mateus göettees 1 - livro de mateus
Post on 29-Jun-2015
349 Views
Preview:
DESCRIPTION
TRANSCRIPT
1
2
O Livro de
Mateus
3
índice.
idade: mês-dia
à morte, ................................................................................................. 12
Inari 36:09-29 ......................................................................................... 19
Mateus 35:11-12 .................................................................................... 29
Mateus 36:09-30 .................................................................................... 35
Mateus 24:04-27 .................................................................................... 39
Mateus 06:07-21 por Tiago..................................................................... 45
Inari 36:10-01 ......................................................................................... 51
Mateus 36:10-04 .................................................................................... 59
Mateus 05:10-04 .................................................................................... 60
Mateus 36:10-07 .................................................................................... 67
Mateus 36:10-10 .................................................................................... 80
Mateus 27:05-01 .................................................................................... 89
Mateus 36:10-12 .................................................................................... 95
Mateus 36:10-13 .................................................................................. 105
Mateus 32:06-20 .................................................................................. 109
Mateus 36:10-15 .................................................................................. 116
Mateus 12:07-12 .................................................................................. 128
Inari 36:10-15 ....................................................................................... 132
Inari 36:10-29 ....................................................................................... 142
4
Mateus 36:10-29 .................................................................................. 149
Mateus 36:03-30 .................................................................................. 157
Mateus 36:04-18 .................................................................................. 165
Inari 36:11-01 ....................................................................................... 169
Mateus 11:11-11 .................................................................................. 188
Mateus 36:11-05 .................................................................................. 192
Mateus 36:11-12 .................................................................................. 198
Mateus 36:11-15 .................................................................................. 204
Inari 36:11-17 ....................................................................................... 215
Mateus 36:11-17 .................................................................................. 223
Mateus 36:11-08 .................................................................................. 235
Mateus 36:11-22 .................................................................................. 241
Inari 36:11-25 ....................................................................................... 249
Inari 36:11-26 ....................................................................................... 261
Juroo 111:05-30 .................................................................................... 273
Bibliografia. .......................................................................................... 283
5
Um livro dedicado ao Deus
que está em cada um de nós,
dedicado, então, a todos. Por
mim, por nós, para todos.
6
Quando eu pensei em escrever,
não imaginei que algumas folhas soltas do que
pretendia ser um diário poderiam se tornar um livro. Sempre
quis registrar as minhas experiências e com elas, segundo as
exigências da minha biografia – porque eu não consegui
encontrar ninguém mais interessante, ou seja, cheio de
problemas –, rememorar as principais divagações e torná-las
vivas mais uma vez.
Hoje, depois de quase dois anos, descobri
profundamente que sei que nada sei, cada explicação é seguida
de uma torrente incontinente de novas dúvidas, como se
houvesse cortado uma das cabeças da hydra. Portanto eu
assumi uma postura submissa diante do inevitável, porém o
inevitável começa a se parecer com o desejado. O medo, as
angústias, a raiva não passam de perturbações que criamos
7
porque não compreendemos. E não compreendemos porque
não temos todas as respostas. Por isso julgamos em vez de
discernir.
Estou tentando lutar contra ilusões criadas e mantidas
por minha mente. Causa e efeito que dependem
exclusivamente de uma realidade que não compreendo e que
defino segundo as minhas crenças.
Depois de reler o que escrevi, várias vezes seguidas,
comecei a entender o quanto nos iludimos com certas verdades
flexíveis, nos condicionamos a reagir às regras do jogo. Desta
observação, dos escombros do meu ego, tentando me
autoconhecer, deparei-me comigo mesmo. E fui ludibriado e
levado a acreditar que eu não era assim para que, ao admitir a
minha ignorância, tivesse que evoluir. Destas leituras e suas
impressões, hoje eu compreendo o quanto negava as minhas
inépcias. Só uma doença incurável poderia mudar isto.
Mateus Göettees, outubro de 2013.
8
Todos temos um compromisso com a verdade.
Esta verdade dependerá das suas escolhas e estará
intimamente ligada com às suas capacidades. Na verdade não
dependerá das suas capacidades pois elas jamais nos
impediriam de saber a verdade. O que nos impede de ver a
verdade, seja porque acreditamos que as nossas capacidades
são incompetentes ou porque a verdade está oculta, não passa
de uma ilusão.
A verdade é intrínseca. Somos nós que repetimos e
acreditamos que ela deve ser encontrada. Uma busca eterna
pelas respostas que sempre terão perguntas inesgotáveis. No
fim, a verdade jamais será encontrada enquanto acreditarmos
que o Todo é finito.
É uma boa premissa para que possamos evoluir,
aprimorar nossas capacidades e chegar sempre mais perto da
verdade. No entanto negligenciamos quem somos ao aceitar
que temos falhas a serem corrigidas. Proponho que, antes de
9
sair atrás da verdade, encontre quem você é. Submeta-se a si e
encontre as suas verdades.
Ao se recolher em si, um processo de
autoconhecimento dispara o gatilho da transformação. Esta
transformação ampliará a sua autoestima e esta auxiliará
progressivamente a transformação. Muitas ferramentas
poderão ser usadas como meio, são meios hábeis, para que o
conhecimento de si seja inimaginável. A meditação poderá ser
uma profunda concentração se quiser, mas também poderá ser
um exercício de discernimento.
A intuição e a inspiração serão bússolas tão poderosas
que farão a lógica e as leis humanas caírem por terra.
Os relacionamentos serão conexões.
O espírito controlará o ego.
Basta observar.
Tiago.
10
“Quando o Sol se derramar em toda a sua essência. Desafiando o
poder da ciência, para combater o mal. E o mar com suas águas bravias, levar
consigo os pós dos nossos dias, vai ser um bom sinal. Os palácios vão desabar
sob a força de um temporal e os ventos vão sufocar o barulho infernal. Os
homens vão se rebelar dessa farsa descomunal. Vai voltar tudo ao seu lugar,
afinal. Vai resplandecer, uma chuva de prata, do céu vai descer. O esplendor
da mata vai renascer e o ar vai ser de novo natural. Vai florir e em cada grande
cidade, o mato vai cobrir. Das ruínas um novo povo vai surgir e vai cantar,
afinal. As pragas e as ervas daninhas, as armas e os homens do mal vão
desaparecer nas cinzas de um carnaval”. Clara Nunes - As forças da natureza.
11
1944
“A piedade é a virtude que mais vos
aproxima dos anjos; é a irmã da caridade,
que vos conduz até Deus...” A piedade,
capítulo XIII, Evangelho Segundo o
Espiritismo.
12
à morte,
à tolice e ao orgulho.
Amanhecia sob a luz onipresente que se irradiava
através das nuvens lilases. E a longa aurora ainda se dispersava
entre alguns dos meus pensamentos mais perturbadores.
O céu de um azul intenso procurava se mesclar, no
horizonte, ao oceano que se esparzia brutal lançando-se aos
céus. Em ondas espumosas e brancas ela se debatia contra os
derradeiros penedos da terra-mãe. Para mim, estas costas azuis
seriam as primeiras comprovações de terra nada firme, uma
morada fragmentada pela cruz gamada que desprezava
infatigável, a tudo. E o vento zunia produzido por mim
enquanto o sol já se equilibrava nos quadrantes superiores.
Nada me levava ao desejo de contemplar a vida
letárgica logo abaixo, a alguns pés. Para mim ela estava se
tornando distraída e sem sentido, até mesmo eu, alguém que
13
diziam expressa-la além das expectativas da imaginação. Quem
poderia matutar que os apaixonados também se
esmoreceriam?
Por instantes retornei ao meu pequeno mundo
mecânico.
Os giros constantes dos motores de meu aeroplano
davam às hélices um aspecto quase tangível e o ritmo
monótono de seus roncos pareciam me hipnotizar. Os
instrumentos pareciam estar em ordem, com seus ponteiros
sempre nas mesmas posições de que tudo andaria bem. Os
controles reagiam ao leve movimento e as asas guinavam e
sacolejavam ao arrasto. Desta vez eles não estariam
endurecidos pelo frio das altas altitudes e nem a respiração do
cordão umbilical, opressiva.
E ainda dedilhava os mostradores só por precaução
cerimonial.
Em minha cabeça já não estava certo se os ponteiros
indicavam alguma precisão. Só tentava lembrar-me do meu
parco quarto arrefecido, onde as labaredas de um aquecedor
14
dançavam, me embalando em sonhos infactíveis.
Havia escrito cartas, muitas delas acabaram maiores e,
irrefreáveis, espalhavam ideias. Mas havia escrito muitas cartas,
algumas – inevitavelmente – para minha mãe. Contudo poucas
teriam tanto peso em meu destino quanto às que acabei de
pousar no console de minha escrivaninha.
Só eu quem as acabaria descobrindo.
Todo o peso da minha frustração engolia-me em
divagações incontroláveis. Um frenesi ensurdecedor causado
pela minha arrogância indiscriminada. Um poder inexistente
concedido pela voz, um sussurro sem rosto, que me
transformou em uma marionete das inépcias humanas. Eu que
podia levar os homens a chorar diante da ferocidade em que os
seus irmãos se mostravam. Uma empatia acolhida de simples
parágrafos de linhas negras. A vida sem cor que podíamos
absorver, chorar e esquecer sem sermos arrastados para
dentro.
Infelizmente eu era o criador que acabara devorado
pela criatura e amassado como os papéis que considerava tão
15
importante, jogado pelos cantos. Com sorte poderia aquecer
algum coração, mas os homens ainda não estavam preparados.
E a sorte seria se acabasse mantendo algum fogo acesso de uma
noite fria desta contenda.
Eu também não estava pronto.
A minha prepotência estava em me considerar a voz
acima das outras, a que lutaria por todos. Neste instante a
máquina despencou dentro de uma corrente de ar tirando-me
de minhas maldições. Como ninguém me atendia? Onde
estavam aqueles que me bajularam e em tapinhas depositavam
todos os seus prestimosos e incondicionáveis apoios? Que tolo
eu fui.
Derrotado pela minha ilusão.
Mais uma vez fui despertado pelo mundo real, parecia
que outra corrente me atirava para o lado. Porém senti uma
vertigem tépida. De minhas pernas escorria a vida. Guinei e
constatei que estava sendo caçado. Um pavor pelo qual jamais
me preparei. Estava voando muito baixo e logo deveria ser
como um reflexo para o inimigo.
16
Reagi conforme o medo, pensei que poderia escapar
pousando em terra quase neutra de Vichy. Dando-me sem
reação. Esmorecido pelo meu ego inflado.
Fui vencido pelos meus medos. Uma dor profunda
alimentava minha frustração, minha tristeza. Não pensei mais.
Abaixei o manche rumo ao mar da tranquilidade e no momento
do impacto temi a morte e pousei adiando o trauma.
Atordoado afundava devagar, mergulhando na
escuridão insonhável. O pavor respondia pela minha tentativa
de me salvar. Mas as pernas dilaceradas e a cabine travada
adiaram o inevitável. Morria apavorado.
Um suicida incógnito.
O herói da nação um covarde diante de sua maior
prova. Para os homens que leriam seu obituário, o maior entre
os maiores.
Um suicida. E ninguém jamais saberia.
Só eu e a minha consciência.
Em algum lugar, um porto seguro, um amigo esperaria
17
além do limite de suas esperanças. Acenderia outro cigarro
enquanto a noite despertava em estrelas de magnitude.
Com olhar inconsolado verificava as cartas enquanto
as recolhia para um bolso interno. Nelas estavam as minhas
últimas palavras para o mundo. Amargas e duras, quase uma
despedida.
Pude perceber que ele olhava para o alto e pensava
em pequenos planetas com um sorriso de garoto. Descartava o
cigarro e retornava para o seu gabinete aquecido, de labaredas
gentis e envolventes...
18
19
1
“Aqueles que passam por nós, não vão sós,
não nos deixam sós. Deixam um pouco de si,
levam um pouco de nós”. Antoine de Saint-
Exupery.
Inari 36:09-29
O vento galgava os prados com intensa mansuetude,
friccionando os seus corpos etéreos no campo florido que
crescia ao cume da colina desgastada. Dividia-se em línguas que
usurpava o templo, soando os guizos de algumas centenas de
proteções divinas. As bandeirolas se retesavam e emitiam um
halo de pigmento alaranjado que se impregnava nos monstros
20
invisíveis enquanto as faces pétreas das estátuas de raposas
eram avivadas pelo bailado de seus cachecóis vermelhos.
As lanternas japonesas eram fustigadas a engasgar-se
pela ferocidade da ventania que percorria os antros divinos,
irrompendo pelas frestas antes de se digladiarem nas florestas
eternas de bambus.
Com os olhos fechados sentia o estrondo e o
movimento destes dragões sibilosos e sinuosos. Antigos amigos,
originários do ar que brincavam com a terra, a água, o fogo e a
madeira. Despregavam o tecido de minhas vestes como se eu
fosse um navio em águas tormentosas. Um acariciar táctil que
dizia a mim que eu existia, onde quer que eu esteja.
Com os pés descalços fincados no manto verde
derramado, agitava as pontas dos dedos como se jamais tivesse
experimentado algo parecido. O tempo já se abeirava do ocaso
com nuvens lilases e sol em ouro velho. Poucas ocasiões seriam
tão demoradamente prazerosas quanto esta. Olhei para os tênis
com suas línguas de meias soltas enquanto alguns aldeões se
preparavam para algum acontecimento. A colina estava sendo
avivada pela liberdade de muitas pipas, empinadas por crianças
21
enfeixadas por quimonos coloridos. A animação fortuita
intensificava a paisagem que tomava as cores de uma gravura.
Era a hora de me despedir e caminhar ao encontro dos
meus demônios. A noite seria preenchida com cantos e risos de
festejos ao redor de fogueiras e contemplações de luz e
sombras em danças embriagadas. De crianças correndo em
brincadeiras que gostaria de correr e delícias devotadas aos
deuses do templo da montanha. Apesar disso estaria longe
demais para só escutar, carreado pelo vento, o instante em que
o vozerio adormecesse. Teria ainda alguns instantes sagrados,
observando o manto perfurado da noite, refletido no espelho
de águas límpidas de um lago, às margens de pedras à borda da
floresta mágica.
Mas algo em mim dizia que não.
Sentei-me aos primeiros degraus de madeira
acinzentada e primorosamente esculpida em seus encaixes
milenares. Pus os tênis assistindo uma criança se aproximar de
costas em vigília de sua acanhada irmã atrás de borboletas
caladas dentro do campo de flores do campo. Uma
circunstância imprevista por mim, para quem não sabia se
22
relacionar com alguém daquelas paragens.
Cumprimentei-o simplesmente balançando a minha
melhor cabeça cerimoniosa de costumes adversos e recebi um
sorriso. Devolvi o presente e subi pela escadaria já me
adiantando alguns passos quando recebi uma reprimenda.
― Não deveria pôr os pés no lugar mais sagrado para
nós!
Intrigado porque alguém havia falado comigo, girei os
calcanhares guinchando o plástico da sola e, boquiaberto, não
sabia o que responder.
Vislumbrei mais uma vez o vale, com sua cidade
despertada, viviam centenas, talvez milhares, de sombras
minhas. O mundo germinou da minha compulsão de me
conhecer melhor. Antes eu só ia até o lago. Aos poucos cunhei o
templo que me abrigava das ilusões perturbadoras.
Com aquela indisfarçável sensação de que não correria
até os intermináveis degraus de uma escadaria rústica,
bordejada por torii vermelhos em ideogramas indecifráveis, que
23
me levaria compulsoriamente até o lago.
Mantinha o olhar perdido, entre duas escolhas.
Decidi-me. Avancei dois passos e saltei algumas braças
para cair flexionado ao lado do averiguador. Não podia perder a
oportunidade de me exibir. Ele não se abalou com esta
demonstração pueril e desdenhou-me de face impassível.
― Quem é você?! ― como se eu não o soubesse, pelo
menos é o que eu supunha.
― Agora eu sou chamado de Juroo.
Uma resposta que fundia a dúvida de palavras ditas
com impressões minhas sobre aquela ficção. Eu me
experimentava muito bem em sua presença e o ato de que não
sabia exatamente como agir diante de quem tem uns treze anos
não me causava o constante nervosismo. E eu bem sabia o
porquê.
Voltei-me para o vale onde, a pouco, o sol se abrigava
por entre os picos mais altos. Que era serpenteado por um
riacho que se perdia de vista à oeste. Talvez a impressão breve
24
de que todos deviam viver como pescadores, com os seus
rostos abrasados, teria reescrito a paisagem. Agora o sol
mergulhava num eterno oceano, que engolia-nos em garras de
sombras em meio ao nevoeiro que se adensava no horizonte e
uma brisa úmida e salobra chegava até os meus sentidos.
Maravilhado cai-me de lótus.
Com o silêncio pude fixar os olhos em mim, melhor.
Estava esplêndido com a minha revigorada adolescência; cabelo
negro e mais comprido e liso que deixava alguns fios atacar a
minha fronte serena. Vestia um moletom leve de cor ocre
emoldurada por trechos escuros como admirava em usar algum
dia. Ele quebrou o silêncio; quase me esquecia de que as
sombras podiam me ver.
― Acredita mesmo que nós somos tão insossos? ― e
mirou-me fixamente por algum tempo que eu não soube
precisar. ― E como devo te chamar?
― Eu não sei. Sinto-me ridículo falando com...
― Aqui, todos te chamamos de Inari. E não me chame
de sombra de sua imaginação ou como gostaria de dizer, mas
25
supõe que eu não compreenda, de projeção do subconsciente.
Eu sabia que ainda me chamava Mateus, mas estava
escandalizado e muito apreensivo, apesar de me manter firme
diante dele. Com quem eu estaria conversando? Não era uma
subversão do que eu imaginava? Isto tudo não era nada mais do
que um tratamento para o meu espírito enfermo.
― Então o quê está se passando? ― certo de que em
algum momento entre a ideia e a criação, nascia a vida.
Curioso que você não a saiba, pois eu esperava que me
dissesse. ― comentava Juroo-kun.
Olhava para a menina saltitando por entre as flores
fartas enquanto pensava. Em minhas memórias renasciam as
formas daquele mundo, onde guardaria a profundeza de meu
ser. A mim, ou pelo menos àquele a quem eu seria. Um lugar
por onde eu corporificaria os meus desejos intensos de minhas
convicções perseverantes. Convicções que me assolavam como
ondas e pouco ainda me davam para o que refletir de suas
insinuações.
Em pouco tempo o santuário surgia e, em sua
26
ilimitada dilatação, um lago. As vilas abandonadas, como reflexo
do meu desmoronamento do espírito, seriam invadidas por
centenas de trabalhadores que seguiam estas novas convicções.
Precisava me restaurar das ruínas de mim mesmo.
Mas, mesmo antes de chegar ao fim, o garoto me
apontava sua ideia de liberdade através da menininha que já
corria sem sopro em risos eternos. ― Sabe, todos nós somos
partes de quem você é.
Sabia, porém eu não estava pronto para a verdade. ―
E como soube?
― Não somos tão diferentes assim. Sou sua melhor
parte. Esta que atingiu algo ainda mais elevado.
Estas pessoas que se afunilavam rumo às trilhas que
levariam para algum acontecimento insonhável, passavam
indiferentes por nós. Desconhecendo os seus destinos,
confiados às ilusões.
De olhar arqueado, Juroo-kun sempre deixava
transparecer sua dúvida. ― Que ilusões?!
27
Fui acometido de surpresa, pois não conseguia definir
o que era realidade ou ilusão. Não para ele, muito menos para
mim. No entanto percebi que a resposta seria dúbia para
aqueles que quisessem entender onde estão.
E ele sorriu concordando.
Ele estava me testando? ― Juroo-kun, você é a melhor
parte de mim?!
― A melhor, aquela que transcende todas as barreiras.
E o que considera o melhor de ti.
― Aquela que está unida ao Todo, que está acima. ―
divaguei em voz alta.
― Quer dizer, com Deus?
Não podia negar. ― Sim.
― E você também é uma parcela deste Deus?
Sorri. ― Sim, sempre. ― E só recentemente me dei
conta disso.
Estava me deparando com a parte de mim que atingiu
28
seu Todo, eu. Pois eu havia atingido o meu, Deus. E esta
revelação me deixou eufórico. Ele chegou à mesma afirmação.
― Somos aqueles que se conectam com que está
acima e...
Rematei, pois eu era o intermediário. ― abaixo.
29
2
“A probidade [integridade] nunca está
perdida para sempre, a menos que a
abandonemos... se ela parece desaparecer é
porque nós estamos perdendo a retidão de
nossa própria mente”. A Doutrina de Buda.
Mateus 35:11-12
Estava inquieto diante das voltas dadas pelo destino
que me colocou naquela casa de saúde. Pois eu mesmo não
saberia como nomeá-la, os residentes falavam em uma casa de
apoio ao paciente com câncer e doenças degenerativas, com
grifo de interesse meu. O primeiro vislumbre era de que estava
sendo enfiado num destes leprosários do século antepassado.
30
Quartos brancos, camas metálicas e asseadas preenchidas de
almas entorpecidas, contidas em seu desespero de gritar a
plenos pulmões. Contudo, todos estávamos por vontade e
coação de nossos egos em estertores.
O ego, que em aflição, digladiava-se entre perpetuar o
seu domínio sobre a alma ou destruir-se, por mais absurdo que
isto soasse. Provocado por doenças incontroláveis e incuráveis
que exigiam dele novos paradigmas. Um paradoxo que poderia
provocar o seu extermínio. Porém ele era mais forte do que
supunham, e sua aflição era quase injustificada. Os hábitos
sempre voltavam.
Caminhei vacilante. Anoitecia e a pouca luz parecia dar
ao lugar ares de lampião em casas sertanejas. Tomava um traje
com fresta nas costas e aguardava ser chamado. Não estava
preocupado, até aquele instante.
Fui assaltado de tremendo pavor, não justificado.
Compreendia o que estava acontecendo, conhecia o processo,
havia visto em mais de uma oportunidade o que seria feito em
mim. Mas jamais o havia experimentado.
31
Em poucos minutos seria submetido a uma cirurgia
espiritual. Como a doença distinguia-se como incurável, onde
mais eu encontraria uma esperança! Começava a ver o quanto
estava me enganando. Acreditei em médicos que nos dizem
aquilo que outros doutores perpetuam. Os médicos não passam
de técnicos – altamente especializados – daquilo que os
pesquisadores descobrem, desenvolvem ou supõem. Tão
somente baseado naquilo que consideram existir.
É verdade, sou espírita.
Acredito em todas as inépcias que a humanidade
apregoa. Senão, como eu acreditaria em medicina ou
tecnologia. Aceitar a versão da história das coisas e renegar a
fantasia que, sutil e ambígua, nos diz quem somos e molda
nossa personalidade por demais complicada.
O meu corpo estava definhando. Braços e pernas não
respondem mais aos meus apelos. Não sentia o meu mundo.
Estava enfaixado por substância imponderável que restringia o
meu tato. Órgãos internos agiam como autômatos, produzindo
as suas versões precárias de funcionamento, indiferentes ao
corpo e seus intricados mecanismos de equilíbrio. Excessos e
32
deficiências de glândulas e neurônios. Estava literalmente me
consumindo em banho-maria.
O coração palpitava desconfortável quando surgiu
uma mão amiga que, num apertar singelo, soube me
tranquilizar. O seu sorriso largo dissipou o temor que se
transformou em algo indefinível. Sentia-me como um enviado
que estava na linha de frente de uma grande descoberta.
Carregado por uma cadeira de rodas, fui levado até o
ambiente cirúrgico que era coordenado por alguns médicos sem
instrumentos visíveis. Certifiquei-me antecipadamente que não
haveria facas, bisturis, agulhas ou ferramentas pontiagudas ou
afiadas que me dessem a certeza de que não deveria estar lá.
Não suportava a ideia – nem cogitava imaginar – de
ter as córneas raspadas com faca de cozinha, mas acreditava no
poder da fé. Ainda que a minha estivesse sendo aperfeiçoada.
Tinha inveja de quem se submetia ao procedimento confiando
tão somente na providência divina. Eu já havia passado deste
ponto; sem retorno.
Cogitava repensar, confiança em quem?!
33
Não presenciei o momento mais importante de minha
existência porque estava de costas, com o rosto enfiado em um
travesseiro. E o tempo excepcionalmente ambíguo, como se
estivéssemos em um tempo paralelo, um instante quase eterno
que durou menos que um minuto. As impressões foram
intensas e intrincadas e, de todas as palavras que eu me
recordava, boas ou más, usei a mais inesperada para a situação.
A nunca dita e pouco ouvida, quase perfeita quando a expressei
por pensamento brusco e inaudível – assim pensei – que, em
frações de segundo, estagnou o vira e mexe que faziam por
toda a espinha, mais o bulbo e o cérebro desmielinizados.
Puta que pariu! – perdão pela expressão.
Rápida e impensadamente desculpei-me em
pensamento e os médiuns prosseguiram, sem jamais saber se
me escutaram. Foram as mais estranhas sensações que ficaram
marcadas por nenhuma dor e algumas cicatrizes que pareciam
ser costuras que eu senti passar por debaixo da coluna cervical
como se eu fosse feito de tecido preso à máquina de costurar.
Quis me levantar, e entendi o porquê da cadeira de
rodas. Como estava internado seria posto em meu catre com
34
relutância. Todos já dormiam.
Comecei a sentir as minhas mãos, esfregando-as
contra a barba cerrada em crescente euforia. Depois seriam as
pernas e pés contra o gradeado. Friccionado-os em tudo. Não
dormi. Também, não precisava mais.
35
3
“A realidade é eterna, a realidade não
adoece, a realidade não envelhece, a
realidade não morre; ao fato de conhecer
esta Verdade se diz conhecer o caminho”.
Sutra Chuva de Néctares da Verdade,
Seicho-no-ie. Masaharu Taniguchi.
Mateus 36:09-30
Abri os olhos.
Estava bastante sobressaltado para manter uma
conversação com Juroo-kun. Diante de mim um quarto modesto
me trazia segurança. Escrito nas paredes, um resumo das
conjugações verbais japonesas em kanjis e hiraganas que
36
insistentemente aprenderia, apesar...
E em realce, uma reprodução da gravura A Grande
Onda de Hokusai sobre uma parede lilás que eu não pintei para
mim, contudo eu gostei assim mesmo.
E aquela voz que parecia ter mais conhecimento, do
que eu mesmo, havia se fundido com uma sombra ocasional de
minhas mentalizações – ou visualizações – terapêuticas. Um
mecanismo que estava usando para fortalecer a ideia de me
curar, ou de suplantar o hábito que criou a doença. A autocura
através da voz pujante e vibrante de Divaldo – Pereira Franco –
em gravação introspectiva e in fraudem legis.
O lago se misturou com o exercício de criar um lar
para a minha Luz Divina, o templo foi se construindo a cada
nova cirurgia espiritual e, as cidades foram sugestões
imaginárias minhas para interpretar o assalto dos famigerados
Linfócitos T contras as células neurogliais que incansavelmente
protegiam os axônios com uma coberta – não tão generosa – de
mielina.
37
E assim os axônios eram aquedutos rompidos que não
chegavam às vilas mais remotas – pés, mãos – simuladas em
gênero e escala imprecisos. E os arruaceiros linfócitos não têm
culpa se confundem a mielina com algo indesejado para o
corpo, já que não deveriam estar no cérebro ou sistema
nervoso central.
Como um pseudoarquiteto comecei o saneamento das
cidades dando uma vontade incoercível às projeções do meu
subconsciente para que impedissem a destruição, lutando e
reconstruindo os canais. Se bem que elas – as projeções
imaginárias – nem façam ideia do porquê da súbita
manifestação de uma perseverança sem origem.
Estes eventos não foram minuciosamente aguardados
por mim e tampouco foram efeitos não-previstos de uma busca
intensa pelo autoconhecimento. Eu sou um doente de nenhum
recurso médico em vista.
Se eu sequer pudesse imaginar o que me aconteceria
em poucos meses, teria que rolar de rir. Jamais estive em busca
38
da verdade. – me conformava com teorias de conspiração. E
nem esperava por algo maior. – até a cura me era inalcançável.
39
4
“Não poucas vezes, por imaturidade, toma
decisões compulsivas e derrapa em estado
de perturbação; demarcando fronteiras e
evitando atravessá-las, assim perdendo
contato com as possibilidades existentes...
que poderiam definir os rumos”. Amor,
imbatível amor. Divaldo Franco.
