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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ
CAMPUS DE CAICÓ – DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DO CERES
ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA E CULTURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA
LÚCIA ARAÚJO DANTAS DA SILVA
MEMÓRIAS DA FAMÍLIA TUM:
AS COZINHAS COMO ESPAÇOS DE RESISTÊNCIA
CAICÓ
2016
LÚCIA ARAÚJO DANTAS DA SILVA
MEMÓRIAS DA FAMÍLIA TUM:
AS COZINHAS COMO ESPAÇOS DE RESISTÊNCIA
Trabalho de Conclusão de Curso, na
modalidade Artigo, apresentado ao Curso de
Especialização em História e Cultura Africana
e Afro-Brasileira, da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, Centro de Ensino
Superior do Seridó, Campus de Caicó,
Departamento de História, como requisito
parcial para obtenção do grau de Especialista,
sob orientação do Prof. Dr. Danycelle Pereira
da Silva.
CAICÓ
2016
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.................................................................................... ................................04
2FORMAÇÃO TERRITORIAL DO SERIDÓ E A PRESENÇA AFRO-
BRASILEIRA........................................................................................................................ 06
3 MEMÓRIAS DE FAMÍLIA E ARTES DE FAZER............................................................12
4 NA COZINHA DE DONA ZÉLIA DE TUM......................................................................15
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................19
6 REFERÊNCIAS.....................................................................................................................21
4
MEMÓRIAS DA FAMÍLIA TUM:
AS COZINHAS COMO ESPAÇOS DE RESISTÊNCIA
SILVA, Lúcia Araújo Dantas da1
Danycelle Pereira da Silva - Orientadora2
RESUMO
Desde a ocupação colonial do Seridó que se encontram registros da presença afro-brasileira e
sua colaboração na construção da região. Escravos, mestiços e libertos que de forma
silenciosa perpetuaram seus saberes e práticas através das artes de fazer como a alimentação.
Essa transmissão, consciente ou não, aconteceu no âmbito familiar como podemos constatar
com a família de Dona Zélia de Tum, objeto central desta reflexão. Este trabalho se propõe a
analisar o papel dos saberes tradicionais como forma de resistência e em igual medida
verificar como os repasses destas práticas através das memórias de família contribuem para
elucidar o patrimônio imaterial afro-brasileiro. A metodologia utilizada se baseou em histórias
de vida que compõem o universo da história oral. Tomando como caminho o universo
familiar como um dos importantes elementos na perpetuação e resistência da cultura afro-
brasileira, partimos das memórias da família Tum para pensar o legado através das artes de
fazer e da alimentação afro-brasileira em Acari e no Seridó.
Palavras-chave: Memórias de família. Alimentação. Resistência.
1. Introdução
A escolha do tema para pesquisa e consequentemente construção do artigo como
requisito básico para conclusão do curso de Especialização em História e Cultura Africana e
Afro-Brasileira foi a partir do trabalho desenvolvido junto ao Museu Histórico de Acari onde
encontramos significativas informações no acervo bibliográfico sobre a presença afro
brasileira no Seridó. Esse estudo procura entender e valorizar os diversos traços da presença
dos afros descendentes na história e memória local. Oportunamente a pesquisa pretende
colaborar para que as informações e conhecimentos sobre da referida cultura adentre outros
espaços nesta localidade. Tanto a presença das famílias afrodescendentes, os elementos
constitutivos dessa cultura, os sinais de uma forma de resistência, são aspectos peculiares que
1Discente do Curso de Especialização em História e Cultura Africana e Afro-Brasileira – Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN), Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), Campus de Caicó,
Departamento de História (DHC). Graduado em História pela UFRN, CERES, Campus de Caicó. Professora da
Rede Estadual de Ensino, na Escola Estadual Professora Iracema Brandão de Araújo (Acari-RN), e pesquisadora
no Museu Histórico de Acari. E-mail: lucia_historiadora@hotmail.com 2Doutoranda em Antropologia Social pela UFRN. E-mail: danycelle@gmail.com
5
convidam a intensificar as discussões e idéias acerca do reconhecimento como patrimônio
imaterial no município de elementos característicos a cultura afrodescendente existentes nas
famílias do Acari e que fazem parte desse lugar.
Quanto as leituras e análises das publicações que tratam do envolvimento de famílias
nas referências relacionadas à cultura afro-brasileira, serão utilizadas fontes bibliográficas
múltiplas da cidade de Acari que falem da cultura afrodescendente. Assim, como o relato oral
de Dona Zélia, mas também de outros interlocutores que poderão através de suas memórias
comporem esta narrativa como demais parentes e cronistas de Acari.
A concretude da pesquisa elenca a importância das referências afrodescendente nas
famílias do município; observando na memória os valores repassados as outras gerações;
buscando analisar a importância da alimentação como maneira de fazer que perpetua e que
pode ser uma forma de resistência acerca da cultura afrodescendente. Sendo assim, capaz de
ser um patrimônio imaterial que valorize e torne viva na memória à história da cultura afro-
brasileira.
Desde a ocupação colonial do Seridó que se encontram registros da presença afro-
brasileira e sua colaboração na construção da região. Escravos, mestiços e libertos que de
forma silenciosa perpetuaram seus saberes e práticas através das artes de fazer como a
alimentação. Essa transmissão, consciente ou não, aconteceu no âmbito familiar como
podemos constatar com a família de Dona Zélia de Tum, objeto central desta reflexão. A
metodologia utilizada se baseou em histórias de vida que compõem o universo da história
oral. Tomando como caminho o universo familiar como um dos importantes elementos na
perpetuação e resistência da cultura afro-brasileira, partimos das memórias da família Tum
para pensar o legado através das artes de fazer e da alimentação afro-brasileira em Acari e no
Seridó.
