, Marshall, Okura. Nós lhes prepararemos
uma recepção condigna.
— Eles não nos verão chefe. Não vão penetrar na
floresta no lugar em que estamos.
— Mas pretendem se instalar por aqui. Não me
envergonhem. São nossos inimigos, e teremos que nos
defrontar com eles. Além disso, precisamos do
helicóptero.
Os outros compreenderam.
— Vamos voar naquilo até a base?
— Por que não? Dentro de três horas a ordem voltará
a reinar em Vênus, se vocês não cometerem nenhum
engano.
Rhodan pôs a mão em forma de concha na frente dos
lábios.
— Fiquem onde estão e larguem as armas.
A reação dos homens do Bloco Oriental foi
totalmente diferente. E totalmente confusa.
Os cinco homens se atiraram ao chão e dispararam
cegamente. Como não vissem ninguém e só pudessem
determinar a direção aproximadamente pelo ouvido, os
tiros passaram longe do alvo.
— Não se pode conversar com essa gente — disse
Rhodan num tom de desespero. — Temos de atirar todos
ao mesmo tempo, John. Dentro de poucos segundos tudo
deve chegar ao fim. Já localizou o alvo?
— Sim — cochichou Marshall com a voz rouca.
— Fogo! — comandou Rhodan.
Levantaram-se e saíram da floresta.
Okura seguiu-os sem que ninguém tivesse pedido.
Sabia que os cinco soldados estavam mortos. Um furor
cego contra uma arma arcônida de impulsos nunca
poderia produzir bons resultados.
Correram em direção ao helicóptero e entraram.
— Um helicóptero! — regozijou-se Marshall. —
Uma máquina em perfeito estado. Quase não consigo
acreditar.
— Devemos aproveitar as oportunidades quando se
oferecem. Tudo pronto para decolar? Os vidros estão
fechados?
— Tudo em ordem. Mas será que com esse ombro
vai conseguir?
— Não se preocupe com isso. Procure observar o que
vai acontecer lá fora. Ainda falta muito para atingirmos
nosso objetivo. E, se Raskujan manda um helicóptero a
algum lugar, vocês podem ter certeza de que ali mesmo
logo surgirão outros.
— Quer dizer...
— É isso mesmo. É impossível, por exemplo, que
voemos por cima da enseada. Não temos coletes salva-
vidas. E nesta situação não gostaria de ser derrubado por
cima do mar primitivo. Logo, devemos seguir a linha do
litoral. Isso representa uma volta de mais cem
quilômetros. Mas a segurança deve vir antes de tudo...
Perry Rhodan controlou a reserva de combustível.
Balançou a cabeça. Talvez desse mal e mal. Mas Okura
encontrou um tanque de reserva, e o cálculo já parecia
muito mais favorável.
Rhodan tinha algum conhecimento dos modelos
russos; dentro de poucos instantes conseguiu controlar a
máquina. O treinamento hipnótico arcônida e um bom
treinamento básico terrestre fizeram dele um homem
com uma capacidade de percepção instantânea. Decolou.
A máquina ergueu-se rapidamente e seguiu na
direção norte noroeste. As ondas do mar viscoso
espumavam embaixo deles.
Ainda não tinham percorrido mais de dez quilômetros
quando Marshall, em tom exaltado, anunciou a presença
de outro helicóptero. Okura logo lançou os olhos pela
lâmina de vidro inquebrável e confirmou a observação de
seu companheiro.
— Isso pode se tornar bastante desagradável, se eles
reconhecerem o curso estranho que estamos seguindo.
Mas por enquanto não vamos nos preocupar com isso —
disse Rhodan com uma confiança fingida. — Coloquem
os rádios em posição de recepção. Talvez tenhamos de
reagir pelo rádio.
Isso aconteceu dali a dois minutos. O outro
helicóptero pediu a senha. Uma voz grossa afirmou que
ele, Rhodan, falava com a voz muito estranha.
Evidentemente o interlocutor estava aludindo ao seu
companheiro, morto há quinze minutos.
Rhodan arranhou o microfone com a unha e numa
voz furiosa e disfarçada se lamentou de que seu aparelho
não devia estar em ordem. Logo interrompeu o contato.
— Agora podem pensar o que quiserem. Não lhes
pudemos dar a senha. Em compensação simulamos um
defeito. Só nos resta prosseguir no voo e aguardar. De
qualquer maneira devemos ficar em rigorosa prontidão.
Mantenham-me informado sobre os movimentos do
inimigo.
— Já posso lhe dar uma informação — disse Okura,
pouco satisfeito. — Alteraram seu curso e vêm em nossa
direção. Até voam em ângulo para ganhar tempo.
— Nesse caso também alteraremos nosso curso —
disse Rhodan em tom irritado e girou para bombordo. O
mar deslizou embaixo deles. Dali a pouco se
encontravam em cima da selva. Mas isso não adiantou
muito. O inimigo também retificou seu curso.
— Que diabo! Estão nos desviando. Rhodan resolveu
voar ao encontro do outro helicóptero. Dessa forma se
encontraria numa posição mais favorável e não
despertaria tantas suspeitas. Era bem verdade que
qualquer um perceberia que os homens da Terceira
Potência já haviam despertado muitas suspeitas. O
inimigo não abriu margem a dúvida quanto a isso. Na
altura do litoral recebeu-os com uma rajada das armas de
bordo. Rhodan conseguiu se desviar para baixo, mas não
conseguiu evitar um impacto na cabina. Ninguém foi
ferido, mas havia algo de errado no painel.
— O medidor de pressão do óleo! — exclamou
Marshall. Todos viram que não funcionava mais. Mas
não saberiam dizer se o dano atingia apenas o indicador
ou a tubulagem de óleo.
Antes que pudessem refletir a este respeito, tiveram
que se desviar diante de outro ataque.
— Por que não respondemos ao fogo? — perguntou
Marshall em tom obstinado.
— Com quê? — respondeu Rhodan, também
zangado. — Essa gente tem um canhão de bordo, nós
96
não.
— Devemos abrir a cabina e usar o radiador de
impulsos térmicos.
— Pois tente!
Marshall mexeu no fecho. Mas nesse instante o
inimigo se aproximou do lado e de cima. Atirou uma
bomba que errou o alvo. Mas o detonador foi ativado na
superfície da água. Um estilhaço ou mais atingiram o
helicóptero.
— Fomos atingidos! — gritou Okura. — A cauda
pegou fogo.
Rhodan se virou. Poucas vezes os amigos o haviam
visto tão exaltado.
— Vamos! Desçam! Não adianta insistir. Com esta
geringonça só poderemos aterrizar no inferno, se o
tanque de gasolina pegar fogo. Um momento! Levem
suas armas. A água não afetará o radiador de impulsos.
Marshall abriu a cabina. Rhodan baixou até chegar
perto da superfície da água. A posição era favorável.
— Saltem agora!
Perry foi o último a abandonar o aparelho.
Normalmente não haveria qualquer risco a uma altura de
vinte metros. Mas o ombro ferido transformou o salto
numa tortura.
A água se fechou por cima dele. A uma profundidade
de dois metros encontrou solo firme. Empurrou-se com o
pé. As roupas dificultavam a natação. Mas a gravitação
reduzida, que apenas atingia 0,85g, compensava a
desvantagem.
Ao emergir, Rhodan viu que Marshall se encontrava
nas proximidades. Okura nadava mais ao longe. O
helicóptero balançou pouco acima das ondas e chegou à
praia. Antes de atingir a floresta bateu no solo e
explodiu.
Os homens do Bloco Oriental sabiam que os três
homens haviam saltado antes. Voltaram ao ataque;
pareciam perfeitamente tranquilos. O grito de
advertência de Okura foi desnecessário. Quando o
helicóptero se encontrava a uma distância de cem metros,
Marshall abriu fogo. Dentro de poucos segundos o
aparelho se desmanchou numa incandescência rubra e
branquicenta. A profunda alteração estrutural foi
acompanhada somente por um ruído surdo. Algumas
peças se desprenderam e pingaram na água como tochas
incendiadas, extinguindo-se com um chiado. O resto caiu
na praia e esfriou lentamente. Os três homens nadaram
em direção à praia.
Okura, que se encontrava mais longe da terra firme,
alcançou Rhodan dentro de poucos minutos.
— Posso ajudar chefe? Não devia usar tanto o braço
direito.
— Deixe isso para lá. Estou bem. Já temos chão sob
os pés; podemos caminhar.
— Eu ainda não tenho — fungou o japonês, que quis
imitar Rhodan. Este riu.
— Com seu tamanho você ainda tem um pouco de
tempo.
Pouco depois, também o mutante sentiu chão firme
embaixo dos pés. Dali a dez minutos chegaram à praia,
onde Marshall já os aguardava. Com as roupas
gotejantes, os três homens conferenciaram sobre seus
planos.
— Por enquanto devemos pôr a roupa no varal. Senão
acabamos pegando um resfriado.
Tiraram a roupa e estenderam-na sobre a areia. Se
considerarmos que a temperatura média em Vênus é de
cinquenta graus centígrados, compreenderemos
facilmente que, mesmo no fim da tarde e nas latitudes
situadas bem ao norte, a areia ainda era bastante quente
para fazer com que a roupa secasse dentro de poucos
minutos.
Marshall aproveitou a oportunidade para realizar um
exame minucioso da ferida de Rhodan.
— Perdeu mais um pouco de sangue, chefe.
Enquanto fazia essa observação, arrancou uma faixa
de sua camisa e tirou uma embalagem colorida do bolso.
Espalhou o resto do conteúdo sobre a faixa de pano.
— É a última atadura impregnada que lhe posso
oferecer. E ai de você se não deixar que eu a coloque.
Son me dê uma ajuda.
Rhodan não se opôs ao tratamento. Concluído este,
voltaram a pôr as roupas.
— Quando o crepúsculo chegar voltarei a chamar as
focas — disse Marshall. — Até lá devíamos nos
esconder um pouco. Tenho a impressão de que
Tomisenkow não demorará a aparecer por aqui.
— Esse sujeito devia criar juízo e se aliar a nós —
refletiu Okura.
— Podemos lhe fazer esta oferta. Ele nos entrega
Thora e nós o ajudamos na luta contra Raskujan — disse
Rhodan.
— Quer se colocar ao seu lado? — perguntou
Marshall. — Raskujan não seria um aliado melhor para
nós? Ele tem meios de nos levar à base dentro de poucas
horas.
— Tem os meios, mas não tem vontade, meu caro.
Não podemos cogitar de Raskujan como nosso aliado.
Então deixaremos que ele nos blefe com o fato de que
dispõe de um equipamento melhor e de uma tropa
praticamente intacta. Mesmo depois de um ano de
permanência em Vênus, Raskujan ainda nada em
abundância. Praticamente ainda não se submeteu a
nenhuma prova em Vênus. Com Tomisenkow a coisa é
diferente. Dispondo apenas de recursos primários,
conseguiu se manter na selva inóspita de Vênus. Além
disso, a posição de Raskujan é injusta.
— Quer dizer que você também faz restrições morais
contra ele? — perguntou Marshall.
— Naturalmente. Não passa de um desertor. As
ordens que recebeu determinam que se coloque à
disposição do general. Em vez disso, quer fazer o papel
de comandante.
Conversaram mais algum tempo sobre o tema,
enquanto os seletores de frequência dos receptores
embutidos em suas pulseiras deslizavam de um lado para
outro. Suas suspeitas íntimas logo se confirmaram. Além
dos dois helicópteros destruídos, muitos outros se
encontravam no ar. As mensagens trocadas entre eles
iam crescendo constantemente.
— Até parece que vão lançar uma ofensiva em
grande escala.
Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.
— Concordo com você, Son. Mas faremos o possível
para ficarmos fora disso.
97
VIII
— ALARMA!
A mensagem percorreu a coluna de Tomisenkow de
ponta a ponta.
Depois que Raskujan apareceu, trazendo clareza
sobre a situação reinante em Vênus, nenhum dos grupos
em luta achou mais necessário brincar de esconder por
meio de uma suspensão das comunicações pelo rádio. Há
muitas horas reinava vida nas faixas de ondas curtas e
ultracurtas. Podiam correr livremente nas imediações do
planeta, pois a barreira levantada pelo cérebro
positrônico só impedia qualquer contato para fora. No
interior da barreira toda e qualquer forma de
comunicação se tornava possível.
O sargento Kossygin mantivera o aparelho portátil
ligado o tempo todo para a recepção. Por isso pôde
transmitir logo a advertência ao general.
A mensagem de alarma foi seguida imediatamente de
instruções mais precisas. Tomisenkow explicou que era
do interesse de cada um segui-las. Os homens se
dividiram em grupos e procuraram se abrigar atrás de
árvores espessas. As armas leves e semipesadas de
infantaria foram colocadas em posição. As metralhadoras
foram montadas em tripés e posicionadas para atirar em
aviões.
Tomisenkow vigiou Thora com olhos de lince.
— Não me cause problemas há esta hora, madame —
disse em tom áspero. — Nos próximos minutos não terei
muito tempo. Não poderei lhe indicar cada passo que
deve dar. Mantenha-se sempre perto de mim.
A linguagem lacônica e enérgica parecia produzir o
efeito desejado. Aborrecida, confirmou com um aceno de
cabeça e não esperou que Tomisenkow a segurasse
brutalmente pela mão e a arrastasse por entre a
vegetação. Seguiu-o espontaneamente.
O general se dirigiu ao posto de rádio.
— Dê-me um fone, cabo.
— As ordens!
Tomisenkow ouviu um chiado que subia e descia pela
escala acústica, enquanto Kossygin procurava sintonizar
o aparelho. Subitamente ouviu os sons familiares de sua
língua materna.
— César para Lúculo. Espalhem-se de acordo com o
plano A. Repito. Nada de bombardeios enquanto a
posição do inimigo não tiver sido perfeitamente
determinada. O estado-maior de Tomisenkow e
principalmente essa arcônida devem cair em nossas mãos
intactos. César aguarda resultados da exploração do
terreno. Fim!
— César e Lúculo! — gemeu Tomisenkow. —
Ouçam só o vocabulário usado por esse bando de
desertores. Mantenha o receptor ligado, cabo.
Kossygin confirmou com um aceno de cabeça.
Conforme se depreendia das indicações de posição
não codificadas, os primeiros helicópteros haviam
atingido a costa ao sul. Pouco depois o ruído dos motores
se tornou perceptível.
O ninho de metralhadora que ficava mais perto do
posto de rádio era comandado pelo pequeno e atarracado
Alicarim.
— Olá, Ali! Aguarde minhas ordens. Não atire antes.
— Às ordens, general.
Uma voz voltou a soar nos fones de ouvido.
— Lúculo para César. Tomisenkow abandonou o
acampamento anterior. Sentido provável de seu
deslocamento aproximadamente para o norte. A distância
é de cinco a dez quilômetros da costa.
— César para Lúculo. Utilizar visores infravermelhos
para a observação no solo. Concentrar-se numa faixa de
dez quilômetros ao sul da costa sul.
Nesse momento o primeiro helicóptero trovejou
exatamente sobre o lugar em que a tropa de Tomisenkow
se encontrava. Os homens iam respirar aliviados quando
o ruído se perdeu por cima da selva. Mas logo se ouviu a
mensagem seguinte.
— Lúculo para César. Localizamos o inimigo.
Tomisenkow suspendeu a marcha. É provável que tenha
assumido uma posição defensiva. Transmitirei as
coordenadas.
— César para todos. Orientem-se por Lúculo II.
Realizem um voo visual. O grupo de desembarque
Otávio desembarcará na faixa costeira e se espalhará em
direção ao sul. O grupo de desembarque Cícero saltará
conforme o plano AB. Ainda não abram fogo.
Furioso, Tomisenkow arrancou o fone do ouvido.
— Quem foi o idiota que andou livremente por aí?
Quero que ele se apresente imediatamente.
É claro que ninguém se apresentou.
— Quando os helicópteros se aproximarem de novo,
abram fogo — ordenou Tomisenkow. Fechou os olhos
por alguns segundos. Thora percebeu que se esforçava
desesperadamente para recuperar o autocontrole. Numa
situação dessas não convém que o comando esteja nas
mãos de um louco furioso.
As tropas de Raskujan se concentraram cada vez mais
em torno do ponto que correspondia às coordenadas
fornecidas pelo observador Lúculo II. Alguns minutos
depois, seis helicópteros passaram em voo rasante sobre
as posições de Tomisenkow.
— Fogo! — berrou o general em meio ao barulho
infernal produzido pelos rotores.
Alicarim leu o comando nos seus lábios mais do que
o ouviu. No mesmo instante a primeira rajada saiu do
cano refrigerado a ar. Poucos segundos depois as
metralhadoras que se encontravam em pontos mais
afastados também começaram a atirar. O som
entrecortado das mesmas se misturou ao barulho dos
helicópteros.
Era evidente que o coronel Raskujan subestimara em
muito o poder de fogo do inimigo. De outra forma nunca
teria dado ordem para um vôo rasante tão
despreocupado. Alguns homens de Wallerinski que
vagabundeavam pela selva deviam ter fornecido um
relato distorcido sobre os remanescentes da divisão
espacial. E, ao que tudo indicava, esqueceram-se de
mencionar que, apesar de todo embrutecimento, os
homens de Tomisenkow ainda não haviam desaprendido
a arte de atirar.
Para os helicópteros, sujeitos à já conhecida proibição
de atirar, o fogo de metralhadora representou uma
surpresa total. Era o oposto exato do primeiro ataque.
— Atingi um! — berrou Alicarim depois das
primeiras três rajadas.
O rotor do primeiro helicóptero se desintegrou. Devia
ter atingido a junta. O helicóptero caiu imediatamente e
com um grande estrondo atingiu uma árvore de uns
98
sessenta metros de altura. Os destroços caíram ao chão.
Alicarim visou outro alvo, quando a derrubada de um
segundo aparelho foi anunciado pelos ocupantes de um
ninho de metralhadora situado mais adiante.
— Tudo está correndo segundo o programa. Continue
a atirar, Ali! Atire! Aquele gorducho que está bem em
cima de nós...
Os êxitos alcançados entusiasmaram Tomisenkow.
Apesar disso manteve-se abrigado, pois a todo instante
contava com uma reação do inimigo.
Pouco depois uma forte detonação superou todo o
ruído da batalha. Alicarim derrubara mais um inimigo.
Atingira-o no tanque de combustível. A máquina
explodiu no ar e os homens que se encontravam no solo
encolheram a cabeça. Uma chuva de destroços aquecidos
e incendiados despencava em todos os cantos.
Nuvens de fumaça subiram em meio à selva.
O general levantou a cabeça.
— Tudo bem por aí?
— Aqui não aconteceu nada, general. Ali vem o
número quatro. Os Raskujan estão chovendo de todos os
quadrantes do céu. Esse sujeito não vai esquecer a lição
que recebeu.
O quirguiz só teria razão em parte. Raskujan extraiu
as conclusões cabíveis dos resultados daquele combate;
mas essas conclusões não determinavam a cessação
completa dos ataques.
Os helicópteros que vinham depois deram meia-volta
assim que viram o que estava acontecendo com os que
iam à frente. O céu estava limpo. Desta vez a divisão
espacial escapara sem perdas.
— Procure entrar em contato com Raskujan — disse
Tomisenkow ao sargento-telegrafista. — E dê-me o
microfone e o fone de ouvido.
— O coronel já está na onda, general — anunciou
Kossygin. — Quer falar pessoalmente com o senhor.
— Passe para cá! Esta o senhor não esperava, não é,
Raskujan? Recomendo-lhe que se submeta às minhas
ordens. Se comparecer pessoalmente dentro de duas
horas, esquecerei tudo que aconteceu até aqui. Dou-lhe
minha palavra de oficial.
— Muito obrigado, general! Não posso prometer que
o encontro seja possível dentro de duas horas. Mas irei
até aí. Não tenha a menor dúvida. Mas recomendo-lhe
que antes de nosso encontro largue toda e qualquer arma
que tenha em seu poder. Eu lhe garanto que não sofrerá
nenhum dano pessoal.
— Raskujan! Será que o senhor não compreende que
está precipitando sua própria desgraça? Não haverá
nenhuma visita como o senhor imagina. Temos armas e
munições para rechaçá-lo mais cem vezes...
— Ora, Tomisenkow! Quando ouço falar, eu até
chego a ter vergonha de saber que já foi meu professor
de estratégia. Não me importarei nem um pouco de
lançar meu próximo ataque com bombas de todos os
calibres. Estou em condições de destruir o senhor e seus
homens dentro de poucos minutos. E o trecho de selva
em que se encontra está cercado por todos os lados pelas
minhas tropas. Reflita à vontade. O senhor pode morrer
de fome e se desgastar aos poucos numa série de
combates, ou então será razoável e permitirá que eu lhe
indique uma habitação condigna numa das nossas naves
espaciais.
— Muito obrigado pela oferta. Sua comodidade é um
sinal de decadência que não me atrai nem um pouco.
Meus homens e eu estamos praticamente casados com
Vênus. Mas seus heróis de salão quebrarão os ossos na
selva. Não deixe de aparecer, coronel! Será tratado
segundo seu comportamento, como um oficial ou como
um criminoso. Pense no assunto. Fim.
Tomisenkow largou o microfone e o fone de ouvido.
— Continue com o receptor ligado, Kossygin. Mas
não responda mais. Quando surgir uma palestra
interessante grave-a até o fim, para que eu possa ouvi-la
depois. Continuaremos a marchar em direção ao litoral.
* * *
Dali a pouco começou a cair uma chuva ligeira, que
logo se transformou num furacão. Isso perturbava a
atividade de ambos os lados. Quando as nuvens
começaram a se dissipar, o crepúsculo já começara a cair
sobre o planeta. Os homens praguejaram. Faltavam
quatro quilômetros para atingir o mar. E, de um instante
para o outro, tinha-se de contar com a presença de uma
patrulha de Raskujan. Daqui em diante teriam uma
vantagem ainda maior, pois dispunham de todos os
equipamentos que a tecnologia humana conseguira criar
até aquela data.
A marcha pela selva prosseguiu. Alicarim manteve-se
mais próximo do estado-maior. O grupo de vanguarda
passara a ser comandado pelo tenente Tanjev, que
conhecia a região por causa das atividades de
patrulhamento que já exercera.
Ainda faltavam três quilômetros para atingir o mar.
Os uniformes estavam molhados e pesavam no corpo.
O calor já diminuíra e o frio da noite começou a se fazer
sentir. Os homens tremiam. A escuridão já reinava sob a
folhagem espessa das árvores.
De repente ouviu-se um tiro. Seguiram-se mais dois,
mais três. Exclamações e gritos. A seguir veio uma
rajada de metralhadora, que cessou de repente após a
detonação de algumas granadas de mão.
Novo fogo de infantaria à esquerda. Metralhadoras,
carabinas e pistolas.
O eco ressoou nas copas das gigantescas árvores. A
gritaria dos habitantes de Vênus em fuga se misturou ao
ruído e desapareceu ao longe. O ruído da batalha
aumentou. Os homens de Raskujan pareciam estar em
toda parte. Também no flanco direito ouviram-se tiros. A
retaguarda lançou mão dos morteiros para se defender;
atirou as granadas a esmo em meio à vegetação
imperscrutável.
O estado-maior de Tomisenkow, deitado no capim,
comprimiu-se junto a um enorme cedro de Vênus.
Naquela escuridão os homens se sentiam totalmente
desorientados.
— O cerco é perfeito — constatou Alicarim, sem que
pretendesse se salientar. — Para escaparmos sãos e
salvos teremos de manter um silêncio profundo. Assim
que atirarmos seremos descobertos.
— Já foram descobertos — disse subitamente uma
voz vinda da escuridão. — Levantem as mãos e deixem
as armas no chão. Estão sendo observados pelo visor
infravermelho. Quem fizer um movimento equívoco ou
proibido será morto imediatamente. Também estou me
referindo à senhora, madame. Venha até aqui. Quase
chego a acreditar que é a criatura sobre cuja cabeça
nosso comandante colocou um prêmio bem apreciável.
99
IX
Dez helicópteros pesados de transporte estavam
enfileirados na praia, como se estivessem preparados
para um desfile.
Perry Rhodan, Marshall e Okura puseram-se em
marcha a partir do lugar em que seu helicóptero havia
caído. Seguiram em direção ao sudeste, onde se
anunciavam operações militares de grande envergadura.
Venceram os dez quilômetros em menos de duas horas,
pois na praia não havia praticamente nenhum obstáculo.
O sol desapareceu no ocidente atrás da muralha
formada pela selva. A chuva cessou.
Okura foi o primeiro que percebeu a presença dos
helicópteros.
— São dez máquinas, chefe. Tudo coisa pesada. Diria
que são helicópteros de transporte de tropas. Em cada um
deles cabem dois tanques de cinquenta toneladas.
— Isso significa que o tiroteio que estamos ouvindo
ali na selva já representa a esperada ofensiva de
Raskujan. Façamos votos para que nada aconteça a
Thora.
Pouco depois Rhodan deu ordem de parar. Agora ele
mesmo e Marshall já reconheciam os contornos dos
aparelhos.
— Naturalmente estão sendo vigiados...
— Chefe, o senhor tem coragem! Quer arriscar mais
uma vez?
— O que vou arriscar?
— Bem, você está cogitando de nova tentativa de
fugir num desses aparelhos. Devo confessar que o plano
não deixa de ser tentador. Afinal, eles não poderão nos
derrubar a toda hora. Um belo dia conseguiremos passar.
— Ou então cairemos para sempre na água ou na
selva.
— Bem, então você acha que não devemos?
— Um helicóptero faz muito barulho, Son. Além
disso, o pessoal logo notaria a falta de um deles. Teriam
um cuidado danado. Não haveria a menor chance de
passarmos.
— Se é assim, qual é a razão do seu otimismo? —
perguntou Marshall sem disfarçar sua contrariedade.
— Vamos refletir minha gente. O que se pode fazer
com um helicóptero de transporte?
— Pode-se voar com ele ou deixá-lo no hangar. Até
hoje não tive conhecimento de outra possibilidade de
utilização.
— O que acha Okura?
O japonês deu de ombros.
— Sei tanto quanto John. Um veículo aéreo decola,
voa e pousa. Fora disso é inútil.
Rhodan esboçou um sorriso condescendente.
— Então isso vem a ser o Exército de Mutantes, a
unidade de elite da Terceira Potência! Muito obrigado,
cavalheiros.
— Um momento, chefe. Sua pergunta se referiu a um
helicóptero. Até aí nossa resposta evidentemente é
correta. Se cogitarmos das peças avulsas, o caso muda de
figura. Pode-se, por exemplo, retirar alguns canhões ou
uma instalação de rádio. Também deve haver munições e
mantimentos.
— Já está melhor, Marshall. O que faz o piloto de um
helicóptero quando cai sobre o mar?
— Desce os barcos infláveis pelo paraquedas. É isso
mesmo! Precisamos de um barco inflável.
— Já estava na hora, John. Então precisamos de um
barco inflável. E vamos arranjá-lo...
Elaboraram seu plano de guerra e se aproximaram
dos veículos estacionados.
— Vejo sentinelas — disse Okura depois de algum
tempo.
— Quantos são?
— Vejo um grupo de três. Não descobri nenhum
outro. Ao que parece se sentem seguros. Naturalmente
tiveram conhecimento do duelo travado entre nós e seus
colegas. Mas tenho certeza de que acreditam que estamos
mortos tal quais os seus companheiros. E nada têm a
temer da parte de Tomisenkow.
— De qualquer maneira nós os observaremos por
algum tempo — decidiu Rhodan.
O momento durou uma hora inteira. Depois disso
tiveram certeza de que não havia outras sentinelas. A
ação programada poderia ter início.
Rhodan teve de prometer que se manteria em
segundo plano. A ferida no ombro era um motivo mais
que suficiente para isso. Além disso, pretendiam fazer o
possível para não matar os três homens. E os dois
mutantes eram os mais indicados para uma observação
bem discreta. Apesar da escuridão, Okura enxergava
muito bem. E Marshall eventualmente conseguia ouvir
pensamentos que não se traduzissem em palavras.
— Vamos, Son.
— Um momento.
O japonês voltou a limpar os óculos. Depois pegou
sua arma de impulsos e os dois se puseram em marcha.
— Será que essa gente dispõe de um visor
infravermelho? Se for assim, poderão nos ver a vários
quilômetros de distância.
— Poderiam, mas não o fazem. Como vê estão
fumando e conversando com as mãos nos bolsos.
Okura e Marshall deitaram e se arrastaram o que
ainda faltava. As rodas de dois metros do primeiro
helicóptero proporcionaram-lhes uma cobertura
provisória.
As sentinelas encontravam-se embaixo do quarto
helicóptero.
— Atire! — cochichou Okura. Marshall fez pontaria
para a aleta do terceiro helicóptero e puxou o gatilho. O
alvo entrou em incandescência e desvaneceu-se em pura
energia. As sentinelas puseram-se a correr aos gritos e
abrigaram-se atrás do último helicóptero.
— Vamos adiante. Cuidado!
Engatinharam embaixo dos helicópteros. Depois
seguiram pela direita, onde o capim lhes fornecia um
abrigo mais perfeito.
— Pare! — disse Marshall com a voz baixa. — Já
basta.
— Alô. Vocês aí. Levantem-se e ponham os braços
para cima.
Okura encolheu a cabeça, pois sua mensagem foi
respondida com um tiro. Se o russo fez sua pontaria
apenas de ouvido, aquele tiro era uma verdadeira obra de
mestre.
— Não desista — insistiu Marshall.
— Se dentro de dez segundos vocês não se
levantarem e vierem até aqui sem armas,
transformaremos um dos helicópteros em ar. Vou
100
contar...
Os homens do Bloco Oriental ainda não estavam
convencidos. Voltaram a atirar. Depois de alguns
segundos Okura atingiu um dos helicópteros que caiu aos
pedaços e deixou de existir.
— Isto foi o segundo ato, cavalheiros. Marshall
estava com o rosto grudado na areia. Infelizmente tinha
que ler os pensamentos de três homens ao mesmo tempo,
o que dificultava sua tarefa. De qualquer maneira
identificou algumas ideias que traziam consigo ares de
capitulação.
— Converse mais um pouco, Son. Daqui a pouco vão
cair.
— Repito pela última vez. Levantem-se e venham
para cá. Sem armas e com os braços levantados. Se
agirem em conformidade com as minhas ordens, nada
lhes acontecerá. Se quiséssemos matá-los, já o teríamos
feito. Dentro de dez segundos mais um helicóptero vai
desaparecer...
Okura contou em voz alta.
Quando chegou aos seis, um dos homens se levantou.
No oito foi seguido pelos outros. Aproximaram-se
conforme lhes fora ordenado: sem armas e com os braços
levantados.
Foram amarrados e colocados em helicópteros.
Marshall disparou um tiro de sinalização com o
radiador térmico. Breve-longo-breve. Era o sinal
convencionado com Rhodan, que chegou pouco depois.
— Isto está liquidado, chefe. Os três estão amarrados
no interior dos primeiros três helicópteros. Podemos
examinar o conteúdo dos outros.
— Foi um serviço bem feito.
Conforme era de esperar, os helicópteros dispunham
de um equipamento completo para a guerra. O barco
inflável trazido pelos russos era uma maravilha de
conforto. Tratava-se de um barco de plástico capaz de
enfrentar o alto-mar, e que cabia num armário embutido.
Uma vez inflado, pelo menos quinze pessoas cabiam
nele. Os tubos de ar comprimido estavam ao lado do
mesmo. Até havia um veículo de duas rodas para o
transporte terrestre.
— Levem tudo para fora — disse Rhodan
apressadamente, quando Marshall anunciava
entusiasticamente suas descobertas.
— Encontrei remédios — exclamou Okura.
— Vamos levar — disse Rhodan laconicamente.
Depois de quinze minutos haviam levado para fora do
helicóptero, além do barco e do motor de popa, uma
caixa com mantimentos, vários tanques de combustível e
a farmácia de bordo. Tudo foi colocado no carro de duas
rodas.
Foram até a água pelo caminho mais curto. Depois
seguiram paralelamente à costa. Marshall voltou para
apagar a pista. Depois destruiu o helicóptero saqueado.
Dessa forma os homens do Bloco Oriental nunca se
lembrariam da possibilidade de que alguém lhes
houvesse roubado um precioso barco de plástico.
O rastro de vários quilômetros que as rodas
produziram na areia logo foi apagado pela água.
Quando Rhodan, Marshall e Okura desembarcaram
numa pequena baía, podiam se sentir seguros de que
ninguém havia adivinhado a finalidade de sua operação.
* * *
O crepúsculo que durara várias horas foi substituído
pela noite.
Voltaram a ouvir as transmissões dos homens do
Bloco Oriental e souberam que Tomisenkow e Thora
haviam sido capturados vivos. Os cumprimentos triunfais
que Raskujan e seus oficiais trocavam pelo rádio
Fizeram com que um sorriso condescendente surgisse
nos lábios de Rhodan.
— Esse homem nem imagina quanto seu triunfo
passageiro me deixa satisfeito. Pelo menos podemos ter
certeza de que nos próximos dias não se matarão com
bombas. E esse coronel com toda sua arrogância bem
que precisaria de um encontro com Thora. O orgulho
dela lhe quebrará os dentes.
— Não me lembro de tê-lo visto tão malicioso —
constatou Okura.
— Ora, Raskujan é meu inimigo. Portanto, meus
desejos devem ser bem compreensíveis... Além disso, o
novo aprisionamento de Thora poderá nos trazer
vantagens de ordem tática. Aquela arcônida orgulhosa
talvez distraia Raskujan um pouco, se conseguir se
transformar num problema para ele. Até agora a fortaleza
de Vênus tem sido seu único problema.
* * *
Inflaram o barco. Era imponente, e estavam
satisfeitos com sua presa.
O exército invasor de Raskujan já se retirara há
algumas horas. Só deixara atrás de si destroços e solidão.
Marshall e Okura trocaram a atadura da ferida de
Rhodan.
— Como se sente chefe?
— Obrigado, já estou melhor. Com este equipamento
não tenho outra alternativa senão ficar logo curado, para
que alcancemos a fortaleza de Vênus dentro de algumas
horas. Acho que já passamos pelo pior. Vamos dormir
um pouco. Daqui a duas horas colocaremos o barco na
água.
Rhodan deitou de costas e fitou a espessa camada de
nuvens. O vento abriu uma brecha e deixou entrever uma
estrela.
— Veja só! — disse Rhodan. — O Universo ainda
existe. Quase que me esqueço.
Reginald Bell, que pretendia vir em auxílio de seu chefe e amigo, teve que admitir que a
chave secreta X também impedia qualquer penetração através da quinta dimensão.
Por isso, Perry Rhodan não pode contar com qualquer auxílio vindo de fora. Tem de se
libertar com suas próprias forças para não perecer na selva do mundo primitivo.
Na Selva do Mundo Primitivo é o título do próximo volume da série Perry Rhodan..
101
Nº 24
De Kurt Mahr Tradução
Richard Paul Neto Digitalização
Vitório Revisão e novo formato W.Q. Moraes
Mesmo para um visitante bem equipado, o mundo primitivo, vegetal e animal,
do planeta Vênus oferecem inúmeros perigos.
Por isso é fácil compreender a situação desesperada em que se encontram
aqueles três homens, praticamente sem recursos, que têm de lutar contra a selva de
Vênus e ainda sofrem uma perseguição implacável de outros homens.
É esta a situação em que Perry Rhodan, John Marshall e Son Okura se
encontram depois da queda de seu destróier espacial. Para não perecerem na
Selva do Mundo Primitivo, terão que atingir quanto antes o abrigo protetor da
fortaleza de Vênus...
102
1
A água borbulhava preguiçosamente. Parecia ser
mais espessa que a água terrena, e realmente era. Quem
enfiasse a mão ali e a retirasse depois de algum tempo,
notaria que a mesma estava coberta por uma camada
gosmenta.
Áloes, unicelulares, microrganismos — a água
regurgitava dessas criaturas e parecia uma solução
coloidal.
Era Vênus, cheia de vida, quase estourando de
vitalidade!
O barco cruzava, a uma velocidade constante, as
ondas sempre iguais, que eram
o último vestígio da tormenta
crepuscular que há mais de oito
horas fustigara a terra plana e o
braço de mar primitivo com
seus trezentos e cinquenta
quilômetros de largura.
O pequeno gerador
ultrassensível espalhava um
zumbido monótono e sonolento,
que pesava sobre as pálpebras.
Mas não podiam dormir,
nenhum deles podia. Fazia mais
de um dia terrestre que não
fechavam os olhos. Era muito
difícil mantê-los abertos na
escuridão, que até ali fora tão
alegre e inofensiva.
Especialmente para aquele
homem com a ferida mal curada
no ombro.
Era Perry Rhodan,
presidente de um Estado
onipotente, a Terceira Potência.
As circunstâncias adversas
fizeram-no descer em Vênus
numa situação de desamparo,
acompanhado apenas de dois
dos seus homens, para que
desse provas de sua energia, dominando a situação
intrincada.
Por enquanto estava muito longe disso. Diante de seu
barco ainda se estendiam quase trezentos quilômetros de
água. Eram trezentos quilômetros recheados de perigos
desconhecidos, trezentos quilômetros durante os quais, a
qualquer segundo, poderia surgir o helicóptero do
coronel Raskujan para atacar a embarcação indefesa. A
escuridão não representava qualquer obstáculo para um
veículo moderno, equipado com visores de luz
infravermelha.
— Será que notaram o desaparecimento do barco
inflável? — perguntou John Marshall, o telepata.
Ninguém sabia. Haviam retirado o barco de um dos
helicópteros de Raskujan, no momento em que a luta
entre as tropas deste e as de Tomisenkow havia chegado
ao ponto mais alto. Depois disso, tiveram a precaução de
destruir o helicóptero.
— É de supor que mais cedo ou mais tarde darão pela
falta do barco, pois não deixarão de examinar os
destroços.
Rhodan ergueu os ombros. O movimento fez a ferida
doer.
— Raskujan vai quebrar a cabeça. Por enquanto nem
sabemos se desconfia da nossa existência.
— E Tomisenkow? Não vai perder tempo; deve
contar logo — objetou Marshall.
Rhodan não estava muito convencido.
— Você não conhece Tomisenkow — retificou. —
Ouvi a palestra de rádio que teve com Raskujan. Este,
com sua frota de abastecimentos, conseguiu agrupar os
homens em torno de si. Não há qualquer tendência para a
indisciplina, e isso por um motivo muito simples: os
homens têm bastante comida para matar a fome. Já o
grupo de Tomisenkow está
completamente desorganizado.
Acontece que Tomisenkow, na sua
qualidade de general, insiste em que
Raskujan, que apenas é coronel, se
submeta a ele. Este, por sua vez, alega
que, face ao amotinamento das tropas
de Tomisenkow, este perdeu os
direitos correspondentes à sua
graduação de general. Ambos são do
Bloco Oriental, mas apesar disso são
inimigos. Não acredito que
Tomisenkow esteja muito disposto a
contar o que quer que seja. Com a
experiência que adquiriu em Vênus, é
o homem indicado até mesmo para
Raskujan. É bem provável que se sinta
seguro e saiba calar a boca.
Son Okura esteve a ponto de
responder. Mas nesse instante ouviu-
se a voz chiante de Marshall, vinda da
proa:
— Pare!
A reação de Rhodan foi imediata.
Apertou uma alavanca e a pequena
hélice saiu da água. O zumbido do
motor, que trabalhava em ponto
morto, subiu um pouco até que
Rhodan o desligasse.
Em redor deles tudo era silêncio, com exceção do
sussurrar preguiçoso da água.
— O que houve? — perguntou Rhodan.
— Olhe — respondeu Marshall e apontou para a
frente.
Rhodan se dirigiu à proa e olhou na direção indicada
por Marshall. Não precisou forçar a vista para enxergar o
trecho de água fluorescente que, a uns cem metros de
distância, se estendia em direção ao leste e ao oeste, até
onde alcançava a vista.
Rhodan se assustou.
— O que é isso? — perguntou Marshall, espantado.
— Não é possível que seja um...
Rhodan fez que sim.
— É isso mesmo. É um tapete luminoso. É o maior
que já vi.
Son Okura também veio à popa. Possuía capacidade
de abranger com a vista certas faixas do campo de
frequências eletromagnéticas que o olho humano comum
não conseguia enxergar. Captava as radiações
infravermelhas, ou seja, os raios de calor, com a mesma
nitidez da luz visível, e esta lhe era tão perceptível como
Personagens Principais deste episódio:
Perry Rhodan — O chefe da Terceira
Potência que se transformou em prisioneiro
de Vênus.
John Marshall, Son Okura —
Companheiros de prisão de Rhodan.
General Tomisenkow — Um comandante
de divisão sem divisão.
Coronel Raskujan — Que dispõe de cento
e vinte e três naves espaciais intactas e por
isso julga ser o senhor absoluto em Vênus.
Thora — Que fugiu de Perry Rhodan e
agora espera ser libertada pelo mesmo.
Reginald Bell — Amigo íntimo e
confidente de Perry Rhodan.
Tako Kakuta — Que já passou pelo
inferno e está disposto a repetir a
experiência
103
as gamas ásperas do ultravioleta.
— O que está vendo? — perguntou Rhodan.
Okura estreitou os olhos. Para ele a água morna do
oceano de Vênus assumia o aspecto de um vasto terreno
inundado de luminosidade. O tapete, que absorvia parte
do calor irradiado pela água e refletia outra parte para
dentro do mar, surgia em sua retina sob a forma de um
longo traço escuro.
— Vai uns três quilômetros para o oeste — disse Son
Okura. — Para o leste não vejo o fim.
Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.
— Então vamos contorná-lo pelo oeste.
Deu partida no motor e colocou a hélice na água.
Girando o leme para a direita, Rhodan fez com que o
barco descrevesse uma curva fechada.
— Isso é tão perigoso assim? — perguntou Marshall.
— Nunca viu um tapete luminoso?
— Só um bem pequeno, numa enseada.
Rhodan acenou com a cabeça.
— Pois eu lhe mostrarei o espetáculo. Se
passássemos no meio dele, estaríamos irremediavelmente
perdidos. Esse tapete fininho tem mais força que dez
motores como este.
O barco deslocava-se na direção noroeste. Rhodan se
esforçou para contornar a extremidade oeste do tapete
luminoso o mais próximo possível. O barco desenvolvia
uma velocidade de trinta quilômetros por hora, ou seja,
cerca de oito metros por segundo. Cada oito metros
percorridos a mais significavam um atraso de um
segundo, e nessa viagem os segundos contavam tanto
quanto as horas ou os dias em outras.
Dali a uns dez minutos, o barco se encontrava
aproximadamente na altura da linha que cortava o tapete
de leste para oeste, passando pelo centro. John Marshall
parecia fascinado diante do quadro. A fluorescência
reluzia nas cores mais variadas e oferecia um espetáculo
de beleza movimentada, cujo encanto nem Rhodan
conseguia subtrair-se, muito embora já tivesse tido
muitas oportunidades de observar o fenômeno.
Era difícil de imaginar que na realidade esse tapete
luminoso era um único animal estendido na água, à
espera da presa. A beleza dissimulava a voracidade e a
violência irresistível com que agarrava sua vítima e a
arrastava para as profundezas.
Rhodan retirou algumas pesadas porcas de parafuso
da caixa de ferramentas e se aproximou de Marshall. A
extremidade do tapete não ficava a menos de quinze
minutos do barco.
— Okura — disse Rhodan em voz baixa.
— Sim.
— Prepare-se para fechar o barco. Aguarde meu
comando.
O japonês confirmou com um aceno de cabeça.
Rhodan deu as porcas a Marshall.
— Atire.
Marshall avaliou lentamente o peso das peças de
metal. Depois, num impulso vigoroso do braço direito,
atirou todas elas sobre o tapete.
A reação foi instantânea. Mal as porcas tocaram o
animal, as cores deste começaram a empalidecer. Dentro
de poucos segundos a luminosidade desapareceu por
completo. Um rugido ensurdecedor fez-se ouvir quando
o tapete luminoso se fechou em torno do lugar em que
fora atingido e começou a arrastar para o fundo aquilo
que acreditava ser uma presa.
As primeiras ondas arrebentaram sobre o barco. A
uns trinta metros a estibordo, o inofensivo tapete
fluorescente transformara-se num amontoado semi-
esférico de cor indeterminada.
Quando a massa enorme começou a mergulhar, as
ondas sustentavam coroas de espuma. Marshall, que
assistia ao espetáculo de queixo caído e olhos
arregalados, perdeu o equilíbrio e teria caído à água se
Rhodan não o tivesse agarrado em tempo.
— Cuidado! — gritou Rhodan.
Son Okura segurava o fecho.
O tapete continuava a crescer, enquanto a parte
inferior de seu corpo, que agora assumia uma forma
esférica, mergulhava numa velocidade cada vez maior. A
contração da substância daquele corpo, que poucos
segundos antes ainda cobrira uma área de vários
quilômetros quadrados, enfurecia o mar como se fosse
um temporal de regular intensidade.
Rhodan permitiu que Marshall contemplasse o
espetáculo até que a água que penetrou no barco passou a
representar um verdadeiro perigo. Só então gritou para
Okura:
— Feche! E segure-se!
Okura arrastou a cobertura para a frente. Com um
ruído metálico a cobertura flexível se fechou sobre o
barco, evitando que fizesse mais água. Marshall e
Rhodan deixaram-se cair ao chão e seguraram-se nas
fitas de plástico presas à parede interna do barco. O
japonês, depois de concluído seu trabalho, perdeu o
equilíbrio e foi atirado por cima de Marshall.
Depois disso o mar jogou bola com eles durante dez
minutos. O barco rodopiava em torno do eixo transversal
e longitudinal. Uma forte pancada repuxou a ferida de
Rhodan e obrigou-o a tirar o braço direito da faixa que o
segurava. Son Okura, que não conseguira se segurar em
tempo, rolou por cima da cabeça em direção à popa e,
com um baque bem audível, bateu contra a madeira da
caixa de ferramentas.
Depois de várias tentativas Rhodan conseguiu se
deslocar para a frente e desligar o motor. A solicitação
variável forçava o mecanismo e, enquanto o barco
estivesse sendo atirado de um lado para outro, o motor de
qualquer maneira não adiantava nada.
Marshall, em cuja homenagem a peça fora encenada,
estava deitado no meio do barco, praguejando em voz
alta. Ainda continuava a praguejar quando o mar voltou a
se acalmar e Rhodan mandou que o japonês abrisse o
barco.
Segurando-se na borda, Marshall conseguiu se pôr de
pé.
— Nunca imaginava que isso fosse tão ruim —
fungou.
Rhodan riu.
— Pois da próxima vez já sabe, não é? Não existe
nada que seja tão perigoso e traiçoeiro como um tapete
luminoso de Vênus.
Voltou a pôr o motor em movimento e colocou o
barco no curso correto. Não tinha a menor idéia de
quanto o barco tinha sido desviado em virtude do
incidente; mas, pelo seu cálculo, o desvio não poderia
fazer uma diferença significativa quanto à sua chegada
ao setor norte da costa.
Por algum tempo mantiveram-se ocupados, retirando
104
a água gosmenta que as ondas levantadas pelo tapete
gigante haviam atirado no interior do barco. O trabalho,
em si bem leve, deixou-os tão cansados que, depois dele,
encostaram-se exaustos à parede do barco e, por algum
tempo, tiveram de lutar com o cansaço que ameaçava
fechar-lhes os olhos.
