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“Quem tiver visto entre nós algumas escolas, se horrorisará por certo do nosso atraso”:
a educação na perspectiva do general Abreu e Lima no periódico A Barca de São Pedro
Paulo Montini de Assis Souza Júnior1
paulomontini93@hotmail.com
(Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Federal de Pernambuco)
“[...] portanto a BARCA DE S. PEDRO será um periodico popular e politico para
tratar tão somente das necessidades do povo, da sua moralidade, e civilisação”, lê-se na
primeira edição de A Barca de São Pedro, do dia 25 de maio, periódico escrito pelo general
José Ignácio de Abreu e Lima e publicado no Recife de meados de 1848. Ao longo de seis
meses, dentre maio e outubro daquele ano, a Typographia Imparcial de Caminha colocaria,
nas ruas da capital pernambucana, vinte edições daquele “Periódico [que] pertence á nova
Sociedade Imperial Pernambucana”2 (grifos do autor) que optava pelo objetivo de
“sustentar os principios liberaes professados pelo partido nacional praieiro” e “cujos
principios são: - Monarquia – Integridade do Imperio – Constituição – e Reformas na
administração geral e provincial pelos meios que a mesma Constituição offerece”3. Ora, entre
assuntos abordados que partiam desde o debate sobre a Constituição imperial, o cenário
político pernambucano às vésperas da chamada Insurreição Praieira, a centralização do poder
pela Corte carioca e até as notícias das insipientes revoltas liberais no continente europeu –
naquela série de eventos posteriormente conhecidos como Primavera dos Povos –, outro
assunto mereceu maior atenção por parte do já experiente redator: a educação.
1 Trabalho financiado pelo CNPq. O autor agradece ao PPGH-UFPE e ao CNPq pelo apoio a confecção deste
trabalho. 2 Comentada apenas na edição de número 09, datada de 29 de julho, esta é apresentada enquanto “uma
Sociedade, que tem apenas dois mezes de existencia”, mas “já he [de] grande vantagem contar somente nesta
cidade [do Recife] perto de mil socios nos differentes círculos, em que ella se divide”. A mesma edição ainda
traz em sequência uma seção contendo os “Estatutos da Sociedade Imperial Pernambucana” (grifos do autor),
assinada na data de 19 de maio de 1848 e cujos 16 artigos, divididos em 4 títulos, trazem os objetivos da
sociedade (o primeiro presente no cabeçalho de todas as edições da Barca) e as regras para admissão, além de
orientações para a formação de novas “Comarcas” ao longo do estado de Pernambuco. 3 Além deste objetivo intencionado para com a publicação do jornal, exatamente a íntegra do artigo 1 da
Sociedade Imperial Pernambucana, os cabeçalhos de todas as edições da Barca também carregam o subtítulo,
irônico segundo Vamireh Chacon em sua abordagem deste documento, de Periodico Politico e talvez da
Opposição, além do lema maçônico Deus meumque jus! (CHACON, 2007: p. 287).
A produção de um periódico voltado às análises políticas como A Barca, entretanto,
não era uma originalidade para Abreu e Lima. Intelectual de intensa e plural bibliografia4,
com produções voltadas desde temáticas religiosas até aos estudos políticos, o autor de obras
como Bosquejo histórico, político e literário do Império do Brasil (1835) e O Socialismo
(1855) já havia publicado, anos antes, dois periódicos voltados à análise política da então
Regência que governava o Estado brasileiro: em A Torre de Babel, jornal publicado na capital
imperial e de apenas sete edições produzido entre janeiro e março de 1833, Abreu e Lima já
afirmava, na segunda edição datada de 13 de janeiro, sobre o cenário político do país que
“sejamos francos; fallemos com clareza e sem azedume; o paiz está chegando ao estado de
crize”, cenário semelhante lido em outro periódico publicado pelo general naquele mesmo
ano, desta vez em vinte edições (estas com duração de fevereiro a dezembro) no Rio de
Janeiro, o Arca de Noé, conforme podemos ler na segunda edição, datada de 23 de fevereiro,
que
O Brasil appresenta huma crise assustadora, e que o tem suspenso nas bordas
do abismo em que deverá infalivelmente cahir, se por ventura não se
congraçarem todos os animos para salvar a Patria. Os resultados funestos,
que se devia esperar d’esse luctuoso 7 d’Abril, origem de todos os nossos
males, tem de pezar ainda sobre a cabeça de milhares d’entes, e a
conflagração geral terá de succeder-se, se a ambição, o egoismo, e não o
verdadeiro amor da Patria, continuarem a presidir os nossos destinos.
Por suposto, compartilhamos, para este trabalho, do pensamento de que a produção de
Abreu e Lima condiz com o cenário intelectual latino-americano de início do século XIX no
qual muito da produção destes pensadores, datada dentro deste recorte temporal, trata da
formação dos Estados nacionais ao longo do continente como imbuídos de uma certa
“pendência”. Neste rumo, na historiografia brasileira dialogamos com autores como Maria
Lígia Prado e Claudia Wasserman, estudiosas renomadas que enriquecem a produção
histórica nacional com produções voltadas para tal campo de estudos; sobre tal produção
intelectual sul-americana do século XIX, privilegiando uma abordagem sobre o pensar da
formação dos novos Estados pelo continente, Wasserman diz que
4 Para o conceito de intelectual, concordamos com Norberto Bobbio quando este diz que “hoje, chamam-se
intelectuais aqueles que em outros tempos foram chamados de sábios, doutos, philosophes, literatos, gens de
lettre, ou mais simplesmente escritores” (BOBBIO, 1997: p. 11).