As memórias de família podem nos revelar trajetórias, vivências, e detalhes do
cotidiano. À primeira vista, analisar memórias de família pode sugerir dar conta de um
universo micro em detrimento do espaço social que as famílias estão inseridas. No entanto,
um olhar mais demorado sobre o universo familiar revela-se um rico campo de análise que se
remete não somente a esfera privada, mas também a sociedade. A memória de família,
conforme veremos está intimamente ligada às memórias oficiais; deste modo, a idéia deste
artigo é adentrar nas memórias de famílias acarienses, em especial da família Tum, para
mostrar como o âmbito privado das famílias afrodescendentes de Acari pode sinalizar um
legado imaterial através das artes de fazer.
6
Antes de nos aprofundarmos nas memórias das famílias, propõe-se recuperar as
memórias oficiais da região do Seridó em que está localizado o município de Acari3, onde
viveu e vivem descendentes da família Tum, a fim de realizar um contraponto da história
oficial e das memórias que estão ressurgindo ao longo dos últimos anos com a revisitação
desta história tomando por base as narrativas de negros e mestiços que se fixaram desde o
período colonial na região.
2. A FORMAÇÃO TERRITORIAL DO SERIDÓ E A PRESENÇA AFRO-
BRASILEIRA
No século XVII, a configuração territorial do Seridó começa a desenhar um novo
formato em consequência da chegada de novos moradores que receberam do rei de Portugal
lotes de terras; eram através das sesmarias que estes novos habitantes instalaram suas
fazendas de gado e um novo modo de ter e ser do lugar (SANTA ROSA, 1974). A história
oficial dá ênfase aos estrangeiros vindos do norte de Portugal, mais precisamente de
localidades conhecidas como Minho e Açores que se caracterizaram por grupos diversificados
agregados do rei, homens bons e outros. Estes novos habitantes sedentos de riquezas e terra
para acomodar o gado em nada despontavam no interesse de sentimento amistoso em relação
aos índios, e estes por sua vez se viram usurpados pelos novos colonos (SANTA ROSA,
1974). Terras onde hoje está situado Acari, município em que os interlocutores deste artigo
vivem, são terras que antigamente foram requisitadas ao rei de Portugal pelos colonizadores;
era a chamada data do Acauã, assim iniciava-se pelos anos de 1676, o efetivo domínio do
branco português no sertão do Rio Grande.
A ocupação da Ribeira do Acauã não somente transformava o cenário geográfico a
partir da economia do pastoreio que vinha acompanhando os novos ocupantes do lugar, mas o
que era trazido de novo em termos de elementos humanos brancos e negros estariam a partir
daquele momento traçando linhas históricas na vida do Seridó. De início não foram as terras
da data do Acauã que trouxeram Manuel Esteves de Andrade ao Seridó, mas depois foram
3A cidade encontra-se localizada em município do mesmo nome, pertencente à microrregião do Seridó Oriental,
situada na mesorregião Central Potiguar do Estado do Rio Grande do Norte. É banhada pelo Rio Acauã e seu
município limita-se com outros municípios e com o Estado da Paraíba, sendo ao norte, Currais Novos e São
Vicente; ao sul, Jardim do Seridó, Parelhas e Carnaúba dos Dantas; a Leste, Currais Novos, Carnaúba dos Dantas
e Picuí (PB) e a Oeste, com São José do Seridó e Cruzeta. Está regionalmente integrada ao Estado pela BR 227 e
RN 11. (GALVÃO, 2012, p. 3-4)
7
estas terras que legaram a sua figura ser considerado o fundador de Acari; segundo a tradição
histórica do lugar, este mestiço, filho de Antônio Esteves de Andrade e Maria da Purificação,
sendo esta baiana considerada mulata e seu pai, branco de origem portuguesa.
A vinda de Manuel Esteves para o Seridó está ligada ao episódio com seu pai:
Antonio era marinheiro e lutou ao lado de seu patrício Manuel Nunes Viana, chefe dos emboabas, que brigavam contra os paulistas [...] Este movimento foi chamada de Guerra dos Emboabas e nela perdeu a vida o pai de Manuel Esteves. Dom Felipe V, então Rei de Portugal e Espanha, recomendou [...] que amparasse a família de todos que morressem lutando pela Coroa. Maria da Purificação solicitou a proteção para seu filho, já com 15 anos e arrimo de
família (também filho único) [...] Em 1725, já no posto de Sargento-Mor (hoje correspondente a major),veio para a região do Seridó,como cobrador de dízimos(impostos), chegando em Acari no dia 12 de março, hospedando-se na fazenda Saco dos Pereiros(árvore comum na caatinga),pertencente ao seu amigo e parente,Nicolau Mendes da Cruz[...],tendo vendido esta Fazenda em quinze de julho deste mesmo ano a Manuel Esteves, a ser paga da maneira que lhe conviesse. (FERNANDES, 1986, p.11-12)
Em 1724, um pedido na Provedoria da Fazenda Real da Capitania do Rio Grande, na
Cidade do Natal, em relação a porções de terras na Ribeira do Acauã, feita por Manuel
Esteves de Andrade, solicitava revisão de uma concessão de terra antes adquirida por Nicolau
Mendes em benefício de Manuel Esteves. O pedido sugerido por Manuel Esteves de Andrade
se estendeu até o ano de 1726. Provavelmente, a sesmaria de Nicolau Mendes da Cruz no
riacho São José envolvesse terras que no futuro viriam a ser a fazenda do Saco. O consenso
entre os historiadores que estudaram a história de Acari (SANTA ROSA, 1974; MACEDO,
2013), apontam para a alternativa de Manuel Esteves de Andrade não haver contraído núpcias
e nem ter deixado descendentes diretos de sua parte, assim a linhagem parental mais próxima
são os sobrinhos Francisco Pereira da Cruz e Antonio José Pereira, ambos residiram na
fazenda do Saco em Acari conforme sinaliza MACEDO (2013). A figura de Manuel Esteves
de Andrade é importante de ser evocada, pois mostra que para além da brancura que se tentou
impor na história oficial, inclusive na própria fundação da cidade de Acari, deixa margens
para questionamentos, já que conforme verificamos, o fundador de Acari era um mestiço,
filho de uma mulata.
