monografia rangel r. godoy
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
RANGEL RAY GODOY
OS NOVOS PARADIGMAS DE SAÚDE E A ATENÇÃO FARMACÊUTICA. A
PREOCUPAÇÃO COM A QUALIDADE DA COMUNICAÇÃO E DA RELAÇÃO PROFISSIONAL-PACIENTE.
CURITIBA - 2009
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
RANGEL RAY GODOY
OS NOVOS PARADIGMAS DE SAÚDE E A ATENÇÃO FARMACÊUTICA. A
PREOCUPAÇÃO COM A QUALIDADE DA COMUNICAÇÃO E DA RELAÇÃO PROFISSIONAL-PACIENTE.
CURITIBA - 2009
Monografia apresentada à disciplina de Monografia II como requisito parcial à conclusão do Curso de Farmácia, Setor de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Paraná Orientador: Cassyano J. Correr
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Dedico este trabalho:
A todos aqueles que, vivendo em condições miseráveis de marginalização e exclusão, sustentam a lógica desumana do sistema econômico.
Aos povos da América Latina, que resistem bravamente aos séculos de exploração de suas forças e de sua terra.
Aos cientistas realmente comprometidos com a verdade, que fazem da ciência um exercício de dignidade e nobreza.
Aos profissionais de saúde que lutam por uma sociedade mais saudável e humana.
Ao caríssimo e inesquecível amigo Juliano Gomes Campanini, com quem por horas discutia os projetos futuros de uma juventude tão sonhadora para uma existência tão breve.
A meu avô Cesar Godoy, para sempre exemplo de humildade, hombridade, simplicidade e honestidade.
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AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Joarez Godoy de Lima e Vera Beatriz Gallo, pelos anos de dedicação ininterrupta, compreensão, incentivo e amor incondicional, sem os quais a realização deste trabalho ou de quaisquer outras realizações teria sido pouco provável ou muito mais turbulenta e penosa. Aos amigos e amigas dos tempos da minha tenra idade em Palmital-PR, pelos anos de convivência e pela amizade que se mantém inabalável. Aos amados companheiros e companheiras das gestões de 2007 à 2009 do CAF-UFPR, por compartilharem comigo momentos tão intensos de estudo, reflexão e enfrentamento em defesa de uma UFPR pública e de qualidade e de uma sociedade mais justa. Creio que sem vocês a graduação teria sido uma experiência bastante insípida e trivial. Aos companheiros e companheiras do Movimento Estudantil nacional por terem me proporcionado espaços de grande satisfação e aprendizado, contribuindo determinantemente para formação dos meus ideais, da minha consciência e do meu caráter. Aos caríssimos amigos Ana Lívia de Arruda Iwano e Reinaldo Koiti Tanita, pelo apoio, amizade e companheirismo durante o curso de Farmácia, especialmente nas horas mais tensas e complicadas da graduação. Aos professores e servidores técnicos da UFPR que se dedicam à emancipação humana e a formar profissionais competentes e críticos para atuar pelo bem da sociedade e do meio ambiente.
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Da conquista arbitraria anunciada pelo “terra à vista” na descoberta do Brasil,
seguiu-se a colonização violenta, em que a escravidão teve início com os índios,
passando pelos negros africanos e desaguando no modelo sociopolítico
atual elitista, concentrador, não solidário, fechado, corrupto, violento, injusto e
excludente, em que não faltam assalariados, desempregados, famintos,
sem-terra, sem-teto, sem-tudo, sem-nada, e falta felicidade e sobra doença e
dor” (Galvão, 1997, pp. 16-17)
A grande preocupação que deve nos guiar ao escolher uma profissão deve ser
a de servir ao bem da humanidade (...) Os maiores homens de que nos fala a história são aqueles que, trabalhando
pelo bem geral, souberam enobrecer-se a sí próprios(...já) que o homem mais
feliz é o que soube fazer felizes os outros e a própria religião ensina que o
ideal a que todos aspiram é o de sacrificar-se pela humanidade.
Karl Marx (1818-1883)
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RESUMO A humanidade sobrevive a partir de uma constante superação científica de paradigmas. Existem momentos históricos em que o modelo de pensamento e a materialidade colocados já não servem para o entendimento e desenvolvimento do mundo. O ser humano é o único capaz de, através da práxis, refletir e transformar a realidade no sentido da evolução, pois a não evolução humana, dentro do atual contexto, significa fatalmente a sua destruição. A concepção de saúde também é um paradigma científico que se transforma e que evolui. Um entendimento holístico da saúde, superando o cartesianismo e o modelo biomecânico, leva em conta o ser humano como um todo e sua relação com o meio ambiente. A preocupação com a qualidade na comunicação e a relação profissional de saúde – paciente são reflexos de um novo modelo que vem se aperfeiçoando e superando o paternalismo em saúde. No caso específico da profissão de farmácia, uma análise sobre os principais desafios da profissão frente a uma nova demanda demonstra a necessidade de se focar o bem estar do paciente. A atenção farmacêutica e o desenvolvimento de uma relação profissional-paciente de qualidade são ferramentas imprescindíveis para evolução da profissão de farmácia, uma evolução em acordo com a superação científica de conceitos e paradigmas. Palavras-chave: Paradigmas. Relação Profissional-Paciente. Comunicação. Atenção Farmacêutica
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ABSTRACT
The humanity survives through a constant overcoming of scientific paradigms. There are historical moments in which the model of thought and materiality are not good at understanding and development of the world. Human beings are uniquely capable of, through practice, reflect and transform reality in the sense of evolution, because the non human evolution, within the present context, means inevitably to their destruction. The concept of health is also a scientific paradigm that is changing and evolving. A holistic understanding of health, overcoming the Cartesian and biomechanical model, takes into account the human being as a whole and its relationship with the environment. The concern with the quality of communication and the health professional – patient relationship are reflections of a new model that has been improving and overcoming paternalism in health. In the specific case of the profession of pharmacy an analysis of the key challenges facing the profession to a new demand, demonstrate the need to focus on the welfare of the patient. The pharmaceutical care and the development of professional-patient relationship quality are essential tools for development of the profession of pharmacy, a development agreement with the overcoming of scientific concepts and paradigms. Keywords: Paradigms. Professional-Patient Relationship. Communication. Pharmaceutical Care
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ......................................................................................... 10
2 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O MÉTODO CIENTÍFICO E SUA RELAÇÃO COM OS ESTUDOS EM SAÚDE........................................... 12
3 ANÁLISE CRÍTICA DO MODELO ATUAL DE SOCIEDADE E A EXCLUSÃO SOCIAL COMO DETERMINANTE PATOLÓGICO NO PROCESSO SAÚDE-DOENÇA ............................................................... 17
3.1 O COMPROMISSO SOCIAL .................................................................... 24
4 O PROFISSIONAL DE SAÚDE E SUA RELAÇÃO COM O PACIENTE – UMA ABORDAGEM PSICOLÓGICA ...................................................... 28
4.1 OS ASPECTOS DA RELAÇÃO ............................................................... 28
4.2 CATEGORIAS DA RELAÇÃO PROFISSIONAL-PACIENTE ................... 30
4.3 O SIMBOLISMO ....................................................................................... 31
4.3.1 Curar e cuidar .......................................................................................... 34
4.4 REAÇÕES PSICODINÂMICAS FRENTE AO STRESS E À DOENÇA .... 35
4.5 O PROFISSIONAL DE SAÚDE E O ARQUÉTIPO DO CURADOR ......... 36
5 A COMUNICAÇÃO EM SAÚDE .............................................................. 39
5.1 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A COMUNICAÇÃO ...................... 39
5.1.1 Principais teorias da comunicação ........................................................... 40
5.2 OS ELEMENTOS DO PROCESSO DE COMUNICAÇÃO NO CONTEXTO DE SAÚDE ............................................................................................... 42
5.2.1 A Comunicação terapêutica ..................................................................... 44
6 O PROFISSIONAL FARMACÊUTICO E OS DESAFIOS DA PROFISSÃO EM FAVOR DOS RESULTADOS EM SAÚDE ........................................ 46
6.1 PRM´s – PROBLEMAS RELACIONADOS AO MEDICAMENTO – UMA PREOCUPAÇÃO DO PROFISSIONAL FARMACÊUTICO ...................... 46
6.1.1 Acesso ao medicamento .......................................................................... 47
6.1.2 A Eficácia e Segurança ............................................................................ 47
6.1.3 O uso irracional de medicamentos e automedicação ............................... 48
6.1.4 Complacência, concordância e aderência ............................................... 50
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6.2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A EXPERIÊNCIA DO PACIENTE COM A MEDICAÇÃO ........................................................................................... 55
6.1.1 Conceitos e abordagem terapêutica do profissional de saúde ................. 55
6.2.2 O significado do medicamento para o paciente ....................................... 59
7 REFLEXÕES SOBRE A ATENÇÃO FARMACÊUTICA - A RELAÇÃO PROFISSIONAL-PACIENTE E A COMUNICAÇÃO TERAPÊUTICA ..... 62
7.1 ASPECTOS OBJETIVOS – O FARMACÊUTICO E A FARMÁCIA .......... 62
7.1.1 O profissional da Atenção Farmacêutica ................................................. 62
7.1.2 A farmácia comercial no Brasil ................................................................. 63
7.2 RECURSOS PARA O DESENVOLVIMENTO DA COMUNICAÇÃO FARMACÊUTICO-PACIENTE ................................................................. 65
7.2.1 Acolhendo o paciente ............................................................................... 65
7.2.2 A empatia ................................................................................................. 66
7.2.3 O processo de ouvir: escuta ativa ............................................................ 67
7.2.4 O aconselhamento ao paciente ................................................................ 68
7.2.5 “Pacientes difíceis” – Entendendo os sentimentos de raiva ..................... 70
7.2.6 Assertividade ............................................................................................ 71
7.2.7 Conflitos ................................................................................................... 72
7.2.8 A resistência à mudança .......................................................................... 74
7.2.9 Comunicação suporte .............................................................................. 75
7.2.10 Escolhendo uma resposta apropriada ...................................................... 76
7.2.11 Comunicação persuasiva ......................................................................... 78
7.2.12 A relação de proximidade ........................................................................ 80
7.2.13 A comunicação não verbal ....................................................................... 81
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................... 86
REFERÊNCIAS ........................................................................................ 88
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1 INTRODUÇÃO
A busca pela compreensão científica do mundo, da humanidade e da inter-relação
entre ambos nos coloca em uma dinâmica de constante evolução paradigmática. O
conceito de profissional de saúde precisa estar diretamente relacionado com o conceito
de saúde (o qual é científico e, portanto, jamais absoluto) seguindo uma dinâmica
epistemológica que acompanha o desenvolvimento humano.
De fato, a concepção de saúde não é mais a mesma, restritiva, reducionista e
fragmentada de anos atrás. O estado de saúde era entendido como a ausência de
doença. Hoje, os elementos que compõe a definição de saúde são muito mais amplos e
envolvem bem estar, relação de equilíbrio considerando indivíduo, ambiente e sociedade.
Paralelamente à evolução hermenêutica do conceito de saúde, o modelo de
atenção à saúde e a atuação do profissional dessa área precisam acompanhar esse
dinamismo, transformando-se e reinventando-se de acordo com as novas necessidades
impostas por uma nova concepção científico-filosófica. O profissional que ainda mantém
seu foco de ação na doença e não no doente está indiscutivelmente ultrapassado,
obsoleto dentro do atual contexto.
A profissão farmacêutica já evoluiu consideravelmente desde o surgimento dos
primeiros boticários, que se preocupavam principalmente com a produção do
medicamento a partir dos recursos naturais. A evolução científica nos campos da síntese
química e da bioquímica analítica ofereceu novas demandas para a profissão, as quais a
sociedade de consumo ajudou a moldar historicamente. Nos dias de hoje surgem novas
demandas que lançam desafios e a necessidade de reflexão sobre uma moderna,
complementar e transformadora postura profissional. A Atenção Farmacêutica constitui-se
na principal ferramenta, uma ciência farmacêutica, que surge no sentido de suprir
demandas sociais, atualizando a profissão para que ela possa cumprir seu objetivo
perante a sociedade. O foco deste salto de qualidade se expressa no indivíduo que
exerce a profissão, no qual toda a responsabilidade recai sobre os ombros. A aquisição
de novos conceitos, o entendimento conjuntural, a necessidade de adquirir conhecimento
de novas habilidades e relacionar com as que já possui são apenas alguns exemplos das
exigências que precisam ser cumpridas pelo profissional farmacêutico para se readequar
a sua profissão. A reflexão filosófica do seu papel na sociedade talvez seja o fator mais
imprescindível, pois, concordando com Benetton (2002):
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“Dos três pontos que caracterizam um profissional: Desenvolvimento de habilidades, conhecimento técnico específico e crítica à contextualização de seu ofício, este último é o que acrescenta um ‘plus’, um quê, um algo a mais que o afasta da linha limite de um técnico robotizado bem intencionado” (Benetton, 2002)
A superação do conceito ultrapassado de saúde, a consciência de problemas de
saúde pública, tais como os Problemas Relacionados ao Medicamento (PRMs), que são
influenciados por vários fatores, desde a relação inter-pessoal até o modelo econômico e
social, permitem ao farmacêutico a atuação no sentido de colaborar verdadeiramente com
o bem estar da sociedade e com a superação das contradições nela existentes.
Os novos paradigmas relacionados à saúde consideram o paciente como sujeito
ativo e participativo do processo de recuperação da saúde. Neste sentido, se faz urgente
a apropriação de conhecimentos que promovam o desenvolvimento de habilidades de
comunicação no profissional de farmácia. Essa preocupação tem por objetivo a melhoria
da relação farmacêutico-paciente que acontece, na maioria das vezes, no ambiente da
farmácia de dispensação. A valorização da qualidade desta relação acontece por se
entender que ela é uma alternativa para o enfrentamento de vários problemas que
prejudicam o processo de recuperação do paciente. Para que o profissional possa
estabelecer uma satisfatória relação com seu paciente no sentido terapêutico é
necessário que, além da competência técnica, o farmacêutico adquira um conhecimento
transdisciplinar indispensável para a sua atuação. A compreensão da ação farmacológica,
dos sentimentos do paciente, da influência social e política são elementos dessa
transdisciplinariedade que permite uma compreensão holística do paciente e do seu
problema e uma atuação condizente com o novo modelo de atenção à saúde.
Neste trabalho buscaremos, através de uma revisão de literatura, sistematizar
elementos para reflexão em busca de uma atuação profissional comprometida com a
Atenção Farmacêutica e, conseqüentemente com o cumprimento do papel do
farmacêutico no sentido de colaborar com o complexo processo de recuperação da saúde
e da transformação social em busca de uma sociedade mais saudável.
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2 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O MÉTODO CIENTÍFICO E SUA RELAÇÃO
COM OS ESTUDOS EM SAÚDE
A metodologia científica é a exigência para aquisição e sistematização do
conhecimento humano acumulado durante a história. Os meandros da busca pelo saber
científico devem ser os primeiros a serem conhecidos como condição sine qua non para
que se alcance a verdade de maneira inequívoca. As regras do método se expressam
através da aplicação das ciências que buscam atingir a verdade.
Segundo L´Andriere existem basicamente três tipos de ciências: As formais, as
empírico-formais e as hermenêuticas.
As formais são a matemática e a lógica cujo paradigma é a coerência. Isso permite
a uma máquina fazer a mesma leitura sem erro.
As empírico-formais são aquelas construídas de acordo com o modelo da física,
buscando a compreensão da realidade. O modelo das ciências empíricas formais é a
física, que é empírica e formal porque a física é feita a partir da experiência.
As hermenêuticas ou humanas são as ciências da interpretação. Ocupam-se em
interpretar os sinais em geral e os símbolos em particular. O processo interpretativo busca
por em evidência um significado imediatamente aparente. Por estarem sujeitos à
interpretação, os fenômenos podem ser vistos de maneira distinta. Isso permite que
possa haver interpretações diferentes e conflitos entre elas. Nas ciências humanas, a
verdade é consenso, e o consenso é fruto do conflito. O instrumento operacional das
ciências humanas é a crítica, porque é aí que se busca a verdade que se expressa no
debate crítico de idéias.
As três ciências – formais, empírico-formais e hermenêuticas – não se anulam, e
sim se acrescentam e se modificam mutuamente. (Ferreira, 2003)
L´Adriere, entretanto, não considera em sua sistematização os estudos da
psicanálise freudiana, através da qual novos elementos são inseridos, como a proposta
da existência do inconsciente. Ela problematiza a questão hermenêutica ao afirmar que
pessoas podem agir determinadas por reações inconscientes que elas próprias
desconhecem e que remetem á época da primeira infância, fruto de diversos conflitos
gerados durante a construção do ego. O reconhecimento da dimensão inconsciente afeta
consideravelmente a análise no campo das ciências humanas e da saúde. Portanto, seria
importante neste ponto fazer uma distinção (não sendo uma separação) entre psicanálise
e hermenêutica. Para a hermenêutica, lidamos conscientemente o tempo todo com um
conjunto de valores de cujo significado não nos damos conta imediatamente, mas ao qual
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poderíamos ascender por meio da reflexão sistematizada. Para a psicanálise freudiana,
entretanto, estaríamos fadados a desconhecer para sempre uma porção de nós mesmos.
(Campos, 2005)
Estes conceitos da psicanálise nos colocam que o inconsciente irrompe quando
menos se espera e reflete em atitudes claramente racionais. O mais interessante é a
reflexão que Freud nos oferece de que o ser humano jamais será absolutamente
controlado pela própria razão consciente, mas que sempre estará submetido a uma
entidade própria da qual não se pode conhecer ou perceber e que pode influenciar
definitivamente suas atitudes como indivíduo.
Descartes, (2009), no período mais expressivo do Iluminismo na Europa, publica
uma obra de indiscutível relevância. Em seu “Discurso do Método”, anuncia propostas de
superação do senso comum e da busca pela verdade através do seu método científico
racional, que consiste básica e resumidamente em quatro regras:
- “Não aceitar nada como verdadeiro sem que antes tenha passado pelo crivo da razão”;
- “Tudo o que aparece como complexo deve ser dividido em tantas partes simples quanto
possíveis, pois a razão, ao focar um problema perfeitamente delimitado, tem mais
condições de resolvê-lo do que se encarar algo composto de várias maneiras”;
- “Uma vez feito esse processo de simplificação, ele deve seguir um ordenamento, de
modo que a remontagem para o composto ou complexo possa ser feita sem desvios, que
prejudicariam a verdade almejada” e,
- “Como esse procedimento pode ser retomado e repetido por qualquer um, ele deve dar
lugar a tantas revisões quanto necessárias, de modo que as contribuições e objeções de
todos possam ser levadas em consideração, pois ela é a condição mesma de
estabelecimento da verdade”.
Indiscutivelmente esses preceitos representaram um avanço incrível na maneira de
pensar, no raciocínio científico de sua época. Desconstruiu-se, a partir desse
pensamento, o dogmatismo, o preconceito, e o fanatismo da idade média. Tamanha foi a
influencia de seus pensamentos e sua doutrina na sociedade ocidental, que ela perdura
até os dias de hoje e se reflete na estruturação do pensamento cotidiano. O raciocínio
humano, no geral, habituou-se a funcionar através da pratica de dividir e classificar o
conhecimento, o que pode ser considerado uma herança genuinamente cartesiana.
Entretanto, o processo do conhecer científico (como o próprio Descartes não se furta de
comentar) é dinâmico e a verdade científica nunca é estática ou imutável, mas sempre
provisória e digna de revisão e aperfeiçoamento. Sendo assim, a superação do próprio
método cartesiano é parte desse processo.
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O modelo pedagógico, por exemplo, que encontramos hoje em escolas e
universidades não deixa de seguir o mesmo método cartesiano clássico: Dividir o
conhecimento complexo em disciplinas, classificá-lo e entende-lo em partes para que
depois se possa compreender o todo. Uma análise empírica da aplicação desse modelo
demonstra que há falhas consideráveis nessa maneira de sistematizar o saber, já que o
objetivo central, que é a transmissão do conhecimento não tem sido alcançado com
sucesso. A observação de que há dificuldade de fazer as aproximações e relações entre
os conhecimentos adquiridos nas disciplinas é uma delas. Frente a isso, novas
estratégias, como um processo baseado em interdisciplinaridade e transdisciplinaridade
são conceitos que se oferecem como a superação deste método cartesiano clássico, no
campo pedagógico e científico.
“A visão orgânica dominou a Europa até o século XV. A natureza era vivida em termos de relações orgânicas com interação dos fenômenos naturais e espirituais. Com Copérnico, Galileu, Newton e Descartes no século XVI essa visão foi substituída pela percepção do mundo como se fosse uma máquina. A mecânica newtoniana foi utilizada pelas ciências sociais no século XVIII com a proclamação da física social, que teve em John Lock um de seus expoentes. O iluminismo influenciou a psicologia clássica, principalmente o behaviorismo e a psicanálise. O padrão cartesiano não só moldou a biologia e a medicina, mas também a psicologia” (Ferreira 2003).
Na área da saúde, Descartes considera o corpo humano de maneira semelhante a
uma máquina, um relógio que eventualmente necessita de reparos em suas engrenagens
para que possa continuar funcionando corretamente. Este modelo mecanicista influenciou
marcadamente o modelo médico de atenção à saúde, que perdura até hoje, e que
negligencia as demais variáveis extremamente relevantes para funcionamento correto do
organismo.
“Descartes tinha sugerido que o corpo devesse ser estudado pelo método da ciência natural e a alma ou a mente, pelo método introspectivo. Para a procura do conhecimento, Bacon desenvolveu um método indutivo, Descartes, o método racional dedutivo. Newton combinou ambos ao afirmar que tanto as experiências sem interpretação sistemática quanto a dedução a partir de princípios básicos sem evidência experimental não conduziriam a uma teoria confiável”. (Ferreira, 2003)
Depois de se preocupar com questões metafísicas e acreditar ter provado
racionalmente a existência de deus, Descartes partiu para o conhecimento do mundo
físico, em particular do corpo humano. Após ter formulado uma sistematização científica
que acreditava demonstrar a imortalidade da alma que em sua essência inteligível é
distinta da existência sensível, descartes afirma que o corpo humano, semelhantemente
ao corpo dos animais, funciona de forma mecânica, como se fosse uma máquina.
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Descartes separa, incondicionalmente, o estudo da alma e do corpo e desconsidera sua
inter-relação. (Descartes, 2009)
No campo das ciências humanas e da saúde, a exagerada fragmentação
cartesiana impossibilita o correto entendimento das complexas relações humanas com o
meio, com os outros e consigo próprio. Os fatores políticos, sociais, ambientais e
psicológicos são preponderantes para a manutenção do funcionamento do organismo e
se inter-relacionam dinamicamente.
Faz-se evidente, portanto a superação do método cartesiano mecanicista para
esse tipo de estudo na área das ciências da saúde. Um método que agrupe todas as
variáveis relacionadas à saúde em seu conceito amplo de equilíbrio e bem estar é
preferível para os novos paradigmas do conceito de saúde. O método clínico de estudo é
um exemplo de um novo referencial que se relaciona à uma nova concepção holística da
saúde
“O método clínico procura sobre passar os limites do modelo cartesiano tentando entender o ser humano não a partir da divisão mente-corpo, e sim dentro de uma abordagem holística. O método clínico aproveitou da prática médica o que constitui sua unidade: A convicção de que só um estudo fundo de pessoas isoladas cuja individualidade seja reconhecida e respeitada e que sejam consideradas em situação e em evolução, possibilitará a compreensão dessas pessoas e talvez, através delas, do humano” (Rechlin, 1971, p.106, citado por Ferreira, 2003)
Em se tratando de um assunto relacionado à atenção farmacêutica fica ainda mais
evidente a necessidade de entender o indivíduo de maneira não fragmentada,
compartilhando seus receios, medos e demais sentimentos, entendendo a sua condição
social relacionada ao ambiente em que vive. Basta, para exemplificar a veracidade
dessas proposições, analisar o conceito de atenção farmacêutica hermeneuticamente
construído no Consenso Brasileiro de Atenção Farmacêutica.