Mateus 24:04-27
Um belo dia. Azul como jamais havia visto um.
Talvez fosse a ansiedade que me escoltava em minha
inspeção. Observei os encaixes das asas com os flaps e ailerons
com minucioso exagero, demandando um tempo muito acima
da média. Segui pela estrutura lonada da carlinga até os
40
profundores e bequilha.
O aeroplano era de uma aparência sofrível e devia ser
o desgosto de todo aeronauta. Mas para mim era a liberdade
encarnada mais extraordinária de todo o mundo. Uma sensação
que só experimentei por igual quando era criança, quando
embolsava uma tolice qualquer que arquitetava como o maior
desejo de todos os tempos. – até aquele momento.
Estava tão radiante que aquela observação demorada
servia para amenizar a minha impaciência. Sentia-me estranho.
Como se a saudade estivesse com os minutos contados.
Quando me inscrevi para o curso, buscava atropelar o
meu medo de dirigir – carros. Se eu pudesse executar um voo, o
quê mais me impediria. O que não mata, cura. O céu seria o
limite. E não era só isso.
O avião, em si, não parecia ser uma simples
coincidência. Sentia como se o destino estivesse me socorrendo.
Após averiguar o combustível, o instrutor sentou-se
atrás, sem visão dos instrumentos que seriam narrados por mim
por meio de aparelhagem de comunicação. Estava
41
experimentando os freios enquanto taxiava para uma das
cabeceiras. Executava curvas que me atordoavam e num giro
completo encabecei a pista livre.
Tagarelei para um controle de torre faltante e acelerei.
Os instrumentos, vários, tomavam a minha atenção quando
puxei delicadamente o manche para que o avião se alinhasse
imprimindo maior velocidade.
Quando percebi estava voando e vigiando
intermináveis instrumentos e ouvindo conselhos – exortações
cuspidas – para estabelecer voo de cruzeiro. A bússola girava
tão devagar que nem percebia estar me deslocando. O barulho
do motor era reconfortante.
De todas as reações possíveis que eu esperava sentir,
eu fui tomado de febril e incompreensível saudade. Sentia-me
muito além de minhas recordações. Uma sensação de percorrer
raides subsaarianos, mergulhar através dos contrafortes de
cordilheiras austrais e deliciar-me com lugares jamais
explorados.
42
Fiz manobras de aprendiz e retornei para o aeródromo
para um pouso por entre duas colinas. Parecia o buraco de uma
agulha.
A aproximação corria dentro dos parâmetros do
instrutor e eu não estava nem um pouco apreensivo. Estava
dentro do meu jogo. Quando estava para tocar no solo senti-me
tão seguro que, mesmo que o instrutor usasse o manche
auxiliar – e eu não o saberia –, deslizei suavemente. Eu havia
feito um pouso perfeito.
Não foi somente uma conquista mecânica, havia uma
sensação, uma emoção que jamais voltaria a provar. Eu sabia
que poderia voar sempre que eu quisesse. Transcendia o
tempo.
Contudo, ainda não conseguia dirigir.
E com o tempo encontrei um grande inimigo aos
pilotos ávidos, não conseguia entender as comunicações via
rádio. Nem o tempo melhoraria os chiados e ruídos. Mas o
43
problema era outro.
A providência se encarregou de me ajudar e o
aeroporto foi fechado para reformas eternas. Aproveitei para
desistir do impossível. Conhecia os meus limites e, quando eles
não se dilatavam me dando mais sobrevida, perseverar
representaria uma tolice.
Os céus já não eram livres. Tudo que havia para ser
descoberto já estava desvelado. Regras e mais leis que me
impediam de sonhar. Não precisava me apegar às recordações
que também doíam.
Amuado, somei esta frustração às que se seguiam.
44
45
5
“O mundo é como uma casa em chamas que
está sendo sempre destruída e reconstruída.
Os homens embaçados pelas trevas da
ignorância, desperdiçam as suas mentes na
ira, descontentamento, ciúmes,
preconceitos e paixões mundanas. Eles são
como crianças precisando de uma mãe...”. A
Doutrina de Buda.
Mateus 06:07-21 Narrado por Tiago.
Ele choramingava copiosamente.
E abraçado por uma noite festiva, cheia de doces e
crianças incansáveis, ele se afastou sem levantar a menor
46
suspeita. A dor quase o enlouqueceu.
Estava sozinho, – supunha – sentado sobre uma
mureta oculta na escuridão afastada de um bosque de
eucaliptos murmurantes. A alameda de seixos estava vazia e o
brilho opaco de alguns postes mortiços dava contornos mortos
às sombras.
― Não se angustie, ficarei por perto. ― Estava
ajoelhado com o braço sobre o seu ombro, consolando-o. E que
não percebia a minha presença.
Ao longe, a celebração de grandes letras acartonadas
chegava ao ápice com o exagero de palmas e assopros. Mateus
estava transtornado e em suas presunções de uma mente de
criança tentava assimilar o que estava acontecendo.
Levantei-me no aguardo de alguém que se
apresentaria como um anjo. Destes anjos que nos acompanham
por toda uma vida e além.
― Como foi o despertar dele? ― Não precisava
discorrer, Mateus deixava o conflito transparecer em seu rosto.
47
Era o fim de sua liberdade pueril.
Daquele dia em diante ele seria perseguido pelos
medos de outrora. Um esboço de quem era. Premido pelos
traumas, assim como pelas virtudes.
― Ele suportará esta decisão?
― Sim. Se os obstáculos forem bem implantados ele
será encaminhado... ― O anjo calou-se.
Aos seis anos, o garoto enfrentava o despertar de sua
consciência que, nesta idade, poderia ser bastante adaptável.
Porém, em alguns casos, se houver necessidade, ríspida e
atordoante.
De um dia ao outro se tornou tímido e desconfiado.
Receoso das intenções dos outros, incapaz e amedrontado
diante dos problemas diários. A graça que toda criança parece
possuir, se desfez em artifícios que moldariam o seu novo ego.
Havia um desígnio por trás de tudo.
Estes escopos morais cerceadores o abraçariam,
restringindo um suposto livre-arbítrio com a finalidade de
48
atingir o seu alvo. O livre-arbítrio do espírito, que está acima das
vontades do corpo e da mente. Porque Deus é perfeito.
Tão esquematizado e aguardado que nenhum
obstáculos chega a gerar frustração. Ou que ela seja dosada e
dominada para os fins do espírito.
― A sua singular vantagem é que está ciente de suas
falhas. Assim como de suas conquistas. E as está aplicando a seu
favor. ― o anjo se dirigia a mim. ― Mateus só não deseja
reproduzir os mesmos erros.
― Tenho receios. ― disse.
― Por isso que ele vai dominar-se, através de inserções
que reprisarão os fatos mais obscuros do seu passado de forma
a fortalecer o seu espírito obliterado neste estado ilusório. ―
Precisamente quando estava encarnado.
Ponderei que em minha ignorância havia concordado
com Mateus antes de seu renascimento. Havia tanto o que
fazer, entretanto, desta vez, ele estaria a par das suas
obrigações espirituais. Menos daquelas que nem um anjo
49
poderia calcular.
Observei Mateus por mais alguns instantes, seria
nosso primeiro afastamento em seis anos. Ele parecia não
entender os sentimentos que o assolavam. E com sua pouca
ideia do que se passava, medo da tolice falaz e do orgulho
delirante, pensou que sentia raiva ou angústia ou
incompetência. Ele olhou para a balbúrdia e projetou-as. Ele
não conseguia definir este algo que o engolia vorazmente. E
recolheu-se em sua ignorância infantil pensando que estava
com ciúmes.
Lá no fundo ele sabia que não era isso.
Só não sabia explicar o quê.
50
51
6
“Se conhecerdes que todos os seres vivos
são entre si irmãos, que todas as vidas são
entre si irmãs, que, sendo indivisíveis, as
vidas todas são um só corpo, que Deus é pai
de todas as vidas, nascerá
espontaneamente em vós o coração que
ama e exulta”. Sutra Chuva de Néctares da
Verdade. Seicho-no-ie. Masaharu Taniguchi.
Inari 36:10-01
Não queria uma meditação.
Bastaria fechar os meus olhos e me encontraria no
templo. Olhei por toda a volta e admirei o promontório que se
entrecruzava numa das passagens do bosque. Se eu seguisse
52
pela trilha acabaria regressando ao lago. O meu destino era
outro, ascender à escadaria dos torii e descortinar os jardins de
areia com suas linhas paralelas e precisas enquanto um monge
meditava às sombras de grandes cerejeiras em flores.
Para o meu espanto, o templo não estava ali.
Uma grande soma de toras de madeira, pedras e
artífices bailavam dando os esboços de um lar inexistente. E
para o meu espanto, o monge meditava distraído do ambiente
caótico. Só se manifestou por pressentir a minha chegada e,
com acenos insistentes, chamou-me para junto.
O velho tinha a mais comprida barba que eu jamais
vira. E sua cabeça enrugada estava pontilhada de manchas de
decrepitude adiantada. Assim como os olhos – que eram
naturalmente semicerrados – que quase não deixavam se ver
através das pálpebras serenas. Ele se ajeitou em sua túnica azul
ensanguentada chacoalhando suas contas de um marfim
amarelado pelo passar dos anos.
Mantinha estas impressões enclausuradas em mim
com medo do cajado a tiracolo.
53
Ele sorriu e eu pude distinguir a singularidade daquele
reconhecimento anacrônico. Retornei os olhos para a criação do
templo e supus que presenciava o princípio. Quando na verdade
era o seu extremo oposto.
― Juroo-kun, é você? ― Não sabia se devia lhe dirigir
um título de respeito ou menção ou curvar-me diante. Isto
também não me agradou.
Ele acenou cerimonioso e eu caí aos seus pés.
― Mas o quê aconteceu ao templo?
Suspirou e vacilante prosseguiu. ― Foi destruído e sua
construção segue conforme a sua vontade.
― Por quê? ― Ele balançou os ombros me achando
divertido. Eu estava encabulado e, àquela altura, não adiantava
me entender. Se eu queria respostas teria que as encontrar
dentro de mim. E como já estava lá...
― Parece que se passou toda uma vida.
― Obrigado pela oportunidade de toda uma vida. ―
senti os meus olhos se encherem de lágrimas. ― Por se fazer
54
visível todos os dias de minha vida.
Mal sabia ele que este era o segundo advento ao
nosso mundo. ― Por que você – ainda o consideraria um filho –
diz que estou presente a cada segundo de sua vida?
― É o ar, as árvores e as águas. Os animais dos três
elementos, os homens e o conhecimento. É o nosso deus. ―
Juroo-sama deve ter percebido o meu espanto e não parecia
decepcionado. ― Recorde-se, tudo é parte de quem você é.
Este mundo é uma imagem de mim?! O tudo e o nada
que constitui o meu ser, pensei rápido.
― Este vilarejo, assim como tudo que nós apreciamos
pelos nossos sentidos, é sua mente despedaçada em frações
inacessíveis às criaturas de seu mundo. As pessoas são
expressões únicas de seus traços basilares e suas interações
formam um todo que você chama de personalidade. ― Tossiu
sem que eu me manifestasse. ― Se você nos observar e
entender como somos, compreenderá a si.
Se eu compreendesse aquelas sombras, estaria me
conhecendo melhor, mas como? Passei um tempo observando
55
os vários personagens daquela terra e percebi que elas
apresentavam certas peculiaridades que eu não considerava
minhas. Eu já as tinha visto em outras pessoas da minha
realidade, contudo as pequenas criaturas atarefadas em
trabalhos cooperativos de erguer as imensas traves eram
frações, partes, parcelas de mim. Devia tomar consciência desta
realidade.
― Eles não se parecem em nada comigo.
― Eles são você. Existem fragmentos em nós que não
queremos admitir e isto faz toda a diferença. ― e ele sabia que
eu agora tinha a resposta, pois ele acabava de desvelar a sua. ―
Existe dentro de si o bondoso, o socorrista e o caridoso.
― Assim como o malvado, o rabugento e o egoísta. ―
tinha que o admitir. ― O carrasco, o ladrão e o assassino. O
adúltero, o infame e o covarde.
Juroo-sama arrematou com bastante ênfase ao último
vocábulo. ― E o sublime, o corajoso e o iluminado.
Nada havia me preparado para o que concluí com o
auxílio do meu monge, ou de mim mesmo, do meu melhor
56
fragmento da minha personalidade.
― Creio que, como projeções que somos de sua
mente, não somos tão perfeitos como me sugere a sua reação,
mas para mim a perfeição é expressa pela oportunidade de
compreender que, mesmo sendo um sopro, eu consiga divisar
a sua realidade, a realidade de Deus e de tudo. A verdade não
está escrita em palavras. Os meios para se alcançá-la, sim.
Se eu podia apreciar as partes de mim, as suas
conexões e relacionamentos, e ainda me espantar com o fato
de elas criarem um mundo similar ao que julgava caótico. Em
que nós, a expressão do egoísmo e do orgulho, sequer tínhamos
consciência de que somos partes de Deus, assim como as
sombras, o que aconteceria se alguém rompesse esta barreira.
Eu percebi o que Juroo-sama queria me dizer. Tudo
ganhava um novo senso. Eu sabia, só não sabia. Um livreto, que
eu considerava um dos meus muitos oráculos de cabeceira,
contou-me e somente agora eu ouvi.
“A verdade para a qual deveis vós despertar
primeiramente é o fato de que a essência do eu é unicamente
57
Deus. Sabeis vós que a infinidade de almas humanas são todas
reflexos do Espírito Divino Único. [...] Deus é a fonte luminosa
do homem e o homem é Luz emanada de Deus.” E eu que
justamente não entendia estes escritos religiosos carregados de
sutilezas, para descobrir que sempre foram claríssimos.
Faltavam-lhes, aos seus escritores, palavras para descrever
impressões indescritíveis.
Somos partes de Deus.
Estamos unidos a Ele, sem que nós precisemos de
subterfúgios ou orações extrínsecas. Ele está em nós. Bem
dentro de nós. Só nos basta experimentar.
E todos nós estaríamos unidos aos outros fragmentos
Dele. Eu estava conectado a todos. Éramos mais do que irmãos.
Por falta de vocabulário, irmão seria o que mais se aproximaria
de nossa ideia de comunhão ou relacionamento entre as partes.
Deus era como uma vela em chama e nós, o reflexo de
58
infinitos espelhos, não seríamos desiguais, no entanto, ainda
assim, reflexos. E como luz emanada, onde terminaria a minha e
onde começaria as dos outros? Será que estávamos realmente
separados.
Ergui pensativo e andei a esmo.
59
7
“O sentimento é a linguagem da alma. Se
quiser saber o que é verdade para você em
relação a alguma coisa, veja como se sente
em relação a ela. [...] O pensamento mais
elevado é sempre o mais alegre. A palavra
mais clara é sempre aquela que é
verdadeira. O sentimento mais nobre é
sempre aquele que chamam de amor”.
Conversando com Deus I, Neale D. Walsch.
Mateus 36:10-04
Eu acredito que as boas recordações são como
programas que corrigem e reescrevem a nossa programação
original que se constitui do emaranhado de funções sinápticas
de nossos cérebros, das conexões extrassensoriais entre corpo e
60
alma, das implicações psicológicas do(s) ego(s) e dos problemas
que consideramos insolúveis – pelo menos para nós.
E uma dessas recordações se perde num passado tão
distante que é constituído de fragmentos nebulosos. Um
devaneio renovado por objetos que sobreviveram por um
tempo suficientemente propício para que resistissem em minha
memória de recordações mais firmes. E é possível que estas
lembranças tenham criado novos contornos, sobretudo a
sensação primordial e instintiva que sobrevive e se soma à
personalidade. Nada é por acaso.
E é esta memória que tenho de Cosme e Damião e
outros santos.
Mateus 05:10-04
Anoitecia bem rápido.
Para chegar lá eu tinha que atravessar um túnel
61
enorme e escuro. Era molhado e manchado. Cheirava roupa
velha. Quando terminava, sempre correndo para que ficasse o
menos possível, via uma escada que não terminava nunca.
Tinha dificuldade de respirar porque os degraus eram
enormes. Molhados e manchados. Eu pegava na mão dos meus
pais para não me encostar à parede enorme, molhada e
manchada também.
Antes de entrar, a porta já estava aberta e muitas
pessoas se espremiam. Olhei em volta e lá estavam os vasos de
plantas assustadas e outras fedidas num canto feito de cacos de
azulejo vermelho. Não era enorme, nem tão molhado.
Havia música. Esquisita e interessante.
Mas eu não enxergava direito o quê estava
acontecendo dentro. As pessoas estavam de pé e eu só queria
ver um pouquinho. Apertei-me e empurrei pernas e bundas até
chegar lá.
E era maravilhoso.
Um homem tocava um atabaque. Tinha aquelas
62
plantas assustadas e flores espalhadas. Duas estátuas grudadas
com meninos de capas vermelhas e coroas ficavam num
aparador cheios de pacotinhos que eu sabia que eram de doces.
Nem dei importância para os meus avôs. Deixei que
eles continuassem engatinhando de roupas brancas. Só quando
começaram a falar como criança é que eu percebi que a vovó
estava de chupeta.
Estava tudo tão maravilhoso que eu queria bater
palmas, mas estavam todos sérios e carrancudos. Na verdade
estava ansioso para que tudo terminasse logo e pudesse ganhar
o saquinho de doces.
Aborrecido, e como toda a pressa é castigada, ainda
tropecei num taco solto quando tentava receber o meu pacote.
O chão machucava e olhei para uma bunda enorme...
―
Talvez tenha sido uma das últimas vezes em que os vi
assim, depois eles passariam a ser iguais aos outros avôs. E as
recordações estranhas, que se tornaram tão prosaicas para
63
mim, também tinham origem na segunda avó.
―
Vovó estava apressada. Trocava-se com pressa sem se
descuidar dos pós e batons. Eu tinha medo daquele quarto que
escondia um monstro dentro do armário. Ela o chamava de
peruca e ficava numa cabeça de isopor sem olhos, nariz ou boca.
E mesmo assim ela nos encarava.
Corri para o outro quarto para pegar a camiseta,
olhando demoradamente os santos e as velas postas sobre uma
cômoda com tampo de mármore. Aqueles badulaques não
deviam existir quando o quarto pertencia ao meu pai. Gostava
da cama de molas e do cheiro do ramo seco de arruda na
fronha.
Ela me ajudava a vestir a camisa que tinha gola
apertada e que quase me arrancou as orelhas. Partimos de
carro. Eu lia as placas com o nariz colado no porta-luvas
achando que ela não enxergava bem. Também era noite e eu
estava ansioso porque sabia aonde íamos.
Estava cheio de gente, sentados em bancos de
64
madeira. Como sempre nos sentamos onde eu não conseguia
ver nada. O tempo era interminável.
Vez ou outra eu me levantava e sentava, pois deitava
no banco querendo dormir quando acontecia algo diferente.
Uma mão flutuava no ar segurando uma rosa sobre as nossas
cabeças. Cansei-me ansioso com o fim.
Por fim houve palmas e música e então, o momento
mais aguardado. Pipocas eram arremessadas sobre nós e caia
ao chão. E eu tentava catar todas e enfiar na boca, inclusive as
do chão.
―
Com o tempo percebi que estas coisas não eram nada
normais. Porém são exatamente estas – e muitas outras –
lembranças que permitem que eu entenda o planejamento
espiritual e o aceite com bastante passividade e amor.
Lamentavelmente, como efeito colateral, tenho pavor dos
rituais católicos, de gente com togas e túnicas e chapéus
esdrúxulos.
E até pouquíssimo tempo guardava as minhas roupas
65
no mesmo guarda-roupa em que a peruca ficava me
afrontando. Não acho que a minha infância tenha sido
preenchida de fatos bizarros e incongruentes, é uma questão de
hábito. Quando crescemos, temos a tendência de julgar nossos
atos de criança, e fico feliz em não achar falhas. – se bem que
ainda não entendo a razão pelo qual derramei carrinhos de
plástico para brincar em um açude na praia de pedra.
E são estas memórias infantis que me suscitam a
confiança de que todos nós passamos quase toda uma vida
buscando esta sensação de liberdade, de ingenuidade e de uma
profunda felicidade pelas coisas mais simples.
Na simplicidade de perguntar e ter respostas claras.
Amizades com disposição tola. Sem maldade e cheio de
vitalidade. E Jesus ainda declamava para que lhe deixassem vir
às criancinhas.
66
67
8
“Neste mundo há três errôneos pontos de
vista: Diz-se que toda a experiência humana
baseia-se no DESTINO; afirma-se que tudo é
criado por DEUS e controlado por sua
vontade e; que tudo acontece ao ACASO,
sem ter uma causa ou condição.” A
Doutrina de Buda.
Mateus 36:10-07
Um sopro talhante dilatava os ruídos de artefatos
sempre emudecidos, que são sempre suprimidos pelo turbilhão
de almas acéfalas. Apreciava o skyline com impassibilidade
mórbida, estava me escondendo dentro de mim.
― Hum! Lugar bastante interessante. ― ouvi-o por
68
detrás e muito mais perto do que sonharia, arregalei os olhos,
surpreso. Girei a cabeça com cautelosa lentidão para
demonstrar a minha indignação com a intromissão, e assim
disfarçaria o medo de olhar quem era. O aspecto era
indisfarçavelmente óbvio, ou seria outra projeção de minha
mente fértil ou um anjo...
―... Da guarda. ― ele concluiu para o meu azar, e por
este mesmo azar, também lia pensamentos.
Agachou-se ao meu lado no largo dissimulado pelas
sombras geométricas projetadas pelas pernas da torre Eiffel. ―
Pensei que, pelo menos aqui, eu poderia ficar só.
― Muito interessante. Paris assim tão deserta, você
aumenta a percepção de isolamento e solidão. ― E era
primavera em Paris.
― Então, esse era o meu desejo até você aparecer. ―
nem o conhecia e já estava despachando. Quem era ele?
― Sou só um amigo. Esperei trinta anos para que
pudéssemos ter este bate-papo. E por que você escolheu este
69
lugar para se esconder?
― Deite-se! ― fui ríspido e direto. Não estava com
ânimo para uma conversa franca. Precisava descansar a minha
cabeça que queimava – literalmente – com as inflexíveis e
infatigáveis impressões colhidas no Templo da Montanha e que
suscitavam ininterruptas novas perguntas nos breves instantes
que eu poderia chamar de tranquilos.
Observando a torre por ângulo jamais cogitado, de
pernas dobradas e mãos à nuca dei-lhe a solução. ― Nos
mapas, um X sempre marca o local do tesouro. ― e eu
acreditava que este seria só meu.
― Até mesmo deprimido, as suas ideias são
inusitadas. Mas eu também estou vendo um pouco da sua
arrogância e soberba. Precisava de um local para meditar que
fosse do tamanho de uma cidade? E ainda assim fez questão de
evacuá-la?
Estava tão desanimado que aquela advertência não
estava totalmente errada. Olhei mais uma vez para os edifícios
mortos e aceitei a minha altivez. ― E por que você está aqui?
70
O rapaz, vestido como um anjo pós-moderno, com
jeans alvíssimo e os tênis mais gastos da eternidade, sorriu com
a deixa. ― Promessas devem ser cumpridas. E vou aproveitar
para confirmar algumas de suas suspeitas e esclarecer outras
questões já em ebulição.
Ainda estava deprimido.
― E como vou saber que não estou em outra
discussão acalorada com uma das minhas personalidades
autônomas, correndo atrás de meu rabo? ― comparação
horrível.
― Em duas ocasiões eu me mostrei de forma
incontestável. Após a cirurgia eu afirmei, conforme as suas
dúvidas sobre a abrangência de Deus, que toda a ação do mal
passa pelo crivo da bondade dEle.
― Levei um tempo para entendê-la. ― e era bem a
verdade.
― Após um tempo, eu te chamei de autocrata. ― ele
queria gargalhar. Aborreci-me por causa do sentido em que a
palavra foi articulada, em tom bastante espirituoso. E eu nem
71
sabia o que ela significava.
No dicionário eu sou o governante cujo poder é
absoluto e independente; que exerce seu poder sem partilhá-lo
com outros, impondo-o de forma arbitrária e tiranicamente. E
de uso pejorativo. Resumindo, pior que um presunçoso
arrogante vivendo em seu mundo de fantasia.
― Foi só uma expressão de linguagem para reforçar
os seus desejos.
Decididamente ele tentava me confortar com
respostas vazias. O que ele poderia me dizer que eu já não
desconfiava? Assim eu acabei descobrindo o seu nome, um
deles. ― Tiago, mesmo entendendo em parte o processo,
aceitando as novas diretivas, eu não consigo repetir o evento. ―
Me referindo ao Evento Pós-Cirúrgico que praticamente apagou
os meus, já consolidados, modelos do meu ego sobre as
interações que governavam a minha vida, uma nova matriz que
ia contra as que eu tentava domar.
Ele pôs a mão ao queixo. ― Aquelas respostas,
sugeridas pelos textos que você elegeu, não foram
72
coincidências. Nada é por acaso. E o caminho não poderia ser
direto, você ainda precisava amadurecer alguns conceitos...
― Foi o que pensei quando comecei a receber
respostas absurdamente claras às dúvidas. ― e como elas
provinham de várias fontes estranhas. ― E sempre serviam de
ponte para questões mais complexas.
―... Completas. ― Tiago pediu que continuasse.
― E o quê tinha acontecido? ― Por onde começar?
― Se a vida fosse uma autoestrada de cinco pistas, –
como todo bom mestre faria, uma parábola, uma fábula
mecânica a La Fontaine – quais seriam as suas escolhas? Carros
nas pistas da direita teriam vários desvios e paradas e sua
viagem pela vida, compartimentada. Carros à esquerda teriam
viagem mais veloz, com o risco de acessar um retorno. A viagem
mais rápida, tranquila e eficiente seria o...
― Caminho do meio! ― Nem Buda teria imaginado
que as suas lições se transformassem em tábuas asfálticas. ― E
o que você quer me dizer com...?!
73
― A vida é como esta estrada.
Supus. ― Pré-definida?! Destino.
― “Se assim fosse, todos os planos e esforços para a
melhora ou progresso seriam em vão e à humanidade não
restariam esperanças. Tudo acontece ou se manifesta tendo por
fonte uma série de causas e condições”. A vida não é o carro e
nem o roteiro. Mesmo que siga pelo caminho do meio, o carro
precisará de combustível – e até substituições. Seguir o caminho
do meio exige muita disciplina para que os reabastecimentos
sejam os menos prejudiciais para a viagem. E também implica
que você conheça a estrada e seus desvios, retornos e paradas.
― Com qual objetivo? ― As árvores da esplanada
farfalharam ensurdecedoras.
― Evitar acidentes é um deles. ― Tiago estava
esquentando os motores. ― O caminho do meio não é como
uma ideia do trajeto, descrita pelos que se consideram sábios.
Nem Buda se atreveu a tanto, ele acreditava que somente
conseguiria a Libertação após a morte, o Nirvana.
74
― E quem sabe o caminho, pode me dizer?
― Aqueles que têm consciência de todas as suas
qualidades e defeitos. Que conhecem cada pedaço da estrada e
conseguem criar o caminho do meio, isto é, o melhor traçado
considerando as ferramentas à sua disposição.
Pedi tempo com as mãos em frenesi. ― Então não é a
pista central? E de que ferramentas você está falando?
― Hum. Pensam que alcançar o melhor traçado
depende de evitar todos os problemas e isto é impossível. Mas
minimizar já é outra história. Centrar-se em evitar os defeitos e
deficiências em prol das virtudes e qualidades, os tornam
incompletos. O que lhe aconteceria se o sofrimento, o ódio, a
cobiça e demais tolices jamais fossem experimentadas? Como
saber se é salgado se nunca experimentou o doce? ― Precisava
ser mais específico. ― O desejo do sábio é conhecer e
experimentar tudo para que domine os excessos.
― E as ferramentas? ― Ainda estava pensando no
controle dos excessos.
― Existem várias, lembre-se nada é por acaso. Nem o
75
tipo de asfalto, o pedágio, as placas. Estas últimas são as mais
claras indicações de caminho. Quero dizer, nós as conhecemos
por sonhos – e em casos extremos de presságio, premonição,
cognição, vidência e etc. – e como eles não nos parecem tão
óbvios como as placas de trânsito, costumamos ignorá-los. As
sinalizações indicam as condições da estrada adiante. Preveem
o futuro.