A ambição desmedida fizera com que o governo do
Bloco Oriental, derrubado há um ano, se aproveitasse da
ausência de Rhodan, que se afastara da Terra, para tentar
se apossar da base montada pela Terceira Potência no
planeta Vênus. Para isso foram enviadas duas grandes
frotas de naves espaciais ao planeta.
“Sem essa ambição”, refletiu Rhodan, “a esta hora
estaríamos não sei onde, mas de qualquer maneira nos
encontraríamos em paz e segurança”.
Provavelmente essa ideia teria induzido reflexões
filosóficas em sua mente, se Okura, que se encontrava na
proa, não se erguesse repentinamente, soltando uma
exclamação de espanto.
Rhodan viu que fitava o céu. Seguiu seu olhar, mas
não viu nada.
Por algum tempo o japonês não disse nada. Rhodan
colocou-se ao seu lado.
— O que houve Son? — gritou. — O que está vendo?
Viu que Okura estava com os olhos arregalados de
susto. Tinha a respiração entrecortada. Antes que
pudesse dizer qualquer coisa, Rhodan ouviu o farfalhar
surdo vindo de cima, que por um instante deixou-o tão
assustado como o japonês.
— É um lagarto voador — fungou Okura. —
Encontra-se na direção noroeste, mas vem exatamente
em nossa direção.
— A que altitude está? — perguntou Rhodan.
— Cerca de cem metros.
— É grande?
O japonês contorceu o rosto.
— Acredito que tenha uns trinta metros de largura.
Esperaram. O farfalhar, que quase chegava a estourar
os nervos, foi se aproximando, tornou-se cada vez mais
forte.
— Daqui a pouco estará acima de nós — disse o
japonês.
E logo em seguida:
— Vai descer; está descrevendo círculos em cima de
nós.
Rhodan deixou cair os ombros.
— Son, fique na popa. Marshall ficará no meio. Eu
cuido do motor. Vamos ficar bem quietos. Son nos
avisará assim que o bicho descer. Quando isso acontecer,
teremos de atirar. Façam boa pontaria, para que não
precisemos atirar mais de uma vez. Os disparos dos
radiadores térmicos são perfeitamente visíveis a vários
quilômetros de distância. Acho que não preciso explicar
o que vai acontecer se uma das sentinelas de Raskujan
observar nossos tiros.
Alguns minutos passaram-se. O motor emitia um
zumbido monótono e as ondas batiam preguiçosamente
no costado do barco.
Subitamente ouviu-se o grito estridente de Okura:
— Está descendo.
* * *
A frota de reforços do coronel Raskujan pousara no
mesmo lugar em que; semanas antes, o general
Tomisenkow fizera descer quinhentas naves espaciais
que se encontravam sob seu comando.
Acontece que Raskujan teve mais sorte que o general.
O acampamento de Tomisenkow fora desmantelado pelo
furacão levantado pela Stardust-III e seus remanescentes
espalhados para os quatro cantos. Tomisenkow levou as
naves intactas para esconderijos situados nas montanhas,
onde a expedição punitiva de Rhodan as inutilizou uma
por uma.
Por isso Raskujan encontrara um campo livre para o
pouso — inclusive a faixa calcinada, coberta de terra
vitrificada, aberta pelo deslocamento da Stardust-III, que
atravessava a selva em linha reta. Raskujan, então ainda
um subordinado do general Tomisenkow, decolara da
Terra com duzentas naves. Trinta e quatro delas foram
perdidas quando a Stardust-III, ao regressar de Vênus
para a Terra, passou em meio à formação; as naves
desajeitadas e pouco manobráveis do Bloco Oriental se
volatilizaram sob o impacto do campo protetor
energético da supernave. Entre as naves perdidas
encontrava-se a capitania, que trazia a bordo o major
Pjotkin.
Raskujan, depois de reagrupar os remanescentes,
prosseguira em sua viagem para Vênus. Outras quarenta
e três naves foram destruídas durante o pouso
aerodinâmico em Vênus. Caíram e, transformadas em
meteoros incandescentes, desapareceram nas florestas ou
no mar.
Cento e vinte e três naves chegaram ao destino sãs e
salvas; pareciam orgulhosas, mas em virtude da falta de
combustível estavam condenadas à imobilidade.
Na época não se encontrou qualquer vestígio de
Tomisenkow. O coronel Raskujan teve de se arranjar
sozinho e viu-se obrigado a decidir, segundo seu livre
arbítrio, como agir para transformar o empreendimento
num verdadeiro êxito.
A tarefa não parecia muito difícil. Os homens que o
haviam enviado para lá desejavam se apossar da
fortaleza da Terceira Potência. Uma vez que, por ocasião
do pouso da frota de apoio, Rhodan não se encontrava
em Vênus, Raskujan pensou que a fortaleza estivesse
desguarnecida e sua conquista seria uma brincadeira.
Mas viu-se obrigado a rever suas ideias sobre o que
vem a ser uma fortaleza. Fazia um ano que, quase
diariamente, quebrava a cabeça nas suas investidas
contra a que tinha diante de si. Rhodan envolvera a base
de Vênus com um campo protetor impenetrável. Entre os
tripulantes de Raskujan havia muitos técnicos — talvez
seria melhor dizer “técnicas”; por motivos sobre os quais
até então Raskujan não tinha a menor ideia, a maioria
dos membros da equipe técnico-científica da frota era
formada por mulheres. Mas até mesmo o técnico mais
competente acaba capitulando diante daquele anteparo
energético impenetrável.
Mas quando Raskujan atingiu esse ponto morto, sua
atenção foi desviada para outro fato. A primeira pista do
general Tomisenkow e de seus homens foi localizada
numa massa de terra em forma de península, que o
enorme continente do hemisfério norte fazia avançar em
direção ao sul, abraçando, por assim dizer, o continente
com o braço de mar de cerca de trezentos e cinquenta
quilômetros de largura.
Raskujan, cuja tarefa consistira inicialmente em dar
apoio à tropa de Tomisenkow, procurou coletar
informações. Soube que a divisão espacial de
105
Tomisenkow, exposta às condições extremamente
ásperas reinantes em Vênus, tornara-se vítima da
desorganização e da indisciplina.
Com isso o plano de Raskujan estava formado:
Tomisenkow e seus homens teriam de ser obrigados a
entrar nos eixos.
Uma vez que dispunha de meios para impor seus
planos aos efetivos de Tomisenkow, roídos pela
desorganização, tinha nas mãos o general, grande parte
da tropa que se mantinha fiel a ele e uma prisioneira
muito mais importante: Thora, a arcônida. Era a mulher
que transmitira a Perry Rhodan grande parte dos
conhecimentos que lhe tornaram possível a instalação da
Terceira Potência.
Raskujan exultou. Exultou até perceber que Thora
tinha por ele mais ou menos a mesma consideração que
ele mesmo tinha diante de uma das incômodas moscas
que proliferavam em Vênus.
Nem se dignou a responder às suas perguntas, muito
menos revelou como poderiam ser rompidos os campos
energéticos que protegiam a fortaleza de Vênus.
Em vista disso, se dirigiu a Tomisenkow. Este não o
tratou muito melhor do que Thora, e isso o incomodou
ainda mais. No fundo Raskujan era uma criatura
subalterna, carregada de complexos de inferioridade.
Uma vez que teve a coragem de atacar e prender um
general, esperava que este se comportasse como um
prisioneiro, não como um general.
Desde sua prisão, ou melhor, desde o pouso dos
helicópteros no acampamento de Raskujan, Tomisenkow
já havia enfrentado cinco interrogatórios. Para um
homem como ele, que durante um ano tivera ocasião de
pôr os nervos à prova nos perigos da selva de Vênus, isso
não passava de episódios inofensivos e sem a menor
importância. Além disso, os oficiais investigadores de
Raskujan, ao se defrontarem com um general, mesmo
que este não mais usasse as platinas, pareciam sofrer dos
mesmos complexos que seu comandante.
Depois que o temporal crepuscular havia desabado
sobre o solo, Raskujan fez com que o prisioneiro
comparecesse à sua presença, na sala de comando da
nave capitania.
Raskujan tinha uma pistola automática bem visível
sobre os joelhos. Não convidou Tomisenkow a sentar.
— Pelo que ouço — principiou — o senhor se recusa
a prestar qualquer colaboração à nossa frota.
Para Tomisenkow, esse introito não parecia
representar uma pergunta; ao menos, não se dignou a dar
qualquer resposta.
— Responda! — rosnou Raskujan.
— Qual é a pergunta? — indagou Tomisenkow
tranquilamente.
— Por que não quer cooperar comigo?
O rosto de Tomisenkow contraiu-se num sorriso de
deboche.
— Por que não quer cooperar comigo? — perguntou.
Por um instante Raskujan ficou atônito. Depois
cometeu um erro: respondeu à pergunta de Tomisenkow.
— Porque sua divisão está desorganizada e roída pela
indisciplina — respondeu.
— Isso não é motivo para negar sua colaboração. O
senhor foi enviado para cá a fim de me dar apoio,
inclusive moral, se necessário. Mas em vez de fazer
qualquer esforço para localizar minha divisão e, se fosse
o caso, reorganizá-la, o senhor deixou-se ficar por aqui e
realizou algumas tentativas estúpidas para penetrar na
base de Rhodan. Quando acabou descobrindo nosso
paradeiro não achou coisa melhor para fazer senão nos
atacar. Atacar justamente a nós, a quem o senhor deveria
ter trazido apoio!
Raskujan se esforçou para guardar a compostura.
— Como ex-oficial o senhor sabe perfeitamente que
tipo de influência os elementos desmoralizados que se
encontravam em sua companhia teriam exercido sobre
minha tropa. Não tive outra alternativa senão demarcar
desde logo claramente os fronts. Meu regimento não tem
mais nada com sua divisão.
Tomisenkow fez um gesto tão depreciativo que
Raskujan teve de se esforçar ao máximo para reprimir a
fúria de que se sentia possuído.
— Vá contar isso a outro — disse Tomisenkow. — Já
se esqueceu de que serviu por alguns anos em minha
companhia? Naquele tempo, em que ainda era um jovem
tenente, já fazia questão de se salientar toda vez que
surgia uma oportunidade. Não, Raskujan, a coisa não é
tão simples assim. Em Vênus surgiu a oportunidade de
bancar o onipotente. Eu era a única pessoa que, em
virtude da graduação, podia estragar seu jogo. Por isso
inventou alguma coisa e nos atacou. E tudo isso apenas
para que o senhor pudesse continuar a desempenhar esse
papel miserável.
Raskujan se levantou de um salto.
Levou algum tempo para recuperar a fala.
— Isso é... isso é... não se esqueça de que é meu...
Nesse instante a sineta do radiorreceptor interrompeu
aquele balbuciar indignado. Raskujan virou-se
abruptamente e bateu com a mão espalmada sobre a
chave.
— Coronel, observamos um estranho fenômeno
luminoso — principiou a sentinela sem qualquer
preâmbulo. — Direção, cento e cinquenta e três graus,
distância aproximada de duzentos e cinquenta
quilômetros.
Raskujan franziu a testa.
— Descreva! — ordenou.
— Parece um facho de luz de três holofotes, coronel
— respondeu a sentinela. — Apenas a intensidade deve
ter sido muito maior que a de um holofote convencional.
— Quantas vezes foi observado o fenômeno?
— Uma única vez.
— Está bem; obrigado.
A palestra foi interrompida. Raskujan fez outra
ligação. Uma voz metálica respondeu.
— Capitão, pegue dois helicópteros e dê uma busca
no mar — ordenou. — Peça os dados ao posto central de
vigilância. Observaram fenômenos luminosos estranhos.
Quero saber de que se trata.
O capitão confirmou a recepção da ordem. Raskujan
desligou o receptor e voltou a encarar Tomisenkow.
Este sorriu.
— Qual é a graça? — perguntou Raskujan em tom
áspero.
— Acredito — disse Tomisenkow em voz baixa,
apreciando o efeito de suas palavras — que o senhor tem
alguém nos seus calcanhares que lhe ensinará que, em
Vênus, um coronel deve se conduzir com muita
humildade.
* * *
106
O farfalhar cresceu num trovejar quando o lagarto
desceu sobre o barco. Rhodan se reclinou contra o
costado e olhou na direção de que vinha o ruído.
A única coisa que viu foi uma sombra gigantesca que,
numa velocidade inacreditável, passou por cima do barco
na direção norte—sul e voltou a desaparecer na
escuridão.
O ruído se afastou, tornando-se cada vez mais fraco.
Depois se manteve constante por alguns segundos e
voltou a crescer.
Rhodan perguntou de si para si até onde deveria
arriscar. Ninguém saberia dizer se o lagarto atacaria
nessa revoada ou nas próximas. Era possível que nem
chegasse a fazê-lo.
Mas, de qualquer maneira, seria tarde para atirar
quando tivesse um dos três homens nas garras.
O ruído foi se tornando cada vez mais forte.
— Atirem quando estiver em cima de nós — disse
Rhodan com a voz áspera e em tom decidido.
Apontaram as armas na direção exata. O ruído
cresceu ainda mais, começando a produzir um zumbido
nos ouvidos.
De repente apareceu!
Era uma sombra negra na escuridão cinzenta, maior
que da outra vez e de forma praticamente indefinível.
Rhodan seguiu a sombra com o cano do radiador de
impulsos térmicos. Quando o lagarto se encontrava bem
em cima do barco, ordenou:
— Fogo!
Uma ofuscante luminosidade branco-azulada saiu dos
canos, iluminou por uma fração de segundo o corpo
horrível do lagarto, coberto de uma pele áspera, e
atingiu-o com toda sua potência.
O grito do animal poderia ser ouvido a quilômetros
de distância. Mas não durou muito. Algumas centenas de
megawats de energia térmica mataram o animal, cujo
corpo incendiado caiu ao mar.
Rhodan largou a arma e pegou o leme. Ainda deixou
que a enorme vaga levantada pelo impacto do animal
sobre a água atingisse o barco de frente; mas logo girou o
leme e fez o barco descrever um grande círculo para o
leste.
Só dali a vinte minutos retomou o curso anterior. Os
movimentos do leme, que por uma questão de hábito
executava com a mão direita, fizeram seu ombro doer de
novo. Praguejou em voz baixa por causa de sua relativa
incapacidade e manifestou o desejo de ter à mão uma
caixa de primeiros socorros da farmácia arcônida. Com
ela estaria recuperado dentro de poucas horas.
Son Okura continuava sentado na proa, de olhos fitos
no norte. Apenas Marshall parecia acreditar que, uma
vez morto o lagarto, o maior perigo havia passado.
Deitado de costas no centro do barco mantinha as mãos
entrelaçadas em baixo da nuca.
— Levante-se, homem cansado — disse Rhodan. —
Daqui a pouco teremos trabalho de novo.
Marshall se assustou.
— Que trabalho será este? — perguntou desanimado.
— Infelizmente há um fenômeno luminoso que
acompanha a emissão de calor produzida pela arma
térmica — disse em tom professoral. — E, com a
atmosfera limpa, o mesmo se tornara perceptível a uns
quinhentos quilômetros de distância. Sabe lá o que isso
significa?
Marshall se levantou com um gemido.
— Está bem — resmungou. — E o que vamos fazer
se acontecer aquilo que prevê?
Rhodan sorriu.
— Continuaremos a atirar — respondeu em tom
indiferente.
* * *
O capitão que Raskujan enviara para o mar com dois
helicópteros não precisou se esforçar muito para
descobrir o barco inflável, que não era muito pequeno.
A oitenta quilômetros de distância produziu um
reflexo fraco, mas inconfundível sobre a tela de radar, e a
cem metros o holofote de luz infravermelha e o binóculo
noturno tornaram perfeitamente visíveis os três homens
que o tripulavam.
O capitão recomendou uma atenção toda especial aos
artilheiros de bordo e transmitiu idênticas aos ocupantes
do outro aparelho.
Depois desceu e se aproximou cautelosamente do
barco.
* * *
Ouviram as batidas dos rotores dos helicópteros e o
chiado agudo dos jatos. Son Okura viu dois aparelhos
que se aproximavam do norte a uma altitude
considerável.
Para Rhodan isso não constituía nenhuma surpresa; já
os aguardava.
Subitamente Okura, que mantinha seu posto de
observação na proa do barco, recuou com um grito e
cobriu o rosto com ambos os braços. Foi quando o
comandante dirigiu o holofote de luz infravermelha sobre
o barco e observou-o através de um filtro ótico.
Rhodan procurou adivinhar o pensamento do
inimigo.
“Verá o barco”, pensou. “E também sabe que
nenhum dos helicópteros de Raskujan foi perdido em
cima do mar. Logo, acreditará que somos gente de
Tomisenkow ou então...”
A reflexão não chegou ao fim. Os dois helicópteros
se aproximaram, e a violência com que o fizeram não
deixava nenhuma dúvida sobre suas intenções:
pretendiam atacar o barco.
— Deitem-se no chão! — gritou Rhodan. — E
apontem as armas para cima!
Marshall e Okura obedeceram imediatamente. Um
canhão automático começou a emitir seus sons
entrecortados, outro seguiu seu exemplo, e Rhodan
percebeu os solavancos de seu barco. Em meio do
barulho ouviu que o zumbido do motor mudava de tom, e
logo viu um dos helicópteros bem em cima de si.
Não sabia se Okura ou Marshall já haviam atirado.
Não viu o relampejo de suas armas. Encostou a coronha
do radiador de impulsos térmicos firmemente ao tronco,
para que a arma apontasse bem para cima, e puxou o
gatilho.
A descarga não produziu qualquer recuo da arma.
Num jogo feérico, o raio ofuscante atravessou a
escuridão e atingiu o helicóptero antes que este pudesse
se afastar. Houve uma detonação ensurdecedora quando
o tanque de combustível explodiu, e uma chuva de peças
de metal incandescente caiu na água em torno do barco,
107
produzindo um forte chiado.
O outro helicóptero acompanhou a cena e se afastou
em tempo. Mais adiante descreveu círculos a poucos
metros acima da água.
Rhodan engatinhou para frente. Marshall ainda estava
deitado, tal qual Rhodan lhe ordenara. Ao ver este,
sorriu.
Son Okura se colocara de joelhos e observava o
segundo helicóptero, que descrevia círculos em torno do
barco. Rhodan ligou o minitransmissor que trazia no
pulso e fez o regulador de frequências percorrer todas as
faixas. Não ouviu nada além do chiado produzido pelas
perturbações atmosféricas. O piloto do helicóptero ainda
não julgava necessário informar a base sobre o incidente.
Rhodan tinha certeza de que logo o faria, ou então
tentaria um segundo ataque antes disso.
Esperaram.
Okura levantou o braço direito.
— Está apertando os círculos! — exclamou.
Rhodan fitou a escuridão. Não viu nada.
— A que distância se encontra? — perguntou.
— A distância média é de cerca de cento e cinquenta
metros — respondeu o japonês.
Rhodan acenou com a cabeça.
— Pois mostre o que achamos dele — disse a Okura.
“Estão muito enganados”, pensou. “Querem
experimentar o alcance dos nossos radiadores. Mas nem
desconfiam de que um radiador de impulsos térmicos
desenvolve potência máxima até o fim de seu alcance.
Acreditam que poderão aguardar o próximo tiro e fugir
em tempo.”
Son Okura ajoelhou-se junto à borda do barco e
apoiou o radiador sobre a mesma. Estreitou os olhos e
inclinou a cabeça para frente; foi quando o holofote de
luz infravermelha do helicóptero passou por cima dele.
Depois se esmerou na pontaria. Rhodan viu quando o
dedo se entortou de encontro ao gatilho. Apesar disso, se
assustou quando o raio branco-azulado da grossura de
um dedo saiu do cano.
O helicóptero de Raskujan não teve a menor chance.
Caiu e, com uma forte explosão, desmanchou-se no mar.
Rhodan respirou aliviado. Empurrou Marshall para o
lado e dirigiu-se para o lado em que ficava o motor. Na
pressa apenas conseguira amarrar o leme, e agora...
Quando chegou à popa, estacou. Viu que a fita de
plástico com que amarrara o leme se esfacelara e estava
jogada no chão. Do leme não existia mais nada.
Atirou-se ao chão e examinou o bloco do motor
envolto em metal leve. Viu os vestígios de um projétil de
canhão automático e identificou o local de impacto.
Arrancara o leme e demolira o motor!
Rhodan ficou deitado por um instante. Bateu com os
punhos no estojo de metal leve. Antes só se poderia
desprendê-lo do motor com o auxílio de chaves de fenda
e cortadores de metal; mas agora as primeiras três
pancadas fizeram com que balançasse, e com a quinta
pancada pôde retirá-lo sem maiores dificuldades.
Um olhar lhe bastou para compreender a situação. O
projétil explodira junto à pequena e potente turbina. E
esta não pôde ser reconhecida nem mesmo pelo formato;
transformara-se num montão fibroso e disforme de chapa
metálica enegrecida.
Rhodan levantou-se. Sentiu-se um pouco fraco nos
joelhos, mas logo venceu a fraqueza.
— O barco está em ordem — gritou Marshall
bastante animado. — Todos os furos produzidos pelos
impactos fecharam-se conforme deviam. O barco quase
não fez água.
Rhodan contorceu o rosto. Atravessou o barco
balouçante em direção a Marshall. Este viu o rosto sério
do chefe.
— O que foi?
Rhodan colocou a mão sobre seu ombro.
— Comece a chamar de novo, Marshall — ordenou a
voz tranquila. — O motor está quebrado, e nenhum de
nós sabe consertá-lo. Pelo meu cálculo estamos a uma
distância de duzentos e vinte quilômetros da costa norte
do continente norte e cento e trinta quilômetros da costa
norte da península. Logo, não podemos ir para a frente
nem para trás. Tente mais uma vez entrar em contato
com as focas.
Com um sorriso animador acrescentou:
— Se não conseguir, teremos que nadar.
2
Raskujan ainda ficou discutindo quase uma hora com
Tomisenkow e quase chegou a esquecer que não tinha
necessidade de manter discussões com um prisioneiro.
Depois de algum tempo veio à notícia de que novamente
haviam sido observados por duas vezes estranhos
fenômenos luminosos no mar aberto. Como até então
Raskujan não tivesse recebido qualquer notícia dos dois
helicópteros que enviara ao local, começou a ficar
108
nervoso e mandou que a sentinela levasse Tomisenkow
antes que este pudesse dar vazão ao seu triunfo sobre o
fracasso da missão.
Tomisenkow caminhava tranquilamente entre as duas
sentinelas. Atravessou o acampamento, livre de qualquer
vegetação. A cerca levantada em volta do campo de
prisioneiros surgiu na escuridão. As duas sentinelas
entregaram o prisioneiro a uma das quatro sentinelas
postadas junto ao portão do campo e esta o levou à sua
barraca, onde o entregou à sua sentinela particular.
Não foi em vão que Tomisenkow havia estudado
cuidadosamente e decorado, não um mapa do campo de
prisioneiros, mas aquilo que seus olhos treinados viram
dia por dia. Estaria em condições de atingir seu destino
de olhos fechados; por isso a escuridão quase
impenetrável que fazia com que os soldados ainda não
habituados às condições reinantes em Vênus andassem
aos tropeções, fornecia a melhor oportunidade para a
execução de seu plano.
Começou a agir tranquila e metodicamente. Sua
barraca não possuía um soalho próprio; o chão era
formado de terra venusiana batida. Tomisenkow tirou
uma das botas e começou a arranhar o chão, colocando a
terra na bota.
Dentro de quinze minutos a bota ficou cheia até em
cima. Tomisenkow comprimiu a terra com o punho
fechado. Depois segurou a estranha ferramenta na mão
direita e pesou-a cuidadosamente. Parecia ter o peso de
um saco de areia do mesmo tamanho.
Lançou os olhos em torno de si. A barraca não era
muito grande e era fácil abrangê-la com a vista.
Tomisenkow encontrou um canto apropriado para seu
projeto.
Infelizmente não podia modificar a posição da
lâmpada que iluminava o interior da barraca. Poderia
quebrá-la, mas nesse caso...
Agachou-se num dos cantos, de costas para a entrada,
e olhou ostensivamente para o chão. Depois de um
ligeiro preparativo começou a gritar:
— Sentinela! Sentineeelaa!
Parecia um grito de pavor, e o resultado não se fez
esperar. A barraca foi aberta abruptamente. Tomisenkow
virou-se ligeiramente para o lado e esforçou-se para dar
ao seu rosto uma expressão de pavor.
— O que houve? — perguntou a sentinela.
Tomisenkow, esbaforido, fez alguns movimentos
com a mão.
— É aqui... — gemeu — no canto... depressa!
Em Vênus havia muitas criaturas monstruosas,
inclusive algumas que abrem seu caminho por baixo do
solo e de repente surgem no interior de uma barraca. A
sentinela não ignorava isso.
Entrou de pistola automática em punho e fez sinal
para que Tomisenkow se afastasse quando se dirigiu ao
canto da barraca.
Tomisenkow afastou-se.
— Uma espécie de verme... — gemeu. Ficou numa
posição tal que sua sombra caia exatamente no canto que
a sentinela devia examinar. Mal a sentinela tinha passado
por ele, pegou a bota cheia de terra e segurou-a
firmemente pelo cano.
— Saia da luz! — ordenou a sentinela e, sem olhar
para Tomisenkow, sacudiu a mão.
Tomisenkow deixou que a luz caísse sobre a
sentinela, avançando um passo em sua direção.
Assegurou-se de que o homem já não poderia ver sua
sombra.
Levantou o braço direito e, com a bota cheia de areia,
golpeou a cabeça da sentinela. Esta caiu para a frente e
ficou estendida no chão.
Com um movimento automático, Tomisenkow
esvaziou a bota e, com o pé direito, espalhou a terra pelo
chão. Depois pegou as cordas que fabricara com pedaços
da barraca e amarrou o homem inconsciente. Além disso,
enfiou-lhe um lenço na boca, para servir de mordaça.
Finalmente colocou o homem atrás de sua cama
primitiva, para que o mesmo não pudesse ser visto da
entrada, pelo menos ao primeiro relance de olhos.
Colocou a pistola automática sobre a cama, para que a
sentinela pudesse vê-la ao despertar.
Tomisenkow sabia como agir face à situação.
Saiu da barraca.
Não foi muito difícil deslocar-se pela escuridão até
alcançar a maior de todas as barracas, situada acerca de
cem metros, muito embora as sentinelas fizessem de
conta que nada lhes poderia escapar.
“Na verdade estão com medo”, pensou Tomisenkow
com uma certa sensação de desprezo. “Estão com medo
de que, de repente, saia do chão um verme gigante.”
Chegavam a assobiar canções para espantar o medo.
Tomisenkow levou quinze minutos para percorrer os
cem metros. Verificou que diante da barraca havia três
sentinelas. Isso não o perturbou; só no ponto em que as
cordas são amarradas às cavilhas, a barraca fica grudada
ao chão. Entre as cavilhas um homem normal pode
penetrar na barraca; basta levantar a lona um pouco.
Foi o que Tomisenkow fez. No interior da barraca a
luz estava acesa.
Ouviu um grito de pavor abafado. Entrou de vez e se
levantou. Num movimento instantâneo, pôs o dedo no
lábio e fez um movimento em direção à entrada.
Só depois disso cumprimentou a mulher com uma
ligeira mesura, sem dizer uma palavra.
O cumprimento foi dirigido a Thora, a arcônida.
O mundo natal de Thora ficava a uma distância tal da
Terra e do sistema solar que Tomisenkow nem podia
imaginá-lo.
Há alguns anos Thora pousara na Lua com sua nave
exploradora, colaborou com Rhodan e ajudou-o a montar
a estrutura artificial, mas sumamente estável da Terceira
Potência.
Até poucos dias antes, contados pelo tempo terrestre,
Thora fora sua prisioneira.
— Pouco importa que a senhora goste ou não de mim
— disse Tomisenkow apressadamente no seu péssimo
inglês. — Não faça barulho! Não lhe farei nada.
Thora não respondeu. Seus lábios contraíram-se
ligeiramente e esboçaram um sorriso que era tão
zombeteiro e depreciativo que Tomisenkow teve de se
esforçar para reprimir a raiva.
— Não disponho de muito tempo — prosseguiu. —
De cinquenta em cinquenta minutos é realizada a
inspeção das sentinelas. Quer dizer que dentro de quinze
minutos no máximo terei que dar o fora.
O olhar zombeteiro de Thora deixou-o irritado.
Esforçou-se para formular sua proposta em termos
precisos.
— Quero cooperar com a senhora — principiou.
109
Thora achou que essa proposta não devia ser
respondida.
— Sabe perfeitamente — prosseguiu Tomisenkow —
que para nós não seria difícil dominar as sentinelas de
Raskujan. As dificuldades começarão quando tivermos
saído do acampamento. Não dispomos de outras armas
além das que conseguimos tirar das sentinelas, enquanto
Raskujan dispõe de helicópteros e mais uma porção de
coisas. Não levaria mais de uma hora para nos
recapturar. Isso quer dizer que devemos saber para onde
ir depois que tivermos escapado. Ficaria a cargo da
senhora nos indicar a direção.
Thora encarou-o; a expressão de desprezo que se
desenhava em seu rosto continuava inalterada.
— Será que o senhor acha — disse depois de algum
tempo — que eu vou cair num truque primário como
este?
Tomisenkow não se exaltou. Contava com a objeção.
— Não é nenhum truque. Reflita e há de concordar
comigo. Que interesse teria eu para ser desleal para com
a senhora? A verdade nua e crua é que nos encontramos
no mesmo barco. E não adianta que permaneçamos neste
acampamento com as mãos no regaço, esperando que de
algum lugar surja um milagre.
Thora parecia refletir.
— E quem me garante — perguntou depois de algum
tempo — que com sua ação não irei... gosto de usar
expressões terrenas, não irei de mal a pior?
Tomisenkow deu de ombros.
— Se ainda não percebeu a diferença entre as minhas
intenções e as de Raskujan — respondeu em tom
deprimido — ainda não conhece os homens.
Thora deu uma risada irônica.
— A única coisa que conheço nos homens é a
tendência irreprimível de quebrarem a cabeça uns dos
outros.
Tomisenkow se levantou.
— Naturalmente — resmungou com a voz
contrariada. — Seu povo nunca fez uma coisa dessas.
Sua raça emergiu numa inocência total de sua
predecessora.
Não deixou que Thora respondesse.
— Eu lhe ofereci minha cooperação — declarou. —
No momento tenho a impressão de que a vantagem que a
senhora tiraria do trabalho conjunto seria maior que a
minha. Mantenho a oferta. Pense a respeito. Dentro em
breve voltarei a visitá-la para ouvir sua resposta. Até a
vista.
Abaixou-se e passou por baixo da lona.
Dentro de quinze minutos alcançou sua barraca, sem
que uma única vez tivesse estado em perigo de ser
descoberto. A sentinela amarrada já havia recuperado a
consciência. O homem encarou-o com os olhos
arregalados e enfurecidos.
Tomisenkow agachou-se à sua frente.
— Escute rapaz — disse. — Como vê, deixei sua
arma aqui mesmo. Apenas dei um pequeno passeio que
você provavelmente não teria permitido se eu lhe
pedisse. Por causa disso tive de me livrar de você por
algum tempo. Sinto muito se o machuquei. Daqui a
pouco virá a inspeção das sentinelas. Até lá você estará
livre e terá a arma pendurada sobre o ombro. Você
poderá avisar o incidente ou ficar quieto; depende
inteiramente de você. Da minha parte ninguém saberá
nada, pode ter certeza.
Pôs-se a desamarrar o homem. Por fim retirou a
mordaça.
— Levante rapaz! — ordenou.
A sentinela levantou-se, um tanto perplexo e
desajeitado. Logo pôs a mão na pistola automática.
Depois lançou um olhar desconfiado para Tomisenkow.
Este enfrentou o olhar. Depois de algum tempo
perguntou:
— Está com dor de cabeça?
Surpreso, o homem sacudiu a cabeça.
Depois ambos começaram a rir. Tomisenkow deu
uma forte pancada no ombro da sentinela.
— Você está bem, cabo — disse. — Não me
esquecerei de você quando tudo tiver passado.
A sentinela saiu da barraca e lá fora refletiu sobre o
significado das palavras de Tomisenkow. Estava tão
concentrado que deixou a ronda passar, limitando-se a
dizer:
— Cabo Wlassov. Tudo em ordem.
* * *
Fazia duas horas que John Marshall, um telepata
dotado de energias mentais extraordinárias, emitia
ininterruptamente sua mensagem.
“Venham focas, venham nos ajudar. Somos amigos e
merecemos seu auxílio.”
Há duas horas estava esperando que, diante dele ou
ao lado do barco imobilizado, a cabeça de uma foca
emergisse da água, mas esperava em vão. Não vinha
nada, e o esgotamento total fazia dançar diante de seus
olhos um mundo de figuras coloridas.
A emissão das mensagens telepáticas esgotara as
últimas reservas de energia de seu organismo. Sabia que
as focas não eram verdadeiros animais marítimos.
Viviam próximo à costa, de preferência nos fiordes que
penetravam profundamente na terra; e o ponto mais
próximo da costa distava a menos de cem quilômetros do
lugar em que o barco se encontrava naquele instante.
Marshall esforçara-se para vencer essa distância; mas
o zumbido que ouvia na cabeça dizia-lhe que seus
esforços não poderiam prosseguir por muito tempo.
Ainda durariam alguns minutos, talvez uns oito ou
dez, depois estaria no fim de suas forças.
Son Okura estava agachado em atitude apática na
proa do barco. Vez por outra levantava a cabeça e fazia
os olhos deslizarem sobre o mar; mas não havia nada.
Nada que pudesse representar um perigo e nada que
pudesse interromper, por um instante que fosse, a
monotonia da espera.
A atenção de Perry Rhodan concentrou-se ora no
ouvido, ora em suas reflexões. As reflexões giravam em
torno da maneira pela qual a situação atual poderia ser
modificada se as mensagens emitidas por Marshall não
fossem coroadas de êxito. O que Rhodan sabia a respeito
das focas era muito pouco. Sabia que possuíam certo
grau de inteligência, que lhes permitia usar uma
linguagem própria, e que a comunicação com elas era
possível num nível bastante primitivo. Não sabia se iriam
reagir à mensagem, caso conseguissem captá-la. Era bem
possível que não se interessassem em saber quem se
encontrava em situação difícil na imensidão do mar.
O ouvido procurou captar os ruídos que, segundo
110
esperava Perry Rhodan, surgiriam no curso da próxima
hora. Bastante tempo já se passara depois da derrubada
dos dois helicópteros. Fosse qual fosse sua opinião sobre
a habilidade militar do coronel Raskujan, mais cedo ou
mais tarde o mesmo enviaria um grupo maior de
helicópteros para descobrir o paradeiro dos dois
aparelhos que decolaram em primeiro lugar.
E nesse caso só mesmo com uma sorte além de toda
medida o barco deixaria de ser localizado.
“Não podemos elaborar planos se temos de calcular
com a sorte”, pensou Rhodan com certa disposição
amarga.
O grito abafado de Son Okura despertou-o de suas
reflexões.
— Estão chegando!
Rhodan se levantou.
— Quem está chegando?
Son Okura também se levantou e se inclinou para
fora do barco. Rhodan viu que observava a superfície do
mar, não o céu.
— Quem está chegando, Son? — perguntou.
O japonês estendeu o braço.
— Ali, são as focas.
Rhodan ouviu um ligeiro rumorejar da água, que não
se adaptava ao ritmo das ondas. Uma massa escura e
brilhante emergiu a poucos metros do barco e
aproximou-se devagar.
— Marshall, venha cá! — gritou Rhodan.
Marshall levantou-se e avançou a passos
cambaleantes. As cabeças de outras focas surgiram
acima da água e se aproximaram. Rhodan contou trinta
ao todo.
Percebia-se que Marshall não aguentaria mais por
muito tempo. Rhodan deu-lhe uma batida carinhosa no
ombro e disse:
— Mais um instante, e estará livre disso. Explique-
lhes a situação em que nos encontramos.
Marshall inclinou-se por cima da popa para se
aproximar das focas e ter um apoio para o corpo cansado.
Concebeu em ideias simples e facilmente compreensíveis
o relato do que lhes havia acontecido e a explicação do
auxílio de que precisavam.
Felizmente as focas não tinham nada de obtusas e
estavam dispostas a ajudar. Marshall transmitiu a
Rhodan a sugestão formulada pelas mesmas:
— Poderiam rebocar nosso barco, desde que
tenhamos correias para isso. Pretendem formar equipes
de dez e se revezar.
Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.
— Era mais ou menos isso que eu imaginava. Está
tudo em ordem, temos correias em número suficiente.
Cortaram o longo fio da âncora em pedaços de
comprimento adequado. Ajuntaram os cabos de
atracação e fizeram laços segundo as indicações das
focas, traduzidas por Marshall. Toda a operação não
demorou mais que quinze minutos. As focas
precipitaram-se para dentro dos laços antes que estes
pudessem afundar e firmaram os mesmos com suas
potentes nadadeiras das costas e da barriga. Ao que tudo
indicava os cortes dos delgados fios de plásticos nada
conseguiram fazer à sua pele, que tinha a consistência do
couro curtido e, por baixo, uma grossa camada de
gordura.
— Estão perguntando para onde queremos ir — disse
Marshall.
Rhodan refletiu.
— Pergunte-lhes se podem nos levar à faixa de terra
que liga a península ao continente.
Marshall formulou a pergunta.
— Dizem que sim — respondeu.
Rhodan pretendia dizer mais alguma coisa, mas nesse
instante o barco pôs-se em movimento. As focas não
precisaram de outras instruções. A embarcação
desajeitada cortou as ondas a uma velocidade que,
segundo os cálculos de Rhodan, excedia em cinqüenta
por cento aquela que o motor conseguia lhe imprimir.
Mergulhado em pensamentos, Marshall contemplou
as cabeças brilhantes das focas rebocadoras e das que
acompanhavam o barco pelos dois lados.
Depois se deixou cair ao chão. A cabeça estava
deitada numa pequena poça de água gosmenta que
escapara à atenção dos ocupantes quando estes
esvaziaram o barco. Mas o fato não o perturbou. Mal se
ajeitara no chão, adormeceu.
Rhodan e o japonês trocaram olhares significativos.
Agachados na proa observavam as focas. Rhodan ficou
admirado porque dez focas conseguiam imprimir ao
barco uma velocidade maior que um motor de turbina
com trinta cavalos de potência. Um aumento de
velocidade de cinquenta por cento significava um
aumento de potência superior a cem por cento, desde que
o grau de utilização fosse idêntico. Uma vez admitido
esse pressuposto, tornava-se evidente que cada uma das
dez focas desenvolvia uma potência de cerca de dez
cavalos-vapor.
Provavelmente seu grau de utilização era um pouco
superior ao do motor com a complicada propulsão a
hélice. Assim mesmo, porém, a potência de cada foca
não seria inferior a quatro ou cinco cavalos-vapor.
Pela primeira vez Rhodan compreendeu onde residia
a diferença entre as criaturas desse mundo jovem e as da
Terra, que em comparação era infinitamente velha. Pela
primeira vez compreendeu que significado elevado
assume o conceito de vitalidade.
* * *
O coronel Raskujan cometeu um erro: preocupou-se
com as duas pessoas mais importantes que tinha entre
seus prisioneiros — Thora e Tomisenkow — antes de se
lembrar dos dois helicópteros que enviara para o mar.
Indagando junto ao posto de rádio instalado fora das
naves, junto à costa, soube que, há mais de duas horas,
não se tinha nenhuma notícia dos dois aparelhos. Em si a
demora de duas horas não causou a menor preocupação a
Raskujan. Uma busca em mar aberto poderia demorar
três ou quatro vezes mais que isso sem ser coroada de
êxito; mas o silêncio dos aparelhos inquietou-o.
O posto de rádio tentara várias vezes estabelecer
contato com os dois helicópteros, mas não teve qualquer
êxito.
A essa hora a decisão de Raskujan foi rápida. Um
major recebeu instruções para dar busca sobre o mar com
três esquadrilhas de helicópteros, especialmente na área
em que foram observados os estranhos fenômenos
luminosos. Procurariam localizar os dois aparelhos e o
eventual inimigo, que seria atacado e destruído ou, se
possível, aprisionado.
111
Os helicópteros decolaram poucos minutos depois
que Raskujan transmitira a ordem. Mas, desde as últimas
notícias recebidas dos dois helicópteros que decolaram
em primeiro lugar já se haviam passado quase três horas.
* * *
Duas horas haviam passado desde que as focas
tinham tomado conta do barco. Segundo o cálculo de
Rhodan, nessas duas horas foram percorridos perto de
noventa quilômetros. Uma vez que o barco passara a se
deslocar na direção nordeste, a distância ao ponto
hipotético de desembarque crescera um pouco. Rhodan
acreditava que ainda deviam se encontrar cerca de cento
e quarenta quilômetros do destino. Isso representava
pouco menos de quatro horas de viagem.
Tudo dependia do que faria Raskujan face ao
desaparecimento dos dois helicópteros. A sorte não
poderia ir ao ponto de fazer com que Raskujan ficasse
parado. A qualquer hora apareceriam outros helicópteros
que dariam busca no mar.
Além das armas de impulsos térmicos, o barco só
teria uma chance diante de uma grande esquadrilha de
helicópteros: já se encontrava a certa distância da rota
que os aparelhos percorriam. Talvez a busca demorasse o
suficiente para que o barco se colocasse em segurança.
Talvez...
Rhodan ainda estava envolto nesses pensamentos,
quando o ruído que as focas causavam na água foi
superado por outro. Pôs a mão em concha no ouvido para
protegê-lo do ruído das focas e procurou ouvir noite
afora.
Ouviu um zumbido irregular.
Eram helicópteros! Uma esquadrilha inteira!
“Estão muito longe”, pensou Rhodan.
“Provavelmente Okura não conseguirá vê-los.”
Apesar disso fez um sinal ao japonês, chamou sua
atenção para o ruído e pediu-lhe que esforçasse a vista.
Okura não via nada. A emissão térmica dos jatos dos
helicópteros por certo não lhe teria escapado se os
mesmos se encontrassem ao alcance da visão. Dali se
concluía que os aparelhos ainda se encontravam abaixo
da linha do horizonte.
O ruído cresceu, chegou a um máximo e voltou a
diminuir. Cerca de dez minutos depois que Rhodan o
ouvira pela primeira vez, desapareceu.
— Ainda não encontraram a pista certa — disse
Rhodan com um sorriso. — Tomara que não a encontrem
tão depressa.
Viu Marshall, que dormia. Se os helicópteros se
aproximassem, teria que despertá-lo do sono que tão bem
merecia.
Se tivesse que lutar para valer, não poderiam
dispensar nenhum dos radiadores térmicos. Além disso,
Marshall teria de avisar as focas, para que elas
abandonassem a área de perigo.
— Son, eu preciso de um uísque — disse Rhodan
com um gemido. — Quer arranjar um?
O japonês foi para a parte traseira do barco, onde
estavam empilhados os suprimentos de víveres, armas e
munições apresadas aos homens de Raskujan. Depois de
algum tempo voltou sorrindo, com uma garrafa na mão.
— Não temos uísque — disse. — Em compensação
encontrei uma legítima vodca russa.
* * *
Mais de cem quilômetros acima do ponto em que se
desenrolava essa cena, outro homem fez uma nova
tentativa — que por enquanto seria a última — para
intervir nos acontecimentos que se desenrolavam em
Vênus: era Reginald Bell, companheiro de lutas de Perry
Rhodan e ministro da segurança da Terceira Potência.
Por enquanto Bell tinha de cuidar de sua própria
segurança, sendo incapaz de se preocupar com outras
pessoas, pois o grande cérebro positrônico instalado na
fortaleza de Vênus cercava todo o planeta, quase até o
limite de sua atmosfera, com um campo energético
impenetrável que o protegia de qualquer interferência
externa.
Bell decolara da Terra pouco depois de Rhodan,
numa nave esférica de sessenta metros de diâmetro, da
classe Good Hope. Na linguagem oficial do código de
comunicações, essas naves eram chamadas de girinos.
Thora sofrera um tipo de curto-circuito psicológico.
A saudade de seu mundo natal e a ideia de que Rhodan
nem pensava em permitir seu regresso levaram-na a
procurar auxílio em Vênus. Nesse planeta ficava a base
mais poderosa da Terceira Potência. Não era equipada
com naves capazes de enfrentar o espaço, mas dispunha
de hiperemissores, cuja potência era tamanha que havia
uma boa chance de que fosse ouvida por quem de direito.
Thora partira num dos destróieres recém-construídos
e, ao se aproximar da área interditada, que cercava a
fortaleza, sua nave foi destruída, porque o transmissor
em código ainda não havia sido instalado na mesma. Foi
aprisionada primeiro por Tomisenkow, e logo depois por
Raskujan.
Rhodan seguiu-a, e o destino que teve juntamente
com seus dois acompanhantes não foram melhores que o
de Thora. Todavia, conseguiram escapar à prisão. Mas as
tentativas de libertar Thora falharam por completo.
O terceiro comparsa foi Reginald Bell. Com seu
girino, reunia todas as condições para atingir Vênus e
penetrar na área da base. Os recursos técnicos de que esta
dispunha lhe permitiriam interferir nos combates, libertar
Thora, resgatar Rhodan e obrigar Raskujan a entrar nos
eixos. Acontece que o cérebro positrônico, fora advertido
pela aproximação não anunciada das duas naves, fechara
Vênus contra o mundo exterior e assumira o comando
sobre Vênus em geral e sobre a fortaleza em particular.
Por isso a nave de Bell ficou cruzando além da área
abrangida pelo anteparo energético e nem sequer
conseguiu estabelecer contato permanente pelo rádio
com Rhodan, pois o anteparo não podia ser atravessado
nem mesmo pelas ondulações eletromagnéticas,
inclusive as ondas longas do espectro infravermelho.
Bell fizera uma única tentativa de lograr o dispositivo
positrônico, valendo-se de um mutante. O dom
parapsicológico de Tako Kakuta consistia na capacidade
da teleportação. Estava em condições de, sem o auxílio
de quaisquer recursos técnicos, transportar-se a uma
distância de cinqüenta mil quilômetros. O ambiente
transportador de que se servia era o hiperespaço
sobreposto; com exceção da fonte de energia, o
mecanismo era idêntico ao da transição de uma nave
espacial.
Depois da primeira tentativa, Tako Kakuta regressara
112
imediatamente; estava esgotado ao extremo. Fora de
opinião que estivera a caminho durante várias horas. Não
havia a menor dúvida de que a verdade dos fatos era a
seguinte: o dispositivo positrônico da base de Vênus
estava preparado para enfrentar tentativas de rompimento
do bloqueio das espécies mais variadas, inclusive aquelas
que se realizassem em níveis superiores. Era de duvidar
que a base mantivesse constantemente um anteparo que
abrangesse as cinco dimensões e cercasse todo o planeta.
Isso exigiria um dispêndio energético de extensões
inconcebíveis. Mas, ao que tudo indicava a reação do
cérebro positrônico face a qualquer objeto que tentasse
penetrar na área protegida era suficientemente rápida
para que o mesmo pudesse ser removido para fora dessa
área.
Tako Kakuta levara dois dias terrestres para se
recuperar.
Naquele mesmo dia, Bell lhe perguntou se estava
disposto a repetir a experiência. Deu algumas
explicações.
— Talvez o fracasso da primeira tentativa tenha sido
uma coincidência — disse. — Quem sabe se da próxima
vez não consegue penetrar na fortaleza sem ser
molestado? Sabe muito bem o quanto isso nos ajudaria.