Os traços humanos que se impregnaram na Ribeira do Acauã, que mais tarde viria ser
o município de Acari, através dos interesses econômicos e sob a tutela religiosa, assim como
dos lugares que se ergueram, revelam uma cultura com ligações do homem com a terra e o
gado, sendo esta a primeira economia de maior influência no sentido de traçar o perfil do
povo do sertão, acompanhada posteriormente pela produção da cotonicultura. As fazendas se
8
espalharam pelo sertão afora nas beiras dos rios e riachos e a economia de criatório do gado
passa a ser uma absorção não apenas financeira no Seridó, mas, sobretudo configurar
transformações sociais e territoriais na vida do lugar. Os limites das fazendas se davam pelos
rios e riachos, então a lógica do espaço favorecia a restrição de gasto do criador de gado para
com a mão de obra e neste cenário de escassez e dificuldades por parte dos fazendeiros sugere
o pouco número de aquisições de escravos para auxiliar no trabalho. O preço alto do escravo
encarecia o investimento na atividade pecuarista, sendo esse um ponto que a ser replicado
quando se trata de números de cativos no sertão, no entanto não podemos deixar de enfatizar
que esta mão de obra não deixou de se fazer presente na economia Seridoense.
A atividade do gado foi para muitos cativos uma possibilidade de liberdade pelo
trabalho, já que os escravos vaqueiros, além desse ofício, faziam outros trabalhos, alguns
podiam plantar para seu próprio sustento e algumas reses que também eram adquiridas pelo
sistema de apartação4, meio pela qual servia para comprar a própria alforria. Este foi o caso de
Feliciano da Rocha, escravo que foi vaqueiro de Antônio Paes de Bulhões no município de
Acari, mas que conquistou sua liberdade através do trabalho com o gado. Cacimba das Cabras e
Barrentas foram fazendas que figuraram nas posses do então forro Feliciano da Rocha (SILVA,
2014, p. 37). Narrativas acerca do escravo Feliciano, documentos e relatos atestam que nas suas
gerações posteriores como Feliciano Pereira e Maria Pereira, que eram filhos de Feliciano José
da Rocha, além das fazendas, estes últimos também possuíam escravos5 (CAVINAG, 2014,
p.309).
As narrativas sobre os vaqueiros do sertão denotam que este deveria ser um homem de
coragem e de confiança do patrão e algumas vezes foram os responsáveis diretos em tomar
conta da terra enquanto aqui não chegaram de imediato os respectivos donos. Além das funções
de vaqueiro, o escravo também trabalhou na agricultura ou mesmo nas duas atividades
paralelamente (ALVES, 1986; JOSÉ AUGUSTO, 1940, pág. 13). Afirma Assunção (2006) que
a ocupação da terra pelos escravos se deu pela forma de terras devolutas6, e tal enfrentamento
era feito por escravos alforriados ou fugidos. A historiografia oficial esteve durante muito
tempo concentrada em estudos nos eitos do açúcar no litoral e nas grandes propriedades do
plantation em detrimento a economia e sociedade que se formou no sertão a partir da pecuária.
A relação entre fazendeiros e escravos no Seridó aparece de forma que os aspectos
4Em meio às apartações ocorria a captura de barbatões. Eram touros bravios... Fugidios, embrenhados na
vegetação catingueira desafiavam os vaqueiros afamados. Quando a bravura do vaqueiro prevalecia, os
fazendeiros recompensavam. (SILVA, 2003)
6 Devolutas por serem terras indivisas ou comuns, suas divisas não tinham cercas e o sesmeiro ainda não tinha
feito beneficiamento.
9
comportamentais do cativo no sentido de obediência, lealdade, força no trabalho etc.; são
características usadas nas descrições dessa relação que acreditamos de certa forma ter
influenciando na construção da idéia de leveza do trabalho escravo no sertão em relação à
aspereza da área canavieira, uma negação de um conhecimento mais claro sobre a real situação
do cotidiano cativo no sertão. No entanto tal foco descritivo de uma branda relação entre
cativos e senhores, acaba por contribuir para clarear a proposital invisibilidade daqueles que se
acharam no direito de escrever a história deixando a margem desta, a presença das minorias
(leia-se índios e negros). Nesse sentido, a pequena quantidade de escravos no lugar constitui
uma equivocada alusão minimizadora da escravidão no sertão do Seridó em detrimento a
quantidade de escravos existentes em outras partes do Rio Grande do Norte (SILVA, 2014,
p.11). O outro ponto a se tocar no referente à escravidão no Seridó permeia as práticas e
vivências do cotidiano, as formas de resistência e luta.
Imaginar cenas do cotidiano cativo no Seridó é exatamente o desafio de se lançar um
novo olhar mais livre e inovador sobre essa historiografia. A partir da narração do casamento
de um dos primeiros colonos de Acari, podemos verificar elementos do cotidiano dos cativos;
tratando do casamento arranjado entre Antônio Paz de Bulhões e Ana de Araújo Pereira, filha
de Tomaz de Araújo Pereira, o primeiro entre as gerações dos três “Thomaz de Araújo
Pereira”, diante das condições em que se deu o casamento, o casal resolveu definir seus
limites no próprio espaço da casa, e numa das contendas do casal, a esposa exaltou que as
escravas eram dela, que as tinha recebido do pai, que as mesmas faziam parte da cozinha e era
lá onde Dona Ana numa esteira fazia sua refeição com as cativas. Desta forma, sendo
favorecida por esta nova liberdade de leitura, nos deparamos com uma clara situação de poder
sobre escravas cativas e definição restrita do seu espaço na casa de fazenda, como sendo a
cozinha, sendo esta a clara definição que constata o papel de servidão existente no Seridó das
escravas para com as senhoras de fazenda, mas também sinalizando a cozinha como um lugar
de trocas e de sedimentação de memórias (ALVES, 1986).