― Entretanto existem outras ferramentas...
Tiago percebeu aonde eu queria chegar. ― Quando
desejamos seguir o melhor traçado, muito planejamento reduz
os riscos e prevê possíveis problemas de viagem. Este
planejamento pode ser descrito pelo controle dos excessos, não
é preciso correr para chegar a tempo no destino. Nesta viagem é
certo que todos chegaremos ao final. Eu gosto de exemplificar
que o planejamento é como um estudo do caminho que chega a
ponto de antecipar as sinalizações. São sentimentos mais fortes
do que um sonho poderia sugerir. É a matriz da mente
inconsciente. O planejamento, quando bem executado, poderia
fazer um cego dirigir.
― E como eu percebo isto? ― Sabia a resposta, porém
76
precisava saber como ela se encaixaria naquela fábula.
― Se já decorou o traçado e não quer sofrer
interferências que lhe prejudique o raciocínio, que não lhe tire a
concentração, – porque homem não pergunta mesmo – você
deve resolver os problemas assim que eles apareçam.
E como fica o destino? Pensei alto.
― Não há destino, o livre-arbítrio pode indicar os
caminhos, mas o destino sempre será um. Portanto ele é
irrelevante. Quanto mais excessos são subjugados pela sua
vontade, maior será o seu esclarecimento.
― Hã.― acho que não entendi.― Existe ou não existe
destino?
― Sim e não. Bem sabe que a ideia comum é que nos
unamos a Deus, portanto este destino é imutável. Contudo
temos objetivos, ou etapas, que são como um planejamento e se
parecem muito com um destino. ― Tiago parou por uns
instantes, e penso que ele percebeu que eu estava tentando dar
outra designação à palavra destino. ― O destino que você
compreende e aceita seria mais bem compreendido se fosse
77
nomeado de desígnios. E eles variam conforme as mudanças de
trajeto... É impossível manter um plano original, por isso é
impossível produzir um destino.
― Por quê?
― Causas e condições que dependem de muitas e
muitas variáveis. Não está sozinho na estrada, os outros carros
podem e interferem nos seus desígnios, obrigando-o a tomar
outros caminhos.
― Como? ― como uma criança.
― Tudo afeta os seus desígnios. Seu planejamento
depende de suas respostas aos eventos não previstos – que é
uma ilusão – e quanto mais experiências, melhor será o seu
retorno ao plano original. Você está desconsiderando o mais
importante.
― O quê?
― A estrada, o planejamento, o carro, as placas, a sua
interação com os outros usuários desta estrada, – e até os
atalhos que eu ainda não mencionei – não são importantes
78
quando percebemos que eles são mecanismos que geram as
experiências.
― Quer dizer, conhecimento? ― generalizando como
o certo.
― Não, experiências. O conhecimento é intrínseco a
todos os espíritos – ou almas.
Oportunamente começaram a surgir pessoas na
cidade das sombras. Nós precisamos nos levantar para não
sermos pisoteados. A minha imaginação estava se esfacelando
e eu já não conseguia impedir as suas tentativas de me afastar
daquele diálogo.
Tiago me olhou com compreensão. ― Teremos outras
oportunidades. ― Sabendo que eu não queria permanecer no
assunto por causa da minha intervenção subconscienciosa com
a vinda de milhares de parisienses.
Cheiros invadiam o ar com sabores de vendedores
ambulantes e já não era possível ouvir os pássaros encobertos
pelos ruídos dos carros nervosos.
79
― E ainda tem mais, não é possível que em uma só
vida você consiga percorrer toda a estrada.
Porém eu estava curioso. ― E os atalhos?!
80
9
“A realidade é eterna, a realidade não
adoece, a realidade não envelhece, a
realidade não morre; ao fato de conhecer
esta Verdade se diz conhecer o caminho”.
Sutra chuva de Néctares da Verdade ,
Seicho-no-ie. Masaharu Taniguchi.
Mateus 36:10-10
Joguei-me na cama com olhar inexpressivo nas
imperfeições do quarto. A brisa de um inverno alongado de
primaveras sufocantes dava a impressão que as meias-estações
não existiam mais.
Creio que descobri um bom local onde eu poderia
estar completamente só – sobretudo com a porta às sete
81
chaves.
Por vezes inda ouvia alguém tentando me levar à
alienação. E como as conversas difíceis sempre me tiravam do
ar, estagnei a mente em futilidades. As conversas, e ainda mais
aquelas que me fazem pensar, dando nova formulação aos
meus mais básicos, perfeitos e indiscutíveis conhecimentos,
surpreendiam-me. Surpreendiam-me porque tudo muda sem
que nada mude.
É o mesmo que um copo meio vazio ser um copo
meio cheio. Um ponto preto ser menos – ou mais – formidável
que a folha de papel que o criou. Deus ser o Tudo e
especialmente o Nada.
É dificílimo não reagir aos acontecimentos. Quem eu
estou enganando além de mim mesmo.
E é quando eu penso que estou atingindo novas
metas, e anjos ou projeções começam a me dar sermões na
montanha, que desisto destas divagações. Por onde eu me
desvencilho deste drama psicológico.
― Não tem mais volta.― uma voz na cabeça teimava
82
em continuar o diálogo.
Por que eu não podia ficar só? Esta era a minha
realidade e se Tiago for outra sombra, que se cale no meu
subconsciente superativo.
― Eu nunca desisto. Não importa se você não
consegue superar as intervenções do seu ego. A sua
personalidade deve reagir, é a sua natureza.
― E como eu fico? Saltando de um estado emocional
para outro? Exercendo a compaixão incondicional para, em
seguida, reclamar, espernear e esbravejar? ― e já estava
conversando com ele.
― Ninguém está pedindo que você aja diferente.
Quem está se enganando é você. ― cheiro de baixa autoestima.
― Só tem que controlar os excessos e pensar e experimentar.
Pois não existe um só dia de sua existência que não tenha sido
admirável, ou ainda acredita que somos intenções da
casualidade?! Eu afirmo que estou aqui.
Suspirei aliviado, há ocasiões em que queremos estar
sozinhos. Outras em que seria bom ter um ombro amigo. E eu
83
confiava nele. ― Assim mesmo eu suponho que você não passa
de uma ilusão e estas conversas sem sentido. Acho que estou
correndo em círculos, já te disse.
― Nem vou perder tempo discutindo! ― Tiago estava
exasperado.
― E anjos têm raiva?
― Muita. Somos estúpidos e idiotas quando temos que
guiar pessoas que não chegam a se decidir. Em outras situações
somos obrigados a admitir que sempre seremos assim. ―
respirou fundo, pelo que pude supor. ― Qual é a sua versão de
mim?
― Que anjos têm raiva. E não gostam de quem não
persiste.
― Mateus, você realmente está com medo?
― Sim.
O silêncio perdurou por mais alguns minutos. Tinha
que admitir, mesmo que ele fosse uma projeção, – uma fantasia
84
– possuía uma confiança que eu não tinha.
Nuvens negras me assolavam. Uma tempestade de
granizo começou a despencar.
― A satisfação pessoal deve começar pela superação,
mediante rigorosa autoanálise das realidades reais com as
aparentes. Não é possível extinguir o ego se quiser permanecer
consciente diante das provas.
― Por que não confio em mim?
Tiago complementou.― A preocupação é a porta de
entrada para os medos...
E mesmo ciente de tudo, deixava-me levar pelos
acontecimentos prosaicos que sempre preencheriam e
ocupariam tudo o que fosse presumível. Cada brecha de uma
mentalidade entulhada por pensamentos ilusórios que seriam
como combustível para o fogo das paixões humanas. Eu até
conseguia ver além das aparências, mas mesmo assim, nada
conseguia fazer para recriar o Evento.
E eu sabia a fórmula para recriá-lo e dependia tão
85
somente de disciplina. Todas as religiões, seitas, filosofias,
doutrinas e ciências também a conheciam, apesar de
empregarem linguagens diferentes e não divergentes. De
quantas maneiras diferentes é possível contar a mesma estória?
Tantas quantas quisermos.
E elas se adaptarão ao gosto do leitor.
Tinha que recomeçar o mantra. Para cada vez que eu
fosse atingido por uma perturbação, recorreria ao bordão.
Advinha algo repentino ou perturbativo e eu estava pronto para
esclarecer – a mim – que Deus era o princípio de tudo e a causa
primária de todas as coisas.
Com o tempo esta frase se sintetizaria em que Deus é
perfeito.
Um amálgama de julgamentos que dariam a entender
que eu estaria desesperado ou, insanamente se agarrando a
todos os santos, seitas, ervas, milagres e patuás.
A verdade é muito mais pura, o caminho nem sempre
seria revelado por fórmulas, métodos, evangelhos, ou tábuas da
salvação, medicina experimental, rezas brabas, mantras, ou
86
benzedeiras, neurocientistas e outros enfermos incessantes em
falar sem parar.
O mais atraente é que todos estão certos, quando se
conhece a verdade percebe-se que ela pode ter vários nomes e
ser dita conforme a circunstância, contudo teimo em achar isso
ou aquilo, estabelecer interpretações e empurrar a
responsabilidade para alguém.
E pensar que o Cristo confirmou que nós somos deuses
e tudo que ele havia feito, nós poderíamos fazer e até mais. –
não exatamente com estas palavras. E é por isso que eu
acredito que vivo em profunda ilusão.
Acho que não tenho preconceitos e, quando a
essência do Tudo se torna a mais clara palavra unida ao mais
alegre pensamento, eu apreendo que o caos, o sofrimento,
provas e expiações não passam das partes mais formidáveis da
minha aspiração. A essência de tudo sempre será a
simplicidade.
Friso que, são desejos d’alma.
E tenho conhecimento do que a alma deseja? Para
87
qualquer das duas respostas teria que saber porque eu ajo
supondo. Supondo que eu saiba ou não, quando o maior trunfo
da alma é me esconder a verdade.
Firmei os pés e tentei me levantar da cama. Foram
apenas duas tentativas e já ziguezagueava como Frankenstein
rumo ao armário, dois passos só. Um mal-estar provocado pela
hebdomadária betainterferona interferia com o meu humor de
opiniões trancadas a sete chaves, isso se eu não queria falar o
que não devia. Com o tempo percebi que não passavam de
admoestações provocadas pela sensibilidade ao som, à luz e aos
cheiros.
88
89
10
“Ideias demoradamente recalcadas, que se
negam a externar-se – tristezas, incertezas,
medos, ciúmes, ansiedades – contribuem
para estados nostálgicos e depressão, que
somente podem ser resolvidos, à medida
que sejam liberados, deixando a área
psicológica em que se refugiam e
libertando-as da carga emocional
perturbadora”. Amor, Imbatível Amor.
Divaldo Franco.
Mateus 27:05-01
Eu estaria mentindo se eu dissesse que nunca quis me
matar. E provavelmente me contradiria ao afirmar que jamais
me suicidaria. Não estava procurando por métodos que
90
usassem cordas, facas, raticidas, trens ou pontes. Tão somente
a boa e velha inexistência.
Que Deus jamais tivesse me criado, e para Ele seria tão
simples como um estalar de dedos – e Deus tem dedos? Enfim,
por que eu teria que me arrastar por uma existência fracassada,
ou pior, existências que se perdiam no passado e teriam que ser
rastejadas no futuro?
Acabava de abandonar o meu último resquício de
perseverança e com isso afundava a esperança e a confiança em
mim – e nos outros. Agir com compaixão e humildade já não
seria possível, pois estava entregue às mãos do destino que me
arrastava sem que eu me abstivesse.
Uma morbidade se apossou de mim como um
obsessor invisível que resgatasse os seus direitos de cativeiro.
Não sabia a gravidade, no entanto possuía dois minúsculos
atributos que me impediam de atingir o fundo do poço. O medo
de morrer – não da morte – e ter plena convicção de que todos
me amavam.
Por que eu não conseguia alcançar os meus desejos
91
tão bem calculados? E as incoerências só me causavam mais
estranheza e rancor. Parecia um plano bem executado para me
manter sempre com a estima baixa. E quem era o meu carrasco!
E com o fim de mim. Em um ato de ajuizado desespero
me ofereci às circunstâncias antes que elas se complicassem.
Deliberadamente abandonei o emprego que me daria
autonomia, sentindo tanta raiva de mim, de minha ineptidão.
De não entender de onde ela provinha. De não conseguir me
conhecer. Que aceitei a minha derrota ao reconhecer a minha
ignorância e inabilidade em tudo o que eu pretendesse.
Um choque que atingiu o meu orgulho em cheio.
Nos últimos anos eu era pressionado a pensar que
nunca conseguiria ser proveitoso, enquanto todos me julgavam
extraordinário. Todas as tentativas, mesmas a somente
pensadas, se transformaram em tormentos. E também atingiam
a todos que me cercavam, realimentando o medo, a
preocupação sem justificativa.
Por um tempo eu ainda me saía bem com a
fascinação de estar no domínio de mim. Na faculdade o
92
processo se desmoronava a cada período. E eu começava a
rever o que era realmente imutável em uma mente jovem e
amadurecida.
Não compreendia por que um projeto que era
reprovado servia para uma exposição? Sugestões inconcebíveis
estagnavam-me sem solução? Ideias contraditórias que me
impediam de seguir. Um empate?
Estágio repetitivo e rotineiro que era um desafio?
Estava me desconstruindo e as antigas atribuições pareciam
eternamente novas. Assomava-se o medo de não atingir as
expectativas – as minhas. O medo de ter que realizar duas ações
ao mesmo tempo, de esquecer algo. Estar sobrecarregado por
nada.
Ser repreendido.
As desculpas pareciam outras. E enquanto pensava
que era por causa do stress, das recriminações que nunca
aprendi a descartar, por nunca dizer não e, aquelas incertezas
que eu administrava tão bem por estar em meu território,
foram esfaceladas quando fui exposto ao incontrolável. Não tive
93
outra escolha senão me expor.
O ambiente foi cuidadosamente preparado para que
eu não conseguisse superá-lo em segredo. Todas as opções
foram vetadas e eu cedi. Aniquilado, fiz o que mais me doía,
antes que eu machucasse alguém, reconheci a minha estupidez
perante todos.
E a crença de que era o bom, se mostrou como
soberba. O elogio terminou em desprezo.
A raiva se dissipou e só me restou o choro cruciante.
Continuava perdido nas minhas divagações, mas eu não estava
sozinho.
94
95
11
“A Dificuldade Inicial. O começo pode ser
difícil, mas, depois de superada a
dificuldade inicial, as perspectivas são
favoráveis. Procure a ajuda ou o conselho
de um amigo”. I Ching.
Mateus 36:10-12
Caminhava a pé pela estrada sinuosa e estreita
quando as brumas se afastaram orquestralmente, desvelando-
me um lago azul profundo. Amanhecer aprazível de pulôver e
ares frescos de pinheiros me propiciava uma caminhada em
meio ao arvoredo inquiridor enquanto admirava os barcos e
veleiros em suas manobras brandas de um vento moroso. O
lago estava dentro de uma cratera dormente e assim, o
96
caminho, que cingia as águas e o sopé de montanhas sagradas,
era a linha de equilibro entre os reinos.
Por todo o caminho, não descuidava do trânsito dos
pequenos compactos em mão inglesa e dos acessos rústicos
para as casas de barcos e demais marinas com dezenas de
embarcações de velas seladas.
A Tōkaidō atravessava a cidade muito próxima das
margens e, então, parei para admirar a circulação de
passageiros de um terminal fluvial. Passei um lenço na testa
suada e retirei a mochila para pegar alguns ienes que seriam
engolidos por uma máquina de refrigerantes. O sol já
despontava por entre os montes e encostei-me à amurada do
estacionamento do terminal tomando avidamente a bebida
gelada.
O burburinho de turistas já se encaminhava às portas
de meus ouvidos, tentando agrupar-se, quando ouvi um turista
de minha terra se pronunciar em sussurros.
Ele subiu no guarda-corpo para poder me encarar com
lábios arqueados e risonhos. Fiz uma contração voluntária e não
97
escondi a minha decepção com um muxoxo e olhos virados. Os
turistas já haviam entrado no ônibus que os levariam ao templo
no topo do Monte Myoboku e seus cincos sapos sagrados. Havia
um salutar odor lacustre que se somava aos fortes cheiros de
comida de um restaurante de lámen. Que os excursionistas se
aglomeravam entre as vitrines de um e da loja de omiyagi –
souvenires – logo abaixo do monstruoso Torii.
Cruzei os braços na amurada e bati com a testa
diretamente sobre eles. Fechei os olhos por um instante e achei
tudo muito estranho. Como um sonho dentro de um sonho.
Girei para o meu observador, que estava sentado em uma das
duas inusitadas poltronas marrom-avermelhadas estacionadas
em uma vaga para kanjis incompreensíveis, e puxei os fones do
player que tocava música de Motohiro. Tiago estava de óculos
escuros e mãos entrelaçadas com os cotovelos apoiados nos
braços da poltrona.
― Não preciso tomar a pílula azul ou vermelha, já me
contento com as vacinas semanais. ― reconheci a cena.
― Só não queria me sentar no chão. ― ele ainda se
98
lembrava de Paris.
Busquei sentar e nem me preocupei com os olhares
enviesados dos residentes e nem se eu estava sentado num
barril de pólvora como suponho que seja o vulcão abaixo do
lago. Fiz menção para que ele desembuchasse.
― Eu queria saber por que tudo tem que ser
perfeitamente idêntico à sua realidade física? Os cenários, as
pessoas, as possibilidades...
Iniciei. ― Não acho que seja assim. É somente uma
experiência para recriar alguns elementos que reconheço. Nem
imagino como seja um susuki no outono, mas eles estão por
todos os cantos. ― estava contente com o resultado final.
― Os personagens, eles dão um toque especial. Preste
atenção nas interações entre eles.
― O quê você está sugerindo? ― Achava que estes
eram cenográficos.
Tiago esperou que eu observasse alguns. ― Eles
continuam sendo fragmentos de sua personalidade, os tais
99
subegos ou subpersonalidades ou projeções de seu
subconsciente, e não estão isentos de criar algo totalmente
novo neste mundo.
― Como eles podem ter uma vida completa se são
frações? E o que você quer dizer com criar algo novo? ― Acabei
com o refrigerante sem o oferecer.
― Todo o seu conhecimento é oferecido a eles, as suas
frações psicológicas tomam-no para si como um computador
que precisa de um sistema operacional. Estas frações podem se
apropriar de outras estruturas psicológicas suas para, digamos
assim, reconfigurar as suas disposições naturais. As
combinações podem ser infinitas e mesmo assim você pode
reconhecê-las.
― E reconhecendo estas individualizações minhas e
suas personalidades, eu me conheceria? ― frisei com dúvidas.
― Não é só isso. ― aguardou teatralmente. ―
Também somos parte de algo muito Maior, que criou um
universo. Reconheça os seus subegos e se conhecerá na
totalidade de si. E por que Deus não pode fazer o mesmo, em
100
escalas universais? Somos seus subegos, micropersonalidades
autônomas que se relacionam das mais variadas formas. O
nosso diálogo é uma destas criações.
― Hã.
― As suas personalidades fragmentadas podem e
devem interagir e, este mundo subjetivo pode e deve se recriar
sem a sua interferência. Colha as experiências.
Um ônibus estacionava ao nosso lado, inteiramente
lotado de dezenas de câmeras em flashes apontados para nós.
Eles estavam agindo além das minhas expectativas, eu havia
criado um monstro. Tiago percebeu.
― Espere um pouco. Você ainda não tem a capacidade
de gerenciar tais criações, e este é só o primeiro passo. ― as
luzes faiscantes o incomodava. ― Além destas montanhas não
existe nada e as suas projeções não devem possuir uma alma. E
tudo está subordinado à sua vontade e limites...
― E as pessoas que criam jogos, filmes?
― Elas determinam todas as variáveis. Sabem o
101
começo, os meios e os fins. É um pacote impermeável e
imutável. Embora a sua origem provenha da realidade que
conhecem, de fatos pré-definidos, o produto final tem como
resultado aquilo pelo qual foi criado. Não há brechas, senão
aquelas implantadas e que acabam não sendo.
Gritei alarmado. ― Então eles – sobre as minhas
projeções inconscientes – podem me superar, me surpreender
com atitudes inimagináveis?
― Como dizem, você é peixe pequeno. As suas
projeções ainda não podem reagir aos estímulos, como supõe.
Elas estão atreladas ao seu conhecimento e as suas relações
devem respondem ao que você já experimentou. Mas eu não
vim para destruir os seus sonhos...
Levantei-me e desta vez comprei duas latas. Acalmei o
meu espírito que estava ansioso para seguir em frente. O ônibus
partia com nova tripulação que acabava de sair do terminal em
escandalosa conversação de balançar interminável de cabeças
agradecidas. Concentrei-me nas sutilezas e ações que eu não
precisava pensar. Eles se constituíam de autonomia e
102
imprevisibilidade.
― Livre-arbítrio. ― E pensar que ele existia. Dentro de
um mundo tão contido e organizado. Reflexo das Leis Naturais
que eu determinaria para eles.
Estava absorto quando depositei o refrigerante junto à
poltrona e estiquei a mão para entregar o outro. Rapidamente,
sem pensar, dei um tapa na mão de Tiago que recuou rindo e
reclamando da dor.
― Se estiver imaginando que anjos não devem tomar
refrigerantes, eu te asseguro que isto não fará mal às asas. ―
Agarrando a lata. ― No entanto essa não é a sua preocupação,
não é?
― O quê acontece se eu mudar as regras deste
mundo? ― com remorso de ter batido em um anjo.
― Diga-me você. Se, por exemplo, os barcos
começassem a afundar neste lago.
― Ou poderiam achar tudo normal, porque eu assim
determinei. Ou poderiam correr de um lado para o outro,
103
desesperados, achando que é magia. ― Tinha certeza que seria
o outro ou...
― Ou eles mandariam os melhores cientistas para
verificar alguma mudança na densidade da água ou de sua
resistência hidrodinâmica. Enfim, descobririam uma resposta
que seria fundamentada por suas Leis ou desvendariam novas
que gerariam uma gama de novas interpretações.
― Mas é o que nós – da minha realidade – faríamos!
― Foi um susto tão grande que eu percebi o óbvio. ― Tudo é
um infindável fractal.
Queria acertar Tiago com um taco de beisebol, mas
não seria prudente castigar um anjo. ― Por que você não me
explicou desde o começo?
Ele deu de ombros, achando graça do meu
aborrecimento. Eu tinha que dar o troco. Pus a mochila e
acenei, íamos subir até o Templo por um caminho íngreme e
sufocante.
Sem ônibus.
104
Suas ideias eram outras. Saltou no lago.
― Eu admito conhecer as premissas do mundo que
criei. ― e Tiago andava sobre as águas. Pus-me a alcançá-lo.
Nunca cogitei que fosse complicado andar sobre um
lago que escorregava como gelo e balançava como gelatina. O
desequilíbrio me forçou a mergulhar de cabeça.
― Existem coisas que só funcionam na teoria...
― Ou nos cartoons. ― e como ele conseguiu?
105
12
“O autoamor não pode se confundir com
egoísmo, que é o orgulho de ter e ser mais
do que é. De suplantar o outro pela
submissão. O autoamor impõe o seu caráter
humanitário à um estado superior de si. O
ser ideal é aquele que caminha no meio, em
equilíbrio entre o orgulho e a submissão, a
arrogância e a humildade que nada mais é
do que a sublimação”.
Mateus 36:10-13
Após as chuvas de cinzas custeadas por um vulcão,
entre espirros e alergias. Da suspensão de minhas intenções
xintoístas em uma luta travada contra centenas de incansáveis
formigas envenenadas que não queriam ser aspiradas ou
106
varridas. Teria o meu prêmio com as agradáveis agulhas do
acupuntor.
Com o tempo você acaba se acostumando. Essa
expressão, tão condicionada pela consternação, nunca reflete a
realidade das intenções mais nobres. Nós não nos
acostumamos.
Com o tempo tudo se transforma, as dores podem ser
maximizadas ou superadas. Eu acreditava que pertencia ao
bando de reclamadores e lamentadores que aceitavam que o
mundo estava se acabando em enxofre e caldeirões de água
queimante. No entanto fui pego me afeiçoando aos reclamantes
com suas moléstias inquietas.
Nunca armei ser um bom par de ouvidos, e o desfile
de reclamações justificáveis – por causa de doenças terríveis –
me acalmaria os ânimos. E assim eu quase me sentia saudável
em meio aos flagelos pessoais, dos outros.
As minhas incurabilidades não se mostravam tão
imutáveis. Estava animado com as sessões de acupuntura que
me devolviam as sensações desaparecidas de mãos e pernas.
107
Por mais que eu queira escolher aquilo que me trouxe avanços,
tenho que admitir, sem provas materiais, que nada acontece
por acaso. Existe uma perfeita simbiose entre todas as
pseudocoincidências.
A acupuntura é o caminho para consolidar os
benefícios alcançados com as cirurgias espirituais. Sem se
conhecerem, elas trabalham em sintonia tão magistral que colhi
algumas surpresas. Acabei descobrindo, através destas
pseudocoincidências, que um dos sintomas não era o que eu
supunha. Obtinha uma nova doença autoimune para o meu
currículo de incuráveis. Entretanto esta era, pelo menos,
controlável desde que não me aproximasse de glúten. E eu
achava que tinha descoberto tudo sozinho, me rejubilando pela
minha sagacidade de ver as informações sendo esfregadas no
meu nariz.
Contudo, a maior conquista seria me afeiçoar aos
outros pacientes lamentadores que aguardavam
impacientemente as agulhas de um médico com pretensões
sádicas. As pautas do dia sempre seriam as calúnias políticas, a
indignação médica e, no meu caso, o clima.
108
Adorava notar as pequenas – ou grandes –
manifestações destas personalidades com as suas
particularidades que, às vezes, me cansava. E em alguns casos,
bastava o relógio parar de funcionar, e o caos de suposições
preenchia um ambiente heterogêneo, como aquela antessala
de espera, com angustiosa e divertida exasperação.
E o universo ainda brincava comigo.
109
13
“Não afeteis orar muito em vossas preces,
como fazem os gentios, que pensam ser
pela multidão de palavras que serão
atendidos. Não vos torneis, pois,
semelhantes a eles, porque vosso Pai sabe
do que necessitais antes de o pedirdes”. São
Mateus 5:5-8
Mateus 32:06-20
Sou suspeito para julgar. Sentado no posto de saúde
onde seria interrogado pelo médico, escutava as narrativas dos
outros pacientes que pareciam se deliciar com os trágicos e
intrigantes enredos de suas doenças escabrosas. Em lamúrias
perpétuas que não queriam soluções e sim um par de ouvidos.
110
Se eu tentasse embarcar na mesma repetição monótona e
tediosa de queixas, – pois tinha conteúdo para o assunto – seria
sumariamente interrompido.
Eu não era senil o suficiente para reclamar e nem
parecia estar tão adoentado assim. Eles até paravam por um
instante, me avaliavam com olhares nada discretos e se davam
por satisfeitos. Recomeçavam as reclamações.
Logo estava me acostumando com a pouco ou
nenhuma seriedade que uma doença sem feridas, pústulas,
cirurgias agonizantes ou erros médicos poderia provocar. Tudo
bem que era incurável e degenerativa.
Daria novo sentido à palavra paciência.
Estiquei as pernas e atravessei os braços para me
aquecer enquanto o ambiente hospitalar se esvaziava e me
perdia nas imagens de uma televisão muda. Não gostava de
esperar por algo cujo resultado eu sabia. As lâmpadas
fluorescentes falhavam.
Estava escuro quando fui convocado. Bem sabia que a
consulta seria mais uma interminável rotina para verificar o
111
meu quadro de saúde – ou de piora.
Para ser sincero, ainda não me sentia enfermo.
Entretanto havia recebido um título que poderia mudar a vida
de um homem, para sempre. Ainda me lembro do diagnóstico
depois de ressonâncias e exames de sangue, para o meu pavor
de agulhas. Nestes episódios eu me aproveitava da falsa
impressão de que tudo estava bem e me confiava ao medo com
o subterfúgio de uma personalidade que eu só usava em casos
extremos.
