o conceito de esclarecimento - t. w. adorno %26 m. horkheimer
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5/14/2018 O Conceito de Esclarecimento - T. W. Adorno %26 M. Horkheimer - slidepdf.com
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THE ODOR W . ADORNO
MAX HORKHEIM ER
;
DIALETICA
DO
ESCLARECIMENTO
fragmentos filos6ficos
Traduciio:
Guido Antonio de Almeida
Professor de Filosofia da Universidade Federal
do Rio de Janeiro
5/14/2018 O Conceito de Esclarecimento - T. W. Adorno %26 M. Horkheimer - slidepdf.com
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Titulo original:Dialektik der Aujklariing - Philosophische Fragmente
Traducao au torizada da cdicao alema pub lic ada em 1969
por S. Fischer Verl ag , GmbH, Frank fu rt am Main
Copyright © 1944, Soci al Studi es Association , Inc., New York ,
by arrangement s wit h S. Fischer Verlag, GmbH, Frankfurt am Mai n
Copyright © 1985 da edicao em l ingua por tuguesa:
Jorge Zahar Edit or L tda.
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Todos os direi tos reservados.
A reproducao nao-autorizada desta publ icacao, no todo
ou em part e, cons tit ui vi olacao de di reit os au torais. (Lei 9.610/98)
Capa: Ruth Fre ihof
CIP-Brasil. Catalogacao-na-fonte
Si ndicato Naci onal dos Ed itores de Li vros, RJ.
Horkhe imer, Max, 1895-1973
H785d Dialetica do esclarecimento: fragmentos filos6ficos / Max
Horkheimer e Theodor W. Adorno; traducao, Gui do Antonio de
Almeida. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985
Traducao de: Dial ektik der Aufkl ar ii ng
Inclui bibliografia
ISBN: 85-7110-414-X
1. Arte e sociedade. 2. Ciencia e civilizacao, 3. Cultura. 4.
Filosofia alema, I.Adorno, Theodor Wiesengrund, 1903-1969.
II. Titulo.
Sumario
Nota preliminar do tradutor
Sobre a nova edicao alerna
Prefacio
o Conceito de Esclarecimento .
7
9
11
19
Excurso I:
Ulisses ou Mito c Esclarecimento 53
Excurso II:
Juliette au Esclarccimento e Moral .
A Industria Cultural:
o Esclarecimento como Mistificacao das Massas .
Elementos do Anti-Semitismo:
Limites do Esclarccimento
Notas e esbocos .
Notas dos capitulos
81
113
157
195
241
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Nota Preliminar do Tradutor
Para Friedrich Pollock
A traducao de Auikliirung por esclarecimento requer uma explica-
cao: por que nao recorremos ao termo iluminismo, ou ilustraciio,
que sao as cxpressoes mais usuais entre nos para designar aquilo que
tambem conhecemos como a Epoca ou a Filosoiia das Lures' ! Em
primeiro lugar, como nao poderia deixar de ser, por uma questao
de maior fidelidade: a exprcssao esclarecimento traduz com perfei-
cao nao apenas 0 significado historico-filosofico, mas tambem 0
sentido mais amplo que 0 termo eneontra em Adorno e Horkheimer,bern como 0 significado corrente de Auikliirung na linguagem ordi-
naria. E born que se note, antes de mais nada, que Aufkliirung nao
6 apcnas urn conceito historico-filosofico, mas uma expressao familiar
da lingua alema, que encontra urn correspondente exato na palavra
portuguesa esclarecimento, por exemplo em contextos como: sexuelle
Auiklarung (csclareeimento sexual) ou politische Auikliirung (es-
clarecimento politico). Neste sentido, as duas palavras designam, em
alemao e em portugues, 0 processo pelo qual uma pessoa vence as
trevas da ignorancia c do preconceito em questoes de ordem pratica
(reiigiosas, politicas, sexuais, etc.).Ora, 0 conceito historico-filosofico esta ligado ao sentido colo-
quial do termo, e nao e por outra razao que foi escolhido como
palavra de ordem e senha de identificacao pelos espiritos esclarecidos
dos tempos modernos. Kant, como se sabe, define a Auikiiirung, num
texto celebre, como urn processo de emancipacao intelectual resul-
tando, de urn lado, da superacao da ignorancia e da preguica de
pensar por conta propria e, de outro lado, da critica das prevencoes
inculcadas nos intelectualmente menores por seus maiores (superio-
res hierarquicos, padres, governantes, etc.). A ligacao entre 0 con-
ceito filos6fico e a expressao coloquial e uma razao decisiva para
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8 dialetica do esclarecimento
libertam do medo de uma natureza desconhecida, a qual atribuem
poderes ocultos para explicar seu desamparo em face dela. Por is so
mesmo, 0 esclarecimento de que falam nao e , como 0 iluminismo, ou
a ilustracao, urn movimento filosofico ou uma epoca historica deter-
minados, mas 0 processo pelo qual, ao longo da historia, os homens
se libertam das potencias miticas da natureza, ou seja, 0 processo de
racionalizacao que prossegue na filosofia e na ciencia, Mas este naoe urn simples processo de desmitologizacao: 0 fato de que ele tern
origem no proprio mito e encontra seu termo atual na mitologizacao
do esclarecimento sob a forma da ciencia positiva reflete 0 fato de
que 0 conhecimento pela dominacao da natureza tern lugar peia
assimilacao dos processos de conhecimento e controle aos processos
naturais, e explica por que esse processo de dorninacao da natureza
pode resultar paradoxalmente numa mais completa naturalizacao do
homem totalmente civilizado. Tudo isso deixa claro que 0 conceito
de esclarecimento, embora sem perder 0 vinculo que 0 liga ao con-
ceito critico e emancipador expresso pelo termo na linguagem ordi-
naria e filosofica, nao pode se resumir, para nossos autores, as Luzes
do seculo dezoito. Nao so a expressao nao designa mais um rnovi-
mento filosofico, mas resulta de urn aprofundamento critico que leva
a desilusao de seu otimismo. Acresce a isso que nao podemos ncm
mesmo supor que a ilustracao constitua para eles 0 exemplo historico
privilegiado do esclarecimento, uma vez que e muito mais longe, na
experiencia do heroi da Odisseia, que van buscar 0 prototipo dessa
atividade esclarecedora que se confunde com 0 processo civilizatorio.
Ha outras razoes, menos importantes de urn ponto de vista
teorico-conceitual, mas igualmente importantes do ponto de vista da
traducao, para se preferir esclarccimento a iluminismo c ilustracao.Em particular, e possivcl dar uma traducao unitaria para exprcssocs
cognatas como auikliiren = esclarcccr c auigekliirt = csclarccido.
Iluminar e iluminado conotam, nao 0 esclarecimento que devcmos ao
uso da razao, mas a ilurninacao mistica ou as luzes divinas. Ilustrar
e ilustrado, por sua vez, significant antes a instrucao pelo estudo e
pela lcitura do que 0 esclarccimcnto que rcsulta da rcflcxao c cia
critica.
Finalmente, a traducao de Auikliirung por esc1areeimento vai
se tornando mais comum. E assim, alias, que se traduziu em portu-
Sobre a Nova Edicao Alema
A "Dialetica do Esclarecimento" saiu em 1947 pela editora Querido
em Amsterdam. 0 livro, que so pouco a pouco se difundiu, esta ha
muito esgotado. Ao reedita-Io agora, decorridos mais de vinte anos,
nao somos movidos apenas pelas rmiltiplas solicitacoes, mas pela
crenca de que nao poucos dos pensamentos ainda sao atuais e terndeterminado em Iarga medida nossos esforcos teoricos ulteriores. £.
dificil para alguem de fora fazer ideia da medida em que somos
ambos responsaveis por cada frase. Juntos ditamos largos trechos, e
a ten sao dos dois temperamentos intelectuais que se juntaram na
"Dialetica" e seu elemento vital.
Nao nos agarramos sem modificacoes a tudo 0 que esta dito
no Iivro. Isso seria incompativel com uma teoria que atribui a ver-
dade urn nucleo temporal, em vez de opo-la ao movimento historico
como algo de irnutavel. 0 livro foi redigido num momenta em que
ja se podia enxergar 0 fim do terror nacional-socialista, Mas nao
sao poucas as passagens em que a Iormulacao nao e mais adequada
a realidade atual. E, no entanto, nao se pode dizer que, mesmo
naquela epoca, tenhamos avaliado de maneira excessivamente inocua
o processo de transicao para 0 mundo administrado.
No periodo da grande divisao politica 'em dois bloc os eolossais
objetivamente compelidos a colidirem urn com 0 outro, 0 horror
continuou. Os eonflitos no Terceiro Mundo, 0 crescimento renovado
do totalitarismo nao sao meros incidentes historicos, assim como
tampouco 0 foi, segundo a "Dialetica", 0 fascismo em sua epoca. 0
pensamento critico, que nao se detem nem mesmo diante do pro-
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10 dia!etica do esclarecimento
o desenvolvimento que diagnosticamos neste livro em direcao
a integracao total esta suspenso, mas nao interrompido; e1e ameaca
se completar atraves de ditaduras e guerras. 0 prognostico da con-
versao correlata do esclarecimento no positivismo 0 mito dos fatos
finalmente a identidade da inteligencia e da hos~iIidade ao espirit~
encontraram uma confirmacao avassaladora. Nossa concepcao da
historia nao presume estar livre disso, mas, certamente, nao esta acata de informacoes a maneira positivista. Critica da filosofia que e,
nao guer abrir mao da filosofia.
Retornamos dos Estados Unidos, onde 0 livro foi escrito, para
a Alemanha, na conviccao de que agui poderemos fazer mais do que
em outro lugar, tanto teorica quanta praticamente. Juntamente com
Friedrich Pollock, a quem 0 livro e agora dedicado por seus 75 anos,
como ja 0 era por seus 50 anos, reconstrufmos 0 Instituto para Pes-
quisa Social com 0 pensamento de prosseguir a concepcao formulada
na "Dialetica". No desenvolvimento de nossa teoria e nas experien-
cias comuns que se seguiram, tivemos a ajuda, no mais bela sentido,
de Gretel Adorno, como ja ocorrera por ocasiao da primeira redacao,
Quanto as alteracoes, fomos muito mais parcimoniosos do que
o costume na reedicao de livros publicados ha mais de uma decada.
Nao queriamos retocar 0 que haviamos escrito, nem mesmo as pas-
sagens manifestamente inadequadas. Atualizar todo 0 texto teria
significado nada menos do que urn novo livro. A ideia de gue hoje
importa mais conservar a liberdade, amplia-la e desdobra-la, em
vez de acelerar, ainda que indiretamente, a marcha em direcao ao
mundo administrado, c algo gue tambern exprimimos em nossos es-
critos ulteriores. Contentamo-nos, no essencial, com a correcao de
erros tipograficos e coisas que tais. Semelhante reserva transform ao livro numa documentacao; ternos a esperanca de que seja, ao mes-
mo tempo, mais do que isso.
Frankfurt am Main, abril, 1969.THE ODOR w. ADORNO
MAX HORKHEIMER
Prefacio
Quando comecamos 0 trabalho, cujas primeiras provas dedicamos a
Friedrich Pollock, tinhamos a esperanca de poder apresentar 0 todo
concluido por ocasiao de seu qiiinquagesimo aniversario, Mas quanta
mais nos aprofundavamos em nossa tarefa, mais claramente per-
ccbiamos a desproporcao entre eia e nossas forcas, 0 que nos pro-
puseramos era, de fato, nada menos do que descobrir por que ahumanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente
humano, esta se afundando em uma nova especie de barbaric. Su-
hcstimamos as dificuldades da exposicao porque ainda tinhamos uma
cxcessiva confianca na consciencia do momenta presente. Embora
tivessemos observado ha muitos anos que, na atividade cientifica
moderna, 0 preco das grandes invencoes e a rufna progressiva da
cultura teorica, acreditavamos de qualquer modo que podiamos nos
dcdicar a ela na rnedida em que fosse possfvel limitar nosso desem-
pcnho a critica ou ao desenvolvimento de tematicas especializadas.
Nosso desempenho devia restringir-se, pelo menos tematicamente, asdisciplinas tradicionais: a sociologia, a psicologia e a teoria do co-
nhecimento.
Os fragmentos que aqui reunimos mostram, contudo, que tivemos
de abandonar aqueia confianca. Se uma parte do conhecimento con-
siste no cultivo e no exarne atentos da tradicao cientifica (especiaI-
mente onde ela se ve entregue ao esquecimento como urn Iastro
irnitil pelos expurgadorcs positivistas), em compensacao, no colapso
atual da civilizacao burguesa, 0 que se torn a problematico e nao
apenas a atividade, mas 0 sentido da ciencia, 0 que os fascistas fer-
rcnhos elogiam hipocritamente e os doceis especialistas da huma-
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12 dialetica do esclarecimento
epoca, Se a opiniao publica atingiu urn estado em que 0 pensamento
inevitavelmente se converte em mercadoria e a linguagem em seu
encarecimento, entao a tentativa de por a nu semelhante deprava-
~ao tern de recusar IeaIdade as convencoes lingiiisticas e conceituais
em vigor, antes que suas conseqiiencias para a historia universal
frustrem completamente essa tentativa.
Se se tratasse apenas dos obstaculos resuItantes da instrumen-tacao desmemoriada da ciencia, 0 pensamento sobre questoes sociais
poderia, pelo menos, tomar como ponto de partida as tendencias
opostas a ciencia oficiaI. Mas tambem estas sao presas do processo
global de producao. Elas nao se modificaram menos do que a ideo-
logia a qual se referiam. Com elas se passa 0 que sempre sucedeu
ao pensamento triunfante. Se ele sai voluntariarnente de seu elemento
critico como urn mero instrumento a service da ordem existente, ele
tende, contra sua propria vontade, a transformar aquilo que escolheu
como positivo em algo de negativo, de destrutivo, A filosofia que,
no seculo dezoito, apesar das fogueiras levant adas para os livros e
as pessoas, infundia urn medo mortal na infamia," sob Bonaparte japassavapara 0 lado desta. Finalmente, a escola apologetica de Comte
usurpou a sucessao dos enciclopedistas intransigentes e estendeu a
mao a tudo aquilo contra 0 qual estes haviam se colocado. As me-
tamorfoses da critica na afirrnacao tampouco deixam incolume 0
conteudo teorico, sua verdade volatiliza-se. Agora, e verdade, a .his-toria motorizada toma a dianteira desses desenvolvimentos intelec-
tuais e os porta-vozes oficiais, movidos por outros cuidados, liquidam
a teoria que os ajudou a encontrar urn lugar ao sol, antes que esta
consiga prostituir-se direito.
Ao tomar consciencia de sua propria culpa, 0 pensamento se vcpor isso privado nao so do uso afirmativo da linguagem conceitual
cientffica e quotidiana, mas igualmente da linguagem da oposicao.
