imaginário
Post on 29-Feb-2016
12 Views
Preview:
DESCRIPTION
TRANSCRIPT
-
116
4 A TEORIA GERAL DO IMAGINRIO E O IMAGINRIO DOS JOGADORES DE ROLEPLAYING GAMES
O fato de que no h pensamento sem imagem nos convida e entender as imagens que esto em construo em ns e em nossas obras, mesmo cientficas, para entendermos a ns mesmos, assim como o que fazemos. Danielle Pitta.
A ligao dos jogos com a religio/religiosidade passvel de ser
considerada histrica, pois ela pode ser sopesada pela pesquisa bibliogrfico-
documental, portanto, utilizando-se de meios convencionais da cincia. No entanto,
para evidenciar a necessidade de ligao do indivduo com o elemento
transcendente, os mtodos da cincia naturalista no so suficientes.
Para que se d mais apropriadamente o estudo de novos fenmenos
gerados pela sociedade, necessria se faz a aplicao dos novos mtodos
investigativos. Em nosso estudo, a investigao da mitologia e da experincia do
sagrado nos Jogos de Roleplaying Games necessitou de instrumentos que
possibilitassem uma aproximao com o imaginrio dos jogadores, alm da
observao de campo, acompanhada de questionrios e entrevistas.
Nesse sentido, buscou-se como suporte para anlise, a Teoria Geral do
Imaginrio (TGI), proposta por G. Durand17 (2002). A TGI trata-se de uma nova
configurao na forma de perceber e estudar a coerncia da imaginao criadora
humana, que vem resgatar sentidos negados durante a investigao cientfica
naturalista e estabelecer o que Bachelard (1995) denominou de observao sensvel
dos fatos.
Desse modo, ela torna-se, mais adequada obteno de conhecimentos
aprofundados sobre objetos complexos como os seres humanos; como tambm dos
fenmenos emergentes produzidos por esses indivduos na ps-modernidade,
momento em que, segundo Maffesoli (2006, p. 6), aps a dominao do princpio do
17 A partir desse ponto, sero usadas as letras G e Y, antes dos sobrenomes Durand, em respeito s
normas da ABNT, para diferenciar os autores Gilbert Durand de Yves Durand.
-
117
logos, representante da razo mecnica, previsvel instrumental utilitria, assiste-se
ao retorno de um princpio do eros.
Como alerta o prprio G. Durand, o nosso tempo retomou a conscincia
da importncia das imagens simblicas na vida mental (1995, p. 37). Dessa forma,
alm da utilizao de outros mtodos de pesquisa, utilizou-se a Teoria Geral do
Imaginrio, conseguiu-se uma maior aproximao com o imaginrio dos jogadores,
ao tomar-se por base as imagens projetadas durante o processo do jogo,
valorizando suas formas de expresso e as mensagens trazidas por elas.
Norteando-se no fato de que essa Teoria traz um novo paradigma para a
cincia ocidental (ao propor um exame das imagens mentais e a forma como so
traduzidas em smbolos e cdigos), ela se adequa investigao sobre o objeto de
estudo e hiptese levantada sobre a possibilidade dos Jogos de RPG estarem
simulando sensaes semelhantes s vivenciadas em momentos de devoo
religiosa, de experincia do sagrado.
A adoo da TGI e o conjunto epistemolgico das cincias como a
Sociologia Compreensiva e a Antropologia tornou-se possvel, na medida em que
ela mesma composta por um entrecruzamento de diversas cincias. Assim sendo,
j traz consigo seus mtodos de verificao sem invalid-los, como tambm uma
convergncia de hermenuticas.
Nesse contexto, o teste Arqutipo dos Nove Elementos tornou-se um
instrumento vlido para a colheita de material. Com a aplicao do Teste AT-9,
pode-se melhor avaliar o desempenho dos jogadores e se a hiptese levantada
neste trabalho passvel de ser comprovada, pois existe uma estreita
concomitncia entre os gestos do corpo, os centros nervosos e as representaes
simblicas. (PITTA, 2005, p. 21-22).
Sua aplicao enquanto teste projetivo visou identificao dos ncleos
organizadores da simbolizao do jogo e dos universos mticos que se constituem
nas histrias idealizadas pelos jogadores; o que possibilitou a comparao das
estratgias usadas pelos jogadores durante as aventuras com as estratgias que os
sujeitos encontram para resolver a angstia diante do tempo, que conduz extino
atravs da morte, de que nos fala G. Durand (2002). A observao sensvel desses
fatos far, portanto, que seja possvel uma maior aproximao da maneira como se
processa o fenmeno.
-
118
4.1 TEORIA DO IMAGINRIO: ORIGENS E APLICAES
Em geral, a palavra ou o conceito de imaginrio colocado em oposio
ao de realidade, ou pior, ao que verdadeiro. No entanto, imaginrio no se trata de
mera fico inconsistente, nem to pouco de uma forma de falsificar a realidade. A
prpria realidade objetiva, segundo Maffesoli, acionado pela eficcia do
imaginrio, das construes do esprito (2001, p. 75). Realidade e imaginrio so,
por isso, dois processos indissociveis.
O imaginrio tambm no poderia ser reduzido a outros conceitos pr-
estabelecidos como o de cultura ou de ideologia. No que diz respeito questo da
cultura, ele viria antes, seria a matriz ou atmosfera, o estado de esprito que
caracteriza um povo. (MAFFESOLI, 2001, p. 75). Estaria na base da construo da
prpria cultura, como uma fora social em forma de construo mental coletivizada,
capaz de ser percebida, mas no de ser quantificada.
Ele impondervel, ultrapassando o indivduo que, por sua vez, impregna
a coletividade. Funciona como cimento social, cultura de grupo, ao mesmo
tempo, mais do que essa cultura: a aura que a ultrapassa e alimenta.
(MAFFESOLI, 2001, p. 76).
Quanto diferenciao entre o imaginrio e a ideologia, existe uma ponto
bsico que os diferencia. As ideologias so formuladas atravs da racionalizao do
pensamento, enquanto que os processos imaginrios, embora possuam o elemento
racional, agrega outros elementos, como o onrico, a fantasia, o ldico, o afetivo, o
irracional e, claro, o imaginativo. O imaginrio compe e d gnese ideologia, da
mesma forma que o faz com a cultura.
Segundo ainda Maffesoli, o imaginrio , ao mesmo tempo, impalpvel e
real, certamente funciona pela interao [e] envolve uma sensibilidade, o
sentimento afetivo. (2001, p. 77). No entanto, essa sensibilidade no pode ser
confundida com intuio. Dessa forma, o imaginrio se revela por suas produes
(FELINTO, 2005).
O imaginrio , segundo G. Durand (2002, p. 18), o conjunto das
imagens e relaes de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens,
ou ainda compreendido como um campo que se distingue pelo conjunto das
representaes numa cultura dada. (Colquio de Washington, 1984 apud
-
119
LOUREIRO, 2004, p. 16). Constitui-se na relao entre as intimaes objetivas e a
subjetividade. Relao, portanto, entre coeres sociais e subjetividades
(MAFFESOLI, 2001, p. 80).
O que se denomina de intimaes objetivas, so os limites e as regras de
proceder que a sociedade impe ao indivduo. E as subjetividades so as intenes
individuais que integram o domnio das atividades psquicas, sentimentais,
emocionais desses mesmos indivduos, e motivam suas aes individuais ou
coletivas.
Como se sabe, de tempos em tempos, registra-se historicamente
modificaes mais significativas na forma de proceder dos indivduos em relao aos
valores e costumes sociais. Uma das motivaes mais fortes que G. Durand (2004)
aponta para essas ocorrncias a saturao.
A saturao, por sua vez, se d medida que em uma civilizao dada,
as instituies no seguiram o lento movimento das vises de mundo (DURAND,
G., 2004a, p. 17). O no acompanhamento das modificaes na forma de ver o
mundo por parte das instituies provoca uma precipitao, uma acelerao ou
ainda uma coagulao mtica.
Observa-se que, de forma progressiva, desde as ltimas dcadas do
sculo XIX, entramos por diferentes motivaes em uma zona de intensas
remitologizaes (DURAND G., 2004a, p. 18). Esse contramovimento, insuflado
pela saturao, deve-se ao esgotamento das possibilidades de investigao de
fenmenos que escapam lgica dos mtodos cientficos at ento conhecidos. E,
uma das formas de encontrar solues para questionamentos no respondidos pela
cincia, atravs da anlise da imagem mtica, que fala diretamente alma
(DURAND, G., 2004, p. 17), de maneira intuitiva.
Dentro dessa configurao, a raiz da ressurgncia dos mitos na
atualidade associa-se emergncia da imagem que, por sua vez, denota a
necessidade da reatualizao dessa linguagem. Ambas se do na ps-modernidade,
por ser uma poca de saturao, de esvaziamentos de contedos, o que leva
procura de novos significados e significncias que deem sentido existncia.
A situao atual em relao ao imaginrio social, derivada dos perodos
de marginalizao da imagem, resumida pelo prprio G. Durand quando relata que todos esses ndices de uma alta presso imaginria e simblica na qual ns vivemos e nos agitamos so a sndrome de uma profunda
-
120
ressurgncia do que nossas pedagogias e os epistemas resultantes tinham cuidadosamente, durante sculos e sculos, rejeitando, ou pelo menos colocado na poro mnima. (2004a, p. 9).
Isso indica uma situao de sintonizao com a temtica de um retorno
do mito ou das mitologias vida cotidiana. Essa ressurgncia se d por conta da
ecloso dessas mesmas mitologias que se encontravam em estado latente, mas que
no haviam sido extirpadas dos imaginrios individuais e que gravitam em torno da
galxia do imaginrio coletivo.