“É um modelo de prática farmacêutica, desenvolvida no contexto da Assistência
Farmacêutica. Compreende atitudes, valores éticos, comportamentos, habilidades, compromissos e co-responsabilidades na prevenção de doenças, promoção e recuperação da saúde, de forma integrada à equipe de saúde. É a interação direta do farmacêutico com o usuário, visando uma farmacoterapia racional e a obtenção de resultados definidos e mensuráveis, voltados para a melhoria da qualidade de vida. Esta interação também deve envolver as concepções dos seus sujeitos, respeitadas as suas especificidades bio-psico-sociais, sob a ótica da integralidade das ações de saúde.” (Ivama et. al., 2002)
A proposta de, através de uma revisão bibliográfica, aprofundar
epistemologicamente a discussão científica sobre o papel do farmacêutico como
profissional de saúde, como agente crítico e transformador da realidade social, é
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decorrente da constatação de que esse tema é relativamente negligenciado nas cadeiras
da academia, que privilegiam a formação técnica enquanto que a discussão do
compromisso político e social do estudante de farmácia se apresenta praticamente
ausente.
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3 ANÁLISE CRÍTICA DO MODELO ATUAL DE SOCIEDADE E A EXCLUSÃO SOCIAL
COMO DETERMINANTE PATOLÓGICO NO PROCESSO SAÚDE-DOENÇA
Considerando que a saúde é resultado de um equilíbrio dinâmico entre o indivíduo,
na sua concepção holística de corpo e alma, e o meio em que desenvolve suas atividades
vitais, parece imprescindível uma análise da estruturação ambiental levando em conta as
atividades sociais desenvolvidas pelos indivíduos no modelo de sociedade atual e como
elas influenciam o processo saúde-doença. (Capra, 1990)
A nova concepção de saúde considera que o organismo humano é um sistema vivo
cujos componentes estão interligados e interdependentes e que é parte integrante de
sistemas maiores, isto é, está em interação contínua com o seu meio ambiente físico e
social, afetando e sendo afetado por eles. Esse entendimento não nos permite
negligenciar os aspectos físicos, psíquicos, sociais e ecológicos quando se quer conhecer
aspectos patológicos tanto físicos quanto mentais do indivíduo. (Capra, 1990)
É necessário que o profissional de saúde compreenda o indivíduo, que encontre no
paciente mais do que uma desordem ou disfunção biológica, um órgão ou tecido lesado
ou um processo infeccioso, mas que ele descubra, por trás desses problemas, um ser
humano, com suas características sociais específicas, que muitas vezes expressa no
“soma” uma patologia, um problema que é de origem social e que, portanto, deve ser
considerado como raiz do mal que o aflige. Para isso é necessário um conhecimento
mínimo de como funciona a sociedade e sua influencia no processo de adoecimento.
Consideramos que a doença ocorre por algum motivo e é na verdade uma
mensagem sendo transmitida, uma resposta a algum tipo de agressão. A sabedoria está
não em sua eliminação pura e simples, mas na compreensão dessa mensagem. A
enfermidade tem relação com aspectos holísticos do indivíduo, enquanto a doença, com
suas partes. A cada dia que passa se torna mais evidente o caráter psicossomático de
todas as doenças que acometem os indivíduos, pois são fruto de uma relação contínua
entre mente e corpo, tanto em sua etiologia quanto no desenvolvimento da cura, e que
ambas são influenciadas pelos aspectos da construção do aparelho psíquico do indivíduo,
expresso, a partir dos recônditos do inconsciente, nos conflitos do ego. (Ferreira, 2003)
Retornamos então ao discurso filosófico de superação da concepção fragmentada
do indivíduo e percebemos a relação social como fator preponderante para a manutenção
da saúde. Isso nos remete a necessidade do comprometimento social do profissional
dessa área, já que este deve se responsabilizar pelo bem estar dos indivíduos e buscar
18
incessantemente uma realidade que traga consigo o vislumbrar de uma sociedade mais
saudável.
Segundo Capra (1990), as crises no modelo assistencial de saúde são frutos de
uma visão obsoleta do mundo, da persistência da concepção mecanicista da ciência
cartesiano-newtoniana e que já não pode ser entendida em função desses conceitos. Há
necessidade de uma perspectiva ecológica, de um mundo dinâmico, interligado e
globalizado onde os fenômenos biopsicossociais são interdependentes. É necessária uma
mudança radical em nossa maneira de pensar, na percepção da realidade e nos valores,
que dêem um salto de qualidade, de uma concepção mecanicista para uma percepção
holística da realidade.
Rousseau, em seu Contrato Social (2007), afirma: “O homem nasce livre e em toda
parte é posto a ferros” Essa afirmação nos permite partir para uma análise sobre a
liberdade dos indivíduos em nosso contexto atual de relações sociais.
O modelo de convivência social é regrado por valores morais que padronizam o
comportamento. A transgressão dessas regras culmina invariavelmente em alguma
espécie de coerção, social ou jurídica. A convivência é forçada quando as regras não são
internalizadas e compreendidas através do exercício da reflexão crítica. A imposição
dessas regras cria condições ideais para violência e a exclusão. Para Nicolescu (2006),
aprender a conviver:
“Significa, antes de mais nada, acatar as normas que regem as relações entre os membros de uma coletividade. Mas tais normas devem ser verdadeiramente compreendidas e intimamente aceitas pelas pessoas, e não apenas obedecidas como uma lei imposta exteriormente. ‘Conviver’ não quer dizer simplesmente
Tolerar o outro em suas diferenças de opinião, raça e crença;
Curvar-se às exigências dos poderosos;
Navegar entre os meandros de inúmeros conflitos;
Separar definitivamente sua vida interior de sua vida exterior;
Fingir dar atenção ao outro, sem contudo abrir mão da convicção quanto à absoluta justeza de suas próprias posições.
Porque isso transformaria a convivência no seu contrário: uma luta de todos contra todos.” (Nicolescu, 2006)
Nesse sentido, o estudo da moral é de extrema importância para o entendimento
do modelo de exclusão social, pois ela é socialmente construída e influenciada pelo
pensamento dominante que molda o comportamento humano de acordo com seus
interesses dentro de uma estrutura desigual. Entendemos, portanto, que vivemos um
padrão de comportamento imposto por uma ética burguesa que propõe nada mais do que
a manutenção do modelo social excludente a partir da construção de uma consciência
alienada em beneficio do interesse de poucos. Essa moral alienada é perpetuada através
19
das instituições existentes na sociedade, tais como escolas, igrejas, o próprio aparato de
comunicação de massa, e até mesmo pelo estado. (Iasi, 2007)
Essas instituições, em sua maioria não estimulam o desenvolvimento do
pensamento crítico, mas visam sim educar o indivíduo de acordo com as regras morais do
modelo social, sem antes analisá-las com rigor científico através de uma reflexão
filosófica transdisciplinar.
“Quanto mais conformista, não dissidente e submisso for o cidadão, mais recebe a aprovação social e do Estado, uma vez que renuncia a si próprio em função de valores e regras que lhes são alheias. Esse sujeito não pode mais pensar, não consegue mais se distanciar da realidade que vive, perde sua função de agente de sua própria história. Transformou-se em massa, massa de manobra dentro de um sistema de produção e consumo. Renuncia ao que caracteriza a vida social, ou seja, a possibilidade de dissenso e da contradição, que podem existir tanto no nível microssocial, no seio da família, como no macrossocial, no convício com a sociedade. Para abafar a ânsia contraditória humana, bem como sua criatividade e individualidade, criaram-se os rituais de massa que buscam homogeneizar as diferenças, tais como no Brasil, o futebol e o carnaval”. (Ferreira, 2003)
A busca do nivelamento social se dá por um processo de amortecimento das
capacidades individuais de pensamento onde se legitima que alguns poucos pensem por
todos. A reflexão crítica e produção intelectual são substituídas pela mera reprodução do
conhecimento em favor do interesse burguês. A universidade, que teoricamente é espaço
legítimo do debate de idéias e da reflexão crítica e filosófica se transformou em uma
verdadeira indústria de massa de trabalhadores os quais adquirem conhecimento técnico
suficiente para desenvolver uma função específica no processo de produção e serviços. A
universidade tornou-se instrumento do sistema capitalista; o indivíduo, a peça
fundamental moldada para que se encaixe em suas engrenagens fazendo girar a roda do
sistema excludente e desigual por natureza e perpetuando um modelo de exploração do
trabalhado alienado. (Ferreira, 2003)
Conclui-se, a partir dessa análise, que os padrões socialmente aceitos, assimilados
pela sociedade são reflexos de uma ideologia dominante que sutilmente aliena o
pensamento e a ação. Esses padrões são extremamente influenciados pelo modelo
econômico produtivista que legitima a desigualdade por ser ela mesma o combustível que
movimenta as engrenagens do sistema.
Uma análise científica do trabalho no sistema capitalista, desde o toylorismo até o
toyotismo que acompanhou o processo de globalização nos permite vislumbrar a
especialização científica do modelo de exploração do trabalhador, o qual mercadoriza-se
ao vender sua força de trabalho e aliena seu tempo e sua vida à disposição do mercado.
20
Aqueles que, por alguma razão, não conseguem se inserir no mercado de trabalho
são inevitavelmente marginalizados. Entretanto sabemos que o desemprego é uma
condição, e não um impedimento, dentro do sistema capitalista, pois dentro do processo
de produção em que o trabalho é seu instrumento principal e mola propulsora, a
existência da pobreza, assim como do desemprego, não é apenas decorrência de
problemas do processo. O desemprego justifica e permite que o próprio sistema
sobreviva. Para que o capital tenha total controle e poder sobre o trabalho, o desemprego
e a pobreza são peças fundamentais. A manutenção de uma massa de reserva faz parte
do jogo do capital e do lucro, uma vez que essa multidão permite a troca de funcionários
sempre que o detentor do capital achar necessário aumentar seus lucros. Uma “peça”
desgastada ou quebrada (aquela mesma que passou pelo controle de qualidade da
universidade) pode ser invariavelmente substituída e jogada no lixo da marginalização
social. Os salários também podem ser achatados em decorrência da constante pressão
dos desempregados em busca de emprego, o que estimula a concorrência entre a classe
trabalhadora e permite que os salários possam ser achatados frente ao temor do
desemprego e de suas conseqüências. Desta maneira, o capital sempre tem controle
sobre o trabalho e principalmente sobre o trabalhador. (Ferreira, 2003)
Entendendo que, nas condições atuais, não há como se construir uma realidade
distante do desemprego, podemos concluir que sempre haverão setores excluídos na
sociedade. O trabalho alienado, construído sobre a areia da falsa moral, torna a classe
trabalhadora (maioria absoluta na sociedade) submissa ao patrão. O individuo nem
percebe que cercearam sua liberdade, que mataram seu senso crítico, secaram a fonte
de sua criatividade e que lhe privaram da possibilidade de expressar sua condição
humana na plenitude de sua existência. Isso gera, com o passar do tempo, inevitáveis
processos de adoecimento em massa.
Aqueles que procuram o prazer no uso de drogas, fazem mal a si próprio. Mas o
estado, igualmente burguês, lhe retira o livre arbítrio sobre seu próprio corpo, porque
corpo debilitado não gera riquezas e sua doença pode esfacelar as finanças públicas.
O sistema de saúde, quando pensado na lógica produtivista do capital tem a função
de manter o trabalhador em condições mínimas para que possa desenvolver sua tarefa e
também a massa de reserva em condições de substituir algum trabalhador que, por
ventura venha a se rebelar contra as regras ou que simplesmente exauriu suas forças
durante um longo período buscando afastar a condição de excluído. O profissional de
saúde sem comprometimento político torna-se protagonista desta novela e cumpre sua
21
função técnica e mecânica no tratamento puramente paliativo de uma doença que aflige o
corpo social.
Não é difícil concluir que o capitalismo sobrevive principalmente a partir de sua
própria perversidade. As instituições padronizam a conduta humana e a obriga a seguir
caminhos considerados desejados pela sociedade, mas ao mesmo tempo não abre
espaço para que todos possam ter acesso.
Para entender a assimetria que o nosso modelo social excludente provoca,
pensemos, por exemplo, no ingresso à universidade. As vagas oferecidas para o curso de
farmácia da Universidade Federal do Paraná no vestibular 2008/2009 eram de 108. Havia
758 pessoas que tinham a intenção de ingressar neste curso. Não é difícil concluir que
matematicamente haverá, neste processo, mais perdedores do que vencedores. A nosso
modelo social não permite que se criem 758 vagas no vestibular, pois para o modelo
econômico, a concorrência é o motor do sistema. O aparato midiático estimula o indivíduo
a sonhar com a vaga na universidade, a vaga do emprego, com a presidência da
empresa, entretanto não oferece lugar para todos. A conseqüência disso é a existência de
uma legião de derrotados, uma multidão de doentes e depressivos e uma busca massiva
pelo sistema de saúde, pelo medicamento que a indústria farmacêutica oferece como
fonte da resolução dos problemas.
O profissional de saúde que não percebe a gênese da doença serve de
instrumento, é a marionete que faz a ponte para os lucros dessas corporações
responsáveis por criar as condições ideais para a doença eternamente recorrente,
condição necessária para a utilização crônica dos produtos farmacêuticos. Está fechado o
ciclo do processo saúde doença.
“Quando observado com um pouco mais de cautela, o modelo de normalidade aceito está subordinado a interesses econômicos e jamais leva em conta realmente o bem-estar do consumidor. As grandes cadeias de fast-food tentam levar o maior número de pessoas ao consumo de hambúrgueres, uma vez que o que importa é o lucro, o que obviamente leva os consumidores a ganhar peso e a se desviar do padrão de beleza “exigido” socialmente. Mas não existe problema! O capitalismo apresenta ele mesmo a solução através dos laboratórios farmacêuticos que buscam levar o maior número de pessoas a consumir suas “drogas emagrecedoras, como se as pessoas fossem sanfonas à disposição da ganância. Assim, o sistema, através da mídia, incute necessidades e valores cuja única função é fazer com que seus produtos sejam consumidos.” (Ferreira, 2003)
As atitudes normalmente tomadas pelo indivíduo buscam o afastamento da
exclusão social, pois suas conseqüências são bastante conhecidas e temidas. O sistema
oferece como única estratégia de se alcançar o sucesso a acumulação de capital, que é
diretamente proporcional ao nível de felicidade do indivíduo. Acreditando nessa premissa,
22
valores como solidariedade e altruísmo são inevitavelmente deixados de lado pela luta
selvagem em busca da acumulação de riquezas. Entretanto, o profissionalismo é fruto
principalmente desses dois valores supracitados. O profissional de saúde que navega na
inércia social do modelo econômico e que não consegue perceber as contradições do
sistema perde a sua qualidade de profissional, responsável pelo bem estar dos indivíduos
e passa a ser um explorador que extrai sua riqueza da angustia e do sofrimento alheio,
pois não compreende a finalidade utópica de sua profissão. O profissional alienado
politicamente é mais um recurso de padronização social.
“No nível mental, quem se afasta do modelo se sente pressionado a buscar um psicanalista, um psicólogo ou mesmo um psiquiatra. No contexto orgânico, certos padrões de beleza e alimentação devem ser seguidos e quem se afasta é conduzido a consultar um clínico geral ou um médico especialista, porque o que se exige é que todos adquiram uma imagem de si próprios conforme os padrões vigentes, nos quais o interesse do indivíduo nunca é respeitado. Forças poderosas relacionadas com o consumo costumam estar na origem dessas iniciativas e foram estruturadas de forma nem um pouco ingênua” (Xiberras, 1993, p.30, citado por Ferreira, 2003).
Claramente, somos enganados diariamente. A classe burguesa arquitetou uma
realidade baseada em mentiras que são divulgadas incessantemente através dos meios
de comunicação, principalmente da telecomunicação, pois esta é a grande fonte de
informação utilizada pela massa, principalmente por aqueles que possuem baixa
escolaridade.
Gráfico 01
O povo brasileiro, em sua grande maioria, não cultiva o hábito da leitura –
principalmente a parcela da população com pouca escolaridade -, tem pouco contato com
23
outros pontos de vista e por isso mesmo é facilmente manipulável. A consciência alienada
da população e o analfabetismo político fazem com que o individuo assimile
incondicionalmente as informações da mídia burguesa, sem que haja uma verdadeira
reflexão crítica ou que se tenha a oportunidade de aprofundamento teórico sobre
determinado assunto para que possa ser debatido no campo das idéias. A valorização do
trabalho alienado, da competição, do acumulo de capital e do imediatismo transformou o
mundo em um ambiente caótico, doentio, estagnado, perigoso e insustentável.
“Com dinheiro, poder e sucesso temos tudo o que é preciso. Os passos até lá é que são variados. Uns preferem a competição, a inveja, o stress, o parasitismo especulativo e a super exploração dos mais frágeis; outros preferem o roubo, o assalto, o seqüestro, o tráfico de drogas, as negociatas e a corrupção. O cardápio é opulento. Fica ao gosto do freguês”. (Freire, 1994, citado por Ferreira, 2003)
Em nível macro, o projeto de modernidade surgida no século XVIII como uma
ideologia do individualismo chamada de neoliberalismo, cujo fim é o mercado e como
conseqüência o consumo, trouxe consigo a continuação do modelo colonialista de
exploração no Brasil e nos demais países da América Latina, freando sua independência
e seu desenvolvimento, principalmente no âmbito social. A miséria dos países da América
Latina sempre foi a principal fonte do abaste de riquezas dos países desenvolvidos.
Quase toda a América Latina sofreu fortes repressões às suas forças democráticas para que pudesse ser implantado um governo que favorecesse de forma descarada os interesses do capital em detrimento da população. Uma parte das riquezas foi roubada através de uma política internacional de preços aviltantes imposta pelo próprio capital para a matéria prima extraída desses países, que depois retorna à esses mesmo países em forma de produto de alta tecnologia e preços escorchantes. (Galeano, 2007)
Desde os primórdios do aparecimento do Europeu na América que a riqueza deste
continente foi a principal causa da miséria de seu povo, pois os abutres capitalistas não
se contentam apenas com a exploração das riquezas naturais necessitam também, em
nome do lucro, explorar a vida humana através das mais refinadas técnicas de
escravidão. (Galeano, 2007)
Não nos parece urgente a necessidade da superação do atual modelo econômico?
Os recursos naturais são explorados indiscriminadamente; em benefício de cartéis
petrolíferos, novas tecnologias para produção sustentável de energia são freadas e
desestimuladas; as doenças que mais matam no mundo são evitáveis e decorrentes das
más condições de higiene e de trabalho, assim como da falta de condições básicas de
sobrevivência; negligencia-se a morte e o sofrimento da população pobre, a indústria
farmacêutica pouco se preocupa em pesquisar medicamentos contra a malária ou a
24
doença de chagas, pois essa linha de pesquisa não prevê a geração de lucro para seus
cofres abarrotados; a miséria, a mortalidade infantil, as guerras, as doenças só aumentam
com o passar dos anos; a hipocrisia da comunidade internacional alcança níveis
astronômicos quando diz se preocupar com os problemas sociais dos países mais pobres;
as pessoas se enxergam umas as outras como adversárias, fecham-se em seu núcleo
familiar para se proteger, vivem encapsuladas em pequenos espaços que criam para
expressar sua individualidade; o patriotismo envenena a relação entre os indivíduos e
basta uma fronteira territorial geográfica para que haja motivo para o ódio incondicional.
Ao mesmo tempo em que preocupa a grande massa de excluídos e a constatação de que cresce a cada dia seu número, isso indica a saturação do atual modelo e a necessidade de a humanidade encontrar um novo paradigma, provavelmente a partir de uma ruptura epistemológica porque o momento em que vivemos não é da comunidade, mas da sociedade anônima, impessoal, a ponto de, nas cidades, coabitarem seres ao lado uns dos outros sem nunca encontrarem tempo para entrar em comunicação. Eles ignoram-se. (Túneis, citado por Freund, 1993, citado por Ferreira, 2003)
A partir de toda esta análise e diante da inevitável conclusão de que o nosso
modelo atual de sociedade, naturalmente excludente, é o fator preponderante na gênese
da doença em grande parte os seus aspectos e entendendo o profissional de saúde como
aquele que deve focar suas atitudes em favor da vida e do bem estar, lutando contra a dor
e a morte, podemos, sem o menor receio, afirmarmos cientificamente que o profissional
de saúde tem o dever de lutar por um novo modelo de sociedade, mais evoluído e
saudável.
O profissional de saúde que objetivar realmente expressar seu profissionalismo em busca
da saúde da população na sua concepção holística traz consigo um previsível destino de
inevitável enfrentamento com as forças reacionárias impeditivas do desenvolvimento
humano. Para tanto, este necessita estar verdadeiramente comprometido com a
sociedade.
3.1 O COMPROMISSO SOCIAL
Discutir o compromisso social do indivíduo em sua condição de profissional requer
uma análise mais aprofundada dos termos e suas significações dentro do contexto geral
da complexidade de seu sentido ontológico.
O compromisso nasce de uma decisão lúcida de quem o assume e de um
entendimento profundo daquilo com o que se compromete. A análise ontológica de “quem
25
é capaz de se comprometer” nos aproxima da essência do ato do comprometimento.
Somente a capacidade de refletir sobre sua própria existência, sobre a relação (relação
de sua existência) com o ambiente e sua influência sobre ele permite ao ser a capacidade
de comprometer-se. Sem essa capacidade o indivíduo e sua existência não conseguem
transpor os limites impostos pelo próprio ambiente. A incapacidade de reflexão dá ao ser
a qualidade de objeto, incapaz de compreender a realidade, de perceber suas
contradições e, finalmente, incapaz de exercer uma ação transformadora. Este é um ser
ahistórico, que vive sob o julgo do tempo, num tempo que não é seu, um perpétuo
presente. Sua relação com o mundo consiste no contato superficial do qual não resultam
produtos significativos capazes de marcá-lo. Segundo Freire:
“Somente um ser que é capaz de sair de seu contexto, de ‘distanciar-se dele’ para ficar com ele; capaz de admirá-lo para, objetivando-o transformá-lo e, transformando-o, saber-se transformado pela sua própria criação; um ser que é e está sendo no tempo que é seu, um ser histórico. Somente este é capaz, por tudo isto, de comprometer-se” (Freire, 1979)
A ação transformadora da realidade, associada à capacidade de reflexão,
elementos indissociáveis da práxis, faz do ser humano um ser da práxis, que se
desenvolve na sua relação com o mundo e a realidade.
Aquele que se compromete, portanto, é capaz de refletir criticamente sobre a
realidade, analisando qualitativamente seu contexto e agindo no sentido do avanço e da
superação das contradições. Como o ser não existe sem mundo, a realidade
transformada transforma também o ser transformador por produzir novos paradigmas no
qual ele se insere complementarmente.
Portanto uma reflexão sobre a realidade atual nos traz elementos bastante
interessantes. Esta realidade que criou um contexto impeditivo, o qual dificulta a reflexão
e a atuação autênticas do ser, é também criação da humanidade, decorrente da reflexão
e atuação frente a uma realidade anterior. Entretanto a realidade não se transforma por si
só, mas apenas com a reflexão e atuação do homem. Como então transformar uma
realidade que existe para não ser transformada? Parece-nos fácil acreditar agora
estarmos fadados à mediocridade, ao pensamento não autêntico e à reprodução perpétua
da realidade. Entretanto, entendemos o pensamento autêntico e o agir autêntico como
elementos da natureza do ser humano, um ser da práxis. A realidade atual oferece
obstáculos à expressão de sua essência. Se em algum momento histórico esses
obstáculos não são percebidos, certamente serão em outro, pois um homem
comprometido que é impedido de atuar e refletir sente-se vazio, frustrado e ferido.
26
O compromisso do homem com a transformação do mundo, o qual deve ser
humanizado, é com a humanização do homem. Portanto, o compromisso é próprio da
existência humana e só existe verdadeiramente no engajamento com a realidade. A ação
do comprometimento consiste em uma ação corajosa, consciente e valorosa, na qual o
indivíduo perde sua condição de neutralidade, tornando-se comprometido com a
humanização daqueles que em sua condição concreta se encontram “não humanizados”.
Aqueles que optam pela neutralidade revelam apenas o medo do comprometimento
verdadeiro, tornado-se assim adeptos do pseudo-comprometimento em que o
compromisso se dá com seus próprios interesses e com a “não humanização”. (Freire,
1979)
Comprometer-se com a “não humanização” é, inexoravelmente, tornar-se
igualmente desumanizado e tornar-se desumanizado tem como conseqüência o não
comprometimento. Cabe, portanto, caracterizar o comprometimento como um processo
essencialmente solidário que cataliticamente acelera o processo de humanização até
culminar no alcance da sociedade humanizada onde cada indivíduo estaria comprometido
com o próximo num gesto pleno de amor recíproco. (Freire, 1979)
No caso específico da análise do comprometimento social do profissional de saúde,
precisamos antes entender que ele é homem (homem em seu sentido humano
independente de gênero) e, portanto, espera-se que seja naturalmente comprometido.