Como grande parte da historiografia latino-americana inspira-se no modelo
europeu de formação do Estado nacional, os autores, em geral, encontraram
uma grande dificuldade em identificar os ordenamentos pós-revolucionários
como partes do processo de organização político-administrativa da América
Latina. Frequentemente, tratam da formação do Estado nacional latino-
americano como um caso tão específico e diverso dos modelos europeus que
não conseguem ultrapassar a verificação de deformações ou incompletudes
em seu desenvolvimento (WASSERMAN, 2010: p. 177).
A adoção de um padrão estrangeiro (no caso, os exemplos de formação dos Estados
nacionais europeus, como o inglês e o francês, e até em certos casos o estadunidense) pelos
intelectuais latino-americanos5, além do pensamento6 que versava sobre as incompletudes
e/ou desvios no processo de formação, acabou por acarretar na concepção da existência de
“inimigos da nação, responsáveis pela imposição de obstáculos ao processo de formação
nacional, responsáveis pela incompletude do processo, pelos desvios e pelas deformações”
(WASSERMAN, 2011: p. 97).
Partimos aqui também da proposta do mexicano Leopoldo Zea de se pensar tais
pensamentos, “con su peculiar interpretación filosófica”, a partir dos meandros de uma
história do pensamento latino-americano, denotando toda sua heterogeneidade, suas
aproximações, distâncias e singularidades; aqui abordaremos as ideias de Abreu e Lima sobre
a educação na Barca em diálogo, por vezes, com demais pensadores e intelectuais latino-
americanos contemporâneos do general, com produções sobre a mesma temática datadas
próximas da publicação do periódico recifense; não esqueçamos que, moldados pelo
cientificismo de caráter eurocêntrico – já em sua forma clássica ali nos oitocentos e como
“modelo de mundo do colonizador”, conforme escrito por James Blaut7 (BLAUT, 1993: p.
5 No número 4 de A Barca, 9 de junho, lê-se que, como forma de fazer “marchar a prosperidade” por entre todas
as províncias do Império, o Estado brasileiro deveria inspirar-se no modelo estadunidense de divisão política;
com “esta subdivisão acabar-se-hia o vosso receio, ou o vosso artificio de demorar a prosperidade das grandes
provincias, porque as pequenas não podem receber as mesmas reformas ou não podem marchar com a mesma
rapidez”. E qual o Estado modelo para Abreu e Lima? “Vêde bem que a Capital do Estado de Nova York, [...]
não está na cidade deste nome, mas no centro do Rio Hudson; que a Capital do Estado da Pensilvania não está
em Philadelphia, mas no centro, e assim quase todos os Estados, que formão a Republica Norte-americana”. 6 Aqui nos utilizamos de “pensamento” enquanto categoria seguindo a reflexão de Leopoldo Zea em Filosofía de
la historia americana, no qual se argumenta que, a escolha pela utilização de tal categoria ao invés de “filosofia”
é porque “ya que se considera filosófico lo supuestamente original y no, simplesmente, lo que parece ser sólo
una copia o adaptación de filosofías extrañas” (ZEA, 1978: p. 16). 7 Apesar de seu surgimento nos séculos XVI e XVII na Europa Ocidental, segundo o autor. Compartilhamos da
leitura de Blaut sobre o Eurocentrismo quando diz que este é um conjunto de crenças e argumentos sobre a
realidade empírica, aceitos enquanto verdadeiros conforme suas próprias proposições sustentadas por “fatos”;
para Blaut, o Eurocentrismo enquanto conjunto de crenças desenvolveu-se em uma “super-teoria”, tornando-se o
18) –, tais intelectuais viam com pessimismo o futuro do continente: fatores raciais e naturais
impunham-se enquanto obstáculos frente às causas dos nascentes países da antiga América
hispânica e lusitana8. Assim, nestas produções, “o ódio a si mesmo e a imitação européia não
eram incomuns” (DOYLE; PAMPLONA, 2008: p. 22).
A busca de uma identidade nacional e das origens da nação relaciona-se às
dificuldades de uma construção “nacional”, sendo utilizada muitas vezes como uma
explicação razoável para um futuro possivelmente incerto. O respaldo fornecido por
intelectuais e políticos, ao fornecerem “provas” sustentando identidades para as novas nações,
acabaram por conferir ao passado identidades antes não existentes9; aqui, lembramos que tais
sujeitos, mesmo sem vínculos a academia, transformaram tradições em objeto do passado,
partindo de certo lugar social, de práticas científicas e de uma escrita (CERTEAU, 2000: pp.
55-56).