Assim, o mito e a imaginao deixam de sofrer um processo violento de
desmistificao e iconoclastia, sendo gradativamente reincorporados aos processos
de pensamento e reflexo sobre assuntos variados, desde a arte, passando pelo
pensamento pragmtico, at os mtodos investigativos da cincia oficial. Ao ponto
de, na atualidade, e para explicar suas prprias orientaes, o pensamento
cientfico v-se constrangido a pedir auxlio ao mesmo imaginrio durante tanto
tempo reprovado (DURAND, G., 2004a, p. 71). Ou seja, No somente mitos esclipsados recobrem o mito de ontem e fundam o epistema de hoje, mas ainda os sbios na ponta dos saberes da natureza ou do homem tomam conscincia da relatividade perene do mito. O mito no mais um fantasma gratuito que subordinamos ao perceptivo e ao racional. (DURAND, 2004a, p. 20).
O mito, ou melhor, a formao do(s) mito(s) ps-moderno(s) se d por
sedimentao, acomodao e re-elaborao dos mitos milenares que dizem respeito
s problemticas e aspiraes humanas relativas vida e ao viver que permanecem
em forma de incgnitas.
Ele(s) (so), por isso, uma forma ou metodologia ainda atual e vlida
para pensar questes como: quem sou, de onde vim, para onde vou? Essa
mitologias continuam, tambm, da mesma forma que no passado, podendo ser
manipuladas para melhor ou para pior, dependendo do uso que se deseje fazer
delas.
Todos esses fatos, movimentos sociais e necessidades expressadas
atravs dos mitos e ao mesmo tempo suas geradoras, acabam por dar gnese a
estudos relativo a eles, que culminaram na elaborao de uma teoria que fosse
capaz de explicar a forma como essas imagens, reprimidas por um perodo to longo
de tempo, fossem capazes de sobreviver. Como tambm, fornecessem explicaes
vlidas da forma como o imaginrio cria e interfere nas produes materiais e
mesmo nas vivncias humanas.
-
121
Dessa forma, a TGI surgiu no Ocidente em um momento de retorno da
imagem s artes e aos meios de comunicao. Diz-se retorno da imagem, pois, no
Ocidente, houve uma separao progressiva dos poderes da imagem e dos
poderes efetivos, iconoclastas tecnolgicos, cientficos ou polticos (DURAND, G.,
2004a, p. 9).
Como consequncia dessa separao, foi gerada uma viso de
pensamento racional, onde as imagens passaram a fazer parte de um campo
considerado inferior (DURAND, G., 2004). Sendo consideradas como delrio de
loucos e artistas, foram relegadas marginalidade e afastadas do campo dos
estudos e produes consideradas srias.
Essa coincidncia entre o seu retorno ao meio das artes e da
comunicao e o surgimento de uma teria voltada para o seu estudo no foi
aleatria. G. Durand (2004) observou que so os artistas os primeiros a captarem o
esprito de tempo de uma determinada poca; fato este depois pensado e estudado
por filsofos e cientistas.
A introduo da Teoria Geral do Imaginrio nos meios acadmicos,
embora com restries, comprova sua importncia, ao menos no que diz respeito
complementao dos vcuos existentes nos mtodos tradicionais de investigao
cientfica, que no conseguem dar conta da subjetividade humana.
Na atualidade, constatamos em todas as disciplinas do saber [...] a
formao progressiva e no premeditada de uma cincia do imaginrio (G.
DURAND, 2004, p. 77). O que reabilita a imagem das anteriores interdies
enquanto componente a ser levado em conta nas investigaes de fenmenos
vrios produzidos na esfera tanto do individual quanto do coletivo.
No Brasil, o TGI, enquanto cincia transdisciplinar, pesquisada em
vrios campos acadmicos, dentre eles a Antropologia, a Sociologia, a Psicologia, a
Pedagogia e as Cincias das Religies na UFPB. Esta ltima possui o maior ndice
de estudos no pas. As restries que so feitas a essa teoria, so feitas tambm a
todos os novos mtodos investigativos. Sua eficcia definitiva s se dar, ento,
pela continuidade de seu uso e dos resultados positivos obtidos atravs de seus
mtodos.
Por enquanto, a possibilidade aberta pela incluso do denominado
terceiro dado (G. DURAND, 2004), j abre inmeras possibilidades de estudo antes
circunscritos lgica bivalente de oposio/excluso dos contrrios racional-
-
122
positivista. A lgica do terceiro includo, sendo simblica, d coerncia aos plurais e
transforma-os em complementariedades.
4.1.1 A Aplicao da Teoria do Imaginrio e O Homo Symbolicus
O imaginrio foi considerado por G. Durand (2002) o museu de todas as
imagens passadas, produzidas e passveis de serem produzidas, nas suas
diferentes modalidades, pelo homo sapiens sapiens. Alm disso, esse autor
observou que o imaginrio humano, muito longe de ser a expresso de uma
fantasia delirante, desenvolve-se em torno de alguns grandes temas, algumas
grandes imagens que constituem para o homem os ncleos ao redor dos quais as
imagens convergem e se organizam (apud PITTA, 2005, p. 14).
Partindo dessa forma de perceber o imaginrio humano, surgiu a
necessidade de classificar essas imagens, dando-lhes uma ordem e estabelecendo
significados. Para tanto, a Teoria Geral do Imaginrio se baseou na teoria dos
arqutipos, do inconsciente coletivo e o no estudo das mitologias para entender a
forma como so produzidas as imagens e como elas so recebidas e/ou
transmitidas.
Durand percebeu que, antes de ser no mundo, o indivduo construa esse
mundo com sua imaginao criadora e, por outro lado, tentava compreender e
explicar o mundo a ele preexistente. Para faz-lo, lanava mo de simbolizaes
que se expressavam atravs de mitos. Esse processo que permite a atribuio de
sentidos s coisas existentes no mundo realiza a mediao entre o indivduo e o
meio e foi chamado por G. Durand (2002) de equilibrao antropolgica e descreve
uma trajetria denominada de trajeto antropolgico.
Segundo ainda G. Durand, o trajeto antropolgico a incessante troca
que existe ao nvel do imaginrio entre as pulses subjetivas e assimiladoras e as
intimaes objetivas que emanam do meio csmico e social (2002, p. 41). O que
poderia ser representado da seguinte forma:
-
123
Grfico 1 Conjunto imaginrio de uma poca e sociedade Fonte: Criao pessoal da autora.
O processo de permuta constante entre o interior e o exterior, que vai do
inconsciente especfico ao superego social, dinmico. Ele se expressa nas
interaes que existem entre o meio e o indivduo e pode ser percebido analisando-
se as representaes exteriores.
A equilibrao antropolgica se d em quatro nveis: no plano biolgico,
concedendo equilbrio vital aos indivduos; no plano psicossocial, permitindo ao
indivduo estabelecer a sntese entre suas pulses individuais e aquelas do meio em
que vive (PITTA, 2005, p. 37); no plano antropolgico, a nvel planetrio, facilitando,
segundo Pitta (2005), um real ecumenismo; e, por fim, a imaginao simblica tem
uma funo transcendental, ou seja, ela permite que se v alm do mundo material
objetivo e que se crie um suplemento da alma (PITTA, 2005).
No intuito de compreender como acontecia esse processo, Durand partiu
dos estudos realizados em Leningrado sobre a reflexologia para determinar a
influncia dos reflexos dominantes na constituio do imaginrio humano (PITTA,
2005, p. 92), pois a escola de reflexologia havia estabelecido que a gnese do gesto
e do meio ambiente era recproca.
Foram detectadas inicialmente duas categorias de gestos dominantes
observadas em recm-nascidos: a dominante reflexa postural ou de posio
(verticalizao ascendente) e a digestiva ou de nutrio (engolimento, descida,
aconchego). A primeira relacionada ao regime diurno da imagem sendo de
-
124
estrutura herica. E a segunda includa no regime noturno da imagem, relacionada
ao microuniverso mstico.
Posteriormente foi estudada uma terceira dominante reflexa, a cclica (de
movimento, natural) que foi tambm relacionada ao regime noturno da imagem,
relacionando-se ao microuniverso denominado de sinttico ou disseminatrio. Da
constatao e estudo destas trs dominantes resulta o princpio fundamental da
identificao das estruturas antropolgicas, distribudas em dois regimes (Noturno e
Diurno) (LOUREIRO, 2004, p. 17).
Como cada indivduo possui uma forma prpria de perceber o mundo,
natural que existam diferenas entre seus modos de pensar e agir diante da
angstia existencial provocada pelo escoamento do tempo que leva aproximao
da morte. Os modos de agir diante dessa angstia so representados,
respectivamente, pela classificao isotrpica das imagens em dois regimes, o
Diurno e o Noturno, que se subdividem em trs microuniversos: herico, mstico e
sinttico.
Grfico 2 Classificao isotrpica das imagens. Fonte: Criao pessoal da autora.
O tipo herico enfrenta o problema, luta contra a evidncia da finitude. O
mstico cria um mundo em harmonia baseado no aconchego e na intimidade
(PITTA, 2005, p. 33). Enfim, o sinttico ou disseminatrio opta por harmonizar os
contrrios, mantendo entre eles uma dialtica que salvaguarda as distines e
oposies (PITTA, 2005, p. 36), dialogando com a problemtica.
Mesmo assumindo formas diferenciadas de encarar a inevitabilidade da
morte, existem elementos comuns ao sapiens, imagens que se repetem e se
-
125
generalizam envolvendo a afetividade (DURAND, G., 2002), que se agrupam em
constelaes e que so chamadas de schmes.
Os schmes poderiam ser comparados a frmas ocas, portanto,
generalizadas, onde podem ser colocados diversos contedos, advindos das vrias
culturas. Dessa forma, embora os contedos colocados variem bastante, no
deixaro de ter a forma original dada pela frma, sendo dessa frma, o esqueleto
dinmico, o esboo funcional da imaginao (DURAND. G., 2001, p. 60).
Os schmes seriam um vir-a-ser, uma inteno de gesto, estando na base
das concretizaes desses gestos, das posturas e das pulses inconscientes. Na
concepo de G. Durand (2002), as representaes concretas desses gestos e
posturas, o esqueleto dinmico, em contato com o espao e atmosfera social em
que o individuo se insere, originaro imagens primordiais, os arqutipos.