Numa outra descrição do cotidiano familiar na série de artigos publicados em 2006, na
Obra “Velhos Costumes Do Meu Sertão” do autor Lamartine (2006, p. 34) apesar da ausência
de uma data específica das narrativas encontradas no livro, a obra traz inúmeras passagens em
que o negro se faz presente, como na citação: “os escravos assistiam do corredor”. A leitura
de alguns trechos revela que o cativo era obrigado a participar da crença religiosa dos
fazendeiros, quando da reza do terço que era um costume comum nas fazendas após a refeição
os patrões, onde família e escravos acompanhavam a reza tirada pelo senhor ou a senhora, e
logo após certamente em sinal de submissão ou aceitação tomavam a benção aos seus donos.
10
Caminhando numa reescrita da vida dos escravos no Seridó temos referenciais que
contribuem de forma inovadora na construção de uma historiografia que oportuna à visibilidade
e melhor entendimento acerca da história dos escravos no sertão do Seridó. Conforme afirma
MACÊDO (2012, p. 130) há memórias que não foram ouvidas, que foram caladas pela
imposição de um discurso de poder regional, ou como sinaliza CAVIGNAC (2014, p.102) “que
pelos registros orais e a própria história afro-brasileira do Seridó é possível captar um dizer
próprio e comum acerca da história de exclusão.”
Hoje ao alcançarmos os acessos aos mais diferentes tipos de documentação de cartórios,
paroquianos, cartas, testamentos, assim como através das narrativas orais, estamos convivendo
com a oportunidade de um novo encontro de uma história pela qual são feitas novas leituras e
possivelmente sejam alcançadas diferentes conclusões que permitem fazer o contraponto entre
a nova realidade fornecida acerca da presença cativa no Seridó. Entre as histórias de presença
cativa enfatizamos a do vaqueiro em sua lida com o gado, que em paralelo a esta atividade
construiu inúmeras opções de não apenas direcionar uma análise somente no âmbito de
realização de uma atividade de trabalho com o gado no sertão, mas, sobretudo perceber que tal
fazer gerou influências nas famílias, na alimentação, na vestimenta, nas festas e outros aspectos
que contribuem para evidenciar que desta atividade foi deixada uma marca própria na
sociedade do Seridó. Além da lida com o gado, a presença cativa encontra-se realizando outras
tarefas no meio de vivência das fazendas seridoenses, entre estes, o trabalho nas lavouras de
algodão, colhendo, fiando e tecendo redes. (MÂCEDO, 2012, p.189)
O algodão teve seu momento áureo no município de Acari, chegando até abrigar uma
estação de beneficiamento do algodão mocó na fazenda Bulhões, por volta de 1920, chefiada
pelo engenheiro agrônomo Otávio Lamartine, filho do então governador do estado Juvenal
Lamartine que muito se empenhou nos estudos para inovações no plantio e beneficiamento do
algodão no Seridó. Nas palavras de Macêdo (2012, pág.191) “Esta variedade “mocó” ou
“Seridó” teve um dos mais fortes e propositivos defensores em Juvenal Lamartine”.
A história antiga de Acari direcionou seus holofotes nos personagens brancos, deixando
de dar uma necessária visibilidade à existência da vida e história dos afro-brasileiros no lugar,
certo é insistir neste princípio de se explicar e clarear verdades acerca dos afro-brasileiros no
Seridó e especificamente em Acari que tragam à tona essa história. A história dos
afrodescendentes em Acari nos mostra valiosas possibilidades de substituir através da história
das famílias, a invisibilidade pela notoriedade devida a estes antepassados, como bem afirma
CERTEAU (1990, p.41) “Faz das palavras as soluções de histórias mudas.”
11
Silva (2014) lança um novo olhar sobre as famílias afrodescedentes de Acari que nos
permite perceber a ligação das famílias abordadas pela autora, mas também verificar a ligação
das famílias pesquisadas pela autora com o passado cativo. A autora mostra como as relações
de trabalho passam a ser modificadas e a mão de obra do gado, da lavoura de subsistência e
do algodão passam a ter uma nova configuração, de trabalhadores livres não assalariados,
moradores das fazendas, meeiros, arrendadores de terras.
Dentre as famílias relatadas no trabalho de Silva (2014), está à família de Dona Tum,
ou a família dos Pedro, conforme nomenclatura empregada no trabalho. A família dos Pedro,
a origem familiar de Dona Zélia Maria de Lima principal interlocutora deste trabalho, está
diretamente ligada a José Pedro do Nascimento,
o chamado “pai velho” como diz Dona Zélia,
sendo este seu bisavô por parte de pai, que é da
Paraíba. Devido à origem de “pai velho” que
Dona Zélia se autodenomina quilombola. Ela
relata que José Pedro do Nascimento era escravo
advindo de um engenho da Paraíba e foi
adquirido por seu José Braz, fazendeiro de terras
na ribeira da Acauã. O escravo foi dado de
presente por Amâncio, senhor de engenho em
Bananeiras no estado da Paraíba. José Pedro
veio tomar conta da Fazenda Talhado7, esta sua
linhagem revela-se extensa e com interligações
entre as famílias Higinos, Félix e Paulas, todas
com representantes atualmente em Acari e com
ligações do passado cativo (SILVA, 2014).
Estas famílias são ligadas através do
parentesco, sendo os Pedros, os Higinos, os
Félix e os Paulas, primos. Esta conclusão nos
leva a perceber que as memórias destas famílias são muito importantes, e é dentro deste
contexto familiar que foram ensinados e aprendidos modos de fazer da vida de antigamente
7 Sua instalação deu-se por volta de 1926, a Casa Grande da fazenda foi construída em 1940 tendo 25 cômodos
em alvenaria e piso de toco. Entre os instrumentos de trabalho tinham caldeira, máquina de descaroçar algodão, prensa e máquina de moer cana. Alguns existentes até hoje.
Figura 1: Sebastiana Maria do Sacramento e José
Pedro, bisavós de Dona Zélia de Tum. Crédito.
Fonte:Acervo de família.
12
em Acari, mas, sobretudo, foram nas artes de fazer que se materializaram as memórias
indizíveis destas famílias.