Desta maneira, um sujeito como Abreu e Lima, de “várias vidas em seus 75 anos de
existência” e múltiplas identidades construídas acerca de si (MATTOS, 2007: p. 10), com
amplas produções de teor político-histórico que se desdobram pelas temáticas mais diversas
insere-se nesse cenário: ao longo dos anos entre 1794 e 1869, o aluno da Real Academia
Militar e filho do Padre Roma, revolucionário envolvido na Insurreição de 1817, combateu
pelos Vice-Reinos espanhóis da América lutando pelas independências – ganhando ali a
alcunha de “General de Bolívar”, que carregaria pela vida; foi prisioneiro político, sócio do
“modelo de mundo do colonizador”, e uma de suas formas, continua, é aquela variante que divide o mundo em
zonas, cada qual representando um nível de modernidade, civilização ou desenvolvimento – inspirada, em larga
escala, naquela interpretação hegeliana da filosofia da história e que se fez popular enquanto argumento
filosófico e científico “moderno” dentre a maioria dos pensadores e intelectuais americanos do século XIX
(1993: p. 14). 8 Lembremos como a escolha de padrões europeus, seja de formação dos Estados nacionais, seja de uma filosofia
da história, no século XIX por parte de pensadores de todas as Américas, do Norte ao Sul, acabou por gerar um
anacronismo na medida em que tais projetos, ditos e abordados enquanto “civilizadores”, se constituíam
enquanto “extraño a la experiencia de los hombres que pretenden hacerlo suyo”, em uma “imitación irracional”,
para Zea, que ocasionará uma “autodenigración, por considerar que lo proprio [a experiência americana] era
inferior a lo que quería y debía ser” (1978: p. 37). 9 Concordamos aqui com Don H. Doyle e Marco Pamplona quando estes escrevem que tais intelectuais, “uma
vez formados os Estados-nação americanos, [...] trataram de criar uma identidade nacional unificadora”,
escrevendo “histórias heroicas” e procurando a “comprovação de uma cultura nacional distinta” na literatura,
música ou culinária (DOYLE; PAMPLONA, 2008, p. 24); a título de exemplo, Abreu e Lima escreve seu
Compendio da Historia do Brasil (1843) dedicando-o ao “uso da mocidade Brasileira” e enquanto esforço para
preparar “os elementos de uma litteratura propriamente brasileira”, conforme advertência do próprio autor no
primeiro tomo da obra (ABREU E LIMA, 1843, p. vii-viii).
IHGB e protagonista, junto de Francisco Adolpho de Varnhagen, da primeira polêmica de
caráter historiográfico daquela instituição10. Uma vida de inúmeras experiências, mas em sua
grande maioria voltadas à um objetivo semelhante: compreender a nova nação que surgia ali
na antiga colônia lusitana da América do Sul.
A Barca de São Pedro não foge desta premissa. Produzida e publicada em meio às
turbulências políticas vivenciadas na província de Pernambuco no ano de 1848, cenário da
disputa entre “guabirus” e “praieiros” pelo poder provincial e cuja oposição entre os dois
projetos terminaria na sangrenta guerra civil celebrizada como Revolta, Insurreição ou
Revolução Praieira (MARSON, 2013: p. 241)11, o “jornal, de pequeno formato e efêmera
duração” produzido por Abreu e Lima12, partidário da Praia assumido, pode ser interpretado
como um porta-voz da oposição praieira no que se refere ao governo “guabiru”, conservador
local; em sua primeira edição, A Barca traz que
Os nossos contrarios não tem politica, nem principios, nem convicções; já o
provamos demasiado pelo Diario Novo. Ahi estão os seus órgãos, o Lidador,
o Diario de Pernambuco, e o Nazareno para justificar esta nossa proposição;
monarquistas agora, amanhãa [sic] republicanos, a sua linguagem
incoherente, inconnexa e desalinhada prova que elles não tem uma só
convicção profunda.
Ora, o Diario Novo ao qual a Barca se refere foi, segundo os estudos de Izabela
Marson, “um diário, [...] que dirigia a atuação de outras folhas menores que o acompanhavam
10 Francisco Varnhagen, o “Heródoto do Brasil” nas palavras de José Carlos Reis, foi na década de 1850 o autor
da História geral do Brasil, obra esta “que refletia uma preocupação nova no Brasil com a História, com a
documentação sobre o passado brasileiro, que o recém-fundado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
representava” (REIS, 2007, pp. 23-24). Sobre a polêmica entre Varnhagen e Abreu e Lima, iniciada a partir de
uma crítica do primeiro ao Compendio escrito pelo segundo, que vinha sendo até então utilizada enquanto livro
didático da disciplina de História no Colégio Dom Pedro II, indicamos o artigo de Pedro Afonso Cristovão dos
Santos, Compilação e plágio: Abreu e Lima e Melo Morais lidos no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
publicado na edição de número 13 da revista História da Historiografia. Disponível em:
<https:www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/639> Acesso em: 10 de jul. 2018. 11 A década de 1840 apresentou-se enquanto um período de significativas mudanças no jogo político-partidário
pernambucano: políticos de diverso matiz, liberais ou conservadores, descontentes com os rumos da
administração provincial gerida desde 1837 pelos conservadores, decidiram fundar um novo partido, o Partido
Nacional de Pernambuco, que se tornaria mais conhecido como Partido da Praia ou Partido Praieiro. Ao longo
desta década, “praieiros” e “guabirus” – este último sendo a alcunha dos conservadores –, protagonizariam
acirrada disputa por cargos de poder e oportunidades geridos pelo Estado, cujo clímax dar-se-ia no conflito civil
iniciado em 1848 e que oporia liberais à conservadores, no qual estes últimos contariam com o apoio do Exército
(2013: p. 271). 12 Em seu trabalho, biográfico e que se tornou referência aos que pesquisam temáticas associadas a este
“quarante-huitard nordestino”, nas palavras do próprio autor, Chacon pouco se detém na análise do periódico,
dedicando poucas linhas ao conteúdo da Barca e ressaltando, apenas, como o periódico expunha uma admiração
do Abreu e Lima ao “federalismo e o ‘self-government’” estadunidense (2007: p. 287).
no trabalho sem trégua de criticar e denegrir a administração” governista (MARSON, 1981: p.