Os arqutipos, por sua vez, so imagens universais que intermediam as
imagens constantemente recebidas do meio pelo sujeito (campo da objetividade) e o
schme, que est nos domnios de sua subjetividade. Eles so, simultaneamente,
universais e especficos, mas jamais so ambivalentes. So universais, pois
aparecem em todas as culturas estudadas at o momento ao redor do mundo e sua
importncia se d, na medida em que constituem o ponto de juno entre o
imaginrio e os processos racionais (DURAND, G., 2002, p. 60). Sua especificidade
se d medida que so interpretados e vividos diferentemente em cada cultura.
Juntamente com esses elementos, encontramos os smbolos, que so as
substanciaes dos arqutipos e que possuem uma infinidade de significados em
aberto. Como eles traduzem emoes, assumem significados que, da mesma forma
que os arqutipos, variam conforme o contexto cultural.
Sobre o mito, o qual j foi tema de um captulo anterior, possvel afirmar
que ele j um esboo de racionalizao, dado que utiliza o fio do discurso, no qual
os smbolos se resolvem em palavras e os arqutipos em idias. (DURAND, G.,
2002, p. 63).
Por mais diferentes e variados que possam parecer primeira vista, os
mitos no sofreram modificaes. Ento, como explicar as aparentes diferenas
mitolgicas? As variaes se do atravs dos mitemas. Esses, sim, variam conforme
o tempo e as culturas e podem ser comparados s frases que compem textos que
tm a mesma temtica, mas foram escritos por vrios indivduos, cada qual dando a
sua interpretao, influenciados pelo esprito do tempo e da cultura em que viveram.
-
126
Outro fato importante em relao dinmica mitologica a substituio e
sobreposio de um mito por outro, entrando o mito vigente em estado de latncia
em relao ao mito ascendente, at que condies favorveis o faa reaparecer. O
esquema a seguir representa, de forma resumida, o processo de gnese e
decadncia dos contedos imaginrios.
Grfico 3 : Formao dos contedos imaginrios. Fonte: Criao da autora.
Esse processo ocorre normalmente de tempos em tempos em relao s
narrativas mitolgicas e esta tenso dialtica, [...] sempre em busca de equilbrio,
fonte evolutiva de mudanas (SANCHEZ TEIXEIRA, 2006, p. 218).
Mas, como conseguir detectar esse imaginrio impalpvel humano?
Como toda teoria inovadora, a Teoria do Imaginrio possui mtodos igualmente
inovadores. Assim, foi proposta um novo mtodo prprio ao estudo do imaginrio,
denominado de Mitodologia. Ele se subdivide em Mitocrtica e Mitanlise e essas
duas modalidades de anlise so aplicadas ao estudo dos indivduos e dos
contextos sociais em que se inserem.
A primeira, a Mitocrtica, trata-se de um mtodo direcionado para a crtica
de texto literrio, de estilo de um conjunto textual de uma poca ou de um
determinado autor (MELLO, 1994, p. 47). Atravs desse mtodo, chega-se
deteco de um ncleo mtico, de uma narrativa fundamentadora do mito, ou dos
mitos, que atuam em conjunto para a formao na narrativa.
J a segunda, a Mitanlise, mais abrangente, constituindo-se em uma
metodologia usada para perceber e analisar os grandes mitos que orientam (ou
-
127
desorientam) os momentos histricos, os tipos de grupos e de relaes sociais
(MELLO, 1994, p. 48).
Grfico 4 Mitodologias. Fonte: Criao pessoal da autora.
Observa-se, portanto, que as formas de anlise criadas por Durand
baseiam-se no mito, porque ele capaz de explicitar um schme ou um grupo de
schmes e se constitui em um esboo de racionalizao, pois usa o fio do discurso
no qual os smbolos se resolvem em palavras e os arqutipos em ideias (DURAND,
G., 2002, p. 63).
A deteco desse imaginrio ps-moderno, como de outros imaginrios,
vai demonstrar a existncia real de um conjunto de imagens reunidas em uma
constelao. Essas imagens, antes de servirem de suporte, resultam do imaginrio e
do vivido pelas coletividades e pelos indivduos participantes delas.
A forma de elaborao das constelaes no aleatria, ela se d
atravs do j referido trajeto antropolgico e representa, segundo G. Durand (2004,
p. 90), a afirmao na qual o smbolo deve participar de forma indissolvel para emergir numa espcie de vaivm contnuo nas razes inatas da representao do sapiens e, na outra ponta, nas vrias interpelaes do meio csmico e social.
O que G. Durand chama de vaivm caracterizado pela prpria forma
como o ser humano amadurece durante a sua existncia. Sendo ele, uma criatura
com o maior tempo de maturao que se tem conhecimento, o ambiente, em
especial, e o meio social acabam por ter grande influncia no aprendizado cerebral.
-
128
Todos esses fatores so levados em considerao quando se procede
tanto a uma mitocrtica quanto a uma mitanlise. Ambas so instrumentos que
possibilitam a aplicao dessa teoria nos estudos dedicados anlise referentes aos
seres humanos e ao seu comportamento social.
O outro mtodo de anlise da Teoria do Imaginrio o denominado
Arqutipo Teste dos Nove Elementos (AT-9); o qual foi escolhido e aplicado nesse
estudo. Em sua gnese, foi uma montagem experimental destinada a realizar um
estudo antropolgico amplificado das Estruturas do Imaginrio elaborada por Gilbert
Durand (DURAND, Y., apud LOUREIRO, 2004, p. 9). Ele foi, portanto, um
instrumento elaborado para a validao da Teoria do Imaginrio, pelo psiclogo
Yves Durand a partir de extenso material de nvel cultural bastante alto, recolhido por
Durand.
Atravs dos nove elementos escolhidos intencionalmente, o teste acaba
por revelar as estratgias que os sujeitos encontram para resolver a angstia diante
do tempo que conduz a finitude. Os arqutipos usados no teste estimulam a
emerso dessa conjuntura que se reflete, por sua vez, nas tticas utilizadas para
vencer a morte.
Ilustrao 15 Elementos do AT-9. Fonte: Criao pessoal da autora com base em desenho obtido em aplicao de AT-9 com indivduos participantes da pesquisa.
Em resumo, o indivduo, antes de lidar com coisas e objetos, lida com os
significados que atribui a cada uma delas, simbolizando-as. Nessa dinmica, o
-
129
mundo considerado real torna-se um mundo construdo atravs das percepes
individuais que se juntam por afinidade em um todo coletivo, formando sistemas
simblicos particulares. Essa relao que se institui com o mundo mediada atravs
dos imaginrios e significados atribudos s coisas pela cultura e esprito de tempo
em que se inserem os sujeitos.
Estando os jogadores inseridos em uma conjuntura e, sendo o jogo por si
s um processo de simbolizao e interpretao do mundo, o percurso das
aventuras vivenciadas no jogo poderia representar a traduo ou um exerccio das
estratgias para vencer a morte. O AT-9 torna-se, dessa forma, um instrumento
vlido e adequado para conseguir uma maior aproximao com os imaginrios dos
jovens indivduos pesquisados.
Os estudos do Imaginrio alm de representarem mais uma alternativa
metodolgica para os estudos no campo social, so uma forma de tornar os
indivduos, enquanto seres humanos, mais conscientes das motivaes e
interpretaes de ser no mundo, e de como eles prprios interagem e interferem at
mesmo nas criaes materiais, atravs das ideaes simblicas que as precedem.
4.1.2 Jogo e Imaginrio
Logo no incio de seu livro, Pitta faz a seguinte colocao: para que a
criao ocorra necessrio imaginar. (2005, p. 12). Imaginao um item
indispensvel quando se joga RPG. Os jogadores e, principalmente o mestre,
imaginam o tempo todo. Imaginam os mundos para onde se transportam
temporariamente, imaginam as situaes por que passam os seus personagens e os
dos outros jogadores, dentre tantos outros detalhes.
O imaginar um processo constante enquanto durar, no s o perodo da
sesso, mas toda uma campanha. Pois, mesmo aps concluir a sesso, ao se
encontrarem, eles comentam as aventuras experimentadas atravs dos
personagens como se fossem lembranas de suas prprias vidas. Conversam sobre
as possibilidades para as prximas sesses e trocam ideias e opinies.
Como, medida que o ato de criao um impulso procedente do ser,
estando na raiz de tudo o que existe para o indivduo, pode-se consider-lo a prpria
-
130
essncia do esprito. Pois, para criar, preciso antes imaginar e, imaginar criar o
mundo, criar o universo, seja por meio das artes, das cincias, ou por meio dos
pequenos atos, profundamente significativos, do cotidiano (PITTA, 2005, p. 40).
Levando-se em conta a riqueza de detalhes das aventuras concebidas
pelos jogadores, como tambm o ato de que a imaginao simblica permite que se
v alm do mundo material objetivo; e como, segundo G. Durand, a razo e a
imaginao so processos inseparveis, pois o simblico se inscreve de maneira
profunda na alma humana (GOMES, 2009, p. 27), no se torna difcil imaginar por
que elas parecem ser to reais e atrativas.
Mesmo que o processo imaginrio seja para o mundo real, um mundo
surreal, este ltimo ter a mesma consistncia e realidade que o primeiro, o mundo
real objetivo, pois, a imaginao envolve as imagens com cargas afetivas atraentes
ou repulsivas, transformando o mundo sonhado em um mundo da alta densidade
emocional (PITTA, 2005, p. 45).
Depreende-se da que, enquanto os jogadores esto envolvidos com as
questes do jogo, cada um deles, ao criar ou colaborar com a criao de uma
realidade paralela, um mundo para o qual se transportam, est vivenciando, mesmo
ao nvel da imaginao, uma experincia de alta densidade emocional, por isso
mesmo intensa para quem a experiencia. Desse modo, O jogo em si no ruim nem bom, ele uma possibilidade concreta de potencializar a vida e de mltiplos sentidos que atribumos a ela. [...] aquele que joga revela um mundo de sentidos sobre si, sobre o seu universo cultural e social (RETONDAR, 2007, p. 92).
