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O CASO DO COMÉRCIO INFORMAL NA CIDADE DE SANTA MARIA (1980-
2011)1
MATHEUS ROSA PINTO
Mestrando em História – UFSM
matheuspbutia@hotmail.com
As últimas décadas do século XX trouxeram grandes mudanças nos campos da
historiografia e as temáticas vinculadas às pesquisas relacionadas ao mundo do trabalho
seguiram esse mesmo caminho. Entre as várias modificações, podemos destacar que, do
ponto de vista metodológico, a nova historiografia abandona os modelos tradicionais de
análise e passa a abrir espaço para outras temáticas2.
Neste ínterim, a historiografia focada nas questões do trabalho passou a
incorporar problemas que extrapolavam o foco exclusivo na constituição da classe e
suas formas de luta. Os estudos também passaram a privilegiar os caminhos trilhados de
baixo para cima, em busca de novas perspectivas e atribuindo um papel muito mais
relevante a grupos historicamente marginalizados3, tratando-os como atores conscientes
e atuantes nos processos (Sofer apud COSTA, 2001, p. 4).
Explicitando esta nova forma de perceber a historiografia com temas
relacionados às práticas trabalhistas, Paoli, Sáder & Telles (apud Chalhoub & Silva,
2009, p.43) afirmam que,
os trabalhadores urbanos não são mais exclusivamente o operariado
organizado [...]; são sujeitos sociais que se expressam em múltiplas
dimensões, com formas de vida própria, estratégias de vida
caracterizáveis[...] São, sobretudo, sujeitos de práticas diversas que
recobrem os vários campos de sua experiência, que se constituem na
luta contra opressões específicas, não redutíveis a um único lugar
1 O artigo em questão teve como orientador o Prof. Dr. Jorge Luiz da Cunha, professor da Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: <jlcunha@gmail.com>. 2Chalhoub & Silva (2009) entendem que, nas últimas três décadas, a produção acadêmica sobre a história
dos trabalhadores, no Brasil, tem provocado a revisão de algumas interpretações clássicas e sugerido
novos caminhos de investigação. 3(Chalhoub & Silva, 2009, p.42) Pobres em geral, trabalhadores, mas também “desclassificados sociais”,
excluídos e marginalizados, tais como criminosos, prostitutas e loucos, passaram todos a povoar as
pesquisas acadêmicas.
2
dado pelo Estado fundador de uma dominação de classe unívoca e
homogênea e que produzem, portanto, a imagem de sujeitos múltiplos,
que não se subordinam a uma figuração única, para ganhar uma
visibilidade que confira significado político às suas práticas.
Outro ponto de mudança percebido girou em torno da ampliação das fontes,
não apenas dos tipos, mas de como estas passaram a ser confrontadas. Sobre as fontes,
Henry Rousso (1996, p. 86), afirma que,
“fontes” são todos os vestígios do passado que os homens e o tempo
conservaram, voluntariamente ou não – sejam eles originais ou
reconstituídos, minerais, escritos, sonoros, fotográficos, audiovisuais,
ou até mesmo, daqui para frente, “virtuais” – e que o historiador, de
maneira consciente, deliberada e justificável, decide erigir (erguer) em
elementos comprobatórios da informação a fim de reconstituir uma
sequência particular do passado, de analisa-la ou de restituí-la a seus
contemporâneos sob a forma de uma narrativa, em suma, de uma
escrita dotada de uma coerência interna e refutável, portanto de uma
inteligibilidade científica.
A história oral pode ser vista como uma das maiores beneficiadas destas
mudanças, na historiografia, pois um dos seus principais objetivos é dar voz àqueles que
não a dispunham anteriormente. É destacável o fato de que trabalhar com entrevistas
orais privilegia a inserção em âmbitos da realidade social em que a historiografia
convencional pouco tratou, especialmente para os grupos minoritários (Thompson,
1992).
Acenada as mudanças que o campo da historiografia encarou nos últimos anos,
devemos focar no objeto de pesquisa principal do ensaio. Contudo, faz-se necessário
responder uma questão: Qual a relevância e de que maneira devemos trabalhar a questão
da informalidade no setor trabalhista?
A justificativa para o desenvolvimento de um estudo sobre a informalidade
pode ser sintetizada no seguinte ponto: a informalidade como temática de estudo
apresenta um imenso leque de possibilidades para compreender a sociedade, a
economia, a política, as migrações, o mundo dos trabalhos, a cultura e as identidades.