Nao ha mais nenhuma expressao que nao tenda a concordar com as
direcoes dominantes do pensamento, e 0 que a linguagem desgastada
nao faz espontaneamente e suprido com precisao pelos mecanismos
sociais. Aos censores, que as fabricas de filmes mantern voluntaria-
mente por medo de acarretar no final urn aumento dos custos, cor-
respondem instancias analogas em todas as areas. 0 processo a que
prejacio 13
sc submete um texto Iiterario, se nao na previsao automatica de seu
produtor, pelo menos pelo corpo de leitores, editores, redatores e
ghost-writers dentro e fora do escritorio da editora, e muito mais
minucioso que quaIquer censura. Tomar inteiramente superfluas suas
Iuncoes parece ser, apesar de todas as reformas beneficas, a ambicao
do sistema educacionaI. Na crenca de que ficaria excessivamente
susceptiveI a charIatanice e a supersticao, se nao se restringisse aconstatacao de fatos e ao calculo de probabilidades, 0espirito co-
nhecedor prepara urn chao suficientemente ressecado para acolher
com avidez a charIatanice e a supersticao, Assim como a proibicao
sempre abriu as portas para urn produto mais toxico ainda, assim tam-
bern 0 cerceamento da imaginacao teorica preparou 0 caminho para
o desvario politico. E, mesmo quando as pessoas ainda nao sucum-
biram a ele, elas se veem privadas dos meios de resistencia pelos
mecanismos de censura, tanto os externos quanta os implantados
dentro delas proprias.
A aporia com que defrontamos em nosso trabalho revela-se
assim como 0 primeiro objeto a investigar: a autodestruicao do es-clarecimento. Nao alimentamos duvida nenhuma - e nisso reside
uossa petitio principii - de que a liberdade na sociedade e insepara-
vel do pensamento esclarecedor. Contudo, acreditamos ter reconheci-
do com a mesma clareza que 0 proprio conceito dessc pensamento,
tanto quanta as form as historicas concretas, as instituicoes da socie-
dade com as quais esta entrelacado, contern 0 germe para a regressao
que hoje tern lugar por toda parte. Se 0 esclarecimento nao acolhe
dentro de si a reflexao sobre esse elemento regressivo, ele esta
selando seu proprio destine. Abandonando a seus inimigos a reflexao
sobre 0 elemento destrutivo do progresso, 0 pensamento cegamentepragmatizado perde seu carater superador e, por isso, tambem sua
relacao com a verdade. A disposicao enigmatica das massas educadas
tecnologicamente a deixar dominar-se pelo fascinio de urn despotis-
IIlO qualquer, sua afinidade autodestrutiva com a paranoia racista,
todo esse absurdo incompreendido manifesta a fraqueza do poder
de compreensao do pensamento teorico atual.
Acreditamos contribuir com estes fragmentos para essa com-
preensao, mostrando que a causa da recaida do esclarecimento na
mitologia nao deve ser buscada tanto nas mitologias nacionalistas,
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14 dialetica do esclarecimento
Assim como 0 esclarecimento exprime 0 movimento real da socie-
dade burguesa como urn todo sob 0 aspecto da encarnacao de sua
Ideia em pessoas e instituicoes, assim tambem a verdade nao signi-
fica meramente a consciencia racional mas, do mesmo modo, a
figura que esta assume na realidade efetiva. 0 medo que 0 born
filho da civilizacao modern a tern de afastar-se dos fatos - fatos
esses que, no en t anto, ja estao pre-moldados como cliches na propria
percepcao pelas usancas dominantes na ciencia, nos neg6cios e napolitica - c exatamente 0 mesmo medo do desvio social. Essas
usancas tambem definem 0 conceito de clareza na lingua gem e no
pensamento a que a arte, a literatura e a filosofia devem se con-
formar hoje. Ao tachar de complicacao obscura e, de preferencia, de
alienigena 0 pensamento que se aplica negativarncnte aos fatos, bern
como as formas de pensar dominantes, e ao colocar assim um tabu
sobre ele, esse conceito man tern 0 espir ito sob 0 dominic da mais
profunda cegueira. E caracteristico de uma situacao scm saida que
ate mesmo 0mais honesto dos reform adores, ao usar uma linguagem
desgastada para recomendar a inovacao, adota tambern 0 .aparelho
categorial inculcado e a rna filosofia que se esconde por tras dele, e
assim reforca 0 poder da ordem existente que ele gostaria de romper.
A falsa clareza e apenas uma outra expressao do mito. Este sempre
foi obscuro e iluminante ao mesmo tempo. Suas credenciais tern sido
desde scm pre a familiaridade e 0 fato de dispensar do trabalho do
conceito.
A naturalizacao dos homens hoje em dia nao c dissociavcl do
progresso social. 0 aumento da produtividade economic a, que por
um lado produz as condicoes para um mundo mais justo, confere
por outr~ lado ao aparelho tecnico e aos grupos sociais que 0 con-trolam uma superioridade imensa sobre 0 resto da populacao. 0
individuo se v e completamente anulado em face dos poderes econo-
micos. Ao mesmo tempo, estes elevam 0 poder da sociedade sobre
a natureza a um nivcl jamais imaginado. Desapareeendo diante do
aparelho a que serve, 0 individuo se ve, ao mesmo tempo, melhor
do que nunea provido por ele. Numa situacao injusta, a impotencia
e a dirigibilidade da massa aumentam com a quantidade de bens a
ela destinados. A elevacao do padrao de vida das classes inferiores,
materialmente consideravel e socialmente Iastimavel, reflete-se na
prejdcio 15
i\ cnxurrada de informacoes precisas e diversoes assepticas desperta
e idiotiza as pessoas ao mesmo tempo.
o que esta em questao nao e a cultura como valor, como pen-
sam os crfticos da civilizacao Huxley, Jaspers, Ortega y Gasset e
outros. A questao c que 0 esclarecimento tern que tomar consciencia
de si mesmo, se os homens nao devem ser completamente trai-
dos. Nao c da conservacao do pass ado, mas de resgatar a esperanca
passada que se trata. Hoje, porem, 0 passado se prolonga como des-
truicao do passado. Se a cultura respeitavel constituiu ate 0 seculo
dezenove urn privilegio, cujo prec;o era 0 aumento do sofrimento dos
incultos, no seculo vinte 0 espaco higienico da Iabrica teve por preco
a Iusao de todos os elementos da cultura num cadinho gigantesco.
Talvez isso nao fosse urn prec;o tao alto, como acreditam aqueles
defensores da cultura, se a venda ern liquidacao da cultura nao
contribuisse para a conversao das conquistas economicas em seu
contrario.
Nas condicoes atuais, os pr6prios bens da fortuna convertem-se
em elementos do infortunio. Enquanto no periodo passado a massadcsses bens, na falta de um sujeito social, resultava na chamada
superproducao, em meio as crises da economia interna, hoje ela
produz, com a entronizacao dos grupos que detem 0poder no lugar
desse sujeito social, a ameaca internacional do fascismo: 0 progresso
converte-se em regressao. 0 fa to de que 0 espaco higienico da Iabrica
c tudo 0 que acompanha isso, 0 Volkswagen e 0 Palacio dos Espor-
res, levem a uma liquidacao estupida da metafisica, ainda seria indi-
fcrente, mas que eles pr6prios se tornem, no interior do to d o social,
a metafisica, a cortina ideol6gica atras da qual se concentra a des-
graca real nao c indiferente. Eis ai 0 ponto de partida de nossos
fragmentos.
o primeiro estudo, 0 fundamento te6rico dos seguintes, procura
tamar mais inteligivel 0 entrelacamento da racionalidade e da reali-
dade social, bem como 0 entrelacamento, inseparavel do primeiro,
da natureza e da dominacao da natureza. A critica ai feita ao escla-
recimento deve preparar um conceito positivo do esclarecimento, que
o solte do emaranhado que 0 prende a uma dominacao cega.
Em linhas gerais, 0 primeiro estudo pode ser reduzido em sua
parte critic a a duas teses: 0 mito ja e esclarecimento e 0 esclareci-
mento acaba por reverter a mitologia. Nos dois excursos, essas teses
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16 dialetica do esclarecimento
burguesa ocidental. No centro estao os conceitos de sacrificio c re-
nuncia, nos quais se revelam tanto a diferenca quanto a unidade da
natureza mitica e do dominio esclarecido da natureza. 0 segundo
excurso ocupa-se de Kant, Sade e Nietzsche, os implacaveis realiza-
dores do esclarecimcnto. Ele mostra como a submissao de tudo
aquilo que e natural ao sujeito autocratico culmina exatamente no
dominio de uma natureza e uma objetividade cegas. Essa tendencia
aplaina todas as antinomias do pensamento burgues, em especial a
antinomia do rigor moral e da absoluta amoralidade.
o segmento sobre a "industria cultural" mostra a regressao do
esclarecimento a ideologia, que encontra no cinema e no radio sua
expressao mais influente. 0 esc1arecimento consiste ai, sobretudo, no
calculo da eficacia e na tecnica de producao e difusao. Em confor-
midade com seu verdadeiro conteudo, a ideologia se esgota na idola-
tria daquilo que existe e do poder pelo qual a tecnica e controlada.No tratamento dessa contradicao, a industria cultural e levada mais
a serio do que gostaria. Mas como a invocacao de seu proprio carater
comercial, de sua profissao de uma vcrdade atenuada, ha muito se
tornou uma evasiva com a qual ela tenta se furtar a responsabilidade
pela mentira que difunde, nossa analise atem-se a pretensao, obje-
tivamente inerente aos produtos, de serem obras esteticas e, par isso
mesmo, uma configuracao da verdade. Ela revela, na nulidade dessa
pretensao, 0 carater maligno do social. 0 segmento sobre a industria
cultural e ainda mais fragmentario do que os outros.
A discussao dos "Elementos do Anti-semitismo" atraves de
teses trata do retorno efetivo da civilizacao esc1arecida a barbaric.
A tendencia nao apenas ideal, mas tarnbern pratica, a autodestruicao,caracteriza a racionalidade desde 0 inicio e de modo nenhum apenas
a fase em que essa tendencia evidencia-se sem disfarces. Neste sen-
tido, esbocamos uma pre-historia filosofica do anti-semitismo. Seu
"irracionalismo" e derivado da essencia da propria razao dominante
e do mundo correspondente a sua imagem. Os "Elementos" estao
diretamente ligados a pesquisas empfricas do Instituto para Pesquisa
Social, a Iundacao instituida e mantida por Felix Weil, sem a qual
nao teriam side possiveis, nao apenas nossos estudos, mas uma boa
parte do trabalho teorico dos emigrantes alemaes, que teve prosse-
guimento apesar de Hitler.
prejacio 17
Na ultima parte publicam-se noras e esbocos que, em parte,
pcrtcncem ao horizonte intelectual dos estudos precedentes, sem en-
contrar af seu lugar, e em parte tracarn urn esboco provisorio de
problemas a serem tratados num trabalho futuro. A maioria delesrcf'orc-se a uma antropologia dialetica.
I,os Angeles, California, maio, 1944.
o livro nao contern nenhuma modificacao essencial do texto tal como
conclufdo ainda durante a guerra. So a ultima tese dos "Elementos
do Anti-sernitismo" foi acrescentada ulteriormente.
Junho, 1947
THE ODOR W. ADORNO
MAX .HORKHEIMER
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() Conceito de Esclarecimento
No sentido mais amplo do progresso do pensamento, 0 esclareci-
mente tern perseguido sempre 0 objetivo de livrar os homens do
mcdo e de investi-los na posicao de senhores. Mas a terra totalmente
vsclarecida resplandece sob 0 signo de uma calamidade triunfal. 0
programa do esclarecimento era 0 desencantamcnto do mundo. Sua
meta era dissolver os mitos e substituir a imaginacao pelo saber.
Bacon, "0 pai da filosofia experimental't.! ja reunira seus diferentes
tenias. Ele desprezava os adeptos da tradicao, que "primeiro acre-ditam que os outros sabem 0 que eles nao sabem; e depois que eles
proprios sabem 0 que nao sabem. Contudo, a credulidade, a aver-
sao a duvida, a temeridade no responder, 0 vangloriar-se com 0 saber,
a timidez no contradizer, 0 agir por interesse, a preguica nas inves-
Iigacoes pessoais, 0 fetichismo verbal, 0 deter-se em conhecimentos
parciais: isto e coisas semelhantes impediram um casamento feliz
do entendimento humano com a natureza das coisas c 0 acasalaram,
em vez disso, a conceitos vaos e experimentos erraticos: 0 fruto c a
posteridade de tao gloriosa uniao pode-se facilmente imaginar. A
imprensa nao passou de uma invencao grosseira;0
canhao era umainvencao que ja estava praticamente assegurada; a bussola ja era,
ale eerto ponto, conhecida. Mas que rnudanca essas tres invencoes
produzirarn - uma na ciencia, a outra na guerra, a terceira nas fi-
nancas, no comercio e na navegacao! E foi apenas por acaso, digo
CII, que a gente tropecou e caiu sobre elas. Portanto, a superioridade
do homem esta no saber, disso nao ha duvida, Nele muitas coisas
l'stao guardadas que os reis, com todos os seus tesouros, nao podem
comprar, sobre as quais sua vontade nao impera, das quais seus
cspias e informantes nenhuma noticia trazem, e que provern de paises
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dialetica do esclarecimento
mctidos a sua necessidade; se contudo nos deixassemos guiar por
clu na invencao, nos a comandariamos na pratica"."
Apesar de seu alheamento a maternatica, Bacon capturou bern
a rncntalidade da ciencia que se fez depois dele. 0 casamento feliz
entre 0 entendimento humano e a natureza das coisas que ele tern
ern mente e patriarcal: 0 entendimento que vence a supersticao deve
impcrar sobre a natureza desencantada. 0 saber que e poder naoconhece nenhuma barreira, nem na escravizacao da criatura, nem na
cornplacencia em face dos senhores do mundo. Do mesmo modo que
csta a service de todos os fins da economia burguesa na Iabrica e
no campo de batalha, assim tambem esta a disposicao dos empresa-
rios, nao importa sua origem. Os reis nao controlam a tecnica mais
diretamente do que os comerciantes: cIa e tao ..democratica quanto
o sistema economico com 0 qual se desenvolve. A tecnica e a essencia
desse saber, que nao visa conceitos e imagens, nem 0 prazer do dis-
cernimento, mas 0 metodo, a utilizacao do trabalho de outros, 0
capital. ,As multiplas coisas que, segundo Bacon, ele ainda encerra
nada mais sao do que instrumentos: 0 radio, que e a imprensa subli-
mada; 0 aviao de caca, que e uma artilharia mais eficaz; 0 controle
remoto, que e uma bussola mais confiavel. 0 que os homens querem
aprender da natureza e como emprega-la para dominar completa-
mente a ela e aos homens. Nada mais importa. Sem a menor con-
sideracao consigo rnesmo, 0 esclarecimento eliminou com seu cau-
tcrio 0 ultimo resto de sua propria autoconsciencia, So 0 pensamento
que se faz violencia a si mesmo c suficientemente duro para
dcstruir os mitos. Diante do atual triunfo da mentalidade factual,
ate mesmo 0 credo nominalista de Bacon seria suspeito de metafisica
c incorreria no veredicto de vacuidade que proferiu contra a escolas-tica. Poder c conhecimento sao sinonimos." Para Bacon, como para
1.11tcro, 0 esteril prazer que 0 conhecimento proporciona nao passa
(k lima especie de lascivia. 0 que importa nao e aquela satisfacao
que, para os homens, se chama "verdade", mas a "operation", 0
proccdimcnto cficaz. Pois nao enos "discursos plausiveis, capazes de
proporcionar delcite, de inspirar respeito ou de impressionar de uma
11I:lIll'ira qualquer, ncm em quaisquer argumentos verossimeis, mas
l'lll ohrar c trabalhar c na descoberta de particularidades antes des-
conlu-cidns. para melhor prover e auxiliar a vida", que reside "0ver-
conoeito 21
produziram, em tudo aquilo que e contingente e mau, e a logica mais
rcccntc denuncia as paIavras cunhadas peia linguagem como moedas
Ialsas, que sera melbor substituir por fichas neutras. 0 mundo tor-
IIIlC"se 0 caos, e a sintese, a salvacao. Nenhuma distincao deve haver
entre 0 animal toternico, os sonhos do visionario e a Ideia absoluta,
No trajeto para a ciencia moderna, os homens renunciaram ao sen-
lido csubstitufram 0 conceito pela formula, a causa peia regra epela probabilidade.A causa foi apenas 0 ultimo conceito filosofico
que serviu de padrao para a critica cientifica, porque ela era, por
ussim dizer, dentre todas as ideiasantigas, 0 unico eonceito que a
clu ainda se apresentava, derradeira secularizacao do principio cria-
dor, A filosofia buscou sempre, desde Bacon, uma definicao modern a
de substancia e qualidade, de acao e paixao, do ser e da existencia,
mas a ciencia ja podia passar sem semelhantes categorias. Essas ca-
kgorias tinham fica do para tras como idola theatri da antiga meta-
fisica e ja eram, em sua epoca, monumentos de entidadcs e potencias
de lim pass ado pre-historico. Para este, a vida e a morte haviam se
cxplicado e entrelacado nos mitos. As categorias, nas quais a filo-
sofia ocidental determinava sua ordem natural eterna, marcavam os
lugares outrora ocupados por Oenos e Persefone, Ariadne e Nereu.