De acordo com a Teoria Geral do Imaginrio, para fugir da
representao da morte que a imaginao cria o mundo, um outro mundo, um
mundo que faa sentido (GOMES, 2009, p. 84). Na definio dada anteriormente de
RPG, aparece em primeiro plano a imaginao. essa mesma imaginao que cria
um outro mundo que faa sentido para o sujeito da ao.
E no justamente dessa forma que procedem os indivduos-jogadores
quando criam os mundos imaginrios para onde se transferem nas sesses de
RPG? Quando adentram Farun ou outros mundos sugeridos nos livros? Seus
personagens-heris no tm a possibilidade de se eternizarem dentro desses
mundos, atravs de suas vontades?
-
131
Mesmo quando acontece de seus personagens morrerem em uma
batalha, ainda resta a possibilidade de reviverem atravs da conjurao de uma
mago, seu companheiro de equipe, de jornada. Seus imaginrios refletem esse
desejo comum aos seres humanos de vencer a morte; de criar mecanismos capazes
de diminuir a angstia diante do medo da extino.
Como o mito configura uma situao em que o mundo do indivduo e o
mundo externo, social, se interpenetram, a vivncia das aventuras de RPG
construdas sobre o solo firme das mitologias, confere a essas aventuras uma maior
aparncia de veracidade.
4.2 ETNOGRAFIA DOS JOVENS HERIS
Nesta etnografia sero propositalmente suprimidos os procedimentos,
visto que eles j se encontram especificados na metodologia, detalhada na
Introduo dessa pesquisa.
4.2.1 Os Indivduos-Jogadores
O grupo observado composto por nove indivduos-jogadores jovens,
todos pertencentes ao sexo masculino, cujas idades no incio da pesquisa, variavam
entre quinze e vinte anos, estudantes do Instituto Federal de Educao, Cincia e
Tecnologia da Paraba (IFPB) e frequentam os diversos cursos e sries oferecidos
pela instituio.
A inexistncia de indivduos do sexo feminino se deu, em parte, pela
escolha do sistema de jogo escolhido para delimitar essa anlise. A presena de
indivduos do sexo feminino mais constante nos jogos do sistema D10 e, nessa
pesquisa, foi usado o sistema D20.
Segundo os prprios indivduos-jogadores, os jogos do sistema D20, por
privilegiarem as jornadas hericas, picas, mais voltadas para a ao, para as
aventuras, mais atrativo para os indivduos do sexo masculino, enquanto que as
jovens se sentem mais atradas pelos jogos do sistema D10, de carter mais
introspectivo (informao verbal).
-
132
O que confirmado por Mattos (2006) ao afirmar que indivduos do sexo
feminino foram condicionados culturalmente para apreciar um tipo de fico menos
dependente da ao e mais voltado para as relaes interpessoais.
Os indivduos-jogadores observados, alm de fazerem parte de um grupo
social inspirado por um interesse comum, que o jogo de Roleplaying Game, so
tambm integrantes de uma sociedade ocidental, sofrendo todas as influncias de
sua dinmica e costumes. So jovens urbanos, absorvendo o modo de viver nesses
grandes agrupamentos que tem sido o cadinho das raas, dos povos e das culturas
e o mais favorvel campo de criao de novos hbridos biolgicos e culturais
(WIRTH, 1979, p. 98).
Se, por um lado, a cidade favorece a criao desses novos hbridos
culturais e absorve suas expresses, permitindo uma maior liberdade da ao dentro
da sociedade, existe um grau significativo de anomia que faz com que o indivduo
perca a espontnea auto-expresso, a moral, e o senso de participao, implcitos
na vida numa sociedade integrada (WIRTH, 1979, p. 101). Talvez a falta de
integrao favorecida pelos agrupamentos menores, seja uma das chaves para o
entendimento das causas da procura, por parte dos indivduos, de insero em
grupos de convvio, os mais diversos possveis.
A cidade, por possuir uma quantidade maior de pessoas jovens do que as
reas rurais, tende a favorecer o aparecimento de novas formas de expressar a arte,
a cultura e os modos de relacionamentos tpicos da juventude, que, em sua maioria,
procede a uma releitura do mundo.
Os jogadores de RPG so, em sua maioria, jovens que compem as
tribos ps-modernas, sendo influenciados e influenciadores desse modo de vida.
Levam, aonde forem, as formas de relacionamento tpicas do tribalismo atual,
incluindo-se a as rodas de jogo. Ou seja, os indivduos que participam dos grupos
estabelecem ligaes fluidas, podendo migrar para outras rodas de jogo a qualquer
momento, de acordo com os interesses do momento. O que no significa afirmar que
a vivncia prejudicial ou atestar que benfica. Como foi visto anteriormente na
discusso terica a respeito do fenmeno, melhor reconhecer que, de encontro a um social racionalmente pensado e organizado, a socialidade somente uma concentrao de pequenas tribos que se dedicam, de qualquer modo, a se ajustar, se adaptar, se acomodar entre si. Heterogenizao, politesmo dos valores, estrutura hologramtica,
-
133
lgica contradicional, organizao fractal? Pouco importa o termo empregado (MAFFESOLI, 2006, p. 14).
O que realmente importa nesse novo modo de viver so as modificaes
propostas, que deixam de se basear no poder centralizado de um indivduo que
assume o posto de comando sozinho, para a proposta de uma sociedade cuja vida
fusional, gregria e emocional.
Nesse sentido, o jogar transforma-se em uma ocasio de encontros.
Constroem para isso, o que Magnani denomina de pedaos, que vm designar o espao intermedirio entre o privado (a casa) e o pblico, onde se desenvolve uma sociabilidade bsica, mais ampla que a fundada nos laos familiares, porm mais densa, significativa e estvel que as relaes formais e individualizadas impostas pela sociedade (MAGNANI, 2000, p. 32).
Os indivduos-jogadores, como outros membros dos grupos que delimitam
seus pedaos, vo at esses espaos, que no caso podem ser mveis, justamente
para encontrar seus iguais, exercitar-se no uso de cdigos comuns, apreciar os
smbolos escolhidos para marcar as diferenas (MAGNANI, 2000, p. 40). Nesses
momentos onde se decorre o processo do jogo, aparecem, de forma subliminar,
elementos comuns entre o jogar e alguns componentes do ritual religioso.
4.2.2. Local e Perodo
A maior parte da observao se deu no Instituto Federal de Educao,
Cincia e Tecnologia da Paraba (IEF-PB), onde existe um grupo fixo de jogadores.
O local onde se reuniam para jogar, quando se iniciou esta pesquisa, era um
ambiente cedido por um professor da prpria instituio. A sala repleta de objetos
os mais variados, compondo um mosaico de cores e formas que, por si s, j seriam
o bastante para estimular a criatividade de qualquer indivduo.
O espao do jogo em si no depende do ambiente fsico, porque aps um
perodo eles passaram a se encontrar na casa do mestre. Assim, a circunscrio
espao se d pela roda formada pelos jogadores e composta pelos diversos objetos
que so trazidos por eles, tais como: mapas dos mundos imaginrios onde se daro
as aventuras, os dados que so os mais variados em tamanho e cores os livros,
as planilhas dos personagens e, quando possvel, um aparelho de som.
-
134
Ilustraes 16 e 17 Mesa do jogo. Fonte: Arquivo pessoal da autora.
As msicas colocadas durante o tempo em que esto jogando e que
ajudam a recriar o clima ou esprito de poca que permeou a idade mdia em
que se passam as aventuras so temticas e, em sua maioria, do gnero celta ou
o denominado metal melodic medieval. Envolvem a todos nessa atmosfera do
medievo, que sobrevive no imaginrio dos indivduos-jogadores, aps ter sido
captada em filmes que se propem a sua reconstruo, muitas vezes j assistidos
pela maioria dos indivduos-jogadores. Essas verdadeiras trilhas sonoras so, em
sua maioria, coletadas na internet e gravadas em CDs para tal finalidade, por
membros do grupo que tm acesso s tecnologias digitais em suas casas.
Outra parte da observao se deu em espaos exteriores ao IEF-PB, nos
circuitos que esses jovens indivduos-jogadores costumam frequentar, ou seja,
eventos como o Okinawa, as mostras de jogos de vdeo-games e o terceiro RPG e
Cultura: no oriente feudal. Eventos esses, onde se pode observar uma quantidade
significativa de jogadores em ao.
4.2.3 Relato
O grupo se rene pelo menos uma vez por semana na sala cedida por um
professor, sabendo que nesse espao de tempo se realizariam as sesses de jogo,
que se do ao final das aulas ou atividades de que participam na instituio.
Chegam todos muito animados, carregando nas costas suas mochilas
apinhadas de livros de RPG, alm dos materiais escolares. Trazem lanches
-
135
compostos geralmente de biscoitos recheados e refrigerantes que so, segundo
eles, comprados coletivamente; no linguajar deles, na intera. Entram, fecham a
porta e colocam seus celulares no silencioso.
Vestem-se informalmente ou fardados por conta das aulas. No primeiro
dia da observao, estavam alguns com trajes formais por terem acabado de
participar de uma feira de cincias como expositores de trabalhos. Fizeram questo
de trocar suas camisas por outras bem esportivas, l mesmo na sala, antes mesmo
de iniciar qualquer outra atividade.
Observa-se, tambm, que esse espao cuidadosamente preparado
pelos jogadores, demonstrando ser um espao simblico, um espao que possui
significado(s). representao do lugar onde determinados sentimentos esto
autorizados a vigorar sem causar qualquer constrangimento para os sujeitos
envolvidos (RETONDAR, 2007, p. 30).