51); percebe-se o quanto a imprensa serviu de campo de batalha, entre palavras, tanto para os
adeptos do Partido Nacional quanto para os “guabirus” do Partido Conservador13. Deste
modo, utilizando o periódico A Barca de São Pedro enquanto objeto de pesquisa histórica14,
estabeleceremos a seguinte problemática: como tal jornal abordou, ao longo de seus vinte
números, a educação? Como Abreu e Lima pensou tal temática a partir de um jornal
eminentemente político?
A temática educacional é abordada ao longo de vários números da Barca e em
diferentes sessões do periódico; na edição de 9 de junho, número 4, em meio as críticas
presentes à “divisão territorial” temos o seguinte trecho:
Estabelecei a educação primaria debaixo das condições dos povos mais
civilisados, isto é, uniformidade de methodo e de doutrina; estabelecei nos
grandes Departamentos Colegios, ou Liceos, ou Gymnasios para a instrucção
completa secundaria, como na Prussia ou na Toscana.
A educação, primária neste caso, já adquire um importante significado para o redator
da Barca. O estabelecimento do modelo de divisão territorial implantado pelo Império, àquele
período, mostrava-se à perspectiva de Abreu e Lima “decadente”: reformas internas seriam
necessárias em diversos campos na perspectiva do general, e a educação, certamente, incluía-
se neste extenso projeto apresentado ao longo do periódico. “Nada ha tão irregular e
monstruoso como as divisões existentes, um dos grandes males de toda a nossa administração
interna”, chegaria a escrever neste mesmo número.
Mais garantias às províncias também eram cobradas pelo general ao Estado imperial;
Abreu e Lima via na, centralização de poderes por parte da Corte carioca, “uma loucura
13 Estes, por sua vez, se utilizavam de órgãos como o Diario de Pernambuco, Lidador e Nazareno, como citados
por Abreu e Lima neste primeiro número da Barca, além da revista O Progresso, esta última dirigida pelo
professor e jornalista conservador Antônio Pedro de Figueiredo (1981: p. 23). Sobre o fim do periódico Lidador,
e como exemplo das tensões entre os dois grupos, a Barca de número 12, 21 de agosto, traz emprestado do
Diario Novo o seguinte relato: “Ainda nenhum periodico, [...] deo tantas provas da estupenda immoralidade, e da
ignorancia crassa de seus redactores: a calumnia era o seu fundamento, a falsidade e a mentira formavão o corpo
do edificio, que desabou carcomido por seus proprios elementos. Ainda morrendo, a calumnia e a mentira fizerão
o seu epitafio”. 14 Aqui partimos do pressuposto de Maria Helena Capelato e Maria Prado quando afirmam que “a escolha de um
jornal como objeto de estudo justifica-se por entender-se a imprensa fundamentalmente como instrumento de
manipulação de interesses e de intervenção na vida social”, negando-se “aquelas perspectivas que a tomam como
mero ‘veículo de informações’, transmissor imparcial e neutro dos acontecimentos, nível isolado da realidade
político-social na qual se insere” (CAPELATO; PRADO, 1980: p. 19).
rematada, porque o Imperio poderia morrer de uma apoplexia fulminante”15; “he um erro
perigoso a concentração absoluta do poder na capital”, completaria na primeira edição do
periódico.
O temor de mais uma guerra civil, como as ocorridas há tão pouco tempo ainda no
período das Regências, tais como a Farroupilha e a Cabanagem, também era utilizado
enquanto argumento na Barca para uma melhor redistribuição do poder às províncias16; na
seção “Centralisação do Poder – Convem ao Governo a centralisação do poder na Capital?
Convem ao paiz semelhante systema?”, presente na edição de número 2 da Barca, a crítica ao
novo imperador, Pedro II, e sua prática de centralização política é concisa:
Entretanto todos nos enganamos ácerca do Regente; a ideia anticipada de
suas virtudes produzira esses bons effeitos, malogrados logo que se dissipou
a ilusão. Tres annos bastarão para desenganar o paiz; o home [sic] tinha seus
laivos de ambição. Centralisando a administração sem criterio nem
prudencia, acabou por um motim ou assuada com uma grande maioria em
ambas as Camaras. Quem considerar o como se fez a Maioridade, verdadeira
revolução na Capital, que destruiu um governo legal em duas horas, verá que
a concentração administrativa não é nem pode ser garantida do poder.
Todos estes factos, de hontem pode dizer-se, provão que a unidade
administrativa não é a unidade nacional; que a agglomeração do poder na
capital debilita as provincias, e que essa cabeça plethorica pode sucumbir de
um dia para outro por effeito de uma apoplexia fulminante (grifo do autor).
15 A necessidade de uma reforma do Império ocupa boa parte de todas as edições da Barca. O modelo político
estadunidense é citado enquanto exemplo ideal para o Estado brasileiro, e foco constante dos argumentos de
Abreu e Lima no periódico. A ideia de um modelo federativo, entretanto, é sempre rechaçada pelo general, como
lê-se ainda no número 1 da Barca: “Quando queremos ou pedimos mais amplidão de garantias para as
provincias, não queremos nem pedimos federação, porque isto seria um solemne disparate (grifos do autor).