As eosmologias pre-socraticas fixam 0 in stante da transicao. 0 umido,
(I indiviso, 0 ar, 0 fogo, ai eitados como a materia primordial da
natureza, sao apenas sedimentos racionalizados da intuicao mitica.
Assim como as imagens da geracao a partir das aguas do rio e da
tvrra se tornaram, entre os gregos, principios hilozoistas, elementos,
.issim tambem toda a Iuxuriante plurivocidade dos demonios miticos
cspiritualizou-se na forma pura das entidades ontologicas. Com as
hlcias de Platao, finalmente, tambem os deuses patriarcais do Olimpoforam capturados pelo logos filosofico, 0 esclarecimento, porem, re-
conheceu as antigas potencias no legado platonico e aristotelico da
mctaffsica e instaurou urn processo contra a pretensao de verdade
dos universais, acusando-a de supersticao, Na autoridade dos con-
«cites universais ele ere enxergar ainda 0 medo pelos demonios, cujas
unagens eram 0meio, de que se serviam os homens, no ritual magico,
para tentar influenciar a natureza.. Doravante, a materia deve ser
dominada sem 0 recurso ilusorio a forcas soberanas ou imanentes,
scm a ilusao de qualidades ocultas. 0 que nao se submete ao criterio
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22 dialetica do esclarecimento
passou com os universais mais antigos. Cada resistencia espiritual
que ele encontra serve apenas para aumentar sua for~a.6 Isso se deve
ao fato de que 0 esclarecimento ainda se reconhece a si mesmo nos
proprios mitos. Quaisquer que sejam as mitos de que possa se valer
a resistencia, 0 simples fato de que eles se tornam argumentos par
uma tal oposicao significa que eles adotam 0 principio da racio-
nalidade corrosiva da qual acusam 0 esclarecimento. 0esclarecimen-
to e totalitario.Para ele, 0 elemento basico do mito foi sempre 0 antropomor-
fismo, a projecao do subjetivo na natureza." 0 sobrenatural, 0 es-
pirito e os dernonios seriam as imagens especulares dos homens que
se deixam amedrontar pelo natural. Todas as figuras miticas podem
se reduzir, segundo 0 esclarecimento, ao mesmo denominador, a sa-
ber, ao sujeito. A resposta de Edipo ao enigma da esfinge: "E; 0
homem!" e a inforrnacao estereotipada invariavelmente repetida pelo
esclarecimento, nao import a se este se confronta com uma parte de
urn sentido objetivo, 0 esboco de uma ordem, 0 medo de potencias
maleficas ou a esperanca da redencao: De antemao, 0 esclarecimento
so reconhece como ser e acontecer 0 que se deixa captar pela unida-
de. Seu ideal e 0 sistema do qual se pode deduzir toda e cada coisa.
Nao e nisso que sua versao racionalista se distingue da versao em-
pirista. Embora as diferentes escolas interpretassem de maneira dife-
rente as axiomas, a estrutura da ciencia unit aria era sempre a mesma.
o postulado baconiano da una scientia universalis 7 e, apesar de todo
o pluralismo das areas de pesquisa, tao hostil ao que nao pode ser
vinculado, quanta a mathesis universalis de Leibniz a deseontinui-
dade. A multiplicidade das figuras se reduz a posicao e a ordem, a
historia ao fato, as coisas a materia. Ainda de acordo com Bacon,
entre os primeiros principios e os enuneiados observacionais deve
subsistir uma ligacao Iogica univoca, medida por graus de univer-
salidade. De Maistre zomba de Bacon por cultivar "une idole d'echel-
le"," A logica formal era a grande escola da unificacao. Ela of ere cia
aos esclarecedores 0 esquema da calculabilidade do mundo. 0 equa-
cionamento mitologizante das Ideias com os mimeros nos ultimos
escritos de Platao exprime 0 anseio de toda desmitologizacao: 0
mimero tornou-se 0 canon do esc1arecimento. As mesmas equacoes
dominam a justica burguesa e a troca mercantil. "Nao e a regra:
'se adicionares 0 desigual ao igual obteras algo de desigual' (Si
inaequalibus aequalia addas, omnia erunt inaequalia) urn principio
tanto da justica quanta da matematica? E nao existe uma verdadeira
conceito 23
as proporcoes geometricas e aritmeticas por outro lado?"l1 A socie-
dade burguesa est a dominada pelo equivalente. Ela torna 0 hetero-
geneo comparavel, reduzindo-o a grandezas abstratas. Para 0 escla-
recimento, aquilo que nao se reduz a mimeros e, por fim, ao uno,
passa a ser ilusao: 0positiv ismo moderno remete-o para a li teratura.
"Unidade" continua a ser a divisa, de Parmenides a Russell. 0 que
se continua a exigir insistentemente e a destruicao dos deuses e das
qualidades.
1 Mas os mitos que caem vitimas do esclarecimento ja eram 0
produto do proprio esclarecimento. No calculo cientifico dos aconte-
cimentos anula-se a conta que outrora 0 pensamento dera, nos mitos,
dos acontecimentos. 0 mito queria relatar, denominar, dizer a ori-
gem, mas tambem expor, fixar, explicar. Com 0 registro e a colecao
dos mitos, essa tendencia reforcou-se. Muito cedo deixaram de ser
urn relato, para se tornarem uma doutrina. Todo ritual inclui uma
representacao dos acontecimentos bern como do processo a ser in-
fluenciado pela magia. Esse elemento teorico do ritual tornou-se
autonomo nas primeiras epopeias dos povos, Os mitos, como os en-
contraram os poetas tragicos, ja se encontram sob 0 signo daquela
disciplina e poder que Bacon enaltece como 0 objetivo a se alcancar.
o Iugar dos espiritos e demonios locais foi tornado pelo ceu e sua
hierarquia; 0Iugar das praticas de conjuracao do feiticeiro e da tribo,
pelo sacrificio bern dosado e pelo trabalho servil mediado pelo co-
mando. As deidades olimpicas nao se identificam mais diretamente
aos elementos, mas passam a significa-los. Em Homero, Zeus preside
o ceu diurno, Apolo guia 0 sol, Helio e Eo ja tendem para 0 alego-
rico. Os deuses separam-se dos elementos materiais como sua supre-
ma manifestacao, De agora em diante, 0 ser se resolve no logos -
que, com 0 progresso da filosofia, se reduz a monada, mero ponto
de referencia - e na massa de todas as coisas e criaturas exteriores
a ele. Uma iinica distincao, a distincao entre a propria existencia e a
realidade, engolfa todas as outras distincoes, Destruidas as distin-
<;oes, 0 mundo e submetido ao dominio dos homens. Nisso estao de
acordo a historia judia da criacao e a religiao olimpica. ". .. e do-
minarao os peixes do mar e as aves do ceu e 0 gado e a terra inteira
e todos os repteis que se arras tam sobre a terra." 10 "Zeus, nosso pai,
sois 0 senhor dos ceus, e a vosso olhar nao escapa nenhuma obra
humana, sacrilegas au justas, e nem mesmo a turbulencia dos ani-
mais, e estimais a retidao.t"! "E assim se passa que urn expia logo,
urn outro mais tarde. E mesmo que alguem escape ao castigo e 0
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24 diaIetica do esclarecimento conceito 25
chegar, e sao pessoas inocentes - seus filhos ou uma outra gera-
~ao - que terao de expiar 0 crime."12 Perante os deuses, so con-
segue se afirmar quem se submete sem restricoes. 0 despertar do
sujeito tern por pre~o 0 reconhecimento do poder como 0 principio
de todas as relacoes, Em face da unidade de tal razao, a separacao de
Deus e do homem reduz-se aquela irrelevancia que, inabalavel, a
razao assinalava desde a mais antiga critica de Homero. Enquanto
soberanos da natureza, 0 deus criador e 0 espirito ordenador se igua-
lam. A imagem e semelhanca divinas do homem consistem na sobe-
rania sobre a existencia, no olhar do senhor, no comando.
o mite converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera
objetividade. 0 preco que os hom ens pagam pelo aumento de seu
poder e a alienacao daquilo sobre 0 que exercem 0 poder. 0 esclare-
cimento comporta-se com as coisas como 0 ditador se comporta com
os homens. Este conhece-os na me did a em que pode manipula-los.
o hornem de ciencia conhece as coisas na medida em que pode faze-
las. E assim que seu em-si torna para-ele. Nessa metamorfose,
a essencia das coisas revela-se como sempre a mesma, como substrato
da dominacao. Essa identidade constitui a unidade da natureza. Assim
Como a unidade do sujeito, cla tampouco constitui urn pressuposto
da conjuracao magica, Os ritos do xarna dirigiam-se ao vento, a
chuva, a serpente la fora ou ao demonic dentro do doente, nao a
rnaterias ou exemplares. Nao era urn e 0 mesmo espirito que se dedi-
cava a magia; ele mudava igual as mascaras do culto, que deviam
se assemelhar aos multiples espiritos. A magia IS a pura e simples
inverdade, mas nela a dominacao ainda nao e negada, ao se colocar,
transforrnada na pura verdade, como a base do mundo que a ela
sucumbiu. 0 feiticeiro torna-se sernelhante aos demonios; para as-
susta-los ou suaviza-los, ele assume urn ar assustadico ou suave.
Embora seu oficio seja a repeticao, diferentemente do civilizado -
para quem os modestos campos de caca se transformam no cosmo
unificado, no conjunto de todas as possibilidades de presas c- ele
ainda nao se declarou a imagem e sernelhanca do poder invisivel.
E so enquanto tal imagem e semelhanca que 0 homem alcanca a
identidade do eu que nao pode se perder na identificacao com 0
outro, mas torna definitivamente posse de si como mascara impenetra-
vel. E a identidade do espirito e a seu correlato, a unidade da na-
tureza, que sucumbem as rmiltiplas qualidades. A natureza desqua-
lificada torna-se a materia caotica para uma simples classificacao, e
o eu todo-poderoso torna-se 0 mero ter, a identidade abstrata. Na
do inimigo, a sua cabeleira, a seu nome, afeta ao mesmo tempo a
pessoa; em vez do deus, e 0 animal sacrificial que e massacrado.
A substituicao no sacrificio assinala urn novo passo em direcao aIogica discursiva. Embora a cerva oferecida em lugar da filha e 0
cordeiro em lugar do primogenito ainda devessem ter qualidades
proprias, eles ja representavam 0 genero e exibiam a indiferenca do
exemplar. Mas a sacralidade do hie et nunc, a singularidade historica
do cscolhido, que recai sobre 0 elemento substituto, distingue-o ra-dicalmentc, torna-o introcavel na troca. E a is so que a ciencia da
fim. Nela nao M nenhuma substitutividade especifica: se ainda ha
anima is sacrificiais, nao ha mais Deus. A substitutividade converte-se
na fungibilidade universal. Um atomo e desintegrado, nao em subs-
tituicao, mas como um especime da materia, e a cobaia atravessa,
nao em substituicao, mas desconhecida como urn simples exemplar,
a paixao do Iaboratorio. Porque na ciencia funcional as distincoes
sao tao fluidas que tudo desaparece na materia una, 0 objeto cien-
tifico se petrifica, e 0 rigido ritual de outrora parece flexivel por-
quanto substitufa a um tambem 0 outro. 0 mundo da magia ainda
continha distincoes, cujos vestigios desapareceram ate mesmo da
forma lingiifstica.t" As rmiltiplas afinidades entre os entes sao recal-
cadas pela unica relacao entre 0 sujeito doador de sentido e 0
objeto sem scntido, entre 0 significado racional e 0 portador ocasio-
nal do significado. No est agio magico, sonho e imagem nao eram
tidos como meros sinais da coisa, mas como ligados a esta par
semelhanca ou pelo nome. A relacao nao e a da intencao, mas do
parentesco. Como a ciencia, a magia visa fins, mas ela os perscgue
pel a mimese, nao pelo distanciamento progressivo em relacao ao
objeto. Ela nao se baseia de modo algum na "onipotencia dos pen-
sarnentos", que 0 primitivo se atribuiria, segundo se diz, assim como
o ncurotico.t- Nao pode haver uma "superestimacao dos processos
psfquicos por oposicao a realidade", quando 0 pensamento e a reali-
dade nao iestao radicalmente separados, A "confianca inabalavel na
possibilidade de dominar 0 mundo", 15 que Freud anacronicamente
atribui a magia, so vem corresponder a uma dominacao realista do
mundo gracas a uma ciencia mais astuciosa do que a magia. Para
substituir as praticas localizadas do curandeiro pela tecnica industrial
universal foi preciso, primeiro, que os pensamentos se tornassem
autonomos em face dos objetos, como ocorre no ego ajustado arealidade.
Enquanto totalidade desenvolvida lingiiisticamente, que desva-
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26dialetica do esclarecimento conoeito 27
a religiao popular, 0 mito patriarcal solar e ele proprio escl~reci-
mento, com 0 qual 0 esc1arecimento filosofico pode-se medl~ ~o
mesmo plano. A elc se paga, agora,. na mesma m~eda. A propna
mitologia desfecha 0 processo sem fim do esclareclmento, no qu~l
toda concepgao .teorica determinada acaba fatalmente por sucumbI~
a uma critica arrasadora, a critica de ser apenas uma crenca, ate
que os proprios conceitos de espirito, de ve~dade.'~ ate mes~o, ~e
esclarecimento tcnham-se convertido em magia animista, 0 pnncipioda necessidade fatal, que traz a desgraca aos herois miticos e que se
desdobra a partir da sentenca oracular como uma c~nseq~enci~ 10-
gica, nao apenas domina todo sistema racionalista da ~llosoflaociden-
tal, onde se ve depurado ate atingir 0 rigor da logica formal, mas
impera ate mesmo sobre a serie dos sistemas, q~e corneca ~om a
hierarquia dos deuses e, num permanente crepuscu10 dos I~olos,
transmite sempre 0 mesmo conteudo: a ira pe1afalta de :lOnestlda~e.