A admisso no grupo um consenso entre os indivduos-jogadores, mas
obedece a alguns critrios, como o conhecimento prvio dos livros de RPG18. O
mestre do grupo observado, ao ser questionado a respeito do modo como se dava a
admisso de novos membros no grupo, comentou que, a gente observa tambm os
grupos menores que jogam campanhas curtas e conversa com os outros mestres.
Assim a gente j sabe quem j jogou antes e a facilita (informao verbal). No h
proibies em relao aos jogadores frequentarem mais de uma roda de jogo, eles
podem transitar livremente entre grupos e experimentar outros estilos de jogos.
Aparentemente no se incomodam de serem observados ou mesmo
fotografados. O ambiente ao redor no parece fazer a mnima diferena. Talvez por
estarem acostumados a jogar em locais pblicos quando no dispem sempre de
um ambiente como o que foi observado.
Os indivduos-jogadores, ao chegarem ao ambiente descrito, vo
acomodando suas mochilas em algum lugar mesmo que seja no cho e vo logo
sentando ao redor da mesa. Quando jogam em locais externos, sentam-se no cho
e organizam-se em crculo. Tm preferncia pelo lugar onde costumam sentar-se.
Essa tendncia foi registrada atravs da fala de um dos participantes, que lembrou
ao outro: voc sabe que aquele o meu lugar (informao verbal). Os demais se
18 Pelo menos o livro do jogador, onde esto descritas as regras bsicas de movimentao, as
descries dos personagens, as habilidades, dentre outras.
-
136
envolveram na discusso dando razo ao primeiro. Em momento nenhum houve um
tom de agressividade, mas a frase foi dita com bastante nfase.
Antes de iniciar a roda de jogo propriamente dita, enquanto esperam a
chegada dos demais componentes, conversam animadamente sobre e dia-a-dia e
contam experincias com o sobrenatural moda das rodas ao redor da fogueira que
se forma noitinha para contar causos. O clima de inquietao, de uma alegre
expectativa.
Aps todos estarem acomodados, passam a comentar a respeito das
aventuras passadas19, como a relembrar uma passagem ocorrida com eles prprios.
Falam dos perigos e superaes de seus personagens e dos demais como a relatar
um fato acontecido no cotidiano. Os relatos de vitrias, os mais variados possveis,
se fazem presentes, pois segundo Huizinga, em qualquer jogo, importante que
possa gabar-se aos outros de seus xitos (2007, p. 57). Sendo esse, portanto, um
elemento comum no mbito do jogo.
Aquele(s) que por acaso no estiveram presentes nas sesses anteriores,
nessa ocasio, fazem perguntas, comentrios e se atualizam a respeito do
andamento da aventura. Interessante notar que, mesmo ao relatar as peripcias j
ocorridas, fazem-no interpretando seus personagens da mesma forma que ocorre
durante o perodo do jogo.
Mesmo aps essa conversa inicial, o mestre relata que na maioria das
sesses voc tem que criar um preldio (informao verbal). Ou seja, o mestre faz
um resumo das aventuras que se passaram, com base nas anotaes que fez da
sesso anterior, para que a aventura prossiga sem soluo de continuidade.
So comuns tambm comentrios a respeito da construo dos
personagens. Suas caractersticas, suas habilidades, suas deficincias e seus feitos.
Quanto troca de favores entre eles, vem justamente para suprir as deficincias que
os outros personagens possuam, sendo essencial para o enfrentamento das
dificuldades nas jornadas propostas pelo Mestre.
Numa das sesses, um dos componentes do grupo ficou sem participar
por ter esquecido a ficha de seu personagem. Essa ficha essencial porque nela
que esto registradas no s as caractersticas fsicas, mas tambm habilidades,
19 As aventuras objetivam alcanar os fins propostos no incio da campanha, superando obstculos os
mais diversos. Esses obstculos assemelham-se aos que aparecem nos picos da Idade Mdia.
-
137
tendncias e poderes. O mestre do grupo, em informao verbal, exemplifica assim
a importncia da ficha de personagem: O que voc tem referncia o que fica no papel. Por exemplo... se voc no est com a ficha do seu personagem, voc pode esquecer um item que ele tem, uma cicatriz no rosto. A numa sesso ele t sem cicatriz, na outra aparece, puf. Algum pergunta: voc no tinha uma cicatriz no rosto? Ai voc olha na ficha. A voc diz: mesmo. E a? A cicatriz aparece de novo, puf? Tem que saber. Ele [o personagem] tem uma bagagem anterior.
Foi justamente por esse motivo que, no tendo registros necessrios de
seu personagem para participar da sesso, o indivduo-jogador ficou fora da roda
somente acompanhando. O que no pareceu incomod-lo, pois interagiu o tempo
todo com os colegas, opinando, dando informaes e fazendo crticas a alguns
procedimentos.
Aps esse perodo inicial, comea a sesso propriamente dita, com o
mestre fazendo o preldio (uma breve retrospectiva do ltimo encontro, dos
sucessos e fracassos da misso), e propondo finalmente as novas tarefas e/ou
misses a serem cumpridas20. O jogo continuou com os jogadores bastante
empolgados, falando alto, rindo e, muitas vezes, sobrepondo-se fala um do outro.
Cada um procurava encontrar uma soluo para os problemas propostos pelo
mestre.
Alm das dificuldades a serem superadas, os personagens dos jogadores
devem, de preferncia, se filiar a um culto religioso. O deus escolhido dentre os
vrios apresentados nos pantees21. As divindades exigem serem cultuados em dias
especficos, e os jogadores tm forosamente que parar para homenagear a
divindade a que esto filiados nesses dias, tendo que cumprir as obrigaes para
com o deus que adora, cultuando-o segundo as prescries e rituais do culto a que
se filiou.
Sobre esse ponto, o mestre esclarece que a maioria das divindades tem
dias consagrados para serem cultuados e por isso, o dia significativo pra eles
(informaes verbais). Para que o andamento da aventura no seja prejudicado, h,
20 O RPG um jogo de percurso onde no h vencedores. Todos colaboram para o sucesso da
misso proposta pelo Mestre, sendo esse o objetivo (ter sucesso na campanha). Contam para isso com as habilidades dos personagens. Por exemplo: se meu personagem pode fazer magias capazes de ressuscitar, quando o heri de outro jogador for abatido em combate, eu me disporei a traz-lo de volta vida.
21 Existem tambm livros dedicados somente aos Pantees a exemplo do suplemento de Dungeons & Dragons Forgotten Realms, Os reinos esquecidos: crenas e pantees.
-
138
no entanto, a flexibilidade de realizar o culto antes do incio das lutas, dos combates.
Alm disso, os deuses pedem cntico de combate (informao verbal); o que,
obviamente, deve ser feito antes do incio da batalha. Ainda o mestre exemplifica
esse pormenor, mencionando uma classe de criaturas presentes nos jogos: os orks param todo dia de lua nova, ento, nesses dias, eles fazem o culto logo cedo, antes da batalha. Nesses dias, eles ficam mais corajosos, porque sentem a proteo dos deuses e, muitos dizem: eu tenho a bno dos Deuses. (informao verbal).
Alm do que, segundo nosso principal informante, so comuns nos
cenrios de campanha as perguntas do tipo: voc fiel a que, a quem?. Esse tipo
de questionamento tenta avaliar o nvel de proteo recebido pelo personagem, da
divindade, como tambm o seu poder de combate. E, acrescenta em relao aos
indivduos-jogadores, que no possuem nenhuma filiao: De uma forma ou de
outra ele vai ser um cara totalmente isolado (informao verbal). Dando-se
prosseguimento, encontra-se o quadro de indivduos-jogadores e suas respectivas
filiaes religiosas.
Quadro 5 Filiaes religiosas dos indivduos-jogadores.
Jogadores (nome fictcio) Filiao Religiosa
Andrus Miliaryos no
Aoth Rammas no rbitro Morgan no Fuosyr Forja Eterna catlico Hammerock catlico NPCs no
Strider Liadonn catlico
William Varralo catlico
Fonte: Elaborao da autora com base na pesquisas de campo
Pode-se perceber que no grupo pesquisado, a proporo entre catlicos e
sem religio igual. Em um total de oito jogadores, quatro so catlicos e quatro
declararam no proferir nem se filiar a nenhuma denominao religiosa, perfazendo
um total de 50% cada uma das categorias. Durante o perodo da pesquisa, um dos
jogadores aderiu religio evanglica, o que fez com que ele abandonasse o grupo.
Questionando o mestre a respeito da ausncia desse indivduo-jogador,
ele respondeu que ele saiu, entrou e saiu de novo. Ele disse que Deus falou com
-
139
ele; a maioria deixa de jogar, porque dizem a eles que coisa do Satans
(informao verbal). Como se pode notar, ainda existe preconceito contra essa
modalidade de jogo, principalmente entre algumas denominaes religiosas.
Quanto s sesses, transcorrem tranquilas, sendo as desavenas
resolvidas em comum durante o jogo, confirmando o que foi discutido no item
dedicado socialidade dos jogadores. O tempo de cada uma delas varivel,
dependendo da disponibilidade dos jogadores. A seguir, a tabela demonstrativa do
tempo de jogo por jogador:
Quadro 6 Tempo de jogo por jogador.
Nome Fictcio Idade Curso/Profisso Nvel Srie Qtd.
Sesses/ semana
Tempo de jogo/
sesso
Andrus Miliaryos 20 Tecnologia em Sistemas para Internet 2 grau 4 1 5h
Aoth Rammas 18 Edificaes (concludo) - - 5 4h
rbitro Morgan 22 Engenharia Eltrica 2 grau -
Fuosyr Forja Eterna 17 Mecnica 2 grau 4 3 4h
Hammerock 18 Auxiliar Administrativo - - 1 3h
NPCs 19 Mecnica 2 grau 4 2 4h
Strider Liadonn 18 Mecnica 2 grau 4 1 4h
William Varralo 17 Mecnica 2 grau 4 2 4h
Fonte: Elaborao da autora com base nas pesquisas de campo
Observando o quadro 6, nota-se que, embora exista uma variao entre 1
e 5 sesses por semana a mdia de duas sesses. Essa variao revela ainda
outro dado: alguns jogadores frequentam outros grupos concomitante ao grupo
observado. O tempo de jogo definido mais claramente em 4 horas por sesso.