Qualquer concessão ás provincias seria sempre feita em materia de administração. Para o nosso progresso moral
e material bastão-nos as garantias, que a nossa constituição offerece; dem-no-las, e estamos satisfeitos (grifos
nossos)”. 24 anos antes desta produção de Abreu e Lima eclodiu, em algumas das províncias do Norte, a
Confederação do Equador, cujos propósitos partiam justamente da cobrança de um governo federativo e de uma
maior autonomia provincial (MELLO: 2014), e tais “ideias de federação” ainda haviam levado o Brasil à “guerra
civil nas provincias, as desordens, a anarquia”, conforme se pode ler no número 2, de 30 de maio, da Barca. 16 Na edição de número 4 da Barca, Abreu e Lima chega a propor uma divisão política em Departamentos:
“reuni debaixo de um só governo as provincias das Alagoas, Pernambuco e Parahiba, e dos sertões de todas ellas
formai outra provincia, e assim tereis 4 provincias; [...] dai á cada provincia uma autoridade civil e politica [...], e
a todo o Departamento um Prefeito ou Presidente”. Neste cenário projetado, a vinda de “homens habilitados para
o governo civil e politico” seria de necessidade para o funcionamento de tais modelos pensados. Mas, de onde
viriam estes homens? Quais deveriam ser suas formações? “Chamai homens abalisados da Europa para virem
crear um curso de Direito administrativo, onde, alem das materias communs ao curso de direito civil, se ensinem
tão bem economia politica, statistica, arithmetica social, diplomatica, e acrescentai igualmente um curso de
sciencias naturaes, principalmente Phytologia e Montanistica. Com homens desta arte habilitados podereis
formar uma carreira especial para administradores, começando por Secretarios das provincias e departamentos,
Sub-prefeitos e Prefeitos”, conclui.
Assevera, ao fim da seção, que
O Brasil é muito estenso para o reduzirdes ao pequeno recinto do Rio de
Janeiro. Passei o que quiserdes, despojai as provincias de suas prerrogativas,
do seu dinheiro, do suor do seu povo; chamai á corte toda a riquesa, todo o
poder, todo o prestigio, ainda assim nunca conseguireis prostrar a
nacionalidade brasileira ante o idolo do Pão d’assucar. [...]
Essa centralisação no Rio de Janeiro é uma maquina de revoluções, ao passo
que as provincias abatidas, isoladas, sem espirito proprio nem garantias,
bebendo as inspirações da côrte, receberão com marcas de abjecta submissão
todas as mudanças, que alli se fizerem. [...] Deos permitta que nos
enganemos, mas parece-nos que, no estado de odio e de exacerbação, em que
se achão as facções na côrte, será quasi inevitavel uma explosão; aquelles
que estiverem sentados a caldeira, correm o risco de voar pelos ares.
A unidade política, “a nacionalidade brasileira” nas palavras do redator da Barca,
certificava também o “estado de atraso e de ignorancia de uma grande parte da população”.
Neste sentido, na coluna “Basta isto?” do número 5, 17 de junho, a necessidade de uma “nova
educação” é cobrada, já que pra seu redator é
Mister confessar, mao grado nosso, a falta de instrucção, ainda a mais trivial
na Europa, entre o nosso povo; de proposito tem-se aviltado a instrucção
primaria, reduzindo-a a um genero de especulação, sem nos importarmos
com o resultado de semelhante deslexo. [...]
Nos Estados-Unidos, a sociedade começa pelo povo, e acaba na cupola, que
é o governo; no Brasil a sociedade começa pelo governo e acaba no Povo; ou
ainda mais verdadeiro: no Brasil o governo é tudo e o povo é nada, senão
materia bruta, de que se póde fazer alguma cousa, como marinha, exercito,
contribuintes, votantes, &c.
E para tal “mal” qual o “remedio?”, questiona-se Abreu e Lima; “um só, e é que
saibamos comprehender a nossa situação, os nossos usos e costumes, a nossa moralidade, e
até todos os nossos vícios para corregil-os por meio de uma nova educação (grifos nossos)”.
A alternativa da fomentação de imigrantes europeus, para o general, não se apresentava
enquanto forma viável para a correção do estado de “atraso e de ignorancia” social do jovem
Estado brasileiro17; nesta “marcha do progresso”, e com a educação como saída, se poderia
17 Sobre as colônias agrícolas habitadas por estrangeiros e fomentadas por capitais público-privados, Abreu e
Lima escreve no número 17, de 2 de outubro, que estas “são meras decepções, ou, por outra, verdadeiras
especulações de velhacos, que, conscios de sua ineficacia, vêm tirar partido do vosso erro. [...] Colonias
agricolas de estrangeiros em um paiz, onde a agricultura está toda entregue a braços escravos? Colonias de
estrangeiros para plantar cana, café ou algodão? Não sejais estupidos já que sois ignorantes; perdôo-vos a
velhacaria com tanto que não avilteis a inteligencia do paiz”, escreve.
cogitar em “educar a uma geração inteira, homens e mulheres, velhos e meninos, esparsidos
pela vastidão das nossas provincias?”, questiona-se Abreu e Lima, ainda nesta coluna da 5°
edição da Barca. “Não de certo, mas pódemos melhorar a sua sorte”, diz, e continua
É loucura que só pensemos em chamar estrangeiros para o nosso paiz,
deixando na miseria o povo, que cá existe, como se elle entrasse neste
calculo só como quantidade negativa. Quando a massa do povo é tida em
nenhuma conta, todo o mundo se julga com direito de occupar o seu
territorio como bens de ausentes ou defunctos. Se alguem nos julga ainda no
estado de primitiva civilisação, queixemo-nos do governo, que autorisa por
seus actos a qualquer para pensal-o e até disel-o.