Do mesmo modo que os mitos ja levam a cabo 0 esclarecimnto, assim
tambem 0 esclarecimento fica cada vez mais enredado, a cada passo
que da, na mitologia. Todo conteudo, e:e 0 rec~be dos mitos, para
destrui-los, e ao julga-los, ele cai na orbitado mito. Ele '!_uerse fu~-tar ao processo do destino e da retribuicao. fazendo-o pagao, ~lepro-
prio, uma retribuicao. No mito, tudo 0 que acontece deve eXPIa~uma
pena pelo fato de ter acontecido. E assim continua no esclare~lmen-
to: 0 fato torna-se nulo, mal acabou de acontecer. A doutnna. ~a
igualdade entre a acao e a reacao afirmava 0 poder da repet~gao
sobre 0 que existe muito tempo apos os homens terem renun~Iado
a ilusao de que pela repeticao poderiam se identificar c?m a realidade
repetida e, assim, escapar a seu poder. Mas quanto ma~s_sedesvanec~
a ilusao magica, tanto mais inexoravelmente a re~etlgao, sob.0 n-tulo da submissao a lei, prende 0 homem naquele ciclo que, ob]e.t~a-
lizado sob a forma da lei natural, parecia garanti-Io como urn sujeitolivre. 0 principio da [manencia, a explicacao de todo aco!'teci~en~o
como repeticao, que 0 esclarecimento defende contra a l~agmagao
mitica, e 0 principio do proprio mito. A insossa sabedona pa~a a
qual nao ha nada de novo sob 0 sol, porque todas as cartas do jogo
sem-sentido ja teriam sido jogadas, porque todos grandespe!'samen-
tos ja teriam sido pensados, porque as descobertas posslvels pode-
riam ser projetadas de antemao, e os homens estana~ forcados a
assegurar a autoconservacao pela adaptacao - essa msossa ~a~e-
doria reproduz tao-somente a sabedoria fantastica que eia rejeita:
a ratificac;ao do destino que, peia retribuicao, reproduz sem ~essar 0
estabelece criticamente os limites da experiencia possivel. 0 preco
que se paga pela identidade de tudo com tudo e 0 fato de que nada,
ao mesmo tempo, pode ser identico consigo mesmo. 0esclareci-
.mento corroi a injustica da antiga desigualdade, 0 senhorio nao me-
diatizado; perpetua-o, porem, ao mesmo tempo, na mediacao univer-
s.al, na relacao de cada ente com cada ente. Ele faz aquilo que
Kirkegaard celebra em sua etica protestante e que se encontra no
cicIo epico de Heracles como uma das imagens primordiais do poder
rnitico: ele elimina 0 incomensuravel, Nao apenas sao as qualidades
dissolvidas no pensamento, mas os homens sao Iorcados a real con-
formidade. 0 prego dessa vantagem, que e a indif'erenca do mercado
pela origem das pessoas que nele vern trocar suas mercadorias, epago por elas mesmas ao deixarem que suas possibilidades inatas
sejam modeladas pela producao das mercadorias que se podem com-
prar no mercado. Os homens receberam 0 seu eu como algo perten-
cente a cada urn, diferente de todos os outros, para que ele possa
com tanto maior seguranca se tornar igual. Mas, como isso nunca
se realizou inteiramente, 0 esclarecimento sempre simpatizou, p.1esmo
durante 0 periodo do liberalismo, com a coercao social. A unidade
da coletividade manipulada consiste na negacao de cada individuo;
seria digna de escarnio a sociedade que conseguisse transformar os
homens em indivfduos, A horda, cujo nome sem duvida esta pre-
sente na organizacao da Juventude Hitlerista, nao e nenhuma recaida
na antiga barbaric, mas 0 triunfo da igualdade repressiva,a realiza-
<;aopelos iguais da igualdade do direito a injustica. 0mito de fan-
carla dos fascistas evidencia-se como 0autentico mito da antiguidade,
na medida em que 0 mito autentico conseguiu enxergar a retribuicao,
enquanto 0falso cobrava-a cegamente de suas vitimas. Toda tentativa
de romper as imposicoes da natureza rompendo a natureza, resulta
numa submissao ainda mais profunda as imposicoes da natureza. Tal
foi 0 rumo tomado pela civilizacao europeia. A abstracao, que e 0
instrumento do esclarecimento, comporta-se com seus objetos do mes-
mo modo que 0 destino, cujo conceito e por ele eliminado, ou seja,
ela se comporta como um processo de liquidacao. Sob 0 dominio ni-
velador do abstrato, que transforma todas as coisas na natureza em
algo de reproduzivel, e da industria, para a qual esse dominio do
abstrato prepara 0 reproduzivel, os proprios liberados acabaram por
se transformar naquele "destacamento" que Hegel!" designou como
o resultado do esclarecimento.
A distancia do sujeito com relacao ao objeto, que e 0 pressu-
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28 dialetica do esclarecimento conceito 29
que 0 senhor conquista atraves do dominado. Os cantos de Homero
e os hinos do Rigveda datam da epoca da dominacao territorial e
dos lugares fortificados, quando uma belicosa nacao de senhores se
estabeleceu sobre a massa dos autoctones vencidos.t? 0 deus supremo
entre os deuses surgiu com esse mundo civil, onde 0rei, como chefe
da nobreza armada, mantem os subjugados presos a terra, enquantoos medicos, adivinhos, artesaos e comerciantes se ocupam do inter-
cambio social. Com 0 fim do nomadismo, a ordem social foi instau-rada sobre a base da propriedade fixa. Dominacao e tranalho
separam-se. Urn proprietario como Ulisses "dirige a distancia urn
pessoal numeroso, meticulosamente organizado, composto de servi-
dores e pastores de bois, de ovelhas e de porcos. Ao anoitecer, depois
de ver de seu palacio a terra iluminada por mil fogueiras, pode
entregar-se sossegado ao sono: ele sabe que seus bravos servidores
vigiam, para afastar os animais selvagens e expulsar os ladroes dos
coutos que estao encarregados de guardar't.l" A universalidade dos
pensamentos, como a desenvolve a logica discursiva, a dominacao
na esfera do conceito, eleva-se fundamentada na dominacao do real.
E a substituicao da heranca magica, isto e, das antigas representa-
~oes difusas, pela unidade conceptual que exprime a nova forma de
vida, organizada com base no comando e determinada pelos homens
livres. 0 eu, que aprendeu a ordem e a subordinacao com a sujeicao
do mundo, nao demorou a identificar a verdade em geral como
pensamento ordenador, e essa verdade nao pode subsistir sem as rigi-
das diferenciacoes daquele pcnsamento ordenador. Juntamente com
a magia mimetica, ele tornou tabu 0 conhecimento que atinge efeti-
vamcnte 0 objeto. Seu odio volta-se contra a imagem do mundo
pre-historico superado e sua felicidade imaginaria. Os deuses ctonicos
dos habitantes primitivos sao banidos para 0 inferno em que se coo-
verte a terra, sob a religiao do sol e da luz de Indra e Zeus.
o ceu e 0 inferno, porem, estao ligados urn ao outro. Assimcomo, em cultos que nao se excluiam, 0 nome de Zeus era dado
tanto a urn deus subterraneo quanto a urn deus da IUZ,19 e os deuses
olimpicos cultivavam toda especie de relacoes com os ctonicos,
assim tambern as potencias do bern e do mal, a graca e a desgraca,
nao eram claramente separadas. Elas estavam ligadas como 0 vir-a-ser
e 0 parecer, a vida e a morte, 0 verao e 0 inverno. No mundo lumi-
noso da religiao grega perdura a obscura indivisao do princfpio relic
gioso venerado sob 0nome de "mana" nos mais antigos estagios que
se conhecem da humanidade. Primario, indiferenciado, ele e tudo 0
que e desconhecido, estranho: aquilo que transcende 0 ambito da
experiencia, aquilo que nas coisas e mais do que sua realidade ja
conhecida. 0 que 0 primitivo ai sente como algo de sobrenatural
nao e nenhuma substancia espiritual oposta a substancia material,
mas 0 emaranhado da natureza em face do elemento individual. 0
grito de terror com que e vivido 0 insolito torna-se seu nome. Ele
fixa a transcend encia do desconhecido em face do conhecido e, as-
sim, 0 horror como sacralidade. A duplicacao da natureza como
aparencia e essencia, a~ao e Iorca, que torna possivel tanto 0 mito
quanto a ciencia, provem do medo do homem, cuja expressao se
converte na explicacao, Nao e a alma que e transposta para a natu-
reza, como 0 psicologismo faz crer. 0 mana, 0 espirito que move,
nao e nenhuma projecao, mas 0 eco da real supremacia da natureza
nas almas fracas dos selvagens. A separacao do animado e do inani-
mado, a ocupacao de lugares determinados por demonios e divin-
dades, tern origem nesse pre-anirnismo. Nele ja esta virtualmente
contida ate mesmo a separacao do sujeito e do objeto. Quando uma
arvore e considerada nao mais simplesmente como arvore, mas como
testemunho de uma outra coisa, como sede do mana, a linguagem
exprime a contradicao de que uma coisa seria ao mesmo tempo ela
mesma e outra coisa diferente dela, identica e nao identica.s" Atra-
. yes da divindade, a linguagem passa da tautologia a linguagem. 0
conceito, que se costuma definir como a unidade caracteristica do
que esta nele subsumido, ja era desde .0 inicio 0 produto do pensa-
mento dialetico, no qual cada coisa so e 0 que ela e tornando-se
aquilo que ela nao e. Eis ai a forma primitiva da deterrninacao obje-
tivadora na qual se separavam 0 conceito e a coisa, determinacao
essa que ja esta amplamente desenvolvida na epopeia homerica e
que se acelera na ciencia positiva moderna. Mas essa dialetica per-
manece impotente na medida em que se desenvolve a partir do grito
de terror que e a propria duplicacao, a tautologia do terror. Os
deuses nao podem livrar os hom ens do medo, pois sao as vozespetrificadas do medo que eles trazem como nome. Do medo 0 ho-
mem presume estar livre quando nao ha nada mais de desconhecido.
E isso que determina 0 trajeto da desmitologizacao e do esclareci-
mento, que identifica 0 animado ao inanimado, assim como 0 mito
identifica 0 inanimado ao animado. 0 esclarecimento e aradicaliza-
c;ao da angustia mitica. A pura imanencia do positivismo, seu der-
radeiro produto, nada mais e do que urn tabu, por assim dizer,
universal. Nada mais pode ficar de fora, porque a simples ideia do
"fora" e a verdadeira fonte da angtistia . .. Se 0 primitivo apaziguava,
a s vezes, seu desejo de vingar 0 assassinato de urn dos seus acolhendo
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30 dialetica do esclarecimento conceito 31
o assassino na propria familia.s! isso significava, tanto quanto a
vinganca, a infusao do sangue alheio no proprio sangue, a restaura-
c;ao da imanencia. 0 dualismo mitico nao ultrapassa 0 ambito da
existencia. 0 mundo totalmente dominado pelo mana, bern como 0
mundo do mito indiano e grego, sao, ao mesmo tempo, sem saida e
eternamente iguais. Todo nascimento se paga com a morte, toda ven-
tura com a desventura. Homens e deuses podem tentar, no prazo que
lhes cabe, distribuir a sorte de cada urn segundo criterios diferentesdo curso cego do destino; ao fim e ao cabo, a realidade triunfa sobre
eles. Ate mesmo sua justica, arrancada que foi a fatalidade, exibe
ainda os seus traces, Ela corresponde ao olhar que os homens, tanto
os primitivos quanta os gregose os barbaros, lancam sobre 0mundo
a partir de uma sociedade da opressao e da miseria. Por isso, tanto a
justica mitica como a escIarecida consideram a culpa e a expiacao,
a ventura e a desventura como os dois lados de uma iinica equacao.
A justica se absorve no direito. 0 xama esconjura 0 perigo com a
imagem do perigo. A igualdade e 0 seu instrumento. :E ela que, na
civilizacao, regula 0 castigo e 0 merito. As representacoes miticas
tambem podem se reduzir integralmente a relacoes naturais. Assimcomo a constelacao dos Gemeos remete, como todos os outros sim-
bolos da dualidade, ao cicIo inescapavel da natureza; assim como este
mesmo cicIo tern, no simbolo do ovo, do qual provem os demais, seu
simbolo mais remoto; assim tambem a balanca nas maos de Zeus, que
simboliza a justica de todo 0mundo patriarcal, remete a mera natu-
reza. A passagem do caos para a civilizacao, onde as condicoes natu-
rais nao mais exercem seu poder de maneira imediata, mas atraves da
consciencia dos homens, nada modificou no principia da igualdade.
Alias, os homens expiaram essa passagem justamente com a adora-
!faOdaquilo a que estavam outrora submetidos como as demais cria-
turas. Antes, os fetiches estavam sob a lei da igualdade. Agora, apropria igualdade torna-se fetiche. A venda sobre os olhos da Justica
nao significa apenas que nao se deve interferir no direito, mas que
ele nao nasceu da liberdade.
c;aoinfinita, perrnanencia do significado nao sao apenas atributos de
todos os simbolos, mas seu verdadeiro conteudo, As representacoes
da criacao nas quais 0 mundo surge da Mae primordial, da Vaca
ou do Ovo, sao, ao contrario do Genesis judeu, simbolicas. A zom-
baria com que os antigos ridicularizaram os deuses demasiadarnente
huma~lOs.deixou incolume seu amago. A individualidade nao esgota
a essencia dos deuses, Eles tinham ainda algo do mana dentro de
si; eles personifieavam a natureza como urn poder universal. Comseus traces pre-animistas, eles se destacam no escIareeimento. Sob
o veu pudico da chronique scandaleuse olimpica ja havia se formado
a doutrina da mistura, da pressao e do choque dos elementos, que
logo se estabeleceu como ciencia e transformou os mitos em obras
da fantasia. ~om a nitida separacao da ciencia e da pocsia, a divisao
~~ traba~ho ja cfetuada com sua ajuda estende-se a Iinguagem. E en-
.~uanto signo que a paIavra chega a ciencia, Enquanto som, enquanto
imagem, enquanto paIavra propriamente dita, ela se ve dividida entre
as diferentes artes, scm jamais deixar-se reconstituir atraves de sua
adicao, atraves da sinestesia ou daarte total. Enquanto signo, a lin-
guagem deve resignar-se ao calculo; para conhecer a natureza deverenunciar a pretensao de ser semelhante a ela. Enquanto imagern
d~ve,resignar-se a copia; para ser totalmente natureza, deve renun~
c:ar a pretensao de conhece-la, Com 0 progresso do esclarecirnento,
so as. obras de arte autenticas conseguiram escapar a mera imitacao
daqUll?,q~e, de urn modo qualquer, ja e. A antitese corrente da arte
e da ele?~la, ~u~ as separa como dominios culturais, a fim de torna -las adrninistraveis conjuntamente como dominios culturais, Iaz com
que ela~ a~abemP?r ~econfu?,dir~mcomo opostos exatos gracas as
s~as propnas tende?~Ias. A. CIenCIaem sua interpretacao neopositi-
VIsta tor?a-se ~stetICIsmo,SIstema de signos desligados, destituidos
de toda llltenc;~o.transc,endendo0 sistema: ela se toma aquele jogoque os matematIcos ha muito orgulhosamente declararam assunto
deles. A arte da copiabilidade integral, porem, entregou-se ate mesmo
em suas tecnicas a ciencia positivista. De fato, ela retorna mais uma
vez ao_mund~, na duplicacao ideologica, na reproducao docil. A
separac;.ao~o slgn~ e da imagem e inevitavel. Contudo, se ela e, uma
vez mars, hIpostasIad~ numa atitude ao mesmo tempo inconsciente e
autocomplace?t:, entao cada urn dos dois principios isolados tendepara a destruicao da verdade.
o a_?ismoque ~ea?r~u com a separacao, a filosofia enxergou-o
na r~lac;aoentre a I~tU!(;aoe 0 conceito e tentou sempre em van
A doutrina dos sacerdotes era simbolica no sentido de que nela coin-
cidiam 0 signo e a imagem. Como atestam os hier6glifos, a palavra
exerceu originariamente tambem a func;ao da imagem. Esta func;ao
passou para os mitos. Os mitos, assim como os ritos magicos, tern
em vista a natureza que se repete. Ela e 0 amago do simb61ico: urn
-ser ou urn processo representado como eterno porque deve voltar
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.3 2 dialetica do esclarecimento
maioria das vezes, porem, ela se colocou do lado do qual recebia 0
nome. Platao baniu a poesia com 0mesmo gesto com que 0 positi-
vismo baniu a doutrina das Ideias, Com sua arte celebrada, Homero,
segundo se diz, nao levou a cabo nem reformas publicas nem priva-
das, nao ganhou nenhuma guerra nem fez nenhuma invencao. Nao
sabemos, diz-se, da existencia de numerosos seguidores que 0 tenham
honrado ,au amado. A arte teria, primeiro, que mostrar a sua utili-
dade.22 A imitacao est a proscrita tanto em Homero como entre osjudeus. A razao e a religiao dec1aram anatema 0 principio da magia.