3. MEMÓRIAS DE FAMÍLIA E ARTES DE FAZER
A família, não se reproduz apenas biologicamente, nem reproduz apenas sua força
de trabalho. Ela se reproduz também simbolicamente, e uma das dimensões dessa
reprodução pode ser apreendida pelo modo de comer.(WOORTMANN, 2013,
Pág.6)
Interessante reiterarmos que o presente artigo tem como objetivo versar através da
alimentação como patrimônio imaterial por meio da memória oral da família Tum8. Para
adentrar neste universo da memória familiar, faz-se necessário pontuar acerca da memória
coletiva e memória individual. Falar em memória implica não apenas pensar num momento
vago e distante no passado, mas atentar para o momento em que esta memória é convidada a
ser revivida ou acordada frente a outro presente; são realidades diferentes não somente pelo
percurso temporário que os separam, mas, sobretudo as mudanças de pensamentos
(HALBWACHS, 1989, p.12). Os comportamentos com diferenciais que afetam esse encontro
entre memória e tempo presente, no qual esta memória foi articulada é um encontro que
condiciona de certa forma um repensar diante da memória do ontem e do hoje.
A reflexão proposta neste trabalho aponta para a perspectiva de analisar a importância
da memória de família através da alimentação que é encontrada como forma de resistência,
constituindo-se um bem imaterial que consigna aos afro-brasileiros um legado de sua cultura
(POLLAK, 1992, p.204). Seguindo no caminho da memória e da alimentação, acreditamos
está estendendo o leque de conhecimentos acerca das famílias afrodescendentes e as novas
gerações que se formaram a partir da união entre essas famílias e que entre outros saberes, o
modo de fazer da alimentação tem uma importante contribuição como um elemento
condicionante no tocante a necessidade de maior visibilidade e preservação da memória
afrodescendente no município de Acari.
A memória conforme já sinalizamos opera em dois níveis, tanto no individual, quanto
no coletivo; a memória de família é exemplar para verificarmos como os saberes e práticas
podem se replicar ao longo das gerações, perpetuando não só uma memória materializada em
fotografias de álbuns de famílias, objetos de valor ou não. É dentro do universo familiar, que
as memórias apreendidas inconscientemente, pelos gestos, pelo “ver fazer” também se replica.
8 Apesar da família de Dona Zélia ser referenciada por Silva (2014) como a família dos Pedro, adoto a
nomenclatura da família Tum, pois foi esta a que utilizei junto aos interlocutores por ocasião da pesquisa.
13
Concordamos com Zonabend (1991) quando afirma que nascemos em uma família, em antes
de ser pessoa “X” ou “Y”, somos filhos e filhas de pais no seio de uma família. A memória
familiar pode tomar a forma "[...] de uma série de narrativas transmitidas de geração em
geração e que constituem um verdadeiro legendário familiar" (ZONABEND, 1991, pág. 181).
Foi no seio da intimidade familiar que as memórias foram repassadas ou não.
Remeter-se a origens de um passado escravo era quase sempre uma memória indizível, pois o
que seria perpetuado marcaria a família e o indivíduo frente à sociedade dominante; por isso,
a memória gestual, de práticas do cotidiano, podem revelar o que não foi materializado
(POLLAK, 1992). O legado marcado na repetição dos gestos, como bem coloca Certeau
(1990), através das práticas cotidianas como o ato de cozinhar, ou que alimentos servir,
descortina um outro passado.
Assim como outras famílias em Acari que utilizaram as artes de fazer9 para se inserir
socialmente e perpetuar de forma inconsciente traços da cultura afro-brasileira, a trajetória da
família Tum torna-se exemplar para refletir sobre a resistência e o patrimônio imaterial afro-
brasileiro acariense. Não é a memória que se tranca em si-mesma, mas a que partilha seus
conteúdos quando há um ouvido disponível e atento, e que os define, no próprio ato de contar.
(Bosi, 2003, pág.233) Ao afirmar-se quilombola, Dona Zélia de Tum, está abrindo um
caminho em busca de um passado que não foi escrito, mas que ainda é possível de ser
perceptível num ato de fazer e de contar.
Nas famílias oriundas de um passado marcado pela privação como é o caso da família
Tum, os bens materiais eram escassos para serem repassados, mas os saberes e práticas eram
diversificados e foram através da memória das famílias perpetuados. A alimentação faz parte
da identidade do indivíduo, é pela forma que comemos desde a infância que formamos nossos
gostos e habitus alimentares (DIEZ, 2009). Quando nos remetemos às cozinhas do Seridó,
verificamos que famílias como a de Dona Tum, estavam ligadas as grandes cozinhas das casas
grandes, espaços em que cozinhavam de acordo com um gosto alimentar do fazendeiro, que
por diversas vezes poderia ter a sua disposição uma maior variedade de alimentos ou que não
abria espaço para receitas de cunho mais humilde.
No trânsito entre as cozinhas das casas grandes e de suas próprias cozinhas, as
mulheres – livres, escravas, libertas - foram mantendo as memórias gustativas culturais e de
raiz. O ato de cozinhar e a alimentação se configuram elementos importantes na tarefa de
9 Conforme mostra Silva (2014), Batista (1993) e Bezerra (2000), outras artes de fazer podem referenciar
famílias afrodescendentes de Acari como as lavadeiras da família Paula, as louceiras das famílias do Saco dos
Pereira e as rezadeiras da família Trajano.
14
transmitir traços de uma cultura que apesar dos espaços limitados para se auto-representar
dentro de uma contemporaneidade, onde os afro-brasileiros tinham que conviver de forma
imposta e prioritária com os costumes e interesses de uma sociedade de poderio branco,
conseguiu perpetuar saberes e gostos.
As receitas, a forma de cozinhar determinado alimento, o segredo do preparo, estão
condicionadas a uma memória de família e une-se a escolha dos alimentos. A alimentação é
também uma herança memorial, já que os alimentos não servem apenas para nutrir, mas
possuem um significado simbólico. Desta forma, a comida "fala" sobre determinada família,
mas também fala sobre o meio social. Ao reproduzir costumes alimentares e modos de fazer,
recontam-se narrativas que alimentam identidades (WOORTMANN, 2013).