Além disto, a experiência de pesquisa com objetos de investigação em constante
mudança, fascina e motiva, principalmente, pela proximidade dos acontecimentos e das
fontes.
Ainda sobre o setor informal-trabalhista, podemos afirmar que este configura-
se como um dos segmentos que mais se desenvolveu, nas últimas décadas do século
3
XX, tendo considerável peso na economia das cidades e nos indivíduos inseridos nesse
processo. Acenada a importância deste tipo de estudo, iremos elucidar os meios para o
desenvolvimento da pesquisa.
Sobre a metodologia elegida para esse artigo, merece destaque que o estudo
sobre o comércio informal, na cidade de Santa Maria, iniciou-se com o levantamento
das fontes (jornais, reportagens da internet) e com a organização dos depoimentos orais
coletados. Foram utilizadas entrevistas orais4 temáticas com trabalhadores do comércio
informal que estiveram ligados ou participaram dos principais acontecimentos.
Passadas as breves considerações sobre a metodologia empregada, devemos
questionar-nos sobre os seguintes pontos: O que é a informalidade no setor trabalhista?
Por que Santa Maria passou a ter um contingente de vendedores informais dispostos
pelas principais ruas da cidade e quais as suas principais características?
Definir um conceito uno de informalidade apresenta-se como uma tarefa
complexa e escorregadia. Um dos principais motivos para tais complicações é a
constante mutabilidade e heterogeneidade do setor informal. Sendo assim, buscamos
diferentes considerações sobre a informalidade desenvolvidas por diferentes estudiosos,
as organizamos de maneira sintetizada e buscamos relacioná-las com os diferentes
momentos vividos pelo setor na cidade de Santa Maria.
O debate sobre as características do setor informal surgiu, pela primeira vez,
com um relatório desenvolvido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), que
defendia a existência de dois segmentos: o formal, caracterizado por unidades
produtivas organizadas, e o setor informal, composto por unidades produtivas não
organizadas. (Alves & Tavares apud Antunes, 2006).
Sobre o mesmo tema, Capachi & Moretto (apud MORETTO, 2006)
complementam que a OIT compôs o grupo dos “informais” com aqueles que tinham
propriedade familiar do empreendimento, atividades de gestão e de produção não
delimitadas, planos contábeis incompletos e autofinanciamento (recursos próprios).
Cacciamali (1983) enxerga a informalidade como uma estratégia residual dos
agentes econômicos que são excluídos do mercado formal de trabalho. Entretanto, o
4Costa (1990) afirma que, a nova historiografia identificou novas fontes e fez amplo uso do testemunho
oral. Demonstrou a extraordinária variedade e heterogeneidade de discursos e de informações que antes
eram deixadas de lado e, ao mesmo tempo, contestou as imagens vigentes na historiografia tradicional.
4
quadro apresentado pela autora merece certas ressalvas, pois com a acentuada
insuficiência dos empregos gerados no setor formal e frente à força de trabalho
disponível, acaba aumentando o ingresso de muitos trabalhadores qualificados nas
relações informais de produção, colocando em dúvida a capacidade da relação salarial
moderna abranger todos os trabalhadores. Também devemos listar como motivos para o
desenvolvimento das atividades informais, a precária ou inexistente organização dos
centros urbanos que não acompanharam o aumento do contingente populacional,
fazendo com que a estrutura destes centros tornasse-se insuficiente e/ou sucateada.
Feitas as considerações sobre a informalidade, necessitamos elucidar porque a
cidade de Santa Maria encaixa-se como objeto de análise. A cidade de Santa Maria,
situada na região central do estado do Rio Grande do Sul, teve, desde seus primórdios,
suas principais atividades vinculadas ao setor terciário, principalmente no segmento do
comércio. Com o passar dos anos, a cidade desenvolveu-se também por outras
atividades, como por exemplo, a Viação Férrea, os inúmeros quarteis militares e por ter
se tornado influente centro educacional do Estado.
Os motivos que levaram tais hordas a direcionarem seus caminhos para os
espaços urbanos são variados. Optamos por trabalhar com os preceitos de que as
decisões estiveram ligadas à expectativa de maximização da renda e/ou dos empregos,
aos processos combinados de atração, à expulsão de centros de menor expressão, como
os rurais e à ideia de que o centro urbano, mesmo com o conhecimento da existência de
altas taxas de desemprego e subemprego, era a melhor saída, pelas oportunidades de
serviços públicos (saúde, segurança e educação) de maior qualidade.