Mesmo na distancia renunciadora da vida, enquanto arte, ele per-
manece desonroso; as pessoas que 0 praticam tornam-se vagabundos,
nomades sobreviventes que nao encontram patria entre os que se
tornaram sedentarios, A natureza nao deve mais ser influenciada
pela assimilacao, mas deve ser dominada pelo trabalho. A obra de
arte ainda tern em comum com a magia 0 fato de estabelecer urn
dominio proprio, fechado em si mesmo e arrebatado ao contexto
da vida profana. Neste dominio imperam leis particulares. Assim
como a prime ira coisa que 0 feiticeiro fazia em sua cerimonia era
delimitar em face do mundo ambiente 0 lugar onde as Iorcas sagra-das deviam atuar, assim tambem, com cada obra de arte, seu circulo
fechado se destaca do real. E exatamente a remincia a agir, pela
qual a arte se separa da simpatia magica, que fixa ainda mais pro-
fundamente a. heranca magica. Esta remincia coloca a imagem pura
em oposicao a realidade mesma, cujos elementos ela supera reten-
do-os (aufhebt) dentro de si. Pertence ao sentido da obra de arte,
da aparencia estetica, ser aquilo em que se converteu, na magia do
primitivo, 0 novo e terrivel: a rnanifestacao do todo no particular.
Na obra de arte volta sempre a se realizar a duplicacao pela qual a
coisa se manifestava como algo de espiritual, como exteriorizacao
do mana.£. isto que constitui sua aura. Enquanto expressao da tota-
lidade, a arte rec1ama a dignidade do absoluto. Isso, as vezes, levou
a filosofia a atribuir-lhe prioridade em face do conhecimento con-
ceitual. Segundo Schelling, a arte entra em acao quando 0 saber
desampara os homens. Para ele, a arte e "0 modelo da ciencia, e eaonde esta a arte que a ciencia deve ainda chegar" .23 Em sua dou-
trina, a separacao da imagem e do signo e "totalmente suprimida por
cada representacao artistica" .24 So muito, raramente 0 mundo burgues
esteve aberto a semelhante confianca na arte. Quando ele limitava
o saber, isso acontecia via de regra, nao para abrir espaco para a
arte, mas para a fe. E atraves da fe que a religiosidade militante dos
conceito 33
ciliar 0 espirito e a vida. Mas a fe e urn conceito privativo: ela se
anula com fe se nao ressalta continuamente sua oposicao ao saber
ou sua concordancia com ele. Permanecendo dependente da limita-
<;aodo saber, ela propria fica limitada. A tentativa da fe, ernpreen-
dida no protestantismo, de encontrar, como outrora, 0 principio da
verdade que a transcende, e sem a qual nao pode existir diretarnente,
na propria palavra e de restituir a esta a Iorca simbolica - essa
tentativa teve como preco a obediencia a palavra, alias a uma palavraque nao era a sagrada. Permanecendo inevitavelmente presa ao saber
como amiga ou inimiga, a fe perpetua a separacao na luta para
supera-la: seu fanatismo e a marca de sua inverdade, a confissao
objetiva de que quem apenas ere por isso mesmo nao mais ere. A rna
consciencia e sua segunda natureza. Na secreta consciencia da defi-
ciencia que the e necessariamente incrente, da contradicao imanente
nela e que consiste em fazer da reconciliacao sua vocacao, esta a razao
por que toda a honestidade dos fieis sempre foi irascivel e perigosa.
Nao foi como exagero mas como realizacao do proprio principio da fe
que se cometeram os horrores do fogo e da espada, da contra-reforrna
e da reforma. A fe nao cessa de mostrar que e do mesmo jaez que ahistoria universal, sobre a qual gostaria de imperar; nos tempos mo-
demos, ela ate mesmo se converte em seu instrumento prefcrido, sua
asnicia particular. Nao e apenas 0 esclareeimento do seculo dezoito
que e irresistivel, como atestou Hegel, mas (e ninguem sabia melhor
do que ele) 0 movimento do proprio pensamento. Tanto 0 mais
superficial quanta 0 mais profundo discernimento ja contern 0 dis-
cernimento de sua distancia com relacao a verdade que faz do apolo-
geta urn mentiroso. 0 paradoxo da fe acaba pOI degenerar no embus-
te, no mito do seculo vinte, enquanto sua irracionalidade degenera
na cerimonia organizada raeionalmente sob 0 controle dos integral-
mente esc1arecidos e que, no entanto, dirigem a sociedade em direcaoit barbaric.
Quando a linguagem penetra na historia, seus mestres ja sao
sacerdotes e feiticeiros. Quem viola os simbolos fica sujeito, em nome
das potencias supraterrenas, as potencias terrenas, cujos representantes
sao esses orgaos comissionados da sociedade. 0 que precedeu a isso
esta envolto em sombras. Onde quer que a etnologia 0 encontre, 0
sentimento de horror de que se origina 0 mana ja tinha recebido a
sancao pelo menos dos mais velhos da tribo. 0 mana nao-identico
e difuso e tornado consistente pelos homens e materializado a forca.
Logo os feiticeiros povoam todo lugar de emanacces e correlacionam
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34 dialetica do esc/arecimento
expandem 0 mundo dos espiritos e suas p~rti~ularidades e, com ele,
seu saber corporativo e seu poder. A essencia sagrada transfere-se
para os feiticciros que lidam com ela. Nas primeiras fases, do noma-
dismo, os membros da tribo tern ainda uma parte autonoma nas
acoes dcst inadas a influenciar 0 curso da natureza. Os homens r~s-
trciam a caca as mulhercs cuidam do trabalho que pode ser feito
sern urn comando rigido. Quanta violencia foi necessaria antes que
as pessoas se acostumassem a uma coord~na~~o ta? s.iu:p.1es como
cssa 6 impossfvel determinar. Nela, 0mundo ja esta dividido numa
esfera do poder e numa esfera profana. Nela, 0 curso da nat~reza
enquanto efhivio do mana ja esta erigido em norma, que ex~ge_ a
submissao. Mas, se 0 selvagcm nornade, apesar de toda a subml~sao,
ainda participava da magia que a limitava e se disfarcava ~o .ammal
cacado para surpreende-lo, em periodos posterior~s 0 comercio com
os espiritos e a submissao foram divididos pelas ~lfe~entes classes da
humanidade: 0 poder esta de um lado, a obe~len.cla ~o .outro. osprocessos naturais recorrentes e eternament~ 19uals. sao mc.ulcados
como ritmo do trabalho nos homens submetidos, seja por tnbos es-
trangciras seja pelas pr6prias cliques de govern antes, no compasso
da maca 'e do porrete que ecoa em todo tambor ~arbaro, e~ todo
ritual mon6tono. Os simbolos assumem a expressao do fetiche. A
repeticao da natureza, que e 0 seu significado, acaba semp~e por. se
mostrar como a permanencia, por eles representada, da coercao SOCial.
o sentimento de horror materializado numa imagem s6lida torna-se
o sinal da dominacao consolidada dos privilegiados. Mas isso e 0 ~ue
os conceitos universais continuam a ser mesmo quando se desfize-
ram de todo aspecto figurativo. A forma dedutiva .da .ciencia refl~te
ainda a hierarquia e a coercao. Assim como as pnmelras. ca~e~onas
representavam a tribo organizada e seu po~er sobre os mdlvl,du~s,
assim tam bern a ordem 16gica em seu conjunto - a dependencia,
o encadeamento a extensao e uniao dos conceitos - baseia-se nas
relacoes correspondentes da realidade social, da divisao do traba-
Iho.25 S6 que, e verdade, esse carater social das formas ?o ~ensa-
mento nao e como ensina Durkheim, expressao da solidariedade
social mas-testemunho da unidade impenetravel da sociedade e da
domi~a<;ao. A dominacao confere maior consistencia e forca ao t~do
social no qual se estabelece. A divisao do trabalho, em '!_ue c ulmina
o processo social da dominacao, serve a autoconservac;ao d~ to~o
dominado. Dessa maneira, porem, 0 todo enquanto todo, a at1Vac;~o
da razao a ele imanente, converte-se necessariamente na ex~cuc;ao
conceito 35
como a razao na realidade efetiva. 0 poder de todos os membros da
sociedade, que enquanto tais nao tern outra saida, acaba sempre,
pcla divisao do trabalho a eles imposta, por se agregar no sentido
justamente da realizacao do todo, cuja racionalidade e assim mais
uma vez multiplicada. Aquilo que acontece a todos por obra e graca
de poucos realiza-se sempre como a subjugacao dos individuos por
muitos: a opressao da sociedade tern sempre 0 carater da opressao
pO T uma coletividade. E essa unidade de coletividade e dominacao
(~nao a universalidade social imediata, a solidariedade, que se sedi-
menta nas form as do pensamento. Os conceitos filos6ficos nos quais
Platao e Arist6teles expoem 0 mundo, exigiram, com sua pretensao
de valida de universal, as relacoes por eles fundamentadas como a
vcrdadeira e efetiva realidade. Esses conceitos provem, como diz
ViCO,26da prac;a db mercado de Atenas. Eles refletiam com a mesma
pureza das leis da fisica a igualdade dos cidadaos pie nos e a infe-
rioridade das mulheres, das criancas e dos escravos. A pr6pria Iin-
guagem conferia ao que era dito, isto e, as relacoes da dominacao,
aquela universalidade que ela tinha assumido como veiculo de uma
sociedade civil. A enfase metaffsica, a sancao atraves de ideias e
normas, nada mais era senao a hipostasiacao da dureza e da exclu-
sividade que os conccitos tinham que assumir onde quer que a lin-
guagem reunisse a comunidadc dos dominantes para 0 exercicio do
comando. Na medida em que constituiam semelhante retorco do poder
social da Iinguagem, as ideias se tornavam tanto mais superfluas
quanta mais crescia esse poder, e a linguagem da ciencia preparou-
lhes 0 fim. Nao era a justificacao consciente que se ligava a sugestao
que ainda conserva algo do terror do fetiche. A unidade de cole-
tividade e dorninacao mostra-se antes de tudo na universalidade que
I) mau conteiido necessariamente assume na linguagem, tanto me-
tafisica quanta cientifica. A apologia metafisica deixava entrever a
injustica da ordem existente pelo menos atraves da incongruencia
do conceito e da realidade. Na imparcialidade da linguagem cienti-
fica, 0 impotentc perdeu inteiramente a Iorca para se exprimir, c s6
() existente encontra ai seu signo neutro. Tal neutralidade e mais
metafisica do que a metaffsica. 0 esc1arecimento acabou por consu-
mir nao apcnas os simbolos mas tambem seus sucessores, os conceitos
universais, e da metafisica nao deixou nada senao 0 medo abstrato
frcnte a coletividade da qual surgira. Diante do esclarecimento, os
conceitos estao na mesma situacao que os aposentados diante dos
irustes industriais: ninguern pode sentir-se seguro. Se 0 positivismo
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36 dialetica do esclarecimento
gico equipara-a ja a essencia. "Nos idees vagues. de chance et de
quintessence sont de pales survivances de cette notion beaucoup plus
riche" 27 a saber da substancia magica.
o escIarecimento nominalista detem-se diante do nomen, 0 con-
ceito sem extensao, punctual, 0 nome proprio. A questao se os nomes
proprios, como alguns afirmaram.s" eram. origi~a~iamente, ao ~esmo
tempo, nomes genericos, nao se p~de mats decldl~ com ce~te~a, con-
tudo os primeiros ainda nao partilharam 0 destino dos ultimos, A
substancia do ego negada por Hume e Mach nao e a mesma ~ueo nome. Na religiao judaica, onde a ideia do patriarcado culmina
na destruicao do mito, 0 l iame entre 0 nome e 0 ser permanece reco-
nhecido atraves da proibicao de pronunciar 0 nome de De~s. 0
mundo desencantado do judaismo reconcilia a magia atraves de
sua negacao na ideia de Deus. A religiao judaica nao toler a nenhuma
palavra que proporcione consolo ao deses~~r~ de q~alquer mortal.
Ela associ a a csperanca unicamente a proibicao de mvocar 0 falso
como Deus, 0 finite como 0 infinito, a mentira como verdade: 0
penhor da salvacao consiste n~ r:cusa ~e :_oda fe que~e substlt~a
a ela, 0 conhecimento na denuncia da ilusao, A negacao, t~davI~,
nao e abstrata. A contestacao indiferenciada de tudo 0 que e POSI-tivo, a formula estereotipada da nulidade, como a emprega 0 bu-
dismo, passa por cima da proibicao de ~ar nomes ao ab~oluto, do
mesmo modo que seu contrario, 0 panteismo, ou sua cancatura, 0
ceticismo burgues. As explicacoes do mundo como 0 nad: ou 0, t?do
sao mitologias, e os caminhos garantidos para a redencao, P!atIcas
magic as sublimadas. A a~tocomplacencia ~o sa~er de antemao e a
transfiguracao da negatividade em redencao sao form as falsas ~a
resistencia a impostura. 0 direito da imagem e salvo na exec~~ao
fiel de sua proibicao. Semelhante execucao, "negacao determina-
da",29 nao esta imunizada pel a soberania do conceito abstrat~ contra
a intuicao sedutora, como 0 esta 0 ceticismo para 0 qu.al sao n~l.ostanto 0 falso quanta 0 verdadeiro. A nega~~o determlOad~ rejeita
as representacoes imperfeitas do absoluto, os idolos, mas ~ao como
o rigorismo, opondo-Ihes a Ideia que elas nao podem satisfazer, A
dialetica revel a, ao contrario, toda imagem como uma forma ~e es-
crita. Ela ensina a ler em seus traces a confissao de sua falsidade,
confissao essa que a priva de seu poder e 0 transfe~e para ~ verdade.