Está inserido em um contexto histórico social cujas inter-relações foram significativas para
a construção do eu, do ego e do superego. Dentro da atual realidade impeditiva ele pode
se apresentar como ser comprometido, pseudo-comprometido e impedido do
comprometimento real. (Freire, 1979)
O profissional, além do comprometimento natural da sua condição humana,
também assume um outro comprometimento, que é resultado de uma dívida que assumiu
com a sociedade ao tornar-se profissional. Quanto mais sistematizado o seu
conhecimento, quanto mais se apropria dos recursos da natureza, da sabedoria popular,
do patrimônio cultural, que é de todos e a todos deve servir, mais aumenta sua
responsabilidade perante a sociedade. Sendo assim, a humildade precisa ser um valor
sempre presente no indivíduo compromissado que carrega um título profissional, para que
esse título não o faça sentir-se superior ou caridoso ao realizar sua ação comprometida,
pois, de fato, não faz outra coisa que não expressar sua natureza de homem e retribuir à
oportunidade de poder colaborar de maneira efetiva na transformação social. (Freire,
1979)
27
A transformação se opera a partir da práxis em que a finalidade é o
comprometimento humanizado. O profissional só opera a transformação de maneira
adequada quando a análise da realidade é uma análise científica, que busca a verdade,
que por si só é transformadora. A necessidade de acúmulo de conhecimento para a
superação do senso comum por uma visão crítica da realidade é o principal fundamento
que expressa o compromisso profissional. O avanço científico permite refinar os
instrumentos de reflexão e ação sobre a realidade para que o processo de transformação
seja coerente com as necessidades do momento histórico. No campo da saúde, por
exemplo, a reflexão sobre a totalidade, sobre as variáveis dinâmicas que se inter-
relacionam no processo, são necessárias para uma atuação em busca da humanização.
O profissional que se apropria da técnica e foca seu desempenho em partes de um todo
sem se preocupar com o todo cai na armadilha da concepção fragmentada e estática da
realidade. Seu compromisso passa a ser com a tecnologia, com o academicismo puritano
em uma corrida tecnológica que reduz o homem a um simples objeto da técnica, um
autômato manipulável.
“Se meu compromisso é realmente com o homem concreto, com a causa de sua humanização, de sua libertação, não posso, por isso mesmo prescindir da ciência, nem da tecnologia, com as quais vou me instrumentando para melhor lutar por esta causa”. (Freire, 1979)
A tecnologia e conhecimento científicos são, assim como o conhecimento empírico
da população, manifestações culturais sistematizadas e precisam servir ao benefício da
humanidade, são ferramentas para o homem comprometido com a humanização.
A reflexão crítica do indivíduo inserido em sua sociedade permite a ele
compreender seu momento histórico e superar a atuação profissional alienada no sentido
da melhoria real da condição de seu povo. A consciência alienada não permite ao
indivíduo o estímulo ao descobrimento, à coragem do enfrentamento, do correr risco
(considerando que a própria existência humana é um risco), pois a alienação mata a
criatividade, reduz o ser humano a um objeto inerte, reprodutor da realidade, distante de
sua essência e, conseqüentemente, incapaz de se comprometer.
28
4 O PROFISSIONAL DE SAÚDE E SUA RELAÇÃO COM O PACIENTE – UMA
ABORDAGEM PSICOLÓGICA
4.1 ASPECTOS DA RELAÇÃO
A comunicação entre profissional e paciente se dá através de um circuito complexo
de percepção consciente e inconsciente na qual ambos dialogam entre si. Esse diálogo
acontece dentro do próprio indivíduo e entre os sujeitos. Isso significa que mais do que a
comunicação verbal e mais do que a comunicação não verbal, são relevantes também
para o processo de entendimento entre os indivíduos os fatores que não podem ser
compreendidos em nível de consciência, mas que influenciam determinantemente a
conduta pessoal e a percepção alheia.
O profissional de saúde se diferencia dos demais por enfrentar batalhas diárias
contra a morte e a invalidez. Esse profissional admite à si uma parcela muito grande,
quando não o todo, de responsabilidade pela vida e bem estar dos seus pacientes. Mais
que isso, sua imagem é uma representação simbólica socialmente construída daquele
que tem o poder de salvar vidas e corrigir os problemas de saúde. Essa carga que o
profissional carrega pode gerar diversas complicações psíquicas que são frutos da
frustração e da sensação de impotência que muitas vezes inevitavelmente ele encontra
em seu caminho. Assumindo uma imagem distorcida de si próprio, este profissional passa
a agir de maneira a buscar uma auto valorização exagerada como forma de recompensa
justa à amplitude da responsabilidade assumida. (Benetton, 2002)
A questão da Neurose Narcísea, levantada por BENETTON (2002), é de extrema
relevância na gênese dos problemas internos relacionados à categoria dos profissionais
de saúde. A chamada grandiosidade narcísea se conceitua como uma defesa psíquica
contra a depressão, que por sua vez é uma defesa contra a perda do que se chama de
Self, ou seja, a perda da própria identidade. A idealização mágica, auto-imagem
deformada para a grandiosidade e arrogância, a postura onipotente, couraça afetiva, o
humor negro e outros mais são conseqüências da vivência profunda e secreta do
abandono, da negligência e da impotência. O que se caracteriza como neurose narcísea
do profissional se reflete profundamente na sua relação com o paciente. Essa neurose
traz consigo expressão de sentimentos tais como, soberania, altivez e arrogância, e,
infelizmente, na maioria das vezes esse é o patamar em que se constrói a relação
profissional de saúde-paciente.
29
“Profissionais de saúde têm sede de poder, mas o poder diferente daquele de um general ou um presidente, é um poder ainda mais radical. O poder sobre a saúde e a vida da população, entretanto a coroa também é a cruz”. (Benetton, 2002)
A questão do sentimento de poder e superioridade do profissional perante o
paciente cria uma relação extremamente assimétrica entre as partes. Em contrapartida o
paciente projeta uma expectativa de onipotência no profissional e se isenta do processo
de cura. Quando isso acontece, perde-se a relação de cooperação para se alcançar o
objetivo final que deve ser o mesmo para ambos.
O paciente carrega uma força curadora dentro de si. Quando se apresenta em
estado de enfermidade essa força é inibida. Cabe ao profissional de saúde estimular essa
força inerente ao indivíduo. A onipotência negligencia esse poder curador. A humildade é
um valor desprezado pelos currículos médicos. (Benetton, 2002)
Segundo Benetton (2002), para que haja um bom relacionamento profissional sem
que haja danos nem a ele, nem ao paciente é necessária uma relação de eqüidistância.
Encarar o paciente de maneira humana, porém mantendo um espaço de manobra, ou
seja, nem muito íntimo, nem muito afastado, sem que haja julgamento moral, é uma
premissa para uma atuação eficiente e para que se alcance o desfecho esperado
derivado dessa relação. A eqüidistância é condição para que paciente e profissional
saiam incólumes da relação. O profissional está diariamente em contato com diferentes
indivíduos que o procuram devido a alguma dificuldade. Considerar o paciente de maneira
humana, tendo o cuidado para não adquirir envolvimento sentimental excessivo é um
recurso para que o profissional faça seu trabalho sem prejudicar a si próprio. Não cometer
julgamento moral, estar atento à ciladas no campo do poder e o entendimento do
simbolismo do processo de adoecimento e recuperação do paciente são aspectos que
auxiliam a higienização da vinculação profissional.
Durante um processo de comunicação entre duas pessoas, acontece o que se
chama na psicanálise de relação transferencial. Essa relação é baseada no deslocamento
de afeto de uma representação para a outra ou atualização de desejos inconscientes
sobre determinados objetos e a tendência de se transferir para um novo objeto os
impulsos reprimidos não satisfeitos do passado. Essa relação acontece
inconscientemente e é resultado da projeção dos conteúdos afetivos tanto do profissional
quanto do paciente.
“Quando o paciente projeta no profissional de saúde a força curativa é preciso que este devolva a projeção inicial que o paciente lhe fez. Se o paciente permanecer com a sua própria força de cura projetada para fora de si, sobre o profissional de saúde, terá seu
30
processo de reabilitação muito prejudicado. Do outro lado, o profissional reintrojeta suas fraquezas e vulnerabilidades, sem esquecer delas”. (Benetton, 2002)
O profissional necessita superar a neurose narcísea e empoderar o paciente, co-
responsabilizando-o pelo processo de cura e fazer o possível para passar a energia e a
colaboração necessária para que este consiga reacender sua chama curadora em busca
do re-equilíbrio e da recuperação da saúde. O paciente, quando se encontra passando
por um processo de debilidade causado pela sua doença, apresenta uma condição
fragilizada. Muitas vezes o que mais necessita é de um estímulo para recobrar forças
interiores que ajudam a superar esse período repleto, muitas vezes, de dor, sofrimento,
desesperança e sensação de impotência.
O cuidado é a primeira atitude que o paciente percebe como sendo reanimadora. O
simples fato de ser ouvido, compreendido ou medicado muitas vezes é suficiente para
introjetar esperanças que revigorem sua força curadora. Para que isso aconteça, primeiro
é necessário que o profissional enfrente e admita a tarefa de humanizar-se. Isso significa
romper com o sentimento de onipotência, sobre a saúde das pessoas, admitir suas
fraquezas, compreender suas limitações e qual o seu papel na promoção de saúde e até
onde vão suas responsabilidades. Saber dividir a responsabilidade pelos resultados do
tratamento com o próprio paciente é o primeiro passo para humanizar a relação. O
profissional que não souber humanizar suas relações poderá sofrer com intoxicações
psíquicas construídas durante a carreira e projetará no paciente suas frustrações e
impotências.
4.2 CATEGORIAS DA RELAÇÃO PROFISSIONAL-PACIENTE
Ao se classificar as categorias da relação profissional-paciente se observa
principalmente como as partes se consideram, ou se enxergam no processo de
recuperação da saúde. Sendo assim, podemos classificá-las em pelo menos três: A
relação Objeto-Sujeito; Sujeito-Sujeito; e Objeto-objeto. (Benetton, 2002)
A relação objeto-sujeito, em que o profissional é o sujeito e o paciente o objeto
acontece de maneira que o profissional de saúde se coloca como único agente curador,
negligenciando a participação do paciente no processo, produzindo uma assimetria
abismal entre as parte. O narcisismo profissional o impede de compartilhar a
responsabilidade, ele precisa demonstrar que é o grande conhecedor do processo de cura
e o paciente precisa apenas obedecer. Neste tipo de relação o paciente é coagido a
31
seguir “rituais de cura” do tipo: “Tome estes medicamentos, 3 vezes ao dia, durante as
refeições, não tomar sol excessivo, repouso absoluto, retorne em 20 dias, etc. O
profissional claramente não se importa com a opinião e nem leva em conta as condições
sociais e psicológicas do indivíduo. Por exemplo, ele negligencia o fato de que talvez este
paciente não faça três refeições por dia, ou de que talvez, por conta do seu trabalho ele
necessite se expor ao sol e que o repouso absoluto durante certo período de tempo
poderia fazer com que ele perdesse o emprego, entre outras variáveis individuais. O
profissional considera o indivíduo numa visão claramente cartesiana e reducionista.
A relação profissional objeto e paciente sujeito acontece mais raramente e
geralmente é devido à um postura desmotivada e desinteressada do profissional de saúde
ou então pode estar relacionados à fatores burocráticos e impeditivos da instituição em
que desenvolve suas atividades ou do sistema de saúde, o que acaba prejudicando a
ação profissional. Esta relação se caracteriza principalmente pelo não comprometimento
do profissional com a saúde do paciente, perdendo dessa maneira toda a confiabilidade e
crédito. O que se estabelece então é uma relação superficial do tipo empregado-patrão
em que a prestação de serviço é mecânica e vazia.
A relação mais ideal é aquela em que ambos, profissional e paciente, são
considerados reciprocamente como sujeitos ativos e agentes no processo. A relação
sujeito-sujeito é aquela a qual o profissional divide sua responsabilidade com o paciente,
fazendo-o sentir-se dignificado e importante. O sentimento de cooperação e respeito
mútuo vigora neste tipo de relação. Os fatores que normalmente impedem o
desenvolvimento dela estão relacionados à soberba por parte do profissional e ao medo e
insegurança por parte do paciente.
Talvez a relação profissional-paciente mais prejudicial é aquela em que ambos são
objetos. Trata-se de uma relação em que a desconfiança mútua é o principal sentimento.
O profissional encara o paciente como a um enfrentamento, algo que o chateia e o
paciente sente-se fragilizado e excluído por sentir necessidade de ajuda e procura o
profissional como seu último recurso. Durante a relação à frieza e a formalidade são
excessivos e o tempo custa a passar, já que a relação é percebida como um período
desagradável o qual ambos são obrigados a vivenciar.
4.3 O SIMBOLISMO
32
A comunicação humana é repleta de vícios, silogismos, figuras de estilo e refletem
a questão cultural e a personalidade dos indivíduos. As personalidades são padrões
duradouros de percepções, relações de pensamento acerca do ambiente e de si mesmo.
A personalidade é exibida em uma enorme variedade de complexos sociais e pessoais,
que são resultantes de grupos de conteúdo psíquico que passam a atuar no inconsciente
influenciando a conduta de maneira autônoma (Benetton, 2002). O conceito de
simbolismo está relacionado com a concepção que as pessoas trazem imbutidas à
determinadas idéias ou objetos. Simbolismo significa lançar junto, considerar que algo
está junto à primeira captação.
Na questão específica da comunicação em saúde para o desenvolvimento da
relação profissional-paciente, é preciso ter em mente que o objeto de estudo é o ser
humano e todas as suas variações, contradições, emoções, interpretações, relações
sociais e complexidades. Não é possível estudar essa relação considerando o paciente
como uma máquina, sem o aprimoramento dos conceitos de multi e interdisciplinaridade,
principalmente da relação entre as ciências humanas e as ciências da saúde. A
compreensão do paciente exige simpatia, empatia e uma abordagem holística do
indivíduo, amparada no que a psicologia em saúde pode oferecer.
O processo de adoecer precisa ser compreendido simbolicamente. Mais do que
simplesmente sentir dor ou experimentar uma limitação, a doença se relaciona a todos os
aspectos psicológicos do indivíduo. Ao se sentir doente, os sentimentos de impotência,
angústia, medo, frustração entre outros podem vir acompanhados da doença. A
associação com a morte, o castigo divino, a culpa, a desgraça podem ser representações
simbólicas da doença, dependendo dos aspectos culturais do paciente. Não é apenas a
doença, mas um desencadear de vários fatores que vêm acompanhados, associados
simbolicamente a ela.
O próprio indivíduo, ao ser visto como profissional de saúde, é revestido por uma
gama de valores simbólicos associados pelo paciente. O profissional quase sempre está
relacionado com a saúde, o triunfo sobre a morte, a cura e a esperança. Esse simbolismo
é projetado no profissional, que deve ter cuidado para não assimilar esses conceitos de
maneira inadequada. Cabe a este interpretar os fenômenos expressos no indivíduo, que
podem ter origem mental, corporal, espiritual, social, etc. Geralmente encontram-se inter-
relacionados, entrelaçam-se simbolicamente, tanto na saúde, quanto na doença. É
preciso verificar o fato de que, no nosso contexto econômico, a saúde é algo que se
vende. Trata-se de um padrão necessário para aceitação social, que se transforma em
mercadoria. Portanto ser saudável é um pré-requisito para que se possa ser aceito
33
socialmente. Considerar que exclusão social é um fator decisivo no processo saúde
doença nos faz percorrer um círculo vicioso, que só será superado à partir de um novo
enfoque.
Como somos ensinados à classificar as coisas e os pensamentos, aprendemos a
estudar a doença e a saúde como dois opostos. A saúde é o que é bom, desejado,
esperado. A doença é o mau, a praga. Aquilo que se combate. Parece indiscutível.
Entretanto, a partir de uma visão transdisciplinar e dialética do estudo em saúde acaba-se
por se conceber o mundo, as coisas, e o ser humano de uma maneira um pouco
diferente.
“A sociedade Atual Criou uma concepção de realidade que afasta a idéia de que o sofrimento é inerente ao ser humano. A tecnologia e a ciência criaram uma ilusão de que o ser humano precisa estar perfeito. A menor disfunção precisa imediatamente ser corrigida, não levando em conta que a vida é equilíbrio instável com o meio ambiente. É o consumismo em saúde, imediatista e desesperado sobre as bases de um pensamento ingênuo” (Benetton, 2002)
Partindo-se de uma visão transdisciplinar, a saúde e a doença são, na verdade,
complementares e indissociáveis para o equilíbrio entre o indivíduo e a natureza, ou seja,
não há saúde sem doença quando analisada sob a luz de uma concepção de dinamismo
e flexibilidade. Este raciocínio nos permite compreender que a doença é necessária. A
saúde plena, a inexistência de sintomas, tende a alienar o indivíduo de sua própria
corporaneidade. A doença tem a função de calibrar, desorganizar e reorganizar, a partir
de um processo dinâmico de experimentação e vivência. O paciente adoece por estar
praticando um benefício para seu equilíbrio psíquico. A psicanálise moderna sustenta a
hipótese de que, muitas vezes, o indivíduo busca a doença, ainda que inconscientemente,
como uma forma de resolução dos conflitos adquiridos na infância. Conceitos tais como
posição esquisoparanóide, complexo de édipo, culpa e vínculo têm sido úteis para auxiliar
nossa compreensão.
O Complexo de Édipo freudiano, modificado por Melanie Klein, aponta a influência
da posição esquisoparanóide, experimentada principalmente durante os primeiros três
meses de vida, na produção da ansiedade persecutória, resultante da percepção parcial
(“bom e mau”) e um mesmo objeto familiar (relacionado ao pai ou à mãe). Por meio dos
mecanismos de introjeção ele busca incorporar as sensações boas, o objeto bom e, do
mecanismo de projeção, livrar-se, do objeto “mau”, destruí-lo. Com o fortalecimento do
ego o indivíduo começa a desenvolver a percepção integrada dos objetos e, dependendo
do grau de frustração sofrido durante a etapa de posição esquisoparanóide maior será o
grau de destrutividade relacionado a eles (Objetos familiares – pai e mãe). As sensações
34
ambivalentes relacionadas esse objeto, que na verdade é o mesmo de amor e ódio
integrado à figura paterna ou materna, permanecerão em conflito durante o
desenvolvimento adulto. Esse conflito inconscientemente impulsiona o indivíduo a adquirir
a doença como forma de resolução de seus conflitos edípicos. Ferreira, (2003) em seu
estudo com paciente com AIDS utiliza este suporte teórico psicanalítico para explicar
parcialmente, o motivo da infecção ocorrida entre indivíduos que possuíam informação
sobre os métodos de contágio e prevenção e que mesmo assim se infectaram:
“A partir dos estudos da psicanálise, estamos inclinados a crer que a contaminação pelo HIV não de deu por acaso, porém foi procurada como uma tentativa de resolução de conflitos infantis relacionados com o complexo de Édipo. O indivíduo, agora adulto busca aplacar sua culpa, resultante dos sentimentos persecutórios desenvolvidos na infância, expondo-se à contaminação e ao sofrimento de ter AIDS.” (Ferreira, 2003)
Para muitos pode parecer uma heresia, um disparate afirmar que a doença trás
benefícios ou que é procurada pelo indivíduo, principalmente quando analisado à partir do
modelo biomédico reducionista. Entretanto, a doença tem seu papel indiscutível, que é o
de conscientizar o indivíduo de sua condição vulnerável e efêmera. Isso leva a um novo
patamar de entendimento de si próprio, necessário para que se alcance o “equilíbrio
saúde-doença” como resultado de um conflito dialético perpétuo. (Benetton, 2002)
4.3.1 Curar e cuidar
Etimologicamente as palavras curar e cuidar possuem significados semelhantes,
todavia no dias de hoje se dá uma importância muito maior à primeira, pois está
relacionada com a eficiência da superação da doença e o alcance da saúde.
A palavra cuidar tem relação simbólica com características femininas. O papel da
mulher na sociedade, construído historicamente, nos remete deste os tempos primitivos a
sua atividade de cuidado, atenção e carinho. A mulher, delicada e sensível, cuidava dos
bebês e fazia a comida. O homem, mais rústico e forte, caçava e pescava. Essa relação
de tarefas continua bastante presente, mesmo nos dias atuais, em que a mulher tem
conquistado muitos direitos frente ao preconceito e ao machismo. A herança histórica, no
entanto, influencia, ainda que inconscientemente, este simbolismo em relação ao gênero.
Há alguns anos atrás a profissão de enfermagem era necessariamente uma profissão
feminina, pois envolvia os aspectos de cuidado e carinho por parte deste profissional. A
medicina passou a se tornar a ciência da cura e foi massivamente ocupada por homens,
por seu caráter associado ao raciocínio prático,lógico e mecânico. Com os avanços da
ciência e da tecnologia e o triunfo do modelo capitalista, o cuidado foi negligenciado. A
35
prática em saúde que antes era regida por um princípio de acolhimento e conforto foi
substituído por um princípio de resolutividade e imediatismo.
“Assistir é muito mais do que curar, é cuidar, mesmo que não objetive a cura ou leve a ela. Cuidar para Leininger (1988) é promover, manter, recuperar a saúde ou originar melhores condições de vida através de meios que vão além das necessidades físicas, emocionais e sociais dos indivíduos. Ou seja, existe uma predisposição em reproduzir a visão de mundo compatível com o paradigma emergente e isto levou Capra (1990) a afirmar que as ‘enfermeiras se colocam na vanguarda do movimento holístico da saúde’” (Marcon; Elsen, 1999)
O cuidado é a essência da atividade em enfermagem, entretanto as demais
profissões de saúde necessitam desenvolver essa atividade dentro de seu campo de
trabalho ao estabelecer contato direto com o paciente. Na atenção farmacêutica, mais do
que aconselhar sobre como usar um medicamento, o farmacêutico precisa ter a
preocupação com o resultado da medicação em favor da qualidade de vida do paciente.
Isso faz com que a relação dê um salto de qualidade. O mesmo vale para médicos,
fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos e demais profissões da área da saúde. A
execução de uma tarefa pertinente a sua qualificação profissional deve buscar um
objetivo final que seja comum: auxiliar a recuperação através do cuidado, que pode ter
como resultado também a cura ou o controle da patologia.
4.4 AS REAÇÕES PSICODINÂMICAS FRENTE AO STRESS E À DOENÇA
Segundo Benetton, (2002) são descritos, de maneira semelhante por vários autores
[Kubler-Ross (1981), Nichols (1985), Abrams e cols. (1986) e Assumpção (1987)] cinco
fases pelas quais os pacientes passam quando descobrem que estão doentes. Essas
fases são reações, mecanismos de defesa do psiquismo em busca da auto-preservação
psíquica. Elas geralmente obedecem uma ordem de acontecimento acompanhando a
evolução do processo de convivência com a nova realidade. Negação, ira, barganha,
depressão e aceitação, são normalmente as reações observadas durante esse processo
de adaptação psíquica.
A Negação é um mecanismo de defesa psíquico imediato em resposta a noticia da
doença, é a não aceitação da nova realidade, a fuga da verdade, que provoca dor e
sofrimento. A duração desse quadro é variável, dependendo muito da patologia e da
situação psicológica do indivíduo. Ao profissional cabe a tarefa de acompanhamento
desse paciente, procurando paulatinamente fazer com que se tome consciência da nova
36
realidade. A partir do momento em que não for mais possível negar a doença, a negação
dá lugar a Ira.
A ira é um sentimento secundário de defesa. O paciente na verdade se sente
injustiçado, acredita não ser merecedor da doença e, em alguns casos a percebe como
um castigo resultante de transgressão moral. A frustração devido aos limites impostos
pela nova realidade gera a sensação de raiva, que é a maneira que o paciente encontra
de tentar manter sua dignidade. É a reação de quem prenuncia o desprezo, a exclusão e
a morte.
A partir do momento em que não se pode mais negar, nem culpar alguém é que
surge o mecanismo de barganha. Ela significa que o paciente já está consciente de sua
própria condição e das limitações da nova realidade. Agora o paciente procura encontrar
soluções para superação das limitações ou para a adaptação a elas, pois já compreende
sua situação, principalmente quando se trata de doenças crônicas, como diabetes.