Fechava bem fortes os olhos, dominava a minha
admoestação e terminava com expressão de bon-vivant. Pois
era esta que ainda me mantinha confortável perante as
circunstâncias que eu mais detestava. Médicos, hospitais,
doentes e impotência.
Um dia desses, eu percebi um comentário que me
abalou. Ninguém quer ficar doente. Nada mais lógico. Contudo,
assim que eu soube que estava incuravelmente diagnosticado,
experimentei um alívio. Muito alívio.
Tanto alívio que o médico, que esperava alguma
112
reação nefasta ou confusa, ficou me encarando absorto. Tenho
quase certeza que ele pensou que eu não havia entendido, ou
estava em choque, ou mais doente do que cogitava. E daí se me
sentia bem?
Um doente só é feito de seus exames.
E seus medicamentos, que no meu caso se
compunham de vacinas dia sim e não. Se era para ser uma
catarse com agulhas, eu teria que aplicá-las sozinho. E com o
tempo se tornaria mais um hábito – doloroso.
Porém a doença é no cérebro, e eu desconfio que
afeta algumas das áreas mais inconvenientes para mim. Pois eu
ainda tremo só de pensar em agulhas, mesmo as finas e
pequenas subcutâneas de aplicadores violentos – que eu jamais
pensei em usar.
A doença pode ser um carma, um sofrimento sem fim,
a doença deprime e corrói os sentimentos, destrói as fundações
familiares, sociais e profissionais. A doença redefine atitudes e
ações e atrai aqueles que te amam e afastam os falsos. Ou o
contrário, afasta aqueles que diziam te amar e atrai o amor de
113
incógnitos.
Conforme suas crenças, a doença pode ser uma prova
ou expiação, um castigo, a punição de Deus. Dívidas contraídas
de um passado, missão ou a bondade de Deus. Porque todo o
mal passa inexoravelmente pelo crivo da bondade de Deus.
Por convenção eu me enquadraria naqueles cuja
enfermidade é a prova para aperfeiçoamento de algum débito
nascido em vidas antigas o suficiente para não me recordar.
Ou seja, fiz e agora tenho que pagar. Por sorte ainda consigo
aceitar a resignação e possivelmente consiga me adaptar às
dificuldades que venham a surgir.
Menos para as mais óbvias. Porque tenho a
incapacidade de perceber os meus erros, assim como a maioria
das pessoas que apontam julgamentos de dedos firmes e não
percebem que possuem as mesmíssimas qualidades ao qual se
apressam em denegrir.
As minhas aptidões neste campo incluem que todos
sempre são mais admiráveis do que eu. E acabo passando a
impressão errada de que eu estou melhor do que eu mesmo
114
suponho.
Na primeira chance em que eu me confrontasse com o
espelho, veria um idiota que não conseguia disfarçar a sua
azucrinante arrogância adubada por tolice.
Valendo-se de uma doença como pretexto para uma
situação que chegava à sua fronteira. Por isso senti alívio
quando algo justificou a minha fraqueza. Eu não era acusado
pelas derrotas. Embora também o seja.
Alguém assumia as minhas culpas – uma doença
degenerativa incurável – enquanto eu ganhava tempo para
respirar aliviado.
Estava aborrecido.
E doente.
115
116
14
“Se isso for ser esperto... Prefiro passar
minha vida inteira como um idiota!”.
Masashi Kishimoto.
Mateus 36:10-15
Aonde quer que eu olhe, as árvores contraiam uma
tonalidade ocre que prenunciava o outono tardio. As
montanhas precipitavam estas nuanças na limpidez do lago
azul. Estava a passos lentos, quando enlacei firme o lenço rubro
como uma badana e sorvi toda uma garrafa de água em um só
gole, observava Tiago logo atrás.
Ele estava mudo, não se deixando levar pelo meu
intuito de caminhar com sofrimento e molhado. E ele carregava
117
um rolo de pergaminho preso às suas costas, com bastante
destreza, considerando as dimensões e considerações.
Atravessamos a enseada e, após os primeiros lances, eu
desmoronei aos pés de uma arvoreta como um bonsai titânico.
Tiago se sentou nos degraus de um humilde templo,
abaixo das grossas cordas que estavam repletas de guizos e
ornamentos bizarros, deixando o pergaminho escorado. O
templo ostentava um altar com oferendas de arroz e muito
incenso com suas colunas ondulantes de fumaça aromática. Não
havia inscrições, nem estátuas.
E as lacunas na sombra teimavam em me cegar.
Quando me acomodei, flexionei os braços sob a cabeça,
descansando-a na ramificação, e dobrei as pernas com descaso.
― Quero me desculpar por tratá-lo com desrespeito,
não foi a minha intenção. ― Tiago somente sorriu. Eu me
envergonhei.
― Nós somos amigos. Eu te compreendo. Suponho que
esteja aborrecido pelo meu atraso em... ― acenei arrependido.
Era o meu melhor amigo e eu nem me recordava. Talvez ele me
118
respondesse.
― As pessoas costumam idolatrar os seus anjos,
sabia? ― Dignou-se a confirmar se eu estava pronto. Frisei com
um aceno duvidoso. ― O que você pensa de estar doente?
Poderia falar tudo sobre a moléstia, inclusive das
minhas teorias bastante sugestivas. Mas de como eu me
sentia?! ― Tenso.
― Posso complementar? ― continuou sério. ― É por
causa das divergências criadas entre ser o doente, atender a sua
versão das expectativas de todos, as suas próprias e reescrever
as impressões que davam corpo ao seu ego. Porque você ainda
não consegue extingui-lo.
― E por que me mostraram como é ser sem ego?
― Quem lhe garante que não foi você mesmo?
Pressente que tudo possui uma razão, desmerece as
coincidências e, mesmo assim, precisa de uma autorização?
Quem melhor para o trabalho do que você?! ― E qual seria o
papel dos anjos da guarda, guias e outros arcanjos? Pensava
enquanto eu era açoitado por mais perguntas. ― Eu não estou
119
com você em tempo absoluto.
― Eu quero acreditar que toda a minha vida tem
algum sentido... ― ele interrompeu-me com voracidade.
― Cada segundo é meticulosamente calculado. Tudo
que lhe soa errado pode ser precisamente o contrário. O plano
sempre tem cumprido todos os passos.
― Os traumas, as incertezas, as inseguranças, os
medos e os obstáculos são alguns destes planejamentos com
gosto amargos?
― No seu caso, quase todos são amargos, azedos ou
intragáveis. Mas nunca foram difíceis de engolir. ― abrindo o
pergaminho abruptamente no ar que caiu suave sobre o
gramado. ― Eram barreiras criadas para impedir que os
acontecimentos do passado fossem recriados e você repetisse os
mesmos erros.
Fiquei surpreso porque estava inconscientemente
ciente dos fatos que me levaram ao suicídio. ― Que em cada
episódio detestável havia um fim? Pode imaginar os transtornos
120
pelo qual eu passei?
― E pode imaginar o trabalho que me foi assegurar a
sua infalibilidade? ― escondendo-me que os fatos jamais saiam
dos trilhos. Havia outros personagens no traçado.
Fez-se um silêncio abrasador.
Tiago apontou para o pergaminho que tinha algumas
partes rasuradas para o meu constrangimento. Eram alguns
registros desta minha biografia.
― Mas antes vamos rever alguns fatos. ― ele
percebeu que eu estava nervoso com o que fosse dizer sobre
mim. ― Como anda as coincidências?
― Agora elas são absurdamente recorrentes. Qual é o
objetivo destes sinais?
― São reforços. Ou você ainda acredita que a sua vida
é repleta de escolhas e oportunidades infinitas? Há um ciclo de
eventos repetitivos que, se você perceber os sinais, o persegue
infatigável. ― estava bem atento. ― No início parecem simples
coincidências, porém se aceitar o fato de que elas são mais do
121
que parecem...
Hum. ― o que eu poderia dizer?!
― Esta certeza pode aprimorar as suas convicções, e
as coincidências passam a ser... ― ele não parecia saber o que
dizer.
Adiantei-me. ―... palavras-chaves?!
― Melhor, a matriz básica do plano desta vida. E que
contem um projeto mais abrangente por detrás. ― Ele se
iluminou com um pensamento oportuno. ― Tem um texto
afixado ao seu armário que diz mais ou menos assim. “O seu
potencial é ilimitado em tudo o que escolhe fazer. Não presuma
que a alma que escolhe renascer em um corpo que você
considera limitado não realiza todo o seu potencial, porque você
não sabe o que a alma está tentando fazer”.
Tive que concordar, entretanto a citação só me
deixava mais abatido, não saber o que estamos fazendo e
mesmo assim se entregar a desígnios imperceptíveis?!
― O universo conspira a seu favor. ― foi a minha vez
122
de ficar sem saber o que falar. ― Sabe o que significa a frase?
― Sim.
― Comecemos pelo início. O plano. O seu objetivo é
extrair ou enfraquecer alguns excessos. Eu posso citar alguns:
orgulho excessivo, intolerância e arrogância, egoísmo,
desrespeito, medos sociais e mais algumas falhas. ― engoli em
seco. ― As palavras são duras, mas nem todas são extremas.
Todos precisam de uma dose de covardia para que a coragem
não se torne temeridade.
Não amenizou o impacto. ― Eu vou usar as suas
palavras escritas no diário, com o cabeçalho horrível de
Impositivos da Lei Divina. ― e só piorou.
“Não sei ouvir as pessoas, trato-as com certo
distanciamento. Procuro aconselhar evitando compreendê-las. O
trato social é minimamente inclusivo. E por que todos gostam de
mim?”.
“Não sei lidar com os sentimentos, principalmente se
forem ilógicos. A autopreservação gera frustração. Esperar que
todos ajam logicamente implica que eu pouco conheço do ser
123
humano e suas fragilidades. A doença me obriga a enfrentar
este dilema. Será que conseguirei ouvir?”.
Chorava diante da verdade. ― E foi por causa desta
autoafirmação que a semente da transformação nasceu. É difícil
reconhecer as falhas de caráter, apesar disso é muito mais difícil
assumi-las. Dominar-se a si próprio é uma vitória maior do que
vencer a milhares em uma batalha.
― Não entendo a razão de tanto sofrimento. ― o
efeito indesejado.
― O sofrimento não existe, a sua ideia de que é difícil
abrir mão de seu ego – e suas distorções – lhe impõe este
obstáculo irreal. Se ele parece intransponível é exclusivamente
por sua causa. É a reação natural daquele que não quer se
submeter.
― Submeter-me a quem? ― com medo da resposta.
― Às suas pseudocoincidências, os desígnios. Se
submeter a este fatídico destino – desígnios – é colaborar
consigo. Agir como se as pseudocoincidências fossem
imposturas ou obstáculos indica que você ainda não quer abrir
124
mão de seu personagem ricamente titubeante com as
pequeninas facetas que definem a sua realidade.― Ele me disse
que precisava buscar outro termo, um mais adequado, para
pseudocoincidência. Porque coincidências não existem. ― E
assim, em cada obstáculo há mais de uma ação.
― What? Como assim?
― Quando muito novo você sofreu um breve acidente,
certo? ― concordei levando as mãos para o acidente no meio
das pernas. ― E pensou que ele serviria para conter alguns
excessos futuros?
― E não era? ― Para que mais ele serviria.
― Esta era somente a ação perceptível, porém o
motivo principal lhe escapou inteiramente à sua astúcia. ― Ele
teatralmente esperou. ― Te livrar do seu inflexível fascínio por...
Eu não estava entendendo, o que poderia me causar
tamanho deslumbramento a ponto de ser impetuosamente
arrancado dos meus hábitos de criança? ― O seu fascínio
deveria se conter, seria apenas uma incursão, uma inserção de
ideias e valores que deveriam brotar depois que estivesse
125
maduro. As fortes impressões colhidas neste novo mundo
poderiam enlouquecê-lo se não fossem obliteradas a tempo.
― A que você se refere? ― o que me aconteceu
quando garoto?
― A sua implicação com a cultura, outros olhares,
outros costumes e que começava com os seus amigos. As
crenças orientais que tanto o maravilhavam, não encontrariam
terra fértil e avassaladoramente o engoliriam em repercussões
não digeríveis. Precisávamos arrancá-lo de seus amigos e suas
famílias.
Não imaginava. ― Então é por isso que nunca mais
tive contato com eles? Do acidente se seguiu a transferência de
colégios e, logo mais, de cidade.
― E muitas outras coisas surgiram desde então. Que
não seriam possíveis sem esta interrupção. ― Tiago estava sério
e mantinha um olhar de perseverança e aquiescência. ― Como
as ações que te levaram a tomar consciência das suas
experiências da vida passada. Sem os deslumbramentos que nos
causariam maiores atrasos.
126
― Tenho que aquiescer que a trama é conveniente.
Mas por que não evitaram tal deslumbramento?
― Quem lhe disse que isto não tem outros objetivos. A
semente só deveria nascer agora. ― Como eu poderia ser
guiado sem que percebesse a magnitude dos desígnios. ― E
quem te controla é você mesmo. Ou ainda acredita que este
plano não é executado por você!
― Parece um paradoxo, um círculo eterno.
― A roda das transmigrações não considera as
conquistas intelectuais e sim as experiências. E por causa de
tudo, eu posso falar que te conheço muito bem. Por seu orgulho
excessivo, sua intolerância e arrogância, o egoísmo, o
desrespeito, seus medos sociais e mais algumas falhas. E não há
nenhum mal nisto. Todos se acham tão espertos, moldando
personalidades tão deturpadas quanto às idiossincrasias
grotescas que as criaram. Você é um esperto...
― Se isso for ser esperto... Prefiro passar minha vida
inteira como um idiota! ― não pude evitar o plagiato, precisava
perseverar se queria mudar.
127
128
15
“Pode-se afastar a cobiça, nutrindo-se a
compaixão. Pode-se afastar a ira com a
ternura e pode-se remover o sofrimento
com a alegria e o hábito da discriminação
entre inimigos e amigos, nutrindo-se uma
mente equitativa”. A Doutrina de Buda.
Mateus 12:07-12
Subia com ansiedade em ondas.
Ochiai-bāsan se agitava com seu leque.
Parecia absorvida pela televisão que mostrava um
regravado festival de canções enka, com seus icônicos cantores
129
caricatos a saírem de um videocassete betamax. Cumprimentei-
a irreprochável, usando de minha timidez que ali se adequava
corretamente.
Fiz outra mensura e retirei-me para a sala de jantar
onde estava o trabalho para fazer. A grande mesa de madeira
negra estava brilhando quando pus a máquina de escrever
seguido de três volumes sobre o assunto. Os meus
pensamentos em pratos saborosos com tentáculos de polvo
garoando shoyu de hashi desastrosos. Olhares divertidos para
quem se deliciava com arroz monobloco enrolado em algas.
Desanuviava-me destas delícias.
Comecei a datilografar enquanto os outros não
chegavam. Não pude disfarçar o fascínio de olhar para o nicho
que ocupava toda a extensão da sala. Um grande altar de laca
escura parecia um verdadeiro templo familiar. Os patamares
levavam até Buda e oferendas de comida e incensos que riscava
a parede verde com a sua fumaça serpenteante.
As fotografias antigas, em tons acinzentados, dos
antepassados em roupas de outra época, me encaravam
levantando camadas de nostalgia desconcertante. Desviei o
130
olhar para outra direção, onde a luz do sol invadia sem
empecilho. Os janelões percorriam toda a galeria permitindo
ver os corredores que circulavam a casa.
Voltei-me para o altar com a forte sensação de que
não devia estar ali. Recuei a máquina e andei a esmo. Pude
ouvir uma conversação distante e ininteligível assim que me
afastei. Desconfiei que eles estivessem no quarto e me dirigi
com cautela respeitosa. A porta estava aberta.
Fascinado com as pequenas coisas que podem mudar
a forma como vemos o mundo, vi vários livros com os seus
rabiscos intermináveis que surpreendentemente não me
despertavam do estupor. Entretanto, a vestimenta erguida
como um quadro, deixou-me de queixo caído. Olhava-me com
desconfiança por trás das grades, pois ela possuía um elmo e
portava uma ameaçadora espada de bambu.
A armadura ostentava um quimono escuro, protetores
de couro, tiras de bambu e placas de algodão tão duras e
inflexíveis quanto às das faixas. As duas espadas estavam em
riste.
131
Passei os dedos pelas fendas do bambu e pensei no
estrago que elas poderiam fazer. Recordando dos braços roxos
e esverdeados do meu amigo. Nunca o vi usando os trajes, no
entanto eles estavam gastos e sujos como se fossem ganhar
vida a algum instante. Por uma prática marcial que era
conhecida como Kendō e transformava homens em samurais.
Podia pressentir o seu olhar espiritual sobre mim.
Saí assustado.
Ficar ali me angustiava.
132
16
“O primeiro passo para se livrar dos vínculos
e grilhões dos desejos mundanos é controlar
a própria mente, é cessar as conversas
vazias e meditar”. A Doutrina de Buda.
Inari 36:10-15
Não enxergava nada.
Como se eu coordenasse o seu aniquilamento, uma
nevasca de flocos astuciosos se dissipava. Caminhar sobre a
neve era como deslizar comicamente.
A espessa capa, de um branco encardido, abraçava
firmemente o meu pescoço enquanto eu retirava a neve
acumulada do capuz que puxei impaciente. O ar estava limpo e
133
o céu mais claro e azul do que costumava ver. Do promontório
monocromático, com árvores encobertas pelo gelo branco, eu
percebia cidadela em colunas de fogo e fumaça.
Se não fosse pelos trabalhadores cabisbaixos que
trafegavam pelas alamedas do casario cinzelado, tudo não
passaria de um ukiyo-e em uma de suas cinquenta e três
estações. O vento ainda me obrigava a proteger os olhos.
Depois de alguns passos tropecei num ishidōrō, caindo
espalhafatosamente de boca e recurvado como um rezador.
Esforcei-me para atingir o templo que parecia estático.
Um grande largo, agora camuflado pela tempestade, estava
sendo vigiado por um monge.
Gritos de crianças me alcançaram e, antes que eu
pudesse reagir, eles espancavam e xingavam um garoto que
evitava revidar.
Inadvertidamente cheguei aos baderneiros. Não sabia
como enfrentar as minhas sombras sem que fosse atingido pela
agressividade que era minha. Recolhi o garoto ferido em meus
braços, com seus cinco anos de idade. Ele simbolizava o meu
134
desejo pela proteção e por isso o abracei feroz e combativo.
As sombras negras se afastaram ao reflexo
inconsciente de meus desígnios. Não antes de me
repreenderem em resposta aos seus – meus – medos.
Busquei o auxílio ou a aprovação do monge que se
afastou em desprezo. A sombra do descaso e da arrogância
dissimulada, mas que eu o compreendia. E como pai destas
criaturas, senti-me impotente e rancoroso com aquelas atitudes
– minhas.
Apoderei do meu templo e achei um aposento
caloroso que me pareceu deserto. Aos poucos, o menino
acordava do pesadelo com ranhuras por todo o rosto. Ele
reclamava e gemia a todas as tentativas como se eu fosse o
perseguidor.
Ele se levantou rápido.
― Como se chama? ― tentando prender a sua
atenção em mim.
― Todos me chamam de Juroo. E quem é você? ― Já
135
havia passado pela mesma situação invertida. Não seria eu
quem negaria as suas crenças.
Suspirei e disse o que não queria, com medo destes
paradoxos temporais. ― Eu sou Inari. ― Soou como uma
verdade imutável.
Estava começando a me afeiçoar a Juroo-kun. Como
era possível que eu crie toda uma existência. Sem as suas
colaborativas explicações parti da ideia de que, se ele sabe e é
um fragmento de minha personalidade, talvez eu já tenha todas
as respostas.
Olhei pela abertura da porta e delineei o jardineto de
areia sob a cerejeira desnuda. As pedras balizavam a minha
imaginação abrigada de neve e branco. Suspirei com ternura e
sentamo-nos junto da infusão verde. Ele estava muito silencioso
e me olhava com bastante curiosidade.
― Quem é você?!
Supus que ele queria a versão longa e pouco
compreensível sobre mim. ― Eu sou tudo. Sou as árvores, os
136
rios e os animais.
― Tudo mesmo?! ― E ele acreditou.
― As pessoas, o ar e o sol. ― como me senti idiota. E
este não era o meu objetivo?!
― Até a mamãe? ― mais idiota.
― E você!
Agora ele fechava a boca, não sabia o que falar.
Muitas vezes o menino tentou abri-la, porém em vão. Curti cada
expressão de dúvida. Por fim não aguentei.
― E também os garotos que te bateram.― já
arrependido.
Ele franziu a testa em desacordo. Acho que ele não
estava conseguindo mesclar estes dois estados da minha
personalidade doentia. Fiz menção de elucidar, porém acabei
por desistir quando percebi a caixa.
Dentro havia um cubo – de Rubik – mágico em
madeira. Girei-o no ar para o aturdimento do garoto que
137
desconfiava que o brinquedo fosse mágico. Por isso não suprimi
o termo que dava ao objeto qualidades sobrenaturais. Uma
corrente de ar frio balançou as tabuinhas penduradas nas traves
do templo. E, por um instante, as lanternas laranja quase se
apagaram.
Baguncei o puzzle e o entreguei aos olhos mais pidões
que jamais vi.
Pude deixar que ele se entretivesse enquanto
admirava o horizonte em névoas andantes. O lago deveria estar
congelado e o silêncio era deleitável. Por um breve momento
ele imperou na paisagem que se dispersou com a aproximação
de alguém que se arrastava. Nada consegui ver por baixo das
grandes abas de palha.
Juroo-kun acabou caindo no sono, abraçado ao
brinquedo, assim que o homem removeu o casaco. Era Tiago
que se debatia com a acumulação em seus ombros e
vestimentas.
Não gostei da intromissão, contudo eu já me afeiçoava
ao anjo, também. Em cautelosa curiosidade ele se acercou do
138
garoto em sono profundo. Os seus cabelos ruivos pareciam se
destacar naquele panorama invernal, assim como as unhas
pretas.
De cócoras ele sorriu para mim.
― Acabou de plantar a semente que dará a Juroo-kun
o esclarecimento. Sugiro que não interfira até que ele desperte.
― Não pretendia acordá-lo! ― Tiago me olhou feio.
― Seu raciocínio me surpreende. Estou pedindo que
espere uns seis longos anos antes que se reencontrem. ― ainda
não tinha entendido.
― Não será possível, este diálogo já é o terceiro. ―
compreendi a gafe. O nosso primeiro contato foi – ou será
dentro de sete anos. ― Por que está aqui?
― Quis ver com os meus olhos o que você está
experimentando. Não é incrível o que a mente pode construir –
criar?
― E é um grande acontecimento? Demorei a acertar e
139
diferenciar o que é minha imaginação e o que é...
― Eu? ― ele estava sarcástico. ― Eu precisei dar um
empurrão firme para que você cessasse com toda a
autocomiseração e autoflagelamentos de uma dúvida irritante.
Pode ficar tranquilo, não sou sua consciência, só um amigo.
Preferi ficar em silêncio. Assim eu aceitava melhor a
repreensão. Sempre precisei de um tempo pra digerir os
assuntos. E a doença transformou tudo em um intricado
labirinto sem saída. Tiago não pensava assim.
― Mateus, você está se remoendo em ilusões. As
coisas acontecem e devem acontecer como desejado por cada
um. Ou já estão caindo folhas sem que Deus saiba? Use sempre
o axioma de que Deus é perfeito e encontrará a razão de tudo.
― concordei mais íntegro. ― E esta criação – que também é
ilusão – é a sua maior expressão. Não a menospreze porque
todos possuem uma boa imaginação, cheia de ideias e
pensamentos capazes.
Concordei que era uma ferramenta de fácil uso e
pouca divulgação. ― E você nem conseguiria expô-la sem passar
140
pelo ridículo. Consegue precisar as aptidões da mente – não esta
de carne – de criar e suportar mundos?
― Não parece tão incrível assim.
― Com apenas seis blocos de Lego – 2x4 – podemos
rearranjar até 915.103.756 combinações possíveis, sem
considerar as cores disponíveis e, um computador pode gerar
mais de um milhão de possibilidades por segundo para cada
lance de xadrez. ― pausa que precisei, pois não geraria tantas
respostas em poucos segundos. ― Acredita que o seu
pensamento produza menos?
Tiago estava me obrigando a pensar além das ilusões.
― Um gênio da matemática potencializará as suas capacidades
e os homens acreditarão que ele é um líder. Um monge em
meditação será só um iluminado.
― Ou um burro próspero. ― não estava
transmigrando o assunto. ― Então a inteligência não precede a
sabedoria?
― A sabedoria é a verdadeira inteligência. De que
adianta conhecer tudo?! Você estará sendo sábio quando
141
considerar todos os julgamento e aceitar todos os defeitos.
Contudo só alcançará a Iluminação quando os julgamentos e os
defeitos forem desfeitos e as ilusões suplantadas pela
verdadeira realidade.
― E vou me chafurdar na meditação. ― afirmando
que nunca estive atrás de uma Iluminação.
― E não foi precisamente isto que você fez?
142
17
“A natureza búdica existe em todos os
homens não importando quão
profundamente eles a ocultem com a
cobiça, a ira, a tolice ou a soterrem com
seus atos ou retribuições. A natureza de
Buda não se perde nem é destruída, tão
logo toda a corrupção seja removida, ele sai
de sua latência e reaparece”. A Doutrina de
Buda.
Inari 36:10-29
Olhei para o céu finito entre os telhados.
Uma fragrância de barro era superada pelo pólen da
primavera que sublevava pelas ruelas apertadas e cheia de
143
alucinados aldeões.
Os casebres de madeira encanecida com suas
matronas em mutismo de afazeres, quase religiosos,
perscrutavam, zelosas, os comerciantes em parlatório ardoroso.
Um povaréu se preparava para o ocaso se acomodando ao
afetuoso campo das encostas da montanha do templo. Eu
continuava pela trilha corcoveante amparado pelos ventos
ascendentes. As pipas coloridas já começavam a riscar o céu.
O templo estava perto o bastante para que eu
percebesse a movimentação de vultos reconhecíveis.
Posicionei-me a poucos metros, camuflado pela capa cinza e
resguardado por algumas árvores em sua desconfiança
presumida.
Um sopro chegou aos meus ouvidos surpresos. Somos
aqueles que se conectam com que está acima e... Abaixo.
Pude me ouvir impecavelmente antes que o outro eu
desaparecesse, deixando Juroo-kun envolto em seus
pensamentos de um raciocínio extraordinário para mim.
144
Será que seria bom se eu me aproximasse tão logo...?
Para Juroo-kun seria mais um jogo de presunções
difíceis de atinar, porém a sua fisionomia contava que ele me
entendia muito melhor do que eu mesmo supunha me
conhecer?!
Fazia um mês e para ele apenas um segundo.
― E quando foi que nos encontramos depois de todos
esses anos? ― tive que fingir que acabávamos de conversar.
― Quase um ano... não se recorda? ― ele parecia
desconfiar de algo. Embora nem eu pudesse imaginar o quê. ―
Com encontros quase todos os dias...
Não sei se revelava admiração, mas prossegui assim.
― Apesar de não captar como você conseguiu me superar.
― Mas isto é impossível.
― Do meu ponto de vista não é o que parece.
― As aparências não são ilusões? ― ele me pegou. ―
Somos todos fragmentos de você. Não existe a probabilidade de
145
sermos mais. Quando estudamos as partes fragmentadas de um
problema, alcançamos maior compreensão sobre o todo. Eu sou
uma dessas partes.
― Portanto é como se eu estivesse me debruçando
sobre algum aspecto peculiar deste problema. Não se ofenda.
Juroo-kun parecia acérrimo. ― E não é assim que você
se sente com seu Deus? Que é através de você que Ele se
experimenta? Ele não lhe deu a liberdade para agir além de
qualquer aspiração que não fosse a sua?
― Eu já te disse que...
―... não sou Deus! ― Eu devia repetir muito este
bordão. ― E como eu chamaria o Todo? Partes de mim?
― Partes de-eus! ― E ele estava sendo sarcástico. ―
Através de mim conseguirá conter em si as soluções para as
suas dúvidas. Eu sou só um instrumento.
Ele se levantou e gritou para a criança que continuava
saltando por entre as gramíneas. Anoitecia e as lanternas de
papel eram acesas. Muitos se encaminhavam para o templo. ―
146
Teremos Kabuki, quer assistir?