Pensamento um tanto quanto distinto daqueles correntes, em grande maioria, pelo
continente americano; extrapolando as fronteiras brasílicas lembremos como Domingo
Faustino Sarmiento, intelectual argentino expoente da chamada Geração de 183718 e um dos
mais influenciadores pensadores da América do Sul no século XIX por seu Facundo (1845),
trata da questão imigratória quando escreve como
La América está colocada en una condición que hace para ella un elemento
de prosperidad y engradecimiento el atraer a su seno el mayor número de
extranjeros. [...] En nuestra época no es posible esperar el lento progreso de
la población natural, sin condenarse a la nulidad por siglos enteros. La
emigración del exceso de población de unas naciones viejas a las nuevas
hace el efecto del vapor aplicado a la industria: centuplicar las fuerzas y
producir en un día el trabajo de un siglo. Así se han engrandecido y poblado
los Estados Unidos, así hemos de engrandecernos nosostros (SARMIENTO,
1850: p. 42).
Ramificação daquele projeto que agora se estendia por todo o continente americano
enquanto “tarea civilizadora”, nas palavras de Zea, e cujo “gran modelo será el poderoso
imperio que se va levantando en el norte [os Estados Unidos]”; assim,
Los americanos, al sur de esa poderosa nación harán, en la parte del mundo
que les ha tocado, lo que Europa viene haciendo en Asia y en África y lo que
los Estados Unidos hacen en las praderas del Far West. Los iberoamericanos
18 Compreende-se a Generación de 37 enquanto um grupo de intelectuais argentinos que naquele cenário pós-
emancipatório argentino, de inúmeras guerras civis e querelas entre os caudilhos dominantes das grandes
cidades, pensavam a condução daquele espaço platino à “civilização”; vários da Geração, como o próprio
Sarmiento e o tucumano Juan Bautista Alberdi, buscavam explicações para o “atraso” e a “barbárie” não só da
Argentina, mas da América do Sul, já que, com a identificação das “causas” dos “problemas”, se poderia levar o
continente rumo ao “progresso”; apenas para ficarmos nesta temática sobre a imigração, recordemos que um dos
lemas propostos por Alberdi para a “civilização” do Estado argentino e à América do Sul em seu Bases é
“governar es poblar”, aforismo que inspirou a “moderna” Constituição argentina, promulgada em 1853, e que se
refere ao fomento imigratório enquanto projeto “civilizatório” pensado para o país.
se impondrán la tarea de recolonizar esta América. Recolonizarla de acuerdo
con el proyecto civilizador (1978: p. 247).
Projeto civilizador que buscou atuar em duas frentes, segundo o mexicano: “[...]
regenerar la raza, cambiar la mente. A la raza mediante una colosal inmigración, a la mente
mediante la educación” (1978: p. 247); se a primeira alternativa de tal “projeto civilizador”,
sintetizado por Zea em seus estudos sobre a América Latina, não era compreendido de forma
viável ao Abreu e Lima em suas reflexões na Barca, o mesmo certamente não podemos
afirmar quanto ao segundo19: “ainda necessitamos de uma educação forçada. Uma
intelligencia faria muito de nós, porem o Brasil parece condemnado a desmentir todas as
esperanças dos amigos do progresso moral e material”, escreve na edição 15 de seu periódico.
“Creio que retrocedemos”, assevera na mesma coluna de seu jornal.
Ainda em seu número 5, o redator da Barca dedica uma coluna apenas para a
necessidade de uma reforma no campo educacional; intitulada como “Necessidade de uma
reforma radical no nosso sistema de instrucção primaria”, Abreu e Lima escreve aqui como a
educação aparece unida a demais fatores de “importancia nacional”, como “o amor da patria,
o amor da familia, o brio, o pundonor, o desinteresse”; tais “noções das virtudes domesticas e
sociaes” apresentadas seriam apreendidas, continua, na mais tenra idade20. Ao comparar e
argumentar sobre seu projeto, no qual pensava em uniformizar “os elementos da instrucção
primaria” seguindo os exemplos de Estados europeus, com o que vinha de fato em vigor pelo
Estado imperial, comenta:
O que temos nós feito até hoje no Brasil em materia de tanta transcedencia
para o progresso moral do paiz? nada, ou quase nada, bem a nosso pesar.
Em que consiste porem a uniformidade da instrucção primaria? Em que as
doutrinas sejão perfeitamente as mesmas em todas as escolas, ainda que os
19 A ênfase para uma ocupação populacional das áreas “pouco ocupadas” enquanto projeto voltado ao país, que
irá concentrar boa parte dos escritos na Barca até seu derradeiro número, começa a ser escrita já aqui;
diferentemente de outros intelectuais latino-americanos contemporâneos seus, que argumentavam sobre uma
suposta escassez populacional para atender as necessidades obreiras – e civilizacionais, por suposto – do país, tal
como os da já citada Geração de 1837 argentina, Abreu e Lima argumenta que bastaria uma reordenação
planejada de “gente improductiva”, do próprio Brasil, para “duplicar a nossa população na mesma espantosa
proporção dos Estados Unidos”. 20 O pensar e o debater de propostas, projetos e reformas educacionais aparecem constantemente, também, em
vários escritos dos demais intelectuais liberais latino-americanos do período já que, vista enquanto um dos
fatores para colocar o continente latino-americano nos rumos da “civilização” e “progresso”, a educação era um
fator tido enquanto primordial para se refletir, àquele momento, a situação do continente (PRADO;
PELLEGRINO, 2014: pp. 84-85).
methodos sejão distinctos; doctrinas simples, faceis e claras para
intelligencia dos alumnos na primeira idade da rasão.