Contudo, os problemas causados pelas crises da economia nacional, nas últimas
décadas do século XX, fizeram com que o mercado de trabalho se tornasse um ambiente
de insegurança e tensão. Influenciadas pela ótica capitalista, algumas parcelas da
sociedade, geralmente as com menor grau de instrução e poder aquisitivo, passaram a
buscar saídas para resolver esses problemas. Somado a isso, Kraychete (2000) afirma que o
contexto econômico-trabalhista da década de 1980 tornava mais nítido o fenômeno do
desassalariamento, influenciado pela redução dos empregos assalariados com registro, devido
às crises econômicas enfrentadas durante os últimos anos.
5
Conforme Pinto (2012), sobre o mercado de trabalho, no Brasil, podemos
afirmar que passou por uma série de reformulações que interferiram de maneira decisiva
para a geração de um contingente substancial de trabalhadores vivendo “por conta
própria5”. Assim, ocorreu uma rápida proliferação de práticas trabalhistas informais
pelas ruas dos grandes centros urbanos, tendo como principais características, a
mutabilidade, a informalidade e a falta de contratos de trabalho com garantias de
direitos trabalhistas e sociais. A informalidade e seus efeitos não tardaram a serem
sentidos, uma vez que seu crescimento, somado à parca participação de órgãos
reguladores e à ineficiência dos governos, acarretou em desorganização e fomentou o
aparecimento de conflitos com outros setores da economia das cidades.
O surgimento de um considerável contingente de vendedores informais pelas
ruas de Santa Maria pode ser explicado como uma maneira flexível de escapar das
dificuldades impostas pelas crises econômicas. Vale uma ressalva no sentido de que a
mudança não deve ser vista como uma quebra, mas como uma reelaboração, uma
adaptação ao quadro complicado enfrentado.
O trabalho informal, em Santa Maria, nos moldes que conhecemos hoje,
iniciou no virar da década de 1980. Durante os primeiros anos, estas atividades foram
desenvolvidas por pequenos grupos de artesãos locais que expunham seus trabalhos
manufaturados pelas ruas mais importantes da região central de Santa Maria6. Neste
momento, os principais produtos comercializados eram brincos, colares e acessórios
para casa. Segundo Franchi (2012), “inicialmente não havia muita concorrência no
setor, fato que auxiliou os trabalhadores na formação de uma clientela fiel e recorrente,
alcançando assim maiores lucros”.
De acordo com o entrevistado, Miguel Antônio Montano Franchi (2012), a
localização dos artesãos variava pouco. A escolha das ruas centrais ia de encontro com a
5Além de uma busca por melhores condições de vida e de rendimentos, podemos compreender a imersão
rápida das atividades informais como uma saída dos desmandos de camadas mais abastadas. Sennet
(2009) afirma que, uma das afirmações em favor da nova organização do trabalho é que descentraliza o
poder, quer dizer, dá às pessoas, nas categorias inferiores dessas organizações, mais controles sobre suas
atividades. 6Sobre isso o tipo de atividade e os motivos, João Mafalda (2012) salienta que, o trabalho na rua se
iniciou, por necessidade, pois sendo fazendo parte do um grupo novo na cidade, não tinha facilidade na
inserção no mercado trabalhista. A saída foi colocar uma mochilinha nas costas e me tornar um artesão,
era o hippie, né?! E na época, comecei a expor o meu trabalho, com uma mesinha pequena, um paninho,
uns aramezinhos, foi o jeito honesto que eu achei para viver.
6
percepção de que o centro da cidade caracterizava-se por seu o local de maior fluxo de
indivíduos, sendo mais rentável do que regiões de menor trânsito.
Não tardou e esse novo setor informal passou a crescer desordenadamente, sem
controle e com pouca fiscalização. Esta falta de organização fez com que as atividades
informais, em muitos casos, não fossem encaradas como algo benéfico. Segundo o
empresário Mário Gaiger (2012) “a fiscalização era muito deficiente, pois naquela
época, os fiscais da prefeitura eram mínimos [...] e acontecia de a fiscalização bater e
ser aquela correria”.
Com o passar do tempo, os trabalhos não permaneceram ligados apenas ao
artesanato, passando a ser comercializados também artigos eletrônicos, bijuterias,
óculos, relógios e brinquedos. Os manufaturados deram espaço aos industrializados e,
na sequência, ao comércio de objetos falsificados.