A receita narra à partilha de saberes que se mantêm como memória social e, ao serem transmitidos com base na receita, contam a história de como uma comunidade compreendeu e aceitou o gosto, textura e forma de uma comida. A relação que se estabelece aqui entre comida e memória está fundamentada na idéia de que a comida tem uma dimensão comunicativa. (AMON & MENASCHE, 2008, p.16).
Assim, a alimentação é uma forma de perceber a presença de traços culturais africanos
no gosto brasileiro (FREYRE, 1992). Oportunamente, autores e cronistas tradicionais na
região traduzem esta presença da cultura afro-brasileira na alimentação do Seridó em registros
que assim falam: FARIA (1965, p.42) o chouriço como sobremesa sertaneja, que tem como
base de ingrediente o sangue suíno; SANTA ROSA (1974, p.93) destaca entre outras comidas
sobre o sequilho à base de mandioca e leite de côco; MEDEIROS (1994, p.36) relata a
tradição do domingo de carnaval onde era servido o filhós; BEZERRA (2013, p.56) descreve
como o feijão, um pouco de carne, farinha e rapadura faziam parte da refeição diária
sertaneja. A alimentação é uma atividade que muito tem contribuído na reprodução da
memória afro-brasileira, sendo este um critério de intrínseca importância que valida esse
modo de fazer ingressar na pauta de patrimônio imaterial (CERTEAU, 1990).
Em torno das cozinhas, esta alimentação de origem africana foi se misturando as
outras influências coloniais da sociedade acariense e colaborando para a identidade gustativa
da região. Ao enfatizar a memória gustativa podemos observar a prolífera contribuição que foi
dada para a memória coletiva dos afrodescendentes, oferecendo possibilidades reflexivas
acerca da perpetuação das tradições afro-brasileiras como um sentido de existir de
coletividade, de um povo, através de um modo de ser; como aponta Pollak (1989, p. 9) são
“tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento.”
15
Nos dias atuais, a consciência de fazer sobreviver à memória pelo feito alimentar busca outro
olhar diante de um passado de memórias sombrias.
A memória familiar aliada à alimentação pode construir elementos para compor
narrativas sociais, mas também se configura um patrimônio imaterial, já que compõe a
identidade nacional. Esse traço da cultura africana, presente nas famílias acarienses é
acrescido de mais um significado, a resistência. Resistir significa10
“opor força, não ceder, não
se dobrar, aquele que resiste a autoridade, defender-se"; as famílias negras de Acari resistiram
através das artes de fazer. Em sua maioria iletrados, transformaram de forma inconsciente
seus ofícios e práticas em resistência a uma cultura dominante. Resistiram na cozinha das
casas grandes ao incorporar técnicas e formas de preparo, mas resistiram ainda mais, nas
cozinhas de suas casas, onde rememoravam os saberes que seus avôs lhe ensinaram e que
foram aprendidos com seus antepassados.
4. NA COZINHA DE DONA ZÉLIA DE TUM
A decisão de adentrar pela cozinha da família de
Zélia de Tum que é uma família constituída de
descendentes de escravos deu-se pela reivindicação de
Zélia dessa origem e por sua preocupação com o repasse
da tradição alimentar de origem afro-brasileira. Esse fato
destoa do contexto geral acariense, em especial, quanto
ao pertencimento de um passado cativo; como mostrou
Silva (2014) às famílias negras acarienses apesar de
terem raízes que remontam um passado cativo, mantêm
silêncios sobre este passado. Conforme mostramos
anteriormente, Dona Zélia é filha de Dona Tum11
,
cozinheira muito afamada na cidade, ambas moraram
muito tempo na fazenda Talhado. Dona Tum aprendeu
com sua mãe Sebastiana, que também trabalhou nesta
fazenda os saberes e segredos da cozinha.
10
Definição do dicionário Aurélio. 11
Maria Auta ou Dona “Tum” como ficou conhecida em Acari.
Figura 2:Dona Zélia em sua casa.
Fonte: Lúcia Silva
16
Zélia é o que Le Goff (1996) vai chamar de “especialista da memória”, pois é
perceptível sua experiência não somente no sentido da arte de fazer, como o domínio do
conhecimento da história afro-brasileira e da memória oral de seus descendentes; seus
depoimentos encontram-se registrados em vários e diversificados trabalhos escritos, a mesma
sempre colabora de forma a enriquecer as informações acerca da presença afro descendente
em Acari.
Para realizar esta reflexão, nos baseamos em entrevistas semi estruturados realizadas
com Dona Zélia, que foram organizadas a partir de dois encontros com conversas sem
gravação, a pedido de Zélia12
por estar com problemas de saúde, porém a nossa interlocutora
mostrou-se bastante receptível e interessada em falar sobre os alimentos e as histórias de sua
família, e já o terceiro momento contou com uma entrevista escrita.
As demais entrevistas foram realizadas com mulheres do lar, familiares de Zélia,
funcionários públicos, professores, com o intuito de fomentar as idéias a partir do contato com
a alimentação afro descendente e a referência acerca da pessoa de Dona Zélia nesse contexto.
As informações dos interlocutores apontaram para as referências de habilidosa cozinheira, o
conhecimento que tem sobre a família e a prática culinária no seu meio familiar. Dessa forma
constatamos tal teor das referências nas falas de Dona Guiinha quando afirma13
E ela tem prazer em soltar as palavras, gostava de dizer que eu sou dos carambolas(quilombolas).” [...] “ela sabe fazer tudo, do bolo preto, o furrumbá, o xerém, a polenta, o arroz doce, o mungunzá, filhós e outros.