Desse modo, a linguagem torna-se mais que urn simples sistema de
signos. Com 0 conceito da negacao determinada, Hegel ~estaco?
urn elemento que distingue 0 esclarecimento da desagregacao POSl-
tivista a qual ele 0 atribui. :£ verdade, porem, que ele acabou por
ronceitn37
fazer um absoluto do resuItado sabido do processo total da nega~ao:
a t~t~li~ade no sistema e na historia, e que, ao fazer isso, infringiu aproibicao e sucumbiu ele proprio a mitologia.
Isso nao ocorreu apenas a sua filosofia enquanto apoteose do
pensamento em progresso, mas ao proprio esclarecimento, entendido
Como a sobriedade pel a qual este acredita distinguir-se de Hegel e da
metaffsica em geral. Pois 0 esclarecimento e totalitario como qual-
quer outro sistema. Sua inverdade nao esta naquilo que seus inimigos
romanticos sempre the censuraram: 0 rnetodn analitico, 0 retorno
aos elementos, a decomposi~ao pela reflexao, mas sim no fato de
que. para ele 0 processo est a decidido de antemao. Quando, no pro-
ccdirnento matcmatico, 0 desconhecido se torna a incognita de urna
equacao, cle se vc caracterizado por isso mesmo como algo de ha
muito conhecido, antes mesmo que se introduza qualquer valor. A
n~tureza e, a~tes e depois da teoria quantica, 0 que deve ser apreen-
dido matematlcamente. Ate mesmo aquilo que nao se deixa compre-
ender, ~ .indissolubilidade e a irracionalidade, e cercado por teoremas
matematicos. Atraves da identifica<;ao antecipatoria do mundo total-
mente matematizado com a verdade, 0 eselarecimento acredita estar
a salvo do retorno do mitico Elc confunde 0 pensamento e a ma-
tematica. Desse modo, esta se vc por assim dizer solta, transformada
'na instancia absoluta. "Urn mundo infinito, no caso um mundo de
idealidades, 6 concebido como um mundo cujos objetos nao se tor-
~am accssivcis ao nosso conhecimento urn por um, de maneira
lmperfeita c como que por acaso; mas, ao contrario, um metoda
racional, dotado dc uma unidade sistematica, acaba por alcancar _
numa progrcssao infinita - todo 0 objeto tal como ele e em si
mesmo ... Na matematiza9ao galileana da natureza, a natureza ela
prc5p:i~ e agora idealizada sob a egide da nova matematica, ou, para
expr~m~-l_o d e urna maneira moderna, ela se torn a ela propria urna
muIhphcldadc matematicava« 0 pensar rcifica-se num processo
autornatico e autonomo, emulando a maquina que ele proprio pro-
duz para que ela possa finalmente substitui-Io. 0 escIarecimento31pos de lado a exigencia classica de pensar 0 pensamento _ a filo-
s?fi~ de ~ichte ~ 0 seu desdobramento radical _ porque ela des-
viana do lmpcrahvo de comandar a praxis, que 0 proprio Fichte no
ent~nto. qucria .obedecer. 0 procedimento matemane., tornou-se, par
aSSlm dizer, 0 ntual do pensamento. Apesar da autolimitacgr, axioma,
fica, ele se instaura como necessario e objetivo: eIe transforma 0
pensamento em coisa, em instrumento, como ele proprio 0 denomina.
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38dialetica do esclarecimento
I I
o factual tornou-se agora a tal ponto a iinica referencia, que ate
mesmo a negacao de Deus sucumbe ao juizo sobre a metaffsica.
Para 0 positivismo que assumiu a magistratura da razao esclarecida,
extravagar em mundos inteligiveis e nao apenas proibido, mas e tidocomo urn palavreado sem sentido. Ele nao precis a - para sorte
sua - ser ateu, porque 0 pensamento coisificado nao pode sequer
colocar a questao. De born grado 0 censor positivista deixa passar 0
culto oficial, do mesmo modo que a arte, como urn dominic particularda atividade social nada tendo a ver com 0 conhecimento; mas a
negacao que se apresenta ela propria com a pretensao de ser conhe-
cimento, jamais. Para a mentalidade cientifica, 0 desinteresse do
pensamento pela tarefa de preparar 0 factual, a transgressao da esfera
da realidade e desvario e autodestruicao, do mesmo modo que, para
o feiticeiro do mundo primitivo, a transgressao do circulo magico
tracado para a invocacao, enos dois casos tomam-se providencias
para que a infracao do tabu acabe realmente em desgraca para 0
sacrilego. A dominacao da natureza traca 0 circulo dentro do qual
a Critica da Raziio Pura baniu 0 pensamento. Kant combinou a
doutrina da incessante e laboriosa progressao do pensamento ao infi-nito com a insistencia em sua insuficiencia e eterna limitacao. Sua
li\(ao e urn oraculo. Nao ha nenhum ser no mundo que a ciencia nao
possa penetrar, mas 0 que pode ser penetrado pela ciencia nao is 0
seI. E 0 novo, segundo Kant, que 0 juizo filos6fico visa e, no entanto,
ele nao conhece nada de novo, porque repete tao-somecte 0 que a
razao ja colocou no objeto. Mas este pensamento, resguardado dos
sonhos de urn visionario nas diversas disciplinas da ciencia, recebe
a conta: a dominacao universal da natureza volta-se contra 0 proprio
sujeito pensante; nada sobra dele senao justamente esse eu penso
eternamente igual que tern que poder aeompanhar todas as mmhas
representacocs. Sujeito e objeto tornam-se ambos nulos. 0 eu abstra-
to, 0 titulo que da 0 direito a protocolar e sistematizar, nao tern
diante de si outra coisa senao 0 material abstrato, que nenhuma
outra propriedade possui alem da de ser urn substrato para semelhante
posse. A equacao do espirito e do mundo acaba por se resolver, mas
apenas com a mutua reducao de seus dois Iados. Na reducao do pen-
samento a uma aparelhagem matematica esta implicita a ratificacao
do mundo como sua propria medida. 0 que aparece como triunfo da
racionalidade objetiva, a submissao de todo ente ao formalismo 10 -
gico, tern por preco a subordinacao obediente da razao ao imedia-
tamente dado. Compreender 0 dado enquanto tal, descobrir nos da-
I '
I I
conceito 39
quais ~~ possa entao agarra-las, mas ao contrario pensa-Ias como a
superffcie, como aspectos mediatizados do conccito, que so se reali-
zam no desdobramento de seu sentido social, hist6rico, humano -
toda a prctcnsao do conhecimento e abandonada. Ela nao consistc
n~ mero p~rcebcr, .c1assificar e ca1cular, mas precisamentc na nega-
cao dcterrninante de cada dado imediato. Ora, ao inves disso 0 for-
malismo matematico, cujo instrumento (: 0 numero, a Iigura mais
~bstr~t~ do imediato, mantern 0 pensamento firmemente preso a mera
ll~edJatldade. 0 factual tem a ultima palavra, 0 conhecimento res-trmge-se a sua repeticao, 0 pensamento transforma-se na mera tau-
tol.ogia. Quanto. mais a maquinaria do pensamento subjuga 0 que
existe, tanto mars cegamente ela se contenta com essa reproducao.
Desse modo, 0 esc1arecimento regride a mitologia da qual jamais
soube escapar. Pois, em suas figuras, a mitologia refletira a essencia
da ordem cxistcnte - 0 proccsso ciclico, 0 destino, a dorninacao
do mundo - como a verdade e abdicara da esperanca. Na pregnan-
cia da imagem mitica, bem eomo na c1areza da formula cicntifica,
a eternidade. do factual se ve confirmada e a mcra existencia expressa
com? 0 scntI?~ que ela obstrui. 0 mundo como um gigantesco juizo
analitico, 0 uruco sonho que restou de todos os sonhos da cicncia
e da .mesma especie que 0 mito cosmico que associava a mudanca
da pnmavera e do outono ao rapto da Persefone. A singularidade do
eve?to mitico, que deveJegitimar 0 evento !actual, e ilusao: Origi-
nanamente, 0 rapto da deusa ideniificava-se imediatarnente a morte
d~ natureza. Ele se repetia em cada outono, e mesmo a repeticao
nao era uma sequencia de ocorrencias separadas, mas a mesma c~da
v.ez. Com 0 cnrijecimento da consciencia do tempo, 0 evcnto foi
flxa~o com? tendo ocorrido uma unica vez no passado, e tentou-se
apazlguar ntualmente 0 medo da morte em cada novo ciclo das esta-
~~es,c?m 0 recurso a algo ocorrido hi muito tempo. Mas a separa-
cao e nnpotente. Em virtude da colocacao dessa ocorrencia unica dopassado, 0 ciclo assume 0 carater do inevitavel, comedo irradia-se
desse acontecimento antigo para. todos os demais como sua mera re-
pe,t~~ao. ~ subsuncao do factual, seja sob a pre-historia lendaria,
mitica, seja sob 0 formalismo matematico, 0 relacionamento simbo-
~li.~o~o presente ao evento mitico no rito ou it categoria abstrata na
~lenc.la, faz com que 0 novo apareca como algo predeterminado, que
e ~ss~m.na verdade 0 antigo. Quem fica privado da esperanca nao e aexistencia, mas 0 saber que no simbolo figurativo ou matematico se
apropria da existencia enquanto esquema e a perpetua como tal.
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40dialetica do esclarecimento
No mundo esclarecido, a mitologia invadiu a esfera profana.
A existcncia expurgada dos demonios e de se~s descc~dentes con-
ceituais assume em sua pura naturalidade 0 carater nurmnoso que 0
mundo de outrora atribuia aos demonios. Sob 0 titulo dos fat~s
brutos, a injustica social da qual esse~ prov~m e sacramen~ada hoje
em dia como algo eternamente intangivel e lSSOcom a mesma _scgu-
ranca com que 0 curandeiro sc fazia sacrossanto sob a prot~c;ao ~e
seus dcuscs. 0 preco da dominacao nao e meramente a ~l~e.nac;~odos hornens com relacao aos objetos dominados; com a .C?lslftcac;.ao
do espirito, as proprias relacoes dos home~s foram enfeltlc;adas, 111-
elusive as relacoes de cada individuo consigo m~smo: Ele se reduz
a um ponto nodal das reacoes e fu~c;o.es conve~clonals que se. espe-
ram dele como algo objetivo. 0 arurmsmo havia dotado a COlS~ d.e
uma alma 0 industrialismo coisifica as almas. 0 aparelho economi-
co antes mesmo do planejamento total, jii prove espontaneamente as
m~rcadorias dos valores que decidem sobre 0 com~ortamento d.os
homens. A partir do momento cm que as mcrcadonas, com, u .flm
do livre intercambio, perderam todas suas qualidades economl~~s
salvo seu carater de fetiche, cste se espalhou como uma .p~rahsJasobre a vida da sociedade em todos os seus aspectos. ~s mumeras
agencies da producao em massa e da cultura por ela c~lada servem
para incu1car no individuo os comportamentos normal~zados com~
os iinicos naturais, decentes, racionais. De a~o~a em diante, ele so
se detcrmina como coisa, como clemento estatistico, como_success or
[ailure.t? Seu padrao e a autoconservac;ao, a assemelhac;ao bern ou
malsucedida a objctividade da sua funC;ao e aos n:odelos colocados
para cIa. Tudo 0 mais, Ideia e criminalidade, expc~lm.enta a forca da
coretividade que tudo vigia, da sala de aula ao_ sindicato. ~ontudo,
mesmo essa coletividade ameac;adora pertence tao-somente a. super-
ficic ilusoria, sob a qual se abrigam as potencias que a m~m?~lam
Como algo de violento. A brutalidade com que enquadra 0 individuo
d d . I'd d dos homense tao pouco representativa da ver a erra qua J a e. 0
quanta 0 valor 0 e dos objetos de uso. A figura demomacamente
. sob a luz do conhe-distorcida, que as coisas e os homens assumlram, ._
cimento isento de preconceitos, remete de volta a domllla~a.o, ao
principio que ja operava a especifieac;ao do mana nos ~S?lr~tos e
divindades e fascinava 0 olhar nas fantasmagorias ? a ~ f;l~lcelfos e
d. A fatalidade com que os tempos pre-hlstoncos san-
curan elros.. . rd d . tcionavam a morte ininteliglvel passa a caractenzar a rea I a e 111 e-
conceito 41
correspondencia no pamco que hoje esta pronto a irromper a qual-
quer instante: os homens aguardam que este mundo scm saida seja
incendiado por uma totalidade que eles proprios constituem e sobre
a qual nada podem.
o horror mitico do esclarecimento tern por objeto o mito. Ele
nao 0 descobre meramente em conceitos e palavras nao aclarados,
como presume a critic a da linguagem, mas em toda manifestacao
humana que nao se situe no quadro teleologico da autoconservacao.A frase de Spinoza: "Conatus sese conservandi primum et unicum
virtu tis est fundamentum"33 con tern a verdadeira maxima de toda a
civilizacao ocidental, onde vern se aquietar as diferencas religiosas
e filosoficas da burguesia. 0 eu que, apos 0 exterminio metodico de
todos os vestigios naturais como algo de mitologico, nao queria mais
ser nem corpo, nem sangue, nem alma e nem mesmo urn eu natural,
constituiu, subJimado num sujeito transcendental ou logico, 0 ponto
de referencia da razao, a instancia legisladora da acao. Segundo 0
juizo do esc1arecimento, bern como 0 do protestantismo, quem se
abandona imediatamente a vida sem relacao racional com a auto-
conservacao regride a pre-historia. 0 instinto enquanto tal seria taomitico quanta a supersticao; servir a urn Deus nao postulado pelo
eu, tao insano quanta 0 alcoolismo. 0 progresso reservou a mesma
sorte tanto para a adoracao quanta para a queda no ser natural
imediato: ele amaldicoou do mesmo modo aquele que, esquecido de
si, se abandona tanto ao pensamento quanto ao prazer. 0 trabalho
social de todo individuo esta mediatizado pelo principio do eu na
economia burguesa; a urn ele deve restituir 0 capital aumentado,
a outro a Iorca para urn excedente de trabalho. Mas quanta mais 0
processo da autoconservacao e assegurado pela divisao burguesa do
trabalho, tanto mais ele forca a auto-alienacao dos individuos, que
tern que se formar no corpo e na alma segundo a aparelhagem tecni-ca. Mas isso, mais uma vez, e levado em conta pelo pensamento
esclarecido: aparentemente, 0 proprio sujeito transcendental do co-
nhecimento acaba por ser suprimido como a ultima reminiscencia da
subjetividade e e substituido pelo trabalho tanto mais suave dos me-
canismos automaticos de controle. A subjetividade volatizou-se na
logica de regras de jogo pretensamente indeterminadas, a fim de
dispor de uma maneira ainda mais desembaracada, 0 positivismo -
que afinaI nao recuou nem mesmo diante do pensamento, essa qui-
mera tecida pelo cerebro no sentido mais liberal do termo 84 - eli-
minou a ultima instflncia intermediaria entre a ac;ao individual e a
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42 dialetica do esciarecimento conceito 43
sua eliminacao da consciencia, esta livre da plurivocidade do pensa-
mento mitico bern como de toda significacao em geral, porque a
propria razao se tomou urn mero adminiculo da aparelhagcm eco-
nomica que a tudo engloba. Ela e usada como urn instrumento univer-
sal servindo para a Iabricacao de todos os demais instrumentos.