Caracteriza-se, desse modo, a mobilidade entre eles e a ausncia dos evitamento
entre os grupos, ao menos entre os praticantes de RPG.
Trs dos jogadores desse grupo, embora j tenham passado para o nvel
superior de ensino, frequentando cursos universitrios, continuam jogando. Segundo
ainda o mestre do grupo, a gente joga h trs anos... o mesmo jogo, a mesma
campanha (informao verbal).
A disponibilidade dos participantes para jogar, como se poderia esperar,
diminuiu por causa das sries cursadas. Observando-se o quadro 6, nota-se que os
componentes do grupo original que ainda se encontram no IFPB, todos cursam o
-
140
quarto e ltimo ano. Esse fator interfere diretamente no tempo de jogo. Os motivos
eles mesmos relatam: tinha semana que a gente jogava quase todo dia. Agora t
difcil. Tem TCC22; muita gente t estudando pra vestibular. Tem estgio tambm
(informao verbal).
Quanto reao diante da minha pretenso de jogar com eles nas
prximas sesses, foram solcitos. O que se mostrou impossvel, dado que a
campanha estava em andamento h bastante tempo. Como se viu, at mesmo de
uma sesso para outra, existe a necessidade do mestre fazer um preldio que
propicie a continuidade da campanha. O que significa dizer que a incluso de um
novo jogador, inexperiente, iria ser muito complicada. Implicaria na paralisao
temporria do jogo para dar as devidas explicaes, no s sobre o jogo em si, mas
sobre acontecimentos anteriores ocorridos na campanha.
4.2.4 Discusso
Os jovens indivduos-jogadores espelham, atravs de seus
comportamentos, durante o perodo que antecede e que dura o jogo, uma tendncia
bem atual no que diz respeito formao de grupos. Organizam-se com base em
interesses corporativos variados e parciais, ao modo das tribos ps-modernas, que
permitem agrupar os iguais, possibilitando-lhes intensas vivncias comuns, o
estabelecimento de laos pessoais e lealdades, a criao de cdigos de
comunicao e comportamento particulares (MAGNANI, 2009, p. 4).
Como j discutido anteriormente, essas tribos so grupos que se
constituem, segundo Wirth (1979, p. 104), em um fenmeno tpico dos grandes
agrupamentos urbanos, onde a interao social entre tamanha variedade de tipos
de personalidades num ambiente urbano tende a quebrar rigidez das castas e a
complicar a estrutura das classes o que induz a um arcabouo mais ramificado e
diferenciado de estratificao social do que em sociedades mais integradas.
Segundo ainda o mesmo autor, A crescente mobilidade do indivduo, que coloca dentro do campo de estmulos recebidos de um grande nmero de indivduos diferentes e o sujeita a um status flutuante no seio de grupos sociais diferenciados que
22 TCC a abreviatura de Trabalho de Concluso de Curso.
-
141
compem a estrutura social da cidade, tende para a aceitao da instabilidade e insegurana no mundo como norma geral. [...] Nenhum grupo isolado possuidor da fidelidade exclusiva do indivduo (WIRTH, 1979, p. 104).
Sua ligao fundamentada nos interesses comuns que so muitas
vezes momentneos, sendo suas ideias e ideais renovados constantemente. O
amlgama responsvel pela unio do grupo so as ideias afins. E o jogo, por si s,
j induz constituio de grupos em torno de um objetivo comum, que no caso a
vivncia de aventuras em mundos imaginrios paralelos realidade do cotidiano.
Sendo a renovao de idias e ideais uma constante, os indivduos que
participam dos grupos estabelecem ligaes fluidas, podendo migrar para outras
rodas de jogo a qualquer momento, de acordo com os interesses do momento. O
que no significa afirmar que a vivncia prejudicial, ou atestar que benfica: melhor reconhecer que, de encontro a um social racionalmente pensado e organizado, a socialidade somente uma concentrao de pequenas tribos que se dedicam, de qualquer modo, a se ajustar, se adaptar, se acomodar entre si. Heterogenizao, politesmo dos valores, estrutura hologramtica, lgica contradicional, organizao fractal? Pouco importa o termo empregado (MAFFESOLI, 2006, p. 14).
O que realmente importa nesse novo modo de viver, so as modificaes
propostas que deixam de se basear no poder centralizado de um indivduo, que
assume o posto de comando sozinho, para a proposta de uma sociedade cuja vida
fusional, gregria e emocional.
Vivendo a incerteza dos tempos ps-modernos, onde a nica coisa certa
a contnua incerteza (CROOK apud HOUTART, 2003, p. 101), onde o que conta
o presente (HOUTART, 2003 p. 104), esses jogadores formam micro-sociedades,
que refletem a dinmica social de seu tempo histrico.
Os jovens que compem essas tribos so, portanto, os mesmos que
transitam todos os dias, principalmente pelas ruas das grandes cidades, que se
filiam s comunidades virtuais, enfim, que vivem de acordo com o esprito de seu
tempo e que sero os formadores das rodas de jogo de RPG.
Durante o tempo em que foi realizada a observao, notou-se que, no
grupo observado, embora se constitua seguindo o esprito de tempo atual, ainda
vigora a mesma motivao interior do indivduo, que busca preencher o vazio que
deixado na ausncia desses laos afetivos constitudos por meio dos
relacionamentos sociais.
-
142
Nas sociedades atuais, a falta dos locais de encontro existentes nas
sociedades primais, que marcavam o seu centro, lugar onde se criavam, debatiam e
negociavam normas e se fazia justia, deixa uma lacuna, ao impossibilitar a reunio
de interlocutores numa comunidade, definida e integrada pelos critrios comuns de
avaliao (BAUMAN, 1999, p. 32).
O jogo , dessa forma, um desses mecanismos de estar junto
(MAFFESOLI), de conviver com iguais, de experimentar vivncias comuns, muitas
delas intensas, e de estabelecer laos subjetivos e fidelidades, muito embora no
fique claro que isso no seja elaborado de forma totalmente consciente.
Nesses momentos onde se decorre o processo do jogo, apareceram, de
forma subliminar, elementos comuns entre o jogar e alguns componentes do ritual
religioso. Como foi dito anteriormente, ao adentrar o ambiente do jogo, os
participantes comeam a se transferir progressivamente para os mundos imaginrios
propostos pelos livros de RPG: rememoram as aventuras anteriores, discutem erros
e acertos e propem novas estratgias.
Venham de onde vierem, o que buscam o ponto de aglutinao para a
construo e o fortalecimento de laos (MAGNANI, 2000, 22). Apartam-se
progressivamente da realidade exterior at que se chega a um ponto que ela parece
desaparecer quase completamente durante o tempo do jogo.
Passam temporariamente a habitar o que DaMatta (1997) denomina de
outro mundo, que seria um intermedirio do espao privado representado pela
casa; e o pblico, representado pela rua. Este outro mundo seria uma zona neutra,
onde os discursos so diferenciados dos veiculados na casa ou na rua. So os
espaos das crenas, onde se pode fazer individual ou coletivamente a ligao do
conhecido com o sobrenatural.
O fato de desligarem ou colocarem no modo silencioso seus celulares
antes do incio da sesso mencionado no relato da observao aparece como
outra forma de cortar a ligao com o mundo exterior, o da vida real, para estarem
por inteiro, dedicados s aventuras.
Semelhante comportamento se d tambm nos espaos religiosos, onde
as experincias do cotidiano ficam em suspenso enquanto durar o tempo-espao do
culto, acontecendo o mesmo em uma imensa variedade deles. Essa sensao se
d, porque o momento extraordinrio nos transforma em seres exemplarmente
coletivos [...] Essas possibilidades de transformao criam focos diferenciados,
-
143
fazendo com que se possa viver algo novo, excitante ou rotineiro (DAMATTA, 1997,
p. 45).
Pode-se encontrar outro fato que se assemelha ao encontrado nas
religies institucionalizadas. Os personagens dos indivduos-jogadores tm que
parar para homenagear a divindade a que esto filiados, nos dias pr-determinados
para o seu culto. O respeito a esses momentos de culto s divindades, durante o
perodo do jogo, pode ser comparado ao dos praticados no islamismo. A diferena
se d na medida em que isso acontece de forma mais flexvel, podendo os horrios
serem adaptados aos momentos vivenciados nas aventuras.
O caso de os deuses pedirem cnticos do combate (informao verbal)
para que eles lhe abenoem, tambm no chega a ser uma novidade. Nas batalhas
campais da Idade Mdia, por exemplo, os guerreiros eram abenoados por
sacerdotes antes das lutas. Esse procedimento tem a vantagem de estimular a
autoconfiana do guerreiro, que sente-se protegido pela divindade e,
consequentemente mais forte. Esse sentimento ficou bem claro na expresso dos
jogadores quando afirmaram que tinham a bno dos deuses.
A situao religiosa do personagem assemelha-se, em alguns pontos, a
que ocorreu nesse perodo histrico onde, apesar da no existncia explcita de
restries a quem no possusse uma religio, ele passava a ser muito mal visto
pela sociedade, podendo se comprometer gravemente. Desse modo, ainda que
nesse jogo nada seja obrigatrio no sentido mais literal, aquele que opta por no
escolher uma filiao religiosa, acaba por prejudicar o desempenho do personagem.
Pois, ele abdicar, quando da composio do mesmo, da proteo dada pela
divindade escolhida.
Ao observar-se tambm o cuidado com a preparao do espao do jogo
antes do comeo das sesses, lugar onde se desenrolam as aventuras, no se pode
deixar de lembrar a semelhana que h com a elaborao do recinto sagrado, pelo
fiel, antes da ocorrncia da cerimnia religiosa. Esse cuidado ser um dos fatores
responsveis por transformar o espao, fsico, em um lugar simblico de
acolhimento, onde as aes perpetradas, da por diante, assumiro sentidos
diversos dos que possuem no cotidiano. Local esse propcio percepo das
hierofanias (no caso da experincia religiosa) ou das sensaes muitas vezes
prazerosas e diferenciadas das experimentadas do dia-a-dia.