Outra entrevistada, Zizélia14
, fala sobre a forma como Zélia adquiriu esta arte de fazer,
Zélia é uma grande cozinheira aprendeu muitas comidas de antes como a paçoca de pilão, aprendeu as comidas feitas por mãe (Tum), que na verdade se chamava Maria Auta, num sei o porquê desse apelido, mas Zélia sabe, ela conhece muito das coisas da família.
A filha Luciana Maria de Lima revelou
que dentro da família “não se dedica” para
aprender, mas que Dona Zélia ensinou ela a
fazer filhós, furrumbá de côco, pé de moleque
e bolo preto. Concernente às outras entrevistas
realizadas no seguimento extra familiar, todos
12
Zélia Maria de Lima teve um AVC em 2014 e fic. 13
Josefa Maria da Guia, ocupação: rezadeira,reside 14
Zizélia Maria de Jesus, irmã de Dona Zélia de T Figura 3:Dona Zélia, sua filha e neta Crédito:
Fonte: Acervo Pessoal da Família
17
os entrevistados afirmaram ter conhecimento e degustado as iguarias de Dona Zélia, seja nos
cursos ofertados pela mesma, seja no ambiente familiar, ou nas ocasiões em que a mesma
comercializa em feiras e eventos da cidade os alimentos. Assim percebemos a fluidez da
imagem do repasse do fazer no âmbito familiar e no entorno da comunidade. Dessa forma,
no contexto de sua família e da própria comunidade até os dias atuais podemos observar que a
mesma desponta na posição de guardiã das lembranças de famílias e dos alimentos de origem
africana, feitos e ensinados por sua mãe Dona Tum. Como afirma BARROS (1989, p. 38)
“[...] essas atribuições não são especificadas apenas pelo guardião, mas por toda a família que
consensualmente o incumbiu desta tarefa”.
Durante a pesquisa, tivemos contato com várias receitas que Dona Zélia considera de
raiz: o mungunzá, o furrumbá, o filhós, os doces de fruta, o xerém. Estes alimentos podem
nos “falar” sobre a família de dona Zélia, sobre a sociedade acariense, mas, sobretudo, sobre
uma herança gustativa. Cascudo (2004) mostra que a dieta africana praticada pelos escravos
sofreu modificações de acordo com o contexto brasileiro, e que priorizava as comidas
"enfarinhadas", sendo no Brasil utilizada em maior proporção a farinha de milho, ou como
popularmente é conhecido "fubá". O côco e a rapadura também foram amplamente utilizados
pelos cativos em sua alimentação, assim como as raízes como macaxeira e batata-doce.
Dentre as receitas preparadas por Dona Zélia, há a singularidade do furrumbá, doce
registrado por Freyre (1997) como de origem cativa e que é uma receita de família repassada
entres as gerações da família Tum. No entanto, optamos por trazer em destaque a receita do
filhós, iguaria seridoense muito famosa e popular que é elaborada por Dona Zélia de maneira
singular. Dois motivos chamam a atenção, primeiro, o fato de Dona Zélia ter revelado que são
poucas as pessoas na família que aprenderam fazer o filhós desta forma e o segundo motivo, o
diferencial do uso da batata-doce como um dos ingredientes principais. Em outros municípios
e mesmo em Acari, os filhós são feitos de maneira geral sem batata-doce, somente com
farinha de trigo; Luciana15
esclarece a receita da
família, “ela nunca fez com farinha, aprendeu
assim, desde antigamente com a sua avó que fazia
com batata.”
Embora a receita do filhós seja popular no
Seridó, transcrevemos abaixo a receita do filhós da
família Tum, que como afirma AMON &
15
Luciana Maria de Lima, filha de Dona Zélia aprendeu a fazer filhós com a mesma. Repassou a informação
acima citada via celular 28/04/2016 às 13:32.
Figura 4:Filhós de Batata doce
Fonte: Danycelle Silva
18
MENASCHE (2008, p.16) a receita fala de uma construção familiar, coletiva, fala de
identidade.
Filhós de Batata Doce
1 Kg de batata doce, ½ côco ralado, 1 ponta de colher de margarina, 1 xícara de leite de
vaca,1 pitada de sal, 1 fio de óleo, Farinha de trigo (uma pequena porção). Cozinhar a
batata e deixa esfriar, tirar a casca e amassar com garfo, logo, juntar os outros ingredientes
e deixar a massa descansar por vinte minutos (não pode ultrapassar esse tempo pra massa
não escurecer). Fazer bolinhas na mão (a farinha de trigo serve para que a massa não fique
grudando nas mãos) e depois fritá-las em óleo quente. Depois de prontas, deixa-se esfriar e
serve-se acompanhados de mel de rapadura preta, temperado com cravo.
Percebemos que os elementos africanos que foram adaptados ao contexto brasileiro
estão presentes de maneira muito enfática nas comidas citadas e feitas por Dona Zélia. A
receita do filhós, feita a partir da batata-doce pode nos mostrar que a alimentação no contexto
sertanejo tinha suas dificuldades, em especial, para as famílias mais humildes. Silva & Isabel
(2012), mostram que o filhós pode ter chegado ao Seridó com os primeiros portugueses, mas
suas variações, como é o caso do filhós feito por Dona Zélia vai depender do contexto
familiar de cada cozinheira. Há muitas possibilidades da opção da família de dona Zélia pela
batata-doce, mas acredita-se que seja pelo fácil acesso a este tubérculo que poderia ser
plantado pela família. Como a família de Dona Zélia tem uma trajetória interligada às
cozinhas das casas de fazenda, a iguaria pode ter sido aprendida neste meio e adaptada a
realidade da família.