Rigidamente funcionalizada, ela e tao fatal quanta a manipulacao
calculada com exatidao na producao material e cujos resultados para
os homens escapam a todo calculo, Cumpriu-se afinal sua velha ambi-
<;:aode ser urn orgao puro dos fins. A exclusividade das leis logicas
tern origem nessa univocidade da Iuncao, em ultima analise no
carater coercitivo da autoconservacao. Esta culmina sempre na es-
colha entre a sobrevivencia ou a morte, escolha essa na qual se pode
perceber ainda um reflexo no principio de que, entre duas proposi-
coes contraditorias, so uma pode ser verdadeira e so uma falsa. 0
formalismo desse principio e de toda a logica, que e 0 modo como
ele se estabelece, deriva da opacidade e do entrelacamento de inte-
resses numa sociedade na qual so por acaso coincidem a conservacao
das formas e ados indivfduos. A expulsao do pensamento da 16gica
ratifica na sala de aula a coisificacao do homem na Iabrica e no
escritorio. Assim, 0 tabu estende-se ao proprio poder de .impor tabus,
o esclarecimento ao espirito em que ele proprio consiste. Mas, desse
modo, a natureza enquanto verdadeira autoconservacao e aticada
pelo processo que prometia exorciza-la, tanto no individuo quanto
no destino coletivo da crise e da guerra. Se a unica norma que resta
para a teoria e 0 ideal da ciencia unificada, entao a praxis tem que
sucumbir ao processo irreprimivel da historia universal. 0 eu inte-
gralmente capturado pela civilizacao se reduz a urn elernento dessa
inumanidade, a qual a civilizacao desde 0 inicio procurou escapar.
Concretiza-se assim 0mais antigo medo, 0medo da perda do proprio
nome. Para a civilizacao, a vida no estado natural puro, a vida
animal e vegetativa, constituia 0 perigo absoluto. Urn apos 0 outro,os comportamentos mimetico, mitico e metaffsico foram considera-
dos como eras superadas, de tal sorte que a ideia de recair neles
estava associada ao pavor de que 0 eu revertesse a mera natureza.
da qual havia se alienado com esforco indizivel e que por isso mesmo
infundia nele indizivel terror. A lembranca viva dos tempos preteri-
tos - do nomadismo e, com muito mais razao, dos estagios pro-
priamente pre-patriarcais - fora extirpada da consciencia dos homens
ao longo dos milenios com as penas mais terriveis, 0 espirito escla-
recido substituiu aroda e 0 fogo pelo estigma que imprimiu em toda
os .extremos nao the eram menos odiosos do que para Aristoteles.
Q l?eal burgucs da naturalidade nao visa a natureza amorfa, mas
'lvlrtu~e do rneio. A promiscuidade e a ascese, a abundancia e a
f~m~ sao, a~esar ~e opostas, im~diatamente identicas cnquanto po-
tencias da dls~olu<;:ao. Ao.subordmar a vida inteira as cxigencias de
sua conserv,a~~o,a mmona que dctcm 0 poder garante, justamente
com sua propna seguranca, a perpetuacao do todo. De Romero aos
tempos m~dc~no.s,0 espirito dominante quer navegar entre a Cila
da regressao a simples reproducao e a Caribde da satisfacao desen-
freada; de sempre desconfiou de qualquer outra estrela-guia que nao
f~sse a do mal menor. Os neopagaos e belicistas alernaes querem
hberar de novo 0 prazer. Mas como 0 prazer, sob a pressao milenar
do t~a,b~lho,aprendeu ~ se odiar, ele permanece, na ernancipacao
totahtana, vulgar, e mutilado, em virtude de seu autodesprezo. Ele
permanece preso a autoconservacao, para a qual 0 educara a razao
entrementes .d~posta. Nos momentos decisivos da civilizacao ociden-
tal, da transicao para a religiao olimpica ao renascimento a reforma
e a.o.ateismo burgues, todas as vezes que novos povos' e camadas
SOCIalS recalcavam 0 mito, de maneira mais decidida 0 medo da
na,tur~za nao. c~mp:eendida e ameacadora - conscqllencia da suap~oyna ~a~enahza<;:aoe objetualizacao ~ era degradado em supers-
h<;:aoarumrsta, e a dorninacao da natureza interna e externa tor-
nava-se o.fim absoluto da vida. Quando afinal a autoconservacao
se automatiza, a razao e abandonada por aqueles que assumiram sua
heranca a titulo de organizadores da producao e agora a temcm nos
~ese:~ados. A e~sencia do esclarecirnento e a alternativa que torna
inevitavel a dominacao, Os homens sempre tiveram de escolher entre
submeter-se a natureza ou submeter a natureza ao cu. Com a difusao
da economia mercantil burguesa, 0 horizonte sombrio do mito eaclarado pelo sol d~ razao ca1culadora, sob cujos raios gelados
amadurece a sementeira da nova barbaric. Forcado pela dominacao,o trabalho humano tendeu sempre a se afastar do mito voltando a
cair sob 0 seu influxo, levado pela mesma dominacao. '
Esse entrelacamento de mito, dominacao e trabalho esta con-
servado em uma das narrativas de Romero. 0 duodecimo canto da
?disseia rel~ta 0 encontro com as Sereias. A seducao que exercem
e a de s: deixar perder no que passou. Mas 0heroi a quem se destina
a seducao emanclp~u-se com 0 sofrimento. Nos perigos mortais que
te~e.de ~rrostar, foi dando tempera a unidade de sua propria vida
e a l~enhdade da pessoa. Assim como a agua, a terra e 0 ar, assim
tambem separam-se para ele os domfnios do tempo. Para ele, a
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Ii
I
II
,I
44 dialetica do esclarecimento conceito 45
preamar do que ja Ioi recuou da rocha do presente, e as nuvens do
futuro estao acampadas no horizonte. 0 que Ulisses deixou para
tras entra no mundo das sombras: 0 eu ainda esta tao proximo do
mito de outrora, de cujo seio se arrancou, que 0 proprio passado por
ele vivido se transforma para ele num outrora mitico. E atraves de
uma ordenacao fixa do tempo que elc procura fazer face a isso.
o esquema tripartido deve liberar 0 instante presente do poder do
passado, desterrando-o para tras do limite absoluto do irrecuperavele colocando-o a disposicao do agora como um saber praticavel. A
ansia de salvar 0 passado como algo de vivo, em vez de utiliza-Io
como material para 0 progresso, so se acalmava na arte, a qual per-
tence a propria Hist6ria como descricao da vida passada. Enquanto
a arte renunciar a ser aceita como conhecimento, isolando-se assim
da praxis, ela sera tolerada, como 0 prazer, pela praxis social. Mas
o canto das Sereias ainda nao foi reduzido a impotencia da arte. Elas
sabem "tudo 0 que jamais ocorreu sobre a terra tao fertil",3;) sobre-
tudo os acontecimentos de que participara 0 proprio Ulisses e "a
quanta sofreram os filhos de Argos e os troianos por vontade dos
Deuses't.w Ao conjurar imediatamente 0 passado recente, elasameacam com a promessa irresistivel do prazer - que e a maneira
como seu canto e percebido - a ordem patriarcal, que so restitui a
vida de cada um em troca de sua plena medida de tempo. Quem
se deixa atrair par suas ilus6es esta condenado a perdicao, quando
so uma continua presen<;:ade espirito consegue arrancar um meio de
vida a natureza. Se as sereias nada ignoram do que aconteceu, 0
preco que cobram por esse conhecimento e 0 futuro, e a prornissao
do alegre retorno e 0 embuste com que 0 passado captura 0 saudoso.
Ulisses Ioi alertado por Circe, a divindade da reconversao ao estado
animal, a qual resistira e que, em troca disso, fortaleceu-o para resistir
a outras potencias da dissolucao, Mas a seducao das Sereias perma-
nece mais poderosa, Ninguem que ouve sua cancao pode escapar a
ela. A humanidade teve que se submeter a terriveis provacoes ate
que se formasse 0 eu, 0 carater identico, determinado e viril do
hornem, e toda infancia ainda e de certa forma a repeticao disso.
o esforco para manter a coesao do ego marca-o em todas as suas
fases, e a tentacao de perde-lo jamais deixou de acompanhar a
determinacao cega de conserva-lo, A embriaguez narc6tica, que
expia com um sono parecido a morte a euforia na qual 0 eu esta
suspenso, e uma das mais antigas cerimonias sociais mediadoras
entre a autoconservacao e a autodestruicao, uma tentativa do eu de
a eu 0 limite entre si mesmo e a outra vida, 0 temor da morte e
da destruicao, est~ irmanado a uma promessa de felicidade, que
ameacava a c~~a ~nstante a civilizacao. 0 caminho da civilizacao
er~ 0 da obediencia e do trabalho, sobre 0 qual a satisfacao nao
bnlha senao como m.eraaparencia, como beleza destituida de poder.
o pens,am.ento?~Ulisses, igualmente hostil a sua propria morte e as~~ propna felicidade, sabe disso. Ele conhece apenas duas possi-
bilidades de escap~r. Uma e a que ele prescreve aos companheiros.Ele tapa seus ouvidos com cera e obriga-os a remar com todas as
forcas de seus nnisculos, Quem quiser veneer a provacao nao deve
prestar ouvidos ao ehamado sedutor do irrecuperavel e s6 0 conse-
guira se conseguir nao ouvi-lo. Disso a civilizacao sempre euidou.
Alertas e concentrados, os trabalhadores tern que olhar para frente
c es~uecer 0,que foi posto de lado. A tendencia que impele a dis-
tracao, eles tem que se encarnicar em sublima-la num esforco suple-
menta~. E assim que se tornam praticos, A outra possibilidade e a
escolhida pelo proprio Ulisses, 0 senhor de terras que faz os outros
trabalharem para ele. Ele eseuta, mas amarrado impotente ao mastro,
e quanta maior se torna a seducao, tanto mais fortemente ele sedeixa atar, exatamente como, muito depois, as burgueses, que recusa-
va~ a si ~esmos a felicidade com tanto maior obstinacao quanta
mars acessfvel ela se tornava com 0aumento de seu poderio. 0 que
ele escuta nao tem conseqiiencias para ele, a tinica eoisa que eon-
segue fazer e acenar com a cabeca para que 0 desatem: mas e tarde
demais, os companheiros - que nada escutam - ~o sabem do
perigo da cancao, nao de sua beleza - e 0 deixam no mastro para
salvar a ele e a si mesmos. Eles reproduzem a vida do opressor jun-
tamente com. a propria vida, e aquele nao consegue mais escapar a -
seu ~apel social. Os lacos com que irrevogavelmente se atou ~rpraxismantem ao mesmo tempo as Sereias afastadas da praxis: sua seducao
transforma-se, neutralizada num mero objeto da contemplacao, em
arte. Amarrado, Ulisses assiste a um concerto, a escutar imovel como
os ~uturos freqiientadores de concertos, e seu brado de libertacao
Ch~lO.de entusiasmo ja ecoa como um aplauso. Assim a fruicao
artistica e 0 trabalho manual ja se separam na despedida do mundo
pre-historico, A epopeia ja eontem a teoria correta. 0 patrimonio
~,~_I~l1ralsta em exata correlacao com 0 trabalho comandado, e
ambos se baseiam na inescapavel compulsao a dominacao social danatureza.
.....-..~....s medidas tomadas por Ulisses quando seu navio se aproxima
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46 dialetica do esclarecimento conceito 47
Assim como a substituibilidade e a medida da dominacao e 0 mais
poderoso e aquele que pode se fazer substituir na maioria das
funcoes, assim tambem a substituibilidade e 0 veiculo do progre~so
e, ao mesmo tempo, da regressao, Na situacao dada, estar excluido
do trabalho tambem significa mutilacao, tanto para os desemprega-
dos, quanto para os que estao no polo social opo~to. Os chefe~'A q~e
nao precis am mais sc ocupar da vida, nao tern ma~s ~utra expenencia
dela senao como substrato e deixam-se empedermr mtegralmente noeu que comanda. 0 primitivo so tinha experiencia ~a coi:-a natural
como objeto fugidio do desejo, "mas 0 senhor, que !nt~rpos 0 ~ervo
entre a coisa e ele proprio, so se prende a dependencia da coisa e
desfruta-a em sua pureza; 0 aspecto daindependencia, porem, aban-
dona-o ao servo que a trabalha";" Ulisses e substituido no traba~o.
Assim como nao pode ceder a tentacao de se abandonar, assim
tambem acaba por renunciar enquanto proprietario a participa~ do
trabalho e, por fim, ate mesmo a dirigi-lo, enquanto os companheiros,
apesar de toda proximidade as coisas, nao podem desfrutar do tra-
balho porque este se efetua sob coacao, desesperadamente, com os
sentidos fechados a forca. 0 servo permanece subjugado no corpo
e na alma, 0 senhor regride. Nenhuma dominacao conseguiu ainda
evitar pagar esse pre<;o, e a aparencia ciclica da hist?ria em seu p:o-
gresso tambem se explica por semelhante ~nfraqu~~lmento, que e ?equivalente do poderio. A humanidade, cujas habilidades e conheci-
mentos se diferenciam com a divisao do trabalho, e ao mesmo tempo
forcada a regredir a estagios antropologicamente m~i.s pr!mit~vo~, pois
a persistencia da dominacao determina, com a. faclhta<;~o tee~l1ca da
existencia, a fixacao do instinto atraves de uma repressao ~al~ ~orte.
A fantasia atrofia-se. A desgraca nao esta em que os individuos
tenham se atrasado relativamente a sociedade ou a sua producao
material. Quando 0 desenvolvimento da maquina ja se converteu em
desenvolvimento da maquinaria da dominacao - de tal sorte que astendencias tecnica e social, entrelacadas desde sempre, convergem no
apoderamento total dos hom ens - os atrasados ~ao representam me-
ramente a inverdade. Por outro Iado, a adaptacao ao poder do pro-
gresso envolve 0progresso do poder, levando sempre de novo aquelas
formacoes recessivas que mostram que nao e 0malogro do progresso,
mas exatamente 0 progresso bem-sucedido que e culpado de seu
proprio oposto. A maldicao do progresso irrefreavel e a irrefreavel
regressao.· "Esta nao se limita a experiencia do mundo sensivel, que esta
ligada a proximidade das coisas mesmas, mas afeta ao mesmo tempo
o intelecto autocratico, que se separa da experiencia sensivel para
submete-la. / A unificacao da funcao intelectual, gracas a qual se
efetua a dominacao dos sentidos, a resignacao do pensamento em
vista da producao da unanimidade, significa 0 empobrecimento do
pensamento bem como da experiencia: a separacao dos dois domi-
nios prejudica a ambos. A limitacao do pensamento a organizacao
e a administracao, praticada pelos govern antes desde 0 astucioso
Ulisses ate os in genu os diretores-gerais, inclui tambem a limitacaoque acomete os grandes tao logo nao se trate mais apenas da mani-
pulacao dos pequenos. 0 espirito torna-se de fato 0 aparelho da
dominacao e do aurodominio, como sempre havia suposto erronea-
mente a filosofia burguesa. Os ouvidos moucos, que e 0 que sobrou
aos doceis proletarios desde os tempos miticos, nao superam em
nada a imobilidade do senhor. E da imaturidade dos dominados que
se nutre a hipermaturidade da sociedade. Quanto mais complicada
e mais refinada a aparelhagem social, economica e cientifica, para
cujo manejo 0 corpo ja ha muito foi aiustado pelo sistema de pro-
ducao, tanto mais empobrecidas as vivencias de que ele e capaz.