Os artesãos ganharam a companhia de outros grupos de vendedores informais:
os ambulantes e os camelôs. Com isto, notamos a heterogeneidade interna do grupo.
Acerca disto, Possebon (2011, p.37) acena que os trabalhadores informais de Santa
Maria passaram a ser divididos em três grupos: camelôs (que trabalhavam em bancas, na
Praça Saldanha Marinho e ao longo do canteiro central da Avenida Rio Branco), ambulantes
(que tinham bancas em calçadas em locais fixos ou não) e artesãos (que apesar de dividir o
espaço de trabalho com ambos os grupos anteriores têm um diferencial: são regularizados).
Cabe destacar que, apenas os artesãos eram regularizados. Os outros dois
grupos (ambulantes e camelôs), inicialmente, não dispunham da mesma organização,
mas mesmo assim conseguiam desenvolver suas atividades. A Prefeitura Municipal de
Santa Maria pouco envolvia-se nestas questões, apenas cobrava um piso fixo para que
os trabalhadores tivessem o direito de permanecer à beira das calçadas, vendendo, como
forma de adquirir o seu sustento. Como mencionado, o governo municipal pouco fez
para organizar esse novo grupo de trabalhadores que se desenvolvia rapidamente nas
ruas da cidade, todavia, não se pode afirmar o mesmo dos vendedores formais e de
algumas parcelas da população local.
Segundo Pinto (2012), o conflito entre comerciantes formais e informais pode
ser comprovado por meio das reclamações feitas por alguns lojistas da cidade, que, em
suma, não achavam justa a disputa entre os envolvidos no processo, pois, em muitos
casos, os vendedores ambulantes postavam-se nos arredores de grandes lojas da cidade
7
desenvolvendo, lá, suas atividades comerciais. Eles não pagavam impostos sobre as
mercadorias, apenas um piso para a prefeitura do município para trabalhar nas ruas, e,
na maioria das vezes, comercializavam produtos falsificados com menor preço que o
produto vendido pelo comerciante formal.
Os jornais reproduziram a querela de um comerciante da Rua do
Acampamento: “As lojas tomam todo um cuidado em manter uma fachada atraente,
enquanto os camelôs não tomam cuidados sequer com a higiene” (O Expresso, 09 abr.
1990, p. 12). E em outra ocasião, afirma:
os camelôs tiveram um sério atrito com os comerciantes da Rua do
Acampamento, que alegando prejuízo em suas vendas insistiam em
que a Prefeitura Municipal transferisse os vendedores ambulantes para
outro local. Em outra época foi até cogitado de que os camelôs seriam
transferidos para a Rua Alberto Pasqualini. Com a finalidade de
resolver esses impasses os camelôs decidiram se reunir e fundar uma
Associação com a finalidade de discutir os problemas da categoria.
[...] A grande esperança foi à criação de um camelódromo, ao
exemplo das grandes cidades (O Expresso, 23 maio 1990, p. 14).
A partir destes conflitos, a fiscalização tornou-se mais recorrente e a tensão
entre vendedores formais, órgãos reguladores do governo municipal, partes da
população local e outros trabalhadores informais, passou a aumentar gradativamente.
Demonstrando isso, apresentamos um fragmento de uma reportagem de um jornal local
o trecho diz: “o vereador Rejane Flôres (PDS) brada que haja maior fiscalização do
comércio ambulante nas ruas centrais da cidade. Na opinião do pedessista, o Centro
estava uma verdadeira baderna, com um festival de lixo e contrabandistas” (O Expresso,
10/11 mar. 1990, p. 09).
A pressão aumentava e o governo municipal não conseguia conter os avanços
do setor informal-trabalhista e o contexto econômico dava mais força para o
desenvolvimento destes trabalhos, pois este grupo foi um dos únicos que não sofreu
com os planos econômicos elaborados no âmbito nacional. O quadro não era animador
e, notando sua posição complicada, o governo municipal organizou um projeto para a
fundação de um Centro comercial para os vendedores informais da cidade.
Entretanto, não seria tão fácil o processo de mudança dos ambulantes. O
projeto foi elaborado rapidamente, com os recursos levantados e a maioria dos
ambulantes concordando com a mudança, pois acreditavam nos benefícios alcançados,
fossem financeiros, na organizacionais ou na segurança. Todavia, não se pode pensar
8
que esta era a opinião geral dos ambulantes. Alguns vendedores não achavam que a
mudança seria benéfica, achando que perderiam sua liberdade.