Já penetrou na base através de um salto de teleportação;
está lembrado? Foi daquela vez em que Tomisenkow
acabara de pousar com sua frota de quinhentas naves e
nós os espalhamos pelos quatro cantos. É possível que o
cérebro positrônico julgue a situação de hoje mais
perigosa, e por isso tenha ativado outros campos de
defesa. Para falar com franqueza, é até provável que seja
assim. Mas não acha que apesar disso devíamos fazer
mais uma tentativa?
A fala de Bell foi cautelosa, o que contrariava seus
hábitos. De resto, não era de sua alçada formular pedidos
a um membro da Terceira Potência. Na situação em que
se encontrava, tinha o direito de ordenar.
Mas sabia perfeitamente o que significaria uma
segunda tentativa de Tako Kakuta. A primeira fora
suficiente para fazê-lo atingir os limites de sua
resistência física.
Por estranho que parecesse, Kakuta não hesitou. Um
sorriso um tanto embaraçado espalhou-se por seu rosto
redondo de criança.
— É claro que tentarei mais uma vez. Faço votos de
que também desta vez não sofra outra coisa a não ser a
sensação de ter sido atropelado por um tanque.
Fizeram todos os preparativos para a ação. Bell
mandou que dois tripulantes da nave comparecessem à
sala de comando e ordenou-lhes que cuidassem bem do
japonês, se este voltasse a aparecer.
Tako Kakuta colocou-se em posição. Em seu rosto
havia uma expressão fatalista.
— Vou tentar — anunciou.
A transição propriamente dita não levou mais de um
segundo. Mal se notava que os contornos do corpo de
Kakuta começaram a se desvanecer, e o mesmo já havia
desaparecido.
Reginald Bell conteve a respiração. No intervalo de
duas pulsações do coração atreveu-se a acreditar que
desta vez a tentativa fora coroada de êxito... mas aí, o
japonês reapareceu de repente.
Fechara os olhos e o rosto contorcia-se de dor.
Os homens que Bell mandara comparecer à sala de
comando cumpriram seu dever. Tako Kakuta caiu nos
seus braços. Estava inconsciente.
— Levem-no ao seu camarote — ordenou Bell. — E
cuidem dele. Avisem-me assim que recuperar a
consciência.
Deu-lhes as costas e fitou a tela de imagem, coberta
de massas turbilhonantes de nuvens luminosas.
A segunda tentativa fracassara.
Não havia mais nenhuma possibilidade de intervir
nos acontecimentos que se desenrolavam em Vênus.
* * *
Son Okura viu o litoral emergir sob a forma de um
traço negro.
Faltavam quarenta horas para a meia-noite.
Fazia tempo que Marshall despertara e assumira o
posto de Rhodan, para que este descansasse ao menos
alguns minutos. Son Okura era o único que ainda não
tivera tempo para dormir.
Por enquanto seus olhos não podiam ser dispensados.
As focas rebocavam o barco sem cessar.
Haviam ouvido os helicópteros por mais algumas
vezes. De cada vez o ruído fora um pouco mais forte que
da vez anterior. Não havia dúvida de que os aparelhos
davam buscas no mar em faixas que corriam do sul para
o norte ou vice-versa, e que essas faixas chegariam cada
vez mais perto da costa e do barco em fuga.
Marshall avisara as focas. Se houvesse um ataque,
aguardariam um sinal para sair dos laços e se retirar da
área de perigo. Marshall esperava que as coisas não
chegassem a esse ponto, mas não tinha muita certeza
disso.
Depois de um ligeiro descanso, Rhodan levantou-se e
mandou que o japonês dormisse um pouco. Okura
obedeceu; dali em diante ele dependeriam
exclusivamente do ouvido. Os olhos do espia haviam
sido eliminados.
* * *
Pouco depois das duzentas e uma horas, tempo local,
o observador do helicóptero que ia à frente da
esquadrilha reconheceu um reflexo débil e minúsculo na
sua tela de radar.
Comunicou-se com o grosso da força e soube que já
haviam observado a mesma coisa. Com isso ficava
demonstrado que se tratava de um reflexo genuíno.
A posição exata do objeto foi determinada;
constatou-se que se deslocava a uma velocidade
considerável em direção ao nordeste.
Cinco minutos depois de realizada a primeira
observação, a esquadrilha tomou o rumo leste e
aproximou-se do objeto desconhecido a toda velocidade.
No momento esse objeto deslocava-se na proximidade da
costa da península.
Para o major que comandava a patrulha de
helicópteros, não havia a menor dúvida de que esse
objeto se relacionava de alguma forma com os dois
helicópteros desaparecidos. Ordenou aos observadores
que não tirassem os olhos daquele objeto e que
utilizassem o dispositivo infravermelho assim que se
encontrassem à vista do mesmo.
113
* * *
Rhodan aguçou o ouvido.
De início escutara apenas o costumeiro zumbido
distante da esquadrilha que se aproximava, vindo do sul;
alcançaria seu ponto máximo numa posição lateral.
Mais uma vez os helicópteros se aproximaram, mas
por enquanto não havia nenhum perigo.
Rhodan esperava que o ruído se afastasse para o
norte, mas isso não aconteceu. Um novo tom se misturou
ao zumbido.
Rhodan compreendeu imediatamente o que havia
acontecido em meio à escuridão: os ocupantes dos
aparelhos haviam descoberto alguma coisa,
comunicavam-se entre si e tomavam outro curso. Por
alguns instantes teve esperança de que não fosse
justamente o barco. Este era feito de massa plástica
elastificada e não constituía o material adequado para
refletir uma onda de radar.
Mas, quando o ruído começou a crescer com uma
intensidade assustadora, Rhodan percebeu que se
enganara. Os aparelhos de radar do inimigo eram
melhores do que acreditara.
— Marshall! Acorde Son!
Marshall também estava escutando. Respondeu com
um breve aceno de cabeça e dirigiu-se à proa, para
despertar o japonês. Não foi fácil, mas sob a força das
circunstâncias conseguiu.
— Son! — gritou Rhodan. — Estão atacando. Diria
que são mais ou menos dez helicópteros. Fique de olhos
abertos.
E depois:
— Marshall...
— Sim.
— Transmita o sinal às focas. Antes disso procure
saber onde poderemos nos abrigar se conseguirmos
resistir à primeira investida.
— Pois não.
— Son.
— Sim.
— A que distância fica a costa?
— Uns duzentos metros.
Rhodan praguejou por entre os dentes. Não poderiam
ter levado mais um minuto para descobrir o barco?
Marshall já entrara em atividade. Com a habilidade
que lhes era peculiar as focas soltaram-se dos laços e
dispararam em direção à costa.
— As focas moram em cavernas cheias de água até a
metade da altura; desembocam diretamente no mar.
Avisam que estão dispostas a nos abrigar lá.
Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.
— Está bem. Preparem as armas.
O zumbido dos helicópteros começara a se
desmanchar. Há alguns segundos o ouvido distinguia
entre o chiado agudo dos jatos e as batidas dos motores.
Son informou que via nove pontos luminosos que se
aproximavam pouco acima da superfície da água.
— Estão a uns dois quilômetros de distância —
acrescentou.
Nos últimos segundos antes de abandonarem o barco
as focas ainda o haviam levado mais uns cinquenta
metros em direção à costa. Esta ainda ficava a cento e
cinquenta metros. Rhodan preveniu os companheiros de
que teriam de percorrer essa distância a nado, fossem
quais fossem as criaturas da flora e da fauna aquática que
se encontravam no caminho.
— No primeiro ataque abriremos fogo contra eles —
ordenou. — Se não tremermos com a mão, seremos
capazes de derrubar quase uma esquadrilha inteira. Isso
lhes incutirá um pouco de respeito. Aproveitaremos o
tempo que levarem para se recuperar do susto para nadar
até a costa. Pendurem o radiador de impulsos térmicos
nas costas. Cada um levará ao menos uma das pistolas
automáticas que temos a bordo, além de uma boa
provisão de munições. Não se esqueçam do mais
importante: procurem chegar quanto antes às cavernas
das focas. Dos helicópteros eles nos verão mesmo que
estejamos nadando.
Mal acabou de pronunciar essas palavras, quando Son
Okura levantou o braço.
— Atenção! Ali; estão usando holofotes de luz
infravermelha.
Só o japonês via os raios enfeixados que, vindos das
alturas em que se encontrava a patrulha de helicópteros,
davam busca pela superfície do mar. Para Okura os
pontos cintilantes em que os raios infravermelhos
atingiam o mar constituíam um indício precioso, que lhe
permitia avaliar o tempo que os helicópteros ainda
levariam para descobrir o barco.
— Faltam quinhentos metros! — gritou para Rhodan.
— Vêm bem em nossa direção.
“Não é de admirar”, pensou Rhodan. “Estão voando
de tal forma que o reflexo fica bem no centro da tela.
Isso não é nenhuma arte.”
— Faltam duzentos metros! — gritou Okura e cobriu
o rosto com os dois braços. O holofote, que para outras
pessoas era invisível, ofuscava os olhos do japonês.
Haviam sido descobertos.
— Abriguem-se! — ordenou Rhodan.
As paredes de plástico do barco forneciam uma
proteção muito melhor do que seria de supor à primeira
vista. A massa de plástico que cercava o recipiente de ar
tinha ao menos dez centímetros de espessura. Além
disso, era um material autorregenerável. O impacto de
um projétil liberava calor. E a massa de plástico utilizava
esse calor para fechar o buraco aberto pelo tiro,
recorrendo à substância retirada das partes não atingidas.
Com isso poderiam ser anulados efeitos de qualquer
número de impactos comuns, e de cerca de quinze
impactos de projéteis explosivos. Quanto ao décimo
sexto impacto de projétil explosivo...
Um canhão automático começou a emitir um ruído
metálico ininterrupto em meio à escuridão. Os tiros
foram muito curtos. A uns vinte metros do barco Rhodan
viu os repuxos luminosos levantados pelos impactos.
Okura levantou os dois braços, para avisar que os
helicópteros se encontravam em posição de tiro
favorável. A voz de Rhodan superou o barulho:
— Fogo!
O fogo que surgiu em frente aos aparelhos foi de um
silêncio sinistro. Rhodan viu uma sombra que emitia
silvos e batidas, dirigiu seu radiador de impulsos
térmicos sobre a mesma e comprimiu fortemente o
gatilho. Ficou com os olhos semicerrados para evitar o
ofuscamento produzido pela luminosidade da descarga
energética. Viu quando o raio ofuscante atingiu o enorme
aparelho, descarregou todo seu potencial energético nas
paredes, nos soalhos e nos instrumentos do mesmo,
114
transformando-os de um instante em outro num montão
de metal derretido e volatilizado, que se desmanchou
numa explosão estrondosa ao tocar a superfície da água.
O mesmo fenômeno repetiu-se em mais dois pontos.
Perry Rhodan teve uma sensação de triunfo quando os
outros helicópteros puseram os jatos a uivar e se
afastaram precipitadamente.
— Tudo preparado para nadar?
— Tudo preparado — soou a voz de Okura.
— Tudo preparado — respondeu Marshall.
— Vamos!
Deixaram-se cair na água. Logo começaram a nadar
com braçadas vigorosas. A água era gosmenta e um
pouco viscosa, mas avançaram rapidamente e
comunicaram-se por meio de gritos para não se
dispersarem.
O ruído dos helicópteros voltou a crescer. Rhodan viu
que Okura, enquanto nadava, virou a cabeça para
observar os raios dos holofotes de luz infravermelha. Fez
um gesto tranquilizador.
Desta vez o ruído dos canhões automáticos soou a
uma distância tranquilizadora. Voltaram a atacar o barco.
Ouviu uma série de estalos e chiados e viu uma chuva
de faíscas quando um dos projéteis atingiu as munições
depositadas no barco. Praticamente no mesmo instante os
helicópteros pararam de disparar. Ao que tudo indicava
achavam que era impossível que alguém tivesse resistido
à explosão.
Okura avisou que dois dos aparelhos estavam parados
pouco acima do barco.
— Pois procurem nadar mais depressa! — gritou
Rhodan. — Logo perceberão que escapamos.
— Son, quanto falta?
— Setenta metros.
Procuraram verificar a profundidade da água, mas era
quase impossível afundar as pernas nesse líquido
viscoso.
A voz de Okura voltou a soar:
— Atenção! Estão se aproximando. Vieram devagar.
Ainda não sabiam em que direção os tripulantes do barco
haviam se afastado. Deixaram os holofotes de luz
infravermelha deslizar sobre a água.
Ainda faltavam quarenta metros, calculou Rhodan. E
os helicópteros estavam a menos de cem metros atrás
deles.
Subitamente Marshall gritou:
— Aqui já temos chão firme! Podemos caminhar.
Rhodan aproximou-se do lugar de onde vinha a voz.
Viu o vulto de Marshall, que agitava os braços, emergir
da escuridão, e baixou as pernas. Sentiu o chão sob os
pés.
Ao andarem não conseguiram avançar muito mais
depressa do que nadando, mas era muito mais
confortável. Avançaram metro por metro em direção à
costa, que começou a se desenhar sob a forma de um
traço negro contra a escuridão cinzenta. Mas os
helicópteros também vinham se aproximando metro por
metro.
De repente Rhodan ouviu o japonês soltar um
gemido.
— Descobriram-nos.
Rhodan não viu o facho luminoso do holofote, mas
ouviu o ruído das armas automáticas. Poucos metros à
direita os projéteis atingiram a água.
— As focas estão bem à nossa frente! — gritou
Marshall. — Vamos para lá!
O helicóptero corrigiu a pontaria. Rhodan viu a linha
dos projéteis se deslocar em sua direção. Faltavam cinco
metros.
Tropeçou sobre alguma coisa e caiu esticado na água.
Alguma coisa segurou-o vigorosamente pelos ombros e
voltou a pô-lo de pé. Mais adiante Marshall gritou
alguma coisa que Rhodan não entendia. Parecia ter a voz
muito cava. O que seria?
Era a caverna! Marshall já se encontrava no interior
dela. Rhodan viu que os repuxos levantados pelos
projéteis da arma automática ficavam atrás dele. Com
uma sensação de alívio tropeçou pelo chão escorregadio
e coberto de água. Percebeu que subia constantemente e
acabou chegando a uma placa de pedra situada poucos
centímetros acima da superfície da água. Marshall, que já
estava sentado, fez-lhe um sinal. O japonês dispôs-se a
subir a pedra, vindo do outro lado.
Rhodan deixou que Marshall o ajudasse. Assim que
conseguiu puxar as pernas para junto do corpo, deixou-se
cair. Deitado de costas, inalou em golfadas vigorosas o ar
úmido da caverna das focas.
Os canhões automáticos dos helicópteros
continuavam a disparar do lado de fora. Mas a abertura
da caverna era tão pequena e estava tão cheia de água
que os projéteis disparados não mais conseguiam atingi-
los.
3
— Já decidiu alguma coisa? — perguntou
Tomisenkow.
Thora se assustou quando o viu entrar por baixo da
lona. Apesar disso não perdeu a compostura.
— Já decidi — respondeu em tom altivo. — Estou
disposta a cooperar com o senhor, desde que consiga me
convencer de que existe alguma chance de sermos bem
sucedidos, por menor que seja.
Tomisenkow sentou sem ser convidado e encarou-a
com os olhos semicerrados.
— Posso garantir — disse — que eu e mais alguns
dos meus companheiros poderemos sair do acampamento
sem sermos molestados e penetrar algumas centenas de
metros na selva. O que acontecer depois depende da
capacidade de sua lendária fortaleza de Vênus de nos
proteger contra os helicópteros e as patrulhas de
Raskujan.
Um brilho de suspeita iluminou os olhos
avermelhados de Thora.
— Se acredita que dessa forma conseguirá penetrar
no interior da base, está muito...
Tomisenkow interrompeu-a com um gesto nervoso.
— Para mim o tempo passou — asseverou. — Não
estou interessado em sua base. Posso viver sem ela.
— Afinal, no que está interessado? — perguntou
Thora com certo tom de ironia na voz.
Tomisenkow encarou-a.
— Estou interessado — respondeu — em impedir
que um idiota faça tudo quanto é besteira em Vênus. Até
parece que a senhora ainda não conhece a raça terrena a
115
que pertencemos.
— Nunca tive interesse em conhecê-la — respondeu
Thora em tom reservado.
Tomisenkow não parecia ofendido.
— Um dia a senhora devia procurar conhecer —
disse em tom pensativo. — Somos uma raça bem
interessante. Basta que se veja, por exemplo, que um ano
que passamos em Vênus quase sem recursos bastou para
que eu e a maioria de meus companheiros nos
apaixonássemos por este mundo horrível. Somos os
primeiros que passamos um ano inteiro aqui sem casas
pré-fabricadas, camas macias e outras comodidades;
vivemos nas selvas e nos vales que cortam as montanhas
e de noite sempre dormimos em cima das árvores. Vênus
nos pertence. Já não somos russos, mas venusianos ou
coisa que o valha. Por isso sua base não me interessa
nem um pouco; e é também por isso que quero evitar que
Raskujan continue a brincar de ditador por aqui. A
senhora compreende?
Thora não respondeu.
— Está bem — disse depois de algum tempo. —
Sairemos juntos deste campo de prisioneiros. Não posso
fazer nenhuma promessa. Mas talvez pudéssemos
organizar a fuga da seguinte maneira:...
* * *
Rhodan só se permitiu alguns minutos de descanso.
Depois se levantou.
— Marshall, diga às focas que têm de sair quanto
antes desta caverna.
Os helicópteros haviam se retirado. No interior da
caverna reinava o silêncio, interrompido apenas pelo
ruído das ondas e pelo arrastar das barbatanas das focas
sobre a rocha molhada dos fundos.
Marshall transmitiu a advertência.
— Não sabem por que — disse a Rhodan.
— Porque esses helicópteros não terão coisa mais
urgente a fazer que colocar algumas bombas tipo baby
bem à frente do nosso nariz.
Marshall também transmitiu essa mensagem, embora
fosse um tanto difícil fazer as focas compreenderem o
que vinha a ser uma bomba baby.
— Estão de acordo — disse depois de algum tempo.
— Esta caverna tem alguma saída para o lado da
terra? — indagou Rhodan.
Marshall formulou a pergunta.
— Sim, uma espécie de refúgio. Mais precisamente,
uma galeria que sobe num plano inclinado e sai bem em
meio à selva.
— Formidável. Nós a utilizaremos. Acredito que o
pessoal de Raskujan deve ter deixado, em algum lugar lá
fora, um helicóptero que deve observar o terreno. Se
pudermos desaparecer sem sermos notados, teremos uma
ótima vantagem.
Procurou avaliar o raio de ação da bomba que se
esperava e pediu a Marshall que comunicasse às focas
qual era a distância mínima que deveriam guardar da
caverna para não saírem machucadas.
Constatou-se que para as focas a mudança não
representava qualquer problema. Por sua própria
natureza eram uma raça inconstante, e ao longo da costa
havia milhares de cavernas. Prometeram que iriam
advertir outros grupos de focas que se encontravam na
área ameaçada.
Marshall também deu sua contribuição: através de
uma mensagem telepática, repetida várias vezes, ele
preveniu todas as focas que se encontravam nas
redondezas.
Finalmente procurou explicar às focas que aqueles
aos quais haviam prestado auxílio sentiam-se muito
gratos e que Rhodan estava disposto a cumprir qualquer
desejo que tivessem desde que isso estivesse ao seu
alcance.
Mas, por espantoso que fosse as focas não tinham
nenhum desejo. Suas necessidades eram muito reduzidas
e o mundo de Vênus era opulento. Despediram-se uns
dos outros com protestos de amizade mútua — que eram
um tanto desajeitados, em virtude da diferença de
mentalidades.
Rhodan e seus companheiros puseram-se a caminho.
Rastejaram por uma galeria de cerca de cem metros de
comprimento que fedia a peixe e óleo de baleia e mal
dava para andarem de quatro. Mais ou menos às duzentas
e duas horas atingiram o mundo exterior; num ponto bem
afastado da costa, onde a selva impenetrável os protegia.
As focas haviam fornecido uma descrição
aproximada do terreno a Marshall. A topografia desses
animais não chegava a ser uma ciência, mas bastou para
que Rhodan constatasse que a faixa de terra vertical, que
ligava a península com a linha costeira do continente
norte, devia se encontrar entre oito e quinze quilômetros
de distância do lugar em que se encontravam.
— Pois bem — disse — são quinze quilômetros no
máximo até a faixa que liga a península ao continente. O
campo energético da base começa a uns vinte
quilômetros ao norte da linha costeira. Isso perfaz, na
pior das hipóteses, um total de trinta e cinco quilômetros
até o campo energético. Ali devemos encontrar um meio
de ativar o mecanismo identificador do cérebro
positrônico. E depois disso — esboçou um sorriso
cansado — o pior terá ficado para trás.
* * *
Pisando fortemente, o cabo Wlassov saiu da
escuridão e correu em direção à sentinela postada junto
ao portão.
— Preciso de auxílio — fungou. — Tomisenkow
desapareceu.
Junto ao portão do primitivo campo de prisioneiros
havia cinco homens; o mais graduado era o sargento.
Dois homens foram destacados para ajudar Wlassov na
busca do general desaparecido. O sargento preveniu
Wlassov.
— Vocês dispõem de quinze minutos para encontrar
Tomisenkow. Depois terei de avisar a ocorrência.
Wlassov respondeu com um aceno de cabeça e
desapareceu na escuridão juntamente com os dois
homens que o acompanhavam. Uma das sentinelas ligou
a lanterninha para iluminar o caminho; mas Wlassov deu
uma pancada no braço do homem.
— Apague isso! — chiou. — Se ele nos vê de longe,
não deixará que o agarremos.
O argumento era bem plausível, ainda mais que
Wlassov conhecia de cor o caminho até a barraca de
Tomisenkow. Caminhou à frente e pouco se importou
quando subitamente algumas sombras emergiram da
116
escuridão, saltaram sobre seus companheiros e lhes
comprimiram a garganta até que eles perdessem a
consciência.
— Tudo em ordem — cochichou uma voz. — Tirem
a roupa deles.
Wlassov deu meia-volta e voltou alguns passos. Dois
homens estavam tirando os uniformes das sentinelas
inconscientes.
— Não se apressem — disse Wlassov em tom
tranquilo. — Temos tempo. O sargento não avisará a
ocorrência antes de quinze minutos.
As duas sentinelas foram amarradas, amordaçadas e
escondidas entre as moitas. O campo de prisioneiros
estava seguro contra animais selvagens, com exceção das
formigas gigantes. Desde que estas não assaltassem o
acampamento justamente na próxima hora, a vida dos
dois homens amarrados não correria perigo.
Uma sombra baixa e atarracada destacou-se em meio
à escuridão. Wlassov levou uma pancada vigorosa no
ombro.
— Trabalho bem feito, rapaz — disse Tomisenkow
em tom de elogio.
Wlassov deu um sorriso de embaraço.
— Não me sinto muito bem com isso — respondeu.
Tomisenkow fez um gesto de desprezo.
— Isso passa — disse laconicamente.
Um dos outros homens anunciou:
— Terminamos chefe.
— Muito bem — resmungou Tomisenkow. — Estão
todos reunidos? Wlassov, Alicarim, Jegorov, Zelinskij.
Onde está Thora?
— Estão todos aqui, chefe.
Tomisenkow fez um gesto com a cabeça.
— Está bem. Vamos embora.
O sargento postado junto ao portão não desconfiou de
nada quando, depois de um tempo relativamente curto,
Wlassov voltou acompanhado de dois homens cujo rosto
não podia reconhecer. Seus acompanhantes usavam os
uniformes limpos que distinguiam as tropas de Raskujan
dos homens esfarrapados da divisão espacial.
— Tudo em ordem? — perguntou o sargento.
Wlassov acenou com a cabeça; parecia aliviado.
— Tudo. Passou por baixo da lona de barraca e deu
um passeio. Não acredito que...
Não precisou dizer mais nada. Já havia chegado perto
do sargento. Num movimento instantâneo levantou a
mão que segurava a pesada pistola pelo cano e com a
coronha deu uma pancada violenta na cabeça do homem.
Wlassov segurou o pesado corpo do sargento e deixou-o
cair suavemente em meio ao capim.
Uma das outras sentinelas pôs a cabeça para fora da
cabana primitiva que servia de guarita.
— O que houve? O que aconteceu com...
Wlassov fez-lhe um sinal para que se aproximasse.
— Venha cá. Caiu de repente.
Sem desconfiar de nada a sentinela dispor-se a vir em
auxílio do sargento. Quando inclinou-se sobre o homem
inconsciente, recebeu uma pancada igualmente violenta e
seu corpo flácido e inconsciente cobriu o de seu superior.
Wlassov não perdeu muito tempo com a última
sentinela. Segurou a pistola pela coronha e entrou na
cabana. O homem olhou-o com o rosto sonolento.
— Levante-se e ponha as mãos para cima! —
ordenou Wlassov.
O homem obedeceu ainda sonolento e quase
morrendo de susto.
— Saia à minha frente!
Mais uma vez o homem fez o que lhe fora ordenado.
Ao sair da porta, um dos homens de Tomisenkow que
haviam vindo com Wlassov deu-lhe uma pancada na
cabeça, o que o fez cair duro, tal quais seus camaradas.
Wlassov soltou dois assobios abafados. A escuridão
adquiriu vida. Tomisenkow, Alicarim e Thora chegaram
ao portão.
— Vamos amarrá-los, amordaçá-los e tirar-lhes as
armas — ordenou Tomisenkow laconicamente.
O trabalho progrediu rapidamente. Os três homens
inconscientes também foram escondidos nas moitas num
lugar bastante afastado da cabana. Era de supor que a
busca dos fugitivos demoraria até que a ronda
encontrasse as sentinelas desaparecidas.
Ao todo haviam sido derrubadas e escondidas sete
sentinelas: uma adiante da barraca de Thora e da que
Alicarim, Jegorov e Zelinskij ocupavam em conjunto, as
duas que o sargento havia destacado para acompanharem
Wlassov e finalmente o sargento com os dois
subordinados que ainda lhe restavam.
A oitava das sentinelas desaparecidas daria alguma
dor de cabeça à ronda: era Wlassov. Era difícil de
imaginar que um dos soldados de Raskujan preferisse
renunciar à segurança e ao conforto do campo de
foguetes para seguir um homem que, no linguajar de
Raskujan, era um simples aventureiro, enfrentando a
insegurança e as privações.
Talvez essa dor de cabeça retardasse o início da
busca por mais alguns minutos.
O pequeno grupo, com Tomisenkow na ponta, passou
pelo portão totalmente aberto. Wlassov, que carregava
duas pistolas automáticas e um pesado embrulho com
munições, ia à retaguarda. Fechou cuidadosamente o
portão.
Tomisenkow tomou o rumo nordeste, para contornar
a área perigosa do campo de pouso dos foguetes. Cinco
minutos depois chegaram à selva no lugar em que
terminava a faixa de terra calcinada.
Wlassov conhecia os planos de Tomisenkow. Queria
atingir quanto antes o campo protetor da base que a
Terceira Potência possuía em Vênus. A ideia de roubar
um helicóptero logo foi abandonada. O aparelho não
conseguiria decolar sem ser percebido. Dentro de poucos
minutos os homens se poriam em seu encalço e, numa
relação de forças de um para vinte, não podia haver
qualquer dúvida quanto ao resultado da perseguição.
Também desistiram da ideia de usar a faixa calcinada
aberta pela Stardust-III para avançar mais depressa.
Raskujan logo imaginaria que fossem adotar esse
procedimento. Embrenhando-se pela selva enganariam
Raskujan e estariam protegidos contra a visão direta.
Tomisenkow sabia que a fuga não seria descoberta
antes da próxima ronda, que seria realizada dentro de
duas horas. É a experiência já lhe ensinara que as trilhas
abertas na selva se fechariam dentro de uma hora e meia
no máximo, a tal ponto que nenhum dos homens de
Raskujan conseguiria distingui-los do restante da selva
de Vênus.
Dessa forma os problemas com que Tomisenkow se
defrontava haviam sido solucionados com um grau
máximo de segurança. Só mesmo um fato imprevisto
117
faria com que o grupo fosse descoberto e recapturado
enquanto Tomisenkow se encontrasse no comando.
O que viria depois era outra coisa. Wlassov não
entendia muito das coisas concebidas pela arcônida e que
depois soubera de Tomisenkow, isto é, de terceira
pessoa. Tratava-se do campo protetor, onde, durante um
ano, Raskujan esbarrara diariamente com a cabeça.
Thora parecia estar convencida de que o mecanismo que
mantinha o campo ativado devia ter efetuado alguma
ligação especial e que justamente essa ligação daria a ela
e aos seus companheiros uma chance de atravessar a área
do campo e penetrar na base.
Wlassov não compreendia nada disso. Mas confiava
na inteligência de Tomisenkow. Se este acreditava que os
planos de Thora tinham alguma chance, esta realmente
devia existir.
* * *
Encontravam-se cerca de dois quilômetros da saída
da galeria quando a bomba baby explodiu. Por alguns
segundos uma luz pálida cobriu o terreno, penetrando
mesmo através da folhagem da selva. Trinta segundos
depois, a vaga de pressão desencadeada pela detonação
da bomba gemeu acima da floresta.
Isso não os perturbou. Tratava-se de uma bomba de
fusão, cuja matéria físsil não atinge o nível crítico, mas
que, através de uma matéria refletiva bastante eficaz,
como a grafite ou o berílio, no momento da detonação
ultrapassa o fator de criticidade um. A radiatividade
desencadeada pela mesma só atinge um nível perigoso
nas imediações do local da explosão. As cavernas das
focas, que lhes servira de abrigo por alguns minutos, e a
área situada num raio de quinhentos metros da mesma,
constituiriam um terreno perigoso por mais algum
tempo. Mas ninguém sofreria qualquer dano, a não ser
que as focas não levassem a sério a advertência que lhes
fora feita.
Apesar disso, Perry Rhodan viu na detonação da
bomba mais uma prova do perigo que se correria se um
homem como o coronel Raskujan pudesse agir à vontade
em Vênus. Não compreendia que um mundo novo exige
o emprego de novos métodos. A ideia de que a política
da Terra, inspirada nas ambições nacionalistas, não
poderia ser transplantada para ser praticada em Vênus
ultrapassava a capacidade de seu horizonte mental.
Aos homens desse tipo faltava aquilo que Rhodan
costumava designar como a mentalidade cósmica.
Rhodan lamentou que não estivesse ainda em
condições de ensinar a Raskujan qual era seu lugar. Dos
trinta e cinco quilômetros que, na pior das hipóteses,
teriam de vencer para alcançar o limite do campo
energético, só haviam percorrido dois. Dentro das
próximas cinco horas teriam que fazer uma pausa de
descanso bastante extensa, pois do contrário suas pernas
e mentes entrariam em pane sem prévio aviso.
Desfrutaram de um descanso no nível mais elevado e
menos perigoso da selva. Son Okura localizou a árvore
que prometia o grau mais elevado de conforto e
segurança. A uns quarenta metros de altura alcançaram
com algum esforço uma bifurcação bastante extensa para
lhes proporcionar um abrigo seguro. Rhodan dispôs-se a
ficar de sentinela durante as primeiras duas horas. Depois
foi a vez do japonês, e o último período coube a John
Marshall.
Instalaram-se o melhor que puderam e dali a um
minuto Marshall e Okura já estavam dormindo
profundamente. Rhodan aproveitou o tempo para refletir
sobre um ou outro problema que ainda não tinha sido
resolvido.
Há um ano privara a divisão espacial comandada pelo
general Tomisenkow de suas naves e a tangera na selva.
Pretendia fazer dos dez mil homens de Tomisenkow, ou
daquilo que restava dos mesmos, a base da colonização
de Vênus. O plano parecia razoável. A divisão de
Tomisenkow dispersara-se, conforme era de esperar.
Houve a formação de grupos dissidentes que
propugnavam esta ou aquela filosofia, como por
exemplo, o dos pacifistas, comandado pelo tenente
Wallerinski. A dissidência não deixou de ser
acompanhada de atritos internos. Mas com o tempo os
grupos começaram a se fixar no solo, a maior parte deles
em formações rochosas que se erguiam em meio à selva
espessa e mortífera, formando planaltos desimpedidos
que ofereciam aos colonos um máximo de segurança e
visibilidade.
Acontece que no meio tempo o coronel Raskujan
pousou em Vênus com sua frota de apoio. Durante um
ano tentou conquistar a base da Terceira Potência e com
isso, sem que o soubesse, deu tempo para que
Tomisenkow e seus homens se instalassem em Vênus.
Mas chegou o momento fatal em que Raskujan teve
conhecimento da existência dos remanescentes da
divisão espacial e se dispôs a subjugá-los, para realizar
seus planos ditados pela sede do poder.
De qualquer maneira Raskujan representava uma
pedra no caminho. Tinha de ser removido antes que
pudesse causar danos ainda maiores. Raskujan não
deixava de ser útil, pois a maior parte dos tripulantes de
sua frota era composta de mulheres que se tornavam
necessárias para fazer da colônia uma autarquia
biológica. Mas sob todos os outros aspectos o coronel
representava um obstáculo.
Na opinião de Rhodan, Tomisenkow era o homem
que poderia fazer prosperar a nova colônia. E o
ressentimento pessoal não entrava nessa opinião. Rhodan
não sabia se jamais chegaria a estabelecer contato direto
com Tomisenkow. Tudo que sabia daquele homem
provinha dos relatos dos prisioneiros que há um ano
capturara em Vênus. O quadro resultante desses relatos
não era muito agradável nem harmônico. Mas, conquanto
não o conhecesse pessoalmente, Rhodan acreditava ter
encontrado uma qualidade favorável em Tomisenkow:
no ano que se passara, Vênus fez daquele homem uma
criatura modesta e compreensiva.
Suas reflexões haviam chegado a este ponto quando
entre a imensa variedade dos ruídos que a selva produzia
a todo instante sobressaiu um farfalhar entrecortado, que
parecia vir de um lugar muito próximo. Rhodan
aproximou-se na escuridão do galho bifurcado e
procurou observar a origem do ruído. Os olhos adaptados
à escuridão enxergavam a uma distância de cerca de três
metros, o suficiente para se defender com o radiador de
impulsos térmicos contra qualquer coisa que pudesse se
tornar perigosa.
Algo comprido, estreito e móvel entrou no campo de
visão, vindo de cima. Por algum tempo balançou ao
acaso entre os galhos; depois deu um solavanco, cresceu
para baixo e arrastou atrás de si um montão elástico
como o resto, que mudava constantemente de forma,
118
deslizando árvore abaixo por uma trilha gosmenta por ele
mesmo produzida.
Rhodan reconheceu o animal. Era um daqueles
pólipos que viviam no solo onde construíam suas
armadilhas subterrâneas, mas vez por outra se punham a
caçar, isso quando as presas que caíam na armadilha não
bastavam para saciar a fome.
Rhodan aguardou pacientemente. Sabia perfeitamente
que seria inútil atirar contra o tentáculo que balançava
diante de seu rosto.
Por algum tempo o corpo flácido do pólipo, coberto
de uma pele dura, escondeu-se na densa folhagem.
Depois desceu, arranhando a árvore, colocou-se numa
posição favorável e pôs o tentáculo a sair em busca da
primeira presa.
Rhodan manteve-se quieto quando o tentáculo
escamoso e repugnante passou por cima de seu crânio,
caiu sobre o ombro direito e começou a enlaçá-lo pela
cintura. Num movimento lento e cauteloso levantou o
radiador térmico e dirigiu o cano sobre a massa
volumosa formada pelo corpo do animal. Apoiou o pé
contra o galho que, da forquilha, partia para a direita;
quando o tentáculo começou a se esforçar para arrastá-lo,
atirou.
A pontaria foi exata, conforme era necessário num
disparo de radiador térmico. O raio ofuscante atingiu o
corpo do pólipo no ponto mais distante da árvore. A
substância orgânica queimou e se volatilizou num
chiado, derramando uma chuva de fagulhas amarelentas
na escuridão da selva. Rhodan sentiu que a força do
tentáculo diminuía. Desprendeu-se e também foi
consumido pelo calor absorvido pelo corpo do pólipo.
Poucos segundos depois, uma mancha negra, que a
combustão produzira na casca da árvore, era o único
vestígio do perigo que ameaçara os três homens
abrigados na forquilha.
Rhodan mudou de lugar e continuou a observar a
escuridão. Incidentes desse tipo eram relativamente raros
naquela altura; não era de supor que durante o seu tempo
de vigia a paz voltasse a ser perturbada.
Recostou-se e voltou a mergulhar em suas reflexões.
Quebrou a cabeça para descobrir de que forma poderia
trazer prosperidade à jovem colônia de Vênus, caso
conseguisse sair vivo da aventura.
* * *
Era um acampamento primitivo; mas, com exceção
de Thora, ninguém se incomodou com isso, e até mesmo
ela preferiu não dizer nada.
Deitados no chão úmido e morno mantiveram-se em
silêncio e sonolentos. O único que parecia interessado
em alguma coisa era Tomisenkow, que conversava com
Thora sobre as possibilidades de penetrar na base apesar
da existência do campo protetor.
— Pelo que entendi — disse Tomisenkow — a
senhora tem esperança de que o cérebro positrônico
instalado na fortaleza a reconheça e lhe franqueie o
acesso. Será que é assim?
Thora acenou com a cabeça, um pouco enojada.
— Não tenho nenhuma certeza — disse. — Pelo que
sei, o cérebro positrônico assumiu o comando da base em
virtude de vários incidentes graves. Isso significa que o
tipo de ligação que permite o acesso de um membro da
Terceira Potência na base, caso seja irradiado com um
emissor especial o sinal convencionado em código, está
superada. Para nós isso é ótimo, pois não dispomos de
um emissor especial para a transmissão de sinais
codificados e os materiais de que dispomos não
possibilitam a construção do mesmo. Nossa única
esperança é que talvez o cérebro positrônico, assim que
cheguemos ao limite do campo protetor, reconheça
minhas vibrações cerebrais como sendo as de uma
pessoa autorizada, e por isso abra a barreira.
Olhou para Tomisenkow, e este se admirou com a
expressão de perplexidade que havia em seus olhos.
— Infelizmente não sei se o cérebro positrônico me
reconhecerá como pessoa autorizada. Se Rhodan
estivesse conosco, não haveria a menor dúvida de que
seríamos bem sucedidos. Mas estando sozinha...
Deixou de pronunciar o resto da frase. Tomisenkow
sentiu a necessidade de consolá-la. Mas antes que lhe
ocorresse uma coisa apropriada que poderia dizer, ouviu
um ruído que desviou sua atenção subitamente e por
completo para coisas totalmente diversas.
Thora não sabia o que havia acontecido. Não ouvira
nada.
— Alicarim! — gritou Tomisenkow.
— Sim, chefe — respondeu o homem baixo de olhos
oblíquos vindo da Quirguízia. — Ouvi. É um tirano.
Disse-o em tom indiferente, quase entediado.
— Vem do leste-nordeste — acrescentou Zelinskij.
E Jegorov completou:
— Tenho a impressão de que vai diretamente para o
lado do pântano.
Tomisenkow fez um gesto com a cabeça.
— Fiquem bem quietos, rapazes — disse a seus
homens. — Talvez passe por nós sem nos perceber.
Da escuridão ouviram as vozes dos homens que
confirmaram o recebimento da ordem.
— O que é? — perguntou Thora, nervosa. — Um
sáurio?
— Isso mesmo. Não está ouvindo?
Thora levantou a cabeça e aguçou o ouvido.
— Se está se referindo àquilo que, de minuto em
minuto, faz um ruído — disse depois de algum tempo —
eu...
— Não é de minuto em minuto — respondeu
Tomisenkow com um sorriso. — O intervalo é de trinta a
quarenta segundos.
— Por que é chamado de tirano?
— Porque é o único carnívoro entre os sáurios. Come
tudo que atravessa no seu caminho, desde que se trate de
substância animal. Até chega a atacar sáurios de outras
raças, mesmo que sejam maiores que ele. É claro que não
consegue devorá-los totalmente. Arranca os melhores
pedaços e deixa o resto para as formigas.
Thora ouviu-o, espantada.
— Por que anda tão devagar?
— Devagar? — Tomisenkow soltou uma estrondosa
gargalhada. — Desloca-se a uma velocidade de vinte
quilômetros por hora. É o único sáurio que costuma
andar com o corpo ereto. Geralmente só usa as patas
dianteiras para agarrar sua presa. É menor que a maioria
dos sáurios, mas, andando ereto, sua altura é pelo menos
dez metros maiores. Só as pernas têm cerca de quinze
metros de altura. É só calcular quantos passos tem de dar
por minuto para que esses membros provoquem um
deslocamento de vinte quilômetros por hora. Não são
119
mais que um e meio a dois.
Thora compreendeu.
Os passos retumbantes, que pareciam um terremoto,
tornavam-se cada vez mais fortes. Os outros ruídos da
selva cresceram na mesma proporção. Os animais fugiam
daquela criatura poderosa.
— Vamos ficar sentados até que ele nos pise? —
perguntou Thora, um pouco assustada.
Fez um gesto indefinido para a escuridão.
— Para qualquer lugar... para longe daqui.
— E como podemos saber que não passará
justamente no lugar em que pretendemos nos esconder
dele? Sabe dizer em que direção está andando?
Thora sacudiu a cabeça; parecia perplexa.
— Além disso, não precisa ter medo de ser pisada —
prosseguiu Tomisenkow.
— Será que não?
— Não. Um tirano não pisa suas vítimas; ele as
devora. E tem um nariz excelente para farejar sua presa.
Não tenha a menor dúvida.
Depois de ter dado esse tipo de consolo a Thora,
rastejou para onde estava Alicarim. Este havia removido
a vegetação de um pedaço de chão e comprimiu o ouvido
contra o solo para escutar melhor.
— Como estão as coisas? — perguntou Tomisenkow
em russo.
Alicarim fez uma careta.
— Mal. Na melhor das hipóteses passará a cinquenta
metros daqui.
Tomisenkow se assustou.
— Cinquenta metros não é nada — resmungou. —
Seu faro alcança o triplo dessa distância.
Alicarim confirmou com um aceno de cabeça.
Tomisenkow virou-se:
— Assumam posição de combate, rapazes. Ao lado
dos troncos das árvores. E façam boa pontaria.
Olhou para o lado e viu Wlassov, que não sabia o que
fazer.
— Não fique de pé por aí — disse Tomisenkow em
tom contrariado. — É um tirano que vai devorar você se
ficar de pé diante de suas patas. Peça a Jegorov que lhe
mostre como se deve esperar um tirano. E não se esqueça
de uma coisa: se ele baixar a cabeça para dar uma olhada
na gente, atire no olho dele. É o único ponto vulnerável
de seu corpo. Entendido?
— Entendido — respondeu Wlassov com um nó na
garganta.
Alicarim permaneceu até o último instante em seu
posto de escuta. Tomisenkow procurou se abrigar atrás
de um tronco. Uma vez em posição, fez sinal a Alicarim,
que desistiu de escutar.
O quirguiz esgueirou-se para um lugar que lhe
fornecia abrigo e colocou a pistola automática ao seu
lado.
— Está a menos de vinte metros — fungou. —
Dentro de três ou quatro minutos ele nos farejará.
Tomisenkow se limitou a acenar com a cabeça.
Subitamente, entre dois dos passos retumbantes do
sáurio, ouviu um ruído diferente. Sobressaltou-se e levou
algum tempo para compreender que o ouvido não o
enganara.
As preocupações com o tirano quase fizeram com que
se esquecesse de Raskujan.
Tomisenkow começou a rir, e Alicarim, que também
ouvira o ruído, acompanhou a gargalhada.
— Com todos os demônios — gemeu Tomisenkow.
— Se essa gente não se cuidar, o tirano os devorará
juntamente com o helicóptero.
* * *
Era um único aparelho, cuja tripulação consistia
como de costume em dois homens, um tenente e um
sargento. O sargento pilotava a máquina, o tenente
observava o terreno. Há pouco o tenente murmurara:
— Gostaria de saber como alguém pode reconhecer
pessoas em meio a esse tapete enredado.
E agora o raio do holofote de luz infravermelha
descobriu alguma coisa que nada tinha que ver com o
objetivo de suas buscas, mas assim mesmo ocupou toda
sua atenção.
Era um pescoço robusto e musculoso, que
ultrapassava ao menos em dez metros a cobertura da
selva, e por cima dele uma cabeça enorme de focinho
largo, que balançava suavemente sobre a coluna formada
pelo pescoço.
Ordenou ao sargento que subisse cinquenta metros e
mantivesse o aparelho imóvel. Através de seu
instrumento de voo cego, que na realidade era um
aparelho rígido de luz infravermelha, o sargento também
havia percebido o sáurio. Executou a ordem e imobilizou
o aparelho numa altitude segura, cerca de oitenta metros
do lugar em que se encontrava o animal.
— Também parou — constatou o tenente. — Ao que
parece não se interessa por nós. Descobriu alguma coisa.
* * *
Tomisenkow virou a cabeça e olhou para Thora, que
também se abrigara atrás de uma arvore e segurava uma
das pistolas automáticas que sobravam. Tomisenkow viu
seu cabelo louro-claro brilhar na escuridão.
— Fique quieta — gritou em inglês. — Saberemos
lidar com ele.
Thora respondeu em tom irônico:
— Não se preocupe comigo. Só estou interessada em
saber quanto valem esses seus lança-granadas
antiquados.
Com um resmungo de satisfação, Tomisenkow voltou
a olhar para o outro lado.
De repente cessou o ruído que o sáurio produzia com
seu deslocamento pela floresta. Tomisenkow assobiou
por entre os dentes.
— Ele nos farejou — comentou Alicarim.
Tomisenkow se apoiou nos braços e gritou para a
escuridão:
— Ele nos descobriu, rapazes. O espetáculo vai
começar.
No seu subconsciente percebeu que o helicóptero
também não se deslocava mais. Parado acima da
cobertura vegetal da selva parecia observar o sáurio.
Wlassov não estava gostando daquilo. Não era do seu
gosto esperar um inimigo no escuro, ainda mais quando
nem sequer sabia como ele era. Estava deitado atrás de
uma árvore bem grossa, conforme Jegorov lhe
recomendara; mas o próprio Jegorov estava tão distante
que Wlassov não o via.
Mas ouviu o grito de advertência de Tomisenkow e
estreitou a mão em torno da arma. Enfiara nela um pente
de balas em posição de disparar, com dois pentes de
120
reserva. Mais dez pentes se encontravam no chão, ao
alcance de suas mãos.
Subitamente o cenário voltou a se movimentar.
Wlassov ouviu um forte farfalhar e uma série de estalos
quando o sáurio voltou a se mexer. Instintivamente
aguardou o estrondo da próxima pisada.
Mas o estrondo não veio. Quase foi tarde demais
quando Wlassov percebeu que aquilo que se havia posto
em movimento era o pescoço do sáurio. Ouviu o estalo
dos galhos bem em cima de sua cabeça e viu uma sombra
descer do alto. De um instante para outro o ar se encheu
de uma terrível fedentina. Wlassov ouviu um fungar
rápido e furioso, quando o sáurio soltou o ar. Foi nesse
instante que a cabeça gigantesca emergiu da escuridão.
Por um segundo o sangue gelou-lhe nas veias. Nunca
vira, nem em sonho, uma coisa tão pavorosa e cruel. Viu
uma boca com duas fileiras duplas de dentes bem afiados
que se aproximava dele, uma boca tão grande que
poderia perfeitamente ficar de pé no interior da mesma.
Em algum lugar à sua direita e à sua esquerda os braços
ligeiros do monstro atravessavam a folhagem; mas
Wlassov fitou os dois olhos circulares e cintilantes do
sáurio, que o fitavam curiosamente a uns três metros de
distância.