-
144
O uso de palavras que fazem parte do universo religioso tambm se fez
presente durante o incidente com o professor ocorrido no hall do IFPB, quando ao
menos um dos jogadores utilizou-se do vocbulo heresia. Para ele, como se o
espao do jogo enquanto espao sagrado estivesse sendo profanado,
desrespeitado, o que, por extenso, profana e desrespeita os prprios sujeitos
(RETONDAR, 2007, p. 30). Construiu dessa forma, uma ponte imaginria que faz
com que o objeto religioso e o livro, nesse momento, se equivalham, passando a ter
o mesmo valor e significados, enquanto artefato sagrado.
4.3 DESVENDANDO IMAGINRIOS ATRAVS DO AT-9
Concludas as primeiras observaes oriundas do trabalho de campo, que
j permitem a visualizao de alguns elementos relacionados ao proceder no campo
religioso, no proceder dos indivduos-jogadores, sero transcritos os protocolos dos
testes AT-9, juntamente com suas anlises.
Elas complementaro as observaes dessa primeira etapa e um
aprofundamento na percepo sobre a possibilidade da existncia de elementos
rituais, mitolgicos ou at religiosos sobreviventes nos imaginrios dos indivduos-
jogadores, medida que, segundo G. Durand (2002, p. 190), por atitudes da
imaginao que se chega s estruturas mais gerais da representao.
Segundo Y. Durand (apud LOUREIRO, 2004), para a realizao do AT-9
necessria uma atividade mental de sntese, o que vai fazer com que o indivduo
expresse nos protocolos, alm de suas produes imaginrias, as influencias e
condicionamentos oriundos de seu meio social.
Dessa forma, as imagens obtidas nos protocolos, ao tempo em que
indicaro os imaginrios individuais, tambm fornecero pistas para a compreenso
de suas vises de mundo, no que se refere religiosidade e/ou ligao com a
transcendncia atravs de possveis simulaes da experincia do sagrado, e iro
sugerir a emerso do imaginrio grupal.
A anlise baseada nos protocolos, de acordo com o politesmo
metodolgico (FILORAMO, 1999), acabou por adentrar os trs principais campos do
conhecimento onde so aplicados os AT-9, direcionados nesta anlise ao campo
investigativo do fenmeno religioso.
-
145
Adentrou-se no campo da Psicologia, quando se buscou perceber como o
indivduo e o grupo de RPGistas percebem a angstia existencial e sua reao
diante dela; da Sociologia (compreensiva) quando se caracterizou o indivduo-
jogador enquanto membro influenciador e influenciado pelos seus relacionamentos
sociais; e a Antropologia, quando foi caracterizado um grupo social especfico, que
foi o de jogadores de RPG, posto que esse teste projetivo permite por em evidncia
dados relativos influncias externas aos indivduos.
A associao dos mesmos se deu de maneira natural, porque a
dissociao dos mesmos acarretaria em uma dificuldade na interpretao dos
protocolos, tornando-os incompletos.
4.3.1 Imagens Simblicas dos Indivduos-Jogadores
Nessa primeira parte, sero transcritos os resultados dos testes AT-923
aplicados aos indivduos-jogadores, em forma de protocolos individuais. Na
sequncia de cada transcrio, ser feita a anlise estrutural, que consiste na
identificao dos microuniverso mticos dos mesmos.
Para tanto, ter ateno especial a questo C do questionrio, pois nela
aparecero os elementos essenciais em torno dos quais foram construdos o
desenho, fornecendo uma primeira sugesto da classificao do protocolo.
Ela se basear na classificao isotrpicas das imagens da TGI, trazendo
consigo seus esquemas, smbolos e arqutipos que caracterizam as trs estruturas
do imaginrio, segundo a elaborao durandiana. E ser direcionada para a busca
de elementos rituais, mitolgicos ou at religiosos e/ou de religiosidade em seus
imaginrios, que foco dessa pesquisa.
23 Nesta sesso, as citaes que fazem parte da transcrio dos protocolos seguiro o modelo
proposto no modelo anlise do teste AT-9, aparecendo apenas entre parnteses, sem a indicao informao verbal.
-
146
AT-9 PROTOCOLO N01
Dados de Identificao Idade: 17 Sexo: Masculino Profisso: Estudante Nvel de Escolaridade: Mdio tcnico incompleto Religio: Catlica
1 COMPOSIO DO DESENHO COM OS 9 ELEMENTOS24
Micro-universo de Estrutura Sinttica do Tipo Duplo Universo Existencial Sincrnico (DUEX Sincrnico)
2 RELATO DO DESENHO25
Incitado pela vontade de ter a sua prpria cidade, o multimilionrio Mr. X trama um
plano para que a cidade na qual um dia ele foi prefeito seja destruda. Tudo
comeou com a descoberta de uma nova espcie de rptil. Com experimentos
descobriu-se que quando expostos aos raios gama esses repteis cresciam e se
tornavam maiores, mais violentos e mais inteligentes. Enquanto isso Mr. X se reunia
com o presidente depois para discutir a compra de uma cidade, ao menos era isso 24 Os detalhes dos desenhos podem ser melhor visualizados no anexo C. 25 O relato baseado no desenho e as respostas dadas s questes propostas nesse protocolo de AT-9
e nos quatro subsequentes foram transcritos da forma como foram redigidos pelos indivduos-jogadores, no tendo passado pela correo de acordo com as novas regras de ortografia, como foi o caso do texto.
-
147
que ele pensava. Na verdade ele faria vrias melhorias na cidade sendo ele o maior
dono de quase tudo que havia l. Com o pedido negado, ele utilizou dos
experimentos de seu grupo para que a cidade fosse destruda e eu a reconstrusse
do zero. Antes disso mando exploradores para neutralizar criaturas ou qualquer
perigo em ilhas prximas a cidade. Na primeira ilha neutralizada ele se acomodou
at tudo passar. Apesar das conseqncias de seus atos, Mr. X pensava que aquilo
era um bom negcio.
I. QUESTIONRIO:
a. Em torno de que ideia central voc construiu a sua composio? Voc ficou
indeciso entre duas ou mais solues? Caso tenha respondido que sim, quais
foram?
A ideia central que para que algo acontea basta uma deciso, se que quem ou
que for. No.
b. Voc foi, por acaso, inspirado por alguma leitura, filme, etc? Quais?
Sim. Vrios. Dentre os vrios: Godzila, o Nufrago, Teletubies, Final Fantasy,
quadrinhos de super-heris, contos de vrios estilos e muito mais.
c. Indique entre os 9 (nove) elementos da sua composio:
1. Os elementos essenciais em torno dos quais voc construiu o seu desenho.
O monstro que destri a cidade. O homem que descansa na ilha.
2. Os elementos que gostaria de eliminar. Por qu?
A espada, porque no se encaixa de forma satisfatria na historia. Foi um
tanto forada.
d. Como termina a cena que voc imaginou?
De um lado a serenidade, de outro o caos e o medo, e de outro a fria.
e. Se voc tivesse que participar da cena que voc comps, onde voc estaria? E o
que faria?
Estaria num avio a caminho da ilha do Mr. X, indo captur-lo.
II. PREENCHIMENTO DO QUADRO
1. Na coluna A, como voc representou cada elemento da composio. 2. Na coluna B, qual o papel desempenhado na composio por cada um dos 9
elementos.
-
148
3. Na coluna C, o que simboliza para voc, pessoalmente, cada um dos 9
elementos.
Elemento Representao A Papel B Simbolismo C
Queda A destruio da cidade Destruir a cidade Necessria para que haja uma ascenso
Espada O guerreiro neutralizando a ilha e as naves atirando no monstro
Mata o inimigo Imps sua vontade ao inimigo
Refgio A ilha isolada Abriga o fugitivo e algo mais Lhe abriga e serve de consolo quando necessrio
Monstro O godzilao monstro do mar e o mostro da ilha (que pega o gato)
Destri aquilo que lhe desagrada
Necessrio derrot-lo significa vencer uma etapa. Unir-se a ele seria a unio de diferentes partes de algo em comum
Cclico A rvore Fornece comida e sombra Equilbrio
Personagem O homem na ilha Da origem a cena Nunca existe apenas um gua O mar Divide as ilhas Passagem
Animal O gato morto por sua curiosidade Aquele que se guia pelos instintos
Fogo As chamas da destruio Consome os restos Destruio e renovao
ANLISE DO PROTOCOLO N01
Os elementos essenciais em torno dos quais o indivduo-jogador construiu
o desenho foram, por um lado, o monstro que destri a cidade e, por outro, o
homem que descansa na ilha. O personagem que ele destaca o homem da ilha.
Est sozinho, deitado repousando e d origem cena.
Embora o indivduo-jogador declare que o personagem o homem na
ilha, ele faz uma ressalva quando diz que nunca existe apenas um e o representa
em duplicidade no desenho, cada qual participando de um microuniverso. O
segundo personagem, que tambm o narrador da cena, encontra-se em outra ilha,
lutando para neutralizar os monstros.
O homem que d origem cena poderia ser identificado tanto com a
divindade, que aquela que d origem criao/cena, quanto como o primeiro
homem, Ado, que estava sozinho no paraso/refgio/ilha, cujo centro era marcado
pela rvore do bem e do mal, repleta de frutos. A prpria figura de Ado j est
-
149
Ilustrao 18 Sigurd: (original de 1893, produzido para edio sueca do Edda em verso). Fonte: http://pt. wikipedia. org/wiki/ Siegfried
associada, por si s, divindade, pois ele a imagem de
Deus e o simbolismo de sua primazia relacionado a uma
primazia de ordem moral, natural e ontolgica
(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 11).