Acenei convicto de que devia ficar.
As lanternas clareavam o pátio do templo com luzes
suaves e faiscantes. Todos se acomodavam em almofadas em
conversas desconexas e eufóricas. As primeiras estrelas surgiam
tímidas. Sentamo-nos longe.
Pratos de metal e barulho instrumental calou as vozes
que passaram a se concentrar nos vários atores exagerados em
suas maquiagens e aparências extravagantes. De um palco que
nos abraçava, os personagens, travestidos de raposa, ou
samurai ou bela dama, recitavam em cânticos ritmados o
sofrimento do jovem que perdia a sua amada raposa.
Cabisbaixo, via as máscaras refletirem o meu desespero.
― Eu sou um deus muito doente.
― A ilusão é só o desconhecimento da realidade, A
doença, o pecado e a morte não existem. O que os seus sentidos
captam é tão somente a ilusão, que é a projeção de sua mente.
Senão teremos de admitir que Deus não é a perfeição. ― Juroo-
147
kun sussurrou pausadamente. Eu concordava plenamente.
― Quando percebeu que eu existia?
― Detive-me por alguns bons anos tentando aceitar
que me dizia a verdade, que era eu e todos os outros. Contudo a
chave para este enigma foi me colocar no seu lugar. Sendo
todos. Os bons e os maus. ― supunha que ele se referia aos
garotos briguentos. ― E um dia alcancei o meu eu, que é você.
E quando descobri o meu eu, escutei-o me
repreendendo. ― Um evento antecedente me levou a refletir no
alcance de minha imaginação. E nas confianças que nos guiam.
Que o mundo transcende os sentidos.
Basta remover as impurezas de nossas almas...
Sempre que eu o escutava discorrendo sobre temas
iluminados, me surpreendia com a possibilidade de que estas
observações eram as minhas. Ele só as estava esfregando no
meu nariz. ― Então eu estava certo?!
Todos os atores pararam suas confabulações e
fixaram seus olhares severos em mim. Os espectadores giraram
148
suas cabeças em busca da razão.
Compreendi o impacto da asseveração.
Retirei-me lentamente, em fingimento de pedras
chutadas a esmo e assovio não pertinente. Embora Juroo-kun
me lembrasse que bastava eu querer e este mundo se
desconstruiria. Eu acreditava que isto acontecia todas as vezes
que eu desaparecia. Contudo esta não era a realidade.
O mundo continuava vivo.
Além da minha vontade.
149
18
“Luz súbita do espírito, a comunicação da
luz divina à alma, pelo que a inteligência se
torna capaz de atingir um conhecimento
verdadeiro”. Iluminação.
Mateus 36:10-29
Em pouco tempo me espaçava dos olhares
transtornados para me refugiar às margens do lago de pedras
soltas e galhos debruçados sobre suas águas pacíficas. Pude ver
fragmentos dos aldeões em entusiasmado regresso às vilas de
um caminho obscuro pela floresta de bambus infindável. O
trajeto mergulhava por uma bifurcação ao fim da escadaria de
torii vigilantes.
150
Com o silêncio, a noite se pronunciou e o campo
festivo se desvaneceu. A areia da orla cedia aos meus pés.
O pequeno lago infinitamente azul refletia o céu
sobre ele. E a minha mente estava tão aberta e poucas vezes eu
fruí de oportunidade como esta. Cedi ao deslumbramento e
sentei-me em reflexão. Quase deitado ouvi os passos do meu
convocado.
Tiago se acercou com o braço erguido, repetindo a
sequência tão esperada por mim em tom de escárnio. ― O
imenso céu vai deixando que o seu crepe tome conta da
natureza. Olhe a escumilha da noite que se vai bordando de
estrelas. ― aceitava o meu desafio.
― Prometo não te inimizar.
― Eu nem me atreveria a lhe perdoar. ― ele sorriu
em atrevimento. ― Pousou o seu olhar para o chão indignado
com a descortesia da falta de assentos. Usava uma longa capa
negra. ― Está preocupado com o alcance da sua imaginação?
― Bastante. ― suspirei inconfortável. ― Estas
pessoas parecem desvendar fragmentos de minha
151
personalidade que jamais pensei haver. E tenho medo que não
as consiga assimilar...
― Está deixando o seu ego pensar por você.
― Eu quem? ― Tiago conseguia me confundir.
― O mesmo que percebe as nuances de suas
personalidades e dos egos dos outros. Que compreende o que
significa perfeição. E tenta agir como se todos fossem um só.
Não é porque não tem todo o conhecimento que as coisas
devem estagnar-se. As lacunas são preenchidas com forças que
vão além do nosso saber. Assim como os nossos corpos.
― Os corpos não são governados pelo nosso
conhecimento sobre eles?
― Quem sabe, talvez pela ascendência moral. ―
Então não tínhamos ciência sobre os corpos? ― O seu corpo é
um mecanismo autônomo formado por quase 100 trilhões de
células individuais. Destes, somente 10 trilhões são organismos
constituintes de órgãos e tecidos, os demais são bactérias
simbióticas que são essenciais para o nosso funcionamento.
Estas individualizações são seres vivos e obedecem às suas
152
funções interagindo e cooperando entre si.
― Seres vivos?
― Consegue imaginar o alcance desta explicação! O
seu corpo é um universo que você não tem ciência de suas
interações e maquinismos, no entanto, mesmo assim, ele produz
equilíbrio e se sustenta além das suas preocupações fúteis para
com ele.
Precisava urgentemente de uma parábola.
― Se fosse um carro... ― outra fábula encanada.―
Eles possuem características que podemos usar para comparar
com o corpo físico. A inteligência destes corpos é uma
inteligência intrínseca, construída por cada experiência
acumulada com os contínuos testes de peças e materiais –
células e tecidos. Estes formarão mecanismos – órgãos – que
serão aprimorados e agrupados em engenhos maiores – corpos
ou carros. Não sabe como seu corpo se sustenta, porém tem
ciência das experiências que lhe dão corpo.
― Certo. Nós criamos universos que se expandem
além de nossa pretensão em compreendê-lo. Eles se baseiam
153
em qual prerrogativa? ― O que preenchia os seus vazios?
― A vida se recria. Ela delineia a sua realidade logo
que necessite de preencher e compreender seu universo. E esta
inspiração provê de Deus. Inspiração para completarmos os
espaços vazios conforme o nosso livre-arbítrio.
― Por isso que o meu universo cresce sozinho?
― Assim como o seu corpo, a sua alma possui
atributos tão sutis que a sua mente egotista não é capaz de
deslumbrar. Ela sustenta mundos que você só percebe através
de suas personalidades. É como se Deus resolvesse te mandar
uma carta, quando sabemos que os meios que ele dispõe são
infinitamente mais eficazes.
Abaixei a cabeça, convicto de que a realidade poderia
ser extraordinária demais para mim. ― Sempre confiei que o
meu mundo fosse um espelho deturpado da vida superior,
mundos mais perfeitos...
― Sim e não. ― Tiago ponderou. ― Deve estar
pensando que vivo em uma versão futurista e harmoniosa. Está
projetando a sua realidade dentro do que seria possível. Embora
154
eu tenha que discordar, vivo em um mundo tão utópico que é
inconcebível qualquer esclarecimento da minha parte. Não
estou preso aos seus conceitos morais, políticos, sociais e, muito
menos, educacionais. Ou você acha que eu sou assim?
― E não é? ― já desconfiava.
― Sou como você consegue me compreender. ―
partiu para nova abordagem. ― Como já sabe, a inteligência
não é medida só pela nossa capacidade de processamento das
informações pela mente limitada dos nossos corpos, mas sim
pelas capacidades experimentadas – subjetivas e objetivas – de
todas as partículas de vida deste universo. Nossas
potencialidades são infinitas, no entanto estão dentro de
desígnios bem específicos.
― Portanto o livre-arbítrio tem pouca liberdade?!
― Sim e não. ― levava a mão ao rosto. ― O seu
potencial é infinito e, dentro de certas conveniências, domado
por barreiras tênues, pode potencializar os resultados. Você é o
fragmento de Deus, experimentando a soma de resultados
que...
155
Isto valia para baixo?! ― Se Juroo-kun está em mim e
sua existência está reprimida em poucos instantes sagrados
meus, porque ele é apenas uma expressão de um aspecto meu,
ele pode conter a resposta sem que eu a saiba?
― Nunca. As suas conclusões são concomitantes. Ele
só a destrincha de modo que isto faça sentido em sua longa
vida. Assim sendo, quando vocês chegam a certas ideias é
porque as respostas se complementaram.― precisava aprimorar
a resposta. ― Você lhe dá subsídios para que alcance a resposta
de toda uma vida enquanto ele lhe reforça suas impressões.
Mateus, a discrepância de tempo permite que Juroo se debruce
intensivamente nas mínimas particularidades do problema que
serão acrescentadas à sua alma subjetivamente. Porque vocês
são a mesma pessoa, um só.
Levantei a sobrancelha. ― Eu já li isto...
― Chegou-lhe através de uma carta. “Se você
consegue compreender o caminho, então deveria entender e
saber para onde ele nos levaria. A iluminação no leva ao estado
de saber tudo sem ter que entender nada...”.
156
― Porém estas palavras me colocam em uma
situação muito difícil. Só porque... ― fui sumariamente
interrompido.
― Não pode aceitar que o evento tenha um nome?
Olhei-o assustado com a possibilidade de ser
exatamente isto. Percebi que todos os caminhos me levavam a
este término. Descartei as outras, embora elas estejam
entrelaçadas. ― Será?
157
19
“... recebemos convites para revermos
atitudes, reformularmos procedimentos,
reeducarmos hábitos e tendências,
redirecionarmos nossas emoções e anseios.
[...] Mas se não houver um trabalho real nas
estruturas profundas do ser, o risco de
recidiva ou do problema irromper em outro
lugar ou de outra forma é muito grande,
quase inevitável. Por ai já da para deduzir
que os verdadeiros potenciais de cura estão
sempre em estado latente, muito dentro de
nós...”. Cure-se e cure pelos passes. Jacob
Melo.
Mateus 36:03-30
A tudo me concentrei de olhos bem fechados.
158
Embalado por música suave e palestras edificantes era açoitado
por voluntários de saúde do invisível mundo que nos rodeava. A
minha respiração pacífica era abalada pelas emoções que
irrompiam dos outros pacientes que já não suportavam as
revisões comportamentais que explodiam em choros e
lamentações.
Um clamor percorria os quartos nos inquirindo. “Eu te
compreendo, e te compreendo mesmo. E apesar de
compreender-te totalmente, quero dizer-te algo muito
importante. Escuta agora com o coração o que te vou dizer: Eu
Te Compreendo, mas não te apóio! Tu és o único responsável
por todos estes sentimentos. A vida te foi dada de graça e
existem em ti remédios para todos os teus males. Se, no
entanto, preferes a autocomiseração ao invés de mobilizares as
tuas energias interiores, então nada posso te oferecer. Se
preferes sonhar com um mundo perfeito, ao invés de te
defrontares com os limites de um mundo falho e humano, nada
posso te oferecer. Se preferes lamentar o teu passado e
encontrar nele desculpas para a tua falta de vontade de crescer;
se optastes por tentar controlar o futuro, o que jamais
controlarás com todas as suas incertezas; se resolveste
159
responsabilizar as pessoas que te rodeiam pela tua
incompetência em tratar com os aspectos negativos delas, em
nada posso te ajudar. Se trocaste o auto-apoio pelo apoio e
reconhecimento do teu ambiente, então nada posso te oferecer.
Se queres ter razão em tudo que pensas; se queres obter
piedade pelo que sentes; se queres a aprovação integral em
tudo que fazes; se escolhestes abrir mão de tua própria vida, em
nome do falso amor, para comprares o reconhecimento dos
outros, através de renúncias e sacrifícios, nada posso te
oferecer. Se entendeste mal a regra máxima Amar ao próximo
como a ti mesmo, esquecendo-te de amar a ti mesmo, em nada
posso te ajudar”. Era como um nó permanente na garganta.
Não precisávamos falar, para aqueles que percebiam
as sutilezas nas circunstâncias em que haviam se metido,
desconfiavam que as coincidências não deviam existir.
As terapêuticas alternativas agradavam aos
desesperados que eram iludidos pelo verdadeiro tratamento, o
da alma. As histórias sempre seriam similares e eu percebi que a
porção essencial delas estava nas sublinhas não ditas.
Justamente porque não queremos admitir que a nossa
160
personalidade necessita de reparos urgentes.
Quanto mais grave a enfermidade for, mais doloroso
será o processo de aceitação de nossas falhas morais. E muito
mais intricado os métodos sutis de inserção deste novo
paradigma tão aspirado. Toda cura se processa da alma rumo ao
corpo debilitado, sendo entremeada por uma mente bastante
temperamental.
Com um tato subliminar para não ferir a nossa
dignidade cega. Para nos enganar com métodos que aceitamos
e acreditamos, que apesar de serem espirituais nos deixam
fascinados. A verdadeira transformação se opera de dentro para
fora.
E eu não estava pronto para isso.
Todos chegavam abatidos, como se o combate
dependesse dessa beneficência. Encarávamos os nossos
salvadores, que sorriam, com a dor de nossas fraquezas.
Pensava que eles emitiam uma magnificência que me causava
abatimento e desprezo por minha insignificância. Não podia
suportar aqueles olhares de compaixão infinita. Muitos se
161
ofereciam ao choro convulsivo sem se darem conta. Como era
intolerável olhar para aqueles olhos compassivos, que nada
desejavam.
Eu estava disposto a romper com esta ilusão. A
palavra-chave era confiança. E eu confiava, tinha fé em Deus. E
isto bastava?
Os procedimentos de imersão incluíam massagens,
terapias e reuniões entre os internos. E as mais simples
costumavam ter resultados insonháveis. Para mim, submeter
aos cuidados de incógnitos, causou-me uma reação forte e
inesperada. O quadro mental me abalou com a simplicidade de
suas imagens. Uma humilde massagem nos pés exprimia a mais
sublime das abnegações que eu poderia conceber. Talvez a
imagem de uma Maria Madalena lavando os pés de nosso
Senhor tenha contribuído para o impacto.
E os demais reagiam segundo as suas ilusões
permitiam. E se uma palestra falava do futuro e suas conquistas
diante dos sonhos perdidos, logo mais eu ouvia alguém abalado,
revendo a importância da doença que lhe tirou as
oportunidades de toda uma vida. O futuro promissor teria que
162
ser revisto.
Ou seria a chance de construir um novo amanhã?
“Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo
começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo
fim”.
Eu tinha que estar pronto para.
A chance se aproximava e eu teria que desembuchar.
O meu maior obstáculo era não conseguir pedir ajuda. Sempre
considerei que poderia fazê-lo pelas minhas próprias forças,
porém existiam intricadas considerações do meu ego arrogante
que me impediam. Uma barreira que só percebi quando tentei
atravessá-la. Uma barreira intransponível criada por mim.
Gaguejei para tentar falar. Supus que seria mais fácil
se eu pedisse algo mais simples.
Mas não era.
Rodei em círculos para alcançar o meu desejo.
Quando a chance despencou, após passar por vários
163
voluntários, – para a minha aflição – estava face a face com
aquele que me daria a resposta final. Eu poderia fazer uma
massagem nos pés de um amigo? Um amigo que reclamava o
atraso do benefício e parecia dar a mesma importância que eu
para a terapêutica.
― Eu poderia fazer uma massagem nos pés de um
amigo?
Óbvio que não. Pois não tinha a mínima importância o
resultado que surgiria desta indagação, eu havia superado algo
instransponível para o meu ego. Assim que a adrenalina cedeu,
tremia com satisfação. Estava livre de uma perturbação que não
me deixava ver que a confiança não era por ações externas, e
sim em mim mesmo.
Estava aprendendo a confiar em mim.
164
165
20
“É tolice e desnecessário a uma pessoa continuar sofrendo simplesmente
porque não alcançou a Iluminação quando esperava alcançá-la. Não há insucesso na
iluminação, a falha reside nas pessoas que, durante muito tempo, procuraram a
iluminação em suas mentes discriminadoras não compreendendo que estas não são as
verdadeiras mentes, e sim, falsas e corrompidas, causadas pelo acúmulo de avidez e
ilusões, toldando e ocultando suas verdadeiras mentes. Se este acúmulo de falsas
divagações for eliminado, a iluminação aparecerá. Mas, fato estranho, quando os
homens atingirem a iluminação, verificarão que, sem as falsas divagações, não poderá
haver iluminação”. A Doutrina de Buda.
Mateus 36:04-18
A tudo observei inabalável.
Contemplava o mar chocando-se contras as pedras e
se desmanchando em uma névoa que gotejava das folhas das
166
árvores. O caminho entre praias margeava o penedo que se
diluía em brancas espumas. Gaivotas mergulhavam sobre as
ondas para desaparecerem em uma ilhota longínqua. A grande
pedra se elevava inflexível aos embates da água.
Estava, sim, consciente da grandeza da minha
transformação. O reino que me envolvia em suas lutas
incansáveis de uma discussão interminável nascia como um
paraíso de oportunidades. Sonhamos pelos momentos difíceis e
a chance de superá-los, ou simplesmente por uma experiência
diferente. Ansiamos pelas dores e alegrias, somos movidos por
incumbências que geram todas as experiências da vida.
E o mundo surge perfeito, mecanismo de chances sem
fim, experiências ilimitadas proporcionadas pelo caos. O espírito
anseia por descobrir a sua verdade. Como saber tudo sem ter
que entender nada.
Porque algo formidável deflagrou em mim.
Quando eu principiava a ponderar as minhas falhas. As
tais lamentações que me prendiam em um passado de: se
tivesse feito ou desfeito isso ou aquilo. Os caminhos obstruídos
167
por minha inépcia em lidar com as soberanias de um destino já
escrito, ainda ecoava em mim, o mal não merece a minha
consideração. A ação do mal passa pelo crivo da bondade de
Deus e que tudo caminha para o meu bem.
E o passado faz parte de mim, porém não pode
dominar toda uma vida que se perpetua além desta existência.
O passado não determina o que sou, embora molde quem sou.
As provas e expiações devem cumprir o seu papel.
Eu deixo que elas se cumpram?
Respirei fundo diante do dilema. O ego se esfacelava
dando origem a novas reflexões sobre a vida. Não havia falha,
tudo estava perfeitamente posto. Eu estivera errado, criando e
recriando as minhas sensações sobre relacionamentos que
julgava saber e analisar antes de ser tragado pela minha
personalidade, fugidia e dissimulada que ainda ditava as regras.
Humores que flutuavam logo que eu supusesse saber
algo dos meus interlocutores. Reagia às impressões colhidas,
agia ao que considerava compreender e criava a máscara.
Subegos doentios e tensos que se apoiavam em ideias
168
erroneamente sugeridas por uma mente discriminadora.
E quando todas as preocupações e medos
desapareceram tão abruptamente, me perdi em reações que
não encontravam sustentáculo em meu acérvulo de
experiências humanas.
Ainda não me adaptei ao evento. As ações que
comprometiam o meu equilíbrio foram substituídas por uma
clareza incomensurável.
Estou pasmo.
169
21
“O primeiro passo é saber e aceitar que
você escolheu que ela fosse o que é. No
sentido mais amplo, todos os eventos ruins
que acontecem são de sua escolha. Porque
ao fazer isso você chama o seu eu de ruim,
já que os criou. [...] Entretanto bendiga
tudo, porque tudo é criação de Deus,
através da vida que é a sua mais importante
criação. A oportunidade de fazer o que
quiserem e experimentar o resultado disso.
Transformar o conceito em experiência”.
Conversando com Deus. Neale D. Walsch.
Inari 36:11-01
Ares de um inverno infindável.
170
O frio abafou os meus pulmões como mil agulhas. O
panorama branco cobria os galhos com neve densa, estava
acocorado em um desses galhos quando percebi não estar só.
Juroo-kun pedia silêncio de olhar significativo e
indagador. Ambos estávamos a vários metros de uma trilha
cerrada. Segurei-me com força à arvore com a trovoada de
cavalos que desciam o caminho estreito e tortuoso em
perseguição de um fugitivo incorpóreo.
Antes que os soldados passassem por aquele campo,
Juroo-kun deslizaria pelo tronco para se projetar contra o
paladino que foi sequestrado de seu cavalo que continuou
trotando impassível. O impacto no ventre precipitou o homem
contra o plano branco, ajudando Juroo-kun a se lançar de pés
deslizantes em respiração arfante.
O soldado desembainhou a espada que foi extraída
por um tolo e preciso gesto de seu oponente que o deixou
inconscientemente à orla do bosque. Juroo-kun acenou-me para
que descesse. Mas como?!
A prerrogativa para este mundo de alucinações, as
171
suas leis naturais se sustentavam nos meus desejos e eles eram
um pouco mais flexíveis do que aquelas que regiam a minha
realidade. Saltei sem medo de morrer.
Quando cheguei ao solo estava intacto. Visualizei os
mais de quinze metros do qual caí. Quase desmaiei de euforia
com a inundação de adrenalina. Juroo-kun me observava calado
e expressão ofendida. Ele detinha um ar circunspeto em seus
dezessete anos, ultrapassando a minha aparente adolescência
em quase três anos.
― Não é uma boa ocasião!
E não esperava um mundo de conflitos e batalhas
sangrentas em minha imaginação. ― Mas eu estou aqui por
algum motivo... O quê está se passando?
― Os daimyo de algumas províncias se reuniram para
apoiar a volta dos poderes políticos do Xogum para o Imperador
e para um conselho feito somente de daimyo. Estão cortando os
suprimentos com a ocupação das rotas de mantimentos, pois a
região é a ligação entre o oeste e o leste do país. ― atento aos
soldados remanescentes.
172
Descemos a encosta até chegar a um posto de
vigilância danificado. ― E você está defendendo...
― A vila, os meus amigos e a família. Nesta guerra
somos intrusos para as frentes de batalha. ― percebi a sua
fragilidade e tristeza como se fossem as minhas. ― Preciso
defender aqueles que amo e, sobretudo as que me amam.
Por que eu estava criando este conflito? Nenhum
pensamento meu poderia ser paradisíaco e imutável? Ou eu
estava me deslembrando de algo? ― Pensei que fosse um
monge!
― Sou um artesão, quem sabe até seja um bom
combatente, contudo ainda não penso em meditar. Por que
pergunta, Inari-san?
Ele o será, eu sabia. ― Onde aprendeu a lutar?
― Meu pai servia à Guarda Imperial em Edo e me
ensinou algumas técnicas de defesa. Elas estão sendo muito
vantajosas.
― Um samurai?
173
― Ninja. Os homens do xogunato são samurais. Como
aquele que facilmente derrubei. Era de uma patrulha de
fronteira que tem um posto de checagem nesta província.
Se aquilo foi simples, o que ele podia fazer? ― Eu
estou causando toda esta agonia e sofrimento? ― ele ficou
assustado.
― Acredito que os eventos estejam unidos. A sua
perturbação e a nossa liberdade para recriar este mundo. Os
conflitos nos possibilitam crescer.
― Com dor?
― Isto só depende de cada um. O sofrimento é uma
ilusão e, portanto, para aqueles que entendem a verdade, ela
inexiste.
― E para você? ― estava preocupado com ele.
― Aproveito para fortalecer o meu espírito, embora
seja complicado. ― Observei que o caminho até o casebre já
havia sido percorrido por quatro pés. ― Inari-san, eu tenho
companhia...
174
O homem retirava o seu casaco rústico, sacudindo-se
vigorosamente em gritos de júbilo. ― Eis o Kikuchyo.
Para mim, aquela pessoa ostentosa e burlesca, tinha
outro nome de guerra. ― Tiago?! ― e escorava a sua espada
junto a um rifle rudimentar.
― Só de passagem. Os altos impostos me obrigam a
ficar... ― Ele estava me dizendo que era um observador, ou o
que quer que seja. ― Juroo-san, os homens ficaram com medo.
Estão sussurrando que o bosque é assombrado.
Juroo-san sorriu. ― Com os demais aldeões nas
cavernas do Monte Kami, posso descansar um pouco. ― e
deitou-se de olhos fechados e ouvidos bem abertos.
― O que está fazendo aqui? ― tentei cochichar aos
berros.
Tiago ou Kikuchyo parecia distraído com as suas armas
quando por fim se pronunciou. ― Quero ver tudo com os meus
próprios olhos. Esta batalha provê de você e suas dúvidas. Para
manter o estado de iluminação é necessário fortalecer
firmemente o seu espírito para não se entregar às ilusões da
175
mente, Mateus.
― E quando começou este tumulto?
― Da vontade de suplantar os seus medos em
preocupações infatigáveis. E supérfluas. ― Tiago olhou pela
abertura um ruído suspeito. ― É só um dos meios de equilíbrio
da sua alma.
― Eu estou destruindo tudo com a minha tola
insegurança. ― pus-me a sentar depois de tanto tempo em pé,
chocado com a visão de Tiago neste mundo de caos.
― Sim e não. A destruição é inevitável, independe de
seu livre-arbítrio. É gerada pelo preenchimento dos vazios com
as experiências criadas pelas suas sombras. Em imaginações
mais poderosas, estes vazios tendem a ser supervisionados pela
mente superior de seu criador. No seu caso, basta colher os
frutos caídos...
― É um mundo autônomo e mesmo assim eu sou o
criador? ― até planetóide com um vulcão, uma rosa e o medo
diário das sementes de baobás carecia de um guardião.
176
― Não importa o seu entendimento, as experiências
são colhidas, a sua consciência e subconsciência moldam os
parâmetros que são absorvidos pelas sombras. E elas lhe
repassam estes novos conhecimentos de formas não
compreensíveis, porém válidas.
― Hã. ― Juroo-san deixou escapar um sonho.
― Por serem você, as sombras compartilham o
mesmo conhecimento e os dois interagem em ciclo contínuo e
ininterrupto. Pois você constitui o universo deles. ― se Tiago
estava tentando alimentar o meu ego, com sensações de poder,
fama e grandeza, ele estava conseguindo me irritar. ― Com
quantos se relaciona em seu planetóide?
― Só com ele! ― apontando Juroo-san que não sabia
fingir dormir.
― Para Deus, isso não passa de um esboço primitivo.
Ele está consciente em cada ser vivo do universo. E conversa
com eles. De seu jeito... ― Tiago se aprontava para partir. E me
convidou. Não antes de chutar Juroo-san. ― Me acompanhem!
Afastamos-nos do refúgio após comer algum peixe
177
defumado e tomar vinho de arroz. Partimos além das trilhas,
abrindo caminho pela floresta ao sopé das colinas. Ao longe, a
montanha com seu frio interminável, vigiava o vale em brumas
silenciosas. As embarcações estavam hibernando em um cais
abandonado de uma cidade fantasma. Os soldados circulavam
invadindo os lares vazios. Percebi o olhar magoado de Juroo-san
para com o seu vilarejo sitiado por homens de guerra.
Perguntei para Tiago. ― Como eu devo esclarecer a
sua presença para ele?
― Juroo-kun, diga para ele quem eu sou. ― Juroo-san
parecia acabrunhado e desarmado. Olhava-me tentando achar
palavras para me contar quem era Tiago. Não era para ser o
contrário?
― Ele – Tiago ou Kikuchyo – é o espírito que me guia...
― Mas ele é o meu também?! ― automaticamente
nós dois encaramos Tiago. Ele sempre sorria.
― Qual é a surpresa, vocês não são praticamente a
mesma pessoa? Se um é parte do outro, eu não deveria estar
em ambos? Além do mais, eu sou a ponte entre os seus mundos
178
e outros dos quais nem desconfiam. ― Tiago se acercou de mim
e rispidamente me puxou pelo tórax, agarrando-se com
brutalidade ao casaco. As suas feições se fecharam em rancor
explosivo. ― As suas opiniões firmes devem ser enfrentadas e
aniquiladas. Elas são a razão de seus conflitos. A verdade não
suporta falsas convicções de uma personalidade persuasiva e
subjugada pelas ilusões soberanas e opressivas.
― O quê! ― estava indignado.
Ele me lançou para trás com ferocidade, derrubando-
me comicamente de costas. ― Defenda-se de si! ― Gritou com
tanto ênfase que me ergui sobressaltado diante de um impulso
não esperado.