Em alguns tipos de enfermidade, a barganha pode dar lugar à depressão. A
depressão neste caso é entendida como uma espécie de rebaixamento do humor que é
resultado da presença da enfermidade primária, também chamada de depressão reativa à
doença propriamente dita. Há uma tendência a não colaboração, pois o paciente torna-se
triste e desesperançoso frente a sua sensação de impotência. Em caso de pacientes
portadores de doenças muito graves cujo desfecho inevitável é a morte prevista dentro de
um tempo estabelecido, outro tipo de depressão se apresenta no paciente, a chamada
depressão preparatória. Essa é a fase que antecede a aceitação do inexorável destino de
falecimento em breve.
A aceitação é a última fase desse processo. A aceitação não deve ser confundida
com resignação ou desistência. Em casos de doenças crônicas, a aceitação é condição
necessária para que o paciente consiga restituir o equilíbrio dinâmico, assimilando as
superações impostas pela doença e restituindo sua autonomia a partir de uma releitura de
valores que culmina em uma vida mais saudável e prazerosa. Em caso de doenças
terminais, a aceitação pode ser considerada um entendimento tranqüilo de sua condição,
e um período de reflexão filosófica sobre o inevitável encontro com a morte.
4.5 O PROFISSIONAL DE SAÚDE E O ARQUÉTIPO DO CURADOR
O processo de evolução histórica do conceito de profissional de saúde remete aos
tempos primitivos dos shamans, quando se acreditava que a doença estava relacionada
37
com o castigo divino ou com os espíritos maus. Era função dos shamans estabelecer
contato com o ser divino e aplacar sua ira, assim como afastar os espíritos maus de
dentro do paciente. O poder do shaman é único, pois somente ele tem as habilidades
para conversar com os deuses e curar o indivíduo. Outro momento histórico muito
relevante para a construção da imagem arquetípica do profissional de saúde é durante o
império grego em que as representações divinas do politeísmo aproximava muitíssimo
alguns Deuses à figura do profissional de saúde, como é o caso de Eros e de Baco. Com
o surgimento do cristianismo, uma nova visão dialética da saúde começa a surgir. Jesus
Cristo agora é grande curador ao realizar milagres de cura por onde passava. (Benetton,
2002)
O arquétipo do Curador assume uma representação que se aproxima do divino.
Essa representação coletiva cria expectativas sobre o profissional de saúde que podem
produzir a intoxicação da relação com o paciente. O profissional busca atender
expectativas que estão além de sua capacidade e acaba fazendo uso indevido da
representação simbólica que lhe é atribuída. Como não pode ser Deus, o profissional age
de maneira semelhante para atender a expectativa do paciente, fazendo uso dos “poderes
que lhe são atribuídos”, tais como onipotência e autoridade divina. Utilizar essa estratégia
serve apenas para eclipsar sua incapacidade de atender àquilo que o paciente espera do
profissional. O resultado é a intoxicação da relação, processo no qual ambas as partes
acabam se frustrando. O profissional precisa ser honesto com o paciente, desmistificar
sua profissão e buscar em uma relação de confiança e colaboração os resultados em
saúde.
A relação-profissional paciente precisa ser entendida como uma relação entre dois
seres humanos. O profissional de saúde presta ajuda a si próprio ao ajudar o paciente. O
altruísmo em saúde serve também para melhorar sua própria condição, pois ao se
dispensar amor ao próximo, no fundo busca-se reparar o amor próprio. Compreendendo
essa dinâmica é possível inferir que o amor próprio e o amor ao próximo são na verdade
dependentes entre si. Em uma representação cristã, o profissional é o irmão e não o Pai.
O modelo médico de saúde, entretanto, criou um afastamento formal do sentimento de
amor em uma relação profissional, o que favorece a superficialidade dessa relação.
“Há uma resistência à admissão de quanto o amor, o interesse, a dedicação franca, a aproximação afetiva, o toque caloroso e quantas outras intenções ou gestos desta categoria possam ter peso ou importância no processo de reestruturação da saúde. Há uma vergonha em amar, ou ainda a mesma resistência desses fatores pode adoecer ou piorar o estado de saúde de uma pessoa.” (Benetton, 2002)
38
A dialética traz para a profissão de saúde a união entre o subjetivo e o objetivo. As
profissões de saúde podem ser consideradas agora ciências humanas, além de
biológicas. O profissional de saúde sem compreender a concepção humanística e
holística da saúde é mero utilizador de tecnologia.
A concepção arquetípica do profissional de saúde endeusado e onipotente perturba
a qualidade da relação profissional paciente. A comunicação honesta, sincera e horizontal
é condição necessária para o estabelecimento de uma relação positiva que atinja a sua
finalidade terapêutica.
39
5 A COMUNICAÇÃO EM SAÚDE
5.1 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A COMUNICAÇÃO
É da natureza humana se comunicar, pois se trata de um ser sociável que possui
habilidades cognitivas bastante desenvolvidas, o que possibilita que essa comunicação
aconteça de tal peculiar maneira que influencie historicamente o desenvolvimento
humano. Logo, é uma ferramenta que se aprimorou com o seu desenvolvimento sendo
que foi concomitantemente uma das causas de sua própria evolução por seu papel
determinante na evolução humana. Nós pensamos, refletimos, agimos e posteriormente
refletimos sobre as ações realizadas. Existe algo nos seres humano que lhes permite
compartilhar com seus semelhantes a vivência do processo histórico por meio da
comunicação.
“A comunicação é vista como ‘performance, execução e desempenho relacional’ e surge como processo de construção de modos de realidade social e não um mero intercâmbio de mensagens, não sendo, portanto, um modelo linear. Essa visão está em consonância com um vir a ser de forma interdisciplinar, criativo com a integração de saberes”. (STEFANELLI; CARVALHO, 2005)
As teorias da comunicação estruturam o conhecimento sobre o assunto levando
em consideração o indivíduo e a sua relação social e cultural, que são como fatores
dinâmicos e interdependentes.
A construção do aparelho psíquico do modelo Freudiano se dá essencialmente
através da percepção sensorial e da comunicação intrapessoal, interpessoal, de grupo e
cultural. Essa comunicação é de extrema relevância na construção do superego, do Eu e
da mente como derivação dos processos sociais cognitivos e definições geradas por ele.
Quando uma criança sente alguma necessidade, algum desconforto, procura de alguma
maneira comunicar esse desconforto. Essa comunicação se faz por sons desconexos ou
por gestos relativos à sensação. Com o passar do tempo, a criança assimila os códigos
verbais que a levam à satisfação de suas necessidades mais eficientemente.
A comunicação se dá, portanto, considerando-se variáveis que a influenciam e que
são influenciadas por ela num processo dinâmico e interdependente. Uma característica
importante da comunicação humana é que ela não se limita ao presente, mas permite que
fatos que aconteceram no passado possam ser sistematizados, documentados e
40
passados aos outros, como forma de aprendizado para nortear decisões futuras.
(STEFANELLI; CARVALHO, 2005)
O ser humano é indissociável da comunicação. Mesmo o esforço no sentido de não
se comunicar expressa a comunicação desse esforço. Qualquer forma de comportamento
comunica uma mensagem. As variáveis que influenciam a comunicação são tantas e tão
dinâmicas que é possível afirmar que uma comunicação, a rigor, jamais se repete.
(STEFANELLI; CARVALHO, 2005)
Quando um indivíduo sente dificuldade em se comunicar, seja devido a uma
questão lingüística ou cultural, sentimentos relacionados à solidão, incapacidade e
abandono acompanham esse fato. Pacientes, já fragilizados pela doença, são ainda, na
maioria das vezes, desestimulados a se comunicarem no modelo assistencial biomédico
de saúde que coloca o profissional como único sujeito do processo. Este exemplo nos faz
refletir sobre a necessidade da melhoria das relações de comunicação como ferramenta
fundamental no processo terapêutico. (STEFANELLI; CARVALHO, 2005)
5.1.1 Principais teorias da comunicação
O estudo da comunicação interpessoal leva em conta a necessidade de
aproximação, aceitação, afeição e controle na interação entre dois indivíduos, como eles
se percebem e se compreendem, os diferentes graus de rejeição e atração e suas
variáveis e a geração do conflito interpessoal resultante de concepções e interpretações
divergentes. (STEFANELLI; CARVALHO, 2005)
É importante notar que a comunicação interpessoal é aquela que está mais
marcadamente presente na relação profissional-paciente.
A comunicação em grupos surge da necessidade em se manter o grupo enquanto
esta formação ainda é vantajosa no sentido de atender as expectativas individuais de
seus componentes. A dinâmica das relações em grupo se estabelece através de relações
interpessoais com o objetivo de proporcionar um nível ótimo de satisfação a todos os seus
membros. Essa satisfação deve estar relacionada com as expectativas de alcance de
determinados objetivos. Em uma interação de um grupo multiprofissional, por exemplo,
espera-se que os objetivos sejam muito semelhantes e a organização em grupo aconteça
por se entender que desta maneira estes objetivos serão alcançados mais fácil e
eficientemente. Surge daí a necessidade de desenvolvimento de técnicas de
comunicação interpessoal dos membros do grupo.
A comunicação no contexto de uma organização humana é um fator central para o
funcionamento dessa organização. A preocupação com a transmissão de mensagens,
41
seja hierárquica ou horizontalmente, é sempre um desafio durante a formulação de
estratégias administrativas. Em um hospital, por exemplo, a comunicação administrativa
está relacionada com a transmissão de mensagens que expressem idéias, fatos ou
ordens. Neste exemplo, existe ainda a comunicação com o paciente, que acontece
mediante os profissionais de saúde e que faz parte do processo de recuperação deste
paciente. Além desses dois tipos de comunicação, há também aquilo que se chama de
sistema de comunicação, que consiste na aplicação de recursos de comunicação gráfica,
audiovisual e de sinalização. Qualquer falha que ocorra no âmbito da comunicação nessa
organização repercutirá em prejuízo da qualidade da assistência prestada pela instituição
ao paciente.
Outra forma de comunicação que influencia nosso cotidiano é a chamada
comunicação de massa, em que a mensagem é aquela veiculada através da mídia, de
uma fonte para um grande número de receptores. Existe aqui a necessidade de se
compreender o conceito de massa, para que se possa compreender a natureza da
comunicação de massa. Segundo a corrente hipodérmica da comunicação, a massa seria
definida como um grupo de indivíduos que estão isolados de suas referências sociais, que
agem de maneira egoísta buscando a própria satisfação. “Uma vez perdido na massa, a
única referência que um indivíduo possui da realidade são as mensagens dos meios de
comunicação”.
Existem vários tipos de teorias da comunicação de massa. O modelo estrutural
infere que as mensagens transmitidas são interpretadas de maneiras diferentes, de
acordo com o público receptor. Essas interpretações dependem do conteúdo da
mensagem, a qual geralmente se acompanha carregada de um valor simbólico que é
socialmente construído. A mensagem pode ter vários efeitos no público alvo e depende
muito do seu real objetivo. Ela pode ser transmitida com o intuído de informar, de entreter
e de divulgar. Entretanto a comunicação de massa contemporânea pode trazer alguns
elementos nocivos de acordo com os interesses do emissor, quando se caracteriza pela
intenção de alienar o pensamento, estabelecer padrões de comportamento que
interessam a uma classe dominante, construir uma idéia equivocada para benefício de
uma minoria ou simplesmente para sustentação do atual sistema. Neste sentido outra
teoria de comunicação, chamada teoria crítica da comunicação se apresenta bastante
atual e coerente:
“Inaugurada pela Escola de Frankfurt, a Teoria Crítica parte do pressuposto das teorias marxistas e investigam a produção midiática como típico produto da era capitalista. Desvendam assim a natureza industrial das informações contidas em obras como filmes
42
e músicas: temas, símbolos e formatos são obtidos a partir de mecanismos de repetição e produção em massa, que tornam a arte adequada para produção e consumo em larga escala. Assim, a mídia padroniza a arte como faria a um produto industrial qualquer. É o que foi denominado indústria cultural. Nesta, o aspecto artístico da obra é perdido. O imaginário popular é reduzido a clichês. O indivíduo consome os produtos de mídia passivamente. O esforço de refletir e pensar sobre a obra é dispensado: a obra ‘pensaria’ pelo indivíduo”. (Wolf, 1995)
A relevância dessa categoria de comunicação na construção do valor simbólico do
medicamento, por exemplo, trouxe várias conseqüências para a profissão farmacêutica e
a saúde pública. Mensagens que estimulam o uso irracional de medicamentos criaram
uma distorção da realidade com base na desinformação e na desonestidade, o que
favorece aos interesses de grandes corporações em detrimento do bem-estar social.
Segundo a reportagem de setembro de 2009 da revista Super Interessante, cerca
de 30 a 40% de todo o lucro das indústrias farmacêuticas é reinvestido em ações de
marketing. As punições em forma de multa aplicadas às indústrias por veicularem
propagandas ilegais representam apenas 0,06% do montante investido em marketing.
A padronização do comportamento humano de acordo com interesses dominantes
trás consigo a estagnação do desenvolvimento cultural, científico, social e pessoal.
Durante o desenvolvimento de uma atuação profissional, o processo de
comunicação muitas vezes acontece em todos os níveis, desde o intra e inter-pessoal até
o de comunicação organizacional e de massa. O conhecimento das terias da
comunicação é importante para que haja uma reflexão crítica e um aprofundamento
teórico do assunto, que podem auxiliar o profissional a compreender melhor a dinâmica e
a complexidade da comunicação em saúde.
5.2 - OS ELEMENTOS DO PROCESSO DE COMUNICAÇÃO NO CONTEXTO DE
SAÚDE
Para que haja comunicação é necessário que alguém sinta a necessidade de
transmitir alguma mensagem. Esse alguém, o emissor da mensagem utiliza recursos de
linguagem, tais como a escrita, a fala, os gestos corporais e suas variações para se
expressar, influenciado por sua cultura, suas crenças e valores. O pleno sucesso da
transmissão da mensagem acontece quando o receptor a interpreta de acordo com aquilo
que o emissor buscava evidenciar. O sentido da mensagem (enviada pelo emissor e
interpretada pelo receptor) deve ser comum ou muito semelhante. A confirmação desse
objetivo se consegue através de uma resposta ou “feedback” do receptor. Essa resposta
43
precisa existir pelo fato de a comunicação ser um processo recíproco. A comunicação
pode ser considerada positiva quando produz um efeito no receptor, seja ele físico,
emocional ou cognitivo. Significa que a mensagem foi percebida e gerou uma resposta.
Em um processo de comunicação entre o profissional e o paciente pode acontecer de o
paciente não concordar com as sugestões ou conselhos a ele comunicados, entretanto,
isso pode significar que a comunicação teve sucesso, pois, ainda que não tenha sido
convincente, a mensagem foi entendida pelo receptor. (STEFANELLI; CARVALHO, 2005)
As variáveis mais comuns envolvidas, e que interferem no processo de
comunicação estão relacionadas, principalmente com os atores da comunicação, o
linguajar e o ambiente.
A primeira mensagem que um profissional de saúde comunica ao paciente é o seu
humor e a essência de sua personalidade. A percepção consciente de si próprio deve
compreender o efeito produzido no paciente. A compreensão do paciente por parte do
profissional e o efeito que este produz naquele pode ser um passo importante para o
estabelecimento de uma relação sincera e de confiança. O entendimento do paciente e de
si próprio como seres humanos responsivos a estímulos emocionais, físicos, culturais e
sociais, a percepção da condição humana fragilizada do outro e as diferentes respostas
frente a essa realidade permitem que a atitude profissional seja pondera e benéfica.
A linguagem utilizada deve ser aquela que melhor se adéqüe ao contexto cultural
do paciente. Seria incoerente e até mesmo estúpido explicar ao paciente diabético, por
exemplo, que seu medicamento age inibindo a enzima Hidroxi-Metil-Glutaril Coenzima-A
Redutase. Essa atitude demonstraria apenas insegurança e intenção de verticalizar a
relação por parte do profissional. O objetivo da mensagem é que ela seja percebida,
decodificada e assimilada pelo paciente e não o contrário. A linguagem do cuidado em
busca da recuperação precisa ser a da colaboração, do compromisso e da atenção. Para
tanto a utilização de um vocabulário que permita clareza e compreensão mútua é
imprescindível.
A questão ambiental está relacionada com a comunicação não verbal e será
discutida mais adiante com maior cuidado. Trata-se, simplificadamente, das mensagens
que o paciente percebe do ambiente e de como ele as interpreta. O ambiente precisa ser
condizente com as atividades realizadas nele e deve oferecer um mínimo de conforto para
que o paciente se sinta a vontade e seguro. Temperatura, fluxo de pessoas,
luminosidade, limpeza, os objetos e sua disposição influenciam contundentemente a
mensagem verbal.
44
A linguagem verbal e não verbal geralmente atuam concomitantemente durante a
comunicação. A linguagem verbal é aquela em se utiliza a palavra como elemento da fala
ou escrita e é fortemente influenciada pela cultura. A linguagem não verbal é aquela em
que se utilizam recursos corporais para a transmissão de uma mensagem e geralmente
são expressos de maneira inconsciente, como, por exemplo, o rubor facial, que pode
expressar um embaraço, ou quando diante de uma situação desagradável se produza
sensação de raiva em que as sobrancelhas tornam-se cerradas. A linguagem não verbal
geralmente apresenta a carga emotiva com a qual a mensagem é passada.
Alguns autores costumam chamar de paraverbal elementos que complementam a
linguagem verbal, tais como tom de voz, ritmo e pausa, que são indissociáveis da ação de
falar. A linguagem não verbal pode transmitir uma mensagem independentemente de
outros recursos lingüísticos, como por exemplo, um gesto que indique a compreensão da
dor de um paciente que, em alguns momentos, basta para transmitir a mensagem de
confiança e apoio. A linguagem verbal, entretanto não acontece independente da não
verbal, já que a fala e a escrita são muitíssimo influenciados pela cultura e a emoção, que
molda as sutilezas da transmissão verbal da mensagem. O fato é que sem esses recursos
lingüísticos, ficaríamos extremamente limitados no sentido de expressar uma idéia ou
sentimento, classificar, sistematizar e prover informações.
“É no desempenho da função técnica que a competência em comunicação tem que ser associada, no mesmo nível de importância, à competência clínica, para que o paciente possa ser privilegiado com cuidado de alta qualidade científica e humanitária, propiciando-lhe o direito de saber o que lhe está sendo feito, o porquê e para quê”. (STEFANELLI; CARVALHO, 2005)
A competência e o conhecimento técnico da profissão são indispensáveis para uma
intervenção relevante que, quando combinada com habilidades de comunicação tornam o
atendimento eficiente e humanizado.
5.2.1 A Comunicação terapêutica
A comunicação terapêutica pode ser entendida como a competência profissional
que utiliza as habilidades e conhecimentos em comunicação em favor da saúde do
paciente. A comunicação terapêutica busca estimular o paciente a expressar sua
capacidade de solucionar conflitos, enfrentar dificuldades, aceitar limitações pessoais,
refletir sobre a auto-realização e seu papel como indivíduo, adaptar-se a uma
necessidade de mudança e ajustar-se àquilo que não pode ser mudado. É incentivar a
45
busca por um viver mais saudável, com mais qualidade em todos os sentidos.
(STEFANELLI; CARVALHO, 2005)
A assistência à saúde realizada com qualidade precisa estar relacionada com a
comunicação terapêutica. Isto é particularmente verdadeiro quando se trata da atenção
farmacêutica. O profissional de saúde, para prover uma atenção de qualidade precisa
aprender a perceber as atitudes do paciente, seu comportamento, euforia ou angústias e
reagir da melhor maneira de acordo com cada caso. Principalmente em paciente com
doenças crônicas que estão em processo de mudança e muito sensíveis a estímulos.
Diante das reações e comportamentos do paciente é necessário que haja
flexibilidade por parte do profissional, pois nem sempre o paciente estará disposto a
seguir planejamentos pré-fabricados. Por isso a relação profissional-paciente precisa ser
construída com qualidade através do desenvolvimento de habilidades em comunicação
por parte do profissional.
46
6 O PROFISSIONAL FARMACÊUTICO E OS DESAFIOS DA PROFISSÃO EM FAVOR
DOS RESULTADOS EM SAÚDE
6.1 PRM´S – PROBLEMAS RELACIONADOS AO MEDICAMENTO – UMA
PREOCUPAÇÃO DO PROFISSIONAL FARMACÊUTICO
A principal característica do profissional farmacêutico, com a qual ele sempre está
relacionado, é o seu entendimento do medicamento, levando em conta seu processo de
produção, controle de qualidade, ação no organismo e o seu próprio simbolismo e
impacto na sociedade. E como o medicamento hoje é um insumo essencial para muitas
pessoas e é um produto que possui propriedades ambivalentes, dependendo de como é
usado, uma das responsabilidades específicas do farmacêutico, sendo ele um profissional
de saúde, é de preocupar-se com os problemas relacionados ao medicamento (PRMs) e
suas causas, já que este tema se constitui em um gravíssimo problema de saúde pública.
Segundo Ivama et al. (2005), o PRM se define como sendo:
“Um problema de saúde, relacionado ou suspeito de estar relacionado à farmacoterapia, que interfere ou pode interferir nos resultados terapêuticos e na qualidade de vida do usuário. O PRM é real, quando manifestado, ou potencial na possibilidade de sua ocorrência, pode ser ocasionado por diferentes causas, tais como: As relacionadas ao sistema de saúde, ao usuário e seus aspectos bio-psico-sociais, aos profissionais de saúde e ao medicamento. A identificação de PRMs segue os princípios de necessidade, efetividade e segurança, próprios da farmacoterapia”. (Ivama et al., 2005)
Nos dias de hoje, o medicamento se constitui no principal recurso terapêutico
utilizado com o objetivo de prevenção, cura ou redução de sintomas desagradáveis. Estes
objetivos deveriam estar focados principalmente na melhoria ou manutenção da qualidade
de vida do paciente. A probabilidade de êxito da farmacoterapia é dependente de vários
fatores e qualquer ação farmacológica que eventualmente não produza os resultados
esperados, ou seja, que não alcance seu objetivo terapêutico ou então que produza
efeitos indesejados pode ser considerado um PRM.
O estudo das variáveis que afetam a qualidade dos resultados da ação em saúde
relacionada à medicação é uma estratégia para reconhecer e reduzir as causas que
levam a esses resultados negativos da medicação. Dentre essas variáveis, podemos citar
como principais, a dificuldade de acesso ao medicamento, a questão da qualidade do
medicamento com relação a sua eficácia e segurança, o uso irracional de medicamentos,
e a não aderência ao tratamento. Essas variáveis se complementam e se inter-relacionam
47
dinamicamente influenciando a realidade do uso de medicamentos. (García-Jiménez et
al., 2008)
6.1.1 Acesso ao medicamento
Apesar de a constituição da república federativa do Brasil e o Sistema Único de
Saúde assegurarem o acesso ao medicamento ao assegurar “o acesso universal e
igualitário às ações para a promoção, proteção e recuperação da saúde”, na prática, esse
compromisso social enfrenta alguns obstáculos que o impedem de acontecer. O primeiro
impedimento para o acesso universal ao medicamento e demais serviços de saúde é o
subfinanciamento crônico do sistema de saúde que sobrevive com parcos recursos e é
continuamente agredido pela investida neoliberal que defende a idéia da privatização
como a solução para os problemas de saúde da população.
A questão da propriedade intelectual também é um tema bastante relevante na
questão de acesso, pois os interesses financeiros dos titulares de patentes farmacêuticas
muitas vezes subjugam os interesses nacionais dos países subdesenvolvidos, dificultando
o acesso aos medicamentos e a novas tecnologias que podem prolongar e melhorar a
vida das pessoas, minorando seu sofrimento.
Com relação às patentes, é possível exemplificar o antagonismo entre os
interesses sociais e os interesses de comércio e como estes têm sido privilegiados em
relação àqueles frente à dinâmica da política internacional. Com o fortalecimento dos
Tratados de Livre Comercio (TLCs) novos dispositivos modificam o Acordo sobre os
Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordo
TRIPS) prevendo a vigência de patentes acima de 20 anos, vínculo entre patente e
registro, restrições para o uso de licenças compulsórias, proteção dos dados não
divulgados para obtenção de registro sanitário e restrições para revogação de patentes.
(Chaves et. al., 2007)
Esses dispositivos prejudicam imensamente a autonomia, soberania e desenvolvimento
social dos países subdesenvolvidos.