Subitamente Wlassov se lembrou do conselho que
Tomisenkow e Jegorov lhe haviam dado. Num
movimento rápido ergueu a pistola automática, teve a
tranquilidade necessária para apontar cuidadosamente
para o olho direito e apertou o gatilho.
A salva dos pequenos projéteis explosivos atingiu o
alvo. O rosto terrível do sáurio desapareceu de repente, e
um instante depois veio do alto um grito tão forte e
pavoroso que Wlassov deixou cair a arma e comprimiu
as mãos contra os ouvidos.
* * *
— É agora! — gritou o tenente que se encontrava no
helicóptero. — É agora que ele vai agarrar a presa.
No filtro de luz infravermelha via-se perfeitamente
que o sáurio dobrava o pescoço e mergulhava a cabeça
entre a folhagem. Por alguns instantes só se viu a nuca
escamosa e saliente do animal. Depois, num movimento
súbito, a cabeça voltou a surgir com a boca muito aberta,
mas que cabeça!
No lugar em que antes ficava o olho esquerdo via-se
uma abertura profunda e irregular, de onde o sangue
jorrava aos borbotões. O tenente levou algum tempo sem
compreender que animal seria este que, num tempo tão
curto, conseguira produzir uma ferida tão extensa
naquela fera. Com os olhos muito abertos, esperou que
outro sáurio surgisse da escuridão da selva e continuasse
a despedaçar o primeiro.
Mas não houve nada disso. O monstro ferido virou-se
com um grito e se afastou cambaleante.
E então o espírito do tenente se iluminou.
Uma salva bem dirigida de projéteis explosivos
poderia causar uma ferida dessas, de projéteis iguais aos
que eram utilizados nas pistolas que ele mesmo usava.
Sua ordem veio quase sob a forma de um chiado, e
foi tão repentina que o sargento estremeceu:
— Desça e dê busca no terreno em que o sáurio
esteve.
O sargento obedeceu: o aparelho caiu para frente e
passou rente às copas das árvores. A massa imensa do
sáurio abrira uma estrada em meio à selva, e o tenente
dirigiu o facho do holofote para o lugar em que essa
estrada fazia uma dobra repentina.
O sargento manteve o aparelho imóvel, e, na ânsia da
observação, o próprio tenente não se deu conta do risco
que com isso assumiam.
Tomisenkow compreendeu a situação. Não sabia o
que teria atraído a atenção do helicóptero, mas não tinha
a menor dúvida de que estava procurando os fugitivos.
Por isso continuou no seu esconderijo e gritou:
— Fiquem deitados até que isso desapareça!
Mas esse grito não conseguiu superar o chiado dos
jatos e atingir o ouvido de Wlassov, e mesmo que este o
tivesse ouvido, provavelmente não lhe teria dado
atenção. O estado de espírito indescritível em que se
encontrava, feito de uma mistura quase psicopática de
euforia da vitória com os efeitos do medo terrível por
que passara, fez com que de um salto se colocasse na
estrada aberta pelo sáurio. Uma vez lá, apontou a pistola
automática para a sombra bem perceptível que
representava o helicóptero e apertou o gatilho.
A cabina de vidro do helicóptero foi atingida em
cheio. O sargento foi morto imediatamente, e o tenente,
ainda incólume, compreendeu imediatamente o que havia
acontecido. Sem se preocupar com os controles do
helicóptero, que por alguns segundos manteve a mesma
altitude, pegou o microfone do rádio sempre preparado
para a transmissão de mensagens e gritou sua
informação.
Ainda estava falando quando o aparelho tombou
como uma pedra e com um tremendo estrondo se
esfacelou no meio da estrada aberta pelo sáurio.
* * *
O posto de rádio instalado no acampamento de
Raskujan captou a mensagem:
— Localizamos os prisioneiros. Um pouco ao
nordeste do acampamento, três quilômetros...
Não se ouviu mais nada além de um estalo
relativamente leve, que era o único ruído que, da
tremenda explosão do helicóptero, foi transportado pelo
éter até a cabine do operador de rádio.
Este era um homem experimentado. Sabia o que
significava a gritaria nervosa e a súbita interrupção da
mensagem. E tinha a impressão de que o coronel
Raskujan acharia que se tratava de uma ocorrência
trivial.
Estabeleceu contato com a sala de comando da nave
capitania e comunicou ao coronel o que acabara de ouvir.
4
Ao que parecia os deuses de Vênus protegeram
Wlassov. Com um salto de pantera conseguiu mal e mal
afastar-se em tempo de escapar ao fogo violento da
explosão. Aterrizou violentamente num arbusto
malcheiroso, cujos galhos úmidos imediatamente
começaram a enlaçar seu corpo. Mas o deslocamento de
ar logo o livrou daquele abraço indesejável, atirando-o
alguns metros para diante, sem produzir nele qualquer
ferimento além de alguns arranhões.
121
De repente os acontecimentos excitantes dos últimos
minutos foram seguidos pelo silêncio total da selva.
Wlassov ouviu o sangue zumbir em seus ouvidos antes
que a voz zangada de Tomisenkow chegasse até ele:
— Onde está esse idiota que atirou contra o
helicóptero?
Wlassov se levantou e experimentou as pernas:
— Aqui! — gritou.
Depois se pôs em movimento. Alguém ligou uma
lâmpada e dirigiu o feixe de luz semiencoberto para o
solo. Era Tomisenkow. Alicarim e Zelinskij estavam a
seu lado. Jegorov e a arcônida saíram da folhagem lado a
lado.
— Você não ouviu — principiou Tomisenkow em
tom contrariado — que dei ordem para que todo mundo
permanecesse no lugar em que se encontrava?
— Não — respondeu Wlassov espantado e
mantendo-se fiel à verdade.
— O que você pensou quando atirou contra o
helicóptero?
Essa pergunta deixou Wlassov ainda mais espantado.
— Bem — respondeu em tom hesitante. — Devo ter
pensado a mesma coisa que qualquer pessoa que pega
uma pistola automática e atira contra um helicóptero
inimigo. Não vejo nada de especial...
Tomisenkow não deixou que terminasse.
— Então não vê nada de especial! — gritou, zangado.
— Você não podia imaginar que o pessoal do helicóptero
ainda iria transmitir uma mensagem antes de cair?
— Num tempo tão curto? — objetou Wlassov.
— Num tempo tão curto! — escarneceu
Tomisenkow. — E se não transmitirem nenhuma
mensagem, não demorará mais de meia hora e Raskujan
dará pela falta de um de seus aparelhos e mandará que
saiam à procura. E encontrar este montão de metais com
um aparelho de radar será questão de minutos. Você
estragou tudo que já conseguimos fazer. Raskujan não
precisará seguir nossa pista a partir do acampamento.
Poderá começar aqui mesmo.
Wlassov deixou cair os ombros. De um instante para
outro se sentiu muito ridículo, quando poucos segundos
antes ainda acreditara ser o herói do dia.
— Sim, eu reconheço — disse abatido. — O que
posso fazer?
— Você não pode fazer mais nada. Terá que usar as
pernas da mesma forma que nós.
Tomisenkow virou-se e olhou para Jegorov e Thora.
— Se Raskujan ainda não sabia em que direção nós
estávamos fugindo, agora ele sabe. Quer dizer que não
devemos prosseguir na direção nordeste. Vamos tomar a
direção sudeste para ver se conseguimos lograr os
helicópteros. Isso representa alguns quilômetros a mais.
Mas pelo que vejo, no momento, não temos outra
alternativa.
Andaram o mais depressa possível pela estrada que o
sáurio ferido, que já desaparecera nas profundezas da
selva, havia aberto em direção ao leste. Aproveitaram
uma pequena brecha na mata para voltar a mergulhar na
escuridão das árvores.
Tal qual da primeira vez, Tomisenkow supunha que
os homens de Raskujan procurariam os fugitivos na
estrada larga pisada pelo sáurio. Assim, se a sorte os
favorecesse, poderiam escapar dos helicópteros.
* * *
Poucos minutos depois das duzentas e treze horas,
Rhodan e seus companheiros atingiram o pântano que,
segundo se via, se estendia a uma distância desanimadora
para ambos os lados.
Rhodan já fizera suas experiências com os pântanos
venusianos. A ideia de contornar essa área de solo
enganador nem lhe passou pela cabeça. Mandou que Son
Okura examinasse as árvores que havia na área
pantanosa e achou que as mesmas serviam aos seus
propósitos.
— Vamos fazer uma ginástica e passar por cima —
ordenou. — Son, você irá à ponta. Marshall fique com os
olhos bem abertos. Uma pisada ou um gesto de mão em
falso, e será um homem morto.
Subiram às árvores por um feixe de cipós. Okura
guiou o grupo e determinou a velocidade da marcha.
Em primeiro lugar, era o único que enxergava na
escuridão; além disso, entre os três era o que se
deslocava com maior dificuldade. Tinha dificuldades de
andar que vinham de nascença. Por mais que se
esforçasse em acompanhar o passo das pessoas normais,
havia situações em que sua constituição física o obrigava
a ser mais lento. E esta era uma dessas situações. Apesar
da longa pausa todos estavam bem próximos ao
esgotamento total; quem mais sentiu isso foi Son Okura.
É bem verdade que para Perry Rhodan as coisas não
estavam muito melhores. Não tivera tempo para se
ocupar com a ferida no ombro. Sentiu que o ferimento
latejava e que o sangue que lhe corria pelas veias estava
mais quente que antes. A atmosfera úmida da selva
estava repleta de bactérias. Dentro em pouco a ferida
soltaria pus, ou então ele ficaria com febre.
Ou ambas as coisas.
Sabia que estava na hora de fazer uma pausa de trinta
horas no mínimo para dar algum descanso ao corpo
maltratado e cuidar da ferida. Mas no momento as trinta
horas eram preciosas demais para que pudesse gastá-las
numa pausa.
Thora estava em perigo e com ela a base em Vênus.
Muito embora Rhodan não duvidasse da fidelidade de
Thora, era de recear que um belo dia ela acabasse não
resistindo aos métodos que Raskujan empregava nos seus
interrogatórios. E mesmo que não pudesse dizer ao
coronel o que ele teria de fazer para penetrar na base,
este dispunha de uma multidão de técnicos eletrônicos
capazes de extrair das informações de Thora um volume
de dados sobre a estrutura do cérebro positrônico em
especial e a base em geral que poderia representar um
inconveniente grave para a Terceira Potência.
Thora tinha que ser libertada.
Isso não representava qualquer dificuldade, a não ser
a distância considerável que ainda tinha que ser
percorrida até o campo energético.
Rhodan não tinha qualquer possibilidade de se
identificar antes de chegar ao limite desse campo. Não
dispunha de qualquer coisa que lhe permitisse um
contato a grande distância. Só quando atingisse o campo
protetor, o cérebro positrônico começaria a se ocupar
com sua pessoa e descobriria que era a pessoa para a qual
a base devia ser aberta a qualquer hora. Dali em diante
tudo seria fácil.
122
O pântano que se estendia embaixo deles forçou sua
paciência ao máximo. Nem mesmo a visão do japonês
conseguia penetrar pela densa folhagem. Por isso viram-
se obrigados a, de tempos em tempos, cortar um galho
grosso e limpá-lo da folhagem para que o som do
impacto no chão lhes revelasse a natureza do solo.
Por várias horas não ouviram outra coisa senão o
eterno ruído produzido por um objeto pesado que cai no
líquido viscoso do pantanal.
Rhodan sabia perfeitamente que tudo isso seria uma
loucura rematada se Son Okura, o mutante, não estivesse
com eles. Às duzentas e dezessete horas fizeram outra
pausa. Rhodan gostaria de avançar mais algumas
centenas de metros, pois Okura dizia que mais adiante a
floresta era bem mais densa que no lugar em que se
encontravam. Dali se concluía que o pântano terminava
naquele lugar. Mas ninguém, naquela altura, era capaz
sequer de levantar a perna, quanto mais arrastar todo o
peso do corpo por um longo trecho de cipós.
No pântano os animais que andavam em cima das
árvores eram tão raros que Rhodan dispensou as
sentinelas. Os três dormiram tão profundamente como se
tivessem desmaiado; até que ouviram um ruído, vindo de
longe, que os arrancou imediatamente do sono, não
porque fosse muito forte, mas porque destoava por
completo daquele ambiente.
Era o chiado dos motores dos helicópteros e o ruído
entrecortado dos canhões automáticos.
Estava tão distante que nem cogitavam da
possibilidade de que pudesse ter alguma relação com
eles. O ruído vinha do noroeste, onde os helicópteros de
Raskujan pareciam ter descoberto alguma coisa sobre a
qual valia a pena atirar.
Olhando para o relógio regulado para o tempo
terreno, Rhodan viu que fazia cerca de três horas que
haviam interrompido sua marcha. Faltava pouco para as
duzentas e vinte horas.
Embora os tiros cessassem dentro de pouco tempo e
os helicópteros se afastassem, Rhodan achou que era
importante saber no que haviam atirado. Ainda mais que
o ruído vinha de um lugar que ficava em sua rota. Além
disso, as três horas de sono profundo lhes haviam
restituído, embora provisoriamente, as forças a ponto de
poderem reiniciar imediatamente a marcha.
Verificou-se que a suposição de Son Okura fora
correta. Poucos minutos depois de terem partido notaram
que embaixo deles o chão era seco e firme. Desceram e
dali em diante eles conseguiram avançar um pouco mais
depressa.
Meia hora depois o terreno entrou em aclive. Haviam
atingido as imediações das montanhas, e isso lhes parecia
ser um prenúncio feliz; pois a cadeia de montanhas em
que começavam a penetrar era a mesma em que se
situava a base.
* * *
O uivo dos helicópteros pairava constantemente sobre
suas cabeças, às vezes bem perto, outras vezes mais
afastado.
Os homens de Raskujan encontraram o montão de
metal fundido do aparelho derrubado no momento em
que o grupo de Tomisenkow acabara de desaparecer na
selva. Conforme supusera Tomisenkow, voaram primeiro
ao longo da estrada aberta pelo sáurio e deram busca na
mesma. Quando viram que essa busca não dava
resultado, mudaram de tática. Descreviam círculos largos
pela área e paravam de vez em quando para descer um
homem por uma corda; esse homem procurava localizar
os fugitivos embaixo da folhagem.
Tomisenkow manteve o grupo bem reunido.
Depois de algum tempo o terreno começou a subir.
Por algum tempo a subida foi bem suave, mas depois de
uma dobra do terreno passou a ser tão íngreme que
tiveram de recorrer às suas qualidades de alpinistas para
prosseguir a marcha.
Com uma mão diante da outra, um pé diante do outro,
subiram num ângulo de setenta graus por um paredão
que, apesar do aclive, estava coberto de árvores e
arbustos.
Tomisenkow esperava que lá em cima chegassem a
um dos platôs rochosos que, vez por outra, se elevam
acima da selva.
— Lá em cima a vegetação não é tão densa —
explicou Tomisenkow a Alicarim, o quirguiz. —
Poderemos observar os helicópteros por suas luzes de
posição e orientar-nos por eles, até que desistam da
busca.
Meia hora depois chegaram à beira do platô.
Tomisenkow não se enganara. Até onde a vista alcançava
na escuridão o chão era plano e a vegetação pouco densa.
Mas era suficiente para que o solo do platô só pudesse
ser visto dos helicópteros em poucos lugares.
Tomisenkow contornou esses lugares, enquanto
procurava um ponto de onde pudesse acompanhar a
atuação dos helicópteros.
Encontraram um lugar desses. Ficava pouco além da
borda do platô. Ao noroeste, o paredão caía quase na
vertical em direção à selva. Logo atrás da borda do platô
havia uma baixada rasa, coberta de arbustos, que seria
um ótimo lugar para acampar. Tomisenkow mandou que
Zelinskij, Jegorov, Wlassov e a arcônida descansassem
ali, enquanto ele e Alicarim instalaram-se na borda
rochosa para observar as luzes coloridas dos
helicópteros.
* * *
O major Pjatkov — o mesmo que localizara o barco
inflável de Rhodan e atirara uma bomba baby diante da
caverna das focas — mandou que seu telegrafista o
ligasse com o coronel Raskujan. Pjatkov era um dos
favoritos de Raskujan; a ligação foi estabelecida
imediatamente.
— Tive uma ideia — principiou Pjatkov sem
preâmbulos. — O terreno em que devemos dar a busca é
de constituição relativamente simples: todo plano até a
encosta sul das montanhas. Mas Tomisenkow ainda não
pode ter chegado lá. Antes dele só existe uma única
elevação, um platô de rocha que se ergue uns trinta ou
quarenta metros acima da selva. Tomisenkow precisa de
um lugar em que possa ver quando suspendemos nossas
buscas e se estamos muito perto dele. Sabe que somos
obrigados a manter as luzes de posição acesas. Basta que
se coloque num lugar adequado para poder nos observar
com toda calma.
Raskujan ainda não estava convencido.
— Em que direção fica o platô, considerada a posição
do aparelho derrubado? — perguntou.
— A sudeste.
Pjatkov sempre tinha uma resposta na ponta da
língua.
123
— Acredito — disse — que Tomisenkow teve a
mesma ideia. Depois de conhecermos qualquer ponto de
sua trajetória, saberemos em que direção está fugindo.
Enquanto não suspendermos as buscas, Tomisenkow
marchará em qualquer direção, menos naquela em que o
estivermos procurando.
— Hum — fez Raskujan.
— Em minha opinião — prosseguiu Pjatkov
animadamente — devíamos pousar no platô com dois ou
três helicópteros, sem chamar a atenção, e agarrar
Tomisenkow no próprio ninho. Se os outros aparelhos
fizerem barulho que chegue, não nos deverá ser difícil
subir ao platô.
Raskujan acabou concordando. Pjatkov concluiu a
palestra e instruiu dois helicópteros de seu grupo a
seguirem-no. Foram na direção norte, quase até as
encostas íngremes das montanhas, e desligaram as luzes
de posição quando Pjatkov acreditou que não mais
poderiam ser vistos do platô. Depois fizeram meia-volta
e aproximaram-se do complexo rochoso, vindos do leste.
As máquinas pousaram numa clareira, pouco atrás da
borda do platô. Os homens desceram. Pjatkov pediu que
se mantivessem, por um instante, junto aos aparelhos. Só
depois de ter certeza quase absoluta de que nas
proximidades não havia nada de perigoso ou suspeito
deu ordem de marcha.
Os homens não gostaram da missão. Nunca haviam
saído dos acampamentos, a não ser no interior de
helicópteros ou de barcos infláveis relativamente
seguros.
O medo só diminuiu depois de uns quinze minutos de
marcha.
Pjatkov calculou que a distância que teriam de
percorrer para chegar à extremidade oposta do platô seria
de cerca de cinco quilômetros. Em sua opinião, mesmo
no escuro, essa distância poderia ser vencida dentro de
uma hora e meia a duas horas.
Depois disso provaria a Raskujan que estava com a
razão.
* * *
Alicarim virou-se.
— O que houve? — resmungou Tomisenkow.
Alicarim levou algum tempo para responder.
— Acho que ouvi um ruído; vem de lá. Apontou para
o outro lado do platô.
— Deixe de bobagens — resmungou Tomisenkow.
— Que ruído é?
— São helicópteros.
— E agora?
Alicarim aguçou o ouvido.
— Não ouço mais nada.
— Pois então — disse Tomisenkow, voltando a se
apoiar nos cotovelos. — Estão todos na nossa frente.
Como é que algum deles poderia surgir pelas costas?
Alicarim achou que a pergunta era tola. Não havia
nada mais fácil para um helicóptero que contornar o
platô e pousar do outro lado. Mas enquanto não tinha
certeza de não ter se enganado, preferiu ficar quieto.
Assustou-se quando subitamente os canhões
automáticos começaram a disparar em cima da selva.
Tomisenkow levantou-se um pouco e com os olhos
arregalados fitou a escuridão. Depois começou a rir.
— É formidável! — disse. — Um desses idiotas
acredita que nos encontrou.
O tiroteio não durou muito. Terminou sem qualquer
motivo plausível, tal qual havia começado. Ao mesmo
tempo uma movimentação nervosa teve início na
multidão das lâmpadas de posição. Os helicópteros
suspenderam as buscas e afastaram-se. Poucos minutos
depois não podiam ser vistos mais. Apenas o chiado dos
jatos continuou a ser ouvido por mais alguns minutos.
— Não compreendo mais nada — comentou
Tomisenkow.
Permaneceu deitado por mais algum tempo; depois se
levantou.
— Está cansado? — perguntou, dirigindo-se a
Alicarim.
— Não senhor.
— Está bem. Vou deitar um pouco. Fique com os
olhos bem abertos. E avise a Jegorov que dentro de uma
hora deve revezá-lo.
* * *
O major Pjatkov trazia consigo um potente binóculo
noturno, equipado com um pequeno holofote de luz
infravermelha e o respectivo filtro.
Com esse binóculo descobriu o acampamento na
baixada junto à borda leste do platô. Mandou que seus
homens cercassem o acampamento, e que, ao seu
comando, surpreendessem e prendessem os homens que
dormiam.
Só depois percebeu que faltava um dos fugitivos.
Incluindo a arcônida, dera-se pela falta de seis pessoas,
entre elas o cabo Wlassov, que, segundo era de supor,
devia ter se unido a Tomisenkow.
Mas Pjatkov só contou cinco homens no
acampamento. Faltava um.
Onde estaria?
Pjatkov assumiu um risco: resolveu debilitar ainda
mais o círculo já bastante esparso de seus homens,
mandando que um deles saísse em busca do sexto
fugitivo.
Depois ficou esperando.
* * *
Jegorov não tinha vindo. Provavelmente estaria
dormindo.
Alicarim não se zangou. Não estava cansado, e, além
disso, gostava de olhar para a escuridão, embora não
visse nada.
De repente ouviu um ligeiro farfalhar. Subia pelo
paredão; alguém parecia arranhar um objeto.
Agora o ruído estava bem embaixo dele. Alicarim se
arrastou por um metro e percebeu que o ruído ainda
vinha de baixo, na vertical.
Soltou um palavrão abafado, levantou-se e correu
mais cinco metros. O ruído também estava lá.
Teve que caminhar mais de dez metros até que o
arranhar viesse de lado.
Ajoelhou-se e esperou.
De início apenas viu alguma coisa que se
movimentava na escuridão; mas não pôde identificar o
que era.
Depois alguma coisa escura, brilhante, surgiu no
campo de visão. O movimento que Alicarim vira vinha
de duas figuras em forma de tentáculo, que assentavam
na frente da coisa escura e brilhante que Alicarim havia
124
visto.
Levantou-se de um salto.
Eram formigas!
Ficou mais tranquilo ao constatar que os animais não
se deslocavam em direção ao acampamento. O exército
delas subiu pela borda do platô e, estalando e
farfalhando, atravessou a folhagem. Cada uma tinha o
tamanho da mão de um homem adulto.
Apesar disso, Alicarim pôs-se a voltar ao
acampamento. As formigas de Vênus eram animais
imprevisíveis. Além disso, ninguém sabia se possuíam o
sentido do olfato, que eventualmente lhes permitiria
farejar a presa humana.
Era necessário avisar Tomisenkow.
Ali...!
Num gesto instantâneo, mas silencioso, Alicarim
deixou-se cair para frente quando a sombra emergiu da
escuridão. Por um instante xingou-se de idiota por causa
do susto. Devia ser Jegorov que vinha revezá-lo.
Acontece que não era Jegorov.
E não era nenhum dos homens do grupo de
Tomisenkow. O vulto que tinha diante de si media quase
dois metros. Para quem olhava de baixo como Alicarim,
destacava-se nitidamente contra o céu cinzento.
Passou a dois metros de distância do quirguiz.
Andava cautelosamente, olhando de um lado para outro.
Ainda não havia descoberto as formigas; apesar disso a
área não parecia inspirar-lhe muita confiança.
Os pensamentos atropelaram-se no cérebro de
Alicarim. Lembrou-se do barulho dos helicópteros que
ouvira há mais de uma hora.
Afinal, o ouvido não o teria enganado mesmo?
Seguiu o homem, arrastando-se pelo chão. A menos
de um metro à sua direita marchava o exército de
formigas.
Ao chegar à borda do platô, o grandalhão parou.
Olhou para a direita, para a esquerda e depois descobriu
as formigas. Alicarim viu que, tomado de um tremendo
susto, abriu as pernas para ter uma posição mais firme e
levantou a pistola automática.
Foi quando Alicarim saltou para a frente.
O homem, mortalmente assustado pelas formigas,
não ofereceu a menor resistência. Alicarim deu-lhe uma
pisadela na cavidade do joelho e ao mesmo tempo
golpeou seu pescoço com o lado da mão.
Com um grito de pânico, o homem caiu para a frente.
Foi parar no meio das formigas. Debateu-se para afastar
os animais que caíam em cima dele. A pistola foi atirada
bem longe, por cima da borda do platô.
Alicarim rastejou para trás e escondeu-se numa
moita.
Mas logo se levantou de um salto. O acampamento
estava em perigo! O homem atacado pelas formigas, que
a essa hora já estava morto, não devia ter vindo só.
Mas Alicarim ainda não havia avançado dez passos
quando percebeu que já não poderia prestar ajuda a
ninguém.
Viu sombras que se movimentavam apressadamente
na baixada. Gritos abafados soaram. Alguém praguejou:
era a voz de Zelinskij.
Chegara tarde!
Alicarim mudou de direção e procurou se afastar o
mais rápido possível do palco dos acontecimentos.
5
No lugar em que houvera o tiroteio não foi
encontrado nada. Já se encontravam cerca de duzentos
metros acima do nível da planície costeira, e
evidentemente nem desconfiavam de que a finalidade do
tiroteio consistira apenas em fazer barulho para que o
major Pjatkov pudesse pousar no platô sem ser
molestado.
Por algum tempo, Perry Rhodan acompanhou no seu
receptor de pulso as mensagens trocadas entre os pilotos
dos helicópteros. Delas se concluía, sem a menor sombra
de dúvida, que os homens de Raskujan andavam à
procura de prisioneiros que haviam fugido. Rhodan
supôs que os fugitivos deviam ser alguns dos homens de
Tomisenkow. Não ficou sabendo que Thora se
encontrava entre eles. As mensagens apenas aludiam
“aos fugitivos”.
Rhodan e seus companheiros se encontravam a
poucos quilômetros do limite do campo protetor. Na
opinião de Rhodan deviam fazer mais uma pausa de uma
hora, antes de enfrentar o restante do caminho.
* * *
Raskujan tinha consciência do seu triunfo. Mandou
que os dois prisioneiros mais importantes fossem
conduzidos à sala de comando da nave capitania.
Encarou-os com um sorriso amável e zombeteiro ao
mesmo tempo e perguntou:
— O que esperavam conseguir?
Tomisenkow ainda não tivera a oportunidade de pôr
em ordem sua figura esfarrapada. Tinha os cabelos
desgrenhados e o uniforme, já estragado, ainda por cima
continuava rasgado, tal qual saíra da briga com os
homens de Pjatkov.
Thora não participara da breve luta. Estava suja, mas
intacta, quando se defrontou com Raskujan.
Nem Tomisenkow nem Thora deram qualquer
resposta à pergunta do coronel.
— Ah — disse Raskujan com um sorriso. —
Continuam orgulhosos como sempre, não é?
Instalou-se confortavelmente na poltrona e cruzou as
pernas.
— Lamento sua teimosia — prosseguiu. — Os
senhores se opõem ao único poder real que existe em
Vênus. Por quê?
Thora sorriu com desprezo. Tomisenkow respondeu
mal-humorado:
— Porque não gostamos do senhor.
Raskujan não deixou se irritar.
— Parto de um ponto de vista mais negociável —
explicou tranqüilamente a Tomisenkow. — Todos nós
devíamos nos unir. Estou convencido de que juntos
criaríamos um poder como ainda não existiu outro.
Tomisenkow soltou uma risada áspera.
— Só se Rhodan o deixasse em paz.
— Ora! — disse Raskujan com um gesto de
desprezo. — Ele me deixou em paz durante um ano; por
que não vai continuar assim? E se eu conseguir penetrar
na base de Vênus com o apoio da senhora — fez um
125
gesto em direção a Thora — nem mesmo Rhodan
conseguirá pôr os pés neste planeta contra minha
vontade.
— Não pense que vou ajudá-lo a entrar na base de
Vênus — gritou Thora, furiosa.
— Pois eu saberei obrigá-la a isso! — disse Raskujan
entre os dentes. Já estava começando a perder o
autocontrole.
Thora fez um gesto de desprezo.
— Quem é o senhor para obrigar uma arcônida a
falar? Além disso, Rhodan o agarrará antes que conclua
o interrogatório.
Raskujan se levantou de um salto.
— Rhodan nem sequer está em Vênus! — gritou fora
de si. — E se tentar pousar por aqui, saberei impedi-lo.
Nesse ponto a sensação de triunfo levou a melhor
sobre a inteligência de Thora. Com os olhos chamejantes
gritou:
— Não quebre a cabeça para descobrir como poderá
impedir que Rhodan pouse neste planeta. Ele já se
encontra em Vênus!
Mal acabou de pronunciar estas palavras, reconheceu
o erro que havia cometido. Mas o espetáculo que se lhe
ofereceu quando Raskujan, pálido como cera, cambaleou
e caiu em sua poltrona, bem que valeu o susto que o erro
lhe causava.
Atrás dela, Tomisenkow disse em voz baixa:
— A senhora não devia ter dito isso!
* * *
Alicarim marchava.
Reunindo toda a paciência peculiar a um asiático,
procurou vencer todos os obstáculos para alcançar um
objetivo, de cuja existência, por enquanto, apenas
suspeitava.
Quando ainda era um prisioneiro de Raskujan, ouvira
falar nos acontecimentos estranhos que se desenrolaram
no mar: os fenômenos luminosos que foram observados,
os dois helicópteros que nunca regressaram, a busca
extenuante do major Pjatkov, a descoberta de um barco
inflável e de três homens que nadavam e, por fim, o
lançamento da bomba baby.
Alicarim sabia mais que isso. Lembrou-se do ataque
que o acampamento de Tomisenkow, situado na
península, sofrerá poucos dias antes que Raskujan o
atacasse. O ataque fora repelido; haviam visto três
homens, mas não conseguiram aprisionar nenhum deles.
Por fim, Alicarim ainda guardava uma lembrança
bastante viva das armas de impulsos térmicos usadas
pela Terceira Potência; conhecera-as há um ano. Era
provável que os fenômenos luminosos observados pelos
homens de Raskujan proviessem de armas desse tipo.
Era bem verdade que o resto não passava de
suposições e cálculos. Se é que três homens da Terceira
Potência, desprovidos de quase todos os recursos
técnicos — assim concluiu Alicarim — se encontravam
em Vênus, a primeira coisa que eles procurariam fazer
era entrar em contato com o cérebro positrônico
instalado no interior da fortaleza.
Foi por isso que Alicarim dirigiu sua marcha
montanha acima. Sabia que o enorme campo protetor
tinha um diâmetro de cinquenta quilômetros. A chance
de encontrar os três homens em algum ponto naquela
extensa área era assustadoramente reduzida. Mas essa
chance aumentava pelo fato de que, tal qual Alicarim, os
três homens vinham do sul e provavelmente procurariam
penetrar no campo protetor dessa direção.
Além disso, essa era a única chance de Alicarim. Em
qualquer outro lugar, sua situação seria mais
desesperadora do que no lugar em que havia alguma
possibilidade de se encontrar com membros da Terceira
Potência. Eram os únicos que podiam ajudá-lo.
Por isso Alicarim prosseguiu em sua marcha.
Depois de ter avançado um bom pedaço, viu a
abóbada reluzente do campo protetor que surgia entre as
copas de duas árvores e logo desapareceu entre a densa
camada de nuvens.
A vegetação também era mais rala e a caminhada
mais fácil.
Alicarim criou nova coragem e avançou com maior
rapidez.
* * *
Fosse qual fosse a opinião que se tinha a respeito de
Raskujan, às vezes ele sabia calcular uma situação.
Desde o início, os três homens a respeito dos quais o
major Pjatkov lhe falara representaram um mistério para
ele. Quem se atreveria a cruzar em plena noite o mar de
Vênus num frágil barco inflável, ainda que esse mar
apenas consistisse num braço de trezentos e cinquenta
quilômetros de largura?
Raskujan sabia que havia uma certa possibilidade,
mesmo remota, de que, apesar dos canhões automáticos e
da bomba baby, os três homens ainda estivessem vivos.
Se um desses homens fosse Perry Rhodan...
Raskujan prosseguiu nas suas conjecturas e chegou à
mesma conclusão que, mais ou menos ao mesmo tempo
e num lugar distante, veio à mente do quirguiz Alicarim.
Se é que Rhodan andou pelo mar num barco inflável,
isso significava que, por qualquer motivo, perdera o
contato com a Terra e com sua base em Vênus. Se não
fosse assim, disporia de recursos técnicos muito maiores
do que aqueles com os quais contava no momento.
Partindo desse pressuposto, convenceu-se de que
Rhodan não teria coisa mais urgente a fazer senão
alcançar o campo protetor que cercava sua base e
penetrar na mesma; Raskujan não duvidou um instante
sequer de que Rhodan teria possibilidade de fazê-lo.
O resultado lógico dessa conclusão foi uma ordem
transmitida a toda a frota de helicópteros: deviam
levantar voo imediatamente, aproximar-se do campo
protetor e atirar contra tudo que se movia nas
proximidades do mesmo. Raskujan preferiu não revelar o
fato de que essa ação se dirigia contra Perry Rhodan.
Receava de que esse nome bastasse para amedrontar seus
homens.
Depois de uma pausa que todos os tripulantes
acharam muito curta, os helicópteros voltaram a levantar
voo. Raskujan contemplou na tela de imagem o quadro
que se oferecia no campo de pouso bem iluminado; o
espetáculo impressionante dos helicópteros que saíam
em disparada tranquilizou-o ao menos em parte.
O fato de que a maior das ações bélicas já realizadas
em Vênus dirigia-se contra um único homem não o
perturbou nem um pouco. Se dispusesse de mais
equipamentos, enviaria dez vezes mais gente e material
para destruir um único homem.
Perry Rhodan.
126
* * *
O corpo de Rhodan aproveitou a última pausa para,
através de uma febre violenta, protestar contra os maus
tratos que lhe eram infligidos.
Quando a pausa terminou e a marcha devia ser
reiniciada, Rhodan batia os dentes. Marshall e o japonês
sugeriram que a pausa fosse prolongada até que a febre
terminasse, mas Rhodan respondeu com uma risada
contrafeita:
— Receio que esta máquina miserável, — apontou
para o peito — ficará febril enquanto não lhe dermos
coisa melhor para fazer.
Prosseguiram em sua marcha. Tiveram sorte: o
terreno continuava em subida e a vegetação tornava-se
cada vez mais rala.
Mas Rhodan teve azar, pois teve de rever sua opinião
sobre a máquina miserável. A febre não diminuiu; pelo
contrário, aumentou. Houve momentos em que Rhodan
teve de se apoiar ao ombro de Marshall para não cair.
Algum tempo depois, marchavam por um vale
estreito situado nas montanhas. Ao atingirem a saída
norte viram, aparentemente ao alcance da mão, a
abóbada reluzente formada pelo campo protetor que
cercava a base.
Rhodan soltou um suspiro de alívio. Praticamente já
haviam conseguido, e não fora nada fácil.
O terreno em que marchavam consistia num planalto
pedregoso coberto apenas de arbustos esparsos.
Avançaram rapidamente, e a parede reluzente do campo
protetor aproximava-se quase a olhos vistos.
— Ainda faltam uns oitocentos metros. — murmurou
Marshall depois de algum tempo, para animar Rhodan e
distraí-lo de suas dores.
Mal terminara, quando um zumbido agudo passou
pelas montanhas, vindo do sul. Marshall estacou e
Rhodan, que se apoiava em seu ombro, também parou.
Son Okura voltou-se bruscamente e fitou o céu
escuro.
O zumbido tornou-se mais agudo, aproximou-se por
cima do vale e dissociou-se no chiado dos jatos e nas
batidas dos rotores.
— São helicópteros! — gritou o japonês.
— Pelo menos quarenta!
Rhodan enrijeceu o corpo e se manteve de pé com
suas próprias forças. Voltou apressadamente a cabeça.
— Abriguem-se — fungou. — Lá atrás. Procurem
atingir a encosta do vale.
* * *
Só por alguns minutos Alicarim acreditou que todo
aquele aparato se destinava a ele. Ouviu que os
helicópteros passaram em disparada por cima do
esconderijo em que apressadamente se abrigara e
começaram a cruzar à frente do campo energético.
Alicarim logo compreendeu suas intenções. Alguém
tivera a mesma ideia que ele e procurava alcançar os três
homens da Terceira Potência no lugar em que havia
maior probabilidade de encontrá-los.
Alicarim pôs-se novamente a caminho e depois de
algum tempo passou por um desfiladeiro onde o
caminhar era muito difícil, e que atravessava a última
barreira de montanhas, terminando na extremidade oeste
de um vale cercado de todos os lados por encostas muito
elevadas.
Mais ao norte — a uns dois quilômetros, pelos
cálculos de Alicarim — a cúpula luminosa emergia do
fundo do vale.
Era bem verdade que mais ao norte também os
helicópteros cruzavam o ar, conforme o quirguiz ouvia
perfeitamente. Uma vez que conhecia seus equipamentos
e estava muito bem informado sobre a eficiência dos
holofotes de luz infravermelha, procurou se abrigar
cuidadosamente. Dessa forma avançou mais devagar,
mas com uma segurança incomparavelmente maior.
Os helicópteros passaram sobre o vale numa altura
reduzida. Rhodan e seus companheiros não conseguiram
atingir a encosta; esconderam-se sob uma pedra larga, de
cerca de dois metros de altura. Depois de terem
percebido que, por enquanto, não haviam sido
descobertos, prosseguiram na retirada e esconderam-se
na entrada de uma caverna que penetrava na encosta
rochosa. A partir dali Son Okura observou os
helicópteros.
— Estão se dividindo — disse. — Dois grupos
dirigem-se para o leste e o oeste, ao longo do campo
energético, enquanto outro grupo cruza bem diante dele.
Rhodan quase não tinha capacidade de responder.
— Devemos prosseguir — gemeu. — Só poderemos
entrar em contato com o cérebro positrônico quando
tivermos atingido o limite do campo energético.
Marshall protestou.
— Se fosse o senhor, eu preferiria...
— Cale a boca! — ordenou Rhodan e levantou-se,
apoiando a mão na parede rochosa da caverna.
No mesmo instante Son Okura, que se encontrava na
entrada da caverna, virou-se com um grito abafado e
levantou o radiador térmico.
— Pare!
Ouviu-se uma voz quase incompreensível vinda da
direita. Marshall não entendeu uma palavra. Deixou
Rhodan a sós e, com a arma engatilhada, colocou-se ao
lado do japonês.
— Quem é? — perguntou. Okura deu de ombros.
— É um russo. Diz que é um dos homens de
Tomisenkow, e que fugiu do campo de prisioneiros.
Marshall baixou a arma. Fechou os olhos, enquanto
Okura mantinha o desconhecido à distância, e
concentrou-se sobre os pensamentos que fluíam do
cérebro do desconhecido.
— Está bem — resmungou depois de algum tempo e
fez um sinal para Okura. — As intenções dele são boas.
Okura também baixou a arma. Gritou em russo para
que o homem se aproximasse.
Finalmente Marshall viu-o emergir da escuridão. Era
pequeno, mas atarracado. Tinha os olhos oblíquos e os
maxilares salientes de um asiático. Dirigindo-se a Son
Okura, disse:
— Meu nome é Alicarim. Sou um dos homens de
Tomisenkow. Posso contar muita coisa.
Rhodan dispôs-se a ouvir o homem, embora tivesse
muita pressa. Alicarim fez um breve relato de tudo que
havia acontecido depois do assalto de Raskujan ao
acampamento de Tomisenkow.
— Depois desse incidente — murmurou Rhodan —
as coisas não serão nada fáceis para Thora. Raskujan não
recuará diante das medidas mais violentas para obrigá-la
a falar. Vamos adiante!
Saíram da caverna e caminharam rentes à encosta.
127
Aproveitavam todo acidente do terreno que pudesse lhes
proporcionar uma proteção e Son Okura manteve os
helicópteros sob uma observação ininterrupta. O relato
de Alicarim e a preocupação por Thora pareciam ter
dado novas forças a Perry Rhodan. Percorreu quase
metade do caminho que faltava com suas próprias forças;
só no último trecho voltou a se apoiar em Marshall.
Aproximaram-se a uns cinquenta metros da parede
reluzente, sem que os homens que se encontravam nos
helicópteros de Raskujan os houvessem visto. Mas dali
em diante a situação se tornou crítica.
No último trecho não havia praticamente nenhum
abrigo. Só de vez em quando se via um bloco de pedra,
mas na maioria eram tão pequenos que dificilmente
poderiam proteger um homem.
Além do mais, Rhodan não teve a menor dúvida de
que os helicópteros lançariam bombas assim que
descobrissem suas vítimas. E contra uma bomba, a maior
das pedras não oferecia proteção suficiente.
Notava-se que Rhodan recorria às últimas reservas de
energia. Tinha a face flácida e em sua pele surgiam
manchas vermelhas. Sua voz era rouca e entrecortada.
— Vamos fazer uma manobra desviacionista —
ordenou. — Um de nós vai atrair a atenção deles.
Enquanto os helicópteros se ocupam com esse homem,
os outros avançam até o campo protetor. Acredito que o
cérebro positrônico só levará alguns segundos para me
identificar e abrir a barreira energética por um instante.
Quem está disposto a ir?
Alicarim, que não havia entendido uma palavra,
pediu que Okura traduzisse o que Rhodan acabara de
dizer.
— Eu vou — afirmou depois disso. Okura traduziu
suas palavras.
Rhodan não teve nenhuma objeção, ou ao menos não
teve nenhuma objeção com a qual quisesse despender
tempo naquele instante. Alicarim não pertencia à
Terceira Potência. Não tinha nenhum motivo para
arriscar a vida nessa manobra temerária.
Mas não havia tempo para debates.
O quirguiz saiu rastejando, depois de ter sido avisado
de que deveria começar a correr assim que o campo
energético se apagasse. Ninguém sabia quais eram suas
idéias quanto à maneira de atrair a atenção dos
helicópteros.
Os outros esperaram, febris e impacientes.
* * *
Pjatkov acreditara que o vale que, vindo do sul,
estendia-se até a abóbada energética, provavelmente
seria o lugar em que os homens que procurava poderiam
ser encontrados.
Não tinha a menor ideia de quem eram esses homens.
Supunha que deviam ser muitos, ou então, que devia
tratar-se de gente muito perigosa ou importante, pois de
outra maneira Raskujan não se daria à tamanho trabalho
para agarrá-los.
O helicóptero de Pjatkov tinha quatro tripulantes: o
piloto, um observador, um telegrafista e ele mesmo. De
vez em quando substituía o observador em seu trabalho.
Olhou para o relógio. Ainda poderiam permanecer ali
durante cinco horas; depois teriam de regressar para
reabastecer. Dentro de cinco horas aqueles
desconhecidos teriam que...
— Olhe! — gritou o observador. — Um homem!
Pjatkov empurrou o homem para o lado e olhou pelo
filtro ótico. Lá embaixo, em meio às rochas, havia um
homem. Encontrava-se a apenas vinte metros do limite
do campo protetor e corria que nem um louco.
— Fogo! — berrou Pjatkov.
O observador colocou-se atrás do canhão automático,
abrangeu o alvo no pequeno telescópio da mira e
começou a disparar. Aborrecido, notou que os projéteis
detonavam a uma boa distância do homem que corria e
corrigiu a pontaria. Mas antes que conseguisse alvejar o
desconhecido, este desapareceu atrás de uma pedra.
O major Pjatkov fungava de nervosismo.
— Desça!
O helicóptero desceu.
— Circule em tomo da rocha.
A máquina inclinou-se ligeiramente e começou a
descrever um círculo amplo em torno da rocha.
— Chegue mais perto! — gritou Pjatkov, furioso.
Mas logo percebeu outro movimento pelo canto do
olho. Girou rapidamente o filtro ótico e viu os três
homens que, a cem metros dali, corriam em direção ao
campo energético reluzente. Numa fração de segundo
compreendeu que o avanço do homem que se encontrava
ali embaixo fora apenas aparente.
O perigo real era representado por aqueles três
homens.
— Vá para a esquerda — gritou para o piloto. — Ali
há mais gente.
O piloto, que só via os acontecimentos que se
desenrolavam bem à sua frente, levou algum tempo para
compreender a nova ordem e retificar o curso.
— Mais rápido! — ordenou Pjatkov. — Preparem as
bombas.
Pôs a mão para o lado e, numa batida, ligou o rádio.
Não seria necessário perder muitas palavras; as vozes de
comando bastariam para que os ocupantes dos outros
aparelhos compreendessem o que se passava.
Os três fugitivos chegaram ao campo energético.
— As bombas estão prontas — anunciou o
observador.
Pjatkov notou que dois aparelhos que voavam a seu
lado atiravam com seus canhões automáticos contra os
fugitivos.
— As bombas serão lançadas quando eu ordenar —
disse.
As bombas preparadas pelo observador eram dotadas
de cargas explosivas simples. Nenhum helicóptero que se
encontrasse a uma altitude tão pequena arriscaria o uso
de bombas nucleares, por menores que fossem.
Mas uma bomba explosiva seria suficiente para...
O campo energético se apagou.
Pjatkov soltou um grito estridente e apavorado
quando o campo energético desapareceu de repente. Mas
no mesmo instante compreendeu a chance extraordinária
que, com isso, lhe era oferecida.
— Vire para a direita! — gritou para o piloto. —
Atravesse o campo energético!
O piloto não estava preparado para essa missão.
Levou cinco segundos para corrigir o curso. Pjatkov
parecia febril.
Finalmente a máquina girou no ar e disparou em
velocidade máxima para o lugar em que, poucos
instantes antes, a barreira energética se erguia desde o
128
fundo do vale.
Nenhum dos ocupantes do helicóptero de Raskujan
chegou a ver que a barreira energética voltou a reluzir no
mesmo instante em que o helicóptero se dispôs a romper
a respectiva área.
Os ocupantes dos outros helicópteros viram uma
explosão ofuscante, que produziu um forte estalo nos
receptores.
Mais tarde ninguém saberia dizer se o helicóptero de
Pjatkov foi consumido pela energia da barreira
energética, ou se foi despedaçado pela explosão das
bombas que trazia a bordo.
Depois do primeiro instante de pavor, os ocupantes
dos outros helicópteros deram-se conta de que, ao que
tudo indicava depois da ligeira interrupção tudo voltara a
ser como era antes, e que naqueles poucos segundos os
desconhecidos conseguiram penetrar na área da base.
O coronel Raskujan recebeu esta mensagem lacônica:
— O major Pjatkov está morto. Os fugitivos estão
fora de nosso controle, por terem penetrado na base.
* * *
Raskujan logo compreendeu o significado dessa
mensagem. Rhodan conseguira penetrar em sua base.
Supôs que dentro de poucos minutos Rhodan
utilizaria seu potencial técnico invencível para atacar o
campo de foguetes e destruí-lo.
Mandou que o acampamento entrasse em regime de
prontidão para a defesa, o que não exigiu maiores
preparativos ou modificações. Desde o dia em que
pousara em Vênus contava constantemente com algum
acontecimento imprevisto e agrupou seus homens e
equipamentos de tal forma que poderiam se defender
contra um ataque vindo de qualquer direção.