Juroo-san se afastou ao sinal de Tiago. Ele parecia tão
absorto quanto eu. Apesar disso a perturbação se transformou
em medo quando ouvimos o trotar de um cavalo irromper em
minha direção.
― Defenda-se...
Percorri alguns passos e saltei sobre o animal com as
minhas pernas recolhidas quando catapultei o soldado, que
179
voou para trás sem reação. Caí sobre a sua armadura e com um
impulso dinâmico me afastei tão ofegante e nervosíssimo que
quase desfaleci. O espadachim me assaltava de espada em arco
enquanto o cavalo sumia. Juroo-san e Tiago observavam
incólumes e indiferentes. Precisava pensar mais rápido.
A ofensiva custou-me um rasgo no meu flanco
sangrando. Desvencilhei-me com maestria jamais cogitada por
mim.
Este mundo é meu.
Com ação, bati a palma da mão na neve que se
convulsionou em uma grande onda branca que derrubou o
homem. Ele estava soterrado, eu pude ver os seus olhos
apavorados. Recuei com o reconhecimento.
Aquele jovem samurai exalava os mesmos medos que
eu encerrava nas profundezas da minha alma. O medo de ser
exprobrado e ser julgado pelas fraquezas. O medo de enfrentar
o incógnito com uma personalidade frágil e submetida aos
olhares inquisidores. Reconheci-me em sua acuada fragilidade,
seu ego o impulsionava a se enquadrar nesta batalha que ele
180
não queria lutar. Este pavor se transmutaria em uma rebeldia
satânica se eu não fizesse nada.
― Este é um dos fragmentos que mais o assola. ―
Tiago se dirigia a Juroo-san. ― O medo que ganha vida a partir
de suas preocupações.
― E ele não as suprimiu?
Encarei o combatente com parcimônia. O samurai
estava pálido e curioso comigo. ― Toda preocupação é a porta
de entrada para os medos e é este estado que destrói a... ―
tinha que terminar a frase.
― Se não eliminar as suas tolas inquietações... ―
frisou Juroo-san.
― Nunca seriam inteiramente extraídas, né?
Tiago se aproximou olhando diretamente para o
soldado abatido. ― E quem disse que esta é a resposta? Mude a
sua ideia sobre os problemas. Não somos todos irmãos? E não
tenha medo de admitir que a sua experiência tenha nome.
― Todos cumprem as suas provas, mesmo que
181
inconscientes. ― Soltei o jovem e fiz uma dilatada reverência
com o intento de desculpar-me. Depois de algum tempo ele me
respondeu com honra e montou o cavalo espantado. ― Estes
são os nossos desígnios, não cabe a nós decidirmos os valores
pelo qual julgamos ou somos valorizados. Nenhuma
preocupação merece a minha consideração.
― Tornará-te arrogante. ― Juroo-san parecia perder
uma guerra. ― E esta arrogância te tornará apático diante dos
homens.
― Mas veja os seus olhos. Inari jamais esteve mais
sereno. ― Tiago estava contente com o resultado. ― É o preço
pela conquista da paz.
― É a iluminação. ― percebi como recriar o evento. O
vislumbre indizível que parecia desaparecer diante dos medos
sedutores.
As dores e os sofrimentos alheios não passavam de
vestígios exprimidos pela ignorância. O que podia ser certo para
um, podia ser errado para o outro. As preocupações
avassaladoras provêm dos anos de subordinação de nossas
182
mentes ao statu quo. Reagimos como reagiriam os nossos
antepassados. Somos aqueles com sentimentos represados que
repetem sempre as mesmas reações. Não há raciocínio. Não há
experiência. Nem a busca pela verdade.
O mundo mudou.
― O seu oponente será mais um amigo neste universo
de personalidades. Assim como Juroo-san, vocês logo estarão
juntos. No momento ele precisa de tempo para compreender...
― apontava Tiago para o cavalariço mais adiante. ― Ele se
nomeia Shinji.
― Compreendi que para controlarmos os excessos
devemos nos submeter aos sentimentos. Tudo pode mudar sem
que nada nunca mude... ― Juroo-san não se conteve.
― Como eu faço para controlar os cinco elementos?
Ele não fazia ideia das premissas de seu mundo?
Eu sorri como nunca.
183
184
22
“Ó mente! Por que pairas incansavelmente
assim sobre as cambiantes circunstâncias
da vida? Por que me deixas tão confuso e
inquieto? Por que me incitas a coligir tantas
coisas? És como o arado que se quebra em
pedaços antes de começar a arar; és como o
leme que se desmantela, no momento em
que te aventuravas neste mar da vida e da
morte. Para que servem os muitos
renascimentos se não fazemos bom uso
desta vida?”. A doutrina de Buda.
Tarō 06:02-20
Um dia de céu de oceano em que os ventos
desenhavam barcos em nuvens vagarosas. Rodopiando os
185
pássaros e acariciando a vegetação que rompia na esperança de
uma primavera precoce.
Perdia-me em pensamentos vagos em que o meu pai
precisava me acordar. — Vamos, Tarō-kun! Cuidado por onde
anda. — O caminho estava movimentado desde Hamamatsu e,
o vale com as suas montanhas, ainda apresentava perigos
naturais ou ladrões escondidos na floresta.
Os comerciantes de Edo e os aldeões das províncias
próximas vinham até a pacata vila, nas margens do lago, para
consultar o sábio do templo da montanha. Esta seria a
oportunidade de conhecê-lo e descobrir porque papai o amava
tanto. Estávamos indo para Edo onde eu poderia ser aprendiz
de um artífice que me ensinaria a gravar belas pinturas sobre os
homens e a natureza. Mamãe dizia que eu tinha muito talento.
Eu estava aprendendo a escrever e em breve poderia
ler, adorava entender os avisos dispostos pela estrada desde
que saímos de Kyoto. — Talvez o meu avô possa te ensinar a
não ficar no mundo de fantasia. Estamos pertos! — O sábio era
o avô de meu pai.
186
Havia muitas pessoas esperando para serem
chamadas pelos monges do templo, muitos doentes e
sofredores buscavam alívio. Mal chegamos ao topo e ele me
chamou, como se nos esperasse.
Seus olhos perscrutadores e a longa barba me
causaram um reconhecimento perturbador. Enquanto papai o
abraçava, para o constrangimento de muitos, vi um quadrado
colorido disposto estrategicamente para ser visto assim que
chegássemos. Ele percebeu que eu não tirava os olhos dele.
Catou-o e pôs bem perto dos meus olhos. Sorriu
sarcasticamente e embaralhou as cores em frações menores e
desarranjadas.
― Como começou o seu despertar, este será o meu
presente para você. — peguei o quadrado com admiração. —
Estou lhe restaurando o brinquedo. — e falava para algum
fantasma acima de mim.
― Não entendi, ojii-san!
― Ainda nos veremos, em outras formas e ocasiões
adoráveis. Mas eu queria muito te ver para contar que a mente
187
disciplinada alcança mundos impensáveis e a vida sempre nos
levará a ocultá-los nas ilusões. — Papai parecia assustado. —
Veja a todos com novos olhos. Que em sua vida encontre a paz
que tanto busca. E que a serenidade de Buda o acompanhe. —
passou as suas mãos vacilantes pelos meus cabelos.
Encaminhamo-nos para a estalagem e papai parecia
confidenciar algo na penumbra. — Juroo-jiisan encontrou o seu
mestre!
188
23
“Há quatro estados mentais ilimitáveis que
devem ser nutridos por todo aquele que
busca a iluminação: a compaixão, a ternura,
a alegria e a equanimidade. Pode-se afastar
a cobiça nutrindo-se a compaixão. Pode-se
afastar a ira com a ternura; pode-se
remover o sofrimento com a alegria e pode-
se remover o hábito da discriminação entre
amigos e inimigos, nutrindo-se uma mente
equitativa”. A Doutrina de Buda.
Mateus 11:11-11
Acordei com o coração na boca, realmente eu não
dormi.
A felicidade não é uma conquista do homem, é o
189
exercício constante do amor. E ele pode acontecer em manhãs
tenebrosas que antecedem longas viagens de uma ansiedade
insuperável. Quando o carro tomava fôlego e entrava em
velocidade de cruzeiro, quando o sol sobrepujava a madrugada,
parávamos para a refeição mais importante dos campistas.
Depois de trinta longos minutos, estávamos comendo
ovos cozidos com uma pitada de sal, muito leite achocolatado e
sanduíches de papel alumínio salvos de uma bolsa térmica.
Durante o trajeto, eles seriam devorados até a sua extinção.
Subíamos a serra, puxando um trailer minúsculo. A
velocidade registrada pelo radiador fervendo não passava de
uns poucos quilômetros por hora. A caravan regurgitava
cansada e quatros crianças pulavam alegres com a expectativa
de verem o mar. Ainda faltavam vários e intermináveis
quilômetros.
Porém era a mesmíssima sensação de verões quentes
na piscina do clube, aonde corríamos tirando as camisetas
apertadas para aquele oásis só nosso. Esbanjávamos água até o
almoço mais saboroso de nossas vidas. Nervosos pela fome. O
190
inigualável macarrão com atum. E talvez salada.
A expectativa antecedia as férias com propostas de
viagens que nos faziam estudar com afinco. Antes que o ano
letivo terminasse, fechávamos as notas máximas necessárias
para escapar de provas e recuperação. A vontade de viajar fazia
com que ansiássemos pelas férias, obedecendo – às vezes – as
regras de casa e cumprindo as nossas obrigações – que
pareciam muitas.
Tudo isso para acabar num camping mal-acabado,
cheio de gente debatendo calorosamente as suas vidas
enquanto lavavam roupas nos tanques coletivos. Com crianças
sonolentas e cheias de areia da praia em choro malcriado.
Gritos, muita música barulhenta, fumaça de churrasqueiras
improvisadas e noites apertadas em camas duras de barracas ou
de embutidas como prateleiras.
Enfim, era a melhor coisa do mundo.
Mesa se transformava em cama de casal e torneira em
chuveiro. Um fogão para cozinhar macarrão, com atum. Uma
geladeira com um litro de leite da vaca marrom. Uma maleta
191
seria uma mesa com prateleiras de lona e nós ainda limpávamos
os olhos remelentos querendo correr para as águas
encantadoras do mar.
A felicidade rompia de nossas carapaças com tanta
facilidade que não poderíamos pensar que fosse o contrário.
192
24
“Vou vos revelar a infelicidade sob uma
nova forma, sob a forma bela e florida que
acolheis e desejais com todas as forças de
suas almas equivocadas. A infelicidade é a
alegria, o prazer, é a fama, é a agitação, é a
louca satisfação da vaidade, que fazem
calar a consciência, que comprimem a ação
do pensamento, que atordoam o homem
sobre o seu futuro. A infelicidade é o ópio do
esquecimento que reclamais
ardentemente”. Evangelho segundo o
Espiritismo V.24. Allan Kardec
Mateus 36:11-05
Qual é o fundamento da minha felicidade?
193
Por mais que eu aceite uma experiência que me
aproxima de um Buda, nego o meu domínio sobre um singelo e
conciso instante sublime.
Buscar respostas verdadeiras para problemas ilusórios
nasce da vontade de me reconstruir, de aceitar este vestígio
luminar. Uma brecha no espírito quase indetectável que contém
percepções, sensações e sentimentos indescritíveis. Mas,
mesmo assim, muito pouco para fazer a diferença.
Porque aqueles que arregaçam as mangas trabalhando
e ajudando os sofredores e fascinados pelas ilusões prazerosas,
mesmo sem a compreensão do seu mundo, agem movidos pelo
amor.
Que sentimento é este?
Só conheço o apego disfarçado de um amor
perpetuado por décadas de sugestões malbaratadas. “E os meus
medos? Medo de perder o que possuo, medo de não ser bom
para aqueles que me cercam, medo de não agradar
devidamente às pessoas, medo de não dar conta, medo de que
descubram o meu íntimo, medo de que alguém descubra as
194
minhas verdades e as minhas mentiras, medo de não conseguir
realizar o que planejo, medo de expressar os meus sentimentos,
medo de que me interpretem mal”. Estes não são os dramas de
todos nós?
O que leva uma pessoa a fazer acontecer o seu
destino, de aceitar o seu lugar no mundo como lhe é ofertado.
De se submeter aos seus medos e buscar a sua cura. Porque a
vida lhe foi dada de graça e existem em si remédios para todos
os seus males.
O que nos leva a construir os nossos caminhos,
lutando e encarando todas as angústias e dores do percalço. De
enfrentar a monotonia e a depressão em que nos acomodamos.
De vislumbrar a felicidade?
A doença sempre me obrigará a enfrentar este dilema,
será que conseguirei ouvir? Afianço que eu sou tão frágil quanto
os outros.
Se na base de todos os medos se encontra a
incapacidade de se prever os acontecimentos; tenho dentro
deste controle duas respostas: a frustração por não conseguir
195
alcançar os desejos e, a euforia ou êxtase por tê-los alcançado e
deste modo surge a aflição e a angústia ante a incerteza de
manter este estado ou, a apreensão em conseguir
continuamente este estado de felicidade fugaz...
“Onde, então, está a fonte de toda tristeza, da
lamentação, do sofrimento e da agonia? Não deve ela ser
encontrada na ignorância e na obstinação? Os homens se
apegam obstinadamente à vida de riqueza e fama, de conforto
e prazer, de excitamento e egoísmo, sem saber que estes
desejos são a fonte do sofrimento humano. Levados por sua
ignorância, os homens estão sempre formulando pensamento
errados, estão sempre emitindo falsas opiniões e, apegando-se
ao seu ego, agem erradamente. Consequentemente, eles se
entranham cada vez mais no mar de desilusões”. Conselho
absurdamente relevante depois de 2.500 anos?
E o autoamor não pode ser confundido com egoísmo,
que é o orgulho de ter e ser mais do que é. De suplantar o outro
pela submissão. O autoamor impõe o seu caráter humanitário
às convicções de um estado superior de si, é o despertar da
inteligência para eleger o melhor para si. O ser ideal é aquele
196
que caminha no meio, em equilíbrio, entre o orgulho e a
submissão, a arrogância e a humildade, que nada mais é que a
sublimação.
O comedimento dos excessos físicos e, além do mais,
os emocionais, assim como controlar estes impulsos do corpo
que tentam governar a mente desesperançada, são o primeiro
passo para se alcançar a iluminação.
Para muitos, esta atitude não passa de uma confiança
inabalável em Deus. Como eu os invejo. Conseguem as mesmas
respostas por saber tudo, sem entender nada.
A felicidade está e sempre esteve dentro de nós,
soterrada e subjugada por nossas preocupações tolas. Ela é o
estado descrito por Buda que não se perde nem é destruído, tão
logo toda a corrupção seja removida, ele sai de sua latência e
reaparece.
Deus assim nos diria: ― “Todos os pensamentos e atos
humanos se baseiam no amor e no medo. Tendo assim criado
todo um sistema de pensamento sobre Deus baseado na
experiência humana, em vez de nas verdades espirituais, vocês
197
imaginam toda uma realidade a respeito do amor. O medo é a
energia que paralisa, leva-os a fugir e fere. O amor expande,
partilha e cura. O medo os fez segurar tudo, o amor dá tudo aos
outros. O medo sufoca, o amor mostra afeição. O medo oprime
e o amor liberta. O medo critica e o amor regenera”.
O amor é indescritível.
198
25
“Marcha avante, falange imponente pela tua fé! E os grandes batalhões
dos incrédulos se desvanecerão diante de ti como as brumas da manhã aos primeiros
raios do sol nascente. A fé é a virtude que ergue as montanhas, vos disse Jesus; todavia,
mais pesado do que as mais pesadas montanhas, jazem nos corações dos homens as
impurezas e todos os vícios da impureza. Parti, pois, com CORAGEM para erguer esta
montanha de iniquidades que as gerações futuras não devem conhecer senão no estado
de lendas, como não conheceis, vós mesmos, senão muito imperfeitamente, o período de
tempo anterior à civilização pagã”. Evangelho segundo o Espiritismo V20. Allan Kardec
Mateus 36:11-12
O vento revolucionava erguendo as farpas e
impedindo-me de ver adiante com o braço protegendo-me. O
céu cinza parecia esmagar os meus impulsos de uma
obscurecida ingratidão.
199
A chave para o meu sucesso é a compreensão absoluta
de que o universo conspira a meu favor, sempre.
Pode até ser uma frase clichê, porém estou falando de
uma verdade pouco observada – e amplamente difundida. Basta
me conhecer melhor e o quê este eu realmente precisa. Eu
pensava que sabia.
Depois de nove meses de diálogos fictícios nascidos de
eventos supremos – pelo menos para mim – esperava que o
universo estivesse cantando para mim. No entanto esta seria
mais uma chance para desvendar que, mesmo passando por
estas experiências impensáveis, estava deixando passar algo.
Não me sentia sintonizado. Eu não estava de acordo
com os meus mais perfeitos desejos? Pois as circunstâncias
advertiam que, o que eu queria não estava em concordância
com o que estava me acontecendo. Começando pelos meus
sentimentos.
Estava prestes a passar por uma quarta intervenção
espiritual, bastante abalado porque eu não sentia as mesmas
sensações de angústia e esperança, como se esta ação
200
impactante não passasse de um hábito.
Quase um autômato sem emoções que só tinha uma
suspeita, será que eu ainda tinha fé na cura? Não estou
negando a minha confiança em Deus ou nos procedimentos,
pois eu estou melhorando, mas, até onde eu devo ir para não
ser absorvido pelo medo do amanhã? Será que isto me
estagnará, mesmo diante de milagres?
Seja blasfêmia ou não, são as minhas verdades.
No entanto esta foi a mais dolorida de todas, como se
quisessem me dizer para rever os meus conceitos. Quais
conceitos? Não posso negar todas as respostas alcançadas, nem
me sujeitar a dúvidas. Eu conheço a verdade, mas ela ainda não
me libertou?!
Se não me livrar do meu personagem doente, ele se
livrará de mim. Uma frase que me causou bastante impacto,
considerando que eu imaginava já tudo saber.
Por um breve instante o vento cessou, acalmando a
balbúrdia de carros em despedidas longas e felizes. Não percebi
201
a armadilha que me alcançava na voz de um desconhecido.
― Eu acredito que você vai se curar. Mas a sua fé
ainda é pouca!
Nada poderia ser tão desorientador e provocar, em
mim, lampejos de cólera mascarada, do que questionar a minha
fé. Nestes últimos meses acreditei seguramente que havia
compreendido os diálogos comigo, com Tiago, e reforçado a
minha confiança em...
Confiança em quem?
Este sentimento colérico que brotou com tanta
ferocidade que mal me contive. Tive que usar da razão para
ocultar os meus pensamentos pusilânimes. Por que todos
insistiam em me apontar os dedos, criticar a minha fé e supor
que eu não me exaltaria? E por que eu me exaltei?!
Pela primeira vez me via encurralado dentro de mim.
Tinha que admitir a minha mais hermética e soberba
ignorância. Fui levado pelas minhas fraquezas ocultas, aquelas
que, desesperadas e perspicazes, me carregaram em louros de
202
um passado indigno que é o fundamento daquilo que sou.
Pus-me em defesa dos meus sentimentos ardilosos e,
antes que pudesse ser levado por uma onda de depressão e
amargura, invoquei a máscara da soberba com toques de uma
tolice travessa.
Respirei com parcimônia e repeti o que sentia
conquistar, a serenidade de Buda passa pelo comedimento dos
excessos e pela disciplina da mente. Como o primeiro passo
para se livrar dos vínculos e grilhões dos desejos mundanos é
controlar a própria mente, é cessar as conversas vazias e
meditar. Eu só não imaginava que as tais conversas vazias
seriam produzidas dentro de mim, pelo meu ego.
Nós atraímos aquilo que tememos. E semelhante
sempre atrai semelhante.
Então devo concordar?
Concordar que sou exatamente igual àqueles que
julgo? Pois se reconheço estes sentimentos em outros é porque
sou capaz de...
203
204
26
“Há coisas que seria impossível realizar
contando apenas com seus recursos e
esforços particulares. Porém, essas mesmas
coisas se realizariam com facilidade e
alegria conjugando esforços com as pessoas
próximas”. Quiroga,
Mateus 36:11-15
Um grande dicionário de folhas translúcidas se
aconchegava em minhas pernas enquanto dedilhava os seus
vocábulos arr. Tentava achar a palavra arrogância para fazer
uma comparação com soberba, prepotência e orgulho.
Inadvertidamente pus um dedo enxerido sobre outra
205
palavra não-coincidente.
Arrière-pensèe (arriér-pansê). [Fr.] S.f. pensamento em
que se oculta enquanto se exprime outro.
Essa tinha tudo haver comigo. Como alguém pode
pensar uma coisa e expressar outra sem se passar por um
dissimulado, com segundas intenções, ou seria um erro me
enquadrar nesta ideia de que há pensamentos dissimulados
que, apesar de sua existência, não afetam o pensamento
emitido? Mesmo que eu o rejeite com todas as forças?
― Estamos começando a falar a mesma língua. ―
depois destes dias de agonia e rancor, Tiago retornava.
― Bom dia! ― ainda com raiva por me deixar em uma
situação embaraçosa. ― Por que desapareceu?
― O nosso objetivo era este!
― Como nosso? ― cogitava que iria acabar dando
com a cara no chão.
― Não acha que estes obstáculos eram lances
aleatórios ou promovidos sem qualquer objetivo mais apurado
206
que... ― interrompi-o.
― Nosso?
― Nós planejamos tudo há muito tempo com o
objetivo de atacar os seus mais profundos e primitivos
sentimentos que alicerçam a sua personalidade. Como se sente
quando os seus pensamentos e suas ideias são frontalmente
interpelados pelos seus sentimentos discordantes?
Como eu me sentia? Eu tentava ignorar aquilo que
parecia doentio e incoerente, contudo estava percebendo o
artifício de Tiago. ― Como se uma mão me segurasse o ombro e
me impedisse de tomar alguma atitude. O pensamento lógico e
até desejável é suprimido por um desagradável e inapropriado,
que eu até identifico como irrevogavelmente inimaginável.
Como se estes pensamentos e sentimentos não fossem meus.
― Em alguns casos podem até ser de espíritos mal
intencionados. ― Tiago estava prestes a receber um grande
impacto. ― No seu, em particular, é o ego primitivo e soberano.
Antes que ele concluísse comecei a rir
espalhafatosamente. ― Você me iludiu maravilhosamente bem.
207
― percebi a sua surpresa. ― Auxiliou-me a remover as
impurezas superficiais da alma para que as mais indigestas e
dominadoras personalidades – ou subegos – emergissem. E as
alimentou com as suas fraquezas. Como fui um idiota!
Tiago estava radiante. ― Precisava jogar com a sua
personalidade se eu quisesse suplantá-la. Neste jogo eu duelaria
com a sua arrogância e prepotência, e que eram mantidas por
um orgulho irremovível.
― De onde eles vieram?
― De você, mais precisamente da última vida.
― E o esquecimento do passado?!
― As recordações são apagadas, o que gera os
sentimentos de medo e amor também. Entretanto as impressões
adquiridas passam pela alma que, perturbada, as reintegram ao
corpo. Elas poderiam ficar adormecidas esperando uma
oportunidade melhor para serem enfrentadas.
Sorri em resposta. ― O quê não é o meu caso!
― Queríamos lutar contra estas deficiências.
208
Alimentei o seu orgulho e a sua arrogância com doses
exageradas e possíveis de um desejo pela notoriedade em
consonância com a ideia de que a sua sagacidade poderia ser
maior e melhor que a dos outros.
Assenti com vergonha. ― E estas sensações e desejos
provêm de um passado de glórias e bajulações?
Tiago não precisava dizer nada.
― Que loucura! ― gritei. ― Se somos todos um só,
devo aceitar que não há ninguém que me seja superior ou
inferior. Todo o conhecimento – de Deus – já está em mim, nós.
O que resta é a ilusão e o ego.
― Quando você passou a esmiuçar aquilo que
chamam de coincidências e adotar uma postura de respeito
para com todos, de acolher que semelhante atrai semelhante e
assim calar o seu psiquismo basilar, conseguiu sentir compaixão.
E não estou falando de um pesar fugaz de sintonia com as dores
e os sofrimentos alheios, a piedade, vai mais além.
― Percebi que a minha conexão com os meus
espelhos, com as suas imperfeições de certo orgulho em doses
209
de arrogância, propunham a me abalizar descaradamente os
mesmos defeitos que estavam mascarados por um domínio que
não existia. Domínio sobre todos, sobre mim e das ocasiões
fortuitas.
― Se não tivéssemos nutrido estes estados mórbidos,
eles não passariam de uma voz interior suficientemente forte
para cessar a sua evolução. Manipulando as suas vontades
emergentes. ― Ele não poderia estar mais certo. ― Enquanto
você continuar dialogando com a sua própria alma, as certezas
se tornariam cada vez mais firmes, porém rígidas. Neste
momento precisava dialogar com outras pessoas, e você
percebeu que tais certezas não eram tão firmes assim.
― Sussurram dúvidas, com medo de que eu me
aproxime dos outros. Como uma defesa emocional a...
― A um golpe emocional muito forte. Fazendo com
que você se fechasse em si. ― e tinha mais. ― Mateus, o seu
enrijecimento de coração, o rigor para com os outros, esta
desilusão aparentemente infinita é a sua defesa. E a sua doença.
― Nada acontece por acaso.
210
Tiago desconfiava das minhas ideias e propôs um jogo.
― O seu ego estava jogando xadrez. Não importa quem é o
oponente dele. ― antecipando-me. ― Nesta competição você, a
alma suplicante por uma trégua, é só um observador.
― Estou me vendo jogar?!
― No passado fez coisas mais absurdas, por que não
isto?! ― concordei. ― Embora as regras deste jogo sejam
diferentes, o rei pode ser qualquer peça, inclusive o rei.
― E como eu posso saber quem é o rei?
― Diga-me você! ― Ele estava me testando, e como
eu saquei quais eram os meus defeitos de personalidade antes
que ele me contasse, mesmo que fosse nos últimos dez metros
de uma maratona, teria uma nova oportunidade.
― Pelo comportamento das demais peças em jogo.
― E foi o que fizemos quando engordamos os obtusos
e dissimulados sentimentos de orgulho. Ele precisava jogar, já
que as suas subrotinas – subegos ou personalidades transitórias
– estavam se desmantelando.
211
Saquei. ― Ele estava tentando sobreviver enquanto
nós o observávamos agir. Sinalizando os seus passos e
comprovando quem é o rei.
― Exatamente. Ele não podia ser descoberto, por isso
não interferiu nas suas novas convicções.
― Quais? ― estava confuso.
― De que era imaginável sentir algo além da
compaixão. Sem medo. O orgulho estava enfraquecido. E nascia
a certeza de que não há aquele que seja melhor.
― Nem eu!
Assim eu me igualava aos homens, sem ver as suas
máscaras de poder, subjugação e submissão. E percebia as
minhas próprias falhas emocionais como ferramentas de
sublimação. Começava a disciplinar a minha mente, só
necessitava de um empurrão. ― As suas convicções foram as
suas maiores inimigas. Precisava admitir que todas as suas
observações sobre os outros acabariam sendo as de si. Pois
semelhante sempre atrai semelhante e atraímos o que mais
212
tememos.
― Então... ― estava com vários nós na garganta que
me dificultavam a fala. ―... tudo que está além das minhas
crenças, da minha incapacidade de aceitar fatos e certos
acontecimentos que não sejam só os meus, cria um
comportamento autoritário. Que sou radical em minhas
posições e imponho as minhas opiniões sem me envolver em
ideias adversas. Sou inflexível?
― Talvez não mais. ― Porque Tiago era o único que
conseguia me contradizer sem me irritar. ― Deixe de se
preocupar com os problemas dos outros, que não lhe dizem
respeito. Para não ficar remoendo ou deduzindo as
consequências de fatos que jamais consegue solucionar.
Lembre-se de confiar nas pessoas. Dê a elas o mesmo apreço
que gostaria que lhe dessem.
― Eu já estava estreando os primeiros passos. “Amar
a Deus acima de todas as coisas e fazer ao próximo o quê
gostaria que fizessem a si”. E como termina o jogo de xadrez!
Tiago gesticulava a cabeça, inconformado. ― A sua
213
personalidade mudou as regras do jogo para ganhar sempre.