Mesmo com esse impasse, após a decisão da criação do Camelódromo, a
Prefeitura Municipal de Santa Maria deixou de expedir alvarás de liberação para o
comércio nas ruas da cidade, buscando assim, o controle e o impedimento do aumento
do número de camelôs. Deste modo, apenas aqueles que estivessem legalmente
cadastrados iriam para o Camelódromo e, após sua construção, a prefeitura prometia
fiscalizar e punir com severidade os que tentassem desenvolver as atividades fora do
dele.
Após um debate entre o governo municipal e os vendedores ambulantes, foi
tomada a decisão que o Camelódromo seria construído na mesma Avenida Rio Branco e
caberia à Associação dos Ambulantes de Santa Maria (ACASM) a divisão e a instalação
dos vendedores dentro do mesmo. O projeto tinha como objetivo7 realocar os
vendedores que ficavam comercializando pelas ruas do centro de Santa Maria, terminar
com os conflitos entre comerciantes formais e informais e ter maior controle das
atividades8 desenvolvidas pelos ambulantes.
As obras do camelódromo municipal de Santa Maria foram concluídas em
meados de 1991, tendo atrasado alguns meses do que havia sido previsto no início do
projeto. Sobre o mesmo, o secretário interino informa que,
o Camelódromo atenderá cerca de 60 camelôs, que atualmente se
encontram distribuídos na Rua do Acampamento, na Avenida Rio
Branco, Alberto Pasqualini e imediações da Rodoviária. Todos os Box
ou casinha abrigará dois vendedores, haverá também um Box no
Camelódromo para a administração e outro para segurança e banheiro
(O Expresso, 01/02 jun. 1991, p. 11).
As regras impostas pela Prefeitura Municipal eram claras e faziam parte de um
posicionamento mais rígido. A ideia era erradicar o comércio desordenado pelas ruas de
Santa Maria e possibilitar melhores condições aos trabalhadores informais.
7 Segundo o Jornal O Expresso “O objetivo, de acordo com o Secretário Interino, é que com o tempo estes
vendedores se transformem em microempresários, alugando uma garagem ou pela para colocarem seu
negócio. E que o Camelódromo seria uma oportunidade deles adquirirem experiência no ramo” (26/27
jan. 1991, p.7).
8 Segundo o Jornal O Expresso “Com isso, o Executivo pretende eliminar os diversos pontos de vendas
situados nas calçadas do Centro e que prejudicam a circulação dos pedestres e criam constrangimentos
aos lojistas. Depois do Camelódromo pronto, a Prefeitura, de acordo com Bianchini, atuará de forma
rigorosa não permitindo qualquer ocupação de outro ponto de venda” (30/31 mar. 1991, p. 13).
9
Os primeiros tempos de Camelódromo na Avenida Rio Branco, apresentaram-
se de forma dúbia, pois, existiam elogios sobre a infraestrutura e críticas sobre as
atividades. Como afirma Mafalda (2012),
na Avenida Rio Branco, na época da fundação, foi feito tudo muito
bem estruturado. A ideia de dois comerciantes por quiosque era
seguida à risca”. Contudo, no sentido de lucratividade e organização
interna dos camelôs, os primeiros momentos não foram de sucesso.
Tendo sido complicado por causa do pequeno espaço e do
deslocamento ocorrido, já que vários comerciantes contavam com
uma clientela já estabelecida. Foi bem difícil nos primeiros tempos.
Outro ponto que atrapalhou, nos primeiros tempos de Camelódromo, foi a
permanência de vendedores pelas ruas de Santa Maria. Isto é, houve apenas uma
substituição de agentes. No lugar daqueles 57 ambulantes que foram para o centro
comercial, outros ocuparam o antigo espaço.
A constante crise econômica causou um gradual alargamento das atividades
informais, tanto em Santa Maria, como no país inteiro. A organização inicial para cerca
de 60 vendedores demonstrou-se insuficiente com o passar dos anos. A fiscalização
também não conseguiu dar conta da demanda e nem mesmo a organização interna dos
vendedores mantinha níveis recomendáveis.