Havia outra questão: será que o agrupamento
adequado também se tornaria eficiente face ao furacão
artificial que, segundo esperava, seria desencadeado por
Perry Rhodan?
Raskujan era de opinião que a resposta só poderia ser
negativa. Por isso fez outros preparativos, mas em
segredo: além dele e das pessoas atingidas, só uma
pessoa soube deles, o piloto que dirigiria o helicóptero.
Ajudado pelo piloto, amarrou as mãos de
Tomisenkow e Thora, que eram os mais importantes
dentre seus prisioneiros. Fizeram-nos caminhar diante
dos canos das pistolas automáticas e ajudaram-nos a
entrar no helicóptero que já estava à espera.
Quando as mãos vigorosas do piloto empurraram
Tomisenkow para dentro do aparelho, o mesmo lançou
um olhar de desprezo por cima do ombro e disse:
— Alguma coisa não deu certo, não é? Os ratos estão
abandonando o navio que vai afundar.
— Cale a boca! — rosnou Raskujan. Não disse mais
nada.
A cabina era mais ampla que na maioria dos
helicópteros. Havia quatro poltronas para passageiros.
Thora e Tomisenkow foram obrigados a sentar nas da
frente, enquanto Raskujan sentou atrás deles, com a arma
engatilhada. O piloto se enfiou na sua poltrona apertada e
aguardou alguma coisa. A porta externa se fechou com
um chiado.
— Prestem atenção! — disse Raskujan com a voz
embaraçada. — O que me interessa a esta altura é não
cair nas mãos de Rhodan. Ele conseguiu penetrar em sua
base e dentro de poucos minutos estará aqui. Minha
situação é muito séria. Levo os dois. O senhor,
Tomisenkow, conhece este planeta, e a senhora, Thora,
me servirá de refém diante de Rhodan. Neste helicóptero
encontra-se uma ampla provisão de armas, munições e
mantimentos. Tomisenkow, a tarefa do senhor por
enquanto consiste em descobrir um esconderijo seguro
para nós.
Uma vez lá, aguardaremos até que Rhodan se mostre
disposto a entrar em negociações. Como disse, minha
situação é muito séria. Antes de perder a última chance,
que são os senhores, prefiro matá-los. Não se esqueçam
disso! Tomisenkow instrua o piloto sobre o curso que
deve tomar.
Uma porção de ideias sobressaltou-se no cérebro de
Tomisenkow. A mais razoável delas foi a de que no
momento não havia outra coisa a fazer senão obedecer às
ordens de Raskujan.
— Siga um curso entre duzentos e setenta e duzentos
e oitenta graus — resmungou para o piloto. — Suba para
cinco mil metros, pois daqui a pouco chegaremos às
montanhas.
* * *
Perry Rhodan ainda conseguira forças para formular
uma ordem dirigida ao cérebro positrônico, ordem esta
que Marshall deveria transmitir por via telepática. Uma
vez ciente da presença de Rhodan, era de supor que o
cérebro captasse, compreendesse e executasse a
mensagem telepática.
A mensagem incluía o pedido de fornecer um meio
de transporte que permitisse vencer quanto antes os
cinqüenta quilômetros que ainda os separavam do centro
da base, e de preparar uma série de medicamentos que
colocasse Rhodan em condições de atuar no mais breve
espaço de tempo.
* * *
Alicarim não escapou apenas aos tiros disparados
pelo helicóptero de Pjatkov; também conseguiu penetrar
em tempo na área da base.
Uma vez transmitida a ordem a Marshall, Rhodan
desmaiou. Marshall repetiu a ordem até que Son Okura
viu um planador que se deslocava a pouca altura e uma
velocidade tremenda. Rhodan foi colocado no aparelho, e
os outros se instalaram nas poltronas. Poucos minutos
depois o aparelho colocou-os no interior da fortaleza e
transportou Rhodan para o lugar em que os
medicamentos já haviam sido preparados.
Dali a meia hora Rhodan já estava em condições de
formular ordens precisas. Instruiu o cérebro positrônico a
desativar o campo energético que cercava todo o planeta,
para que Reginald Bell pudesse pousar com sua nave
auxiliar. Para evitar outras complicações ainda mandou
que a barreira energética de quinhentos quilômetros de
diâmetro — que, nos momentos críticos, costumava
cercar a área no lugar do anteparo de cinquenta
quilômetros, sempre que o planeta todo não estivesse
protegido — também não fosse ativada.
Só então Rhodan considerou terminado o período de
esforços sobre-humanos e permitiu uma pausa de sono a
si e a seus companheiros totalmente exaustos.
* * *
129
Reginald Bell reagiu com a explosividade de um
vulcão até então contido por uma fina crosta de terra.
O girino — isto é, a nave auxiliar de sessenta metros
de diâmetro — avançou a toda velocidade e com os
campos protetores ativados para as camadas mais
profundas da atmosfera de Vênus. A uma velocidade de
mach 15 — ou seja, quinze vezes a velocidade do som
— o impacto do campo energético sobre as moléculas de
ar ionizava estas e produzia certa luminosidade. Com a
beleza imponente de um cometa gigante, arrastando atrás
de si a ofuscante faixa branco-azulada de ar ionizado, a
nave precipitou-se pela noite de Vênus e surgiu sobre o
acampamento de Raskujan. Entre os homens que deviam
defender o lugar o medo puro e simples começou a se
espalhar face ao fenômeno nunca visto.
A nave não foi bombardeada. Aliás, um projétil
terreno não lhe poderia causar qualquer dano. Numa
altura de cem metros, manteve-se imóvel acima do
acampamento. Bell não assumiu qualquer risco. Mandou
que Tako Kakuta, o teleportador, ocupasse o grande
projetor mental, e mandou que todo o acampamento
fosse coberto pela ordem de capitulação, transmitida por
via hipnótica.
Só depois disso pousou a nave no chão e começou a
realizar seu inventário. Sabia que Thora era uma
prisioneira do acampamento e, apesar de todos os
ressentimentos que nutria para com a mesma, suas
primeiras preocupações dirigiram-se a ela.
Não a encontrou. Os prisioneiros que capturou
mostraram-se dóceis, conforme lhes ordenava o comando
hipnótico, e conduziram-no para a parte do acampamento
em que Thora devia se encontrar. Não estava lá, e
ninguém sabia onde poderia estar.
Só depois de algum tempo notou-se que Tomisenkow
também não se encontrava no acampamento. E, quando
se verificou que o coronel Raskujan havia dado o fora,
Bell começou a tirar suas conclusões dos
acontecimentos, conclusões estas que se aproximavam
bastante da verdade.
Logo se deu conta de que não valeria a pena sair à
procura dos desaparecidos. Raskujan não deixaria de dar
um sinal de vida assim que a situação voltasse à calma;
além disso, nada se poderia fazer contra ele enquanto
Thora se encontrasse em suas mãos.
* * *
— Passe entre os dois cumes de montanha —
ordenou Tomisenkow.
O piloto relatava constantemente o que via na tela do
instrumento de observação, e face a esses dados
Tomisenkow fornecia o curso a ser seguido.
Pelo cálculo de Tomisenkow, no curso de uma hora
haviam se afastado cerca de cento e cinqüenta
quilômetros do acampamento, já que as montanhas e as
complicações na transmissão das ordens obrigaram-nos a
voar devagar.
A velocidade foi reduzida ainda mais pelo fato de que
Tomisenkow procurava ganhar tempo. Esperava que a
vigilância de Raskujan se tornasse menos intensa, e que
Thora fizesse alguma coisa que o distraísse.
— Atrás destes cumes há outros — disse o piloto. —
São três, que estão em fila. O do meio deve ter uns oito
ou nove mil metros de altura.
Tomisenkow respondeu com um aceno da cabeça.
— Passe entre o da esquerda e o do meio, e depois
tome o curso de duzentos e cinqüenta graus.
Raskujan pigarreou.
— Será que ainda sabe para onde está nos levando?
— Sei, sim — resmungou Tomisenkow.
Nesse instante Thora soltou um grito estridente e se
aproximou de Tomisenkow.
— O que houve? — perguntou Raskujan em tom
áspero.
Thora sacudiu os ombros.
— Ali — gritou amedrontada. — Um lagarto voador.
Olhou pela janela, como se visse alguma coisa. Seu
pavor estava tão bem fingido que, por um instante, o
próprio Tomisenkow não sabia se realmente havia visto
um lagarto.
Raskujan escorregou para o outro assento e
comprimiu o rosto contra a lâmina de plástico
transparente. Colocara a pistola automática sobre o
joelho.
No mesmo instante Tomisenkow virou-se, colocou os
joelhos sobre o assento de sua poltrona e deixou-se cair
para frente. Antes que Raskujan percebesse do que se
tratava, comprimira as costas contra seu corpo,
inclinando o tronco para frente, e levantara as mãos
amarradas, apertando-as em torno do pescoço de
Raskujan. Apertou a garganta do coronel com toda a
força de seus dedos. Não via o efeito que estava
produzindo.
— Pare — gritou Thora. — O senhor o está matando.
O piloto tivera sua atenção despertada pela cena.
Virou a cabeça e olhou para trás.
— Cuide do helicóptero — gritou Tomisenkow. —
Senão acabamos caindo.
Quando Tomisenkow soltou Raskujan, este caiu
molemente no seu assento. Ainda com as mãos
amarradas, Tomisenkow pegou a pistola automática e
firmou-a entre dois assentos, fazendo com que apontasse
para o piloto.
— Não pense que um homem amarrado não pode
atirar — disse. — Basta apertar o gatilho e o senhor será
um homem morto. Volte ao acampamento.
A situação era grotesca. Tomisenkow estava
ajoelhado na poltrona em que poucos instantes antes
Raskujan estivera sentado. Apoiou a barriga no encosto,
com a pistola automática atrás de si, de tal maneira que
podia alcançá-la com as mãos. Não teria o menor
problema em puxar o gatilho. Mas bastava que a arma
presa entre os dois assentos escorregasse para baixo para
que o piloto não mais se encontrasse ao alcance de seus
tiros... e tudo estaria terminado.
Felizmente agora, que Raskujan já não podia fazer
mais nada, tornava-se relativamente fácil desamarrar as
mãos. Thora conseguiu tirar do bolso de Tomisenkow
um pequeno canivete que lhe haviam deixado e com ele
cortou as cordas que o amarravam.
O resto foi uma brincadeira. O piloto, que de
qualquer maneira não estava convencido de que
Raskujan seria o mais gentil dos chefes e que suas ordens
eram muito sensatas, só precisou de um pequeno
estímulo, representado pela visão da pistola automática
engatilhada, para se submeter prontamente às ordens de
Tomisenkow.
Este procurou cuidar de Raskujan. Levou um susto
130
tremendo ao constatar que o coronel estava morto.
Cobriu-o com sua jaqueta.
— Não merece outra coisa — disse. — Apesar disso
tenho pena.
* * *
Poucas horas depois da meia-noite foi anunciada a
chegada de Rhodan. Voou num aparelho da base e
pousou no antigo acampamento de Raskujan, junto à
nave auxiliar de Reginald Bell.
O campo de pouso estava profusamente iluminado.
Rhodan já fora informado sobre os acontecimentos.
Soube que Raskujan procurara desaparecer com
Tomisenkow e Thora e que os dois prisioneiros haviam
regressado ao acampamento com o cadáver de Raskujan.
Quando entrou na sala de comando da nave auxiliar,
Bell apresentou seu relato, conforme determinavam as
normas. Nesse relato incluía-se o seguinte trecho:
— Tomisenkow pede, com o devido respeito, que o
senhor lhe conceda uma entrevista.
Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.
— Onde está Thora?
Bell ergueu os ombros.
— Ao que parece preferiu ficar só. Sempre respeitei
os desejos daquela mulher.
Mais uma vez Rhodan acenou com a cabeça.
— Nesse caso vou falar com Tomisenkow.
Bell saiu da sala de comando. Dali a pouco
Tomisenkow entrou. Rhodan ofereceu-lhe uma poltrona.
— O senhor vai ficar admirado — principiou
Tomisenkow sem preâmbulos — com a proposta que
vou formular.
Rhodan sorriu com essa fala sem rebuços.
— Antes de sua chegada — prosseguiu o general —
falei com os homens de Raskujan. Contei-lhes que
conseguimos viver em Vênus durante um ano sem que
dispuséssemos de quaisquer recursos, e que viveríamos
muito melhor se dispuséssemos de mais algumas das
bênçãos da tecnologia. Eu lhes sugeri que ficássemos
para sempre em Vênus, e eles concordaram. Todos, com
exceção de uns quatro ou cinco.
Fitou Rhodan numa atitude de expectativa.
— Está bom — disse Rhodan. — Ou melhor,
excelente. Não oponho nada a que os senhores se fixem,
desde que deixem nossa base em paz.
Tomisenkow sacudiu a cabeça.
— Nem pensamos nisso. Soubemos o que aconteceu
com o governo do Bloco Oriental. Meus companheiros e
eu já rompemos com o passado. E, ao que tudo indica,
para os homens da frota de Raskujan não foi muito difícil
fazer o mesmo.
Rhodan se levantou e ficou andando de um lado para
outro. Subitamente Tomisenkow ouviu que ria.
— Nunca imaginava — disse — que meus planos se
realizariam tão depressa.
— Seus planos? — perguntou Tomisenkow,
espantado.
— Isso mesmo; meus planos. Em sua opinião, qual
foi o motivo por que há um ano não destruí sua frota com
os tripulantes?
— Porque... porque... bem, não sei.
— Porque acreditava — interveio Rhodan — que, se
continuassem vivos, formariam uma base muito sadia
para a primeira colônia a ser instalada em Vênus.
Realizei uma experiência com seres humanos; e o ser
humano revelou suas aptidões.
Tomisenkow, espantado, ficou de queixo caído. Só
aos poucos se deu conta de que nos últimos meses não
fizera outra coisa senão bancar a marionete que alguém
arrasta por um fio. Sua inteligência rebelou-se contra
essa ideia. Quando finalmente sua mente a absorveu,
Tomisenkow sentiu-se possuído pela cólera.
Mas só por um instante.
Não era nenhuma vergonha, para um homem, que
Perry Rhodan o conduzisse por um fio invisível.
Rhodan parecia adivinhar seus pensamentos.
— Não perca seu orgulho — disse. — Só a ideia foi
minha. O senhor conservou a liberdade de ação. E não
tenho receio em afirmar que o senhor a aproveitou muito
bem. Acredito que não estarei errando se lhe deixo as
mãos livres para instalar a colônia e lhe prometo nosso
auxílio.
Tomisenkow tinha a impressão de que estava
sonhando. Levantou-se, dirigiu-se a Rhodan e apertou-
lhe a mão.
— Obrigado — murmurou. — Muito obrigado.
Enquanto saía, muito nervoso, murmurou uma série
de palavras russas, que Rhodan não compreendeu.
Só dez horas depois Rhodan encontrou-se com a
arcônida.
Não a procurara. Da sala de comando, resolveu as
coisas que tinham de ser resolvidas e começou a preparar
a decolagem em direção à Terra.
Thora veio sem ser chamada.
Quase sem o menor ruído, mandou abrir a escotilha e
por algum tempo manteve-se imóvel na entrada, antes
que Rhodan notasse sua presença.
Logo percebeu seu embaraço e sua insegurança.
Como não devia se sentir aquela mulher. Sua fuga
precipitada da Terra provocara toda aquela confusão, que
por pouco não trazia a morte de Rhodan e o fim da
Terceira Potência.
Aproximou-se com passos hesitantes. Rhodan
levantou-se e foi ao seu encontro. Viu que ela se
dispunha a falar, apressou o passo e segurou a mão dela
entre as suas.
— A senhora não imagina — disse com a voz baixa
— como me sinto feliz por revê-la.
Isso lhe tirou toda a munição. Não conseguiu dizer
mais nada; nada de todas as desculpas e motivos que
havia preparado. Fez uma coisa muito espantosa:
inclinou-se para frente até que sua cabeça encostasse no
ombro de Rhodan e chorou.
Thora, a arcônida, a mulher que tinha um bloco de
gelo no lugar do coração, estava chorando.
Rhodan procurou consolá-la. Deu início a algumas
frases consoladoras, mas também não se lembrou de uma
coisa adequada que pudesse dizer. Tudo que lhe
ocorresse parecia ridículo e inexpressivo.
Ficou parado, segurou Thora pelo ombro e deixou
que chorasse à vontade.
* * *
— Tripulação a bordo! — anunciou Bell. — A nave
está pronta para decolar.
Rhodan fez um gesto com a cabeça e olhou para a
tela. A primeira luz do novo dia surgiu no horizonte.
— Está na hora de irmos para casa — disse em tom
131
pensativo.
Bell deu uma risadinha.
— Neste meio tempo Freyt deve ter criado cabelos
brancos. Não sabe nada dos acontecimentos em Vênus
além do pouco que pude informar.
Rhodan se dirigiu ao microfone do intercomunicador.
— Decolaremos dentro de sessenta segundos — disse
com a voz tranquila.
Reginald Bell ocupou seu lugar.
— Controle!
Com um ligeiro estalo algumas chaves mudaram de
posição.
— Tudo em ordem.
— Cuidado, vamos decolar.
A nave levantou-se e, numa velocidade fascinante,
subiu ao céu pálido. Aquilo que antes fora o
acampamento de Raskujan e agora era o de Tomisenkow
ficou para trás; por um instante a abóbada reluzente de
cinquenta quilômetros formada pelo campo protetor da
fortaleza emergiu da escuridão.
Rhodan voltara a modificar os comandos
introduzidos no cérebro positrônico. Desta vez seguiu os
dados e as sugestões fornecidas pelo próprio cérebro.
Não haveria outro incidente como o que acabara de se
verificar.
Depois de algum tempo, o sol surgiu no horizonte,
qual uma enorme lanterna amarela, envolto na densa
atmosfera de Vênus.
— Se este sol tivesse brilhado o tempo todo para nós
— disse Rhodan em tom pensativo — muita coisa teria
sido bem mais fácil.
.
Em sua caminhada em direção à barreira energética da fortaleza de Vênus, conseguiram
por mais de uma vez lograr a morte, que parecia certa.
Depois disso, operando no ambiente seguro da fortaleza, não tiveram a menor dificuldade
em terminar, num golpe, as insensatas lutas pelo poder que vinham sendo travadas entre os
colonos involuntários de Vênus. Libertado Vênus, o campo de atividade de Perry Rhodan
volta a deslocar-se para a Terra, onde O Supercrânio dá início ao seu jogo nefasto...
O Supercrânio é o título do próximo volume da série Perry Rhodan.
132
Nº 25
De Kurt Mahr Tradução
Richard Paul Neto Digitalização
Vitório Revisão e novo formato W.Q. Moraes
As semanas enervantes passadas em Vênus chegaram ao fim. Perry Rhodan
voltou para Terrânia, a capital da Terceira Potência.
Mas na Terra uma surpresa desagradável o aguarda.
A Terceira Potência defronta-se com um inimigo forte e perigoso — um
inimigo que também dispõe de um exército de mutantes bem treinados. Esse
inimigo é O Supercrânio.
133
1
— O chefe anunciou sua chegada para pouco depois
da meia-noite — disse o coronel Freyt, dirigindo-se a seu
ajudante.
Sorriu enquanto proferia estas palavras. Não se
julgava incapaz de cumprir a missão que lhe fora
confiada: representar Rhodan, durante a ausência deste,
em Terrânia, a base que a Terceira Potência havia
instalado no deserto de Gobi. A sensação de alívio que o
regresso de Rhodan provocava em sua mente se devia
mais ao fato de saber que os empreendimentos a que
Rhodan se lançava no espaço eram muito perigosos, e
que um dia, mesmo um homem como Perry Rhodan,
poderia encontrar um poderoso inimigo,
ou ser vitimado num acidente.
Freyt estava convencido de que de
Perry Rhodan dependia não apenas a
existência do Estado conhecido como a
Terceira Potência, mas, em grau ainda
maior, o bem-estar de toda a
Humanidade.
Tudo isso constituía motivo
suficiente para que se alegrasse pelo
fato de que Rhodan havia saído são e
salvo de mais uma de suas aventuras, e
que se encontrava a caminho da Terra.
— Será como das outras vezes?
Nenhuma recepção? — perguntou o
ajudante.
Freyt confirmou:
— Nenhuma recepção.
* * *
A cidade de Terrânia, capital da
Terceira Potência, experimentava um
crescimento ininterrupto. No momento
tinha um milhão e meio de habitantes.
Ficava em pleno deserto de Gobi.
O clima artificial modificara a
paisagem. As precipitações
pluviométricas, controladas à vontade,
transformaram aqueles quarenta mil
quilômetros de terreno ondulado e
desértico num jardim florido. Terrânia
era considerada uma das cidades mais
belas do mundo.
Nas imediações da cidade erguia-se a reluzente
abóbada energética que envolvia o coração da Terceira
Potência em seu manto protetor, repelindo qualquer coisa
que se aproximasse do centro vital da Terceira Potência
com intenções hostis.
* * *
Pouco antes da meia-noite o coronel Freyt e seu
ajudante saíram do edifício da administração e da cúpula
energética.
Caminharam na periferia da cidade e viram os
edifícios baixos que margeavam o campo de pouso
reluzir à luz das estrelas.
Subitamente uma forte luminosidade cobriu a área.
Freyt estacou e olhou em torno; parecia perplexo.
— O que foi isso?
Outro relâmpago refulgiu, bem ao longe, além dos
telhados da cidade. Quase no mesmo instante o ribombar
da primeira explosão passou por eles. Freyt, estarrecido,
manteve-se imóvel, com os olhos arregalados. Só quando
o estrondo da segunda explosão os atingiu compreendeu
o que havia acontecido.
— É no lago salgado — fungou. — Na usina de
reatores.
Voltou-se e correu em direção à cidade. O ajudante
seguiu-o. Deviam ter percorrido uns trinta metros quando
o uivo fino das sereias de alarma penetrou em seus
ouvidos.
Enquanto corria, Freyt utilizou o pequeno receptor e
emissor, adaptado ao seu
uniforme, para pedir uma
viatura oficial. O carro veio
ao seu encontro quando já se
encontravam próximos às
grandes vias de acesso da
cidade.
— O que houve? —
perguntou Freyt, enquanto se
atirava no assento ao lado do
motorista.
— Houve uma explosão
no bloco G — respondeu o
motorista. — Não
conhecemos outros detalhes.
— Vamos para lá! —
disse Freyt.
O carro saiu em disparada,
depois de ter dado a volta. As
sereias bem abertas abriram-
lhe o caminho. A maneira
pela qual o motorista dirigia o
veículo era notável; mas Freyt
quebrava a cabeça com outras
coisas.
— Com os mil demônios!
O que havia numa usina de
reatores que pudesse ser
levada a explodir?
Freyt era antes de tudo um
soldado; só em segunda linha
era técnico. Apesar disso
conhecia em grandes linhas o
funcionamento de um reator
arcônida. Também sabia qual era o material utilizado na
construção de uma máquina desse tipo. Mas por mais
que forçasse a memória, não se lembrou de nada que
pudesse ter causado duas explosões desse tipo.
E como poderia ter ocorrido uma explosão com todas
as medidas de segurança que haviam sido adotadas?
Freyt não encontrou resposta a estas indagações. O
motorista parou diante da entrada do bloco G e
interrompeu o raciocínio de Freyt.
Antes das duas explosões, o bloco G era constituído
de um pavilhão de montagem de telhado baixo, onde as
peças vindas de fora eram reunidas para formar reatores
catalíticos. De dia, uns trezentos homens trabalhavam
nesse pavilhão.
Naquele momento ainda se reconheciam os contornos
Personagens Principais deste episódio:
Perry Rhodan — Chefe supremo da
Terceira Potência.
Coronel Freyt — Representante de
Rhodan em Terrânia.
Reginald Bell — Ministro da segurança da
Terceira Potência.
Clifford Monterny — Chamado de
Supercrânio por seus homens.
Elmer Bradley — Um jovem "simpático".
Homer G. Adams — Que é um gênio
financeiro, mas também comete erros.
Mr. Raleigh — Que não sabe de nada.
Tako Kakuta — Que sofre uma estranha
constrição.
Capitão Farina — O salvador que surge
numa situação desesperadora.
134
do antigo pavilhão, mas de resto a área parecia um
campo de batalha que, por horas a fio, houvesse sido
martelado pela artilharia inimiga.
As equipes de socorro haviam chegado antes de
Freyt. Protegidos pelas vestes à prova de fogo, os
homens enfrentavam o calor irradiado pelos destroços à
procura de sobreviventes. Freyt foi informado por um
comissário de polícia de que, no momento da explosão,
havia uns dez homens no pavilhão, que desempenhavam
as funções de guardas-noturnos ou realizavam trabalhos
extraordinários.
Ninguém soube dar qualquer informação sobre a
causa das explosões. Os instrumentos de medida
permitiram localizar dois pontos em que, naquele
momento, a temperatura era superior a dois mil graus
centígrados. Ao que tudo indicava, eram os lugares em
que haviam ocorrido as explosões.
Freyt dirigiu-se ao comissário.
— Mandou verificar o nível de radiatividade? —
indagou.
O comissário torceu o rosto.
— Faça-me o favor, coronel! Nesse pavilhão não
havia um grama de material radiativo.
Freyt balançou a cabeça.
— Seja como for — disse em tom desconfiado. —
Chame a equipe dos medidores.
O comissário dirigiu-se ao seu carro para transmitir a
ordem. Freyt começou a se sentir pouco à vontade.
— Não podemos fazer nada — disse ao seu ajudante.
— Temos de aguardar ao menos até que as primeiras
investigações estejam concluídas.
Esquecera Rhodan e o anunciado pouso.
O que ocorrera não era apenas o acidente, mas a
destruição completa de uma das mais importantes
unidades produtoras da Terceira Potência. Sem reatores
arcônidas não haveria mecanismos propulsores. Sem
mecanismos propulsores não haveria naves espaciais. E
sem naves espaciais a defesa da Terra seria impossível.
Seria por simples coincidência que o primeiro
acidente de grandes proporções ocorrido no território da
Terceira Potência tivesse destruído justamente o bloco
G?
O coronel Freyt começou a refletir sobre as chances
que teria um sabotador para penetrar no território da
Terceira Potência e, uma vez lá, quais seriam as chances
de executar o ato de sabotagem.
“As chances são nulas!”, concluiu.
Mas nem por isso se sentiu mais tranquilo.
Lançou os olhos em torno. Estava procurando o
comissário. Quis saber se no meio tempo havia sido
descoberta alguma coisa.
De tão mergulhado em seus pensamentos, nem
percebeu que a equipe dos medidores havia chegado;
envergando seus uniformes vermelho-berrantes,
espalharam-se em torno do edifício destroçado.
Mas não deixou de perceber uma coisa que o sacudiu
até a medula dos ossos: o ruído do alarma de radiações.
A turma de defesa antirradiações acionara as sirenas
colocadas no topo de seus carros. Freyt viu que as
equipes de socorro fugiam precipitadamente do campo
de destroços.
Um dos homens que envergavam o traje protetor
vermelho veio em sua direção. Cumprimentou-o
apressadamente e disse:
— Perigo máximo, coronel! O edifício está
contaminado ao menos com dez roentgen por hora.
Nesse preciso instante, Freyt teve de rever sua
opinião sobre a segurança absoluta das instalações contra
a sabotagem. Por um segundo sobressaltou-se; mas logo
o raciocínio frio voltou à sua mente.
— Qual é o material radiativo?
O homem do medidor sacudiu a cabeça.
— Ainda não sabemos coronel. Dentro de quinze
minutos poderemos informar.
Freyt confirmou com um aceno de cabeça.
— Muito bem. Avisem imediatamente. O homem de
vermelho fez continência.
Freyt virou-se e foi se afastando. Não se preocupou
em saber se seu ajudante o seguia. Só depois de estarem
sentados lado a lado no carro notou a presença dele.
— O que acha? — perguntou contrafeito.
O ajudante deu de ombros.
— Enquanto não conhecermos mais alguns detalhes
não podemos achar coisa alguma.
Freyt concordou.
— Tem razão — murmurou.
O incidente deixou-o bastante deprimido. Ocorrera
enquanto ele, Freyt, era o representante de Rhodan em
Terrânia. Muito embora qualquer um houvesse de
concordar que sua pessoa não poderia ter favorecido ou
dificultado a ocorrência, ele se sentia responsável; teve a
impressão de que o fato do desastre ter ocorrido
enquanto ele se encontrava no exercício do cargo
representava uma falha pessoal.
O alarma voltou a soar no receptor do carro com
tamanha força que fez doer os ouvidos.
— Pare! — gritou Freyt.
A parada foi quase imediata. Freyt foi atirado para
frente, mas não se incomodou. Só ouvia a voz vinda do
alto-falante:
— Três naves espaciais recém-construídas da frota Z,
os chamados destróieres espaciais, decolaram há poucos
minutos sem permissão e sem que se soubesse quem as
pilotava. As naves logo alcançaram a velocidade máxima
e já saíram da área de alcance dos localizadores.
— Atenção! Chamando o coronel Freyt! Atenção...
Freyt rangeu os dentes.
— Passe para a emissão — ordenou ao motorista.
O telecomunicador foi ligado. Na pequena tela surgiu
o rosto aflito do homem que transmitia a notícia
alarmante.
— Aqui fala Freyt — anunciou o coronel. — O que
houve?
Via-se que a pessoa que se encontrava na outra
extremidade desligou todos os outros canais.
— Três destróieres foram sequestrados, coronel —
anunciou laconicamente.
— Sequestrados! — exclamou Freyt. — Como pode
alguém sequestrar um destróier?
A resposta não se fez esperar.
— Não sabemos coronel. Não existe a menor dúvida
de que a vigilância dos robôs funcionava como sempre.
Os robôs não notaram a presença de ninguém que
tentasse se aproximar da área em que se encontravam os
destróieres.
Freyt olhou fixamente para frente.
— Quem está dirigindo as investigações? —
perguntou depois de algum tempo.
135
— O major De Casa.
Freyt acenou com a cabeça; parecia cansado.
— Fim.
Ordenou ao motorista que o levasse ao lugar em que
estavam estacionados os destróieres. O lugar ficava
próximo às gigantescas linhas de montagem, situadas no
setor sul da cidade. Os destróieres da classe Z
representavam um aperfeiçoamento dos antigos caças
espaciais tripulados por um homem. Haviam sido
concebidos por Perry Rhodan, que há vários anos
encontrara esses caças nos hangares da base de Vênus.
Seu desempenho no espaço estava sujeito a limitações, já
que não eram dotados de mecanismos de hiperpropulsão.
Seus reatores de partículas permitiam que, num espaço
de tempo extremamente reduzido, alcançassem a
velocidade da luz, mas o caminho para os pontos do
espaço situados a maior distância da Terra lhes estava
fechado, já que não estavam em condições de realizar o
hipersalto espacial.
Apesar disso, uma nave Z era um engenho com um
avanço de pelo menos quinhentos anos sobre os produtos
mais recentes da tecnologia terrestre. Representava uma
arma terrível nas mãos de quem dela soubesse se servir.
Durante os minutos consumidos na viagem até a linha
de montagem, Freyt transmitiu uma série de instruções.
Os postos de defesa receberam ordem para atirar
imediatamente e sem prévio aviso sobre qualquer objeto
que decolasse nas próximas horas. Concomitantemente
foi emitida uma proibição geral de decolagem.
Finalmente, boa parte da equipe de vigias robotizadas foi
instruída a permanecer no interior das naves.
A Terceira Potência tinha coisa muito mais
importante a perder que os destróieres. O suor porejou na
testa de Freyt quando este formulou, para si mesmo, a
indagação do que teria acontecido se os desconhecidos
tivessem conseguido subtrair os dois cruzadores da
classe Terra. Eram naves esféricas de duzentos metros de
diâmetro, que tinham plenas condições de enfrentar o
espaço.
Por enquanto as luzes vermelhas de advertência do
alto dessas naves ainda brilhavam, tranquilas e
inalteradas, por cima dos campos de pouso.
O carro parou diante da figura maciça e reluzente de
um robô, que fechava o caminho para a área em que
antes estiveram os destróieres. Freyt fez sinal para que a
máquina se aproximasse e examinou-a. O robô reagiu ao
modelo de ondas cerebrais e ergueu a mão num gesto de
cumprimento.
O carro prosseguiu em sua viagem. Depois de ter
percorrido mais quinhentos metros, aproximou-se de um
grupo de homens que discutiam acaloradamente. Parou e
Freyt desceu.
O major De Casa cumprimentou-o. Seu rosto
exprimia sem rebuços o que sentia face ao
desaparecimento dos destróieres: susto, espanto e um
pouco de medo.
— Como foi que isso aconteceu? — perguntou Freyt.
— Ninguém de nós sabe de ciência própria —
respondeu prontamente De Casa. Parecia mais aliviado
pelo fato de que alguém lhe tirava a responsabilidade das
mãos. — Só sabemos o que os robôs informaram, e isso
é pouco. Os robôs fizeram sua ronda costumeira. O
terreno é plano e não oferece qualquer possibilidade de
alguém se esconder. Seus olhos infravermelhos teriam
reconhecido até um rato que procurasse se aproximar dos
destróieres. Acontece que não passou um rato, um
homem ou qualquer outra coisa. Apenas, de repente, os
três destróieres subiram do solo e desapareceram, depois
de lhes ter sido imprimida a aceleração máxima. O aviso
para a central de comando foi transmitido
imediatamente; mas, antes que se pudesse esboçar
qualquer reação, as três naves já estavam longe.
— Que curso eles tomaram? — perguntou Freyt.
— O curso sudeste, coronel.
Freyt fitou atentamente o major.
— Isso permite alguma conclusão? — indagou.
De Casa sorriu.
— Provavelmente podemos concluir que o
desconhecido que sequestrou as naves pode ser
procurado em qualquer lugar, menos no sudeste.
Freyt confirmou com um aceno de cabeça.
— Provavelmente — disse. Acompanhado por De
Casa, andou em torno da área de estacionamento dos
destróieres. Antes disso De Casa certificara-se de que os
remanescentes radiativos da decolagem eram mínimos,
não atingindo o nível de periculosidade.
Não havia nenhum rastro, além das três manchas
vitrificadas produzidas pela combustão dos jatos.
Nenhuma marca de pé ou de roda, absolutamente nada.
Quando voltou para junto de seu ajudante, Freyt deu
um suspiro.
— Não temos sequer a menor indicação que nos
permita saber se isso foi obra de homens ou de
inteligências extraterrenas — disse em voz baixa.
Naquele instante o motorista da viatura oficial pôs a
cabeça para fora do carro.
— Telefonema para o coronel Freyt! — gritou.
Freyt pegou o fone do telecomunicador que o
motorista lhe estendeu pela janela do carro. Na tela viu
um homem que envergava o traje protetor da equipe de
medida de radiações.
— Descobrimos a fonte das radiações e medimos sua
intensidade — disse calmamente. — Os dois pontos em
que a temperatura é mais elevada são também os de
radiação mais intensa. No centro de cada um desses
pontos chega a quinhentos roentgen por hora. As
radiações são compostas de beta-menos com cerca de 1,8
e 1,6 MeV de beta-mais com...
— Quero saber quais são as substâncias radiativas —
disse Freyt em tom de impaciência.
— Magnésio 27 e zircônio 87, coronel.
— Qual é a conclusão que se extrai disso?
O homem da equipe de radiações parecia contrariado.
— Nenhuma — respondeu. — Nem o magnésio 27,
nem o zircônio 87 pertencem aos produtos da fissão do
urânio ou do plutônio. Não conhecemos qualquer reação
nuclear que possa ser relacionada com as explosões que
ocorreram aqui e seja capaz de produzir esses isótopos.
* * *
Perry Rhodan pousou em meio a toda essa confusão.
Quando viu que o coronel Freyt não estava no campo
de pouso, soube que alguma coisa havia acontecido.
Mandou preparar um dos veículos versáteis que a nave
de sessenta metros de diâmetro trazia a bordo e,
acompanhado de Reginald Bell, foi até a abóbada
reluzente do campo protetor.
136
Bell olhava ansiosamente pelas lâminas de plástico
transparente.
— O que terá havido? — perguntou.
Rhodan não respondeu. A barreira automática
registrou as irradiações produzidas por sua mente e as
dimensões do veículo. Por um instante um setor que
tinha exatamente o tamanho necessário para permitir a
passagem do mesmo abriu-se na reluzente parede
energética.
O carro avançava rapidamente. Rhodan e Bell
desceram diante do grande edifício da administração.
Poucos minutos depois eles encontravam-se no escritório
de Freyt.
— Isso é grave — disse Rhodan, depois de ter ouvido
o relato. — Mas não se recrimine Freyt. Tudo deve ser
obra de alguém que dispõe de alguns truques que ainda
não conhecemos.
— Fico satisfeito em saber que você pensa assim —
respondeu Freyt. — Mas...
Rhodan interrompeu-o com um gesto.
— Não há nenhum mas, Freyt. Logo descobriremos
do que se trata.
Freyt pigarreou.
— Acredita que... seja um inimigo extraterreno? —
perguntou.
Rhodan olhou-o com uma expressão de espanto.
— Um inimigo extraterreno? Não. Teríamos
percebido sua aproximação.
Freyt havia refletido sobre isso, antes do pouso de
Rhodan. Tinha lá suas dúvidas. Um inimigo que
conseguia se apoderar de três destróieres sem ser notado,
também estaria em condições de chegar à Terra sem que
ninguém o percebesse.
Mas preferiu ficar calado. Quando surgia um
problema desses, o melhor que se podia fazer era deixar
a solução por conta de Rhodan.
* * *
Rhodan realizou o inventário dos danos. Todas as
informações colhidas pelos grupos de pesquisa na área
do bloco G e no local em que estiveram estacionados os
destróieres foram reunidas, gravadas em fitas de
impulsos e introduzidas no cérebro positrônico, que as
interpretaria.
O cérebro positrônico desincumbiu-se da tarefa à sua
maneira. Encontrou duas mil e quinhentas explicações
possíveis para a explosão ocorrida no bloco G, e três mil
e oitocentas para o desvio dos destróieres.
Entre esse total de seis mil e trezentas alternativas,
Rhodan mandou selecionar aquelas cujo índice de
probabilidade ultrapassava determinado grau. Dessa
forma chegou a um total de cem soluções.
Essas cem possibilidades foram introduzidas na
combinatória. As informações extraídas da mesma
coincidiam em larga escala com aquelas elaboradas por
seu cérebro.
Na interpretação final foi ajudado por Crest, o
arcônida.
Crest, um cientista alto de cabelos brancos, era um
dos dois sobreviventes de uma expedição exploradora
destruída na Lua por foguetes terrestres de fusão nuclear.
Ao contrário de Thora, que era a outra sobrevivente e
comandara o cruzador espacial dos arcônidas, desde o
início colocara-se inteiramente ao lado de Rhodan. As
faculdades transmitidas a este permitiram a formação da
Terceira Potência, que salvou a Terra do aniquilamento
total pela guerra atômica.
Crest e Rhodan estavam ligados por uma estranha
amizade. Quem não os conhecesse veria aqueles dois
homens lado a lado por dias seguidos, sem notar nada
que tivessem em comum. Mas subitamente, nos
momentos de perigo, perceberia a sintonização
instantânea daqueles dois espíritos, a atuação
harmoniosa, que não dependia de perguntas e respostas,
já que resultava do nível de conhecimento mais elevado
já atingido por qualquer inteligência no âmbito da
galáxia.
No correr dos anos, Crest passara a se interessar na
evolução da Terra quase tanto como Rhodan, embora sob
outro ângulo. As ocorrências espantosas da noite anterior
não o deixaram menos exaltado que este.
— Tem alguma ideia? — perguntou em tom sério.
Um sorriso um tanto obstinado se esboçou no rosto
de Rhodan.
— Não tenho nenhuma ideia enquanto a máquina
ainda está interpretando os dados — respondeu.
Crest fez um gesto contrafeito.
— Não venha me contar que ainda não teve qualquer
ideia sobre quem pode ter mandado para os ares o bloco
G e subtraído os destróieres.
Rhodan fez de conta que não ouvia.
Depois de algum tempo levantou a cabeça e fitou
Crest.
— Sim — confessou. — Tenho uma ideia.
* * *
A ideia de Rhodan foi confirmada pela interpretação
lógica dos dados.
Por motivos que seriam compreendidos
imediatamente por qualquer pessoa que examinasse o
resultado dos cálculos, as conclusões obtidas só foram
comunicadas ao círculo de comando mais chegado a
Rhodan. Além de Reginald Bell, do coronel Freyt e dos
majores Deringhouse e Nyssen, só Crest e Thora, os
arcônidas, participaram da breve conferência.
O rosto de Crest tinha uma expressão preocupada,
enquanto Thora irradiava o brilho confiante de sua
beleza extraterrena, que nem mesmo os dias terríveis
passados em Vênus puderam afetar.
Rhodan colocou diante de si uma pilha de faixas de
impulsos e lançou um olhar sério para os expectadores.
— O cérebro positrônico indica milhares de possíveis
explicações para os acontecimentos da noite passada —
principiou. — Por isso tivemos de realizar uma triagem
rigorosa. Todavia, já não se pode duvidar dos resultados
da interpretação lógica dos dados. O acidente ocorrido no
bloco G, que vitimou dez homens, e a subtração de três
destróieres recém-construídos não é obra de um inimigo
extraterreno. Face ao volume de conhecimentos de que
dispomos, nenhum ser extraterreno pode se aproximar
desta área sem ser localizado a uma distância segura.
Nem por isso fica excluída a possibilidade de que alguma
raça dotada de uma inteligência bastante superior à nossa
esteja envolvida nisso. Mas essa alternativa possui uma
dose muito restrita de probabilidade.
“Conclui-se que aquilo que acaba de acontecer
137
constitui obra de um inimigo terreno. Só existe uma
resposta sensata à pergunta de como esses atentados
puderam ser levados a efeito. Alguém, ao compor a
equipe de seus colaboradores, teve a mesma ideia que
nós.”
De início as pessoas presentes não o compreenderam,
com exceção de Crest, que já conhecia o resultado.
Mas subitamente compreenderam. E compreenderam
também por que, ao contrário do que costumava ser feito,
para essa reunião não fora convocado nenhum dos
mutantes, de cujas capacidades resultaram em larga
escala os êxitos alcançados pela Terceira Potência.
* * *
Essa conferência de Rhodan foi realizada nas
primeiras horas da manhã do dia 20 de julho.
Quase no mesmo dia e mês; alguns anos antes, a
seguinte ocorrência verificara-se em Gardiner, uma
pequena cidade situada na divisa dos Estados norte-
americanos de Wyoming e Montana:
O homem que por ora nos interessa só vivia há
poucos dias em Gardiner. Embora à primeira vista não
parecesse nada simpático, tinha um aspecto de abastança.
Em Gardiner havia dois hotéis; ele residia no mais caro.
O povo da cidade era curioso. Gardiner não era
propriamente uma cidade de turistas, embora ficasse na
entrada do parque nacional de Yellowstone. Os
forasteiros eram uma raridade, e todo mundo começou a
se interessar por aquele homem.
Ficaram sabendo que seu nome era Monterny, e que
era cientista. Monterny não era muito alto; em
compensação era bastante gordo. O enorme crânio sem
cabelos, os olhos bem afundados na órbita, levava à
conclusão de que, no interior daquele cérebro havia
bastante substância cinzenta para proporcionar um saber
notável ao cientista.
O povo de Gardiner descobriu tudo isso. Mas não
descobriu uma coisa: o que Monterny pretendia na
cidade.
Não fazia nada senão passear. O lugar era formado
praticamente de uma única rua, ladeada de casas,
geralmente de um só pavimento, em que moravam seus
duzentos habitantes. As vielas que desembocavam nessa
rua quase não contavam. Por isso um homem que
aparecesse em Gardiner teria pouco motivo para passear.
Dali logo surgiu o boato de que Monterny esperava por
alguém.
A atenção misturada de curiosidade que lhe foi
tributada de todos os lados não escapou a Monterny. O
negócio que pretendia realizar em Gardiner não
comportava a menor dose de curiosidade. Por isso,
Monterny já estava começando a ficar nervoso, quando
finalmente naquele dia encontrou aquilo que procurava.
Foi no fim da tarde, durante um dos seus passeios,
que geralmente o faziam percorrer a rua principal em
ambas as direções. Teve sua atenção despertada por um
jovem que desceu de um carro esporte um pouco
desengonçado e entrou numa loja para comprar alguma
coisa.
De pé do lado oposto da rua, Monterny observou o
jovem com a cabeça esticada para frente. O jovem não
percebeu nada; entrou na loja. Monterny atravessou a rua
e parou diante da loja.
Quando o jovem voltou a sair da loja, Monterny
dirigiu-lhe a palavra.
— Olá, meu jovem! Podia me fazer um favor?
O jovem estacou perplexo.
— De que se trata? — perguntou em tom reservado.
Monterny fez um gesto meio amável, meio
embaraçado.
— Não gostaria de falar sobre isso em plena rua.
Moro no Hotel Wolfreys Place. O senhor se importaria
de ir até lá comigo?
O jovem já tinha uma recusa na ponta da língua, mas
Monterny o interrompeu em tempo.
— Podemos ir no seu carro.
Era uma sugestão ridícula, pois o Wolfreys Place
ficava apenas a alguns passos da loja, mas o jovem
sentiu-se orgulhoso porque alguém se dispunha a viajar
em seu carro desengonçado.
— E prometo-lhe uma coisa — prosseguiu Monterny.
— O senhor não sairá perdendo.
Este argumento acabou por convencer o jovem.
Entraram no carro, foram ao Wolfreys Place e
subiram ao quarto de Monterny.
— Sente — disse Monterny em tom ligeiramente
menos amável do que o usado até então e apontou para
uma poltrona.
O jovem sentou. Monterny tomou lugar à sua frente.
Pôs-se a fitar o jovem. Por algum tempo o jovem
suportou o olhar com um sorriso amável, depois com um
sorriso embaraçado e finalmente com uma careta de
obstinação. Finalmente olhou para o lado e passou a
examinar o aposento, para não fitar mais os olhos de
Monterny.
Quando chegou à conclusão de que aquilo já estava
ficando demais, Monterny pôs-se a falar.
— Já me viu alguma vez?
O jovem parecia espantado:
— Não.. Passei quinze dias com amigos em...
— Idaho Falls! — interrompeu-o Monterny. — É
verdade?
O jovem não parecia muito surpreso.
— Isso mesmo. Como soube? Falou com meus pais?
Monterny sacudiu a cabeça.
— Não; nunca vi os seus pais. Seu nome é Freddy
MacMurray. Seus amigos apelidaram-no de Tigre,
porque gosta de usar blusas com desenho de tigre. Em
Idaho Falls você tem amigos porque até poucos anos
atrás morou lá com seus pais. Seu pai, que é técnico de
reatores, foi aposentado antes da idade normal, isso
porque foi ferido num acidente. Você nasceu um ano
depois do acidente. Há poucos dias você conheceu duas
moças em Idaho Falls: Sue e Dorothy. Ainda não sabe
qual das duas lhe agrada mais. Não é verdade?
MacMurray levantou-se de um salto.
Depois das primeiras palavras de seu interlocutor,
esteve a ponto de protestar contra o tom íntimo usado
pelo mesmo; mas as revelações feitas deixaram-no sem
fala. A maior parte do que Monterny acabara de dizer
seria simples de descobrir, mesmo por quem não
possuísse qualquer dom telepático. Mas o fato de que,
em Idaho Falls, tivera relações com duas moças não era
conhecido por ninguém a não ser ele mesmo.
— De onde... de onde... — gaguejou Freddy.
Monterny interrompeu-o com um gesto.