Para tanto, a elaboração destas “doutrinas” deveriam provir essencialmente de
Uma direcção especial para este importante ramo de instrucção elementar, e
confiar a hum homem de instrucção e experiencia a confecção de todos os
compendios mais necessarios, a saber: 1.° para a Leitura, consistindo nos
factos mais notaveis da historia do Brasil; 2.° de arithmetica; 3.° de doctrina
christãa [sic], acompanhado dos elementos da ethica propriamente dita; 4.°
da Gramatica da lingoa portuguesa; e 5.° de Geografia phisica, politica, e
astronomica.
A criação de uma “Direcção especial” voltada apenas para pensar a educação primária
era de essencial importância para Abreu e Lima, porque “conviria [...] afim de que
comecemos livremente o edificio pela sua base”. Com a execução de tal “base”, o general
argumenta, ainda na edição número 5, que
Depois de feito este trabalho, e plantado na provincia um plano geral e
uniforme de instrucção primaria, sobre elle elevariamos então o primeiro
corpo do edificio classico na nossa provincia, naquilo em que as leis nos
concedem toda a interferencia.
He para lamentar, que a provincia do Rio de Janeiro já desse um passo
avante, ficando nós áquem, sem nos importarmos com as consequencias da
nossa apatia. Quem tiver visto entre nós algumas escolas, se horrorisará por
certo do nosso atraso; nem ao menos temos um Compendio para leitura,
servindo-se os Professores dos livros impressos, que lhes trasem os
discipulos, ainda que escriptos muitas veses em algaravia de Mouro.
Tal “descaso” do Estado imperial faz sentir, para o redator da Barca, a falta de
“virtudes domesticas” e “sociaes”, já que
Desta arte nem ideas fixas sobre qualquer genero de instrução, nem estilo,
nem elocução se aprende, e até nem uma só recordação do seu paiz, como se
a leitura desde os primeiros annos não fosse uma fonte perenne de
permanentes recordações.
No número 11 da Barca, Abreu e Lima passa a publicar, por meio do periódico, uma
“Memoria” escrita anos antes e pensada à fundação de “colonias”, para “povoar o paiz, e levar
a civilisação a todos os ângulos do Brasil”21, conforme escrito na edição 15, de 16 de
setembro; a sessão, chamada de “Colonisação que convem ao Brasil”, traria até o último
21 No rodapé da página 2 da edição número 11 da Barca de São Pedro se têm que “Esta Memoria foi escripta no
Rio de Janeiro em 1842; porem algumas notas forão feitas depois em diversas épocas”.
número do jornal uma série de propostas que partiam deste plano de migrações internas22 até,
evidentemente, pensar a educação oferecida para estas “novas populações” que surgissem ao
longo do país. O motivo para a nova coluna?
O vicio mais radical da nossa actual organisação é que não temos sociedade,
e não temos sociedade porque ninguém se entende, e todos vivem á lei da
naturesa. He verdade que temos um governo, e um paiz immenso mais ou
menos povoado, mas isto não prova que tenhamos sociedade organisada,
nem que os membros desta sociedade gosem das vantagens, que ella
promete. Pode-se dizer que, á excepção das Capitaes, e dos grandes
proprietarios de terras, o povo do interior vive todo na mais revoltante
miseria, sem eira nem beira nem ramo de figueira.
Toda Sociedade politica começa a formar-se pelo seu elemento primitivo – o
povo – e depois vêm as ordenas ou classes, e depois as jerarquias, e acaba na
cupola, que é o governo; porem entre nós a Sociedade começa e acaba pelo
governo, isto é, como dizem os hespanhoes: todo el pescado se vuelve
cabesa (grifos do autor).
Tal sistema de “colonisação” pretendido pelo redator da Barca, porém, não é novo;
inspirado pelas missões jesuíticas, em especiais as espanholas que estendiam-se pela América
do Sul, Abreu e Lima escreve na continuação da coluna, na edição 16, que
A minha opinião é portanto que fundemos colonias nacionaes debaixo da
direcção de Missionarios [...]. Fundai missões com os proprios filhos do
paiz, ou fundai colonias como se fossem missões; acabai com essas
pregações desarrasoadas, com que ainda hoje nos atroão os ouvidos os
actuaes missionários, estabelecei uma educação toda social, isto é, religiosa e
moral pelo que respeita ao culto, aos bons costumes e aos deveres
domésticos, e civil que toca ao trabalho, e a uma certa illustração do espírito,
e Deus fará o resto abençoando a vossa obra.
A educação pensada pelo general volta-se, portanto, à um fim que é, conforme
podemos ler ainda no número 16 da Barca,
22 Abreu e Lima ressalta como não haveria a necessidade de privilegiar uma imigração estrangeira para a
“colonisação” do interior brasileiro. Ainda na edição 11, o redator escreve que “os colonos [estrangeiros] [...]
trabalharão para si; e o povo, que cá está, que vantagem tira disso? e o paiz o que ganha de mais, arruinando a
sua propria população nova, sem raizes no solo [...]?”. Na edição de número 15, ressaltando como “a idéa de
colonisar o paiz com os filhos do mesmo paiz é tão nova no Brasil”, diz que “entretanto se quereis fundar
colonias, povoar o paiz, e levar a civilisação a todos os ângulos do Brasil, creai colonias de Brasileiros:
transplantai o homem de um lugar para outro; tirai-o do torrão que elle conhece, privai-o dos vícios a que está
avesado, obrigai-o a trabalhar em commum; logo terá uma familia, e o amor do trabalho virá com o amor da
familia. Proporcionai ao homem todos os meios de ser bom, e elle o será [...]”; afinal, prossegue no argumento,
expor estrangeiros imigrantes – “cujos costumes, por bons que sejão, são sempre repugnantes aos filhos do paiz”
– ao contato cotidiano com setores da sociedade brasileira poderia aumentar uma “rivalidade” entre ambos os
lados por diversos motivos (diferenças culturais, por exemplo), na opinião de Abreu e Lima.