O debate sobre acesso a medicamentos e propriedade intelectual é muito importante e
ainda pode ser bastante aprofundado, porém ultrapassam os limites de abordagem deste
trabalho.
6.1.2 A Eficácia e segurança
A eficácia e segurança estão relacionadas principalmente com os testes realizados
durante a pesquisa do medicamento, assim como com o seguimento da farmacovigilância
48
que, através de um processo de constante avaliação dos efeitos do medicamento durante
os anos é capaz de prover informações importantes sobre eficácia e segurança. Variáveis
que podem prejudicar a eficácia e a segurança, tais como, reações idiossincráticas e
utilização incorreta dos medicamentos podem ser trabalhadas a partir do
acompanhamento farmacoterapêutico. A eficácia e segurança são afetadas
principalmente pela qualidade do uso do medicamento. Resultados negativos ocorrem
freqüentemente devido ao uso incorreto ou uso irracional de medicamentos. (Arrais et. al.,
1997)
6.1.3 O uso irracional de medicamentos e automedicação
O uso irracional de medicamentos é um problema grave na sociedade. A sua
superação se constitui em um desafio pertinente principalmente à Atenção Farmacêutica.
O medicamento é um insumo muitas vezes essencial à vida, pois, quando usado
de maneira correta, pode diagnosticar e reverter quadros patológicos graves, prevenir
eventos que podem levar ao óbito ou invalidez, aliviar a sensação e o sentimento de dor e
contribuir para melhorar a qualidade de vida por auxiliar no bom funcionamento do
organismo. Entretanto, o medicamento não deve ser confundido com um produto de
consumo qualquer, pois pode, paralelamente ao fato de trazer benefícios terapêuticos,
causar sérios malefícios à saúde quando seu uso é equivocado. Diz-se, portanto, de seu
caráter ambivalente. Infelizmente não são poucos os casos de danos causados à saúde
da sociedade pelo uso incorreto de medicamentos, sendo a intoxicação medicamentosa
uma das principais causas de internamentos e se constitui em um dos principais
problemas de saúde pública no Brasil. (Arrais et. al., 1997)
Na contramão da saúde da população, do bem estar social e da ética profissional
concorre o sistema econômico no qual o grande fim é o mercado. A indústria
farmacêutica, através, principalmente do imenso aparato propagandístico, construiu uma
imagem distorcida do medicamento. Essa imagem irresponsável e compromissada
unicamente com a lógica lucrocentrista se arraigou na cultura da sociedade ocidental.
Alienou-se a verdadeira utilidade do medicamento como sendo a pílula do prazer, do
conforto e da saúde ao alcance do seu bolso. O imediatismo da saúde, a redução do
limiar da dor e novos conceitos de doenças foram construídos ao longo do tempo para
desenvolver os desejos consumistas dos indivíduos e a prescrição irracional,
proporcionando uma situação propícia para uso irracional de medicamentos que se
expressa no perfil preocupante de automedicação no Brasil.
49
De acordo com a Associação Brasileira de Industrias farmacêuticas, (ABIFARMA)
cerca de 80 milhões de pessoas são adeptas da automedicação no país. É preciso
lembrar que a automedicação é um elemento do auto-cuidado, mas que precisa acontecer
de maneira correta. De acordo com o trabalho realizado por Arrais, (1997), a livre compra
de medicamentos que necessitariam da apresentação de receita médica (44,1% dos
indivíduos que compuseram o universo estatístico de sua pesquisa) demonstra o
desconhecimento, a ineficiência da fiscalização e o pouco caso em relação às normas
regulamentares. Evidencia também a dificuldade da população ao acesso aos serviços de
saúde, principalmente à atenção médica e farmacêutica adequadas.
A análise dos valores simbólicos impressos na sociedade em relação ao
medicamento nos permite verificar que a predominância da prática da automedicação
entre as mulheres (59% de acordo com o trabalho de Arrais) pode ser atribuída também
pela exploração da propaganda de medicamentos associados ao papel cultural da mulher
de prover a saúde da família.
“Os dados relacionados à automedicação no Brasil apóiam a hipótese da ingênua e excessiva crença da sociedade atual no poder dos medicamentos, o que contribui para a crescente demanda de produtos farmacêuticos para qualquer tipo de transtorno, por mais banal e autolimitado que seja. Dessa forma o medicamento foi incorporado à dinâmica da sociedade de consumo (...) afastando-se de sua finalidade precípua na prevenção, diagnóstico e tratamento das enfermidades.” (Arrais et. al., 1997)
O intenso consumo de medicamentos desnecessários, que culmina em uma
automedicação incorreta e, conseqüentemente, em PRMs que geram gastos exorbitantes
para o sistema de saúde no Brasil é fruto do mercado farmacêutico brasileiro que investe
massivamente em propagandas que estimulam essa prática.
Por isso há uma grande necessidade de intervenção nessa dinâmica por parte dos
profissionais de saúde através da orientação competente e comprometida com o bem
estar dos usuários. O conhecimento da ação farmacológica, da margem terapêutica de
dose, dos efeitos colaterais e adversos e, principalmente, de habilidades em comunicação
interpessoal, são importantíssimos para uma orientação que promova o uso correto de
medicamentos. A atenção farmacêutica propõe que se vá além da entrega do
medicamento e orientação ao paciente, propõe que haja uma interação benéfica entre
profissional e paciente para que se garanta a correta e segura utilização do medicamento
considerando todas as influencias do meio social e os fatores psicológicos envolvidos.
“O Desenvolvimento e a implementação dessa nova prática farmacêutica voltada para o paciente é uma tentativa de remodelar a profissão deixando-a mais humana e formando um profissional mais consciente e preocupado com o usuário de medicamentos, o qual
50
leva em consideração as experiências do mesmo, seus receios e comportamentos relacionados ao uso de medicamentos”. (Machado et. Al., citado por Campos, 2005)
No sentido do uso racional de medicamentos e da correta automedicação, a
preocupação com a aderência do paciente ao tratamento como princípio da prevenção e
recuperação da saúde também deve ser o foco das competências do profissional dessa
área. Não apenas na aderência ao tratamento farmacológico, mas também um trabalho
baseado na cooperação frente a todas as estratégias terapêuticas deve ser um dos
compromissos do exercício da profissão farmacêutica.
6.1.4 Complacência, concordância e aderência
A não complacência, segundo VERMEIRE et al., (2001), é identificada como um
problema majoritário de saúde pública que impõe gastos consideráveis aos cofres
públicos. Esses gastos são estimados em cerca de $100 bilhões por ano no EUA, e a
baixa complacência também é responsável por 10% das admissões em hospitais e 23%
da necessidade de cuidados de enfermagem em domicílio.
No Brasil o problema se assemelha grandemente, gerando gastos desnecessários
e evitáveis, exaurindo ainda mais os escassos recursos do Sistema Único de Saúde.
Baixa complacência, ou a expressão utilizada no inglês “Low Compliance” é
considerada um problema complexo, antigo e crônico na sociedade. A baixa
complacência é um termo limitado, que deverá ser substituído por outros que se adéqüem
aos novos paradigmas do processo de recuperação da saúde. Entretanto, a grande
maioria dos artigos científicos elaborados traz essa expressão, por isso é importante
trabalharmos um pouco seu conceito.
O conceito da palavra “Compliance” está relacionado com a obediência ou
submissão às ordens e/ou conselhos inferidos pelo médico ou algum outro profissional de
saúde. Quando, por exemplo, um paciente segue um regime de administração
medicamentoso de acordo com a prescrição médica significa que este paciente está
sendo complacente. Outra definição semelhante é a extensão em que um paciente se
comporta, em relação ao uso de medicamentos, seguimento de um regime ou mudança
de estilo de vida, de acordo com o que foi prescrito ou indicado pelo profissional de
saúde. (Vermeire et. al., 2001)
Uma análise hermenêutica desse termo amplamente utilizado no meio científico
nos permite inferir que seu conceito negligencia a opinião ou o contexto do paciente e
coloca a figura do médico como detentor dos caminhos para a cura dando a impressão de
que basta ao paciente seguir passivamente o ritual prescrito para que se chegue ao
51
objetivo terapêutico. O termo paciente tem origem também devido a essa compreensão
de sua atitude restrita à obediência no processo recuperação da saúde.
A não complacência ou “non-compliance” quando analisada mais a fundo se
mostra como um processo bastante complexo. Vários podem ser os motivos que levam a
não complacência. Não aceitar o tratamento, não entender o regime correto de
tratamento, tomar medicamentos em horários e ou em quantidade incorreta, decisão de
parar o tratamento ou de aumentar a dose para tentar “curar-se mais rapidamente”, entre
outros. Portanto, entende-se que a não complacência pode ser intencional ou não
intencional. (Vermeire et. al., 2001)
É possível inferir que a não complacência pode ser resultado da decisão do
paciente em não seguir o regime terapêutico. De acordo com essa premissa, a “Royal
Pharmaceutical Society” sugeriu a substituição do termo complacência pelo termo
concordância, dentro de um conceito de acordo e harmonia.
“Complacência significa a intenção teórica da prescrição e concordância significa a meta prática e ética do tratamento. Complacência é a extensão na qual um indivíduo escolhe um comportamento que coincide com a prescrição clínica, onde concordância é a escolha feita pelo paciente”. (VERMEIRE et al., 2001)
Parece-nos claro que os termos efetivamente se complementam. O termo
“aderência”, entretanto, se apresenta mais coerente para ser usado, pois abrange noções
mais amplas de concordância, cooperação e parceria e reduz o caráter onipotente do
médico no processo de tratamento.
A “não aderência” ao tratamento é considerada o principal motivo de fracasso
farmacológico, especialmente com relação às enfermidades crônicas. (García-Jiménez et.
al., 2008)
Vermeire e colaboradores elaboraram uma revisão bibliográfica de três décadas
sobre a aderência do paciente ao tratamento e os vários aspectos que a influenciam.
Nesta revisão são pontuadas as principais causas da não aderência do paciente.
Colocaremos aqui as mais importantes e inseriremos comentários também procurando
relacionar a relevância da atuação farmacêutica, especialmente na atenção farmacêutica
e sua possível utilidade no sentido de sanar ou atenuar, dentro do universo de problemas
relatados, aqueles que lhe for pertinente intervir:
- Desordens psiquiátricas, fatores relacionados ao tratamento, tais como duração do
tratamento, número de medicamentos prescritos, custo e freqüência de dose.
52
Esses fatores relacionados ao tratamento impõem dificuldades de aderência. A
pesquisa farmacêutica busca tecnologias que reduzam esses efeitos, tais como formas
farmacêuticas de liberação controlada, associações de medicamento em um mesmo
veículo, entre outros. A redução de custos também está relacionada com a produção
nacional de medicamentos, que infelizmente é extremamente negligenciada no país,
fazendo com que o paciente e o próprio sistema de saúde se submetam aos preços do
mercado internacional de medicamentos. No momento da dispensação do medicamento,
o profissional que presta atenção farmacêutica pode melhorar a aderência focando em
métodos que facilitem a compreensão do regime de medicamentos prescritos.
- A complexidade do regime e deficiência de comunicação são freqüentemente
mencionados como as causas mais comuns de não aderência, especialmente em
pacientes idosos com desordens de memória, as quais incapacitam o paciente a seguir
instruções complexas. A relação médico-paciente aprece ser uma variável importante na
aderência, incluindo o processo de prescrição, mas é extremamente difícil compreender a
natureza dessa interação e escolher métodos para avaliação de seus componentes.
Nota-se, neste apontamento realizado pelos autores que as falhas na comunicação
com o paciente são as causas mais relatadas nos trabalhos científicos que tratam da não
aderência ao tratamento. Essa é a constatação cabal da necessidade de mudança de
paradigmas na atenção à saúde. Todos os profissionais de saúde precisam aperfeiçoar
suas habilidades de comunicação com o paciente para que se alcance o objetivo
terapêutico esperado. A proposta da Atenção Farmacêutica é a de melhorar a
comunicação entre o profissional e o paciente, estabelecendo um vínculo de
companheirismo, confiança e colaboração. No caso de pacientes idosos e com
dificuldades em entender o regime de tratamento, a interação com os familiares na hora
da entrega do medicamento é um fator importante a se considerar.
- Outros fatores que contribuem para a não aderência incluem dúvidas não resolvidas do
paciente em relação ao diagnóstico, desaparecimento dos sintomas, intervalo de dose e
seus efeitos e o medo dos efeitos adversos.
O paciente recém diagnosticado com uma doença, principalmente se essa for uma
doença crônica, geralmente deixa o consultório médico com uma série de dúvidas não
solucionadas a respeito da natureza de sua doença e sobre os medicamentos que deve
tomar. Além disso, geralmente ela também sai frustrada e assustada com os novos fatos.
A aderência nesses casos é bastante prejudicada. Cabe ao farmacêutico, no momento da
53
dispensação dos medicamentos prescritos, ter a sensibilidade de perceber essas dúvidas
e incentivar o paciente expô-las. Todos os aspectos relacionados ao medicamento, tais
como, indicação, efeito esperado e efeitos colaterais, posologia e cuidados devem ser
esclarecidos por esse profissional. Essa é uma das principais contribuições da atenção
farmacêutica na melhoria da aderência do paciente ao tratamento. Claro que essa tarefa
deve ser desenvolvida com a cooperação do médico, que também precisa se preocupar
em melhorar suas habilidades de comunicação com o paciente.
- Fatores sociais, tais como atitudes positivas de outros em sua comunidade aumentam a
aderência. A aderência parece estar relacionada com a qualidade, a duração e a
freqüência da interação entre o paciente e o médico. A atitude do médico em relação ao
paciente e sua habilidade em solucionar e respeitar a dúvidas provendo informação e
demonstrar empatia são fatores de grande importância.
Mais uma vez é colocada a importância da comunicação e como a falta dela pode
prejudicar imensamente o processo terapêutico e ainda evidencia que o ato de se
negligenciar a participação do paciente nesse processo pode ser impeditivo para os
objetivos de recuperação da saúde. Não apenas a relação com o médico, como é citado
no artigo, mas também a relação de todos os outros profissionais de saúde que têm
contato com o paciente, seja ele enfermeiro, terapeuta ocupacional, médico ou
farmacêutico, cada um tem a função auxiliar o processo de recuperação de acordo com
suas especialidades, porém com a mesma consideração e respeito pela vida humana.
- Pacientes, especialmente aqueles com doenças crônicas, tomam decisões sobre o
tratamento que se encaixam dentro das suas próprias crenças, e circunstâncias pessoais.
Um grande obstáculo à aderência do paciente é a ignorância sobre assuntos importantes,
como a natureza da doença e a natureza do tratamento e quanto efetivo ele pode ser.
Alguns pacientes simplesmente se recusam a tomar medicamentos industrializados
por acreditarem que “aquilo que é químico faz mal”. Quando um paciente que pensa
assim recebe um diagnóstico de alguma doença ele geralmente busca auxílio aos
recursos terapêuticos populares, tais como ervas e até mesmo com a religião, deixando
de lado o tratamento medicamentoso. Esse é um exemplo do que um paciente que não
tem acesso, que não estabelece um vínculo comunicativo eficaz com o profissional pode
decidir. Não é nossa intenção menosprezar aqui a medicina e os saberes populares ou
criticar as crenças religiosas, porém furtar-se de utilizar recursos cientificamente
comprovados como sendo benéficos pode representar um verdadeiro prejuízo para o
54
indivíduo. Saber dialogar com o paciente, oferecendo argumentos científicos
convincentes, sem julgá-lo ou culpá-lo e sempre respeitando seus aspectos culturais faz
parte de uma correta atuação no sentido de buscar maior aderência ao tratamento.
Outro fator relevante a ser considerado é a experiência do paciente com a
medicação e sua experiência com a patologia. A compreensão dessas percepções do
paciente permite o estabelecimento de um diálogo mais sincero entre as partes.
Esta avaliação realizada por Vermeire et. al. (2001) reitera o fato de que a não
aderência ao tratamento se mostra como um grande obstáculo ao objetivo de alcançar a
eficiência dos recursos terapêuticos, gerando gastos consideráveis para os cofres
públicos.
Em favor à aderência ao tratamento podemos enumerar fatores, tais como: maior
idade, maior nível educacional, melhores condições socioeconômicas, casamento,
paciente e profissional de saúde falando linguagem semelhante, atenção à saúde
continuada, satisfação do paciente, menor tempo de espera e menor custo do tratamento.
(Vermeire et. al., 2001)
A colaboração entre paciente, farmacêutico, médicos e outros profissionais de
saúde pode melhorar as condições de decisão, possibilitando direcioná-la a uma melhor
aderência. Estratégias educacionais, tais como boa comunicação verbal ou
aconselhamento personalizado tem efeitos positivos. A informação escrita aumenta o
conhecimento e diminui a utilização equivocada dos medicamentos, mas não demonstra
melhora na aderência. Por outro lado a comunicação escrita com reforço verbal aumenta
a aderência muito mais do que somente a comunicação escrita. (Vermeire et. al., 2001)
“No âmbito da atenção ambulatória, na maioria das vezes o contato final dos pacientes se dá com o farmacêutico, daí o papel e a responsabilidade deste profissional no processo de utilização e resultados farmacológicos. O farmacêutico deve prover informação e educação necessárias e realizar o seguimento dos resultados clínicos alcançados com os medicamentos. Neste Sentido a OMS e sociedades científicas, como a Sociedade Americana de Farmácia Hospitalar, destacam o papel do farmacêutico no seguimento e controle da farmacoterapia do paciente.” (García-Jiménez et. al., 2008)
A atenção farmacêutica e uma relação profissional-paciente de qualidade podem
ser consideradas ferramentas imprescindíveis para melhorar os níveis de aderência e, por
conseqüência, melhorar os resultados do tratamento, além de prevenir os PRMs, que são
a causa, paralela e complementarmente à não aderência, de efeitos nocivos, ineficácia
terapêutica e grandes gastos para a saúde pública.
55
6.2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A EXPERIÊNCIA DO PACIENTE COM A MEDICAÇÃO
6.2.1 Conceitos e abordagem terapêutica do profissional de saúde
A experiência com a medicação é um novo contexto em saúde. Considerar o que o
paciente pensa sobre tomar a medicação envolve uma abordagem que influencia a
aderência ao tratamento. As crenças a respeito da medicação influenciam as atitudes e
também os resultados da terapia. Segundo Cipolle (2004),
“A experiência do paciente com medicamentos é a soma de todos os eventos da vida do paciente que envolva a farmacoterapia. Esta é a experiência pessoal do paciente com medicamentos. Tal experiência vivida demonstra as atitudes, crenças e preferência do paciente com relação à terapia medicamentosa. São principalmente estas características que determinam o comportamento do paciente em relação a tomar medicamentos” (Cipolle 2004)
O entendimento do profissional dessa experiência vivida pelo indivíduo se dá
através de uma relação de confiança em que o paciente se sinta a vontade para expor
suas experiências relacionadas com a terapia medicamentosa. No processo terapêutico, o
paciente precisa ser estimulado a participar ativamente. Uma tática para que isso
aconteça é pedir a ele que descreva o que sente e o que pensa diante da doença e da
necessidade do tratamento. Isso pode gerar uma interação benéfica para ambas as
partes, pois fornece informações ao profissional sobre o sentimento do paciente, que se
sente compreendido pelo profissional. A escuta empática e uma resposta adequada pode
gerar um clima de cooperação e informalidade que dissipa o medo e os sentimentos
defensivos. (STEFANELLI; CARVALHO, 2005)
A experiência com a medicação é única para cada pessoa. Ela se constrói a partir
dos valores culturais, religiosos, da convivência social e da experimentação com as
terapias medicamentosas. Espera-se que pessoas idosas, por exemplo, tenham uma
experiência maior com medicamentos, enquanto que pessoas mais jovens tenham uma
experiência mais restrita, influenciada principalmente por aquilo que ouvem da família,
dos amigos e da mídia sobre os medicamentos e seus efeitos. É importante familiarizar-se
com aquilo que o medicamento representa para o paciente. Um dos objetivos da atenção
farmacêutica é melhorar a experiência do paciente com a medicação.
Segundo Cipolle (2004) para trabalhar corretamente a experiência do paciente com
medicamentos é preciso levar em conta: a descrição do paciente de sua experiência, o
histórico farmacoterapêutico e o registro da medicação atual.
56
- A descrição da experiência é algo que é conseguido através do esforço em
encorajar o paciente a expor sua atitude geral sobre o uso de medicamentos, quais suas
preocupações, suas expectativas, qual a imagem do medicamento para ele. As pessoas,
influenciadas por crenças ou tradições familiares, constroem impressões diversas,
positivas ou negativas sobre a medicação. Esses fatores influenciam decisivamente no
resultado terapêutico. Cabe ao farmacêutico, após conhecer essas impressões,
influenciar positivamente na construção da representação sobre a terapia
medicamentosa, sempre considerando a necessidade do respeito e não julgamento das
concepções alheias.
Compreender as expectativas do paciente com a medicação pode ser um ponto de
partida para o estabelecimento da relação terapêutica. O profissional pode oferecer
cooperação no sentido de se alcançar os objetivos com a medicação. Todo paciente
procura um profissional de saúde ou se sujeita a uma terapia medicamentosa porque
sente uma necessidade, a qual espera que o tratamento medicamentoso venha a sanar.
Se o resultado final for diferente daquele esperado pelo paciente, a conseqüência pode
ser a sua frustração com relação à terapia. O profissional deve colaborar para que o
resultado seja positivo, construindo assim, um histórico de sucesso e satisfação com o
uso de medicamentos. Entender o que se espera do tratamento por parte do paciente
também é importante para dissipar falsas expectativas sobre a medicação. Se uma
pessoa, diagnosticada com pressão alta, por exemplo, tomar um medicamento para
hipertensão esperando que ele cure sua condição de hipertenso, o resultado desse
processo certamente será frustrante, caso o farmacêutico não esclareça a verdadeira
finalidade da medicação. Muitas vezes o que o paciente quer não é aquilo que ele
realmente precisa. Essas questões devem ser discutidas honestamente com o usuário de
medicamentos.
As preocupações do paciente com a medicação geralmente surgem da carência de
informações sobre a medicação: como tomar, quais os efeitos, quais os malefícios, qual a
finalidade, etc. Esse é o principal motivo pelo qual as pessoas procuram a atenção
farmacêutica. Quando o paciente se sente inseguro ou desestimulado a expor essas
preocupações, os resultados podem ser a não aderência ao tratamento ou o
aparecimento de problemas de segurança ou eficácia da terapia devido ao uso incorreto
dos medicamentos. Pelo contrário, se o paciente se sentir seguro e sentir que o
profissional farmacêutico lhe oferece todo o suporte teórico e apoio de que necessita e
que se importa com os resultados terapêuticos ele deverá se mostrar muito mais
estimulado a seguir a terapia.
57
O entendimento da terapia medicamentosa pelo paciente deve ser uma
preocupação do profissional da atenção farmacêutica. Entretanto, antes de iniciar uma
explicação sobre a medicação e aspectos do tratamento, é preciso verificar qual o
entendimento do paciente sobre a própria terapia. Algumas vezes o usuário conhece
muito sobre a terapia e a medicação (principalmente em caso daqueles que usam
medicamentos para doenças crônicas) sendo dispensável fazer uma explanação sobre
esses aspectos. Em alguns casos, entretanto, eles necessitam de todas as informações à
respeitos. Por isso é importante evitar o afobamento em prover assistência e obter
anteriormente as informações do paciente sobre a sua compreensão da terapia.
Questões éticas, culturais, religiosas e sociais podem influenciar fortemente a
decisão dos indivíduos sobre a terapia medicamentosa. Há pacientes que por tradições
culturais ou sociais podem se mostrar indispostos a seguir a terapia. Essas questões
precisam ser discutidas entre o farmacêutico e o paciente sempre se mantendo o respeito
mútuo, sem julgamentos baseados em valores e crenças particulares. O objetivo deve ser
sempre o bem estar do paciente, procurando, através do diálogo, a melhor solução para
qualquer dilema.