Em poucos anos, a situação dos vendedores informais já era tida como algo
prejudicial para a cidade. Não havia controle do que se comercializava no
Camelódromo, tampouco os comerciantes achavam que aquela situação era correta. A
antiga localização havia sido alargada para mais uma quadra abaixo. Não somente o
trecho entre a Rua Venâncio Aires e a Rua dos Andradas comportava o centro comercial
informal, a quadra da Rua Silva Jardim também era tomada por aquelas barracas e suas
lonas de cor laranja.
Além disso, o comércio pelas esquinas do centro da cidade permanecia a todo
vapor. Os CDs e DVDs eram facilmente encontrados e a fiscalização nada fazia para
impedir tal comércio, pois a participação da mesma, no Camelódromo, também era
quase inexistente. O quadro não permitia demora na tomada de atitudes.
Vendo estes acontecimentos, a fundação do Camelódromo não foi mais do que
um ‘tapa-furo’, ou seja, uma solução de momento, já que a situação econômico-
trabalhista vivida era caótica e apenas potencializou os problemas. Com uma
fiscalização praticamente inexistente e a organização muito aquém do necessário, o
10
crescimento tornou-se incontrolável. Aquilo que seria a solução apresentou-se como um
problema que novamente ofereceria fragilidades para a população da cidade.
Ainda no ano de 2005, o prédio onde funcionava o antigo Cine Independência
foi escolhido como o local do Shopping Popular, na cidade, e a compra foi concluída
pelo Poder Executivo Municipal no mesmo ano. Os valores giraram em torno de 1,2
milhões de reais que seriam pagos em 22 parcelas, sendo 21 parcelas de 55 mil reais e a
última de 45 mil. A transferência dos vendedores informais da Avenida Rio Branco para
o Shopping Popular não resultava somente de motivações econômicas e de segurança. A
(re) organização urbana também estava em pauta. Tendo sido um dos cartões postais de
Santa Maria, imponente e majestosa em tempos de ferrovia, a Avenida Rio Branco -
anteriormente Avenida Progresso - convivia com dias nebulosos. A proliferação das
bancas com suas lonas chamativas deixava aquele espaço de passeio urbano cinzento e
‘mal habitado’.
A situação de tensão entre os vendedores informais e o poder público passava a
ser constante. O discurso do Prefeito Municipal era de erradicar os problemas
enfrentados por estas práticas. Na concepção do governo, o Shopping Popular seria a
solução para as fragilidades do centro da cidade (segurança, emprego formal,
iluminação, e revitalização da Avenida Rio Branco). Também haveria maior controle na
fiscalização do comércio informal, além disso, a ideia de que todos os vendedores
fossem contribuintes tributários, como os outros setores do comércio local. Segundo
Possebon (2011, p. 61) as
obras do Shopping Popular [ainda sem nome na época], o qual seria
instalado no antigo Cine Independência [na Praça Central] e contaria
com uma área de 1050 metros quadrados, abrigando 194 bancas. O
projeto prometia ‘tirar os profissionais das ruas, além de dar melhores
condições de atuação, com a qualificação das alternativas de geração
de trabalho e renda’. Anunciava-se que poderiam ir para o local todos
os trabalhadores informais que já fossem cadastrados no município,
fossem eles camelôs, artesãos ou ambulantes (eram cerca de 100
camelôs, 56 ambulantes e 50 artesãos cadastrados).
Contudo, nem todas as expectativas estavam sendo cumpridas. Nem na
organização dos vendedores informais, que permanecia caótica e em expansão pelas
ruas da cidade, nem nas obras do Shopping Popular, as quais não estavam sendo
prosseguidas como era esperado. Além desta preocupação com as obras do Shopping
11
Popular, o prefeito Cezar Schirmer (2008-2012) demonstrava a intenção de legalizar os
vendedores informais da cidade, por meio de uma lei ou de um decreto.
Apenas em novembro de 2009, a Prefeitura Municipal publicou o edital para a
abertura de licitação para a contratação da empresa que concluiria as obras internas do
Shopping Popular. A empresa vencedora era obrigada a cumprir, no prazo de três
meses, as reformas planejadas e, com seus recursos, deixar o espaço apto para as
práticas comerciarias o mais rápido possível. A vencedora da licitação foi a empresa
CPC, de Santa Maria, a única que decidiu participar da disputa e conseguiu o direito de
administrar o local durante dez anos, com a possibilidade de prorrogação de mais dez
anos.