— Sei muito mais a seu respeito; para falar a
138
verdade, sei tanto quanto você. Antes de mais nada, sei
que você possui um talento especial, sobre o qual você
ainda não falou com ninguém, embora se trate de um
fenômeno único no mundo.
Freddy empalideceu e voltou a mergulhar na
poltrona. Seus olhos emitiram um brilho ameaçador
quando indagou:
— E o que tem isso?
Monterny não deu a menor atenção à pergunta.
— Basta que você feche os olhos e deseje estar em
Idaho Falls, e logo você estará lá. É ou não é verdade?
Esse dom é chamado de teleportação, e você é um
teleportador. Qual é a maior distância que você já
conseguiu vencer?
— Trezentos... — respondeu Freddy
precipitadamente, mas logo se interrompeu.
— Quilômetros — completou Monterny satisfeito. —
Para o início é muito bom; ainda poderá ser melhorado.
Levantou-se e prosseguiu na sua fala, enquanto
caminhava tranquilamente de um lado para outro.
— Desde que você descobriu seu dom, vive
sonhando que um dia será um grande homem. Pois eu lhe
darei uma chance para isso. Você vai trabalhar para mim;
no começo ganhará mil dólares por mês, além do
reembolso das despesas, sem limite. Está entendido?
Voltou-se e encarou Freddy.
— É verdade — disse este com uma segurança
surpreendente na voz. — Há anos sonho em ser um
grande homem. Mas também sonho em atingir meu
objetivo por meios decentes. O que o senhor acaba de me
oferecer não deve ser muito decente; se fosse, teria
adotado uma atitude mais sincera, falando com meus
pais. Não preciso dos seus mil dólares, nem de sua conta
de despesas. O motivo é simplesmente que não gosto do
senhor.
Fez meia-volta e saiu. Monterny não o deteve. Por
algum tempo lançou um olhar odiento para a porta que
acabara de se fechar atrás de Freddy MacMurray.
Depois fechou os olhos e se concentrou em alguma
coisa.
Freddy já saíra correndo do hotel. Uma multidão de
pensamentos revolvia furiosamente seu cérebro; não
conseguia reter nenhum deles. Saltou para dentro do
carro, cometeu uma infração às regras de trânsito ao dar
volta no meio da quadra e pretendia voltar para a casa de
seus pais.
Subitamente uma força estranha se apoderou de sua
mente com a violência de uma martelada. A confusão de
pensamentos foi afastada como por encanto. Um único
desejo ocupava a mente de Freddy: voltar para junto do
estranho.
Deu marcha à ré, voltou a colocar seu carro diante do
hotel, desceu e, passando por Mr. Wolfry, que lhe lançou
um olhar de espanto, subiu a escada.
A porta do quarto de Monterny estava aberta. Freddy
entrou sem bater.
Monterny recebeu-o com um sorriso.
— É assim que eu gosto! — disse.
Por algum tempo examinou cuidadosamente a figura
de Freddy. O jovem tinha os olhos imóveis e vidrados,
que Monterny esperava encontrar numa pessoa
submetida ao seu poder mental.
— Você vai voltar para a casa de seus pais —
ordenou Monterny — e dirá que o levei ao hotel por tê-lo
confundido com outra pessoa. Nos próximos vinte dias
levará a vida de sempre. Não realizará nenhum salto de
teleportação e não contará a ninguém que possui esse
dom. Daqui a vinte dias, guarde a data: 7 de agosto, às
cinco da tarde, você se transportará por teleportação a
Salt Lake City Conhece o grande templo dos mórmons?
Freddy fez que sim.
— Muito bem. Eu o esperarei junto à entrada
principal. E não se esqueça de uma coisa: por meu
intermédio você poderá se transformar num grande
homem; mas sempre estarei acima de você.
* * *
Dali a vinte dias Freddy MacMurray desapareceu de
Gardiner, conforme fora combinado, e nunca mais se
teve notícia dele. Ninguém ligou seu desaparecimento ao
forasteiro que, vinte dias antes, saíra da cidade.
A polícia procurou Freddy e não o encontrou.
Quando as buscas foram suspensas, seu pai, debilitado
pelo acidente que sofrera, faleceu de mágoa, conforme
diziam.
Clifford Monterny continuou a reunir em torno de si
pessoas dotadas de faculdades especiais. Procurava-as
nos lugares em que, nos últimos anos, haviam ocorrido
emanações radiativas intensas, pois sabia que as
alterações das características hereditárias humanas
produzidas pela radiatividade nem sempre são negativas.
Fez exatamente aquilo que Perry Rhodan fizera
poucos anos antes: formou um exército de mutantes.
Havia uma única diferença, e muito grande, entre seu
procedimento e o de Perry Rhodan: Monterny não
perguntava aos homens que reunia se desejavam
trabalhar para ele. Só precisava de um contato de poucos
segundos para absorver o modelo das ondas cerebrais de
qualquer pessoa. Depois disso, estava em condições de
reconhecer os pensamentos dessa pessoa, mesmo que ela
se encontrasse a milhares de quilômetros do lugar em
que se encontrava, e mesmo a essa distância conseguia
forçá-la a uma sujeição total à sua vontade.
Monterny era mutante; tratava-se do telepata,
hipnotizador e sugestionador mais potente, tudo reunido
numa só pessoa. Era um caso único.
Seus homens chamavam-no de Supercrânio. A maior
parte deles nem o conhecia pessoalmente. Sabia que
estava envolvido numa atividade muito perigosa, e que
qualquer erro bastaria para derrubá-lo.
Sentia-se satisfeito em saber que alguém que se
tivesse colocado ao seu serviço nunca mais poderia lhe
escapar. Onde quer que se encontre, estaria submetido à
força da sua vontade.
Freddy MacMurray foi sua primeira vítima. Alguns
anos depois Monterny conseguira reunir um número de
mutantes capazes, que lhe permitia desferir seu primeiro
golpe.
O primeiro golpe seria desferido contra o homem
que, pelo simples fato de ter alcançado êxito, atraíra o
ódio de Monterny.
Contra Perry Rhodan.
139
2
Perry Rhodan teve alguns dias de trabalho intenso.
Juntamente com Crest coletou todos os dados que,
em sua opinião, poderiam fornecer alguma indicação
sobre a identidade do desconhecido, traduziu-os, num
trabalho que consumia horas, no complicado código
mecanizado dos arcônidas e introduziu-os no cérebro
positrônico, que os interpretaria.
O resultado não foi compensador.
O cérebro positrônico afirmou que os atentados eram
inspirados por uma potência econômica, que, com seus
próprios recursos, ou seja, através do seu poderio
econômico, procurava minar a Terceira Potência a fim de
provocar sua queda.
A combinatória indicou o objetivo da potência
estranha com a expressão singela “domínio mundial”.
— Isso não nos adianta nem um pouco — disse
Rhodan.
Nos últimos dias a situação vinha se tornando cada
vez mais séria. Vários cientistas, que frequentavam a
Academia Espacial de Terrânia, desapareceram de um
dia para outro. Alguém roubara boa quantidade de
minúsculas peças de propulsores e desaparecera sem
deixar vestígio.
O desconhecido trabalhava sem cessar. Os únicos que
poderiam enfrentá-lo eram os mutantes dá Terceira
Potência, pois ao que tudo indicava também era um
mutante.
Mas mesmo um mutante não pode estar em todos os
lugares ao mesmo tempo. E para postá-los em tempo no
local adequado seria necessário adivinhar os planos do
desconhecido.
E nem Perry Rhodan, nem Crest, nem o cérebro
positrônico conseguiram fazer isso.
Utilizando canais secretos, Rhodan fez chegar as
informações necessárias à Federação de Defesa da Terra,
uma gigantesca organização secreta panterrena dirigida
por Allan D. Mercant, um semimutante que, nos
primeiros meses de existência da Terceira Potência,
desempenhara um papel importante e positivo.
Mercant pôs a funcionar sua extensa máquina de
informações e, um dia depois de ter recebido o aviso, já
forneceu o primeiro indício a Rhodan.
Uma fábrica de máquinas da Califórnia lançara no
mercado, com um mínimo de propaganda, certas
máquinas agrícolas dirigidas por robôs.
Perry Rhodan foi de opinião que o indício era tão
importante que ele mesmo deveria verificar o que havia
atrás dele. Algumas horas depois de ter recebido a
informação de Mercant, encontrava-se a caminho dos
Estados Unidos.
Não cometeu o engano de se dirigir diretamente à
recepção da fábrica de máquinas. Instalou-se num hotel
de categoria média e deixou que um dia se passasse antes
de entrar em contato com os dois agentes de Mercant.
O nome da cidade era Sacramento. No mesmo
instante em que transmitira a notícia a Rhodan, Mercant
destacara dois dos seus agentes mais capazes para lá: o
capitão Farina e o tenente Richman.
Rhodan e Farina encontraram-se numa cafeteria,
enquanto Richman percorria a cidade, sempre de olhos
bem abertos.
Farina era um homem baixo e corpulento, cuja
ascendência italiana era perceptível de longe.
Cumprimentou Rhodan sem demonstrar um respeito
excessivo, mas numa ótima disposição de espírito.
— Formidável! — observou, depois de se certificar
de que ninguém poderia ouvir sua conversa. — Ninguém
desconfia de que o senhor se encontra em Sacramento.
Rhodan sorriu.
Não deixara de tomar certas precauções antes de pôr-
se a caminho. A arte de dois grandes peritos em máscaras
transformara seu rosto a ponto de que só quem
dispusesse de uma ótima visão e de um longo
conhecimento poderia reconhecê-lo. Por motivos de
segurança e de comodidade, deixou de recorrer a certos
acessórios, como barbas falsas e perucas. Rhodan sabia
que justamente por isso havia uma possibilidade mínima
de ser reconhecido por alguém.
Farina encontrara-o porque tinham combinado o
encontro naquele local, e ainda porque Rhodan lhe
fornecera um sinal de identificação: uma cicatriz do lado
esquerdo da testa.
— Quais são as novidades? — perguntou Rhodan.
— Nenhuma — respondeu Farina aborrecido. —
Raleigh comporta-se como se fosse o comerciante mais
idôneo de todos os tempos...
— Quem é Raleigh?
— É o chefe da Farming Tools and Machines. Vende
seus arados automáticos abertamente e muito barato. Nos
poucos dias que se passaram, desde que iniciou as
vendas, sua freguesia triplicou ou quadruplicou. Os
fregueses elogiam-no além de toda medida.
— Já deu uma olhada do lado de dentro?
Farina acenou com a cabeça.
— Naturalmente; mas não encontramos nada. Não
temos a menor idéia de onde Raleigh guarda os desenhos
de suas máquinas. Se é que...
Farina fez uma pausa de reflexão.
— Se é que...? — animou-o Rhodan.
— Se é que os desenhos estão em sua casa —
prosseguiu Farina. — Richman descobriu que, nos
últimos dois dias antes do início das vendas, Raleigh, ou
melhor, sua firma, recebeu um grande volume de carga
ferroviária.
— De onde?
— De Salt Lake City.
— Seguiram a pista?
Farina sacudiu a cabeça.
— Ainda não tivemos tempo.
Rhodan refletiu. Era um mistério que uma simples
fábrica de máquinas, que sem dúvida não estava
aparelhada para cumprir programas especiais,
conseguisse colocar no mercado num tempo tão curto
uma linha de produtos prontos para serem oferecidos aos
consumidores — mesmo que partisse do pressuposto de
que havia alguma ligação entre os arados dirigidos por
robôs e os furtos ocorridos em Terrânia.
— Conhece Raleigh pessoalmente? — perguntou
Rhodan.
— Não, mas o vi várias vezes de perto. A primeira
impressão é boa.
— E a segunda impressão?
A boca de Farina se contorceu.
— Não é boa. É o tipo escorregadio: amável, mas
traiçoeiro.
140
Rhodan já elaborara seu plano.
— Pois hoje de tarde vamos lhe fazer uma visita e
nos apresentar como compradores interessados em seus
produtos — sugeriu a Farina. — Procuraremos nos
lembrar de alguma coisa que nos permita colher o maior
volume possível de informações sobre sua maneira de
negociar e sobre suas reações. Eu mesmo cuidarei da
segunda parte da tarefa, assim que estivermos
suficientemente informados.
— Está bem — respondeu Farina. — E Richman?
— Vai descobrir quem é o fornecedor de Salt Lake
City.
* * *
Mais ou menos à mesma hora, aconteceu o seguinte
na metrópole nova-iorquina, com um homem que parecia
pouco inteligente e, por causa de uma corcunda, oferecia
um aspecto um tanto miserável:
Estava almoçando numa lanchonete. Pegou uma
bandeja com um bife grande, mas fino, e uma porção de
vagens e batatas fritas; tomou lugar junto a uma mesa
cujas cadeiras estavam todas desocupadas. Uns cinco
minutos depois, quando acabara de constatar que o bife
nem de longe correspondia às suas expectativas, outro
homem — jovem, alto, robusto e elegante — sentou à
mesma mesa.
— Teve azar ali na esquina? — perguntou o homem
depois de algum tempo.
Naquele local a expressão ali na esquina era um
estereótipo que designava a Wall Street.
O jovem levantou os olhos do prato com uma
expressão sombria no rosto e examinou seu interlocutor.
— O senhor tem alguma coisa com isso? —
respondeu em tom grosseiro.
Mas o outro não se intimidou.
— Tenho um olho clínico para essas coisas —
afirmou. — Talvez possa ajudá-lo.
— O senhor?
Essas duas palavras encerravam uma dose insultuosa
de menosprezo.
Mas o homem a quem era dirigido o menosprezo
limitou-se a acenar a cabeça:
— Sim, eu.
E não estava exagerando. Aquele homem corcunda,
de andar tortuoso, de aspecto tímido e insignificante,
com a coroa rala de cabelos desbotados, em parte
grisalhos, outro não era senão Homer G. Adams,
ostensivamente chefe da General Cosmic Company, a
maior empresa industrial da Terra, e além disso ministro
das finanças da Terceira Potência.
— Conheço alguns dos truques com os quais se
consegue arrancar o dinheiro de certos criançolas
esquentados e desbocados — disse Homer G. Adams,
brincando com uma caixa de fósforos. — Justamente por
isso também conheço os truques que podem ajudar essa
gente a recuperar seu dinheiro.
O jovem remexeu a comida que se encontrava em seu
prato; parecia ligeiramente embaraçado.
— Já ouviu falar naquela história da Airlines United?
— perguntou.
Adams se sobressaltou.
— Meu Deus, não me vá dizer que comprou papéis
da Airlines United.
O jovem fez que sim.
— Faz quatro dias.
Adams nem se deu ao trabalho de esclarecer o jovem
sobre o assunto. Limitou-se a perguntar:
— Quanto perdeu?
— Tudo — resmungou o jovem.
Adams sorriu.
— Quanto vem a ser isso?
— Pouco mais de doze mil dólares.
Adams fez um gesto com a cabeça.
— É um bom dinheiro para um jovem da sua idade.
Aliás, como é seu nome?
— Meu nome? Elmer Bradley. Sou desenhista
técnico. Ganhei o dinheiro de herança.
Fitou Adams, como se esperasse que também o
corcundinha se apresentasse.
— Meu nome é Adams — disse este em tom
indiferente.
Nos Estados Unidos havia mais de um milhão de
pessoas com esse nome. Não era de esperar que só por se
chamar Adams alguém o ligasse a General Cosmic
Company.
— Qual é a dica que me dá? — perguntou Bradley.
— No momento nenhuma — respondeu Adams em
tom decidido. — Estou disposto a lhe emprestar a mesma
soma que perdeu, para que possa tentar novamente.
Por estranho que parecesse, Bradley não parecia se
impressionar muito com a oferta.
“Provavelmente a esta hora estará pensando que sou
um idiota convencido”, pensou Adams, divertindo-se no
íntimo.
Bradley perguntou:
— Neste instante?
Adams sacudiu a cabeça.
— Apareça no meu escritório quando tiver tempo. Lá
lhe darei o dinheiro e estudaremos juntos, a situação da
Bolsa, para que saiba o que comprar.
Pegou uma agenda de bolso, arrancou uma folha e
escreveu algumas linhas. Depois a empurrou a Bradley.
— General Cosmic? — perguntou Bradley, surpreso.
— Será que o senhor é...
Adams interrompeu-o com um sorriso.
— Nada disso. Em nossa firma há uns dez Adams, e
nenhum deles tem qualquer parentesco com o chefe. O
senhor irá?
Bradley sorriu.
— Não tenha a menor dúvida!
* * *
Farina parecia bastante contrariado.
— Nada — disse com um gesto de desprezo. — Não
tem nenhum arado automático de dez relhas que possa
vencer uma subida de trinta por cento. Por pouco não
fazem gozação de mim por causa disso.
Rhodan riu.
— A ideia era justamente essa. Falou com Raleigh?
Farina confirmou com um gesto de cabeça.
— Durante cerca de vinte minutos.
— E daí?
Farina ergueu os ombros.
— Diria que talvez sua ideia não dê resultado.
Rhodan não parecia se importar com isso.
— De qualquer maneira ainda teremos outro meio —
respondeu.
141
Farina ponderou:
— Precisaremos desse meio.
Às sete da noite, Perry Rhodan telefonou para a
Farming Tools and Machines.
Raleigh não parecia muito satisfeito com a
interrupção.
— Compreendo perfeitamente que minha chamada
não lhe dê nenhum prazer — disse Rhodan. — Acontece
que preciso falar imediatamente com o senhor.
— Qualquer um pode aparecer com esse tipo de
conversa — protestou Raleigh. — Afinal, quem é o
senhor?
— Sou um homem que lhe pode causar muitos
problemas, a não ser que o senhor chegue a um acordo
satisfatório comigo — respondeu Rhodan em tom de
animosidade.
Ficou admirado de que Raleigh não desligou
imediatamente. Será que sua consciência pouco tranquila
o impedia de fazê-lo?
— A mim ninguém causará problemas! — afirmou
Raleigh.
— Depois que tiver falado comigo o senhor não dirá
mais isso — objetou Rhodan.
Raleigh parecia refletir.
— Pois bem — disse depois de algum tempo. —
Venha.
— Para onde? — perguntou Rhodan.
— 2.035, Parkway Drive. É o endereço de minha
residência.
Rhodan preparou-se cuidadosamente para a tarefa.
Não esperava que Raleigh fosse reconhecê-lo. Estava
equipado com um radiador portátil de impulsos térmicos
e um projetor mental. Não levava outras armas. Teve que
dispensar até mesmo o traje transportador arcônida, que
o protegeria contra qualquer tipo de projétil, porque a
estranha vestimenta revelaria imediatamente sua
identidade.
No início ainda esperava que não fosse obrigado a
recorrer ao projetor mental. Provavelmente Raleigh era
um membro pouco importante do grupo que conspirava
contra a Terceira Potência. E era conveniente para as
investigações que o inimigo desconhecido ficasse o
maior tempo possível sem saber que o contragolpe já
começara.
Pegou o carro alugado em Sacramento e dirigiu-se ao
Parkway Drive. Raleigh habitava uma casa que, embora
ostentasse um estilo ridículo e ultrapassado, era grande e
sem dúvida dispendiosa. Distava tanto da rua que
Raleigh tivera que construir um caminho particular para
alcançá-la.
Quando Rhodan chegou, eram vinte horas e quarenta
minutos. Só a luz pálida das estrelas iluminava a noite.
Por mais que Rhodan lançasse os olhos em torno, não via
o capitão Farina que, segundo o combinado, devia se
encontrar nas proximidades.
Acionou a campainha embutida no batente e
aguardou até que o convidassem a entrar.
Pela descrição de Farina, o homem que deixou entrar
Rhodan foi o próprio Raleigh.
— Meu nome é Wilder — disse Rhodan. — É muita
gentileza sua me receber a esta hora.
Estendeu a mão a Raleigh, mas este fingiu não vê-la.
Seu rosto parecia frio como gelo.
Rhodan foi conduzido a um pequeno aposento, que
parecia ser o escritório de Raleigh. Este, sem proferir
uma palavra, apontou uma poltrona. Rhodan sentou.
— Então? — perguntou Raleigh.
Rhodan reclinou-se confortavelmente na poltrona e
cruzou as pernas.
— O senhor roubou minha invenção — disse como
que ao acaso e num tom de voz que nada tinha de
dramático.
Raleigh estava sentado atrás de sua escrivaninha.
Ergueu-se ligeiramente e inclinou-se por cima da mesma.
Parecia que acabara de levar um tremendo susto.
— Sua invenção? — fungou. — Repita isso!
Rhodan fez um gesto de assentimento.
— É o que acabo de dizer: o senhor roubou minha
invenção.
Raleigh deixou-se cair na poltrona.
— Que invenção? — perguntou. “Acalmou-se muito
depressa. Depressa demais”, pensou Rhodan.
— O senhor sabe perfeitamente — respondeu. — Há
algum tempo o senhor vem produzindo aivecas, arados e
mais umas maquininhas, todas de um tipo que a
humanidade conhece há milhares de anos. Foi só nestes
últimos dias que uma verdadeira novidade surgiu na
história da empresa. E essa novidade foi roubada de
mim.
Raleigh manteve-se impassível.
— Está em condições de provar isso? — perguntou.
— Naturalmente. Quer que apresente a prova em
juízo?
Muito sério Raleigh fez um gesto com a cabeça.
— Faço questão — respondeu em tom tranquilo.
Rhodan percebeu que seu blefe não serviria para
nada. Raleigh conhecia a origem do comando robotizado
de seus arados; não cairia num truque desses.
— O senhor se arrependerá — voltou a investir
Rhodan.
Raleigh levantou-se.
— Eu não — disse em tom glacial. — Mas o
senhor...
Rhodan também se levantou. Com um gesto
disfarçado tirou o pequeno projetor mental do bolso e
dirigiu-o sobre Raleigh.
Raleigh logo percebeu. Seu rosto contorceu-se num
sorriso de deboche. Não tinha medo.
— Agora o senhor vai me dizer quem está atrás do
senhor — ordenou Rhodan.
Enquanto proferia essas palavras, comprimiu o
acionador do projetor mental e ficou aguardando que os
impulsos transmitidos por via hipnótica fizessem Raleigh
falar.
Mas este continuava com o sorriso de deboche no
rosto.
Rhodan percebeu que nem tudo corria conforme ele
calculara. Por que Raleigh demorava tanto em se
submeter à influência do projetor mental? Ou será...
— Andei pensando a mesma coisa — observou
Raleigh em tom zombeteiro. — O que é isso? Um
hipnotizador?
Deu uma risada de deboche.
— Desta vez o senhor pegou o bonde errado. Seu...
seu rhodanita reformador do mundo.
Rhodan sentiu o ódio indisfarçado que vibrava
naquelas palavras e também sentiu que Raleigh não o
reconhecera; por enquanto sabia apenas de onde vinha.
142
Rhodanita reformador do mundo! A expressão seria
para rir; mas no momento não havia motivo para isso.
No escritório de Raleigh havia duas portas, e ambas
se abriram ao mesmo tempo. Os homens que apareceram
nelas, dois em cada, mantinham as pistolas automáticas
levantadas, não permitindo qualquer dúvida sobre suas
intenções.
— Prendam-no! — disse Raleigh por entre os dentes.
Rhodan ainda não se deu por vencido. Sabia que não
havia mais tempo para pegar o radiador de impulsos
térmicos. Mas ainda não acreditava que também os
subordinados de Raleigh fossem insensíveis à influência
hipnótica.
Virou-se ligeiramente para o lado, fazendo com que
uma das portas caísse no raio de ação do projetor mental
e ordenou:
— Vocês vão me deixar em paz. Larguem as armas.
Os homens não fizeram nada disso. Foram entrando
na sala, e Rhodan ouviu que os dois que se encontravam
atrás dele também se colocaram em movimento.
Apenas por uma fração de um décimo de segundo a
terrível surpresa causada pelo fato de que, naquele caso,
seu projetor hipnótico não valia mais que o metal de que
era feito, turvou seu raciocínio. Num instante percebeu
que antes de tudo precisaria ganhar tempo, para que o
capitão Farina pudesse interferir nos acontecimentos.
— Parem aí! — disse Rhodan em tom ameaçador. —
Mais um passo, e transformo todo mundo em cinza.
Levantou o projetor mental mais alguns centímetros e
entortou ostensivamente o dedo. Os homens pararam, e
Rhodan percebeu sua chance. Teria de falar.
— Vocês pensam — disse com um sorriso
zombeteiro — que basta que apertem seus gatilhos para
me liquidar, não é? Não se esqueçam de que, mesmo que
me acertem em cheio, ainda terei tempo para levá-los
comigo.
Era uma conversa idiota, infantil; mas ajudava a
ganhar tempo e roubava um pouco da segurança dos
quatro guarda-costas. Um deles olhou para Raleigh.
Este não sabia até onde era verdadeira a ameaça.
— Está blefando — resmungou. — Esse negócio é
uma arma hipnótica. Ninguém pode atirar com ela.
Mas não tinha muita certeza do que estava dizendo, e
os outros não deixaram de percebê-lo.
Ficaram parados e olharam para Rhodan.
— Então? — disse Rhodan. — Querem
experimentar? Prometo que terão uma morte rápida e
indolor.
Subitamente um dos quatro atirou a cabeça para trás e
gritou:
— Que nada! Esse sujeito está blefando!
Rhodan viu que seu dedo se entortava no gatilho.
Triste, pensou que, de qualquer maneira, Farina chegaria
tarde.
* * *
— É uma dica formidável, Mr. Adams — disse
Bradley exultante. — Desde ontem os papéis de Hanson
& Sons subiram doze pontos.
Aquela explosão de entusiasmo não deixou Adams
muito impressionado. Sorriu com uma ligeira ironia e
disse:
— Tenha um pouco de paciência. Subirão ainda mais.
Pelo menos trinta pontos, segundo os meus cálculos.
Bradley sentou do outro lado da escrivaninha. Nos
últimos dois dias, ele comparecera pelo menos duas
vezes por dia ao escritório de Adams. Este o recebia
numa pequena sala, que não traía a real qualidade de seu
ocupante.
Por várias vezes indagara de si para si o que o levava
a gostar tanto de Elmer Bradley. Não encontrou resposta.
Gostava daquele jovem, e era só.
Gostou tanto dele que no dia em que o conhecera
emprestou-lhe trinta mil dólares para que pudesse
recuperar o prejuízo. Bradley mostrara-se digno da
confiança depositada nele, apresentando a Adams as
ações que adquirira. O próprio Adams dera-me a dica
relativa aos papéis de Hanson & Sons, revelando um
ótimo faro. Desde anteontem houvera uma alta total de
vinte e um pontos nas ações dessa empresa, o que
significava que Bradley conseguira um lucro com
aqueles trinta mil dólares.
— Tenho uma coisa para o senhor! — disse Bradley
de supetão, com a cara de quem acaba de comprar um
presente de natal.
Adams ergueu as sobrancelhas.
— Ah, é? Deixe ver.
Bradley tirou do bolso um papel dobrado várias
vezes, com aspecto de jornal. O primeiro exame revelou
que se tratava de um prospecto particular da bolsa.
Adams submeteu o papel a um cuidadoso exame. À
medida que lia, tornava-se cada vez mais nervoso.
— Isso é uma coisa nunca vista! — exclamou depois
de algum tempo. — Esse homem deve ser um idiota.
Bradley parecia um tanto embaraçado.
— Eu pensei que isso o interessaria — disse. — Mas,
para falar com franqueza, não entendo muito da coisa.
Poderia me explicar?
Com um gesto animado da cabeça, Adams
principiou:
— Certo sujeito, um peruano, diz ter descoberto uma
rica mina de ouro. A jazida aproveitável é calculada em
mais de dez milhões de toneladas. Existem pareceres
técnicos nesse sentido. O homem gastou todo o dinheiro
de que dispunha para comprar o terreno e agora quer
fundar uma sociedade por ações para explorar a mina. As
leis financeiras do Peru são bastante elásticas. O homem
divulgou sua idéia. Até o momento não encontrou
nenhum sócio. Avalia a propriedade imobiliária,
juntamente com a mina, em trinta por cento do capital da
sociedade a ser criada, e convida qualquer um que tenha
vontade para adquirir os restantes setenta por cento, e
com isso a maioria absoluta da empresa.
Os olhos de Adams, geralmente inexpressivos,
começaram a brilhar. Pouco lhe interessava que Bradley
tivesse ou não tivesse entendido sua explicação. Saiu de
trás de sua escrivaninha e correu mancando em direção à
porta. Bradley esperou-o por mais de uma hora. Só
depois disso convenceu-se de que naquele dia não o veria
mais e foi embora.
Nesse meio tempo Adams desenvolveu uma atividade
de vulcão em plena erupção. De seu verdadeiro
escritório, transmitiu instruções aos bancos da General
Cosmic, para que preparassem a importância que se
tornava necessária para a compra das ações da empresa
peruana. Segundo um cálculo superficial essa
importância atingia cerca de um bilhão e meio de
143
dólares, e um cálculo também superficial revelava que a
mina de ouro proporcionaria à General Cosmic um lucro
de pelo menos seis bilhões de dólares.
Meia hora depois de ter lido o prospecto, Adams
manteve uma prolongada conferência telefônica com o
senhor Ramirez, residente em Callao, proprietário do
terreno em que seria instalada a mina. Ramirez estava
mais que satisfeito por ter encontrado tão depressa um
sócio para seu projeto, e prometeu enviar os pareceres
dos geólogos ainda no mesmo dia.
Na noite daquele dia a General Cosmic Company —
conhecida pelas iniciais G.C.C.
— realizou a maior compra singular jamais registrada
pela história das finanças. Homer G. Adams adquiriu um
bilhão quatrocentos e cinqüenta e um milhões setecentos
e oitenta e oito mil dólares de ações de uma empresa
recém-fundada, a Peruvian Gold.
Isso representava setenta e um por cento do capital.
Naquela noite, nem mesmo Homer G. Adams,
geralmente tão calmo, conseguiu conciliar o sono.
* * *
— Pare! — gritou Raleigh, exaltado ao extremo. —
Não atire! Precisamos dele vivo — explicou. — Como
vêem, apenas blefou com essa arma. Prendam-no.
Rhodan aguardara em vão um instante em que a
atenção dos guarda-costas se desviasse o suficiente para
que pudesse pegar o radiador térmico sem correr maiores
riscos. A qualquer momento, ao menos três daqueles
homens se mantinham de olhos fitos nele.
Apesar disso a intervenção de Raleigh representou a
salvação.
Tudo correu sem a menor dramaticidade. Em uma
das duas portas que os guarda-costas de Raleigh haviam
deixado abertas, surgiu a figura morena e corpulenta do
capitão Farina.
Empunhava uma pistola automática do modelo mais
recente.
Rhodan foi o primeiro que o viu. Um instante depois,
os dois homens que se encontravam atrás dele também o
descobriram.
— Nada de nervosismo — disse Farina em tom
tranquilo. — Acho que vieram até aqui porque
acreditavam que, com a maior facilidade, conseguiriam
capturar um prisioneiro. Acontece que as coisas estão
mudadas. Qualquer movimento mais precipitado custará
imediatamente a vida de quem o fizer.
Esperou que suas palavras produzissem o efeito
desejado. Depois comandou em tom enérgico:
— Deixem cair as armas.
Hesitantes, os homens largaram as pistolas, que
caíram ruidosamente ao chão.
Rhodan voltou a guardar o projetor mental no bolso e
tirou a arma de impulsos térmicos. Em tom ligeiramente
irônico disse:
— Foi sobre isto que lhes falei há pouco tempo.
Farina amarrou os homens, enquanto Rhodan os
mantinha sob controle. Nenhum deles fez qualquer
tentativa de escapar.
Farina viera em seu carro. Seguiu logo atrás do carro
de Rhodan. Subiram as montanhas da Serra Nevada.
Durante a viagem Rhodan transmitiu uma mensagem
radiofônica para Terrânia.
Pela meia-noite os dois veículos chegaram ao lago
Tahoe, que ficava num lugar solitário. Uma nave
transportadora da Terceira Potência já os aguardava.
Rhodan entregou os prisioneiros e enviou uma
mensagem escrita a Reginald Bell, para que o resultado
do interrogatório lhe fosse comunicado pelo caminho
mais rápido.
À zero hora e quinze minutos, a pesada máquina
decolou da margem do lago e desapareceu em meio à
noite.
* * *
Na manhã do dia seguinte chegaram as primeiras
informações sobre o interrogatório.
Raleigh não se lembrava de nada. Ignorava tudo a
respeito das grades e dos arados automáticos que
costumava vender. E nada sabia do homem que
pretendera eliminar por meio de quatro guarda-costas.
Passou a fazer de tolos os homens que o
interrogavam, e exigiu sua imediata libertação.
Mas Crest, que conduzia o interrogatório, era de outra
opinião. Sabia que, a partir do dia em que iniciara a
venda das máquinas agrícolas dirigidas por robôs,
Raleigh se encontrara sob uma influência hipnótica
incrivelmente forte e provavelmente ininterrupta, e que
essa influência cessara desde o momento em que se
tornara evidente que Raleigh havia perdido o jogo.
Crest ainda não sabia quem era o homem que
exercera tamanha influência sobre Raleigh. Devia ser um
hipno de potência extraordinária, ou então disporia de
um instrumento mecânico de hipnose.
Crest estava convencido de que mesmo aquilo que
Raleigh fizera em virtude da influência estranha a que
estivera submetido ainda estava arquivado em sua
memória, se bem que em certas áreas do ego que se
tornavam inacessíveis à sua consciência. Portanto,
Raleigh não mentia ao afirmar que nada sabia daquilo de
que era acusado.
O arcônida tinha plena certeza de que conseguiria
revelar também a memória sub ou inconsciente de
Raleigh, com o que obteria informações das mais
valiosas. É bem verdade que seria um trabalho de dias,
talvez de semanas. E isso não servia a Rhodan na fase
inicial do contragolpe.
Rhodan sabia perfeitamente que saíra incólume da
primeira batalha, mas que havia perdido. Juntamente
com Farina revistara na noite seguinte as instalações
fabris da Farming Tools and Machines, mas não
encontrara nada que lhe fornecesse qualquer indicação
sobre a identidade do homem ou do poderio que se
encontrava atrás da empresa.
Pelo contrário, tinha certeza quase absoluta de que
toda essa história das grades e dos arados só foi encenada
para atrair algum elemento importante da Terceira
Potência para Sacramento e capturá-lo. Raleigh era o
homem escolhido para pôr a armadilha a funcionar. Não
havia dúvida de que, quando Rhodan entrou em contato
com ele, usando o nome suposto Wilder, percebera logo
que sua vítima havia chegado.
Por pouco, Rhodan conseguiu se livrar da armadilha.
Mas o desconhecido estava prevenido, e Rhodan não
conseguiu compensar a desvantagem por meio de
qualquer informação que conseguisse obter.
144
No momento só restava a esperança de que o tenente
Richman conseguisse descobrir alguma coisa em Salt
Lake City.
O fato de que, nos últimos dias, nada de novo
acontecera em Terrânia não o tranquilizava muito.
Certamente não tinha sua origem na maior segurança das
instalações de defesa, mas na circunstância de que o
grande desconhecido devia estar ocupado em outra coisa.
* * *
No dia seguinte ao da grande compra, Elmer Bradley
voltou a aparecer e restituiu o dinheiro que Adams lhe
havia emprestado. Os papéis de Hanson & Sons deram
um salto enorme — a segunda sensação de Wall Street
naqueles dias — e em poucos dias Bradley tivera um
lucro de quinze mil dólares em cima dos trinta mil
emprestados por Adams.
Bradley pagou sua dívida em ações. Também
conservou seus quinze mil dólares em ações. Adams
procurou convencê-lo a ficar também com os trinta mil
dólares que lhe havia emprestado.
— O senhor me ajudou a fazer um negócio
formidável — disse com um sorriso. — Gostaria de
demonstrar-lhe minha gratidão.
Mas não foi possível convencer Bradley. Disse que
preferia aproveitar o dinheiro que acabara de ganhar para
tirar férias e descansar da estafa dos últimos dias.
Despediu-se e nunca mais foi visto ao menos por
Homer G. Adams.
* * *
Durante todo o dia chegavam às notícias enviadas
pelo tenente Richman. Não eram muito animadoras:
— Por enquanto nada de novo. Continuo na pista.
Mas ao menos provava que Richman continuava a
cuidar do assunto.
No quarto dia não chegou qualquer notícia. Rhodan
estava preocupado; já o capitão Farina aumentou sua
dose de otimismo.
— Com Richman — observou — isso significa que
encontrou alguma coisa.
Por isso não se preocuparam mais com ele.
Na noite do mesmo dia leram nos jornais que a
polícia de Salt Lake City havia descoberto um cadáver
nos depósitos situados nas proximidades da estação da
Union Pacific. A notícia estava acompanhada de uma
fotografia e a descrição do cadáver, tão minuciosa que
não havia a menor dúvida: o cadáver era do tenente
Richman.
* * *
Naquela mesma noite, Farina e Rhodan foram a Salt
Lake City. Farina nunca estivera tão calado como
naquelas horas. Percebia-se perfeitamente que se
recriminava por sua leviandade.
Em Salt Lake City comunicaram-se com a polícia. O
capitão Farina se identificou, enquanto Rhodan
continuou a fazer o papel de Mr. Wilder, cujo interesse
no assassínio do tenente Richman não foi revelado à
polícia.
As indicações que receberam foram simplesmente
miseráveis. O cadáver foi encontrado por dois policiais
da ronda. Segundo o parecer do médico-legista, Richman
morrera cerca de três horas antes da descoberta do
cadáver. Não havia qualquer pista. Havia uma certa
probabilidade de ter sido morto no lugar em que foi
encontrado seu cadáver, não tendo sido arrastado para lá
depois de ter sido assassinado.
O proprietário do depósito era um homem de conduta
irrepreensível, que conseguiu provar dentro de poucos
minutos que não era o assassino e nada tinha que ver
com o fato.
Farina e Rhodan passaram a noite num hotel. Ao raiar
do dia, quando surgiram os primeiros jornais, havia uma
nova sensação para o mundo. Era uma sensação que
pouco interessava a Farina, mas em compensação era de
bastante interesse para Rhodan, que imediatamente
interrompeu sua permanência em Salt Lake City e voltou
para Nova Iorque.
Um único acontecimento enchia os jornais:
De um dia para outro a General Cosmic perdia um
bilhão e meio.
3
Na verdade o prejuízo era muito maior.
Na verdade, a General Cosmic era um truste formado
de grande número de empresas aparentemente
autônomas. A entidade conhecida como a General
Cosmic Company era apenas o centro administrativo de
centenas de empreendimentos.
Esses fatos não deixaram de chegar ao conhecimento
dos homens da Bolsa. Embora Adams tivesse agido com
a maior cautela ao realizar a congregação, do total das
cento e noventa e três empresas, sabia-se que vinte
pertenciam à General Cosmic. Quem conhecesse a
curiosidade do pessoal da Bolsa não deixaria de
reconhecer que se tratava de um “índice de segredo”
altamente favorável.
Quando o fato de que a General Cosmic acabara de
ser lograda em um bilhão e meio de dólares naquela
história da mina de ouro do Peru chegou ao
conhecimento do público, as cotações das vinte empresas
filiadas conhecidas desceram ao infinito.
Nervosos em virtude desses acontecimentos, também
os acionistas das empresas cuja filiação à General
Cosmic ainda não era conhecida procuraram se livrar
quanto antes dos papéis que detinham, tornando ainda
mais violenta a baixa dos valores da G.C.C. Felizmente a
própria G.C.C. detinha ao menos noventa por cento das
ações de cada empresa. Dessa forma o efeito foi
doloroso, mas não perigoso.
Por fim a baixa foi detida porque na tarde daquele dia
alguns especuladores muito espertos passaram a adquirir
quantidades enormes de ações do grupo G.C.C.
Acreditavam que tudo não passasse de um truque
bolsístico bem sucedido, e viam naquilo uma chance de
enriquecer.
Conforme haveria de se verificar depois, seus
cálculos foram corretos, não porque tudo aquilo não
passasse de um truque, mas porque a G.C.C. fora
montada numa base suficientemente robusta para
suportar o prejuízo.
Rhodan chegou a Nova Iorque pelas doze horas do
dia da catástrofe. Saiu do aeroporto diretamente à
145
procura de Homer G. Adams. Viu diante de si um
homem que havia perdido toda a autoconfiança e não
estava muito distante de um colapso nervoso total.
Rhodan perdeu uma hora preciosa para incutir nova
coragem a Homer G. Adams. Seu argumento principal
foi este:
— A General Cosmic dispõe de um capital de mais
de duzentos bilhões de dólares. O negócio da mina de
ouro e a baixa dos nossos papéis ocasionaram um
prejuízo total de quatro bilhões. Isso representa menos de
dois por cento! Não adianta desanimar por tão pouco.
Temos coisa mais importante a fazer.
Só depois de algum tempo, Homer G. Adams
mostrou-se interessado em saber que coisa mais
importante seria essa. Rhodan pediu informações sobre a
causa dessa especulação fracassada.
— Não faço esta pergunta porque desconfie de você
— apressou-se em acrescentar — mas porque
ultimamente certas forças vêm agindo com o objetivo
evidente de arruinar a Terceira Potência. Espero que
você me ajude a encontrar uma pista. Procure
compreender, Adams!
Homer G. Adams forneceu um relato minucioso.
Estava acostumado a andar constantemente com um
micro gravador. Todas as palestras mantidas com
Bradley ou com qualquer outra pessoa estavam
registradas. Rhodan mostrou-se mais interessado nesses
registros que no relato direto de Adams.
Foi fácil localizar a pista, mesmo para quem não
dispusesse de conhecimentos psicanalíticos. Rhodan
escutou toda a fita, e reproduziu diante de Adams a
primeira conversa, que tiveram na lanchonete da esquina
da Wall Street.
Adams ouviu atentamente.
— Está percebendo alguma coisa? — perguntou
Rhodan depois de algum tempo.
Adams refletiu. Depois sacudiu a cabeça.
— Não, nada.
— Você costuma emprestar dinheiro sem mais nem
menos? — prosseguiu Rhodan.
Adams protestou.
— Não, nunca. Por vários motivos.
Rhodan dispensou a exposição dos motivos.
— Por que emprestou trinta mil dólares a Bradley?
Adams deu de ombros.
— Meu Deus, eu o achei muito simpático. Eu mesmo
andei quebrando a cabeça sobre o motivo por que gostei
tanto dele. Gostei, e pronto.
Rhodan acenou com a cabeça e apontou para o
pequeno gravador.
— Não notou que Bradley nem quis saber o motivo
por que você se dispôs a emprestar-lhe o dinheiro?
— Não — confessou Adams surpreso.
— Não sei o que dirão os psicólogos — observou
Rhodan. — Mas, em minha opinião, seria de esperar que
um jovem que recebe uma oferta de empréstimo de um
homem que nunca viu indagasse sobre os motivos dessa
oferta.
Adams concordou com essa opinião. Começou a se
admirar de não ter lembrado-se disso antes.
— Só há uma explicação razoável para o fato de
Bradley não ter feito essa pergunta — prosseguiu
Rhodan. — Sabia perfeitamente que você o achava tão
simpático. Desde o início tinha certeza de que lhe
emprestaria o dinheiro e cumpriria qualquer desejo dele.
Adams parecia cair das nuvens.
— Como é que ele poderia saber?
Rhodan se inclinou em direção a Adams.
— Em minha opinião, Bradley é um telepata muito
potente. Além disso, deve ter a capacidade de emitir
comandos hipnóticos com elevado grau de eficiência
pós-hipnótica.
As suposições de Rhodan foram confirmadas em toda
linha.
Verificou-se que o indivíduo do Peru, com o qual
Adams teria mantido a palestra telefônica, não existia.
Ainda mais: foi averiguado que nos últimos três meses
nenhuma ligação para o Peru havia sido feita dos
aparelhos da General Cosmic.
O telefonema só existira na imaginação de Homer G.
Adams, e essa imaginação resultava de uma falsa
representação sugerida por Bradley.
O prospecto que havia enganado Adams não passava
de um impresso no qual se reconhecia, à primeira vista,
uma contrafação primária, e que não teria induzido esse
tipo de reação nem mesmo num principiante.
A prova final resultou de um exame psicológico.
Verificou-se que, ainda agora, quarenta e oito horas
depois do último contato com Elmer Bradley, a atividade
cerebral de Homer G. Adams se desenvolvia com uma
lentidão anormal, o que constituía o indício mais seguro
de uma influência hipnótico-sugestiva precedente.
Não havia a menor dúvida: Adams fora atingido por
um truque do misterioso desconhecido, que também era
responsável pelos acidentes e roubos ocorridos na cidade
de Terrânia e pela venda das máquinas agrícolas
robotizadas de Mr. Raleigh.
* * *
Naquele instante, esse homem nem de longe estava
tão satisfeito como seria de esperar.
Sem dúvida pudera registrar uma série de êxitos.
Mas, ao comparar esses êxitos com aquilo que esperava
alcançar através da ação empreendida, verificou que os
mesmos não correspondiam sequer a cinquenta por cento
dos seus planos.
A partir do seu quartel-general, que ficava a trinta
metros abaixo do solo e, juntamente com a casa que se
erguia acima dele, representava uma fortaleza
inexpugnável em meio a uma área civilizada, manteve
uma palestra de TV com o jovem que se apresentara a
Homer G. Adams com o nome de Elmer Bradley.
Quando o rosto do jovem surgiu na tela, não parecia
irradiar uma dose maior de otimismo do que na
oportunidade em que pela primeira vez se encontrara
com Adams.
— Que besteira foi essa? — gritou Monterny. — O
senhor recebeu instruções para causar um prejuízo de
pelo menos dez bilhões de dólares à General Cosmic. E o
que conseguiu? Por um cálculo otimista, cerca de quatro
bilhões. O que é isso?
Elmer Bradley residia numa casa pequena e modesta,
situada numa cidade também pequena e modesta do
norte da Califórnia. As comunicações com Monterny, o
Supercrânio, desenvolviam-se através de canais que
estavam imunes a qualquer tipo de vigilância.
O próprio Monterny nunca surgia na tela. O tubo de
imagem do aparelho de Bradley, quando este se achava
146
ligado, produzia apenas um confuso tremeluzir branco
em fundo negro.
— Não tenho certeza — disse Bradley em tom
desanimado. — Os dados que o senhor me forneceu
eram tão transparentes que, de início, nem acreditei que
pudesse ser bem sucedido. Não era possível que um
homem como Adams caísse naquilo.
— Como vê — respondeu Monterny em tom áspero
— ele caiu.
Bradley respondeu com um aceno de cabeça; parecia
cansado.
— É verdade. De qualquer maneira fiquei satisfeito
em poder dar o fora.
Subitamente a voz saída do receptor tornou-se gelada.
— O senhor me estragou um golpe, Bradley! Um
golpe que por pouco não me faz atingir o objetivo fixado
nos meus planos. O senhor teve tempo de sobra para
preparar o grande golpe contra a General Cosmic. A
quantia de dez bilhões de dólares representava o limite
inferior. Para um homem dotado das suas faculdades
teria sido fácil atingir o dobro, o triplo e até mais. Se
uma empresa do porte da G.C.C. perde mais de dez por
cento de seu capital, isso geralmente significa o fim.
Tudo isso estava ao seu alcance, Bradley! E o senhor
deixou escapar a oportunidade. Por puro medo o senhor
agiu precipitadamente. E com isso só conseguiu que nas
minhas próximas investidas contra a General Cosmic
terei de agir com uma cautela toda especial, se é que
ainda me posso dar ao luxo de atacá-la. O senhor terá
que se submeter a um novo treinamento, Bradley.