Neste caminho que trilhamos revisitando as histórias e memórias afrodescendentes na
intenção de encontrar traços desta cultura, as artes de fazer e a alimentação surgem como
resistência da cultura afro-brasileira. Saberes repassados, mesmo que as memórias sobre a
vida cativa no Seridó estejam envoltas em tantas tristezas, perdas, e prefiram o silêncio. Dona
Zélia traz estreitas referências quando se trata da questão do repasse da arte de fazer, os cursos
culinários16
são um exemplo disso; participantes como Dona Guiinha, que mesmo sabendo
fazer muitas das comidas ensinadas por Zélia, sentiu interesse de partilhar o passado
revisitado por esta arte de fazer. Outra participante destes cursos foi Maria da Guia Silva17
que é parente de Dona Zélia por parte de seu pai que se chamava Davi Paulo, a mesma disse
16
Dona Zélia hoje acometida de um problema de saúde encontra-se afastada dos cursos ofertados pela mesma no Grupo Pérola- CRÁS Acari-RN 17
Maria da Guia da Silva, residente na rua: Major Hortêncio de Brito, Acari-RN.
19
que sabe fazer o mungunzá, alegou que as misturas de família afetam no processo desse
ensinamento e que as novas gerações não se interessam em aprender.
Porém apesar das dificuldades ou mesmo desinteresse ressaltamos a importância do
repasse como um dos caminho imprescindíveis para deixar permanente na memória as
origens afrodescendentes. A principal expectativa no decorrer da pesquisa era de que
certamente somente os dados sobre as origens da alimentação afrodescendente no município
de Acari iriam prevalecer, mas as histórias contadas por Dona Guiinha, rezadeira, figura
respeitada no lugar, evocou não somente as habilidades ligadas às artes de fazer ou as receitas
de família, ligou esta herança desse conhecimento a sua descendência quilombola que
segundo a mesma vem dos “Garcia, outro tronco velho do Seridó”. Esta informação foi
considerada nova, abrindo possibilidades de que mais famílias possam reivindicar este
pertencimento e sinaliza novos caminhos de pesquisa. Note-se que tal qual a família de Dona
Tum, a família de dona Guiinha também possui um ofício que a diferencia no contexto social,
o de rezadeira. Notamos, que a cozinha, no caso da família Tum e de tantas outras famílias
que tinham as mulheres ligadas a este espaço, a cozinha foi um espaço de resistência; mas,
não somente através deste espaço a cultura afrodescendentes resistiu em especial em Acari,
onde acreditamos que os saberes e práticas foram à maneira encontrada para perpetuar
memórias e fazer resistir traços da cultura afro-brasileira.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim, constatamos o importante papel das antigas cozinheiras negras, que
construíram trajetórias que as tornaram profissionais nesta arte com o domínio sobre o modo
de fazer os alimentos de origem africana. Elas adentraram os espaços da cozinha na sociedade
seridoense carregando no fazer alimentar não somente a prática de uma atividade, mas a
oportunidade de interferir através da cultura alimentar na forma de percepção do outro, que os
próprios afrodescendentes ou mesmo as chamadas famílias tradicionais do Seridó, lançavam
olhares de indiferença, mas faziam uso e gosto dos alimentos de origens africanas.
Interessante considerar que o contexto de interferência social pela via do modo de fazer
alimentar, tenha sido um condicionante que tenha tomado a configuração de uma alternativa
como uma forma de resistência, usada como via de preservar uma cultura. No saborear das
receitas de origem africana, o discreto recado de um modo de ser e fazer, era repassado
20
através da alimentação e possibilitou as condições da sobrevivência de traços da cultura afro-
brasileira.
Portanto, diante do exposto da influência da alimentação afro-brasileira nesse lugar
configurando na memória de família, nas casas de fazenda do Seridó, nos acontecimentos
culturais da atualidade, no repasse do saber acreditamos serem estes elementos suficientes
para sinalizar que a alimentação afro-brasileira praticada no município de Acari corresponde
como patrimônio cultural imaterial e que este reconhecimento da predominância dessa arte de
fazer no sertão com características bastante peculiares a vida do afro descendente no Seridó,
agrega valores ao conhecimento historiográfico e garante mais confiabilidade aos locutores
dessa memória que faz uso dessa arte de fazer e se transforma em falas que assumem,
facilitam e promovem visibilidade à cultura dos afro descendente no município de Acari.
MEMORIAS DE LA FAMILIA TUM:
LAS COCINAS COMO ESPACIOS DE RESISTENCIA
RESUMEN
Desde la ocupación colonial del Seridó se encuentran registros de la presencia afro-brasileña y
su colaboración en la construcción de la región. Esclavos, mulatos y hombres libres que de
forma silenciosa perpetuaron sus saberes y prácticas a través del arte de la alimentación. Esa
transmisión, consciente o no, sucedió en el ámbito familiar, como se puede constatar con la
familia de Doña Zélia de Tum, objeto central de esta reflexión. Este trabajo se propone
analizar el papel de los saberes tradicionales como forma de resistencia y en igual medida
verificar como la herencia de estas prácticas a través de las memorias contribuyeron para
realzar el patrimonio inmaterial afro-brasileño. La metodología utilizada se basa en historias
de vida que componen el universo de la historia oral. Tomando como camino y universo
familiar como uno de los elementos importantes en la perpetuación y resistencia de la cultura
afro-brasileña, partiendo de las memorias de la familia Tum para pensar el legado a través del
arte de la alimentación afro-brasileñas en Acari y en el Seridó.
Palabras-claves: Memorias de familia. Alimentación. Resistencia.
21
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AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente ao meu guia de luz Jesus Cristo.
24
Obrigada também a minha orientadora Danycelle Pereira da Silva, por toda a sua
compreensão, responsabilidade, eficiência, e por não medir esforços em compartilhar todo seu
conhecimento acerca da história dos afrodescendentes no Seridó.
Agradeço também ao corpo docente e a toda equipe da Especialização em História e
Cultura Africana e Afro-brasileira pela oportunidade de intensificar os conhecimentos sobre
esta cultura.
Dedico ainda este trabalho a estas pessoas que me ajudaram das mais diferentes
formas: Gilvani Dantas da Silva, Giusti Araújo da Silva, Giancarlo Araújo, Gilucian Araújo,
Gislene Alves da Silva Costa, José Evani da Silva, Ana Cristina, minhas netas e neto(s) e de
forma especial a família Tum, que colaborou de forma significativa e receptiva para
realização da pesquisa.
A todos o meu muito obrigada.
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