Com as obras encaminhadas, a atenção do governo voltou-se para outro lado e
um dos focos que seria fortemente combatido após a transferência para o Shopping
Independência, seria a pirataria. Era de conhecimento público que um dos principais
meios de obtenção do lucro dos Camelôs era com os produtos ilegais (óculos,
brinquedos, eletroeletrônicos, roupas, calçados, relógios, bonés, etc.) que vinham,
principalmente, de grandes centros como São Paulo e Rio de Janeiro, bem como de
outros países, como o Paraguai.
Nota-se que, naquele momento, já havia se tornado difícil qualquer forma de
questionamento acerca da mudança programada para os vendedores informais da
cidade. Era apenas uma questão de tempo para que todos os artesãos, ambulantes e
camelôs de Santa Maria fossem realocados. Todavia, não havia como deixar de ouvir os
próprios vendedores informais nesse processo de mudança física de seus
estabelecimentos. Como eles entendiam essas mudanças? Eles aceitavam trocar de lugar
novamente? O governo pediu sua participação na elaboração do projeto e levou em
conta as necessidades dos mesmos?
Uma das maiores reclamações dos vendedores informais foi a total falta de
diálogo entre o governo municipal e os maiores interessados. Nem o nome do Shopping
foi escolhido por eles, o que denuncia o quão unilateral foram as decisões sobre o futuro
do comércio informal em Santa Maria.
Muitos comerciantes não queriam sair da Avenida Rio Branco, mesmo sabendo
que a situação do Camelódromo seria insustentável. As críticas não cessavam para
12
ambos os lados dessa querela, afinal, a postura tomada pela prefeitura, não foi nem
democrática, nem respeitosa.
O receio de que essa transferência não transcorresse de forma tranquila e
harmoniosa não se confirmou, pois a maioria dos vendedores informais acatou os
desmandos do governo municipal. Para eles, ir para o Shopping Independência poderia
ser benéfico, mesmo que este não apresentasse as condições recomendáveis como o
espaço e a liberdade que conviviam no Camelódromo. A prefeitura prometia que as
fragilidades seriam sanadas o mais rápido possível e que a mudança de ares era
inevitável.
Os meses que seguiram foram de últimos retoques na estrutura do Shopping e
nas tentativas de alguns poucos vendedores permanecerem comercializando na rua.
Entretanto, a realidade parecia ser diferente e a Prefeitura Municipal deixava clara sua
ideia de erradicar por completo o comércio pelas ruas de Santa Maria. Ou seja: ou os
vendedores facilitavam e se transferiam para o novo centro comercial ou corriam o risco
de ficar sem rendimentos.
Era questão de tempo para que o novo lugar de trabalho dos camelôs estivesse
a pleno vapor. Os boxes foram divididos em setores, com preços variando entre R$
490,00 e R$ 145,00. A esperança de dias melhores e de mais organização era o mote
principal dos trabalhadores. A Avenida Rio Branco deixaria de comportar aquela
imensidão de lonas e penduricalhos na sua extensão. O lugar onde seria estabelecido o
comércio informal seria de melhor localização e acesso para a população santa-
mariense, os problemas de ordem legal seriam sanados e as perspectivas eram as
melhores. Sabe-se, porém, que nem sempre a realidade acompanha os desejos.
No dia 25 de junho de 2011, foi inaugurado o Shopping Independência, o
primeiro mercado público da cidade de Santa Maria, semelhante aos que existem em
outros grandes centros do país com trabalho em ritmo acelerado. Era um novo momento
na vida desses trabalhadores e todos só desejavam que as mudanças terminassem e que
pudessem desenvolver suas atividades de forma tranquila e segura.
Mas o que está diferente do Camelódromo? Muitos dizem que a organização, a
segurança, a estética e o público. Partilha-se de alguns pontos, mas há dúvidas de que a
solução final seja o Shopping Independência ou, como é conhecido por grande parcela
da sociedade santa-mariense, o Shopping ‘Popular’, já que, quando fundado, o
13
Camelódromo também gozava das mesmas prerrogativas. Isso, porém, não há como
mensurar em curto prazo.
O que se pode notar é que as condições do Shopping Independência não são
totalmente recomendáveis. Atualmente, faltam alguns elementos que possibilitem boas
condições para os vendedores e consumidores, pois o espaço é mínimo, as instalações
de segurança não são as aconselháveis e a divisão, por andar, permanece atrapalhando
no desenvolvimento das atividades. Mesmo assim, o chamado comércio informal não
terá fim, pelo menos não tão cedo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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