Bradley estremeceu.
Assim que Monterny descobrira nele um telepata de
primeira ordem, Bradley teve de se submeter a um
treinamento. Estava firmemente convencido de que nem
no inferno havia coisa pior. O único objetivo desse
treinamento consistiu em ativar a faculdade
parapsicológica de Bradley até o limite de sua
capacidade, e em familiarizá-lo com os objetivos do
Supercrânio; e também com a idéia de que não haveria
qualquer objeção contra os mesmos.
Bradley que, fora de seus dons extraordinários, era
um homem absolutamente normal, inclusive no que dizia
respeito às suas ideias, procurara por duas vezes se
subtrair à influência de seu senhor.
Por duas vezes sentira o poder brutal do Supercrânio.
Por duas vezes sentira a martelada espiritual que, de uma
hora para outra, apagava sua vontade para que
prevalecessem exclusivamente as ordens do Supercrânio.
E essas ordens teriam de ser cumpridas imediatamente.
Bradley poderia imaginar perfeitamente que o
segundo treinamento não seria mais agradável que o
primeiro. Mas não formulou qualquer objeção.
— Amanhã passará alguém por aí para levá-lo —
disse o Supercrânio. — Vá com essa pessoa e o senhor se
transformará num outro homem.
Monterny deu por terminada a palestra. A confusão
de linhas ofuscantes na tela do aparelho de Bradley se
apagou.
De seu quartel-general, Monterny transmitiu
instruções para que dali por diante as atividades de seu
grupo fossem transferidas para a filial japonesa.
Esperava alcançar mais com as ações planejadas se
elas partissem de um ponto mais próximo à base inimiga.
* * *
Nesse meio tempo, em Terrânia, as pesquisas
psicológicas dos presos, realizadas por Crest, o arcônida,
haviam atingido um estágio em que se esperava obter as
primeiras informações importantes.
Raleigh passara os últimos dias num estado de transe.
Não ofereceu a menor resistência quando Crest se
esforçou para penetrar em seu inconsciente.
Crest sabia que as informações que Rayleigh pudesse
fornecer se revestiriam da maior importância para
Rhodan. Pediu a Thora que lhe prestasse auxílio na
pesquisa decisiva.
Nos últimos dias, Thora, a arcônida, não tivera outra
coisa a fazer senão se recuperar do choque que lhe
rendera a aventura de Vênus.
Thora e Crest pertenciam à tripulação de um cruzador
espacial de exploração, que saíra do planeta de Árcon,
situado a mais de trinta mil anos-luz, com a incumbência
de realizar pesquisas neste setor da Via Láctea. A nave,
comandada por Thora, ficou presa na Lua, onde Perry
Rhodan a descobriu durante sua primeira viagem
espacial. Na época, Crest precisava de auxílio dos
humanos. Estava doente, e nenhuma das pessoas que se
encontravam a bordo da nave estava em condições de
curá-lo. Rhodan providenciou o auxílio de que precisava
e reconheceu as possibilidades imensas que lhe oferecia
o cruzador arcônida, produto de uma tecnologia com um
avanço de milênios sobre a da Terra.
Crest apoiou-o, primeiro por gratidão, depois em
virtude de uma compreensão íntima. Thora se opôs; só
estava interessada em retornar quanto antes ao seu
mundo natal.
Mas o caminho de volta lhe foi barrado pelas
potências terrenas, informadas sobre o pouso de uma
raça estranha sobre a Lua. Foguetes terrenos destruíram o
cruzador avariado. Além de Crest, que na época se
encontrava na Terra, só restou Thora e uma pequena
nave auxiliar esférica com sessenta metros de diâmetro.
Essa nave e os equipamentos que trazia a bordo
conferiram a Rhodan uma supremacia técnica absoluta
para o Estado recém-criado, a Terceira Potência. Rhodan
impediu uma guerra que teria trazido o fim de toda e
qualquer civilização terrestre, e acabou sendo
reconhecido pelas grandes potências. Repeliu os ataques
desfechados por inteligências extraterrenas, atraídas pelo
sinal de emergência irradiado pelo cruzador arcônida, e
alcançou uma decisão favorável aos agredidos numa
guerra travada no sistema Vega, situado a vinte e sete
anos-luz. Apresou, das mãos de uma raça que por sua
vez a havia tirado de alguém, uma supernave arcônida,
que foi transformada no núcleo de seu poderio. Numa
viagem erradia de vários anos encontrou o mundo da
vida eterna, um planeta artificial habitado por uma raça
que levava uma vida espiritual coletiva e que percorria
uma estranha órbita não-matemática em torno de uma
série de estrelas fixas. Rhodan experimentou em seu
próprio corpo o fenômeno inacreditável da renovação
celular e alcançou a imortalidade, cabendo-lhe, todavia,
visitar a cada sessenta e dois anos aquele mundo
artificial, que chamara de Peregrino, para submeter-se a
novo tratamento pelo fisiotron. Também Reginald Bell
foi transformado num imortal.
Mas a inteligência coletiva espiritualizada negou o
tratamento aos arcônidas. Seu tempo já havia passado; a
vida eterna só seria concedida a raças jovens e
147
ambiciosas.
Logo depois, Rhodan retornou à Terra. A situação da
Terra, que se apresentava tão estável quando de sua
partida, começara a balançar. O Bloco Oriental revoltara-
se. Em Vênus instalara-se uma divisão espacial inimiga,
cuja tarefa consistia em conquistar a base da Terceira
Potência juntamente com o poderoso cérebro positrônico.
Rhodan atacou imediatamente. Dispersou a divisão
para os quatro cantos, deixando vivo um número
suficiente de pessoas, para que as mesmas, depois de
terem aprendido a viver no mundo venusiano, acabassem
formando uma colônia desligada de toda ambição
política. Depois disso regressou à Terra e removeu um
obstáculo à união final da Terra, que havia sido colocado
pelo Bloco Oriental.
Durante todo esse tempo, Thora tivera de se consolar
com a promessa de que Rhodan permitiria seu regresso a
Árcon assim que a situação na Terra apresentasse um
grau suficiente de segurança.
Thora esperara por vários anos da escala de tempo
terrestre; depois resolveu agir por conta própria.
Apoderou-se de um dos destróieres recém-construídos e
foi a Vênus. Pretendia acionar a hiperestação situada
naquele planeta para enviar um pedido de socorro a
Árcon. Mas não sabia que o emissor de sinais
codificados, sem o qual não se podia ingressar na área da
base, ainda não havia sido instalado naquela nave. O
destróier foi derrubado e Thora tornou-se prisioneira dos
homens que ainda restavam da divisão espacial do Bloco
Oriental.
Rhodan, que imediatamente saiu no encalço de
Thora, não teve outro destino. Utilizou um destróier do
mesmo tipo e também foi repelido e derrubado pelas
instalações positrônicas da base.
Sem quaisquer recursos, já que o cérebro positrônico,
alarmado por aquelas ocorrências surpreendente,
bloqueara todo o planeta, não permitindo que ninguém
de fora o atingisse, Rhodan pôs-se a lutar pela libertação
de Thora. Saiu vitorioso; mas por várias vezes teve de
encarar a morte pela frente.
Levou Thora, uma Thora tímida e abatida, de volta
para a Terra e obteve dela a promessa de que esperaria
até que pudessem ir juntos a Árcon.
De certa forma Thora sentiu-se satisfeita porque
Crest pedia seu auxílio. Sem que se desse conta disso,
estava ansiosa por uma oportunidade de demonstrar a
Perry Rhodan que não servia apenas para fazer bobagens
e criar confusão. Quem sabe se essa possibilidade não
surgiria durante o exame psicológico do prisioneiro.
Crest já a esperava. A sala em que Rayleigh estava
deitado era ampla, mas naquele momento estava tão
atulhada de instrumentos de todos os tipos que não se
podia vê-la de lado a lado.
— O que pretende fazer? — perguntou Thora.
— A rastreação — respondeu Crest laconicamente.
Thora aspirou fortemente no ar.
— Não existe mais nenhuma outra possibilidade?
Crest sacudiu a cabeça.
— Nenhuma. Se é que ainda existe uma memória,
esta se localiza em camadas tão profundas que só
podemos alcançá-la pelo rastreamento.
Thora fez um gesto com a cabeça; parecia pensativa.
— Tomara que resista.
Crest aproximou o complicado aparelho de
rastreamento, preso a um carrinho, colocando-o junto ao
leito em que se encontrava o prisioneiro.
— Quer segurar os eletrodos? — perguntou Crest. —
Eu observarei o indicador.
Sem dizer uma palavra, Thora pegou as duas peças
em forma de espula, ligadas por um cabo ao aparelho
propriamente dito, e prendeu-as a um suporte, fixado
acima do crânio de Raleigh, de tal forma que as
extremidades apontavam diretamente para a cabeça.
— Pronto? — perguntou Crest.
Thora verificou a posição das duas espulas.
— Pronto!
— Aí vem a corrente.
O pequeno aparelho emitiu um leve zumbido. Thora
observou as espulas. Mantinham-se imóveis.
— Potência máxima! — disse Crest. Na tela surgiram
linhas de luzes verdes, das quais ainda não se podia
concluir nada. Crest se certificou de que o registro de
imagem estava funcionando. Com base nas imagens
gravadas, o cérebro positrônico estaria em condições de
decifrar a memória de Raleigh.
As linhas que se entrelaçavam na tela estavam nítidas
e bem estendidas, o que provava que os impulsos
irradiados à potência máxima eram refletidos da maneira
usual. Raleigh possuía um cérebro normal.
— Inverta a posição das duas espulas! — ordenou
Crest depois de algum tempo.
Thora trocou as espulas. Um novo período de
irradiação forneceria quadros que representariam o
complemento dos anteriores.
O exame não durou mais de quinze minutos.
— Pronto! — disse Crest.
Uma chave foi desligada com um estalo. O zumbido
cessou. Não se notava qualquer alteração no rosto de
Raleigh. Sua respiração era tranqüila.
— Parece que resistiu — observou Thora.
Mas Crest já estava ocupado em outra coisa.
— Quer ajudar também na interpretação? —
perguntou.
Thora sorriu.
— Será que está doente Crest? Meu diagnóstico é o
seguinte: um acesso de ativismo terrano. Acaba de fazer
numa hora o trabalho que em Árcon não teria realizado
num dia.
Crest retribuiu o sorriso.
— A atividade é uma coisa contagiante — respondeu.
— Será que preferia ficar deitada embaixo de um
observador fictício, contemplando os modelos de ondas?
Thora riu.
— Não. Prefiro ajudá-lo.
* * *
A General Cosmic recuperou-se. As cotações foram
subindo, e os especuladores arrojados começaram a
exultar.
Mas, a alguns milhares de quilômetros a oeste, um
homem esforçava-se em segredo para preparar
cuidadosamente o golpe mortal contra a Terceira
Potência, e com isso também contra a General Cosmic.
Clifford Monterny, apelidado de Supercrânio, reuniu
seus mutantes no quartel-general do Japão e informou-os
sobre o que pretendia fazer.
— Desta vez não haverá qualquer falha — explicou.
— Uma vez terminada nossa missão, Perry Rhodan e a
148
Terceira Potência terão deixado de existir.
* * *
Rhodan gastou seu tempo examinando o caso de
Homer G. Adams. Aceitou de bom grado o auxílio da
Federação de Defesa da Terra, comandada por Allan. D.
Mercant, e por intermédio dos agentes deste soube que a
impressora que havia produzido o prospecto fictício da
Bolsa ficava no Japão.
Rhodan pediu que lhe indicassem o local exato — era
num subúrbio da cidade de Osaka — e examinou o caso.
A impressora pertencia a um particular, e o proprietário
não negou que, quinze dias antes, aparecera alguém e lhe
pedira que imprimisse o prospecto.
A pista terminou ali mesmo.
Rhodan regressou a Terrânia. Esperava que nesse
meio tempo Crest tivesse conseguido alguma informação
de Raleigh.
* * *
O setor de interpretação foi devorando a massa de
recordações armazenadas no cérebro de Raleigh, que
nada tinham que ver com o caso de Sacramento.
Eram quadros da infância, da escola, do serviço
militar, estudos na Escola Técnica da Califórnia.
O setor A rejeitou aquele material e depois de algum
tempo chegou ao essencial.
Crest soltou um grito de surpresa, quando viu o
primeiro quadro da série de informações. Era um homem
de contornos desmanchados e rosto irreconhecível, que
aparecera no escritório de Raleigh como que vindo do
nada e lhe metera um tremendo susto.
Thora arregalou os olhos para a sequencia de quadros
que Crest repetia ininterruptamente.
— Não é possível! — gemeu.
Crest acenou com a cabeça, ainda um pouco
perplexo.
— É isso mesmo. A partir desse momento Raleigh
ficou submetido a uma influência hipnótica. Ao que tudo
indica a pressão psicológica podia ser reduzida ou
intensificada por setores. Raleigh ainda se lembra, por
exemplo, da ocorrência propriamente dita, mas o
desconhecido fez com que o quadro desse homem lhe
saísse da memória. Olhe só: nenhuma figura definida,
nenhum rosto, nada!
Thora fitou Crest de lado.
— Até parece — conjeturou — que em sua opinião
esse homem desfigurado e o desconhecido que dirige
toda a ação não são uma e a mesma pessoa, não é?
Crest fez que sim.
— É isso mesmo. Tenho certeza de que uma pessoa
que deve ter tamanho cuidado em nunca ser reconhecida
e identificada jamais participa pessoalmente das ações
que planeja. Envia seus mensageiros, e até estes são
mascarados de tal forma que o parceiro involuntário não
se lembrará dos mesmos. Nem mesmo o rastreador
consegue trazer o quadro à luz do dia.
Fizeram outros quadros desfilarem diante de suas
vistas: os primeiros fornecimentos vindos por estrada de
ferro, o início da propaganda nos jornais e na televisão,
as primeiras consultas, as primeiras vendas.
De permeio sempre surgiam os quadros
desmanchados de homens não identificáveis, a
contratação da guarda pessoal de quatro pessoas.
Finalmente o telefonema de Rhodan. A representação
mental do que Raleigh pretendia fazer com Rhodan. A
visita deste, a entrada em cena da guarda pessoal, a
intervenção de Farina.
Finalmente, o blackout total. Nada além de algumas
recordações desfiguradas de cenas transcorridas em
Terrânia. E a escuridão total, correspondente ao tempo
durante o qual Raleigh se encontrava em transe.
Com um suspiro, Crest desligou o projetor de
imagens e fitou a mesa polida que tinha diante de si.
— Pois bem — disse Thora. — Será que aprendemos
alguma coisa?
Crest não se apressou em responder.
— Aprendemos — disse em tom pensativo — que
inimigo desconhecido, dificilmente liberta suas vítimas
da influência hipnótica. A qualquer momento estão
sujeitas à sua vigilância, às vezes mais intensa, às vezes
menos intensa, exercida por via telepática.
— Isso nos adianta alguma coisa?
Crest estreitou os olhos.
— Certos cérebros sentem a influência telepática,
mesmo que não sejam os que se acham submetidos à
influência de outrem. A influência hipnótica também é
um fenômeno de emissão e recepção que se processa
pelo espaço de cinco dimensões. Verifica-se o
surgimento de campos de dispersão, muito embora um
bom telepata geralmente atue de forma semelhante a um
emissor de raios direcionais bem congregados. Mas um
bom telepata devia estar em condições de notar o
fenômeno da influência hipnótica, desde que o auxiliar
do desconhecido a capte a uma distância não muito
grande.
Eram estes os resultados do exame psicológico, sobre
os quais Perry Rhodan foi informado logo após sua
chegada. Raleigh e seus homens foram dispensados. Já
não representavam qualquer perigo para quem quer que
fosse.
Quase no mesmo instante Rhodan recebeu um
chamado de Salt Lake City, transmitido pelo emissor de
raios direcionais do tipo convencional. O capitão Farina
informou em palavras lacônicas que ainda não
conseguira realizar qualquer progresso nas suas
pesquisas em busca do assassino do tenente Richman.
Rhodan recomendou que suspendesse as pesquisas.
— Encontramos a pista desse patife em outro lugar
— avisou Rhodan, e Farina mostrou-se agradecido.
Uma vez de posse das informações que em parte
foram coletadas pelo próprio Rhodan, em parte obtidas
de Crest, pela primeira vez um mutante foi informado
sobre a série de incidentes graves. Foi John Marshall, o
telepata.
— Quero que me compreenda bem — concluiu a
exposição. — No início não sabíamos se o desconhecido
não havia obrigado algum dos nossos mutantes a se
submeter às suas ordens. Só agora sabemos que não é
assim. O inimigo dispõe de uma equipe própria.
Enquanto não o sabíamos, não poderíamos assumir o
risco de informar o Exército de Mutantes. Nós, que
estamos de posse das informações, não somos acessíveis
a qualquer tipo de leitura de pensamento, isso em virtude
de nossa constituição mental específica. Se um dos
membros do Exército de Mutantes tivesse sido incluído
no círculo dos confidentes, seus pensamentos não
demorariam a se tornar conhecidos dos seus colegas
149
telepatas, o que significa que nossos planos ficariam ao
alcance do inimigo. Não quero que se sinta diminuído
por isso.
John Marshall, um australiano, olhou Rhodan por
cima da mesa. Sorriu.
— Tenho certeza de que os outros mutantes ficarão
tão satisfeitos como eu por saberem que acabou
recorrendo a nós — respondeu.
Rhodan estreitou os olhos e inclinou a cabeça.
— Minha capacidade parapsicológica é muito fraca;
não consigo ler seus pensamentos — disse um pouco
desconfiado. — Bem que poderia dizer o que realmente
pensa.
O sorriso de Marshall tornou-se mais intenso.
— Pois bem, eu lhe digo. Ninguém se sentirá
lisonjeado ao saber que no início desconfiava do
Exército de Mutantes. Mas se lhe explicarmos os
motivos, acontecerá exatamente o que acabo de dizer:
nós sentiremos satisfeitos por podermos cooperar na
solução do problema.
Rhodan fez que sim. Depois expôs seu plano a John
Marshall.
— Para vocês será mais fácil que para os dois
teleportadores — concluiu. — São quatro, e poderão se
revezar: você, Ishi Matsu, Betty e talvez Nomo Uatushin.
Tako só poderá revezar com Ras Tshubai. Encareça bem
o seguinte: a qualquer momento deverão estar de
prontidão um telepata e um teleportador. O primeiro terá
que localizar qualquer intruso, e o outro deverá agarrá-lo
quanto antes. Não devemos nos esquecer de que as
pessoas que penetram furtivamente em nosso território
também são teleportadores. Tako e Ras devem andar
bem armados. Diga-lhes que um projetor mental será
completamente inútil.
* * *
O que mais os preocupava era o fato de que o próprio
John Marshall não tinha a menor ideia de como o intruso
faria notar sua presença. Era a primeira vez que se
defrontava com uma tarefa como esta.
Marshall passou a ocupar um pequeno apartamento
na periferia da cidade. Ficava no vigésimo primeiro
pavimento de um edifício residencial e servia de posto de
vigia aos quatro telepatas.
Dividiram o dia em quatro períodos de seis horas,
durante os quais cada um ficaria de plantão. Cada um dos
dois teleportadores ficaria de prontidão por doze horas. O
telepata e o teleportador passavam o tempo jogando
baralho ou discutindo. Assim mesmo sentiam muito
tédio enquanto não acontecia nada.
Quem mais se empenhou em sua tarefa foi Betty
Toufry. Betty era a telepata mais potente da Terceira
Potência, e, além disso, possuía em elevado grau o dom
da telecinésia. Acompanhara a longa viagem e a
permanência no planeta Peregrino.
Naquele dia John Marshall veio substituí-la às seis da
tarde. O rosto de Betty exprimia a tristeza e o desânimo.
— Ainda não houve nada, Marshall — disse.
Marshall sorriu.
— Não tenha medo, Betty. Um dia destes vai
acontecer alguma coisa.
Betty confirmou com um aceno de cabeça.
— Vai prestar muita atenção? — perguntou em tom
insistente.
— Muita! — prometeu Marshall.
Tako Kakuta estava deitado num sofá que havia na
sala do pequeno apartamento e lia uma revista. Marshall
não via seu rosto, mas ouviu que o japonês bocejava.
— Boa tarde! Senhor teleportador em serviço —
cumprimentou Marshall.
Kakuta largou a revista.
— Boa tarde. Quais são as novidades?
Marshall fez um gesto de desânimo.
— Nenhuma novidade. O que vamos fazer? Jogar
uma partida de pôquer ou de xadrez, conversar, ler?
O japonês refletiu.
— Vamos jogar xadrez — disse depois de algum
tempo — se não tiver nenhuma objeção.
Marshall sacudiu a cabeça.
— É indiferente de que forma mato o tempo.
Kakuta levantou-se e arrastou a mesa para junto de si.
Marshall pôs cuidadosamente no chão a pasta com livros
que ele trouxera consigo e abriu o pequeno armário em
que estavam guardados o tabuleiro e as pedras de xadrez.
A coisa aconteceu quando a caixa com as pedras foi
tirada das profundezas do armário e, ao se erguer,
Marshall bateu com a parte traseira do crânio na quina do
armário.
Alguma coisa estranha e meiga parecia agarrar seu
cérebro. No início parecia hesitar, mas depois se tornou
mais forte e assumiu a forma de instruções concretas —
instruções dirigidas a um desconhecido que naquele
instante penetrava no território da Terceira Potência.
Marshall deixou cair a caixa com as pedras. O
barulho fez com que o teleportador se pusesse de pé.
— Chegou — fungou Marshall. — No edifício da
administração, entre o vigésimo e o trigésimo andar.
Tem instruções de prender Crest e levá-lo consigo.
Vamos logo! Dê o fora!
Por uma fração de segundo, Tako se manteve imóvel,
com o rosto inexpressivo, como se não tivesse entendido
o que Marshall acabava de dizer. Depois o ar começou a
tremeluzir, e de um instante para outro o japonês
desapareceu.
Marshall pôs-se em movimento. Com um simples
movimento de mão estabeleceu a ligação de
telecomunicação com o edifício da administração. O
major Nyssen, que naquele instante substituía Bell,
recebeu o aviso de alarma e providenciou para que o
respectivo setor do edifício fosse evacuado
imediatamente. Era de esperar que o teleportador inimigo
não perceberia a operação, pois levaria algum tempo para
se orientar. Para ser bem sucedido Tako Kakuta
precisaria ter o campo livre.
Rhodan foi avisado de que pretendiam raptar Crest. A
informação deixou-o bastante preocupado. Crest era a
coisa mais preciosa que a Terceira Potência poderia
perder. E o desconhecido parecia ter bastante certeza de
que conseguiria atingir esse objetivo. Era necessário
descobrir por que se sentia tão seguro.
Por ordem de Nyssen, John Marshall deixou seu
posto e instalou-se no interior da área protegida pelo
campo energético, diante do edifício da administração.
Dali mantinha contato permanente pelo micro
telecomunicador com Nyssen e com o quartel-general, e
poderia dar aviso imediato ao major quando surgisse
alguma novidade.
150
As sensações que Marshall experimentava pouco se
modificaram quando ele se aproximou do edifício da
administração. Teve a impressão de que as mesmas não
dependiam muito da distância. Não saberia descrever a
sensação que tomava conta de seu espírito. Era um tipo
de dor de cabeça, uma pressão constante que, todavia, ao
contrário de uma dor de cabeça comum, vinha
acompanhado de uma informação sobre sua origem. A
pressão estava ligada a uma série de impulsos
perfeitamente distinguíveis. Eram as instruções
destinadas ao teleportador desconhecido.
Marshall assumiu seu posto bem na entrada do
gigantesco edifício. Transmitiu a seguinte informação ao
major Nyssen:
— Acabo de ocupar nova posição, major. Por
enquanto não há nenhum acontecimento extraordinário.
O homem move-se muito devagar: não está executando
nenhum salto de teleportação.
* * *
O salto de Tako Kakuta terminou conforme fora
planejado, no corredor principal do vigésimo pavimento.
O corredor, profusamente iluminado, estava vazio. Tako
usava sapatos leves e macios. Andou pelo corredor sem
provocar o menor ruído. Em redor dele tudo era silêncio.
Tako não se deu ao trabalho de revistar as salas
situadas à direita e à esquerda do corredor. Marshall o
informara de que a tarefa do desconhecido consistia em
prender e levar Crest. Não permaneceria numa sala em
que evidentemente Crest não se encontrava.
Tako pegou o elevador antigravitacional e subiu ao
vigésimo primeiro pavimento. Também aqui se limitou a
percorrer o corredor principal e a andar em volta de todo
pavimento pelos corredores periféricos.
Nada, nenhum ruído, nenhuma sensação de perigo.
No vigésimo segundo e no vigésimo terceiro
pavimentos o resultado foi o mesmo. Marshall indicara o
setor situado entre o vigésimo e o trigésimo pavimentos
como sendo a área de operações. Tako não sabia qual era
o grau de precisão das indicações de Marshall. Talvez
tivesse de subir até o quadragésimo pavimento para
encontrar o inimigo.
Vigésimo quarto pavimento.
Vigésimo quinto pavimento.
Vigésimo sexto pavimento.
Nenhuma mensagem do quartel-general. Tudo
indicava que o desconhecido ainda se movia sobre suas
próprias pernas.
Vigésimo sétimo...
Era lá!
Pela primeira vez em toda vida, Tako sentiu a
estranha tração; apesar disso sabia que tinha o inimigo
bem diante de si. Agachou-se num dos nichos.
Enquanto esperava, procurou analisar a sensação que
lhe ocupava o cérebro. O que seria? Tako sabia que não
possuía qualquer dom telepático. Não era possível que a
dor suave e persistente fosse produzida pelo intruso
desconhecido. Mas este mesmo estava submetido a forte
influência hipnótica. Teria sido essa influência que
preveniu o japonês?
Tako ouviu um ruído. Comprimiu-se ainda mais
profundamente no nicho e avançou a cabeça apenas o
suficiente para enxergar o corredor.
Ali estava ele!
Tako viu-o de lado. Era um jovem. Da raça branca,
constatou Tako. Examinava as inscrições junto às portas
e parecia um tanto indeciso quanto ao caminho que devia
tomar.
Não podia ver Tako. Este saiu do esconderijo a
passos macios e silenciosos e apontou o radiador de
impulsos térmicos antes de falar:
— Fique onde está! E ponha as mãos para o alto!
Tako viu que o susto sacudiu o corpo do
desconhecido. Seus dedos abriram-se quando começou
lentamente a erguer os braços. Tako aproximou-se
lentamente. Quando se encontrava a cerca de cinco
metros, sentiu o impacto tremendo da onda mental de
choque que o cérebro do desconhecido irradiou quando
se preparava para o salto que lhe traria a salvação.
Tako contara com essa possibilidade. Aquele
desconhecido seria o primeiro teleportador que não
conseguiria se subtrair à ameaça de uma arma por meio
de um hipersalto.
Era o ramo de Tako! A fração de um segundo bastou-
lhe para absorver o modelo de ondas cerebrais, irradiadas
pelo desconhecido e, com isso, a energia que o mesmo
ativava para realizar seu salto. As formas de energia,
desenvolvidas no espaço de cinco dimensões, necessárias
à teleportação representam valores vetoriais; além de
uma intensidade, caracterizam-se por uma direção. Ao
absorver o modelo e regular sua mente para o mesmo,
Tako não saberia responder apenas à pergunta “a que
distância?”, e também à indagação “para onde?”
Saltou no mesmo instante em que o desconhecido o
fez, sempre com o radiador térmico engatilhado na mão.
A dor cruciante da teleportação absorveu-o e, por um
milésimo de segundo, fez com que toda luz se apagasse
em torno dele.
* * *
— Saltou! — gritou Marshall muito exaltado. — O
desconhecido foi embora! Desapareceu.
A reação de Nyssen foi imediata. Dois segundos
depois que Marshall acabou de proferir essas palavras,
estabeleceu contato com Tako Kakuta.
— Kakuta, está ouvindo? — gritou Nyssen. O sujeito
desapareceu. Pode voltar. Suspendemos o alarma.
Nenhuma resposta.
— Kakuta! Está ouvindo? Nenhuma resposta.
Nyssen manteve uma ligeira palestra com Rhodan.
Ficou sabendo que um teleportador tem a possibilidade
de, através da absorção do modelo das ondas de choque,
conhecer o objetivo de outro teleportador que salta nas
suas proximidades. Rhodan não tinha a menor dúvida de
que Tako aproveitara a oportunidade de seguir o
teleportador que se pusera em fuga. O alarma não foi
suspenso.
* * *
Só por uma fração de segundo, o japonês pôde lançar
os olhos em torno, ao chegar ao destino. Reconheceu
uma sala de tamanho médio, cujas paredes, soalho e teto
eram de concreto. Via-se uma mesa, três cadeiras velhas
e um armário com uma fechadura de enrolar antiquada.
Não havia nenhuma janela. A iluminação provinha de
um tubo luminoso de um metro e meio, preso ao teto.
Na outra extremidade da sala, a poucos metros de
151
distância, o desconhecido acabara de surgir do nada.
Tako esteve prestes a dirigir-lhe a palavra. Foi quando
uma força desconhecida atingiu seu cérebro com uma
violência indescritível.
Tako caiu para frente. O radiador de impulsos
térmicos caiu-lhe da mão. Tako comprimiu o rosto contra
o soalho frio e segurou as têmporas para afastar a dor
insuportável.
Por uns trinta segundos não conseguiu fazer qualquer
movimento. As ondas de amplitude variável da
influência estranha percorriam sua cabeça, faziam-no
esquecer por que viera e transformaram-no num
pedacinho choroso de gente.
Só depois de algum tempo lembrou-se de que possuía
um dom que lhe permitia transportar-se para um lugar
seguro. Concentrou-se o mais rápido possível, e com a
maior intensidade que a dor lhe permitia, sobre o lugar
de onde viera. Quando a influência estranha reduziu-se,
apenas por uma fração de segundo, a um nível
suportável, saltou.
Sentiu que a dor martelante e ondulante abandonou-o
de um instante para outro. A tração e as tensões
produzidas pela teleportação não representavam nada em
comparação ao que suportara nos últimos segundos.
Sentiu-se grato ao ver que as estrelas cintilantes
voltaram a surgir acima de sua cabeça. Ouviu um
farfalhar e sentiu uma areia grossa sob os joelhos.
Lançou os olhos em torno.
As luzes de Terrânia brilhavam a oeste. Descera a
menos de dez quilômetros do destino.
A estafa tomou conta de seu corpo. Quando tentou
levantar, as pernas se dobraram. Inconsciente, caiu
estendido sobre o pedacinho de areia amarela do deserto
que, enfrentando todas as operações de irrigação
artificial, conseguiu se manter entre duas extensas áreas
ajardinadas.
4
— Temos notícias de Kakuta! — anunciou Nyssen
pela meia-noite. — Está deitado entre dois jardins, a uns
dez quilômetros a oeste da cidade, e sente-se muito fraco
para andar. Pede que nós o busquemos.
Rhodan fez que sim.
— Major, prepare um carro — ordenou, dirigindo-se
a Nyssen. — Irei até lá com Marshall.
Nyssen confirmou o recebimento da ordem. Poucos
minutos depois o carro estava esperando. Marshall foi
retirado da residência em que estava de prontidão
juntamente com Ras Tshubai e saiu da cidade em
companhia de Rhodan.
Este mantinha contato com o japonês através do
micro telecomunicador.
— Assim que enxergar as luzes de nosso carro —
disse — oriente-nos. Não temos a menor ideia de onde
está metido. Entendido?
— Sim — respondeu Tako Kakuta com a voz débil.
— Como está passando? — indagou Rhodan.
— Miseravelmente — respondeu o japonês com toda
franqueza.
Um instante depois gritou bastante nervoso:
— Já vejo os faróis de seu carro. Está quase no
caminho certo. Dirija-se um pouquinho mais para o
norte.
Rhodan seguiu a recomendação.
— Aí! — exclamou o japonês. — Agora prossiga
exatamente na direção leste. Mas faça o favor de não me
atropelar.
Poucos minutos depois o encontrara deitado de
costas, ainda não estava em condições de se levantar com
suas próprias forças. Marshall e Rhodan colocaram-no
no carro e levaram-no à cidade.
* * *
— Como vai ele, Eric? — perguntou Rhodan.
O Dr. Manoli, um dos tripulantes da primeira nave
espacial terrena, sacudiu os ombros e deu ao seu rosto
uma expressão de contrariedade.
— Esgotamento total — respondeu. — Nunca vi uma
pessoa que estivesse tão acabada, no sentido literal da
palavra, como este japonês.
Rhodan, pensativo, olhou para frente.
— Quanto tempo falta?
Manoli lançou-lhe um olhar indagador.
— Quanto tempo falta para o quê?
— Para que eu possa interrogá-lo.
— Bem, umas cinco ou seis semanas, acredito.
Rhodan cresceu alguns centímetros, de tão indignado
que ficou.
— Semanas? — exclamou. — Você não sabe quanto
dependemos das informações de Tako. Dê-lhe tudo que
você tiver nesses armários, mas faça-me o favor de
colocá-lo em forma dentro de poucas horas.
Compreendeu?
Manoli voltou a erguer os ombros.
— Não é apenas o esgotamento — ponderou. — Fiz
um encefalograma. Durante sua ausência Kakuta deve ter
sido submetido a uma influência mental muito forte. Sua
atividade cerebral é bastante confusa. Só lentamente está
voltando à calma.
A testa de Rhodan se enrugou.
— É sério?
Manoli sacudiu a cabeça.
— Não; apenas está confuso.
— Está bem. Quanto tempo você vai levar para
colocá-lo em forma? Duas horas?
O rosto de Manoli se contorceu.
— Talvez em dez horas.
— Está bem; em dez horas. Avise-me quando estiver
pronto.
* * *
Tako Kakuta insistiu em comparecer perante Rhodan
de pé em seus trajes normais. O Dr. Manoli recomendou
que permanecesse de cama durante sua conversa com
Rhodan; mas Kakuta recusou a sugestão.
— Pois levante seu teimoso — disse Manoli em tom
irritado. — Avise quando se sentir mal.
Kakuta prometeu com um sorriso que não deixaria de
avisar.
Rhodan recebeu-o em seu escritório, situado no
último pavimento do edifício da administração. Tako
instalou-se confortavelmente numa poltrona, de frente
para Rhodan. Logo iniciou seu relato.
Não omitiu nada, desde os esforços de Marshall,
152
quando pretendia tirar as pedras de xadrez do armário,
até o momento em que o teleportador desconhecido
surgiu diante dele no vigésimo sétimo pavimento do
edifício da administração e o esgotamento total que dele
se apoderou naquela sala de paredes de concreto, bem
como o regresso a Terrânia.
Rhodan escutou-o atentamente, sem interrompê-lo.
Assim que Tako concluiu, levantou-se e foi a uma das
janelas amplas que permitiam que, daquela sala
iluminada e arejada, se tivesse uma vista imponente
sobre a cidade e as áreas adjacentes.
A vidraça quase não produzia nenhum reflexo. Era
feita para permitir uma visão desimpedida. Tako Kakuta,
que a essa hora estava sentado atrás dele, numa posição
ligeiramente lateral, só produzia um reflexo apagado.
— Você nunca havia visto o teleportador
desconhecido, não é mesmo? — perguntou Rhodan.
Ficou satisfeito quando um movimento pouco nítido
nos reflexos da vidraça lhe dava a perceber que o japonês
sacudia a cabeça atrás dele.
— Não — respondeu Tako. — Não tenho o menor
conhecimento com ele.
— O que quero dizer — prosseguiu Rhodan — é que
o viu tão bem que, sem a menor dúvida, o teria
reconhecido se já o tivesse visto antes. É isso?
Viu um movimento na vidraça, cuja transparência era
quase perfeita. Era um aceno de cabeça.
— Sem dúvida — disse Tako.
Outro movimento, desta vez mais embaixo,
provavelmente na altura dos quadris.
— Tem alguma ideia sobre a área em que foi parar
depois de seu salto? — prosseguiu Rhodan.
Desta vez a resposta do japonês foi imediata.
— Seria capaz de saltar a qualquer momento para
esse lugar. Mas não acredito que possa lhe fornecer as
respectivas coordenadas.
Enquanto falava, executou uma série de movimentos
apressados. Apesar disso Rhodan aguardou
tranquilamente que terminasse. Mesmo depois disso
deixou passar mais alguns segundos, antes que dissesse
em tom áspero:
— Você tem um radiador de nêutrons na mão, Tako.
Não sei quem lhe teria dado a arma. Nos minutos que
passaram você engatilhou a mesma, e agora quer me
matar. Mas não conseguirá.
Só depois disso, voltou-se e olhou para o japonês. O
rosto de Tako, que em outras oportunidades costumava
ser tão amável e infantil, contorcera-se numa careta que
apenas exprimia ódio e vontade de matar. Segurando na
mão direita o pesado radiador de nêutrons, mantinha-o
apontado para Rhodan. A mão nem chegava a tremer.
Rhodan sorriu, embora isso lhe custasse muito
esforço.
Tako entortou o dedo em torno do largo gatilho e
disparou. Um raio de cerca de cinco centímetros de
diâmetro, que irradiava uma débil fluorescência, saiu do
cano da arma.
No mesmo instante, o ar se iluminou cerca de metro e
meio de Rhodan, criando uma parede de dolorosa
claridade que tomava toda a largura e altura do aposento.
O campo protetor crepitou levemente ao absorver a
energia tremenda do raio de nêutrons, ativou as reservas
de energia da arma e consumiu esta.
Rhodan ouviu o japonês soltar um grito selvagem.
Depois disso tudo foi silêncio. O crepitar do campo
energético cessou no mesmo instante. Rhodan esperou
até que a luminosidade tivesse desaparecido. Depois foi
cuidar de Tako.
Este escorregara para fora da poltrona e estava
estendido no chão. A mão que segurara o radiador de
nêutrons apresentava duas manchas frescas de
queimadura. A solicitação excessiva da arma fizera com
que sua parte elétrica realizasse a transferência do
elevado potencial do gerador de nêutrons para a mão de
Tako. O choque elétrico privara o japonês da
consciência; tomara que só fosse isso.
Rhodan avisou o Dr. Manoli e mandou que dois
enfermeiros levassem o homem inconsciente.
* * *
— Trata-se de um bloqueio hipnótico de enorme
potência — explicou Perry Rhodan. — E foi aplicado
com tamanha habilidade que o exame da atividade
cerebral realizado pelo Dr. Manoli, que, é bem verdade,
foi apenas superficial, não revelou nada.
Crest, pensativo, olhava fixamente para a frente.
— Que monstro deve ser esse com que ele esteve em
contato! — murmurou.
Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.
— Se considerarmos o fato de que aquele
desconhecido não conhece a psicofísica arcônida e, em
consequência, não dispõe de qualquer aparelho destinado
a exercer influência sobre outras pessoas, só poderemos
concluir que se trata de um monstro.
— Será que Manoli conseguirá dar conta do recado?
— perguntou Crest, que de repente parecia bastante
preocupado.
Rhodan fez um gesto tranquilizador.
— Não se preocupe com Manoli — respondeu. — É
um homem que sabe seu ofício, inclusive o que aprendeu
por último. Naturalmente Tako terá que ser poupado nas
próximas semanas.
— Será que ele ainda se lembra de alguma coisa?
— Lembra, sim. Recorda-se de todos os detalhes,
desde o momento em que enfrentou o desconhecido até
que voltou a pousar em Terrânia. É bem verdade que, se
alguém lhe disser que tentou me matar, dirá que esse
alguém é um louco. Juntamente com o bloqueio
hipnótico perdeu toda recordação da tarefa que lhe foi
imposta.
Houve uma pausa. Alguns minutos se passaram até
que Crest perguntasse:
— E agora? Tem outros planos?
Rhodan fez que sim.
— Por enquanto não parecem ser facilmente
realizáveis, mas sempre são planos.
Crest fitou-o cheio de curiosidade.
— Teremos de traduzir o modelo do salto de Tako
em dados geográficos inteligíveis.
Crest respirou fortemente.
— Traduzir! Sabe lá se isso é possível?
Rhodan riu.
— Não faço a menor ideia. Levantou-se.
— Cuidarei disso imediatamente — prosseguiu. —
Procurarei saber se temos alguma chance de êxito. Se
não, teremos que tentar por outro caminho.
Quando a porta se abriu diante dele, ainda disse com
153
um sorriso na boca:
— Há uma coisa que me deixa muito satisfeito. Toda
essa história do seu rapto não passou de um blefe. Talvez
o teleportador desconhecido realmente sentisse a tarefa
de se apoderar de você. Mas na verdade só surgiu por
aqui para levar um de nós a segui-lo.
Na testa de Crest havia rugas.
— Acredita que não estão atrás de mim?
— Não tenho a menor dúvida — disse Rhodan, rindo.
— Afinal, seria uma loucura rematada tentar raptá-lo em
pleno território da Terceira Potência.
* * *
Clifford Monterny sentira seu primeiro fracasso de
grandes proporções, por assim dizer, por transmissão
direta.
Mantivera-se em contato telepático unilateral e
imperceptível com o japonês Tako Kakuta, até que o
bloqueio hipnótico a que o mesmo estava sujeito foi
removido por via psicológica. Antes que pudesse
restabelecer o contato interrompido, um contrabloqueio
foi incutido na mente de Tako, e este era tão poderoso
que nem mesmo o Supercrânio conseguia rompê-lo.
O que mais preocupava Monterny era o fato de que
não podia atinar com o motivo pelo qual Rhodan havia
previsto o atentado que se planejava. Tako Kakuta não se
traíra com nenhuma palavra, com nenhum gesto.
Enquanto esteve submetido a tratamento médico,
cuidaram em primeira linha de seu bem-estar físico. O
exame mental foi tão superficial que nem mesmo um
bloqueio hipnótico muito mais mal instalado teria sido
percebido.
Contudo...
Monterny acreditava que Rhodan não era nenhum
mutante; ou melhor, ele tinha certeza quase absoluta
disso. Não possuía qualquer dom profético, telepático ou
de outra natureza que lhe permitisse ver o interior do
japonês.
Apesar disso soube o que iria acontecer. No momento
exato abrigara-se atrás de um campo energético e com
um sorriso assistiu ao espetáculo do tiro mortal repelido
pela parede energética protetora. A dor que o choque
elétrico produziu em Tako foi tão intensa que até
Monterny chegou a senti-la.
E para que foi tudo isso?
Uma vez que estava convencido de que Rhodan não
era nenhum mutante, só podia supor que sua conduta
diante do atentado resultava de uma capacidade de
raciocínio quase sobre-humana. E essa ideia deixou-o tão
furioso que, por muitas horas, não esteve em condições
de conceber uma ideia clara.
Além da sede de poder, o Supercrânio ainda estava
imbuído da convicção de que um mutante é um homem
superior. Para ele não podia haver coisa pior do que
saber que um homem comum havia desmascarado seus
planos.
Na manhã do dia seguinte, Monterny teve uma
palestra prolongada com MacMurray, seu melhor
confidente.
MacMurray era o único entre os mutantes de
Monterny que já vira o Supercrânio face a face. Foi
naquele primeiro contato, e depois disso o fato repetia-se
constantemente.
A influência hipnótica a que MacMurray estava
submetido era tão intensa que sua verdadeira
personalidade se perdera há muito. Enquanto isso, suas
capacidades parapsicológicas haviam crescido. Um salto
destinado a vencer distâncias planetárias já não constituía
o menor problema para aquele jovem, que no meio
tempo havia chegado aos vinte anos. Durante o salto
produzia um campo transicional tão amplo e intenso em
torno de si que podia perfeitamente levar consigo objetos
de grandes dimensões.
Era justamente em virtude dessa faculdade que
MacMurray costumava desempenhar um papel
importantíssimo nos planos de Monterny.
* * *
— Será difícil — admitiu Rhodan — mas não
impossível.
Tinha diante de si uma série de diagramas do salto de
Tako Kakuta, elaborados por um psicoanalisador.
Dirigia-se a Crest e Thora.
— Já descobriu alguma coisa? — perguntou Thora.
Rhodan fez que sim.
— O destino aproximado, com uma margem de erro
de cem quilômetros para todos os lados.
— Onde...?
Rhodan levantou os diagramas e mostrou um mapa
escondido sob os mesmos. Era o mapa do império insular
japonês.
— Aqui — disse Rhodan, apontando para um círculo
desenhado no mapa. — Em algum lugar situado no
interior desse círculo.
Thora examinou o mapa. Depois de algum tempo
disse em tom ligeiramente irônico:
— Você tem uma tarefa nada fácil diante de si. No
interior desse círculo ficam três metrópoles com um total
de doze milhões de habitantes: Kobe, Osaka e Kioto. A
isso deve se somar a população rural de cerca de cinco
milhões de pessoas. Quanto tempo acha que vai
despender nas buscas?
Rhodan respondeu com um sorriso.
— Não procuro nenhuma dos dezessete milhões de
pessoas que se encontram nessa área, mas um
subterrâneo feito de concreto. Talvez você não se lembre
desse detalhe. Em todo o Japão não existem mil
subterrâneos desse tipo.
Voltou a colocar os diagramas sobre o mapa.
— Além disso, espero que o modelo do salto de Tako
ainda me proporcione dados mais exatos. E ainda notei
outra coisa. Está lembrada da manobra bolsística suicida
empreendida por Homer G. Adams? Saiu num prospecto
da Bolsa feito por um amador. Conseguimos localizar a
impressora que confeccionou o prospecto.
— E daí?
— Essa impressora fica em Osaka!
* * *
O major Nyssen foi o homem enviado a Osaka por
Rhodan.
Nyssen não se pôs a caminho sem os devidos
preparativos. Recebeu os registros dos acontecimentos
ligados à sua tarefa, com a incumbência de gastar pelo
menos um dia no exame cuidadoso dos mesmos. Além
disso, os instrumentos de treinamento hipnótico dos
154
arcônidas proveram-no do conhecimento perfeito da
língua japonesa.
Recebeu, ainda, um aparelho criado no dia anterior,
que o protegia contra qualquer influência hipnótica.
Quando lhe mostraram o aparelho, começou a rir. Não
passava de um capacete que emitia um brilho metálico e
cobria toda a parte superior da cabeça. Um minúsculo
gerador embutido no mesmo gerava um campo anti-
hipnótico.
— Quer que eu ande por aí com isso? — indagou
Nyssen.
Rhodan fez que sim.
— A partir do instante em que tiver a impressão de
que o desconhecido passou a se interessar por você, deve
fazer exatamente isso. Eu lhe recomendo
encarecidamente que, quando isso acontecer, não deixe
de usar o capacete. Sabe perfeitamente o que acontece
com uma pessoa não protegida.
Nyssen pegou o capacete.
O major juntara-se a Rhodan quando, por
incumbência do governo americano, remexia os
destroços do cruzador espacial arcônida destruído na
Lua. Era um dos artilheiros de foguetes que, semanas
antes, haviam dado cabo da nave. Seu tipo era
praticamente idêntico ao de Reginald Bell. Como este,
era pequeno, embora um pouco menos baixo, e impusera
à sua cabeleira rala castanho-escura o mesmo corte à
escovinha. Sua voz sempre apresentava o tom de quem
na última noite houvesse enfrentado uma tremenda
bebedeira.
Nyssen pegou o avião de passageiros que duas vezes
por dia fazia a linha de Xangai. Ali permaneceu por meio
dia, esforçando-se para se livrar de eventuais
perseguidores. De noite pegou o avião para Tóquio.
Em Tóquio mais uma vez procurou sacudir os
perseguidores. De noite pegou o expresso Tóquio—
Kobe, com destino a Osaka.