Expectativas, preocupações, entendimento, crenças e valores e todos os demais
elementos supracitados podem influenciar no comportamento em relação ao
medicamento. Esse comportamento está relacionado à decisão e à maneira de tomar os
medicamentos. Comportamentos positivos devem ser estimulados pelo profissional
farmacêutico. Levar em consideração a experiência do paciente com a medicação é
utilizar informações que podem ser decisivas para o sucesso terapêutico. (Cipolle, 2004)
- O histórico farmacoterapêutico é o compêndio de informações sobre o histórico do
contato que o paciente teve com qualquer tipo de fármaco ou droga e suas
conseqüências. A avaliação desse histórico pelo profissional serve para dirigir a escolha
dos recursos farmacológicos e prevenir o surgimento ou reaparecimento de problemas
relacionados à medicação. Essas informações permitem avaliar as necessidades do
usuário no que concerne à farmacoterapia.
Informações sobre processos alérgicos ou reações adversas que aconteceram com
o paciente são de extrema importância para a avaliação da terapia atual. As informações
devem ser sistematizadas e analisadas para prevenir que esses problemas se repitam.
Para tanto é necessário que as informações sejam criteriosamente documentadas,
levando em conta o principio ativo, a dosagem e a natureza da reação. É importante
lembrar que reações alérgicas geralmente são muito mais violentas quando o indivíduo é
exposto pela segunda vez ao alérgeno.
58
Faz parte desse processo de avaliação do histórico, o registro de imunizações do
paciente. Avaliar o registro de vacinação do paciente é uma tarefa válida que pode ser
desenvolvida pelo profissional da atenção farmacêutica em benefício da saúde da
população.
A avaliação dos hábitos com relação ao uso de drogas (lícitas ou ilícitas) também é
um fator que deve ser considerado na avaliação da farmacoterapia, pois essas drogas
podem interagir com o fármaco, modificando sua cinética no organismo. Aconselhamento
sobre a possível necessidade de interromper o uso dessas drogas enquanto se está em
tratamento é uma informação importante que, quando não avaliada, pode comprometer a
segurança e a eficácia da terapia medicamentosa. É importante que o profissional não
julgue moralmente o paciente em relação aos seus hábitos. O interesse deve ser
unicamente o sucesso da farmacoterapia em favor do bem estar do indivíduo.
Verificar as necessidades particulares de cada paciente, individualizando a atenção
é uma questão importante. Essas necessidades estão relacionadas muitas vezes à
dificuldades que a pessoa doente pode enfrentar devido à certas limitações, tais como
esquecimento devido à idade ou problemas mentais ou deficiências físicas que lhe limitem
algumas ações. Esses fatores devem ser considerados no histórico terapêutico e
precisam influenciar a atitude do farmacêutico em formular estratégias que facilitem a
superação dessas limitações.
Conversar com o paciente sobre a sua experiência particular, ou seja, o que ele
sentiu com relação ao uso dos medicamentos anteriores. Com essas informações podem-
se discutir quais medicamentos ele não se sente a vontade para usar e possíveis
alternativas que ajudarão na adesão terapêutica. Manter um histórico de medicação de
cada paciente faz parte da sistematização da suas experiências com a medicação e tem a
finalidade de auxiliar na tomada de decisões em cada ocasião em que o paciente
necessitar fazer uso de algum tipo de farmacoterapia. (Cipolle, 2004)
- O registro da medicação atual é o terceiro componente da experiência do
paciente com a medicação com o qual o farmacêutico deve se preocupar. Este
componente está relacionado com a situação atual do usuário em relação á terapia
medicamentosa e consiste em registrar, documentar organizadamente os fármacos que
ele está usando, relacionando cuidadosamente dados como indicação, nome do produto,
dosagem, duração da terapia e resultados. Esse registro é importante para que o
farmacêutico possa futuramente fazer uma avaliação dos resultados e do histórico
farmacológico do paciente.
59
Indicação: “A indicação é a razão clínica pela qual a pessoa utiliza o medicamento”
(Cipolle, 2004). Muitas vezes se faz uso de fármacos por motivos alheios à prescrição
médica ou aconselhamento farmacêutico. Estes motivos podem indicar a característica da
pessoa em relação ao medicamento (tendência ao uso exagerado de medicamentos, por
exemplo). Esses medicamentos tomados através da automedicação também devem ser
registrados. O farmacêutico não deve julgar a atitude do indivíduo, porém, quando
necessário, informar e aconselhar sobre os riscos da automedicação incorreta. As
terapias medicamentosas devem ser agrupadas por indicação.
Medicamento: É onde deve constar nome do medicamento que o paciente está
tomando. Devem ser especificados o nome comercial e genérico e também o nome do
fabricante. Essas especificações são importante para a correta identificação do
medicamento caso haja necessidade, além de permitir um certo grau de rastreabilidade.
Dosagem: Para a compreensão da dosagem, é necessário que sejam anotadas a
dose (ou seja, a quantidade de substância ativa tomada), a freqüência de administração e
a duração do tratamento. Esses dados são importantíssimos para a análise posterior dos
resultados alcançados com o tratamento.
Data de Início: A data de início do uso do medicamento fornece um dado
importante para avaliar critérios tais como, resposta alérgica e tempo para que comecem
a ser sentidos os efeitos da medicação, verificando se ela está sendo eficaz ou não. O
primeiro dia da tomada do medicamento é o ponto de partida da avaliação da terapia.
Resposta: A resposta à terapia medicamentosa está relacionada com os objetivos
terapêuticos desejados. Uma resposta positiva pode ser a cura ou o controle da patologia.
Uma resposta negativa pode ser a não eficácia ou geração de danos aos pacientes.
Cipolle (2004) sugere que se faça uso de termos para uma documentação que não gere
dúvidas, tais como “estável, melhor, parcialmente melhor, pior, resolvido e falha”, que são
termos relacionados à condição do paciente.
6.2.2 O significado do medicamento para o paciente
Especialmente em pacientes portadores de doenças crônicas, porém não apenas
nestes, a necessidade de tomar medicamentos gera um stress psíquico. Esse stress está
relacionado com a representação simbólica do medicamento associado com a
dependência, a supressão da liberdade e a exclusão social. Compreender o significado da
medicação para o paciente ajuda o farmacêutico a desenvolver uma relação mais
humana, identificando-se com os sentimentos decorrentes do uso da medicação. Essa
identificação empática legitima o profissional a incentivar o usuário de medicamentos a
60
superar essas dificuldades e adaptar-se à realidade que exige a convivência com o
medicamento.
De acordo com um trabalho realizado por Shoemaker e Oliveira (2007) a
necessidade de tomar medicamentos aflora percepções negativas no paciente sobre a
terapia.
Quando o paciente descobre que precisa tomar uma medicação, o significado
desse acontecimento revela a sensação de “perda do controle”. Os pacientes
experimentam o sentimento de vulnerabilidade e incapacidade, pois agora sem a
medicação, não há como controlar a doença. Isso acontece geralmente em casos de
pacientes que descobriram recentemente que precisam tomar a medicação ou que
precisam aumentar o número de medicamentos. No trabalho desenvolvido por
Shoemaker e Oliveira (2007) o relato do paciente deixa clara a sensação de dependência
em relação ao medicamento de uso crônico:
“Eu penso, e seu eu deixasse de tomar os medicamentos por alguns meses? Mas eu não acho que tenho essa escolha. Esses comprimidos te fazem prisioneiro. Se eu for viajar, eles devem ser o fator principal – são mais importantes do que levar suficientes roupas de baixo na mala.” (Shoemaker e Oliveira, 2007)
À exemplo deste, os pacientes se sentem como se perdessem a autonomia,
gostariam de não precisar dos medicamentos, porém não é possível.
Outra significação relacionada aos medicamentos está relaciona com a idade, a
velhice. Para muitas pessoas a necessidade de tomar medicamente os faz sentir que
estão ficando velhos e isso causa uma sensação desagradável. “O uso de medicamentos
distingue o saudável do doente e o jovem do velho”. Ao tomar medicamentos a pessoa se
inclui no grupo dos doentes e dos velhos. Por isso muitas pessoas são resistentes à
tomar medicamentos de uso crônico, questionando sua necessidade para fugir dos
sentimentos de angústia com relação à se sentir velho e doente.
A resistência ao uso de medicação também pode estar relacionada com o estigma
social decorrente do uso da medicação. Pacientes que iniciam tratamento com
medicamentos psicotrópicos temem o estigma do doente mental, do louco. Tipos de
medicamentos que associam o paciente à uma patologia grave ou não aceita socialmente
pode levar a resistência em tomar o medicamento. Os chamados “remédios tarja preta”,
tal como “Gardenal®” se associaram à imagem da loucura e do descontrole dos ataques
epiléticos, que são patologias socialmente condenadas.
A terapia medicamentosa tem a intenção de causar benefícios farmacológicos para
o indivíduo, entretanto, efeitos colaterais e adversos podem ocorrer. Esses efeitos,
61
intencionais e benéficos e os não intencionais, são efeitos que o paciente sente em seu
corpo e fazem parte da sua experiência com a medicação. Pacientes que apresentam
disfunções ou algum tipo de desequilíbrio fisiológico utilizam o medicamento para retomar
esse equilíbrio e isso os faz sentirem-se bem. Muitas pessoas encaram o medicamento
como um passaporte para a normalidade. Os pacientes experimentam efeitos diferentes
com a medicação. Alguns sentem que a medicação é importante, pois melhora sua
condição de vida. Outros experimentam sensações desagradáveis com o uso da
medicação. Portanto, se os benefícios com o uso do medicamento superarem os efeitos
indesejáveis, o paciente normalmente aceita melhor a terapia, encarando-a como algo
favorável a ele. Ao acreditar que os benefícios da medicação superam os riscos, com
certeza ele estará mais disposto a aceitar o tratamento. (Shoemaker e Oliveira, 2007)
Passado certo tempo em que o paciente já toma a medicação, ele começa a se
familiarizar com o processo de tomar o medicamento e a ter consciência dos efeitos
produzidos em seu corpo. Os pacientes sabem como manejar corretamente a medicação
e acostumam-se a tomá-la de maneira desejável. Quando um paciente que utiliza insulina
diz que “é preciso pensar como um pâncreas”, isso indica que ele já tem o senso de
responsabilidade pela própria terapia. A experiência com a medicação vai além do tomar
corretamente, faz com que a pessoa sinta o efeito do medicamento. Isso acarreta um
fenômeno em que o paciente adquire alguma autonomia em relação ao medicamento,
realizando pequenos ajustes no regime de dose. Do ponto de vista do profissional de
saúde essa é uma prática condenável, pois o pensamento clínico e a visão paternalista da
atenção à saúde só aceitam como atitude correta o seguimento absoluto da prescrição e
classificam qualquer desvio dessa conduta pré-estabelecida como irracional. Há
necessidade de que o profissional dialogue sobre a experiência do paciente para que
possam decidir em conjunto e cooperação qual a melhor atitude com relação à
medicação. (Shoemaker e Oliveira, 2007)
62
7 REFLEXÕES SOBRE A ATENÇÃO FARMACÊUTICA - A RELAÇÃO
PROFISSIONAL-PACIENTE E A COMUNICAÇÃO TERAPÊUTICA
A atenção farmacêutica surge acompanhando o desenvolvimento de um novo
modelo de atenção à saúde. Para que essa nova ciência obtenha sucesso em alcançar
aquilo que se propõe e para que se desenvolva no seio da sociedade, há uma
dependência imediata do comprometimento do profissional farmacêutico e também da
transformação do modelo de estabelecimento farmacêutico.
Aspectos relacionados à comunicação em favor do desenvolvimento da relação
farmacêutico-paciente surgem como uma abordagem imprescindível para a atividade em
farmácia, prestando-se um serviço que privilegie os resultados em saúde. Sabemos que a
relação profissional-paciente satisfatória acontece através de uma comunicação realizada
de maneira adequada. Conhecer conceitos e estabelecer estratégias que contribuam para
este fim pode fornecer ferramentas indispensáveis para o farmacêutico no
desenvolvimento da Atenção Farmacêutica, esta que é uma ciência que coloca a
profissão nos trilhos das novas concepções da atuação em saúde.
7.1 ASPECTOS OBJETIVOS – O FARMACÊUTICO E A FARMÁCIA
7.1.1 O profissional da atenção farmacêutica
Pouquíssimo se discute, mesmo entre a categoria, qual o papel ou a postura do
farmacêutico na sua relação mais direta com o paciente, que acontece quase sempre no
balcão da farmácia. Nas cadeiras da academia pouca ênfase se dá no aprimoramento das
técnicas de comunicação. A dispensação parece ser um assunto desprezado e até
repudiado, como se gerasse certo desconforto entre os docentes e discentes. É possível
verificar certo desinteresse entre dos estudantes que ingressam na escola de farmácia
pela área da dispensação, quase como se ela representasse uma atividade menos digna.
O estigma do “ser balconista” persegue o estudante que, a partir do conhecimento
empírico da atividade em farmácia, naturalmente repudia a atuação nos moldes em que
ela se apresenta. Esse conceito desacreditado da dispensação, do “farmacêutico
vendedor de medicamentos” vem sendo alicerçado já há certo tempo na sociedade.
Porém é chegado o momento de desconstruir essa impressão. Para isso é necessário
dispensar um grande esforço por parte de estudantes, professores e profissionais de
63
farmácia em todo o mundo. Um esforço transformador, que enfrente as barreiras que o
sistema impõe, um esforço altruísta focando o bem estar da sociedade.
Surge, a partir de uma reflexão sobre a atividade profissional e os problemas
sociais, a necessidade de um enfoque na dispensação. A atenção farmacêutica, um
conceito que é muito mais complexo e que engloba o aconselhamento farmacêutico, é a
alternativa que se apresenta. A relevância cientificamente comprovada da atenção
farmacêutica na melhoria dos resultados em saúde denuncia a necessidade urgente do
enfoque nessa ciência. Entretanto para adequar-se às novas concepções científicas o
farmacêutico precisa ter o conhecimento necessário e o compromisso com a
transformação. (Ivama et. al., 2002)
O profissionalismo que serve a interesses econômicos rebaixa sua carreira à
simples execução de ordens. Anterior à necessidade de repensar técnicas de
comunicação é preciso repensar o contexto do atendimento, que permita o
desenvolvimento do diálogo e do cuidado. O fato de o atendimento farmacêutico não ser
diretamente recompensado financeiramente faz com que o a preocupação com o paciente
se restrinja a uma abordagem teórica e academicista. O profissional que argumenta que
não há tempo, ou que não são remunerados o suficiente para prestarem um serviço de
cuidado e atenção ao paciente, acabam negligenciando o código de ética da profissão,
pois neste caso não há ética e subestima-se o valor da vida humana. A valorização deve
acontecer no caminho inverso, ou seja, o trabalho bem feito deve preceder a sua
valorização. Além do mais, a principal motivação de uma pessoa que deseja se tornar
profissional de saúde deveria ser o desejo de servir ao público, pois o fundamento de todo
o comportamento profissional é o altruísmo. Profissionalismo implica usar os
conhecimentos para servir às necessidades públicas. Profissionais desenvolvem uma
responsabilidade pública e moral com o próximo por internalizar um claro senso de
proposta, um forte comprometimento social. Essa responsabilidade se reflete no
comportamento profissional com o paciente e consigo próprio. (Benetton, 2002)
7.1.2 A farmácia comercial no Brasil
Pelo fato de a farmácia comercial ser o palco principal onde o farmacêutico
desenvolve suas atividades, consideramos importante avaliar a natureza deste ambiente
nos dias atuais. Essa necessidade surge da preocupação com o modelo atual da
farmácia, que vem se caracterizando como fator preponderantemente impeditivo do
desenvolvimento das atividades em atenção farmacêutica.
64
Em nosso modo de ver, dois são os principais fatores que interferem no
desenvolvimento da correta atuação do farmacêutico no seu principal ambiente de
trabalho. Um deles é o fato de farmácia comercial ser indiscutivelmente um
estabelecimento de Mercado e não um estabelecimento de Saúde. O sistema econômico
alienou a natureza desse ambiente, pois agora ao prestar um serviço, necessariamente
ele precisa dar lucro para que possa existir. Podemos notar que o foco deixa de ser o
paciente e passa a ser o lucro, que é condição de sua existência. Essa distorção brutal da
natureza da farmácia de dispensação prejudica o paciente e fere profundamente o
profissionalismo do farmacêutico.
O segundo fator, que é principal para o prejuízo da correta atuação farmacêutica,
reside na questão do vínculo empregatício do farmacêutico com o dono da farmácia. Essa
condição sepulta a autonomia do profissional. O profissional liberal transforma-se em um
prestador de serviços assalariado. Agora o farmacêutico necessariamente é refém de seu
patrão. Como o patrão, geralmente leigo em assuntos de saúde e desconhecedor da ética
profissional, objetiva o lucro em sua função gerencial, que é condição para que o
estabelecimento continue funcionando, o profissional farmacêutico passa a servir também
à este fim. O farmacêutico que resiste à subserviência do sistema econômico é fatalmente
substituído por outro que atenda às expectativas de seu patrão. O que se observa então é
a atuação de farmacêuticos agindo contrariamente ao bem estar da sociedade,
estimulando o uso irracional de medicamentos em favor da manutenção de seus
empregos ou de bonificações em seus salários.
Uma pesquisa realizada em 2005 por Oliveira e Colaboradores na cidade de
Curitiba aponta que os principais obstáculos da atenção farmacêutica são: “o atual
sistema das farmácias que incluem o comissionamento de funcionários para aumento de
vendas e a delegação de atividades burocráticas e de gerenciamento ao farmacêutico em
detrimento da atuação junto ao usuário”. Setenta e oito por cento (78%) dos profissionais
entrevistados pelos pesquisadores afirmam não possuir liberdade para atuar plenamente
como farmacêutico para a promoção da saúde. “O farmacêutico encontra-se impedido,
por determinação administrativa, de atender o paciente, exceto quando solicitado.”
(Oliveira et. al., 2005)
Poderíamos enumerar aqui uma enormidade de absurdos no que concerne ao
estabelecimento de farmácia de dispensação, porém uma discussão mais aprofundada
ultrapassa os limites de abordagem deste trabalho. Apenas alguns elementos para
reflexão sobre a necessidade urgente da transformação do modelo de farmácia são
colocados neste capítulo.
65
A transformação de um estabelecimento de mercado, compromissado com o lucro,
para um estabelecimento de saúde, compromissado com o bem estar da sociedade é
fundamental e é dependente de transformações estruturais profundas no modelo de
sociedade, pois só assim teremos mudanças reais de paradigmas.
O profissional de saúde deve servir o povo e não o patrão. Um vínculo
empregatício com o estado, que deve representar o povo, talvez fosse uma alternativa
dentro do atual sistema econômico - enquanto ele ainda não for superado - uma
alternativa que traria maior autonomia ao profissional e maior segurança e efetividade na
utilização de medicamentos pela população. Para tanto, é claro que este profissional
precisa também ser possuidor de um acúmulo adequado sobre as questões técnicas e
éticas de sua profissão além da consciência revolucionária para uma atuação em favor da
transformação da realidade.
7.2 RECURSOS PARA O DESENVOLVIMENTO DA COMUNICAÇÃO FARMACÊUTICO-
PACIENTE
7.2.1 Acolhendo o paciente
O acolhimento do paciente na farmácia precisa, antes de tudo, ser um gesto
sincero de aceitação e empatia. Aceitar é respeitar o indivíduo em sua condição humana.
Aqui cabe uma brevíssima reflexão sobre a pseudo-sinonímia existente entre
aceitação e a tolerância. Quando o profissional expressa sentimentos negativos, ainda
que disfarçados, em relação ao paciente, isso indica que a convivência se dará por
tolerância, é forçada, pois não se foi capaz de compreender os sentimentos da pessoa e
sua condição de ser humano é inferiorizada. O profissional suporta o paciente, mas não
consegue se identificar com ele. As crenças e valores do profissional são colocados em
um patamar superior, em relação às do paciente. As minorias homossexuais, por
exemplo, quando reivindicam tolerância em relação à sua condição, acabam por se
colocar como transgressoras ou criminosas por sua opção sexual, pois a tolerância é
negativa. A tolerância é a condição em que os atos resultantes da ignorância e do
preconceito são freados ou suportados em face à coerção moral ou jurídica. A aceitação
prevê a superação da ignorância e é condição para a convivência pacífica e a relação
despreconceituosa. Fica clara, portanto, a necessidade de aceitação do paciente para um
acolhimento simpático, responsável, agradável e autêntico, de acordo com as atitudes
que deve ter um profissional de saúde. (Berger, 2005)
66
O usuário, ao adentrar a farmácia precisa se sentir em um ambiente diferenciado,
especializado no sentido de atendimento à saúde e aceito para que assim possa se sentir
acolhido. Ao farmacêutico cabe expressar o profissionalismo, interessado e comprometido
com as necessidades do usuário, que precisa se sentir respeitado e aceito. (Berger, 2005)
O objetivo inicial deve ser o de avaliar a situação em que o paciente se encontra
(condição física e emocional) e prever qual deverá ser a necessidade de intervenção e
orientação, de maneira individualizada, sem preconceitos ou rituais pré-estabelecidos.
É preciso ressaltar que o paciente não deve ser encarado como cliente pelo
profissional de saúde, apesar de o ser, inevitavelmente, no sentido comercial e
econômico, ao adquirir um produto ou serviço e pagar por ele. O termo “cliente” favorece
á verticalização da relação cujo foco não é a cooperação. Jargões do tipo “o cliente tem
sempre razão” ou “volte sempre” precisam ser extintos do ambiente da farmácia. (Berger,
2005)
7.2.2 A empatia
Empatia é uma palavra derivada da palavra alemã Einfuhlung, que significa
compartilhar a experiência com o outro. Trata-se de um conceito em evolução e está
relacionado com a capacidade cognitiva e afetiva de compreender as variáveis que levam
o indivíduo à sua condição psicológica e emocional. A empatia, diferentemente de
simpatia, significa mais do que perceber o sentimento de outra pessoa, significa uma
identificação com o seu estado afetivo. (Berger, 2005)
Existem áreas no cérebro que sensibilizam a sensação subjetiva de dor e que
reagem à “dor própria” de uma maneira muito semelhante à reação produzida ao se
presenciar a dor de outrem, ou seja, o mesmo reflexo cerebral produzido nessa região
durante o contato sensorial doloroso acontece ao se perceber o contato de outro indivíduo
ao mesmo estímulo doloroso. (Singer et. al, 2004)
Hipóteses evidenciam a reação empática como um mecanismo reflexo inato do ser
humano. Uma criança recém nascida, quando exposta ao choro de outra criança reage
igualmente com choro, uma resposta empática à situação afetiva do outro. Com o
desenvolvimento do indivíduo, esta resposta de choro dá lugar a outras respostas, agora
mais maduras no sentido oferecer conforto e alento àquele que sofre. (Singer et. al, 2004)
Este conceito de empatia nos permite uma reflexão antiga sobre a máxima de Jean
Jacques Rousseau de que “o homem é naturalmente bom, mas sua bondade é
corrompida pela sociedade”:
67
“Os povos, assim como os homens, só são dóceis na juventude, pois eles se tornam incorrigíveis ao envelhecer; uma vez estabelecidos os costumes e enraizados os preconceitos, é um empreendimento perigoso e vão querer reformá-los. O povo não permite sequer que toquem em seus males para destruí-los, como aqueles doentes (...) que tremem ao ver o médico” (Rousseau, 2007)
Compreendendo a empatia como um mecanismo inato do ser humano (talvez a
sua característica mais humana), será possível “dessensibilizar” esse sistema de resposta
através da convivência social desumana?
Seja como for, cabe ao profissional de saúde estimular sua capacidade empática
para perceber o outro, pois trata-se de uma ferramenta indispensável para uma relação
profissional-paciente saudável e produtiva, já que sempre resulta em aquisição de
conhecimento entre as partes. Isso permite uma identificação com o paciente que é isenta
de julgamentos. Essa identificação se expressará na reação empática que é percebida
pelo paciente, por exemplo, nas expressões faciais e gestos realizados pelo profissional
durante o diálogo. Isso se expressa involuntariamente e é necessário que o profissional
esteja envolvido e realmente concentrado no que o paciente está dizendo. A resposta
empática agora é carregada de um envolvimento não apenas profissional, de prestação
de serviço, mas também um envolvimento intelectual, físico e emocional que resulta em
confiança por parte do paciente, que se sente compreendido. A empatia gera confiança e
respeito mútuo. (Berger, 2005)
Estes elementos são indispensáveis para a comunicação terapêutica. A atenção
farmacêutica, como uma ciência que prevê a relação direta com o paciente, é dependente
da habilidade empática do farmacêutico, que precisa estar centrado em seu papel de
compreender o paciente em seu contexto holístico de indivíduo.