Gracas aos modos de trabalho racionalizados, a eliminacao das qua-
lidades e sua conversao em funcoes transferem-se da ciencia para 0
mundo da experiencia dos povos e tende a assemelha-lo de novo ao
mundo dos anffbios. A regressao das massas, de que hoje se fala,
nada mais e senao a incapacidade de poder ouvir 0 imediato com os
proprios ouvidos, de poder tocar 0 intocado com as proprias maos:
a nova forma de of usc amen to que vern substituir as formas miticas
superadas. Pela mediacao da sociedade total, que engloba todas as
relacoes e emocoes, os hom ens se reconvertem exatamente naquilo
contra 0 que se voltara a lei evolutiva da sociedade, 0 principio do
eu: meros seres genericos, iguais uns aos outros pelo isolamento na
coletividade govern ada pela Iorca. Os remadores que nao podem se
falar estao atrelados a urn compasso, assim como 0 trabalhadormoderno na fabric a, no cinema e no coletivo.vSao as condicoes con-
cretas do trabalho na sociedade que Iorcam 0 conformismo e nao as
influencias conscientes, as quais por acrescimo embruteceriam e
afastariam da verdade os hom ens oprimidos. A impotencia dos tra-
balhadores nao e mero pretexto dos dominantes, mas a conseqiiencia
logic a da sociedade industrial, na qual 0 fado antigo acabou por se
transformar no esforco de a ele escapar.
Essa necessidade logica, porern, nao e definit iva. Ela permanece
presa a dominacao, como seu reflexo e seu instrumento ao mesmo
tempo. Por isso, sua verdade e tao questionavel quanta sua evidencia
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48 dialetica do esc/arecimento
inevitavel, E verdade que 0 pcnsamento sempre bastou para dcsignar
concretamente scu proprio carater questionavel. Ele e 0 servo que 0
senhor nao pode deter a seu bel-prazer. Ao se reificar na lei e na
organizacao, quando os hom ens se tornaram scdentarios c, dcpois.
na economia mercantil, a dorninacao tcve quc limitar-se. 0 instru-
mento ganha autonomia: a instancia mediad ora do espirito, indepen-
dentemente da vontadc dos dirigcntes, suaviza 0 carater irnediato da
injustica economica. Os instrumentos da dominacao destinados a
alcancar a todos - a linguagem, as armas e por fim as maquinas -
devem se deixar alcancar por todos. E assim que 0 aspecto da racio-
nalidade se impoe na dominacao como um aspecto que e tam bern
distinto dela. A objetividade do meio, que 0 torna universalmen-
te disponivcl, sua "objetividade" para todos, ja irnplica a critica da
dorninacao da qual 0 pensamento surgiu, como urn de seus meios,
No trajeto da mitologia a logistica, 0 pensamento perdeu 0 elemento
da reflexao sobre si mesmo, e hoje a maquinaria mutila os hornens
mesmo quando os alimenta. Sob a forma das maquinas, porern, a
ratio alienada move-se em direcao a uma sociedade que reconcilia
o pensamento solidificado, enquanto aparelhagem material e apare-
lhagem intelectual, com 0 ser vivo liberado e 0 relaciona com a
propria sociedade como seu sujeito real. A origem particular do pen-
samento e sua perspectiva universal for am sempre inseparaveis. Hoje,
com a metamorfose que transformou 0 mundo em industria, a pers-
pectiva do universal, a realizacao social do pensamento, abriu-se tao
amplamente que, por causa dela, 0 pensamento e negado pelos pro-
prios dominadores como mera ideologia, A expressao que trai a
ma-consciencia das cliques, nas quais acaba por encarnar a necessi-
dade economica, e 0 fa to de que suas revelacoes - das intuicoes
do chefe a visao dinamica do mundo - nao reconhecem mais, em
decidida oposicao a apologetic a burguesa anterior, os proprios cri-
mes como conseqiiencias necessarias de sistemas de leis. As mentirasmitologicas da missao e do destino que elas mobilizam em seu lugar
nem sequer chegam a dizer uma total inverdade: nao eram mais as
leis objetivas do mercado que imperavam nas acoes dos empresarios
e impeliam a catastrofe. Antes pelo contrario, a decisao consciente
dos diretores gerais, como resultante tao fatal quanto os mats cegos
mecanismos de precos, leva a efeito a velha lei do valor e assim
cum pre 0 destino do capitalismo. Os proprios dominadores nao acre-
ditam em nenhuma necessidade objetiva, mesmo que as vezes deem
esse nome a suas maquinacoes. Eles se arvoram em engenheiros da
conceito 49
\
givel 0 processo que, a cada decreto elevando 0 nivel de vida, aumen-
ta 0 grau de sua impotencia. Agora que uma parte minima do tempo
de trabalho a disposicao dos donos da sociedade e suficiente para
assegurar a subsistencia daqueles que ainda se fazem necessaries para
o manejo das maquinas, 0 resto superfluo, a massa irnensa da popu-
lacao, e adestrado como uma guarda suplementar do sistema, a ser-
vico de seus pIanos grandiosos para 0 presente e 0 futuro. Elcs sao
sustentados como urn exercito dos desempregados. Rebaixados ao
nivel de simples objetos do sistema administrativo, que prcforma
todos os setores da vida moderna, inclusive a linguagem e a percep-
gao, sua degradacao reflcte para eles a necessidade objetiva contra
a qual se creem impotentes. Na mcdida em que cresce a capacidade
de climinar duradourarnente toda miseria, crcsce tambem desmesu-
radamente a miseria enquanto antitese da potencia e da impotencia.
N enhum individuo e capaz de penetrar a floresta de cliques e insti-
tuicoes que, dos mais altos niveis de comando da economia ate as
ultimas gangues profissionais, zelam pe1a permanencia ilimitada do
status quo. Perante urn Iider sindical, para nao falar do dire tor da
Iabrica, 0 proletario que por acaso se Iaca notar nao passara de urn
mimero a mais, enquanto que 0 lider deve por sua vez tremer diante
da possibilidade de sua propria liquidacao.
o absurdo desta situacao, em que 0 poder do sistema sobre os
homens cresce na mesma medida em que os subtrai ao poder da
natureza, denuncia como obsoleta a razao da sociedade racional.
Sua necessidade nao e menos aparente do que a liberdade dos em-
pre sari o s, que acaba por revelar sua natureza compulsiva nas lutas
e acordos a que nao conseguem escapar. Essa aparencia, na qual se
perde a humanidade inteiramente esc1arecida, nao pode ser dissipada
pelo pensamento que tern de escolher, enquanto orgao da domina-
<;ao, entre 0 comando e a obediencia, Incapaz de escapar ao envolvi-
mento que 0 mantem preso a pre-historia, ele consegue no en t antoreconhecer na logica da altemativa, da conseqiiencia e da antinomia,
com a qual se emancipou radicalmente da natureza, a propria natureza,
irreconciliada e alien ada de si me sma. 0 pensamento, cujos me c anis-
mos de compulsao refletem e prolongam a natureza, tambem se reflete
a si mesmo, em virtude justamente de sua conseqiiencia inelutavel,
como a propria natureza esquecida de si mesma, como mecanismo
de compulsao. f: verdade que a representacao e s6 urn instrumento.
Pensando, os homens distanciam-se da natureza a fim de torna-Ia
presente'" de modo a ser dominada. Semelhante a coisa, a ferra-
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50 dialetica do esclarecimentoconceito 51
coes como a mesma, destacando assim 0 mundo como 0 caotico,
multifario, disparatado do conhecido, uno, identico - 0 conceito ea ferramenta ideal que se encaixa nas coisas pelo lade poronde se pode
pega-Ias, Pois 0 pensamento sc toma ilusorio sempre que tenta renegar
sua funcao separadora, de distanciamento e objetivacao. Toda uniao
mistica permancce urn logro, 0 vestigio impotentemente introvertido
da revolucao malbaratada. Mas enquanto 0 esclarecimento prova que
estava com a razao contra toda hipostasiacao da utopia e proclamaimpassivel a dominacao sob a forma da desuniao, a ruptura entre 0
sujeito e 0 objeto que ele proibe recobrir, torna-se, eia propria, 0
indice da inverdade dessa ruptura e 0 indice da verdade. A conde-
nacao da supersticao significa sempre, ao mesmo tempo, 0 progresso
da dorninacao e 0 seu desnudamento. 0 esclarecimento e mais queesclarecimento: natureza que se torna perceptivel em sua alienacao.
No autoconhecimento do espirito como natureza em desuniao con-
sigo mesma, a natureza se chama a si mesma como antigamente, mas
nao mais imediatamente com seu nome presumido, que significa
omnipotencia, isto e , como "mana", mas como algo de cego, muti-
lado. A dominacao da natureza, sem 0 que 0 espirito nao existe,consistc em sucumbir a natureza, Gracas a resignacao com que se
confessa como dominacao e se retrata na natureza, 0 espirito perde
a pretensao senhorial que justamente 0 escraviza a natureza. Se everdade que a humanidade na fuga da necessidadc, no progresso e
na civilizacao, nao consegue se deter scm abandonar 0 proprio co-
nhecimento, pelo menos ela nao mais toma por garantias da Iiberdade
vindoura os baluartes que levanta contra a necessidade, a saber, as
instituicoes, as praticas da dominacao que sempre constituiram 0
revide sobre a sociedade da submissao da natureza. Todo progresso
da civilizacao tem renovado, ao mesmo tempo, a dominacao e a
perspectiva de seu abrandamento. Contudo, enquanto a historia realse teceu a partir de um sofrimento real, que de modo algum diminui
proporcionalmente ao crescimento dos meios para sua eliminacao, a
concretizacao desta perspectiva depende do conceito. Pois ele e naosomente, enquanto ciencia, um instrumento que serve para distanciar
os homens da natureza, mas e tambem, enquanto tomada de cons-
ciencia do proprio pensamento que, sob a forma da ciencia, perma-
nece preso a evolucao cega da economia, um instrumento que per-
mite medir a distancia perpetuadora da injustica, Gracas a essa cons-
ciencia da natureza no sujeito, que encerra a verdade ignorada de toda
cultura, oesclarecimento se opoe a dominacao em geral, e 0 apelo
menos por medo da ciencia exata do que por odio ao pensamento
indisciplinado, que escapa a orbita da natureza confessando-se como
o proprio tremor da natureza diante de si mesma. Os sacerdotcs sern-
pre vingaram 0 mana no esc1arecedor que conciliava 0 mana assus-
tando-se com 0 susto que trazia 0 seu nome, e na hybris os augu-
res do esclarecimento se punham de acordo com os sacerdotes. Mui-
to antes de Turgot e d'Alembert, a forma burgucsa do esclareci-
mento ja se perdera em seu aspecto positivista. Ele jamais foi imunea tentacao de confundir a Iiberdade com a busca da autoconservacao.
A suspensao do conceito - nao importa se isso ocorreu em nome do
progresso ou da cultura, que ha muito ja haviam se coligado contra
a verdade - abriu caminho a mentira. Esta encontrava Iugar num
mundo que se contentava em verificar sentencas protocolares e COl1-
servava 0 pensamento - degradado em obra dos grandes pensadores
- como uma especie de slogan antiquado, do qual nao se pode mais
distinguir a verdade neutralizada como patrimonio cultural.
Reconhecer, porem, a presenca da dominacao dentro do prop no
pensamento como natureza nao reconciliada seria um meio de afrou-
.xar essa necessidade que 0 proprio socialismo veio a confirmar pre-
cipitadamente como algo de etemo, fazendo assim uma concessao ao
common sense reacionario. Ao fazer da necessidade, para todo 0
sempre, a base e ao depravar 0 espirito de maneira tipicamcnte
idealista como 0 apice, ele se agarrou com excessiva rigidez a he-
ranca da filosofia burguesa. Assim, a relacao da necessidade com 0
reino da liberdade permaneceria meramente quantitativa, mecanica,
e a natureza - colocada como algo inteiramente alheio e estranho,
como ocorre na primeira mitologia - tornar-se-ia totalitaria e ab-
sorveria a liberdade juntamente com 0 socialismo. Com 0 abandono
do pensamento - que, em sua figura coisificada como materna-
tica, maquina, organizacao, se vinga dos hornens dele esquecidos _.
o esclarecimento abdicou de sua propria realizacao, Ao disciplinar
tudo 0 que e unico e individual, ele permitiu que 0 todo nao-com-
preendido se voltasse, enquanto dominacao das coisas, contra 0 ser e a
consciencia dos homens. Mas uma verdadeira praxis revolucionaria
depende da intransigencia da teoria em face da inconsciencia com
que a sociedade deixa que 0 pensamento se enrijeca, Nao sao as
condicoes materiais da satisfacao nem a tecnica deixada a solta en-
quanta tal, que a colocam em questao. Isso e 0 que afirmam os
sociologos, que estao de novo a meditar sobre um antidoto, ainda que
de natureza coletivista, a fim de dominar 0 antfdoto.s" A culpa e da
:5 2 dialctica do esclarecirnenio
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cientifico dos povos pelo dado, que des no entanto estao continua-
mente a criar, acaba par se tamar de pr6prio um fato positivo, a
tortaleza diante da qual a imaginacao revolucionaria se envergonha
de SI mesma como utopismo e degenera numa confianca d6cil na
tendcncia objetiva da historia. Enquanto orgao de semelhante adap-
tacao, enquanto mcra construcao de meios, 0 esclarecimento e tao
destrutivo como 0 acusam seus inimigos rornanticos. Ele so se reen-
contrara consigo mesrno quando renunciar ao ultimo acordo com
esses inimigos e tiver a ousadia de superar 0 falso absoluto que e 0
principia da dorninacao cega. 0 espirito dessa teoria intransigente
seria eapaz de inverter a direcao do espirito do progresso impiedoso,
ainda que este estivesse em vias de atingir sua meta. Seu arauto,
Bacon, sonhou com as imimeras coisas "que as reis com todos as
seus tesouros nao podem comprar, sobre as quais seu comando nao
impcra, das quais seus espias e inform antes nenhuma noticia tra-
zem". Como de desejava, elas couberam aos burgueses, as herdeiros
esclarecidos do rei. Multiplicando 0 poder pela mediacao do mer-
cado, a economia burguesa tambem multiplicou seus objetos e suas
Iorcas a tal ponto que para sua administracao nao s6 nao precis a mais
dos reis como tambem dos burgueses: agora ela so precisa de todos.
Eles aprendem com 0 poder das coisas a, afinal, dispensar 0 poder.
o esclarecimento se consuma e se super a quando os fins praticos
mais proximos se revelam como 0 objetivo mais distante finalmente
atingido, e os paises, "dos quais seus espias e informantes nenhuma
noticia trazem", a saber, a natureza ignorada pela ciencia domina-
dora, sao record ados como as pafses da origem. Hoje, quando a
utopia baconiana de "imperar na pratica sobre a natureza" se reali-
zou numa escala tehirica, tornou-se manifesta a essencia da coacao
que ele atribufa a natureza nao dominada. Era a propria dominacao.
E a sua dissolucao que pode agora proceder 0 saber em que Bacon
v e a "superioridade dos homens". Mas, em face dessa possibilidade,
o esclarecimento se converte, a service do presente, na total mistifi-
cacao das massas.
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