Este é o objetivo, a defesa das máscaras que veste. Não importa
quem seja o seu adversário, quer vencer a batalha a qualquer
custo, inclusive o de fortalecer o orgulho e a arrogância que te
dirige.
― Algo mudou... ― eu lhe disse convicto.
― Sim. Agora consegue ver os subterfúgios do jogo
que o seu ego perpetra. E pode adotar uma nova máxima, às
vezes para se ganhar é preciso perder.
― Às vezes para se ganhar é preciso perder?!
― Não estamos mais interessados nos resultados...
214
215
27
“...a crença de que Deus é só amor”.
Masaharu Taniguchi.
“Imagina que a alma humana enfrenta os
desafios da vida por acaso? – Quer dizer
que a alma escolhe que tipo de vida terá? –
Não. Mas pode escolher as pessoas, os
lugares e os eventos, as condições e
circunstâncias, os desafios e os obstáculos,
as oportunidades e opções para criar a sua
experiência”. Conversando com Deus. Neale
D. Walsch.
Inari 36:11-17
A névoa formada pela manhã acobertava o vale e se
esgueirava entre os picos mais altos quando os primeiros raios
216
de sol a dissipou completamente, expondo as águas tranquilas
com seus navios aportados na baia solitária.
Um sopro obstinado escalava pela encosta me
atingindo com ânimos combalidos. Estava abraçado às pernas
com parte do rosto velado pelos joelhos, pensativo ao extremo
de transformar a meditação em uma solidão bem vinda. Salvo
por ideias saudosas de devaneios nas noites frias dos desertos
solitários, sob uma fogueira luminar e o coruscar das estrelas
setentrionais. As nuvens abandonavam os tons arroxeados e
laranjas com a ascensão do sol em nascente.
Os sons dos madrugadores aqueciam as vidas da
cidade despertada em atuações ritmadas e firmes de
embarcações que começavam a partir. As velas inclinadas se
enchiam com os sopros desta brisa imutável.
Um grito mortiço e enfraquecido despertou-me do
meu ostracismo egocêntrico. Levantei-me para descobrir uma
mulher caída no meio do orvalho. Estava em parto. Agachei e
com coragem a abracei em meus braços.
Um jardineiro fiel gesticulou-me.
217
Levou-nos até um dos quartos baixos do templo da
montanha e enviou seu aprendiz para a vila em busca das
parteiras e mulheres. Com um gesto decidido deitei-a sem
cerimônias. O dia seria longo.
Os monges pasmados não agiam, senão por suas
cantilenas de orações monocromáticas. Uma velha dama, de
lábios raiados e olhar cerradíssimo, parecia saber o que fazer e
encostou os painéis com inata sabedoria. Aos poucos, as
mulheres da vila, enfaixadas em quimonos, traziam panos e
outras proficuidades.
Os gemidos e gritos alcançaram o seu ápice com o
estouro de um choro ingênuo. Um alívio que me acalmou por
alguns instantes, antes que vozes apreensivas irrompessem com
a dispersão das agitadas mulheres em seus rostos patibulares e
o recém-nascido fosse deixado em meus braços.
A mãe cansada pelo esforço ficara só.
Ela olhava-me com amor, compaixão. Retribui com o
meu melhor sorriso quando senti a criança se agarrar ao meu
dedo e aquietar-se. Apertei-a contra mim.
218
A mulher fechou os olhos para poder descansar e
percebi o fluxo de sangue. Pisei trôpego até me postar a poucos
passos de sua face serena e feliz quando compreendi que esta
pequenina criança também era uma parte de mim. Acariciei-a
com paixão, depositando um beijo em sua testa tépida. Era mais
que um filho. Era eu.
Aquele gesto franco despertou na mulher uma
sensação de empatia fraternal. ― Como se chama, senhor?
― Inari. ― assim como me conheciam.
Ela arregalou os olhos diante do inconcebível. Não
percebi a grandiosidade do evento, pelo menos para ela. Supus
que um certo constrangimento nascia e logo cessei a sua
submissão. ― Como será o nome? ― referindo-me ao bebê.
― Assim que fosse propício, Deus me diria. ― Não
desconfiei dos olhares. ― Como deveria chamar o meu filho,
Inari-san?
Nem da sua insinuação. Embora eu só tivesse um
nome em mente. ― Juroo?! ― Ela concordou e pousou as suas
219
mãos sobre nós.
As mulheres retornavam com um senhor de aparência
sisuda e hábitos médicos aparentes. Fui retirado com pressa
quando comecei a chorar. Por um tempo estava preocupado
com as minhas dúvidas e em dúvida sobre as minhas
preocupações tolas, contudo ainda consegui ver a verdade.
Aquele bebê, em meu colo, era o mesmo Juroo-kun
que me encontraria em meio às impurezas da minha alma e que
nos separariam por muitos anos. Estava emocionado e pude
sentir um profundo e eterno sentimento de amor que une as
nossas almas, se eles são porções da imaginação, não importa
mais. Todos farão de mim, mais perfeito.
Como nada podia fazer, pedi para Deus que
intercedesse na saúde da mamãe em sofrimento. E Ele me
ouviu, pois sou uma pequeníssima fração de sua aspiração,
assim como a criança que dormia preso ao meu dedo. As
mulheres saiam, uma a uma, contentes por terem vencido o
destino sombrio.
Ajoelhei e agradeci pela vida em mim.
220
A criança despertara com fome, obrigando-me a
entrar no pavilhão onde estava guardada a minha Luz Interior
guarnecida de estátuas em bronze que tremeluziam com o
movimento das chamas das velas votivas. Encontrei uma das
senhoras que sorriu e me guiou pelo labirinto de escadas e
corredores até o refeitório dos monges que me ofereceram um
chá.
Misturei-o com água fresca e apliquei o líquido morno
através do pano embebido para que o bebê pudesse sorvê-lo.
Enquanto ele se acalmava a serva prestimosa retornava para
nos levar ao alimento primordial.
Fiquei deslumbrado quando entrei no quarto e todos
estavam ajoelhados com os rostos abaixados em respeito. Por
um instante cogitei ter interrompido um rito de agradecimento,
todavia eu não me enganaria, estavam rendendo homenagens a
mim.
Em lágrimas entreguei o bebê que avidamente foi
recebido com carinho por sua mãe. E se alimentava alheio à
grandiosidade do acontecimento. Como resistir perante aqueles
221
que aprendia a amar por eu amar quem sou?
Um dos monges mais velhos fitou-me e proferiu
solene. ― Assim como as pedras preciosas são tiradas da terra,
a virtude surge dos bons atos e a sabedoria nasce da mente
pura e tranquila. Para se andar com segurança, nos labirintos da
vida humana, é necessário que se tenham como guias a luz da
sabedoria e a virtude.
Estava recitando aquele sutra para a nova vida que
faiscava acariciada por sua mãe. Que alcançaria a virtude de
superar o mundo de ilusões.
Desci os meus joelhos e abaixei a cabeça em adoração
a todos os meus irmãos.
Estava prestando um tributo a mim.
222
223
28
“Nada jamais substituirá o companheiro
perdido. Velhos camaradas não se criam.
Estas amizades não se refazem: ao plantar
um carvalho, é vã a esperança de poder
gozar livremente de sua sombra”. Antoine
de Saint-Exupéry.
Mateus 36:11-17
Como permanecia de olhos bem fechados, pressenti
os sons de coches e cavalos em seus cascos compassados atingir
o pavimento de pedras. Ao tato de meu paletó tenro abri os
olhos cuidadosamente para ver o reflexo de Tiago se
aproximando de mim. Estava me admirando com as roupas
rotas através da vitrine resplandecente de uma boulangèrie.
224
Ao longe, locomotivas se moviam em um pátio de
manobras de uma grande estação. Os cheiros dos pães, das
urbanidades de uma grande cidade e de...
― Bosta. Assim cheirava Paris no outono. ― poluição
pré-industrial em que Tiago antecipou-me de novo, enquanto os
cavalos conspurcavam.
― Por que estamos aqui? ― pensando se poderia
comer um pão. Será que nos sonhos eu tinha intolerância ao
glúten?
― Para te explicar as implicações de sua vida anterior
nas conquistas do presente. ― Porém, antes que me
congratulasse em orgulho desmesurado. ― E ainda temos
muito mais o que decidir.
Ele pediu que o acompanhasse. As pessoas
caminhavam prevenidas com o relógio e suas mulheres quase
se arrastavam morosas. Em seus vestidos armados como sinos
decorados de um glacê rendado, ajustavam os chapéus
decorativos segurando displicentemente as sombrinhas
improfícuas. O casario de lamparinas a óleo exalava outras
225
suspeitas nada agradáveis. Seguíamos para o sul, para o rio.
― Como você está? ― Tiago puxava conversa.
― Não sei ao certo. Muitas coisas me aconteceram
em um espaço muito curto de tempo.
― Culpa sua, quando esquematizamos estes fatos
deixou-se levar por sua altivez de achar que tudo sabe. Ainda
me lembro das suas certezas e convicções para o triunfo destes
obstáculos.
Quis dar uma de convencido. ― No fim eu venci.
― Não, nós não vencemos. Mas superamos a
vinculação absoluta aos sentimentos que o controlavam.
Reduzimos os medos, as dores e sofrimentos com o controle das
suas máscaras. Tem mais conhecimento de si e das doenças
humanas. E tem o dever de sustentar este estado de compaixão.
― Agora que tais sentimentos mórbidos...
― Eles continuam ai. Precisa muito deles. ― Tiago
estava consultando um bloco de anotações. ― “Aqueles que [...]
entendem que tudo é caracterizado pela não-substancialidade,
226
não tratam levianamente as coisas que entram na vida de um
homem, mas as aceitam como e para que elas são e, então,
tentam fazê-las digna de esclarecimento. Não devem pensar
que este mundo não tem significado e que está cheio de
confusão, enquanto o mundo de iluminação é cheio de
significado e de paz. Devem antes, experimentar o caminho da
iluminação em todas as coisas deste mundo. Se um homem
olhar o mundo com olhos corrompidos e ofuscados pela
ignorância, ele o verá cheio de erros; mas se o olhar com a clara
sabedoria, vê-lo há como o próprio mundo de iluminação”.
― Não gosto desta palavra, iluminação! ― redargui
com indubitável descaso.
― Então fique bem quieto!
Fomos deslizando por entre as carruagens que
teimavam em avançar pelas ruas repletas de homens em
atividade forçada de escavação. Uma trincheira feria a larga
avenida e carroças deixavam longas vigas de aço que eram
rebitadas com fortes marretadas. Uma estrutura subterrânea
surgia em meio à lama fétida que escorria de improvisados
tapumes de contenção. Uma frente rasgava o canteiro que
227
andava para oeste assim como outros operários reparavam a
rua com novos paralelepípedos acima do arcabouço de uma
estação do metropolitano.
Passamos por mais algumas ruelas antigas e
desembocamos as margens do Sena e de uma ponte que
contornava a igreja de Notre-Dame. Os seus arcobotantes nos
acompanhavam quando atingimos a praça de sua rosácea. O
canto dos fiéis encobria as vozes dos carroceiros em suas
charretes de aluguel esperando o fim da missa matinal.
Sentamo-nos silenciosos.
Por fim os cristãos se calaram e os sinos dobraram em
comemoração. Por todos os lados, as árvores emitiam cores
avermelhadas de folhas em chuva que desenhavam verdadeiras
tapeçarias mortas.
― Te trouxe aqui para recordamos o passado. ―
Tiago estava seriíssimo.
― Então esta é uma memória minha?
― Não. É só uma projeção do meu subconsciente.
Além disso, ainda não tinha nascido. ― com qual intenção? ―
228
Este lugar é significativo para nós como já deve ter percebido.
Aqui você alcançou a liberdade de ideias e a impassibilidade
dos homens. Falou dos potenciais humanos e jamais os
compreendeu. Ignorou as ideias antagônicas com a sua
prepotência subjugante e devolveu aos homens os seus
julgamentos irremovíveis. Duro de coração exprimia a
impressão de tudo saber e fazer.
Em amargura respondi com um choro consciente dos
meus erros.
― Mas seria tudo em vão. ― ele foi enfático.
― Como assim?!
― Não aguentou quando as suas forças foram
negligenciadas e a sua autoridade dizimada pela apatia dos
homens que o lisonjeavam. E o falso juízo de quem era, de seu
domínio e fama, de nada serviu quando precisou. ― por
suposição, aceitava estas verdades como os traumas que me
modelariam. ― Estas nuvens de pensamentos depressivos te
venceram, entregando-se ao ato máximo do egoísmo, o suicídio.
― A queda foi intensamente cruel para mim. Saber
229
que eu não era o que eu supunha me destruiu a razão. ― falava
de coração.
― E esta angústia que não digeria as fraquezas,
redemoinhado por pensamentos e sentimentos vis, de derrota e
ódio equívoco, provocou a sua desilusão. ― Mas como eu deixei
me destruir? ― O trauma da morte a transferiu para esta vida
como uma doença. A doença daqueles que se fecham ao
mundo, que não aceitam opiniões e fazem de tudo para se
enganar em suas fantasias.
Fui até a balaustrada, admirando displicentemente o
rio que corria moroso rumo ao mar. Nem o cenário conseguia
me demover daqueles sentimentos de ruína.
― Esses sentimentos estão errados, muito foi
conquistado com a percepção de seus erros. Só quando os
acolheu é que o processo de renovação se desencadeou. Ou não
se recorda do seu extravasamento redigido em um diário com o
inconveniente cabeçalho de impositivos da Lei Divina?!
― E por que estas conquistas me causam temor? ―
estava sendo sincero quando não me identificava com estas
230
presunções potencialmente arrogantes que me lembravam das
minhas fraquezas.
― Porque elas não são conquistas aos quais possa se
vangloriar aos outros, são sentimentos e pensamentos difíceis
de serem explicados, e só dizem respeito a você. São emoções
carregadas de amor e libertação, portanto, diferentes daquelas
que não alcançaram um patamar que as legitima, traçando um
caminho em que se utiliza do prazer, da companhia aprazível,
do interesse pessoal egoístico, dos desejos expressos pelo
comportamento sensual: alimento, dinheiro, libido, vaidade,
mágoas, pois que ainda se encontram na fase de nascimento.
― E os julgamentos que nos apregoam?
Tiago parecia se divertir. ― Não existe. São os nossos
próprios julgamentos que nos condenam.
― Hã. ― precisava de mais subsídios.
― Eles são nossos reflexos mais francos, de nossos
autojulgamentos, que são projetados nos outros e regressam
como se fossem deles...
231
― Hum!
― Por outro lado, compreendemos os julgamentos
conforme a nossa necessidade de sermos confrontados e
experimentados. Quero dizer, que nós somente nos
identificamos com eles porque os aceitamos como verdade.
Uma verdade imperceptível, porém intrínseca.
Precisei alinhar as minhas ideias. ― Então, enquanto
eu agir errado eles serão apenas justificativas, tanto para me
convencer quanto aos outros.
― Calma aí! Passe a analisar os seus pensamentos e
transformará estas justificativas em perseverantes verdades. E
quando extinguir os desejos destas emoções em ascensão por
um amor irretorquível, entenderá que já não são mais
justificativas e sim o caminho. ― como eu poderia perceber
este caminho! ― É o equilíbrio dos excessos mundanos e a
disciplina dos seus pensamentos. Vós sois deuses, só não sabem
disso.
― Muito bem, e pode me dizer quem eu era? ―
tentando convencê-lo de confirmar as minhas suspeitas.
232
― Mateus, se depois de todas estas coincidências
ainda não confiar na sua intuição... ― ele me olhou com o braço
sobre as minhas costas. ― Te colocamos em um dos poucos
lugares com algum significado no seu novo país e que ainda faz
alguma referência ao seu passado. Encaminhamos-te para
acontecimentos análogos que serviriam de ponte entre as vidas.
Colocamos em tuas mãos uma fragmentada biografia que só
faria sentido para você. E demonstrou a sua assimilação
respondendo avidamente a estes estímulos. Ainda te demos
quem era.
― E mesmo assim acho tudo extraordinário. Como
dizem, quando é bom demais para ser verdade...
― Em alguns casos, é verdade. Se não quiser
acreditar, não negue a seriedade que tais fatos têm para você e
o quanto eles estão te auxiliando. Se não quiser acreditar, aceite
apenas que os fatos têm muita relevância e que encontram
ressonância em ti. Enfim, não negue quem você é, os nomes não
importam.
Queria mais. ― Mas não pode me dizer nada?!
233
― Por que parou de voar?
― Se eu esquecer todas as justificativas, acho que eu
lhe responderia que me bastou, estava satisfeito em voar...
Tiago complementou. ― mais uma vez. ― Puxou-me
para seguir rumo ao Campo de Marte. E então percebi que Paris
ainda não estava finalizada. A torre Eiffel não passava de duas
pernas em construção em um canteiro de obras esplêndido.
Este estado de abstração quase me custou a vida quando um
omnibus a cavalo me jogou contra um valo enlameado.
Tiago se divertia. ― Me assegurei de que não sentaria
no chão novamente.
234
235
29
“Paixão pela discriminação e discussão, pelo
qual os homens se confundem nos
julgamentos. Paixão pela experiência
emocional, pelo qual os méritos das pessoas
se tornam confusos. As delusões do
raciocínio se baseiam na ignorância e as
delusões da prática apóiam-se no desejo”. A
Doutrina de Buda.
Mateus 36:11-08
Gargalhava ridiculamente afetado pelas minhas
impossibilidades degenerativas. De pernas bambas me
contorcia em risos de uma lembrança que vinha a calhar. E a
qualquer minuto eu seria confundido com um bêbado, ainda
236
mais eu que nunca bebi, fumei ou...
Aconteceu ontem, um impulso audacioso que não
pensei nas consequências. Aventurar-me por quase dois
quilômetros poderiam me causar problemas indigestos, estava
em outra cidade, sozinho e sem o socorro de alguns. Como eu
disse, passado.
Gesticulava o pulso tentando precisar o ato de retirar
o melhor pensamento para aquela semana. Ele viria na forma
de um sorteio de placas com palavras-chave. O centro de apoio
aos pacientes iniciava os tratamentos com aquela singela
operação que mexeria com os nossos subconscientes. Nas idas
anteriores eu pressentira tais palavras sopradas por sonhos,
insinuações ou sopradas ao vento.
Eu sabia qual seria a minha proposta, no entanto a
palavra parecia obscura ou confusa. Na primeira vez retirei o
vocábulo coragem que eu apliquei com o firme propósito de
superar os medos que se agigantavam com o fortalecimento de
uma doença silenciosa e incurável. Ela subiria à categoria de
237
perseverança.
Posteriormente seria premiado com a fé. Palavra que
me angustia e precisei substituí-la por confiança, em mim.
Porque eu não tinha dúvidas do que Deus poderia me
presentear.
A terceira eu classificaria como bizarra, não a palavra,
mas sim a experiência. Estava sendo guiado pela cura e com ela
eu somei a benevolência, a compaixão e a humildade
necessárias para a cura. Comecei a ponderar o quanto precisava
me conhecer através da boca dos outros pacientes. Até aqui eu
me concentrara em mim. Sem egoísmo, porém necessário.
Propus-me a ver a todos como reflexos de meu
espírito. E assim, a palavra-chave para a quarta semana de
terapias seria coragem. E não entendi.
Deitei-me pensativo. Nem pude me concentrar na
terapia do espelho onde um Mateus aturdido me encarava com
ânsias de vômito. Onde estava a sensação de deslumbramento
ante a expectativa de uma cirurgia espiritual? Quem era eu...
Um pensamento bastante fugaz atravessou-me
238
involuntariamente, causando uma surpresa bem vinda. Depois
eu saberia que alguém chamado Sigmund Freud tinha tido a
mesma ideia. De que quando nos irritamos profundamente com
alguém a ponto de comentar e apontar os seus defeitos,
estamos dando um forte indício de que projetamos e nos
identificamos com esta pessoa.
Ou seja, somos aqueles que odiamos. E esta verdade é
culpada pelos temperamentos impetuosos e inflexíveis que
negam veementemente serem assim.
Eu sei, porque admito as minhas covardias. Julgar e
assim me condenar. Condenar-me à arrogância, aos medos
opressores e outros sentimentos doentios, pois eu sou assim.
Bem lá no fundo.
Tiago tentava me dizer que as máscaras existem em
todos os homens. E o medo pode gerar personalidades tão
complexas que o único sentimento que poderíamos exprimir
seria a compaixão. O medo torna as pessoas detestáveis ou
irrepreensíveis, no entanto não passam de máscaras.
E qual seria a minha? Um esboço de bufão solidário
239
com requintes de crueldade presunçosa? Suponho que esta
máscara de alegria me auxiliou a mediar os conflitos de
submissão e arrogância. Como alguém pode ser submisso e
arrogante ao mesmo tempo?
Talvez o tempo tenha reforçado este personagem e se
tornado a minha tábua da salvação. Evitando me submeter ao
desânimo causado pela subordinação a fatos que saem fora do
meu alcance ou à alienação provocada pela arrogância e
orgulho exagerado. No meu caso, acredito que aspectos
diferentes são controlados ora pela arrogância, ora pela
submissão. Mas há casos em que me submeto às opiniões dos
outros, provocando um ato de revolta – ódio, raiva ou seus
congêneres – que se torna soberba e afiança irrevogavelmente
que só eu possuo a verdade. E assim eu negligencio as verdades
que vem de fora.
Não confiava nos livros que me assopravam as
verdades? Por que não confiar nas pessoas que cruzam o meu
caminho?! Tomaria coragem para analisar todos aqueles que
estivessem comigo. Sem julgamentos e sem dogmas. Pois eu
poderia me ver em seus olhos.
240
E é este fechar-se em si, que me protegia dos meus
medos, o que é incompreensível. Porque a resposta que ansiava
se encontra dentro de mim, contudo podem ser maiores e
melhores quando expressadas pelo Deus que está dentro de
cada um. Seria um erro considerar palavras soltas mais eficazes
que os sentimentos dados. Nada acontece por acaso.
241
30
“Passamos a vida criando expectativas que
se transformam em frustrações e
sofrimentos quando o que realmente
deveríamos estar procurando para a nossa
felicidade sempre esteve conosco”. Brahma
Kumaris.
Mateus 36:11-22
O diálogo precisava prosseguir quando me dei conta
de onde estava. Deitado placidamente no gramado, vislumbrei
o contorno de Tiago que contemplava o horizonte com o seu
lago amistoso.
O templo, com seus incensos astrais, parecia
exatamente como eu o havia deixado quando ainda nos
242
encaminhávamos para o cume da montanha sagrada.
O pergaminho desdobrado me insinuava para
sigilosamente lê-lo. E ardilosamente não me contive. Pelo pouco
que consegui ver pude confirmar as minhas suposições antes
que Tiago me puxasse pela gola.
Estava aborrecido e voltei para o pé da árvore onde
me espreguicei inconformado, contudo eu já tinha descoberto o
que queria. Fingi a minha exultação.
Ele se pôs diante de mim em respeitosa atitude de
contemplação, como se me visse pela primeira vez. ― De hoje
em diante não nos separaremos mais. Muitas perguntas
poderão ser respondidas, porém para que isso aconteça você
precisa se esforçar.
― Em que direção? ― sentei-me comovido.
― Não quero impor barreiras, aprecie todas as que te
forem possíveis. Para que o seu raciocínio tenha lógica é
necessário ter ciência. Este novo raciocínio se apóia no amor e
considera tudo perfeição. Eu sei das tuas dúvidas e limitações!
243
― De todas as dúvidas uma sempre me aborrece, se
Deus criou todos os Espíritos simples e ignorantes, isto é, sem o
conhecimento. E a cada um deu determinada missão, com o fim
de esclarecê-los e de os fazer chegar progressivamente à
perfeição e pelo conhecimento da verdade aproximá-los de si.
Como os Espíritos não podem ter conhecimento, então? ― me
referindo ao fato de que todos somos criações perfeitas de
Deus, e nada menos.
― O erro está na tradução do original em francês,
escute bem. “Dieu a créé tous les Esprits simples et ignorants,
c'est-à-dire sans science. Il leur a donné à chacun une mission
dans le but de les éclairer et de les faire arriver progressivement
à la perfection par la connaissance de la vérité et pour les
rapprocher de lui”.
― E existe diferença? ― Ele deu ênfase a algumas
palavras que me soaram bem diferentes das mesmas em
português.
As palavras conhecimento e ciência são bem distintas,
apesar de as aplicarmos com quase o mesmo sentido. ― Tiago
conferia um dicionário mental. ― Se a ciência é o conhecimento
244
amplo adquirido via reflexão ou experiência, o conhecimento
por si só deveria ser menos. Porém sem o conhecimento, ou
seja, que é adquirido pela reflexão das experiências, o Espírito
seria um acéfalo. Mas sem ciência ele estaria somente sem as
experiências, contudo ele ainda teria o conhecimento. O que
procede quando entendemos que Deus nunca criaria seres
imperfeitos.
Não me contive. ― Com qual finalidade nós
manteríamos o conhecimento inativo ou pelo menos
negligenciado?
― Eu diria que precisamos crer que o conhecimento
está inativo com o fim de esclarecer e de nos fazer chegar
progressivamente à perfeição e pelo conhecimento da verdade –
ou experiências – nos aproximar de Deus.
Estava começando a entender. ― Quer dizer que eu
tenho que fazer um caminho contrário se quiser entender a
perfeição?
Tiago estava buscando simplificar como Deus podia
ser o Tudo e o Nada ao mesmo tempo. ― Os julgamentos que
245
fazemos deste mundo aparecem das nossas compreensões
fragmentadas e aglutinadas com o objetivo de esclarecer certos
conceitos. A falha reside em dois aspectos: as nossas
imprecisões quanto o que sabemos sobre determinados
fragmentos da realidade e, por mais que tenhamos a aptidão de
reunir tais dados para formar uma compreensão mais apurada,
ela ainda não é o todo.
― A ideia é fazer o oposto, partir do pressuposto de
que o fim de todas as coisas é a perfeição. ― sugeri.
― E por que não fazemos os dois?
― Não entendi. Como seguir por dois caminhos?
― Deus está em Tudo. Todo o universo é Deus porque
está dentro, e assim somos parte de Deus. Não há como negar
que estamos conectados com Ele e, deste modo, que nós
estamos interconectados ― esta é a realidade de que somos
mais do que irmãos.
E como ficavam as religiões? ― A aspiração da alma
não é a de se unir a Deus? Perderemos a nossa individualização?
246
― E se eu dissesse que seremos ambos!
― Estou formulando novos paradigmas.
― Proponha-se a fantasiar Deus como se fosse um
relógio de bolso. ― uma parábola mecânica de um livro técnico
com pitadas de anomalias espaço-temporais. ― A abertura
atrás do relógio nos mostra seu mecanismo em ação. O que
você vê?
― Tantas engrenagens que os seus movimentos
caóticos parecem-me confusos, aleatórios.
― Esta me dizendo que Deus é caos?
― Não. ― eu menti porque ainda sou um pouco
arrogante, só um pouco. ― Deus é perfeição.
― Observe o mecanismo com novos olhos, proponha-
se a ver o seu funcionamento sob a perspectiva de que o caos
aparente é a essência da perfeição, sem estas engrenagens e
molas que giram e se estendem em muitas direções, o relógio
não funcionaria.
― Já havia percebido que o caos no mundo não passa
247
de um mecanismo bastante exato. Para se alcançar os desígnios
desejados pelas almas, elas se submetem a experiências que nos
parecem incompreensíveis e até mesmo contrárias.
Tiago olhava detidamente para o relógio. ― Sabemos
que o resultado final sempre será a perfeição, mesmo assim, os
meios podem sugerir que enfrentamos situações de despreparo,
sofrimento e caos quando, na verdade, é exatamente o
contrário.
― Estava pensando no despreparo e no sofrimento
que este caos podia causar. Pois esta era a minha referência de
mundo que se esfacelava em ávidos segundos. Tiago depositou
o relógio em minhas mãos.
Puxou-me para terminarmos a caminhada sinuosa até
o topo aonde se encontrava o templo.
Detive-me surpreso diante do lugar.
248
249
31
“Na verdade, não existe nada mais
aterrorizador do que a dúvida. A dúvida
separa os homens, é o veneno que
desintegra amizades e rompe as agradáveis
relações. É um espinho que irrita e fere, é
uma espada que mata”. A Doutrina de
Buda.