7.2.3 O processo de ouvir: escuta ativa
Para Berger (2005), saber ouvir faz parte de um processo indispensável para
entender o paciente de maneira integral, analisando não apenas a patologia, mas também
a relação do indivíduo com a doença e a sociedade, seus medos, esperanças, angústias,
percepção da realidade e concepção do mal que o aflige. A escuta ativa ajuda a criar uma
relação de confiança entre as partes e faz com que o paciente se sinta mais a vontade
para dizer o que pensa. Ouvir reflexivamente é importante para identificar o que o
indivíduo está realmente tentando comunicar ao profissional. É necessário explorar
elementos que vão além daquilo que é comunicado verbalmente. Entender o que o
paciente disse, qual o significado do que foi dito, levando em conta todos os aspectos
culturais e os fatos relacionados à situação atual de fragilidade do doente, ajuda a
68
perceber aquilo que não está sendo dito diretamente e que inconscientemente ele procura
revelar.
De acordo com a psicanálise integral de Keppe, o indivíduo pode se sentir doente
por se esconder da realidade, ou por estar alienado dela. O contato com o profissional de
saúde lhe dá a oportunidade de expor ou conscientizar-se da realidade objetiva,
dissipando assim suas angústias e restituindo seu equilíbrio psíquico e
conseqüentemente sua saúde física (Pacheco, 2003). Por isso é importante que o
profissional de saúde, quando estiver em processo de comunicação com o paciente, que
se mantenha alerta e interessado.
A escuta ativa não é um processo simples e exige que algumas habilidades sejam
desenvolvidas. Para ser um ouvinte ativo é necessário que se queira realmente ouvir a
outra parte e que se concentre unicamente no paciente, sem pressa e sem preconceitos.
É importante que o profissional demonstre interesse pelo que o paciente diz através de
gestos ou de pequenas falas intermitentes tais como “prossiga”, “estou ouvindo” ou
“entendo”. Isso faz com que o paciente se sinta valorizado e que tenha motivação para
continuar seu relato. (Berger, 2005)
O julgamento antecipado é a principal barreira que impede o profissional de ser um
ouvinte ativo, pois o fato de considerar que seus próprios conceitos são os únicos corretos
coloca o paciente como indivíduo inferior nessa relação e impede que se reflita sobre a
idéia do ponto de vista do outro. Criar padrões do que é certo ou errado sem levar em
consideração as muitas variáveis que agem sobre o indivíduo é cominho certo para o
fracasso em ser um bom ouvinte. (Stefanelli e Carvalho, 2005)
7.2.4 O aconselhamento ao paciente
A atividade profissional no balcão da farmácia precisa ser reinventada. Um correto
aconselhamento aos pacientes, que seja embasado cientificamente e que leve em conta
as suas particularidades é fundamental para o desenvolvimento da atenção farmacêutica
e para que a farmácia venha a se tornar um estabelecimento de atenção à saúde e deixe
de ter as características de um estabelecimento de mercado e comércio comum.
Considerando que o medicamento não é um produto inócuo, o aconselhamento
durante a dispensação é parte essencial de um processo que deverá resultar no uso
correto de medicamento e na eficiência e segurança da farmacoterapia. Para isso é
importante que o profissional esteja tecnicamente preparado. Diferentes ações podem ser
necessárias para melhor colaborar com a recuperação da saúde do paciente. Atitudes
simples que prezem pela boa relação entre profissional e paciente podem ajudar a
69
superar a barreira da inexpressividade da atuação farmacêutica no balcão da farmácia a
que, normalmente, a população está acostumada. O objetivo é iniciar a construção de um
novo modelo de atendimento, baseado na atenção farmacêutica. (Berger, 2005)
A primeira atitude para realizar um correto aconselhamento deve ser a de
apresentar-se ao paciente como o profissional farmacêutico responsável pela
dispensação e preocupado com o sucesso da farmacoterapia. Isso demonstra ao paciente
que ele está tendo um atendimento especializado e individualizado realizado por um
profissional de saúde. Em seguida, analisa-se a prescrição ou a necessidade do paciente.
É preciso se dispor a oferecer o aconselhamento, esclarecendo a finalidade e de que
forma ele acontecerá. Alguns pacientes se mostrarão relutantes em aceitar esse serviço.
De fato, a maioria da população está costumada apenas a comprar o medicamento. A
compra é um processo rápido e quase nada complexo, que não demanda tempo. O
tempo disponibilizado pelo paciente será diretamente proporcional à sua compreensão da
importância da etapa de aconselhamento. Por isso é interessante ratificar a importância
desse processo. Mesmo assim, o profissional deve realizar o aconselhamento de maneira
ágil, focando nas necessidades da pessoa, sem, contudo, prejudicar a qualidade desse
atendimento. O tempo utilizado para o aconselhamento varia dependendo de cada caso,
mas não deve ser muito longo (em média 5 minutos). É preciso deixar o paciente a par da
necessidade da utilização desse tempo. (Berger, 2005)
É importante que o profissional descubra quanto o paciente conhece a respeito da
medicação. Se está iniciando o tratamento ou se está dando continuidade a ele. Caso
seja a primeira vez que o paciente está tomando o medicamento talvez uma sessão mais
longa de aconselhamento seja necessária, pois ele geralmente carece de informações.
Entretanto, se ele faz uso crônico do medicamento, provavelmente já tenha o
conhecimento necessário para tomar corretamente a medicação, devido à sua
experiência com a terapia. Neste caso, o farmacêutico deve focar nos resultados obtidos
com a medicação.
Durante esta etapa de comunicação com o paciente, o aconselhamento deve
esclarecer entre outras coisas, a indicação do medicamento, a maneira de usá-lo, o
objetivo terapêutico, a possibilidade de eventos indesejáveis resultantes da medicação
(efeitos colaterais), os benefícios que sentirá ao utilizar a medicação e quando isso será
sentido. Também frisar quais devem ser os procedimentos necessários frente a algum
problema resultante da medicação. Estas informações deverão ser passadas através de
uma linguagem facilmente compreensível, levando em conta sua idade e escolaridade e,
se necessário, passar as informações por escrito. (Berger, 2005)
70
Depois de discutir as dúvidas, é interessante que o profissional certifique-se de que
o paciente compreendeu as informações que lhe foram dadas, para que não haja
equívocos resultantes dos “ruídos da comunicação”.
7.2.5 “Pacientes difíceis” – Entendendo os sentimentos de raiva
A atuação profissional em farmácia comunitárias faz com que o farmacêutico tenha
contato e estabeleça comunicação com vários tipos de pessoas todos os dias. É preciso
lembrar que cada paciente é único em suas particularidades e diversos fatores, podem
influenciar o seu humor. Por isso é importante que o farmacêutico consiga entender o
paciente nervoso e que saiba lidar com “pacientes difíceis”.
A raiva é um sentimento que não deve necessariamente ser evitado. Ele deve ser
controlado e, aquilo que fazemos em momentos de raiva é que precisa ser trabalhado. A
raiva pode ser considerada um sentimento secundário, uma defesa psíquica frente a algo
que nos faz sentir mal. Por exemplo, quando acertamos o dedo com um martelo, a raiva
surge para acalmar o sentimento de dor ou percepção dela. Quando não encontramos
algo que precisamos urgentemente ou quando o ônibus se atrasa a raiva nasce posterior
ao sentimento de angústia por não se encontrar o que se procura ou perceber a iminência
de um atraso. Esses sentimentos de angústia ou dor fazem com que a raiva aflore, como
uma defesa, um recurso inato de autoproteção. (Berger, 2005)
Um paciente que se apresenta de mau humor, nervoso ou zangado geralmente cria
um clima de tensão durante a comunicação em que é preciso ter cuidado para não se
deixar ser desrespeitado nem desrespeitar o outro. O indivíduo deve ser ouvido com
atenção; é preciso utilizar a empatia, entender a causa da sua raiva, o sentimento
primário que fez seu humor piorar e mostrar-se compreensivo sem se deixar manipular,
agindo sempre de maneira profissional. Um paciente que descobre que está doente
geralmente sente-se angustiado, o fato de ter que tomar medicamentos faz com que ele
se sinta dependente e fragilizado. Esses sentimentos podem irritar o paciente que
procurará dissipar sua raiva durante a relação com outras pessoas. Geralmente o
profissional de saúde se encontra na “linha de fogo”.
Ainda que o paciente dirija-se ao profissional de maneira desrespeitosa este não
deve revidar e sim manter seu respeito próprio, demonstrando que há intenção de se
construir uma relação de respeito mútuo e cooperação. O paciente nervoso deverá
perceber, mais cedo ou mais tarde, que está equivocado agindo de maneira agressiva
com alguém que o respeita e respeita a si próprio. É importante, neste contexto, o
71
desenvolvimento do conceito de Assertividade. O farmacêutico precisa compreender o
sentido da relação profissional, distingui-la da relação pessoal. (Berger, 2005)
7.2.6 Assertividade
Assertividade está relacionada com a capacidade de avaliar determinada situação
e expressar honestamente e de maneira correta aquilo que se sente e se pensa a respeito
do fato. Para comunicar-se com assertividade é necessário que se tenha noção dos
direitos do ser humano e profunda consideração por eles. Em uma relação humana
ambas as partes têm direito de serem respeitadas. É preciso compreender e contornar as
diferenças. Segundo BERGER (2005) existem três tipos de comunicação relacionadas ao
respeito: a não assertiva, a agressiva e a assertiva.
Pessoas não assertivas são aquelas que não respeitam a si próprias, recebem as
informações passivamente e não expressam aquilo que sentem ou pensam, pois
acreditam não ter esse direito. Esse tipo de relação geralmente é desonesta e defensiva.
Na relação profissional-paciente nota-se uma assimetria em que o profissional se
comporta como objeto, desinteressado e submisso.
Pessoas agressivas não respeitam os outros, agem com características
dominadoras, preferem destacar ou criar uma assimetria na relação para inibir a outra
parte, não respeitam a diferença de pensamento, geralmente são lacônicas, sarcásticas e
costumam interromper os outros por não saberem ouvir. O profissional de saúde que age
agressivamente não é capaz de compreender os novos paradigmas de saúde e se arrasta
na mediocridade do conservadorismo. Nesta relação, o paciente não é visto como co-
responsável pelo processo de recuperação, mas como alguém que deve obedecer a
ordens e executar “rituais de saúde”. A opinião do paciente é desconsiderada e a sua
individualidade desrespeitada.
Pessoas assertivas respeitam os outros e a si próprios, têm coragem de dizer
aquilo que pensam, sentem ou necessitam. Sabem respeitar os outros e também
esperam ser respeitadas. O profissional que é assertivo consegue compreender e
respeitar a condição do paciente e também sabe se fazer respeitar. A relação sempre é
honesta, sem medo de se dizer o que pensa, de expor os problemas para que possam ser
discutidos e solucionados através de um consenso. Dizer aquilo que se pensa, sem
rodeios e saber como e quando dizer, são habilidades importantes para o profissional de
saúde. Pessoas assertivas criam uma relação honesta de comunicação, o que permite ao
paciente, por exemplo, ter maior confiança no profissional sem ter receio de dizer aquilo
72
que pensa ou sente. Essas são características importantes para se lidar com problemas
ou resolver conflitos. (Berger, 2005)
7.2.7 Conflitos
Os conflitos fazem parte da dinâmica da existência dos seres vivos. Há, entretanto,
uma tendência doentia em se evitar conflitos e encarar problemas, principalmente na
espécie humana.
De acordo com a psicanálise integral de Keppe, o indivíduo que busca evitar
encarar os problemas cria uma situação patológica de alienação da realidade.
Contradizendo a teoria do inconsciente de Freud, Keppe afirma que o individuo
“inconscientiza-se” da realidade, com a intenção de não perceber os problemas,
acreditando que dessa forma eles realmente não existam. Esse processo leva a
humanidade ao caos e à estagnação. (Pacheco, 2003)
Os conflitos geralmente surgem quando há divergência de valores, interesses,
idéias ou expectativas. O processo de resolução desses conflitos e problemas traz
questionamentos e novos elementos para a reflexão e comparação com os elementos já
anteriormente assimilados. Esse, portanto, é um processo de evolução, pois pode levar á
superação de uma visão obsoleta, à melhoria e incremento de uma idéia e a manutenção
do que seja mais coerente. Por isso é importante ter coragem para enfrentar os
problemas e os conflitos de maneira correta caracterizando esse processo como um
estímulo para o crescimento e atualização e desenvolvimento da criatividade.
Geralmente a resolução de um problema se acompanha de algum tipo de
mudança, de transformação que se faz necessária para restabelecer uma nova ordem
mais coerente e equilibrada. A resistência que as pessoas normalmente carregam em
relação à mudança é outro fator que inibe o enfrentamento dos problemas e a resolução
dos conflitos. Para que a resistência à mudança seja superada é necessário que haja
processos de comunicação e educação para o convencimento da necessidade de
mudança e que as partes envolvidas no conflito colaborem participativamente para chegar
a uma etapa de solução do conflito em que as contradições sejam superadas e ambos
saiam ganhando. (Berger, 2005)
Quando o conflito gera competição, acomodamento ou dominação apenas uma
parte é beneficiada. Ao se encarar competitivamente a situação, os atores do conflito
enxergam apenas o próprio interesse e não se importam com as conseqüências para o
outro. Esta, infelizmente, é a principal dinâmica da solução de conflitos em nossa
sociedade e a sua causa é o estímulo constante ao individualismo e o desgaste dos
73
valores coletivos. O que se observa é uma inversão de valores sustentada pela ética
burguesa da sociedade capitalista que sobrevive da exclusão.
“O ser humano acredita que a honestidade é para os bobos e que a desonestidade é para os espertos; que o poder é felicidade e a humildade é humilhante; que os arrogantes são fortes e que os bondosos são fracos; que o amor faz sofrer e que o ódio nos protege.” (Pacheco, 2003)
Evidentemente é necessário superar essa ética invertida para que os conflitos
possam ser solucionados de uma maneira em que todos se sintam minimamente
satisfeitos.
Outro resultado igualmente indesejado acontece quando há um acomodamento.
Isso acontece quando uma das partes evita defender seus interesses para manter a
“harmonia”. Geralmente este indivíduo sente-se muito responsável e coloca seus
interesses em segundo plano, não há assertividade, o que resulta em uma relação
desonesta pouco eficaz para resolução do problema.
O único resultado realmente interessante frente a um conflito é aquele em que haja
cooperação em busca de sua resolução, levando-se em conta os próprios interesses e os
interesses dos outros.
Berger (2005) classifica as estratégias normalmente utilizadas pelos indivíduos
frente a iminência de um conflito ou a necessidade de solução de um problema.
A estratégia de dominação se caracteriza por atitudes agressivas que acontecem
com o objetivo de inibir o outro, mantendo-o na defensiva. Verifica-se um baixo nível de
cooperação.
A estratégia de compromisso é quando se busca resolver os conflitos
negligenciando ou evitando o problema. Inevitavelmente ambas as partes acabam
perdendo, pois quando o problema é evitado, há uma baixa cooperação para que ele seja
resolvido, isto é, ele acaba sempre sendo postergado e, na verdade, ainda continua
existindo, mesmo que haja o esforço para ignorá-lo. O compromisso é uma estratégia em
que ambas as partes sentem-se desinteressadas em discutir e solucionar o problema e
ocorre um pacto (o pacto da mediocridade) em que nenhum dos interesses é
integralmente atendido, mas por falta de estímulo ambos preferem negociar o problema
ao invés de resolvê-lo. Isso geralmente é fruto de uma cultura que pune quem diz a
verdade, confundindo-se a verdade com agressão.
“Foi se criando um conceito distorcido de que ao advertirmos os outros em relação aos seus pontos falhos, estaríamos causando mágoas e criando inimigos, portanto ninguém fala a verdade. Em casa, no trabalho, na escola, as pessoas usam máscaras o tempo todo, elogiando a todos e só falando o que pensam de negativo dos outros em explosões
74
de raiva. (...) Romper pactos, falar a verdade com amor e tolerância todo o tempo, para ajudar o próximo, é algo muito difícil de ser realizado e requer muito amor e muita honestidade” (Pacheco, 2003)
Para que ambas as partes saiam ganhando, o problema deve ser realmente
encarado e tanto os interesses de um como de outro devem ser levados em conta. Deve-
se focar o problema e não o indivíduo, identificar o problema, suas possíveis soluções,
elaborando, se necessário, uma lista de táticas para a solução, decidir qual a melhor, a
solução que realmente beneficia ambas a partes, decidir como implementar o que foi
decidido e depois verificar os resultados dos esforços dispensados. Superar o medo do
processo de mudança e entender as suas vantagens é indispensável para que o indivíduo
viva em equilíbrio com a sociedade, o meio ambiente, o corpo e a razão. (Pacheco, 2003)
De acordo com o materialismo histórico dialético, toda a realidade, todo momento
histórico carrega consigo uma série de contradições e, na medida em que essas
contradições vão se acentuado há a necessidade da superação dessa realidade, desse
momento histórico. Essa superação significa a quebra do “status quo” e prova que a
mudança é necessária e indispensável para a dinâmica da natureza e da sociedade.
A resistência às mudanças muitas vezes é estimulada pela sociedade
conservadora. Esse conservadorismo é pernicioso à sociedade e ao indivíduo, pois freia a
evolução, sustenta o desequilíbrio e dificulta a superação de momentos históricos
insustentáveis como o que vivemos hoje. É importante que o profissional de saúde
encontre mecanismos que auxiliem o indivíduo a lidar com as mudanças, pois o processo
saúde-doença depende de um equilíbrio dinâmico em que contradições precisam ser
superadas e algumas mudanças são necessárias para que se retome o equilíbrio entre o
indivíduo, o ser social e o meio ambiente.
7.2.8 A resistência à mudança
Como este tema é muito pertinente aos profissionais de saúde, principalmente para
o farmacêutico e o desenvolvimento da atenção farmacêutica, achamos necessários
aprofundar um pouco a discussão sobre o processo de mudança.
Pacientes que se apresentam com doenças crônicas e se vêem com a
necessidade de tomar medicamentos, possivelmente pelo resto de suas vidas e, junto a
isso a necessidade de mudança de estilo de vida, fazem com que a resistência a
mudança seja um dos principais adversários do profissional de saúde na busca pela
melhoria da qualidade de vida do paciente. (Berger, 2005)
75
A resistência à mudança é resultado de alguns sentimentos, emoções e
questionamentos que fazem com que esse processo se torne indesejado. A iminência de
um processo de mudança produz medo, insegurança e dúvidas no indivíduo. É comum
sentir-se incapaz ou mesmo envergonhado diante da possibilidade de não saber lidar com
as novidades. As coisas parecem ficar fora do controle, pois muitas vezes não se tem
conhecimento desses novos mecanismos com os quais não se está acostumado. Tudo
isso produz no indivíduo uma reação negativa no sentido de evitar a mudança. Raiva,
reclamação e depressão podem ser sinais agudos diante da iminência dessa
necessidade. O ser social foge da exclusão social. Uma nova realidade traz consigo o
temor da incapacidade, da frustração e da derrota que são ingredientes da exclusão.
O processo de mudança mais ou menos acompanha as reações psicodinâmicas
frente à doenças, discutidas no capítulo 3. Quando se descobre portador de uma doença,
o indivíduo é acometido de vários medos. Medo da dor, da morte, mas principalmente, da
exclusão e do abandono. A sua “psique” encontra mecanismos de atenuação da dor
psíquica, que de início reagem negativamente com relação à necessidade de mudança. A
descoberta de uma doença que exija a mudança de estilo de vida faz com que o paciente
se sinta incapaz e intensamente fragilizado. Esses sentimentos impedem, em um primeiro
momento, que o paciente se adapte às novas necessidades. Ele ainda não está
preparado e o profissional precisa perceber que a aceitação e adaptação fazem parte de
um processo que deve ser acompanhado e incentivado. No caso de pacientes com
doenças como diabetes, por exemplo, essa aceitação das novas condições e a
compreensão da doença os coloca frente à possibilidade de uma vida normal e saudável
através de um reequilíbrio e readaptação, relacionados principalmente ao estilo de vida e
terapia farmacológica. No entanto, cada paciente tem seu tempo de reflexão e aceitação
de sua nova condição para que possa aderir ao tratamento. O farmacêutico deve
colaborar para que esse tempo seja o mais breve possível. (Benetton, 2002)
7.2.9 Comunicação suporte
Segundo Squier, citado por Berger (2005):
- A aderência do paciente é maior quando médicos permitem que os pacientes
expressem e dissipem suas tensões e ansiedades a respeito da doença e quando
médicos reservam tempo para cuidadosamente responder as questões dos pacientes;
- Profissionais que se demonstraram responsivos aos sentimentos do paciente
tiveram maiores taxas de aderência e maior satisfação no relacionamento entre as partes;
76
- Paciente que perceberam seus médicos como compreensivos e cuidadosos
tiveram maior tendência a seguir o tratamento planejado e sentiram-se mais a vontade
para pedir por ajuda ou conselho quando precisaram e,
- Profissionais de saúde que encorajam seus pacientes a expressar seus
sentimentos e participar do tratamento planejado têm encontrado pacientes com maiores
taxa de aderência.
Além do mais, para benefícios emocionais e psicológicos, comunicação suporte
tem demonstrado trazer várias vantagens à saúde, tais como melhora na resistência à
infecções e doenças e tem aumentado o tempo e a qualidade de vida. “A doença crônica
nos lembra que estamos envelhecendo e que não vamos viver para sempre” (Berger,
2005)
Geralmente a doença traz uma sensação de perda. Perda de liberdade, de
prazeres, de coisas boas e desejáveis. A comunicação de apoio deve ajudar o paciente a
aceitar melhor essas perdas e entender a importância dessa privação para sua própria
saúde. O trabalho farmacêutico, principalmente no caso de pacientes que se sentem
psicologicamente abalados por terem descoberto que estão doentes, deve ser realizado
no sentido de demonstrar cuidado e atenção. A culpa pode ser um sentimento que
aparece quando se imagina que se fez algo errado e que assim adquiriu-se a doença.
Esse sentimento deve ser trabalhado no sentido de auxiliar o paciente na tomada de
decisões. Não deve ser suprimido ou “inconscientizado”. É preciso entender o porquê do
sentimento do paciente e encorajá-lo a tomar as medidas corretas para solucionar o
problema ou contorná-lo. (Pacheco, 2003)
A função do farmacêutico não é resolver os problemas do paciente, mas mostrar-se
compreensivo e responsivo aos sentimentos da pessoa e apontar as verdades sobre a
patologia e o tratamento para dissipar o medo e o descontrole. Sentimentos de vergonha
e embaraço surgem quando o paciente se sente capturado pela doença, incapaz e
impotente frente à nova realidade. Repreender o paciente por não ter tomado as medidas
recomendadas, por exemplo, pode estimular ainda mais o sentimento de vergonha e
transformá-lo em raiva desestimulando assim, a cooperação. A comunicação suporte
busca estabelecer um diálogo de confiança, honestidade e respeito entre o profissional e
o paciente, para que dessa maneira possam firmar um acordo de co-responsabilidade
pelo tratamento. (Berger, 2005)
7.2.10 Escolhendo uma resposta apropriada
77
A resposta ao paciente deve acontecer sempre no sentido de ajudar ou cuidar e
não para reduzir nossos próprios sentimentos de angústia, ansiedade, medo ou frustração
frente àquilo que nos é dito. Como profissionais de saúde, devemos agir no sentido de
atender as necessidades dos outros, não a nossa própria. O maior foco das respostas,
segundo Berger (2005) deve ser ajudar o paciente a:
1. “Sentir-se entendido e aceito, permitindo que ele se sinta mais a vontade para
discutir abertamente seus problemas, 2. Buscar aumentar e melhorar o seu entendimento da situação, 3. Discutir Alternativas, quando for necessário, 4. Tomar decisões sobre os próximos passos, juntamente com atitudes específicas
que devem ser tomadas e, 5. Fazer ajustamentos para que melhores resultados sejam obtidos.” (Berger, 2005)
Os tipos de resposta dados ao paciente vão depender muito da ocasião e podem
causar nele os mais diferentes efeitos. Uma mesma resposta pode ajudar o paciente a
compreender a sua doença e ao mesmo tempo deixá-lo deprimido. Por isso é importante
ter consciência dos efeitos que podem advir de uma resposta ao indivíduo enfermo e
procurar sempre usar aquela que causa um maior benefício a ele.
Uma resposta empática significa expressar a compreensão dos sentimentos do
paciente. Isso favorece o estabelecimento de uma boa relação farmacêutico-paciente.