Às duas e meia da madrugada chegou ao destino. Em
Tóquio fizera algumas modificações no seu aspecto
exterior. Contrariando todos os hábitos, usava um terno
cujo aspecto atual era tão surrado que não poderia ter
sido feito por um bom alfaiate, além de uma camisa
desbotada com um colarinho fora da moda. Escolheu um
hotel que correspondesse à sua apresentação.
O disfarce era simples, mas eficiente. Quem o visse
pensaria que tinha diante de si um daqueles globetroters
que resolveram procurar o Extremo Oriente porque em
sua terra natal a polícia estava atrás deles, ou porque aqui
esperavam fazer fortuna mais rapidamente.
Nyssen ocupou um quarto situado no trigésimo andar
de um hotel de categoria inferior e recuperou-se da
canseira do dia anterior com várias horas de sono
profundo e livre de sonhos.
* * *
— O senhor já conhece sua tarefa — disse o
Supercrânio em tom amável. — Não se esqueça de que
muita coisa depende do sucesso desta missão.
Acostumara-se a dar a MacMurray o tratamento de
senhor, depois que fizera dele seu confidente.
MacMurray confirmou com um aceno de cabeça.
— Não me esquecerei.
— E não cometa o mesmo engano desse idiota do
Bradley. Não se apresse. Pelo que sei o senhor não
correrá o menor risco.
MacMurray confirmou com um aceno de cabeça.
— Aguardo seu relatório pontualmente na hora
combinada — advertiu-o o Supercrânio.
Mais uma vez MacMurray confirmou com um aceno
de cabeça.
Depois saiu. No seu quarto — se é que se podia
chamar aquilo de quarto, pois não tinha janelas, a única
luz provinha do tubo branco-azulado e as paredes eram
de concreto maciço — reuniu as poucas coisas de que
precisava para sua tarefa. Principalmente a pistola
automática, que era o único instrumento em que um
teleportador podia confiar quando, depois de um salto,
surgisse em meio aos seus inimigos.
Os objetos encheram uma mala de tamanho médio.
MacMurray segurou a mala embaixo do braço e parou no
meio do quarto, como se refletisse para se lembrar se
havia esquecido alguma coisa.
Poucos instantes depois seus contornos começaram a
se apagar, e logo depois desapareceu por completo.
MacMurray pusera-se a caminho, com a finalidade
de, agindo segundo as intenções do mestre, desferir
contra a Terceira Potência o golpe mais pesado que a
mesma já sofrera.
* * *
A noção que Nyssen tinha sobre aquilo que poderia e
não poderia fazer em Osaka era de uma precisão
confortadora.
Uma das coisas que envolviam um risco excessivo
seria, por exemplo, uma visita à impressora que
confeccionara o prospecto da Bolsa. O próprio Rhodan
visitara a mesma poucos dias atrás, e se esta mantinha
qualquer tipo de relacionamento com o misterioso
desconhecido, conforme era de supor, essa visita teria
sido cuidadosamente registrada, mesmo que Rhodan não
tivesse sido reconhecido.
Nyssen pretendia desempenhar seu papel por muito
tempo sem dar-se a conhecer. Numa cidade do tamanho
de Osaka não havia nada mais fácil, com os meios de que
dispunha, do que encontrar pessoas que se dispusessem a
tirar as castanhas do fogo para ele.
Nyssen deu uma olhada pela cidade. Passou uma
manhã inteira passeando na zona portuária, e os
resultados correspondiam inteiramente às expectativas.
Mais de uma dezena de pessoas envolveram-no numa
palestra no curso de várias horas, dando a entender que
eram exatamente as pessoas que estava procurando.
Nyssen ficou satisfeito ao saber que pareciam ler em seu
rosto que estava à procura de colaboradores.
Escolheu muito. Pelas dez horas, por pouco não
contrata um jovem que tinha uma expressão de desespero
no rosto, o que levaria qualquer um a indagar como viera
parar num ambiente desses. Havia um risco muito grande
que, um dia, tivesse um acesso de moralismo e corresse à
polícia para descarregar suas preocupações. Por isso,
Nyssen mandou-o embora.
Acabou por se decidir a favor de um homem pequeno
de olhos matreiros, que atravessou seu caminho pelas
onze e meia e disse num péssimo inglês:
— Eu Michikai. Michikai fazer tudo. O senhor pagar
bem, Michikai ser seu homem.
155
Nyssen sorriu. Michikai aparentava uns quarenta
anos e era cerca de vinte centímetros mais baixo que ele.
— Mim Jeremy. Jeremy pagar bem, o senhor fazer
tudo.
Disse-o em japonês, esforçando-se para imitar o
péssimo inglês de Michikai. Este parecia perplexo.
Depois riu, e quando Nyssen também se pôs a rir, o
contrato estava praticamente fechado.
O resto foi combinado num restaurantezinho. É claro
que Nyssen não explicou a seu novo colaborador a
verdadeira finalidade de tudo aquilo. Apenas lhe disse
que gostaria de obter informações sobre as instalações
daquela impressora. A tarefa pareceu tão fácil a Michikai
que ele se espantou bastante quando Nyssen lhe pagou
trinta dólares de adiantamento e lhe prometeu outros
trinta dólares quando tivesse todas as informações em
que estava interessado.
Nyssen combinou com seu colaborador que, dali em
diante, seus contatos seriam exclusivamente telefônicos.
Para esse fim Michikai permaneceria durante certas
horas num restaurante que lhe era conhecido, e onde
Nyssen poderia encontrá-lo.
Não se previu qualquer possibilidade de contato em
sentido oposto; Nyssen quis resguardar-se contra
qualquer interferência do desconhecido.
* * *
Freddy MacMurray admirou a cidade. Nunca a vira.
Ela lhe parecia mais bela que tudo que seus olhos já
haviam contemplado.
Surgira na margem norte do lago salgado, cuja
superfície cintilante interpunha-se entre ele e a cidade de
Terrânia.
MacMurray admirou o panorama até que o
Supercrânio se fizesse sentir. A ordem só foi irradiada
com uma dose minúscula de energia, mas MacMurray
entendeu-a perfeitamente.
“Eu lhe disse que não se apressasse, mas não lhe
pedi que perdesse seu tempo olhando para as coisas que
encontrasse pelo caminho. Comece logo!”
MacMurray pôs-se a correr. Sabia perfeitamente o
que havia incomodado o Supercrânio. Não era o fato de
ter contemplado a cidade. De um agente seu esperava-se
que examinasse a área em que iria desenvolver sua
atividade.
Monterny conhecia os pensamentos de seus
colaboradores. Percebera a admiração que MacMurray
sentira durante alguns segundos por essa cidade. E isso o
deixara zangado.
MacMurray caminhou pelas áreas ajardinadas
desabitadas até enxergar perfeitamente os detalhes das
casas situadas na extremidade norte da cidade. Depois
saltou para lá.
O Supercrânio seguiu-o atentamente. Sabia que a
tarefa de MacMurray encerrava certo risco para ele,
Monterny. Sabia perfeitamente de que maneira fora
localizado o outro teleportador, em cujos calcanhares
Tako Kakuta se havia grudado. Sabia que no Exército de
Mutantes de Rhodan havia telepatas muito potentes, e
que não era só MacMurray, mas também seus planos que
corriam perigo se mantivesse contato permanente com
aquele jovem.
Para observá-lo, acompanhou as emanações
irradiadas por MacMurray. Só em caso de extrema
necessidade o próprio Monterny funcionaria como
emissor.
A tarefa era importante demais.
* * *
Nyssen telefonou e pediu que chamassem Michikai.
Este deu seu nome verdadeiro. Nyssen disse:
— Os pessegueiros já começaram a florir no sul de
Kiushu?
Michikai pigarreou e respondeu:
— Ainda não. Mas em Hondo a floração quase
chegou ao fim.
— Está bem — disse Nyssen. — O que há de novo?
— Já dei uma olhada naquela impressora.
— Discretamente?
— Muito discretamente. Disse que pretendia fazer
um pedido de vulto, mas não conseguia chegar a um
acordo com o proprietário quanto ao preço. Por isso fui
embora. Já havia visto tudo. Ou melhor...
— Ou melhor?
— Quase tudo. Ainda há uma sala em que não
consegui entrar. Mas aposto que não tem mais de quinze
metros quadrados, e que nela só há uma porta, pela qual
consegui dar uma olhadela.
— Você tentou entrar lá? — perguntou Nyssen.
— Sim. Ao sair fiz de conta que me enganei na porta.
O proprietário da impressora não gostou. Quase chegou a
se zangar. No último instante conseguiu dirigir meus
passos para o outro lado.
— Hum — fez Nyssen. — Viu alguma coisa do que
havia lá dentro?
— Vi, sim. Um videofone.
— Nada mais?
— Nada.
— Está bem. Preste atenção, Michikai. Na agência do
correio da estação central da estrada de ferro há uma
caixa cujo número é 7.415 — sete, quatro, um, cinco. O
funcionário só a abrirá a quem lhe disser a senha
Hokaido. É lá que seus cinquenta dólares estão
depositados. Nos próximos dias voltarei a telefonar.
Na outra extremidade da linha Michikai soltou um
grito agudo.
— Só cinquenta dólares? Com tudo...
Nyssen não ouviu mais nada. Desligara.
Nos próximos trinta minutos ele ficou refletindo
sobre a hora mais propícia para a visita planejada.
* * *
Face às informações minuciosas de que dispunha,
sabia quase tudo sobre o dia-a-dia de uma grande
metrópole. Não havia qualquer hora realmente tranqüila,
apenas períodos de um relativo alívio.
Nyssen escolheu o período entre uma e as quatro da
madrugada. Segundo pensava, três horas seriam
suficientes para realizar um exame minucioso numa
pequena impressora.
Dormiu o resto da tarde, jantou bem e foi a um
cinema cuja sessão terminava pouco antes da meia-noite.
Depois voltou ao hotel e equipou-se com as coisas
que julgava necessárias ou úteis. Eram mais de vinte
objetos; mas, face ao avanço da micro técnica arcônida,
apenas ocupavam dois bolsos da calça e um do paletó.
É bem verdade que o pesado radiador de nêutrons
156
teve de ser carregado sobre o ombro.
Pouco antes da uma encontrava-se nas proximidades
da tipografia. Ficou satisfeito ao constatar que a rua
estava praticamente vazia. Se conseguisse abrir a porta
do edifício dentro de três minutos, praticamente não
correria o menor perigo.
Gastou três minutos e meio; mas não apareceu
ninguém que o perturbasse. Tinha certeza de que
ninguém o observara.
Face à descrição de Rhodan e de Michikai, Nyssen já
conhecia a sala de recepção, os pequenos escritórios e a
oficina ligada aos mesmos. Não perdeu tempo em
revistar essas peças. Sem maiores problemas penetrou no
escritório maior e mais bem instalado e procurou a porta
de que Michikai lhe havia falado.
No escritório havia um total de cinco portas. Aquela
que Nyssen procurava era a única que se haviam dado o
trabalho de trancar.
A fechadura era de um modelo simples. Não resistiu
mais de vinte segundos às micro ferramentas de Nyssen.
A pequena sala que ficava além dessa porta não tinha
janelas. Nyssen fechou a porta atrás de si, acendeu sua
pequena e forte lâmpada permanente e procurou um
lugar em que pudesse colocá-la.
Além do videofone a que Michikai havia aludido só
havia uma cadeira. Nyssen colocou a lâmpada sobre a
cadeira e refletiu sobre o lugar em que devia iniciar as
buscas.
Pensou que estava sendo um pouco ridículo quando
começou a percutir as paredes. Alguns lugares pareciam
ocos, mas quando os iluminava com o pequeno bastão de
raios-X constatava que apenas se tratava de um pouco de
emboço caído entre os tijolos.
Gastou uma hora nessa atividade. Aos poucos se
convencia de que nada encontraria.
Subitamente ouviu um zumbido grave atrás de si.
Voltou-se apressadamente e viu que a tela do videofone
começou a se iluminar.
Afastou-se da parede e contemplou a tela. Era
estranho que um videofone começasse a funcionar por si.
Geralmente a tela só se iluminava depois de estabelecida
a comunicação. Aqui isso não poderia ter acontecido,
pois ninguém havia levantado o fone. Nyssen nem sequer
ouvira o sinal de chamada.
Colocou-se numa posição em que o transmissor de
imagens não pudesse captá-lo e esperou.
No momento em que, num movimento rápido,
desligou a lâmpada, ouviu o estalo no receptor.
O fone estava colocado no suporte, mas apesar disso
falava.
Nyssen foi se esgueirando junto à parede, chegando
um pouco mais perto do aparelho. Ouviu a voz metálica
que começara a falar. O videofone parecia ter um
amplificador ultrapotente. Mesmo sem levantar o fone,
Nyssen entendia praticamente todas as palavras.
— ...uma conferência importante amanhã às vinte
horas... na minha casa. Todos devem comparecer...
A atenção de Nyssen foi desviada em parte pela
imagem estranha que surgiu na tela. Consistia numa
confusão inextricável de linhas. À primeira vista parecia
se tratar de alguma interferência; mas Nyssen logo
percebeu que havia certa regularidade naquelas linhas
trêmulas e ondulantes.
Tirou sua pequena máquina fotográfica e deixou que
a mesma registrasse as linhas. Não conseguiu
desempenhar toda sua potencialidade micro técnica, pois
a transmissão logo cessou. Mas Nyssen esperava que os
peritos conseguissem extrair algum resultado da
fotografia.
Mal e mal percebera que as palavras transmitidas não
continham qualquer indicação importante. Só se falava
em coisas das quais os sócios da misteriosa organização
já sabiam onde se encontravam, motivo por que não
havia necessidade de outras explicações.
As esperanças de Nyssen concentraram-se na
fotografia que acabara de fazer.
O tempo estava ficando curto. Nyssen não mais bateu
nas paredes. Tinha certeza quase absoluta de que nada
havia atrás delas.
Preferiu dedicar sua atenção ao admirável videofone
que começou a funcionar sem que ninguém o ativasse e
cujo fone falava quando ainda se encontrava no suporte.
Havia um fio comum, um tanto fino, que desaparecia
na parede pouco abaixo da tela de imagem. Nyssen
iluminou a parede e viu que o fio a atravessava em
sentido horizontal.
Voltou ao escritório maior e procurou um caminho
que o conduzisse ao lado oposto da parede. Havia uma
porta que dava para um pátio dos fundos. Uma das
paredes desse pátio era exatamente a que Nyssen
procurava.
Nyssen não gastou muito tempo. Viu perfeitamente o
fio um tanto fino que saía da parede, descrevia uma
dobra e subia ao telhado.
E em cima do telhado havia uma antena robusta e
alta.
Nyssen soltou um assobio entre os dentes. Tal qual os
telefones, os videofones estavam ligados a uma rede.
Recebiam os impulsos visuais e auditivos através de fios
que, dentro da cidade, eram colocados embaixo da terra
e, na zona rural, eram presos a postes de madeira ou
plástico. Um videofone não precisava de antena; neste
ponto era igual a um telefone.
Aquilo não era um videofone comum. Era um
receptor e transmissor que funcionava sem fio. Apenas
fora disfarçado sob a forma de um videofone, para
enganar os visitantes.
Foi por isso que aquilo começou a trabalhar sem que
o fone tivesse sido levantado.
Bastante pensativo Nyssen interrompeu sua visita
noturna. Ainda continuava pensativo quando abriu a
porta de seu quarto de hotel.
Como de hábito, tirou em primeiro lugar os
instrumentos de medida e colocou-os cuidadosamente
sobre a mesa.
Passou à leitura dos instrumentos, ainda mergulhado
em pensamentos e convencido de que os mesmos não
indicariam nada.
Radiatividade, nenhuma.
Temperatura, que bobagem. Ele não teria deixado de
perceber se tivesse penetrado numa onda de calor.
Normal!
Influência telepática-hipnótica...
Os instrumentos eram tão pequenos que Nyssen teve
de recorrer a uma lupa para ler as respectivas escalas.
Praguejando baixinho, mas com violência, tirou a lupa
do olho esquerdo e colocou-a no direito.
Mas o quadro era o mesmo.
157
Influência telepática-hipnótica, oscilação do
instrumento: escala seis.
Nyssen deixou que a lupa caísse do olho e fitou o
espaço diante de si.
Pelo que dizia o instrumento de medida, ele, Nyssen,
sofrerá influências hipnóticas. A escala seis correspondia
a seis microfreud, o suficiente para hipnotizar uma dúzia
de homens adultos.
Mas não percebera nada. Ou será que percebera?
Ainda estaria submetido a alguma influência
hipnótica?
“Pois bem. Não seria difícil encontrar uma
explicação para o fato de não ter percebido nada. Cada
cérebro tem sua faixa peculiar de frequência. É bem
possível que alguém tenha transmitido por outra
frequência, à qual meu cérebro não é acessível. A
medição do instrumento é integral no que diz respeito à
frequência. Mede tudo que aparece sob a forma de
influência hipnótica.”
Mas, com os mil demônios, de onde teria vindo essa
influência hipnótica?
Quando a única explicação possível ocorreu a
Nyssen, este esteve prestes a pegar novamente seus
instrumentos e fazer mais uma visita à tipografia. Mas
depois de ter olhado para o relógio desistiu da ideia.
Eram três e meia, tarde demais.
As ondulações refletidas na tela não eram nenhuma
interferência, nem constituíam o produto de uma
estranha fantasia geométrica. Tratava-se de uma
transmissão hipnótica!
5
Para um homem dotado da mobilidade fenomenal de
MacMurray não houve a menor dificuldade em localizar
a vítima nas primeiras horas de atividade.
MacMurray gravou o rosto e a figura do homem e
passou a estudar os hábitos do mesmo.
Pretendia raptar o homem. Raptá-lo por meio da
teleportação. Para um teleportador que não havia sido
submetido à ativação cerebral arcônida havia uma grande
diferença entre executar um salto sozinho e transportar
com ele mais um objeto de peso aproximadamente igual
ao seu. Mesmo para ele o primeiro ato resumia-se numa
liberação espontânea de energia de curta duração; já o
segundo exigia dez minutos de concentração.
MacMurray procurou encontrar, em meio ao curso de
vida felizmente bastante monótono de sua vítima, um
espaço de tempo que permitisse a intercalação de um
intervalo de dez minutos com a menor dose possível de
risco. Seria a hora em que era mais provável que aquele
homem estivesse só.
MacMurray levou dois dias para se orientar.
Marcou o grande golpe para o dia 2 de agosto. Hora:
entre as vinte e as vinte e uma, tempo local.
* * *
Rhodan estava convencido de que nada mais poderia
ser tirado do modelo de salto que o Dr. Manoli havia
extraído do cérebro de Kakuta.
O diâmetro do círculo traçado no mapa fora reduzido
para cinco quilômetros.
Só um trecho muito pequeno da cidade de Osaka
ficava dentro do círculo. A probabilidade de que o
objetivo ficasse fora da cidade era muito grande.
Isso facilitaria as buscas. No Japão uma casa que
tivesse um porão de concreto seria considerada muito
grande.
Depois de ter reunido todos os resultados, Rhodan
chamou Crest.
Crest não respondeu.
Rhodan telefonou para Thora.
Fazia mais de três horas que Thora não via Crest.
Rhodan deixou que alguns minutos se passassem e
voltou a chamar Crest.
Mais uma vez Crest não respondeu.
Rhodan lembrou-se da tarefa que fora confiada ao
teleportador desconhecido, que havia atraído Tako
Kakuta a uma armadilha tão perigosa.
Ordenou uma busca geral.
Dali à uma hora não havia mais a menor dúvida de
que Crest já não se encontrava no território da Terceira
Potência.
E não avisara a ninguém onde poderia ser
encontrado.
Crest fora raptado.
* * *
Uma extrapolação retrospectiva indicou a hora
provável do rapto: entre as vinte horas e as vinte e trinta.
Pouco depois Rhodan fizera a primeira tentativa de falar
com Crest.
Àquela hora o serviço de vigilância estivera a cargo
158
de Ishi Matsu, uma japonesinha delicada. Ishi informou
que, pouco depois das vinte horas, captou um impulso
isolado relativamente forte, mas indecifrável. Uma vez
que o impulso não se repetiu, não se preocupou com ele.
Rhodan informou a Thora de que Crest havia sido
raptado. Nunca vira a arcônida tão apavorada.
— O que... o que pretende fazer? — perguntou.
Rhodan olhou-a com uma expressão de espanto.
— Pretendo atacar. Não acha que é o mais acertado?
— Onde? Pois...
— Já disponho de todas as informações de que
preciso. É possível que Nyssen tenha descoberto mais
alguma coisa. Partiremos imediatamente.
— Vai usar o hipertransmissor de matéria?
O hipertransmissor de matéria era um aparelho que
Rhodan trouxera da viagem em busca do planeta
Peregrino. Substituía em quem a ele recorresse, o dom
parapsicológico da teleportação, transportando a pessoa
pelo espaço de cinco dimensões até um ponto em que se
encontrasse um receptor ajustado para a mesma
freqüência.
Rhodan sacudiu a cabeça.
— A partir daqui, não — respondeu. — Os dados que
conhecemos ainda não são suficientes. Nas próximas
cinco horas um destacamento nosso voará para Osaka.
Levaremos hipertransmissores e, uma vez conhecido os
detalhes da situação, não deixaremos de usá-los.
O tempo entre as seis e as sete horas da manhã era
uma das horas em que Michikai devia permanecer em
seu restaurante, aguardando o chamado de Nyssen.
Este dormiu duas horas. Chamou pouco depois das
seis. Foi informado de que Michikai não estava.
Meia hora depois Nyssen repetiu o chamado; mas
Michikai ainda não havia aparecido. Nyssen pensou que
no dia anterior tivesse apanhado seus cinquenta dólares e
desaparecido. Isso não o preocupava, mas naquele
momento o incomodava; bem que precisaria de
Michikai.
Contrariamente ao que havia decidido antes, foi ao
restaurante em que Michikai devia estar a essa hora.
Talvez o dono pudesse dar alguma informação sobre seu
paradeiro.
* * *
Para Crest tudo havia sido tão rápido que ainda não
chegara a compreender o que tinha acontecido.
Subitamente um jovem surgiu em seu quarto e abateu-o.
Ao despertar, viu-se numa sala que muito se
assemelhava à que Tako Kakuta descrevera.
Crest quase não sentiu nenhuma dor de cabeça; por
isso acreditou que a pancada não devia ter sido muito
forte, e que o desmaio não fora prolongado. Mas, pelo
que dizia Rhodan, a sala em que se encontrava ficava no
Japão, isto é, a milhares de quilômetros de Terrânia.
Como chegara tão depressa até lá?
Quem sabe se nas imediações de Terrânia não
existiam outras instalações desse tipo?
Só depois de algum tempo Crest lembrou-se da
possibilidade de que, entre os inimigos, podia haver
algum teleportador suficientemente forte para transportar
um homem inconsciente num salto. Depois de refletir por
algum tempo, Crest admitiu que a explicação verdadeira
era esta.
Levantou-se e examinou a única porta daquela sala.
Era feita de chapa de aço bastante sólida e não podia ser
aberta do lado de dentro. O mobiliário da sala consistia
numa cadeira e numa mesa.
Crest sentou na cadeira e esperou. Lamentou não ter
o hábito de carregar constantemente uma arma consigo.
Entre os potentes radiadores térmicos dos arcônidas
havia alguns suficientemente pequenos para terem boa
probabilidade de escapar a uma revista pessoal.
Cerca de uma hora depois de ter despertado, a porta
se abriu e um homem que nunca vira antes gritou:
— Venha comigo!
Crest ergueu as sobrancelhas e continuou sentado.
— Para onde? — perguntou.
O homem exibiu uma pistola automática.
— O senhor vai ver! — gritou, furioso. Crest
levantou-se e, passando perto do homem, saiu da sala. A
sala à qual foi ter não era mais confortável que a
primeira. Uma cadeira e uma mesa.
Mas a outra continha, além desses móveis, um
videofone.
— Pegue a cadeira e sente diante da tela! — ordenou
o homem que segurava a pistola automática.
Crest obedeceu. O homem ficou parado na porta.
Crest esteve a ponto de lhe perguntar o que aconteceria,
quando a tela no videofone começou a se iluminar.
Não mostrou nenhum quadro, mas apenas um
conjunto de linhas brancas trêmulas e ondulantes.
No mesmo instante Crest sentiu aquela estranha
pressão na cabeça, acompanhada de um zumbido.
Reagiu imediatamente. Não era difícil a um cérebro
arcônida, ainda mais a um que possuísse o grau de
treinamento do de Crest, resistir a qualquer espécie de
influência telepática ou hipnótica.
Mas compreendeu o significado do comando
hipnótico:
— Daqui em diante você vai trabalhar para mim.
Preciso de um homem como você. E saberei
recompensá-lo pelos serviços que você me prestar. Você
será meu servo fiel.
Crest compreendeu tudo que estava acontecendo.
As linhas onduladas que surgiram na tela de imagem
representavam a emanação reforçada de uma transmissão
hipnótica e exerciam influência sobre quem
contemplasse a tela.
Dali se concluía que as suposições de Rhodan foram
falsas: o desconhecido não dispunha apenas da força de
seu cérebro, mas ainda possuía recursos mecânicos
destinados à produção de comandos hipnóticos, embora
os mesmos ainda fossem primários e de potência
reduzida.
Uma voz antipática começou a falar depois que a
transmissão hipnótica havia durado cerca de dois
minutos.
— Então; consegui agarrá-lo, não é?
Crest achou que não valia a pena responder.
— De hoje em diante o senhor vai trabalhar para
mim! — prosseguiu a voz.
Crest resolveu usar franqueza.
— Não vou fazer nada disso! — respondeu.
Por alguns segundos o desconhecido pareceu
perplexo.
— Ah! Então não fez efeito! Muito bem! Como vê, já
conheço sua frequência pessoal. Não acredite que poderá
resistir por muito tempo. Levem esse homem.
159
Crest foi levado de volta à sala em que despertara
uma hora antes. Sentou à mesa e pôs-se a refletir.
* * *
Quando se dirigia ao restaurante, Nyssen recebeu
pelo micro telecomunicador a mensagem de Rhodan.
Esta se limitava a informá-lo de que aterrizara com vinte
homens a nordeste de Osaka e procurava o esconderijo
do desconhecido. Pedia-se a Nyssen que apresentasse
imediatamente as informações que conseguira coletar.
Nyssen fez meia-volta e regressou ao hotel.
Estacionou seu carro de tal forma que poderia sair
imediatamente e pegou o elevador para subir ao
pavimento em que ficava seu quarto.
A primeira coisa que viu ao entrar no quarto foi
Michikai. Estava estendido no chão e tinha um buraco na
testa. Do buraco saía um filete de sangue seco que sujava
o tapete surrado.
Os dois homens que haviam trazido Michikai
estavam colocados de um e outro lado da porta. Cada um
deles segurava uma pistola de forma a não permitir a
menor dúvida quanto ao alvo que pretendiam atingir caso
houvesse necessidade.
Realmente Nyssen assustou-se, mas dentro de dois
segundos recuperou o autocontrole. No entanto,
murmurando coisas confusas, deu-se o aspecto de quem
mal conseguira evitar um colapso nervoso.
A trinta quilômetros dali o homem que, por ordem de
Rhodan, devia manter contato com Nyssen teria de
decifrar esse murmúrio.
— ...Hotel, Portão das Aves Celestes... Quarto dois-
um-um-sete... dois homens... aprisionado.
A distância que separava Nyssen dos dois homens era
de três metros. A parte ativa do microfone estava
embutida na pele do pescoço e reagia até mesmo às
vibrações mais débeis da laringe. Havia uma boa chance
de que os dois não entendessem as palavras por ele
murmuradas. Esforçou-se para produzir grande
quantidade de saliva e deixou cair um fio da mesma pelo
canto esquerdo da boca. Parecia ter enlouquecido de
susto.
Um dos homens se aproximou dele, com um sorriso
de deboche nos lábios.
— Por que está com medo, meu filho? Não lhe
faremos nada.
Deslocava-se habilmente. Nem por um segundo
interpôs-se na linha de tiro do outro.
— O que... o que querem de mim? — gaguejou
Nyssen.
O homem apontou para o cadáver de Michikai.
— Viemos entregar este homem e convidá-lo a dar
um passeio conosco.
— Nãooo! — protestou Nyssen com um grito. —
Não quero!
— Cale a boca, seu idiota! Vimos quando você matou
esse coitado. Entendido? — voltou a apontar para
Michikai. — Você deve agradecer porque, em vez de
entregá-lo à polícia, preferimos levá-lo conosco.
— Para onde? — perguntou Nyssen, assustado.
— Você vai saber. Está armado?
— Não... ah, sim.
Apontou para o ombro esquerdo. De qualquer
maneira não deixariam de encontrar o pesado radiador de
nêutrons, mesmo que procurasse ocultar sua existência.
O homem contornou-o e, vindo de trás, pegou em sua
axila. Soltou o coldre que segurava a arma e examinou-a
cuidadosamente.
— Está bem — disse, depois de ter examinado a
arma e passado a mão pelo corpo de Nyssen. — Vamos
embora.
O outro homem abriu a porta e saiu para o corredor.
Nyssen pôs-se em movimento.
Passaram pelo porteiro sem que este percebesse que
Nyssen tinha sido sequestrado. Sem o menor problema,
os três homens alcançaram o carro em que os dois
sequestradores tinham vindo. Enquanto entravam, o
motorista ligou o motor. Nyssen ficou sentado no assento
traseiro, entre os dois homens que o vigiavam.
Quando o carro deu a saída, resmungou com um
mínimo de desempenho vocal:
— Saímos num carro.
Esperava que estas palavras, sopradas para dentro do
microfone do telecomunicador, fossem entendidas e
corretamente interpretadas pelo elemento de ligação.
Durante meia hora o automóvel enfrentou o trânsito
matutino da grande metrópole. Depois tomou uma das
grandes vias de saída e disparou em direção ao nordeste.
Nyssen já tivera tempo de elaborar um plano. Sabia
que o mais importante era evitar a influência hipnótica
do desconhecido.
O capacete trazido de Terrânia estava bem guardado
na mala.
Devia encontrar outro caminho para fugir à influência
hipnótica.
Poderia distrair a atenção do desconhecido por meio
de algum incidente que lhe parecesse mais importante
que a influência hipnótica a ser exercida sobre mais um
prisioneiro.
* * *
Em toda a área compreendida no círculo de cinco
quilômetros de diâmetro, que Rhodan traçara segundo os
dados extraídos do salto executado por Tako Kakuta, só
havia três edifícios. Um deles era um celeiro meio
arruinado que não parecia conter um porão. Os outros
eram casas de campo em estilo japonês.
Rhodan e seus vinte homens haviam chegado ao
amanhecer do dia numa nave de transporte. Esta retornou
imediatamente, depois de ter descarregado os homens.
Rhodan e seus homens usavam vestimentas
transportadoras arcônidas, equipadas com micros
geradores que geravam campos antigravitacionais,
deflexivos e protetores.
O grupo de Rhodan não tivera a menor dificuldade
em passar a maior parte da manhã num bosquezinho sem
ser notado por quem quer que fosse.
O rapto de Nyssen foi uma surpresa nada agradável.
Mas tal qual o major, também Rhodan não demorou em
reconhecer a chance que se lhe oferecia. Enquanto
viajava com os sequestradores, Nyssen murmurava
ligeiras indicações sobre a direção que tomavam. Dentro
de pouco tempo não havia mais a menor dúvida sobre
qual das duas casas de campo era aquela em que se
encontrava seu alvo.
Rhodan também compreendeu o plano de Nyssen,
segundo o qual a atenção do desconhecido, que
aguardava a chegada do prisioneiro, devia ser distraída,
para que Nyssen tivesse certa liberdade de agir nos
160
primeiros trinta minutos de prisão.
Não havia possibilidade de estabelecer contato com
Crest. O arcônida nunca se convencera da utilidade de
um micro telecomunicador embutido na pele. Rhodan
tinha certeza de que nesse meio tempo devia ter mudado
de opinião.
* * *
Incrédulo, o Supercrânio fitou o quadro que se
projetava na tela do aparelho de advertência e vigilância.
Um estranho!
Estava de pé na pequena área interna existente no
meio do complexo quadrático formado pela casa de
campo. Usava uma vestimenta que Monterny jamais
havia visto e trazia na mão uma arma grosseira, de cano
curto.
O Supercrânio viu que o homem olhava em torno de
si, como se estivesse procurando alguma coisa.
Um instante depois desapareceu.
Mais um instante, e voltou a aparecer em outro lugar.
Não! Não era o mesmo homem. Era mais baixo e
tinha ombros mais largos.
Monterny sentiu que suas mãos tremiam.
Dois homens haviam conseguido burlar todos os
dispositivos de vigilância, penetrando na área interna, e,
além disso, sabiam se tornar invisíveis à vontade.
Monterny deu o alarma.
Mas os dois homens haviam desaparecido e por
enquanto não voltaram a aparecer.
* * *
As coisas se passaram conforme Nyssen previra. Foi
introduzido na casa de campo por uma porta lateral. Um
dos homens que o vigiavam ficou ao seu lado e mandou
que esperasse, enquanto outro seguiu pelo corredor e
desapareceu numa sala.
Voltou dentro de um minuto; parecia contrariado.
— No momento não tem tempo — disse ao
companheiro. — Leve-o para baixo.
Um elevador levou Nyssen para baixo da terra.
Pareceu-lhe que a sala em que foi enfiado correspondia à
descrição de Tako Kakuta. Mas não sabia que embaixo
daquela casa de campo havia trinta salas iguais a esta.
Foi deixado só. A sala só tinha uma saída, fechada
por uma porta de aço tão robusta que, nem por um
instante, Nyssen pensou em movê-la segundo suas
conveniências.
Sentou na única cadeira que havia naquela sala,
apoiou a cabeça nas mãos, colocou os cotovelos sobre a
única mesa e, para as objetivas de televisão que supunha
existirem nas paredes, fez o papel de um homem
totalmente desesperado.
Na verdade refletia friamente, esculpindo os últimos
detalhes de seu plano. O que o inquietava era o fato de
que seus cálculos tinham de incluir um fator
imponderável: a vigilância do inimigo.
Seu plano só poderia ser coroado de êxito se todos
naquela casa, até a última das sentinelas, tivessem sua
atenção desviada ao máximo pelos acontecimentos que
se desenrolassem no exterior da mesma.
* * *
Novos estranhos apareceram. Todos envergavam
aquele traje estranho e possuíam a capacidade de se
tornarem invisíveis.
Monterny não tinha a menor dúvida de que
penetravam na área interna, vindos pelo ar.
Por alguns minutos teve a impressão de que os
estranhos tinham vindo para libertar o prisioneiro. Mas
essa impressão desapareceu quando por uma fração de
segundo descobriu um dos estranhos no telhado da casa,
próximo à antena pela qual costumavam serem irradiadas
as mensagens hipnóticas.
O Supercrânio sentiu-se alarmado.
Destacou quinze homens do contingente de trinta que
guarnecia a base para proteger a antena colocada no
telhado da casa. Mandou que outros dez patrulhassem a
área adjacente, instruindo-os para que atirassem
imediatamente e com todas as armas disponíveis contra
qualquer coisa que se movesse pelo ar.
Depois de ter feito tudo que estava ao seu alcance
para proteger a base, preparou-se para uma fuga
precipitada. Sabia perfeitamente que se encontrava numa
verdadeira armadilha. Se Rhodan — e o Supercrânio não
teve a menor dúvida de que os invisíveis eram homens
de Rhodan — não valorizava o prisioneiro tanto quanto
ele, Monterny acreditara no primeiro momento, poderia
fazer a qualquer momento com que sua tropa-fantasma
destruísse a casa por meio de uma explosão.
Depois dos primeiros acontecimentos não parecia
muito provável que ele o fizesse.
Mas Monterny era um homem que costumava tomar
suas precauções em tempo. Embaixo da casa, num
subterrâneo ao qual só ele tinha acesso, começava um
corredor que só voltava à superfície a um quilômetro do
lugar em que se encontrava.
E um quilômetro, segundo os cálculos do
Supercrânio, bastava para colocá-lo fora do alcance de
Rhodan.
* * *
Exatamente uma hora depois de ter sido preso,
Nyssen começou a martelar a porta com toda força dos
seus punhos. Martelou-a durante quinze minutos; depois
ouviu passos rastejantes.
Continuou a martelar até que a porta se abriu. Só
então foi para o lado e se abaixou.
O vigia trazia a pistola na mão; mas Nyssen não veio
da direção que ele supunha.
A borda da mão de Nyssen atingiu o alvo com a
precisão de um centímetro. O vigia soltou um grito
selvagem, largou a arma e rodopiou.
Seus movimentos eram lentos em comparação com
os de Nyssen. Um soco bem dado atirou-o sobre o chão
de concreto.
Ficou inconsciente por um minuto. Nesse tempo
Nyssen pegou a arma e certificou-se de que, no corredor,
não havia nada que pudesse perturbá-lo.
— Preste atenção! — disse ao vigia. — Preste muita
atenção! Você sabe perfeitamente que me encontro numa
situação terrível. Preciso de você para sair daqui. Não
faço a menor questão de ser capturado mais uma vez.
Gostaria disso tão pouco que o matarei assim que fizer
qualquer coisa de que eu não goste. Entendeu?
O vigia era um japonês. Respondeu com um
apressado aceno da cabeça. Nyssen tinha certeza de que
apenas se encontrava sob uma influência pós-hipnótica
relativamente débil.
161
— Há outro prisioneiro por aqui — afirmou Nyssen.
— Onde está?
O vigia fez um gesto desolado em direção ao
corredor.
— Quantos vigias existem aqui embaixo?
— Cinco.
— Leve-me ao outro prisioneiro, mas de tal maneira
que não nos encontremos com nenhum dos outros vigias.
Por alguns minutos o japonês levou Nyssen de um
canto para outro.
Finalmente encontraram Crest.
O arcônida levou algum tempo para compreender a
sorte que estava tendo. Só com grande dificuldade
Nyssen conseguiu expor seus planos.
— Ainda falta muito para estarmos em segurança —
disse Nyssen em tom decidido. — O desconhecido ainda
mantém firmemente a sua base. Temos de pôr a mão no
radiador de nêutrons que me tiraram.
Finalmente Crest compreendeu. E concordou com
todas as sugestões de Nyssen. Gritou com a porta aberta
a toda a força de seus pulmões, e o vigia, que acorreu
para ver qual era a origem de tamanho barulho, foi
abatido por Nyssen, à traição, é verdade, mas em
compensação sem a menor resistência.
Passaram sorrateiramente junto aos outros três vigias.
Segurando a arma de que se haviam apoderado, Crest
ficou de sentinela junto ao elevador, enquanto Nyssen e
o japonês subiram. O próprio japonês deu-lhe uma
indicação sobre o lugar em que poderia encontrar a arma
neutrônica. Era na mesma sala em que um dos
sequestradores havia desaparecido por um instante, logo
à sua chegada.
Embora não estivesse informado sobre o número de
pessoas que se encontravam naquela casa, Nyssen tentou
reaver sua arma e foi bem sucedido. Acompanhado de
seu ex-vigilante, retornou ao subterrâneo.
Uma vez lá, manipulou a arma, no que foi apoiado
pelas indicações de Crest, e depositou-a num lugar que
julgava suficientemente eficaz e seguro.
Finalmente Crest e Nyssen puseram-se em
movimento.
* * *
Poucos minutos depois, Rhodan e seus homens
avançaram sem disfarce para a casa de campo, vindos de
duas direções. O ataque do oeste foi iniciado cerca de
dois minutos antes do que vinha do sul. Face a isso a
casa ficou praticamente desguarnecida do lado do sul.
Nyssen e Crest aproveitaram o tempo. Correram para
junto dos homens de Rhodan, quando os mesmos se
encontravam a uns cem metros da casa.
Rhodan foi avisado e imediatamente mandou
suspender o ataque. Um dos homens de seu grupo,
equipado de microfone e alto-falante, penetrou na área
interna da casa e explicou em volume tão alto que seria
ouvido por todos, inclusive pelos vigias que se
encontravam no subterrâneo:
— A casa deve ser evacuada imediatamente. Dentro
de cinco minutos explodirá uma bomba que destruirá
toda vida num raio de cem metros.
O efeito do aviso foi nulo. Os que se encontravam no
interior da casa acreditavam que se tratasse de um
truque. Dirigiram-se ao Supercrânio em busca de
conselho, mas o mesmo não quis falar com ninguém.
Esperaram. Quando os cinco minutos se passaram
sem que nada tivesse acontecido, todo mundo exultou.
A radiação neutrônica não pode ser vista, ouvida ou
cheirada. Nem mesmo um fluxo muito reduzido.
Os homens da equipe do Supercrânio só perceberam
que a bomba havia explodido quando de um instante para
outro sua pele tornou-se vermelha e começou a arder.
Logo após perderam a visão. Tomados de pânico, saíram
correndo pelos corredores e procuraram sair da casa. Mas
era tarde.
Apenas dois vigias de prisioneiros que tinham
atendido ao aviso escaparam à catástrofe.
* * *
As autoridades japonesas só tiveram sua atenção
despertada para os acontecimentos estranhos que se
desenrolaram ao norte da grande via de acesso quando
alguém constatou um nível extraordinário de
radiatividade naquela área.
Isso aconteceu cinco horas depois da detonação da
bomba. Àquela hora Rhodan já havia saído do país e
retornado a Terrânia, acompanhado dos dois prisioneiros
e da experiência que as ocorrências lhe renderam.
* * *
A conferência que segue foi realizada dois dias
depois:
— Não alcançamos um êxito tão grande como
acreditávamos — declarou Rhodan em tom sério. —
Pelo que conseguimos saber dos dois prisioneiros e do
proprietário da tipografia de Osaka, em que também
conseguimos pôr a mão, o homem mais importante
escapou. Nenhum dos prisioneiros jamais chegou a ver o
grande desconhecido, nem de frente, nem numa tela de
imagem. Entre os mortos que encontramos naquela casa
havia um único confidente, com que tratava frente a
frente. Mas um morto não pode nos revelar mais nada.
Encontramos o corredor pelo qual o homem escapou.
Mas perdemos sua pista.
“O material bastante escasso que encontramos
naquela casa de campo praticamente não nos diz nada
sobre os planos, as atividades e as possibilidades do
inimigo. Mesmo que os homens que a teimosia levou à
morte em Osaka constituíssem toda sua equipe, não lhe
será difícil, face aos recursos de que dispõe, conseguir
outros elementos. Portanto, não nos devemos iludir com
a ideia de que a guerra já está decidida. Por enquanto
nem sequer conseguimos localizar os cientistas
sequestrados em Terrânia. Até agora sabemos de três
coisas:
“Além da equipe propriamente dita, que no momento
deixou de existir, o inimigo possui um número
desconhecido de colaboradores. Isso custou a vida de
Michikai, o japonês contratado por Nyssen, e por pouco
não custa a do próprio Nyssen. Ainda sabemos como
funciona a transmissão mecânica hipnótica dos
comandos do desconhecido. Quando recorre ao
videofone para estabelecer contato com os elementos de
sua equipe, o que importa não são as palavras faladas,
mas os modelos de onda que surgem na tela. É bem
verdade que não se sabe se continuará a recorrer a esse
162
meio de comunicação, quando souber que já
descobrimos seu truque.
“Por fim, sabemos que a liquidação da base japonesa
deve representar um sensível fracasso para o
desconhecido. Embora não tenhamos conseguido muito,
estragamos seus planos. Existe certa probabilidade de
que fique nervoso e cometa nos próximos dias alguns
erros que nos permitam chegar mais perto dele.”
* * *
Perry Rhodan em pessoa levou Betty Toufry ao avião
que a levaria para Nova Iorque. Rhodan falava baixo,
mas em tom insistente, e Betty era uma ouvinte muito
atenta.
— Existe muita coisa que você não compreenderá
Betty — disse Rhodan. — Ao menos metade do que
pretendemos fazer depende de que a General Cosmic
Company continue viva. Você vai a Nova Iorque a fim
de proteger Mr. Adams de qualquer inimigo que dele
queira se aproximar às ocultas. Você terá de ficar com os
olhos bem abertos, Betty!
Betty parou e lançou um olhar sério para Rhodan.
— Ficarei de olhos bem abertos.
Poucos minutos depois Betty estava a caminho de
Nova Iorque.
Naquela mesma noite o capitão Farina transmitiu
uma mensagem de Salt Lake City. Informou que ainda
não havia encontrado qualquer pista. Disse textualmente:
— Se não tivesse visto o cadáver de Richman com
meus próprios olhos, não acreditaria que alguém o
assassinou. É o crime perfeito, Mr. Rhodan. Nenhuma
pista, absolutamente nada.
Face a isso, as pesquisas em torno do assassínio de
Richman foram definitivamente suspensas.
Quando Rhodan concluiu a palestra com Farina,
Thora entrou na sala. Deixou que a porta de enrolar
baixasse silenciosamente atrás dela e não interrompeu
Rhodan quando ele lançou um olhar pensativo sobre as
luzes coloridas do grande painel do telecomunicador.
De início pensou que não tivesse notado sua
presença. Mas depois de algum tempo disse de repente:
— Ainda temos muita coisa a fazer, Thora. Já pensou
nisso?
Thora aproximou-se.
— Sim; posso imaginar — respondeu.
Rhodan olhou-a.
— Já notou que existe uma pergunta para a qual
ainda não encontramos nem um princípio de resposta?
Thora sorriu.
— É a explosão no bloco G, não é?
— Exatamente. Podemos imaginar de que forma
foram subtraídos os destróieres. Basta um teleportador
dotado da capacidade do que sequestrou Crest. Pode
introduzir seus cúmplices no território da Terceira
Potência, um por um ou talvez ao mesmo tempo, e fazê-
los descer na sala de comando das naves. Quanto ao
resto, não haverá mais problema. Mas ainda não sabemos
como alguém pode provocar uma explosão num pavilhão
de montagem sem que nele se encontre um miligrama de
material nuclear.
Houve uma ligeira pausa.
— Será que acredita que um homem como você
levará muito tempo para descobrir a explicação? —
perguntou Thora.
Rhodan encarou-a; parecia perplexo. Procurou um
sinal de ironia em seu rosto; mas não o encontrou.
— Se isso foi um elogio — disse depois de algum
tempo, com um sorriso — foi um elogio muito gentil.
Na época em que a Terceira Potência foi fundada, Perry Rhodan mandou que seus
captores de mutantes’ corressem mundo para lhe trazer os elementos com que pudesse criar
seu Exército de Mutantes.
O Supercrânio teve a mesma ideia. Em silêncio montou sua organização secreta, e agora
achava que ela já era suficientemente forte para enfrentar a Terceira Potência. E é assim que
se trava o Duelo de Mutantes, título do próximo volume da série Perry Rhodan.
163
Nº 26/27/28/29/30
De K. H. Scheer Clark Darlton Kurt Mahr W. W. Shols
Os primeiros ataques do Supercrânio foram repelidos. A Terceira
Potência provou sua solidez.
Mas o pavoroso inimigo continua de posse de seu quartel-general, de
onde pode lançar novos ataques contra a Terceira Potência ou outros
Estados. A tarefa mais urgente de Perry Rhodan consiste em localizar essa
central e arrebatar as armas do Supercrânio, pois só assim conseguirá
evitar o caos.
Perry Rhodan coloca em campo os seus mutantes, que se defrontam
com inimigos que nada lhes ficam a dever em capacidade. O Duelo de
Mutantes é deflagrado.
Os Saltadores – Volume 6
top related