Inari 36:11-25
Detive-me a poucos passos da borda do lago das
minhas meditações e onde se espraiavam os galhos que quase
tocavam as ondulações de suas águas. Sentado em
contemplação, Juroo-san me aguardava. Aparentava ser mais
velho, uns dez anos a mais do que eu mesmo sucessivamente
250
me apresentava. A sua face revelava-me a gravidade daquele
diálogo.
― Nunca pensei que eu pudesse ser convocado por
alguém que precisasse do meu perdão! ― e ele precisava?
― Boa tarde, Inari-san. Precisamos esclarecer algumas
ideias que estamos tentando absorver. Pois os seus equívocos
são os meus... ― mantinha-se calmo quando me lançou um
sorriso que me tranquilizou. A tarde estava verdadeiramente
aprazível com os seus ventos frescos e penetrantes que
fremiam o lago.
― Estava pensando o mesmo. ― é evidente que sim.
― Qual é a nossa verdadeira relação, isto é, você é realmente
uma fração de mim?
― Por mais que eu raciocine sobre a questão, só chego
a uma conclusão. Ou melhor, duas. ― ele esperou a minha
reação. ― Sim e não.
― E quanto mais eu penso, concluo o mesmo. E isto é
difícil de assimilar. Como podemos ter duas respostas?
251
― Talvez eu possa tentar esclarecer. Tudo que
conhecemos precisa ter títulos, classificações e um lugar bem
claro neste mundo. E se estas opiniões estão nos impedindo de
ver que o universo é maior do que as nossas supostas ideias de
uma mente falha? Tudo não deveria ser possível já que Deus
tudo permite? ― eu estava cogitando se estas observações de
Juroo-san não passavam das minhas elucubrações da última
conversa com Tiago.
― Onde quer chegar?
― Será que importa se acreditamos ser o que somos?
― seria ótimo se eu não fosse um deus.
― Estou te compreendendo. O fato de eu achar que
você é uma criação da minha imaginação não implica que esta
suposição – quase ridícula – possa ser algo bastante
extraordinário para nós. Como se...
― Estes universos existissem e as nossas relações
252
fossem pontes que servem a um fim!
― Ou um amálgama destas nossas percepções, ou
nenhuma dessas cogitações. ― estava pensativo quando me
sentei ao pé dos rochedos. ― Esta informação muda como você
vê o mundo, Juroo-san?
― Não deveria, porém muda. ― ele parecia muito
perturbado. ― Porque eu ainda me sinto como uma parte de
você, que os seus pensamentos são os meus e...
― E ainda assim consegue me superar.
― É só impressão sua. Nós já discorremos sobre isso.
Como um fragmento, eu consigo concluir ações aos quais
constituem uma ínfima partícula dos seus pensamentos, suas
ideias e preocupações. ― estas não eram tão insignificantes
assim. ― E eu te respondo com as minhas conclusões. Assim nós
chegamos aos resultados instantaneamente porque somos um
só.
Ou poderia ser o contrário. ― Então vamos falar sobre
o tempo. Eu aprendi que ele não existe, não há passado ou
253
futuro. Concorda, Juroo-san?!
― Suponho que a nossa história seja como um livro.
Nós estamos, agora, em uma página no meio. As folhas
anteriores indicam o passado. Todas as nossas histórias podem
ser reunidas em um tomo com o título de Espírito. E é este
espírito que nos anima que necessita das nossas experiências
como homens. Para ele não passamos de alguns personagens.
― Personagens que podem escolher experiências tão
peculiares quanto for a necessidade do espírito?
Ele estava com a mão no queixo em clara atividade de
pensar. ― Por que não? O que devíamos temer já que o espírito
tem uma consciência mais dilatada e cuja proposta é alcançar a
sua Ascensão. Eu penso em você todos os dias, por que também
não posso me unir a você?
― Unir-se a mim? Não receia perder quem você é?
― Me unir a você não é ser engolido ou absorvido,
pois já estou dentro de você. Unir-me a você é... ― ele não
conseguia terminar a frase porque precisava da minha língua.
254
― Trazê-lo até mim. Tomar consciência de mim. ―
estava igualmente surpreso com a proposta da união. ― Te
conhecer resgatou quem eu sou.
O ar parou subitamente, cessando os naturais e
aleatórios movimentos. Nenhum canto de pássaros era ouvido,
como se o mundo tivesse parado.
― Por isso, importa o que somos quando sabemos
quem somos? ― Juroo-san acabava de fazer a sua grande
descoberta. ― Eu sou você!
Eu não sabia como reagir, ele desconfiava do meu
mutismo e saltou velozmente pelas pedras até ficar perto o
suficiente para que eu pudesse ver o seu rosto iluminado. Em
seu pescoço algo me chamou a atenção e ele percebeu o meu
olhar nada discreto.
Puxou o adorno para perto e eu pude ver o pequeno
cubo de uma das arestas do brinquedo com as suas três cores
básicas já desbotadas. ― Sabia que não ia resistir e acabaria
tentando desmontar o cubo mágico!
Ele sacou uma cópia menor e melhor acabada que
255
acabou esculpindo com base no original. ― Toda aquela
ansiedade estava me esgotando, precisava tentar, de alguma
forma, restaurá-lo ao seu estado anterior. E como disse, não
resisti. ― mal sabia ele que para mim bastava remover os
adesivos e recolocá-los em seus planos.
― Contudo este novo cubo está finalizado porque...
― Eu consegui entender como. E mais, com ele
comecei a compreender como este universo poderia ser
constituído de partes de Deus e, mesmo partido e disposto de
forma ocasional, as partes pertenciam à perfeição. ― tudo por
causa deste jogo? ― Quando as peças se esparramaram eu
descobri que não importam as suas posições, elas continuarão
sendo quem são e, mesmo não contidas em sua forma
primordial, elas continuavam se relacionando com as partes,
que constituem o todo. Porque elas são elos e possuem
significados dados pelo outros e, como são dispostas podem nos
parecer o caos, mas elas têm um papel.
― Como se, por mais que quiséssemos romper com os
nossos comprometimentos, estivéssemos interligados à coesão
do Todo, Deus. ― A forma que desejamos para chamar este
256
universo de perfeito é uma ilusão criada pelas nossas
necessidades de conter e classificar a perfeição com base nas
nossas ideias. E se o caos for a expressão de um perfeição em
várias direções e em muitos universos e além das dimensões
que possamos imaginar, quem poderia supor que a nossa falta
de conhecimento poderia criar a imagem de um universo que
não atende às nossas ideias de perfeição. Quanta presunção!
― Para mim, o cubo é o mesmo. Com os seus seis
lados acabados, embaralhados ou espalhados sobre um tampo,
ele continuará sendo o que é, um cubo. ― só não me contou
que foi neste instante que eu lhe apareci.
Tirei o relógio de Tiago do bolso e entreguei-o para
Juroo-san. ― Um presente para o tempo que passaremos juntos
a partir de agora.
Ele já havia visto um relógio. ― Tenho um novo
truque. ― Apertou o relógio e ele se fragmentou no ar. Todos
os seus mecanismos flutuavam mantendo os movimentos
originais sem que as engrenagens estivessem conectadas. ―
Isto é o tempo.
257
Pedi que concluísse a afirmativa com um aceno.
― Deus é o relógio. ― já sabia disto. ― Estas peças
são nós. Fragmentar Deus é só um experimento Dele para poder
perceber as interações entre as suas partes, que chamamos de
Espíritos. E o meio como estes espíritos se experimentam
chamamos de tempo. Apreciar como os espíritos assimilam as
suas ações particulares ou coletivas, fragmentando o
movimento do relógio, nós chamamos de tempo. ― isto eu não
sabia.
Complementei. ― Para Deus, portanto, é um meio
para que Ele possa se conscientizar minuciosamente.
Fragmentando-se e permitindo que estes fragmentos se inter-
relacionem, dando-lhes a oportunidade de contemplar esta ação
através de sua dilatação ou nova fragmentação, o tempo.
― Talvez o milagre esteja no fato de que os seus filhos
possam tomar conhecimento deste ato, de seu Deus, e conseguir
perceber que tudo já possui um fim.
E respondi um pouco assustado. ― E os meios se
justificam!
258
Fomos surpreendidos por alguém que descia a trilha
em silencioso objetivo de nos ajudar. Tiago surgia como um
mediador que talvez pudesse nos indicar o caminho.
― O caminho é a verdade! ― tinha me esquecido de
suas habilidades telepáticas. ― As suas divagações implicam
que entendem uma parte do conceito. Mas ambos admitem que
todas as suas observações só servem quando dois observadores
possuem as mesmas opiniões sobre. Além do mais, existem
eventos que ainda fogem à sua compreensão. O tempo não
existe, embora ele exista para vocês.
― Como nos unimos? ― Juroo-san se referia ao fato
de como se relacionavam os três universos.
― Não há separação, só temos a impressão de que
tempo e espaço existem. Os nossos encontros obedecem a
afinidades mentais e não convergências físicas entre os
universos. Precisamos acreditar que o pensamento prevalece
sobre a matéria que é uma ilusão da mente.
― E como podemos entender o ciclo? ― perguntei a
fim de que eu não precisasse explicar o que realmente se
259
passava em minha cabeça.
― O ciclo é o meio mais eficaz de explicar o que
chamam de tempo linear. A roda das transmigrações é limitada,
contudo o seu uso é ilimitado. Como todos os recursos deste
universo, quando necessário, ele é revisto. Supor que as
encarnações são inesgotáveis é o mesmo que consumir todos os
recursos do seu planeta. ― estávamos aquém de saber como as
coisas funcionam. ― E certas verdades eu só posso fazer me
compreender por Inari-san.
― E eu sou... ― Juroo-san estava abatido.
― Observe bem a engrenagem do relógio, ele é Inari-
san. Você pensa que é algo menor e imperceptível quase uma
partícula elementar que o constitui e não é relevante. ― e então
frisou com bastante relevância. ― Eu afirmo, é um dos dentes
desta engrenagem. Sem você ele perderia uma de suas virtudes
e a roda não giraria em perfeita sincronia com todos os seres
deste universo.
― Apesar de nossas percepções serem falhas, já que
os nossos sentidos só captam a ilusão, todos podem ter uma
260
importância anônima. ― agora eu percebi. ― Deve obedecer a
algum desígnio que a afluência de nossos mundos se desdobrou
como uma relação no qual eu sou o criador de um outro mundo.
― E é assim! ― Tiago foi categórico.
Ambos me puxaram pelos braços para seguirmos até o
templo da montanha.
Não perdi a chance de abraçá-los.
261
32
“Essa é a grande ilusão de vocês, que Deus
se importa com o que fazem. Eis a segunda
grande ilusão do homem, de que o
resultado da vida é incerto e cria o medo. E
sentem medo porque decidiram duvidar de
Deus. E se tomassem uma nova direção?
Viveriam como Buda, ou Jesus. E quando
você tentasse explicar a sua sensação de
paz, a sua alegria de viver, o seu êxtase
interior, distorceriam as suas palavras”.
Conversando com Deus. Neale D. Walsch.
Inari 36:11-26
O labirinto contornava os limites da floresta com os
seus infinitos bambus que submergiam no horizonte. Juroo-san
262
desapareceu em uma das curvas, acelerado com as festividades
do dia do cavalo.
O meu ânimo estava suspenso em doses de uma
ansiedade sem razão ou causa. ― Os seus anseios e
expectativas atingiram um novo estado, assim sendo, precisará
de novos olhares. Veja a todos com novos olhos, Mateus.
― Nem bem assimilei as antigas ideias.
Chegamos à escadaria de pedras rústicas que era
adornada com velhas lamparinas e lanternas decorativas por
um bando de garotos baderneiros que começaram a cutucar
Tiago com obstinação irritante.
― O que Juroo-san não podia saber? ― perguntei
assim que nos desvencilhamos dos garotos.
― Por mais que o universo seja infinito, e ele o é,
também é finito porque há redundância e eficiência em um grau
inimaginável. ― o que Tiago estava dizendo? ― A razão de você
pensar que está inventando este mundo – pelo menos até onde
a vista alcançava – não implica que ele tenha acabado de
263
nascer.
Supunha, com ressalvas. ― Ele já existia?
― Para você não. Mas para Juroo-san havia muito
mais. Do mesmo modo que ele te convinha para uma finalidade
que eu considero surpreendentemente surreal, ele se apropriou
de você para atingir os propósitos dele. Houve uma
sincronicidade, ainda que não a tenham compreendido, embora
os resultados sejam bastante válidos.
Sentamo-nos em um recanto próximo de umas toras
que seriam usadas para a construção de um lugar digno de
respeito, num descanso para os peregrinos que se dirigiam para
o templo da montanha. Uma árvore jovem tentava tolher o sol
com dificuldade.
Eu já havia desconfiado que estes ensaios de moldar
um mundo de imaginação não eram proezas das minhas
aptidões intelectivas e insolentes. Talvez eu só acreditasse que
os tais ensaios fossem verdadeiros com base no meu orgulho
incomensurável e na arrogância de tudo poder. Senão eu não
teria continuado com a...
264
Tiago pressentiu os meus argumentos. ― Eu contava
com este orgulho e esta arrogância para criar estes obstáculos.
Como todos, você também crê que as dificuldades insolúveis
consomem as suas forças e suas esperanças. Uma represália por
seus pecados? Talvez, porém todos os eventos possuem muitas
respostas, não pense que, por tentar controlar os resultados,
criar e definir métodos e etapas, você esteja livre dos
imprevistos. A sua alma, como a de todos, anseia pelas pedras
no caminho.
― Parece um contrassenso. ― desconfiava que não
era bem assim.
― Se for, então tudo será somente desordem. ― Tiago
parecia bastante certo do contrário. ― Não duvide do que te
aconteceu, o evento que teima em não aceitar foi um grande
passo para a compreensão de si. O meio como você se
fragmentou obedece somente às suas aspirações e por isso se
mostra como um formidável novo mundo. Eu escolheria outros
meios...
― Portanto eu estava certo quando não aprovei que o
tal evento fosse o que me sugeria?! ― estava entendendo o real
265
objetivo por trás.
― Precisávamos saber a dimensão do seu ego. ― por
dentro, ele estava chorando de tanto rir. ― Entretanto o “tal
evento” tem a sua magnificência. Você estava no lugar
apropriado, na hora certa, fazendo o que era perfeito;
controlando os excessos.
― Sabia que não podia ser algo tão grande quanto
uma Iluminação espiritual. ― respirei aliviado.
― Está redondamente enganado, a fimbria de luz que
conseguiu enxergar representa o que realmente é, a Iluminação.
No entanto, a conjunção de vários fatores permitiu que este
evento emergisse com o intento de tão somente azucrinar o seu
espírito. Desde então tem buscado recriar esta sensação de
liberdade.
― Quer dizer que é impossível recriá-lo? ― pelo
menos me parecia assim.
Tiago parecia absorto com a minha pergunta. ― Não
percebeu?! Uma vez atingido a Iluminação, se revela o caminho.
Todavia é quase impossível de ocultá-la outra vez com as
266
impurezas humanas, já que as percebe com maior lucidez e
autoridade.
― Eu?!
― Todos possuem o estado de iluminação inerte, uma
vez que o tenha desvendado jamais conseguirá ver o mundo
com os mesmos olhos. No princípio, uma onda de serenidade te
fere as velhas convicções e paradoxos seculares. E um
sentimento te obriga a criar novos padrões. Uma percepção que
poderia ser de compaixão, no entanto é muito mais. Que você
passa a entender tudo sem nada saber.
― E então, como dizer que o evento não foi grandioso
se eu alcancei a Iluminação? – com outras muitas ressalvas.
― Porque precisa estar sempre vigiando os seus
julgamentos para que eles sejam somente discernimentos. A
ganância, a arrogância e a intolerância parecem ditar a sua
realidade e basta uma preocupação para que os medos
soterrem as certezas com a ânsia de quem precisa se submeter
às ilusões do mundo. ― ele estava repetindo o que acontece
todos os dias, enfrentando as calúnias e ouvindo as reclamações
267
que não deveriam ser minhas. Preocupações com o amanhã que
podem nunca se concretizar.
Os ventos de um inverno que se despede me
acordaram dos pensamentos profundos que me devoravam.
Tudo parecia ter mais de um desígnio. Tiago se calou olhando
para a comitiva de homens e mulheres que se aprontavam em
planejar o festival que antecipava o plantio de primavera.
― Por que eu tenho a impressão de que não era
exatamente sobre isto que conversaríamos?
― O que Juroo-san não compreenderia era como a
roda das transmigrações podia se comportar sem as barreiras
do tempo. Se bem que nem você seja capaz. ― Tiago estava
esperando que eu me manifestasse ― Se recorda da finalidade
dada à criação dos Espíritos, conforme o espiritismo apregoa?
― Suponho que com o fim de esclarecer e de fazer
chegar progressivamente à perfeição!
― Agora considere que todas as experiências estão
acima do conhecimento, já que este é inseparável do espírito. O
268
que temos? ― Era para adivinhar?
― Como se chega progressivamente à perfeição se as
experiências não estão basicamente vinculadas a uma escala
evolutiva? Hum. ― onde Tiago estava me levando? ― Quero
dizer, o conhecimento é soma dos aprendizados que se agrega a
cada existência, sendo assim a experiência não se subordina ao
conhecimento?!
― Exatamente. Bem, sim e não. Pois sabemos que o
conhecimento é integrado ao Espírito que o detém como uma
matriz fornecida por Deus. Conhecer, portanto é recordar.
Neste estado de fragmentação em que nos encontramos,
espalhados por um espaço e um tempo, os eventos passam a ser
analisados pelas complexidades de suas relações entre as suas
partes, confirmando-nos sempre novas experiências. O
conhecimento é exato, as experiências são mutáveis. E o modo
como percebemos estas experiências, nos possibilita novas
conexões.
― Onde você quer chegar! ― estava confuso o
bastante para conseguir criar uma suposição.
269
― O salto entre as existências da alma encarnada não
depende de uma evolução do conhecimento do espírito, tenha
isso em mente... ― Atingi o meu limite de compreensão e Tiago
percebeu. ― Vamos retornar ao conceito de universo que
estávamos alcançando melhores resultados.
― Tiago, você disse que o universo é redundante e
eficiente, como?
― Cogite que a proposta quântica poderia ser
chamada de virtual, é só uma simplificação das reais
potencialidades do universo e de Deus. ― sem parábolas ou
fábulas, ele só falava em linguagem binária. ― Está a par das
extensões de compactação de imagens digitais?
― Acho que sim, por quê?
― O universo se comporta mais ou menos assim.
Parece-nos tão infinito e vasto quanto uma imagem de altíssima
resolução – aqui só uma analogia –, embora ele seja só um
pacote de dados. Assim como a imagem pode ser digitalizada e
decomposta em dados virtuais que ocupam eficientemente um
espaço de armazenamento menor, gerando a possibilidade de
270
compactações e ampliando a capacidade de um disco rígido; o
universo realiza o mesmo em uma escala que ultrapassa o poder
da imaginação, como a eficiência dos processadores de um
computador.
― Hã! ― eu entendi, porém não havia a menor
possibilidade de imaginar como.
Depois destes dois últimos brainstorms eu só poderia
ficar quieto admirando o vale, o mar e as embarcações que
retornavam para o Festival. As lanternas eram acesas assim que
o ocaso desvelasse as estrelas faiscantes e solitárias que
surgiam antes mesmo do poente. Juroo-san nos encontrou em
estado de contemplação ou de um processamento de dados em
atividade frenética e incansável de meu cérebro.
― Desejo que, os dois, participem dos festejos do
templo a Inari. Eu não acredito que estou convidando o
anfitrião! ― uma festa para mim, como seria se um deus
chegasse e passasse mal de tanto comer? Tinha uma ideia de...
― Melhor não... ― respondeu-lhe Tiago.
― Sempre quis saber como sabia que eu poderia existir
271
e aparecer para você? ― perguntei para Juroo-san, mas eu
mesmo respondi. ― A sua mãe lhe contou! ― e ele sorriu.
Suspeitei que Tiago pensava em algo. ― Inari-san –
não gostava quando ele me chamava de Inari –, pergunte para
Juroo quando foi a última vez que ele navegou para outras
terras, ou ilhas! ― eu não ia repetir o que todos já escutáramos.
― Acho que quando estive em Kanagawa... ― como?
― E este mar? ― apontava para o vilarejo com seus
cais repletos de barcos.
― É um lago.
272
273
33
“No mundo passais por aflições; mas tende
bom ânimo, eu venci o mundo”. João 16:33
Juroo 111:05-30
O tempestuoso rumor de vozes provocou-me uma
profunda perturbação dos meus sentidos. E tal burburinho de
comerciantes e carroceiros era deflagrado por soldados em
exortações impronunciáveis. O grande movimento de pessoas e
cargas deviam passar pelo controle alfandegário onde homens
bem armados impediam o livre trânsito entre as províncias de
leste e oeste.
Os casebres se acotovelavam sobre a estrada
274
rusticamente pavimentada. Em seus pisos baixos, havia
comércios de estação para os negociantes e estalagens para os
peregrinos.
Fui salvo pela mão de Tiago que me abduziu do caos
em que aquela cidade se transformara. Com as suas carroças e
cavalos, guardas e mikoshi, gueixas e casas de chá.
Bem sabia onde estava, embora não pudesse
acreditar. Caminhei sob o olhar de Tiago e me deparei com o
mar. Ajoelhei-me em uma rampa para embarcações e sorvi a
água doce que o compunha. Passei a ver tudo com novos olhos.
Homens tentavam erguer um esqueleto submerso na outra
margem do lago.
Era um torii. Girei e apreciei todas as montanhas e
tentei descobrir algum perfil atemporal. Eles estavam diante do
meu nariz. ― Como eu não percebi que eram iguais?
― E não são. ― Tiago estava sentado no cais,
ligeiramente acima de mim.
― Inventei um mundo a partir das imagens da minha
realidade. É tudo sombra. Uma mera cópia, uma sugestão
275
inconsciente, que foi alimentada pelas minhas aspirações.
― Ou será o oposto? As suas impressões, das
aspirações do seu inconsciente, te levaram a reencontrar este
lugar! ― seria possível? ― Como ficou sabendo desta enseada?
― Aleatoriamente, apontei o dedo em um mapa e
pressenti que aqui, às margens de um lago, podia ser
interessante para se conhecer. ― seria mesmo possível que
estavam me direcionando? ― O que me manteve mais intrigado
foi a coincidência de, no mesmo dia, rever esta cidade em um
seriado que tratava de um drama do período Tokugawa. Posso
afiançar que não é um local em evidência, nem no passado, nem
hoje.
― E por que acha que estas impressões te guiaram até
aqui? ― pude ver que Tiago me responderia. ― As duas ideias
estão corretas, um ciclo de relacionamento une estes dois
pontos.
― No tempo?
― Como ele não existe, esta relação atende a outros
276
desígnios. Por exemplo, quem te disse que se chamava Inari?
― Ouvi-o de Juroo-san. ― pensei um pouco. ― Mas
fui eu quem lhe falou primeiro. Os nossos encontros não
obedeceram a um tempo linear, por isso eu repeti o que ele
mesmo me contou.
Tiago saltou para a areia e desenhou um circulo
perfeito. ― Este é o símbolo Yin e Yang, de equilíbrio e é um
ciclo eterno. Somente isto pode explicar o seu paradoxo. Como
não há tempo, não existem paradoxos, simplesmente é.
― Não precisamos de um começo e um fim?
― Tudo já foi determinado, as nossas vidas são como
personagens definidos...
― Eu chamo isto de destino implacável. ― como não
ser.
― Se fosse destino, o espírito não teria esperanças e
nem pretextos para experimentar. Tudo é determinado
antecipadamente, no entanto o espírito escolhe como usufruir
desta liberdade, pois os grilhões e os obstáculos são criados por
277
nós mesmos. Somente nós acreditamos que o tempo é linear,
quando seria mais eficiente que ele se comportasse como
neurônios ou redes virtuais com links de interesse e não pela
correnteza irreprimível de eventos. Como poderá aceitar que as
influências, cuja origem é imperceptível, provêm de todos os
tempos e todos os lugares? O que te impede de ir aonde quiser,
passado ou mundos da fantasia...
― Quer dizer que as mesmas impressões sentidas por
existências anteriores, podem vir do futuro? ― não ia me
estender, estava ficando apreensivo.
― Sim e não. As coincidências – que não são bem
coincidências – estão te encaminhando para um futuro,
reunindo as ferramentas que serão úteis para melhor se
adequar. Tem consciência deste processo porque não está mais
preso ao passado e o presente te constitui um mecanismo de
transição. Os novos objetivos te alavancaram para outros
desígnios que estão sendo apresentados como informações para
vencer os excessos e disciplinar a mente!
Tive que me estender. ― No futuro eu poderei
278
encontrar paz?! ― duvidando do panorama mundial.
Tiago sorriu e piscou sem falar nada.
Observei o lago e os servos que caíram de seus barcos,
se debatendo quando as toras escorregaram. Muitas pessoas
caminhavam sonambúlicas rumo ao templo da montanha,
algumas barracas estavam cerradas e havia pesar em todos os
semblantes.
― Por que estamos aqui?
― Viemos nos despedir de um sábio, todos vieram
para um adeus. ― Tiago estava sério.
Quando chegamos ao descanso, em uma curva com o
pequeno templo já terminado, lembrei-me dos diálogos com
Tiago, sentado sob os galhos de uma árvore frondosa que ainda
não passava de um arbusto. Admirei o horizonte reconhecendo
os contornos que jamais suspeitei serem os mesmos. O que este
homem sábio poderia nos aconselhar?
― Quando nos encontraremos com Juroo-san? ―
estava me afeiçoando demais por uma inspiração da minha
279
imaginação!
― Ele é o sábio...
Pego de surpresa eu não agi, reagi. Corri colina acima
como nunca precisei e vislumbrei o novo templo terminado. Eu
já o tinha visto em outro tempo. A multidão me impedia de
chegar até Juroo-sama. Empurrei-os ferozmente enquanto
sentia os meus olhos arderem.
Parei com medo do que veria, estava perto o bastante
para ouvir a sua respiração dificultosa. Podia jurar que estava
em um quarto situado no mesmo lugar em que ele nasceu. Dei
um passo e fui abatido por um jovem que chorava e
desapareceu seguido por gritos desesperados de seus pais. ―
Tarō-kun! Espere!
Uma clareira se abriu e vi Juroo-sama. Os seus olhos
miúdos se esforçavam para abrir. Quando eles se encontraram
com os meus não contive as lágrimas. Avancei vagaroso para
sucumbir diante do sábio.
― Aguardava você, Inari-san! ― um cochicho audível
se espalhou entre os milhares de peregrinos. ― Que bom que
280
conheceu o meu bisneto, Tarō-kun. Quando crescer ele será um
grande pintor. Sempre conversamos sobre a vida e...
Ele tossiu com grande dor. ― Não quero que você
morra! Talvez eu possa fazer algo...
― A sua compaixão me inspira, mas eu preciso partir.
Os nossos encontros não terminam agora. Eu sei o seu
segredo... ― Juroo-sama descobriu que esta minha eterna
aparência de quinze anos encobria as visitas descontinuadas
que eu tentava disfarçar. ― Sou grato por todos os
ensinamentos e agora eu te compreendo.
Eu me abaixei e o agradeci. ― Através de você eu me
compreendi. Se há alguém que merece ser um Deus, este é você.
― Ele não redarguiu.
― Somos todos deuses. Por muito tempo persegui a
flor perfeita. ― às minhas costas todos se abaixavam em
veneração. ― Olhe, Inari-san! Estão te reverenciando.
Todos os presentes se calaram em oração, com os
seus rostos abaixados. Juroo-sama admirava o poder do amor
281
se manifestar nos homens.
― Não. Eles estão reverenciando a vida que está
dentro de você. ― Já não conseguia controlar o choro. Tiago
estava longe, contudo o seu coração estava junto de mim.
― Obrigado a todos. Pois todos são flores perfeitas.
E fechou os seus olhos.
282
283
Bibliografia.
A doutrina de Buda. Bukkyo Dendo Kyokai. 1981
Conversando com Deus I. Neale D. Walsch. Agir. 1999
Evangelho segundo o Espiritismo. Allan Kardec. FEB. 1944
Amor, Imbatível Amor. Divaldo Pereira Franco. FEAL. 2011
Eu Te Compreendo. Antônio Roberto Soares.
top related