Muitas vezes o efeito negativo dessa resposta é permitir que o paciente inicie um diálogo
de lamentações, ou que ele se aperceba ainda mais das suas dores e tristezas.
Respostas que procurem minimizar o sofrimento do paciente do tipo “Isso não é
nada” ou “logo passa”, podem ter efeitos realmente negativos. O paciente pode sentir que
sua situação e seus sentimentos não estão sendo compreendidos. Geralmente essa
resposta serve apenas para diminuir a ansiedade do próprio profissional frente à dor do
outro. Como não se sente a vontade com a dor do indivíduo e, no momento não pode
fazer nada pra ajudar, procura dar respostas com o objetivo de diminuir a importância ou
a gravidade da situação. (Berger, 2005)
Responder questionando é um tipo de resposta que deve acontecer quando ainda
se precisar obter informações sobre o caso do paciente. Se ele toma mais medicamentos
além daquele que está levando, a quanto tempo está tendo dores de cabeça, etc. Esse
tipo de resposta não deve ser usado para questionar o paciente sobre os seus atos,
apenas para obter informações que auxiliem em uma correta tomada de decisão.
Em algumas situações, aconselhar o paciente sobre alguma atitude à respeito de
algum fato é necessário, entretanto a resposta dada através de conselhos pode ser
negativa quando o farmacêutico entra no campo pessoal do paciente. Notadamente o
78
paciente conhece muito mais da sua própria vida do que o profissional. O conselho é
apropriado quando o farmacêutico é claramente grande conhecedor do assunto, por isso,
geralmente conselho sobre questões científicas são mais apropriadas.
Uma resposta que generaliza ou compara é importante em casos em que o
paciente realmente necessita de um exemplo para se sentir melhor. Por exemplo,
pessoas com doenças graves, muitas vezes necessitam de exemplos de pessoas que
conseguiram se curar, para que se sintam melhor. Neste caso, é importante o uso desse
tipo de resposta. Entretanto, é necessário ter a sensibilidade para não parecer que se
está subestimando os sentimentos do paciente. O mais apropriado é esperar para
perceber se o paciente está ou não precisando deste tipo de resposta. (Berger, 2005)
As respostas do profissional de saúde precisam sempre ser assertivas, ou seja,
precisam respeitar a condição do paciente e respeitar a si próprio. Caso contrário, em
respostas não assertivas, apenas o profissional se colocará em uma situação de
inferioridade, deixando que o paciente domine a situação. Outra situação em que a
resposta assertiva não é conseguida é quando o farmacêutico é agressivo, buscando
impor-se. Geralmente usa seu “poder de profissional de saúde” para conseguir isso.
Respostas não assertivas e agressivas não levam em conta o respeito mútuo e podem
gerar situações desagradáveis. (Berger, 2005)
A resposta que é dada julgando o paciente é um tipo de resposta que não traz
nenhum benefício nem ao paciente, nem à relação dele com o farmacêutico. Uma
resposta que busca julgar demonstra apenas desinteresse em se compreender os
anseios e os sentimentos do indivíduo.
7.2.11 Comunicação persuasiva
A comunicação persuasiva é aquela desenvolvida no sentido de influenciar
conscientemente o pensamento, atitude e comportamento de um indivíduo. No caso do
profissional farmacêutico, essa comunicação persuasiva está relacionada principalmente
com a aderência ao tratamento, à superação da resistência à mudanças, etc.
Vários fatores influenciam no comportamento do paciente, principalmente em
relação ao uso de medicamentos. As crenças, sentimentos e experiência com a
medicação são fatores consideráveis. Além do mais, é preciso ter em mente que apenas
uma visão positiva sobre o uso de medicamentos não é a única condição para o seu uso
correto. A questão financeira e social, por exemplo, podem influenciar.
79
A efetividade da mensagem persuasiva é determinada predominantemente por
quatro fatores: A fonte, a credibilidade, a compreensão da mensagem e os fatores
ambientais. (Berger, 2005)
A credibilidade da fonte da mensagem (farmacêutico) é o fator mais importante,
pois influencia também a credibilidade da mensagem. O farmacêutico precisa passar uma
imagem profissional, mas não apenas de um profissional experiente e conhecedor, mas
também interessado no bem estar e na resolução dos problemas do paciente. Para ser
persuasivo em relação à aderência ao tratamento, é preciso ser também compreensivo e
demonstrar intenção de ajudar. O farmacêutico deve dividir a responsabilidade do
tratamento com o paciente.
A credibilidade da mensagem deve levar em conta o entendimento do receptor
dessa mensagem. Para ser convincente é preciso usar argumentos que facilitem a
compreensão do paciente e que essa compreensão se insira no universo daquilo que ele
acredita ser benéfico.
Os fatores ambientais são variáveis que podem levar à dificuldade no entendimento
da mensagem. Incluem falta de privacidade, ruídos, distração, etc. É importante que o
farmacêutico se preocupe com a qualidade da comunicação crie um espaço privativo para
conversa com o paciente, que esteja longe de barulhos, interrupções ou coisas do tipo,
que dificultam o processo de comunicação e a compreensão da mensagem.
A qualidade da compreensão da mensagem está relacionada com os fatores
ambientais, com a credibilidade da mensagem e da fonte da mensagem. Para que ela
seja entendida o farmacêutico deve usar um vocabulário compreensível, sem jargões
técnicos. Por exemplo, é melhor escolher usa a expressão “pressão alta” do que
“hipertensão”. Pode parecer bobagem, mas muitos pacientes podem ficar confusos com a
palavra hipertensão. É preciso também averiguar o entendimento da mensagem pelo
paciente, usando mecanismos de feedback. Por exemplo, se o profissional diz ao
paciente para tomar o medicamento duas vezes por dia, este pode afirmar ter entendido a
mensagem e tomar dois comprimidos de uma vez, ao invés de dar o intervalo de 12 horas
entre cada dose, que era o esperado. Por isso é importante que, polidamente, o
farmacêutico peça ao paciente para repetir como é que se deve tomar o medicamento,
para confirmar a sua compreensão. Esses pequenos detalhes podem fazer a diferença
entre os resultados terapêutico do uso de medicamentos. (Berger, 2005)
Estratégias de persuasão buscam convencer o paciente a mudar seu
comportamento para um comportamento mais saudável seja em relação ao medicamento
ou ao estilo de vida.
80
Aumentar a consciência do paciente sobre a sua doença e a importância do
tratamento faz com que ele assimile melhor as mudanças e se torne mais consciente da
influência de suas próprias atitudes sobre sua saúde. Para isso, prover informação de
maneira clara é a principal tarefa do profissional.
Informações verdadeiras sobre a conseqüência de um comportamento pouco
saudável e que causem medo ao paciente também é uma maneira de usar a
comunicação persuasiva. Essa informação deve ser provida no sentido de prevenir o
paciente de que ao continuar com um comportamento negligente, as conseqüências
podem ser bastante negativas, porém se ele aceitar mudar seu comportamento as
conseqüências deverão ser positivas para sua saúde. Neste caso o farmacêutico dá
ênfase nos aspectos negativos e positivos. Por exemplo, o profissional pode dizer ao
paciente que uma pressão muito elevada pode favorecer o acontecimento de um acidente
vascular cerebral e reiterar as conseqüências desse fato e depois dizer que o uso do
medicamento previne que a pressão arterial aumente, diminuindo consideravelmente os
riscos de se ter um AVC. Isso demonstra também que o farmacêutico está preocupado
com a saúde do paciente e que está fazendo o possível para que ele não venha a
desenvolver problemas mais graves de saúde. O uso de exemplos concretos, verdadeiros
sobre o assunto ajuda o paciente e perceber a mensagem. Usar exemplos de pessoas
famosas ou casos que repercutiram na mídia pode ser uma estratégia.
É preciso lembrar que a comunicação persuasiva não pode ser um mecanismo de
coerção moral ao paciente. Ele precisa influenciar conscientemente o paciente em favor
de sua saúde, porém forçar a mudança de comportamento pode trazer apenas mais
resistência. Para que uma pessoa mude de comportamento ela não deve se sentir
manipulada ou obrigada a isso. O fato de prover informações ao paciente não significa
que ele já esteja disposto a mudar seu comportamento. Entender que esse processo à
vezes leva tempo também é importante para a atuação correta no balcão da farmácia. Ao
invés de tentar convencer um paciente que ainda não está pronto para a mudança, o
farmacêutico deve se mostrar atencioso e abrir espaço para uma futura conversa sobre o
assunto. (Berger, 2005)
7.2.12 A relação de proximidade
Ouvindo com bastante atenção a maneira como as pessoas se comunicam, é
possível perceber que a mesma mensagem pode ser passada verbalmente de diferentes
maneiras. Essas diferenças sutis podem informar um posicionamento ou sentimento de
quem fala em relação ao objeto falado ou ao ouvinte. (Berger, 2005)
81
Muitas vezes, sem perceber, o profissional de saúde cria um desejo de
afastamento, de impessoalidade para com o paciente, que se materializa na comunicação
verbal. Quando o paciente afeta negativamente o profissional, este busca um
distanciamento e uma desresponsabilização pelos problemas enfrentados pelo paciente,
assim como pelos efeitos negativos causados por eles. Isso dificulta bastante o
estabelecimento de uma relação de confiança entre as partes, pois o profissional encara
mecanicamente os problemas, preferindo não se relacionar mais profundamente com um
paciente. Geralmente durante um diálogo isso se expressa quando o profissional evita
usar “eu”, “nós” ou “nosso” e procura fazer generalizações ou usar expressões temporais
que suprimam a pessoalidade. Por exemplo, conversando com um paciente com câncer o
profissional gostaria de saber se o paciente se sente incomodado ao discutir a doença:
Você se sente ofendido “quando” “as pessoas” falam do seu câncer? (Menos
próximo e mais impessoal).
Você se sentiria ofendido se nós conversarmos sobre o seu câncer? (mais próximo.
O profissional se insere na frase.)
No primeiro exemplo, o profissional generaliza “as pessoas” e usa a expressão
“quando”. No segundo ele exemplo ele se inclui: “nós”.
Percebe-se o grau de afastamento em como o profissional se refere ao paciente:
“meu paciente”, “o paciente”. Ou então quando se refere ao problema enfrentado pelo
paciente: “Meu problema”, “Nosso problema”, “Seu problema” ou “O problema”. Isso
revela diferentes níveis de aproximação e identificação com o paciente e suas dores. A
comunicação verbal que gere maior proximidade entre o profissional e o paciente precisa
ser desenvolvida pelo farmacêutico no sentido de estabelecer uma relação terapêutica.
(Berger, 2005)
7.2.13 A comunicação não verbal
A comunicação não-verbal envolve gestos e expressões que são semelhantes a
todos os indivíduos, independentemente de classe social e nível cultural. As expressões
da face frente aos sentimentos, tais como alegria, tristeza, medo e surpresa não são
aprendidos, são mecanismos neurológicos herdados. Gestos relacionados à estímulos
tais como sono, quando bocejamos e fome quando salivamos também nos são comuns e
fazem parte da linguagem não verbal. As diferentes culturas, a classe social e a
escolaridade também produzem diferenças na expressão não-verbal que são ensinadas
ao indivíduo como recurso de boa convivência e aceitação.
82
Como a comunicação não-verbal é de extrema importância e deve ser considerada
como essencial nos estudos que desenvolvem as habilidades comunicativas do
profissional de saúde, uma atenção especial precisa ser dada a ela.
“O profissional de saúde, por meio de sua postura, de seu olhar, de seu toque e de seus gestos, consegue aliviar a condição de fragilidade do paciente, ajudando-o a manter sua dignidade tratando-o como ser humano.” (Stefanelli e Carvalho, 2005)
Estima-se que 55% da mensagem comunicada é resultado da comunicação não
verbal, que 38% é resultado da comunicação paraverbal (tom de voz, pausa e ritmo) e
que apenas 7% é resultado da comunicação verbal. Essas constatações demonstram a
relevância do desenvolvimento de habilidades e cuidados referentes à comunicação não
verbal com o paciente. A comunicação não verbal consciente é imprescindível na atenção
farmacêutica, pois revela o quanto o profissional se mostra compreensivo e preocupado
com o bem estar do paciente. (Berger, 2005)
Segundo Berger (2005), a comunicação não verbal inclui o espaço e distância
física usados durante a comunicação (proximidade), o tempo usado pelo profissional
durante a comunicação (cronológico), a qualidade do contato visual (ocular), o uso do
toque (Contato corporal), movimento corporal (Cinética), o uso e escolha de objetos na
comunicação tais como vestuário ou símbolos (Objetos), o uso e a qualidade da voz
humana, tais como mudanças em tom e ritmo (vocal). Essas variáveis são imprescindíveis
de serem compreendidas para que a comunicação não verbal tenha qualidade e alcance
seus objetivos.
Proximidade: É uma variável que se preocupa com a distância física entre as
partes durante a comunicação. Essa relação de distância depende muito dos valores e do
contexto da comunicação e cabe ao profissional manter uma distância que seja
confortável para o paciente. Ao entrar em uma sala com o paciente e ambos sentarem-se
aos extremos da sala, essa certamente será uma situação desconfortável, pois a distância
entre eles é muito grande, assim como se o profissional sentar em uma cadeira
encostando seus joelhos nos do paciente, essa também pode ser uma distância
desconfortável, por ser próxima demais, forçando uma intimidade exagerada. Em algumas
culturas, a distância mantida entre as pessoas durante a comunicação pode significar um
insulto. O paciente responde também através da comunicação não verbal ao desconforto
sentido quando a aproximação não é adequada.
Uma determinada aproximação também pode indicar um maior grau de cuidado por
parte do profissional. A estrutura da farmácia, neste caso, mais especificamente o balcão
da farmácia, cria um limite de proximidade com o paciente. Muitas vezes a atitude de sair
83
de trás do balcão e conversar mais reservadamente com o paciente, com uma maior
proximidade física pode comunicar respeito, cuidado e compreensão pelo paciente.
Cronológico: Tempo é dinheiro! Eis um dos lemas da nossa sociedade capitalista.
A pressa e o imediatismo faz com que a maioria das pessoas sinta-se impaciente por
esperar mais que cinco minutos por algum serviço. Nesse sentido o profissional precisa
se mostrar compreensivo e não julgar a pressa do paciente, apenas manter sua postura
demonstrando que há necessidade de certo tempo para prover um serviço de qualidade,
adequado para as especificidades de cada um. Isso valoriza o serviço prestado.
Ocular: O contato visual tem uma função muito importante durante a comunicação,
pois revela interesse e atenção. Além disso, o fato de olhar nos olhos de quem se fala
indica honestidade e sinceridade. Em situações corriqueiras de comunicação valorizamos
inconscientemente o olhar. Ao conversar com uma pessoa de óculos escuros sente-se
certa frieza ou desrespeito. Quando o profissional conversa com seu paciente olhando
mais para a tela do computador, ou para o medicamento no balcão do que para o próprio
paciente isso passa a sensação de que se está distraído e desinteressado. Profissionais
que não costumam olhar nos olhos do paciente perdem mensagens importantes dessa
fonte. Por exemplo, se um paciente diz que entendeu as informações dadas, quando na
verdade ainda está bastante confuso, seus olhos certamente revelarão essa “não
compreensão” e, se o profissional não estiver atento, isso pode passar despercebido.
Contato corporal: O toque pode passar uma mensagem de cuidado. O órgão
cutâneo é aquele que faz a interface entre o indivíduo e o mundo exterior. A percepção da
materialidade do outro se dá mais acentuadamente através do contato cutâneo.
Entretanto, o uso do contato corporal deve ser usado com precaução. Algumas culturas
aceitam melhor esse tipo de contato que outras. O uso dessa técnica de comunicação
depende bastante do contexto emocional, da proximidade e intimidade entre o paciente e
o profissional. O toque, quando usado como gesto de cuidado e atenção, pode ser um
fator bastante positivo na relação profissional-paciente. Entretanto, é necessário que o
profissional tenha a sensibilidade de entender, através das reações do paciente, quando
tal gesto pode gerar desconforto.
Cinética: A cinética está relacionada com os movimentos corporais que realizamos
durante a comunicação, sejam eles movimentos de cabeça, braços, pernas, olhos, etc.
São os gestos, que muitas vezes acabam sendo adicionados inconscientemente na
comunicação e têm uma relevância muito grande na interpretação da mensagem que se
busca passar. Se eu disser “Está tudo certo”, mas minha cabeça estiver acenando
negativamente, provavelmente a mensagem entendida é a de que algo não está certo.
84
Pior que isso, a mensagem parecerá sarcástica para o receptor. Portanto é importante
que os movimentos corporais estejam de acordo com a comunicação verbal, que a
complemente sincronicamente. A comunicação gestual também é muito influenciada
pelas características culturais. Muitas vezes um mesmo gesto pode ser considerado
educado para certa cultura e ofensivo para outra.
Objetos: Refere-se ao uso e a escolha de objetos usados durante a comunicação e
que influenciam a percepção da mensagem pelo receptor. Um dos primeiros objetos a se
considerar é o vestuário, ou seja, como o profissional de saúde se apresenta. A roupa que
o profissional veste precisa identificá-lo como tal. É importante que ao entrar no
estabelecimento de saúde o paciente perceba quem é o profissional. Isso é importante
quando o paciente precisa passar ou receber informações que somente serão
comunicadas com confiança à um profissional da área. Essa diferenciação não busca
fazer uma hierarquização de importância ou mérito dentro do estabelecimento,
entendendo-se que todos os trabalhadores são importantes para o processo de
recuperação da saúde dos pacientes, mas que o profissional de saúde é aquele
responsável mais diretamente pelo paciente e com ele deve estabelecer uma relação de
profissionalismo e comunicação em que a pessoa se sinta a vontade para falar sobre
seus medos, fraquezas e problemas.
Outro fator importante da comunicação realizada através de objetos é o ambiente
em que ela acontece. A farmácia de dispensação é hoje o principal local onde se
estabelece a relação profissional. É importante se preocupar com a qualidade desse
ambiente. Há cadeiras para que o paciente possa aguardar o atendimento mais
confortavelmente? O local é limpo? Existem materiais de leitura para o paciente? Qual é o
conteúdo desse material? Ele está relacionado com o contexto de saúde?
A comunicação com o paciente começa quando ele entra no estabelecimento de
saúde. A partir dessa premissa acredito ser pertinente fazermos uma análise do ambiente
de farmácia onde o profissional de farmacêutico normalmente desenvolve suas
atividades. A farmácia não passa a mensagem que deveria passar para o paciente. Na
verdade a contradição do modelo de estabelecimento de farmácia é gritante. Não há
como classificá-la como um estabelecimento de saúde. Como já foi dito, a farmácia hoje é
essencialmente um estabelecimento de mercado. O problema é que a profissão
farmacêutica, desenvolvida nesse ambiente, paulatinamente adquiriu as características do
estabelecimento, ou seja, o farmacêutico se transformou em um profissional de mercado.
“Muitas farmácias vendem itens que não estão relacionadas com a saúde. Esses itens incluem cigarros, cosméticos, cartões telefônicos, objetos para o lar e doces. Vender
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esse tipo de produtos pode confundir o paciente sobre a intenção de se prestar um serviço de atenção á saúde no estabelecimento. Comercializar essa variedade de itens é consistente com a imagem de saúde que o profissional tenta passar? Francamente, por que um profissional de saúde venderia itens como cigarros ou tabaco, os quais são comprovadamente prejudiciais à saúde? Lucro simplesmente não justifica a venda desses itens na farmácia. Esse é o exemplo primário de como os objetos são importantes na comunicação e na construção de uma imagem. A atenção farmacêutica deve reconsiderar os itens que são vendidos na farmácia e a imagem que esses itens podem passar”. (Berger, 2005)
A verdade é que o modelo de farmácia precisa ser revisto urgentemente.
Vocal: Como já citado anteriormente, as variações da voz, tais como altura, tom, e
ritmo são considerados por alguns autores como fazendo parte da comunicação
paraverbal. Uma mesma frase pode adquirir sentidos radicalmente diferentes do literal
quando se usa diferentes tons de voz para expressa-la. Muitas vezes a frase pode ser dita
expressando ironia ou sarcasmo, dependendo da ênfase das palavras ou da ocasião. O
tom da voz pode indicar seriedade, brincadeira e até ofensa usando-se a mesma frase. O
tom de voz é um parâmetro de classificação da personalidade da pessoa. Quando se fala
por telefone com alguém desconhecido, constrói-se uma imagem de indivíduo ligada à
sua voz. Essa variável influencia na percepção do outro. O tom de voz pode ser
trabalhado pelo profissional dependendo da ocasião em que se encontra o paciente. Isso
depende muitíssimo da sensibilidade do farmacêutico em perceber a necessidade do
indivíduo. Muitas vezes o paciente precisa ouvir palavras em tom divertido, colocadas
com bom humor, no intuito de afastar o sentimento de tristeza, em outros casos isso pode
não funcionar e o paciente entender essa atitude como falta de consideração.
O tom de voz do profissional é influenciado muitas vezes pelos acontecimentos
durante o dia, pelo seu estado de humor e pela concepção do modelo de relação
profissional-paciente do próprio profissional. Essas variáveis influenciam
inconscientemente o tom da voz e é preciso estar atento à maneira como se trata os
pacientes e procurar dominar os próprios sentimentos gerados a partir de outras fontes
para que não influenciem negativamente na relação com cada indivíduo. (Berger, 2005)
86
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Repensar o mundo, o ser humano, a relação humana, repensar a saúde, o
profissional de saúde, a atuação profissional e, principalmente, repensar o pensamento,
ter a sensibilidade para constatar a interconectividade entre tudo, mesmo entre aquilo que
não se pode perceber, mas que se pode conceber cientificamente. A tarefa do profissional
de saúde é ser científico para que possa humanizar a profissão e o mundo. Para
humanizar o mundo é preciso ser humano, ontologicamente humano, é preciso
compreender sua essência. Talvez seja essa a tarefa mais árdua. Afinal, o que há de
mais complexo que o ser humano, que o outro, que tu mesmo?
A física nos faz entender que, no fundo, aquilo que buscamos é a harmonia. A
harmonia é a saúde, a flexibilidade o equilíbrio dinâmico. A inflexibilidade leva à perda da
harmonia, que leva à eclosão da discórdia, da doença e do caos social.
Compreender a nova concepção de saúde é o primeiro passo para que se possa
atuar legitimamente como profissional. Atuar legitimamente é estar comprometido com o
próximo, com a natureza, com a ciência e apenas esse comprometimento transformador é
que caracteriza o profissional.
Ao estudante universitário da área da saúde é interessante compreender que
restringir-se aos conteúdos passados em sala de aula, geralmente de caráter tecnicista
apenas, é o primeiro passo para a mediocridade profissional. É necessário transpor as
fronteiras disciplinares, avançar num processo criativo, versátil e crítico de evolução
cultural e ao mesmo tempo negar a superespecialização e a uniformidade de
pensamentos, que paralisam a evolução histórica. O estudante deve buscar a
transdisciplinaridade e a transculturalidade como ferramentas para compreensão do
mundo, emancipação pessoal e transformação social.
O desenvolvimento de habilidades em comunicação definitivamente é hoje um
grande desafio, principalmente para profissões como a de farmácia, que historicamente
vem negligenciando a importância da interação com o paciente. Entretanto é preciso re-
avaliar os conceitos, pois a comunicação de qualidade é extremamente importante para
que se possa estabelecer uma relação de confiança e cooperação com o paciente, da
qual se produzirão resultados verdadeiramente benéficos para a pessoa que busca um
tratamento de saúde. Esses resultados não têm valor financeiro, não podem ser vendidos,
não são comercializáveis, pois supera-se a concepção lucrocentrista, imediatista e
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utilitarista do nosso atual modelo econômico. Esses resultados vão além dessa banal
materialidade a que estamos acostumados.
Ao profissional farmacêutico cabe a tarefa específica de remodelar sua profissão,
transformá-la verdadeiramente em uma profissão de saúde, importante e relevante para a
sociedade. Neste contexto, a atenção farmacêutica se mostra como uma ferramenta de
adequabilidade às novas concepções científicas. É o terreno no qual se deve desenvolver
um grande trabalho para se construir então um novo modelo de profissão farmacêutica. O
compromisso político, a competência técnica e o entendimento da dinâmica flutuante e
dialética da realidade pode fazer do farmacêutico um profissional muito mais completo e
útil à sociedade.
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