A educação do povo, e a emancipação das classes laboriosas, por
consequencia o meu sistema colonial he apenas um meio para conseguir este
fim, e não o conseguiria por certo se me ocupasse somente de certos
misteres. [...]
Finalmente o que eu desejo he a emancipação das classes laboriosas, isto é,
que o povo trabalhe para si, e não para outrem á custa de um salario [...].
Na última edição do periódico, de número 20 e datada de 23 de outubro, Abreu e Lima
faz o apelo para que, no afã de conter as “contracções nervosas da sociedade”23,
Criemos quanto antes essas novas sociedades com os proprios filhos do paiz,
estabeleçamos esses novos viveiros de população e de industria,
organisemos o trabalho armonisando-o com o capital e o talento, abramos
novas fontes de industria quer agricola quer fabril, e demos melhor direcção
a esse movimento, que se accelera nos grandes centros de consumo, para
evitar essas frequentes revoluções, que tornao impossíveis todos os meios de
melhoramento agora ou para o futuro. Cuidemos da educação do povo, cuja
ignorancia é tão prejudicial como a sua pobresa, e quando tenhamos
assegurado a sorte de duas ou trez mil famílias, podeis contar que toda a
população se lansará expontaneamente nessas vias de prosperidade e
engrandecimento. No dia em que podessemos dizer á Europa: eis ahi uma
colonia modelo, estai certos de que a emigraçao seria espantosa, e com ella
os talentos e os capitaes. Homens do poder! a Europa vos estende os braços,
e o Brasil vos adverte que do Capitolio á Rocha Tarpeya a distancia é muito
curta; ahi tendes uma corôa civica ou a maldiçao de todo o mundo, escolhei.
Colônias que se voltam à educação e ao trabalho – e este harmonizado com o capital e
o talento (ou poderíamos interpretar este último enquanto técnica?) –, conforme lemos na
última edição do periódico; aqui cabe o diálogo com Zea quando este escreve, sobre a
“emancipação mental” perpetrada pelas ideias “modernas” às quais aludiam os intelectuais
latino-americanos do século XIX, que
La emancipación mental de que hablaba el liberalismo deberá ir más allá de
la misma. Habría que formar, no sólo hombres libres, sino hombres que
pudiesen hacer por sus pueblos lo que los hombres de los pueblos civilizados
habían hecho por los suyos. Pero más que educación, instrucción, esto es,
capacitación que tendrá que darse a los americanos para saber del uso de la
técnica que le ha de permitir explotar, más eficazmente, sus riquezas.
Capacitación para la industria y el commercio [grifo nosso] (1978: p. 265).
23 “O estado actual do Brasil”, com sua “população crescente”, sua “organisação politica e civil” – que apenas
“constitue um facto, mas um facto sem poder”, conforme lemos nesta sessão –, é uma fonte de preocupações
para Abreu e Lima; “o feudalismo do solo”, “a omnipotencia dos grandes proprietarios”, somados à “estrutura”
comentada de início sobre o Estado, à sua “actual organisação social, que não corresponde de maneira alguma ás
necessidades do povo”, levaria, para o general, à “espamos ou contracções nervosas da sociedade” e a “serios
simptomas” que poderiam conduzir a “effeitos malignos”; “estado horroroso de degradação, que presagia um
futuro desastroso”, escreve.
Educação enquanto instrução, conforme assinalado por Zea em sua leitura sobre os
escritos destes intelectuais latino-americanos do século XIX, e que também é preocupação de
Abreu e Lima; afinal, “todas as populações novas são por instincto dedicadas ao trabalho,
porque não possuem riquesas, nem por consequencia o ocio, que estas gerão” – e nesta nova
nação surgida da antiga América Portuguesa “começamos por onde acabão as velhas
sociedades, pelo ocio e pelo horror ao trabalho”, conforme escrito na primeira sessão do
último número da Barca, já que
No estado actual do paiz seria não só loucura, mas até um crime o ficarmos
estacionarios; quando o mundo civilisado nos grita: avante! avante, devemos
responder, senão corremos o risco de nos descarrearmos da vereda da
civilisação, que trilhamos de parceria com os povos do velho mundo.
Entre os temores de uma guerra civil, os projetos para reformas administrativas
voltadas às províncias do Império, a crítica aos conservadores de Pernambuco e ao projeto de
uma “colonisação” voltada para os interiores do Brasil, a educação foi assim pensada por
Abreu e Lima na sua Barca; a concepção liberal que permeia as ideias do autor, de uma
sociedade voltada ao trabalho e à busca de “novas fontes de industria”, junto de suas
concepções científicas “modernas”, à época, acerca dos “progressos” históricos e da
“civilisação” respaldam o caráter “esclarecido” com o qual as produções do general foram
recebidas em sua época.
Tais concepções sobre a educação e o meio de se pensar esta permaneceriam as
mesmas para Abreu e Lima em suas produções posteriores? Uma rápida leitura de sua obra
mais famosa, O Socialismo, produzido cerca de quatro anos após os eventos da Praieira de
1848 e publicado apenas em 1855, aponta para interpretações um tanto distintas, mas isso é
uma abordagem para outros momentos.
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