O segundo personagem, o guerreiro que foi
identificado como sendo ele mesmo a espada e, sendo um
servidor do homem na ilha (identificado com a divindade),
pode ser percebido como um instrumento da vontade
divina. Dentro dessa categoria de heri eufemizado,
podemos encontrar Sigurd (ou Siegfried), que alia sua
espada a capacidade de frustrar e afastar malefcios, de
libertar, de descobrir, de acordar do transe (DURAND,
2002).
O elemento cclico representado pela rvore que fornece comida e
sombra. As interpretaes para o simbolismo da rvore articulam-se em torno da
mesma idia de Cosmo vivo, em perptua regenerao, sendo ainda smbolo de
evoluo eterna, do aspecto cclico da evoluo csmica: morte e regenerao
(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 84).
A imagem da rvore da vida pode ainda ser associada do andrgino
inicial, que alm de ser um dos arqutipos substantivos da estrutura sinttica do
regime noturno da imagem, complementa o conjunto da cena central, e refora a
ideia do homem na ilha/personagem; est representando o primeiro homem
conhecido como Ado, que na tradio cabalstica seria tambm uma sntese do
universo criado (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 13).
O homem enquanto sntese do universo criado, tambm pode ser visto
psiquicamente como aquele que j integrou as suas energias, tornando-se
psicologicamente equilibrando. Colocar um Ado no centro do desenho pode estar
refletindo um desejo por parte do indivduo-jogador de encontrar esse equilbrio,
ascendendo a um patamar superior de humanidade.
O refgio a ilha isolada que abriga o fugitivo e algo mais. Ao mesmo
tempo em que desempenha seu papel, pois abriga [o personagem] e serve de
consolo quando necessrio, refugia tambm algo mais, mantendo uma atmosfera
de mistrio quanto a esse elemento oculto.
-
150
A imagem da ilha um smbolo de centro espiritual por excelncia, mais
precisamente, segundo Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 501), do centro espiritual
primordial, podendo ser acessada apenas depois de uma navegao ou de um
vo. No desenho, a dificuldade de acesso concebida como a escada e, como bem
diz Eliade (2002, p. 46), ela representa plasticamente a ruptura de nvel que torna
possvel a passagem de um modo de ser a um outro, constituindo-se em outro
smbolo emblemtico de ascenso espiritual.
A dificuldade de chegar a ela, como tambm o fato de ser considerada,
segundo os mesmos autores, um lugar de eleio, tambm pode ser comparada aos
locais consagrados aos processos rituais, nos quais o iniciado s chega por
caminhos que devem ser indicados pelo iniciador ritual.
Para realizar a transio, o iniciado precisa de um guia/iniciador ritual que
o oriente a navegar atravs das guas que circundam a ilha (caminhos complexos
da iniciao espiritual), dando-lhe a possibilidade de l chegar/acessar um universo
espiritual. Ao nvel psquico, acessar a ilha enquanto microcosmos encontrar o
refgio onde a conscincia e a verdade se uniriam para escapar aos assdios do
inconsciente (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 502).
Sendo a miniaturizao do mundo, a imagem do cosmo completo e
perfeito [...] Centro primordial, sagrado por definio (CHEVALIER e
GHEERBRANT, 2009, p. 501), a imagem da ilha possui uma concentrao do valor
da sacralidade. Ela ainda, nas tradies asiticas, um lugar que se eleva para o
outro mundo e onde os deuses vm Terra.
Chegar e entrar na ilha pode simbolizar o acesso a esse universo paralelo
onde habitam os deuses, atravs da elevao espiritual. a entrada em uma nova
etapa da existncia, encontrando metaforicamente o seu centro espiritual.
Nesse protocolo, a ilha circundada pelo mar/gua que smbolo da
dinmica da vida [e] ao mesmo tempo a imagem da vida e a imagem da morte
(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 592), de onde vem vida (imagem do lquido
amnitico) e para onde tudo retorna. Na representao grfica, ele exerce esse
papel, medida que, segundo o indivduo-jogador, ao mesmo tempo em que divide
as ilhas/mundos, passagem/ligao entre esses mesmos mundos.
No somente separa e divide os mundos ao mesmo tempo, mas realiza a
mesma tarefa em relao aos regimes da imagem. As atuaes hericas e msticas
-
151
so realizadas em ilhas/mundos diferentes, mas se interconectam, formando uma
narrativa coerente. Elementos dos dois universos coexistem.
O mesmo se deu com o elemento queda que, mesmo sendo representada
e tendo ao mesmo tempo o papel de destruir a cidade citada como necessria
para que haja ascenso. Nesse sentido, a queda transforma-se em apelo do
abismo mortal, a vertigem em tentao (DURAND, G., 2002, p. 118). Ou seja, o
indivduo-jogador tendeu novamente para a ligaao dos dois plos, das suas
estruturas.
A figura do monstro se desdobra em mais de uma representao. Ele o
godzila o monstro do mar e o mostro da ilha (que pega o gato). Alm dos monstros
nomeados pelo indivduo-jogador, ele est presente tambm no mar, onde tenta
abocanhar o navio/recipiente e destri aquilo que lhe desagrada.
Venc-lo significa vencer uma etapa [...] e unir-se a ele seria a unio de
diferentes partes de algo em comum. Enfim, o monstro est em todos os lugares
onde o personagem possa se encontrar, traduzindo bem a ideia do monstro interior,
nico capaz de acompanhar o indivduo onde ele for. Aquele cuja vitria se d por
etapas, cuja conquista final alcanada atravs da unificao do inconsciente com o
consciente.
O monstro da ilha aquele que engole o animal representado pelo gato.
a insegurana que ronda o refgio/ilha, pois foi desenhado na elevao que
conduz ao topo da ilha, onde o personagem descansa desfrutando da paz de um
verdadeiro paraso.
O gato, embora seja domstico, um smbolo teriomrfico, possui um
simbolismo ambguo, heterogneo, oscilando entre formas positivas ou negativas de
ser percebido conforme cultura, poca ou imaginrios individuais. Na representao
grfica desse protocolo, ele visto de forma negativa, pois simboliza para o
indivduo-jogador aquele que se guia pelos instintos e que morto por sua
curiosidade. Ele pode, nesse caso, segundo Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 462),
ser associado serpente, indicando o pecado, o abuso dos bens deste mundo.
Mas tambm o gato neutralizado ao ser engolido pelo monstro que
destri o que lhe desagrada. Nesse caso, o que parece desagradar o pecado, os
instintos latentes no ntimo do indivduo-jogador. Assumindo o monstro o papel de
eliminar a negatividade.
-
152
A espada concebida em duplicidade: o guerreiro neutralizando a ilha e
as naves atirando no monstro. Elemento esse que o indivduo-jogador deseja
eliminar, porque no se encaixa de forma satisfatria na historia. No entanto, no
fica claro qual das duas formas de representar a espada que ele deseja suprimir.
Caso a eliminao fosse tanto das naves quanto da espada na mo do guerreiro,
poderia significar um desejo de pacificao.
O fogo mais um componente que tem funo complementar nesse
protocolo. Ele apresentado na narrao, como as chamas da destruio que
consomem os restos. Nesse momento, ele , o fogo purificador [e] faz parte do
simbolismo herico (LOUREIRO, 2004, p. 25). Mas, por outro lado, representado
graficamente como um incndio decorrente de um batalha, remetendo estrutura
sinttica, [...] mediador entre a natureza e a cultura (LOUREIRO, 2004, p. 25). Seu
simbolismo aponta no somente para a destruio, mas tambm para a renovao.
No mbito da religio/religiosidade, a ideia de que a destruio
necessria para que haja uma ascenso relaciona-se diretamente aos ciclos de
renovao moral, ciclos de morte e renascimento. Essa morte poder ocorrer de
duas formas principais. A primeira moralmente, quando, ainda na existncia fsica
em curso, o seguidor de uma doutrina substitui uma forma de proceder por outra
considerada mais moralizada ou elevada espiritualmente. A segunda atravs da
reencarnao ou transmigrao da alma, ou seja, pela morte fsica e o posterior
renascimento em um novo corpo material.
Pode-se encontrar ideias oriundas de concepes religiosas no imaginrio
do indivduo-jogador que condizem com a sua filiao religiosa, pois o autor
representa de forma negativa a interveno do homem na criao. Pode-se perceber
esse fato quando ele relata que a modificao feita nos rpteis/monstros os tornaram
maiores, mais violentos e mais inteligentes quando expostos expostos aos raios
gama.
Essa mais uma das associaes feitas ao paraso e queda da
humanidade. O uso da inteligncia por parte do ser humano com o objetivo de
modificar a natureza das coisas (exposio dos rpteis aos raios gama), poderia ser
uma analogia do consumo do fruto da rvore do bem e do mal, que deu ao homem a
racionalidade.
De posse do conhecimento do bem e do mal, teve conscincia de sua
realidade mortal, estava de posse da cincia (estava com cincia) e queria se igualar
-
153
Ilustrao 19 Mutilao de urano por saturno. Ilustrao do sculo XVI de autoria de Giorgio Vasari e Gherardi Christofano. Fonte: http://leiturasdahistoria.uol.com.br/ESLH/Edicoes/9/imprime89331.asp
ao Criador. E, uma das formas de eternizar-se, justamente imaginar-se eterno
mesmo sabendo-se finito (LOUREIRO, 2004, p. 16), que um estratagema criado
pelo imaginrio humano para enfrentar a angstia do tempo que se escoa e o leva
inexoravelmente finitude.
A forma com que o indivduo-jogador articula os smbolos e arqutipos,
parece apontar para o mito da destruio do paraso/cidade atravs do mal
(monstros modificados pela cincia) que se origina do conhecimento que gera a
ambio, e que, por sua vez, leva destruio (que pode ser fsica ou moral).
Muito embora tenha se declarado catlico e tenha absorvido conceitos
relativos a essa crena, ele tambm detm, em seu imaginrio iderios oriundos de
mitologias politestas, como a da sucesso dos deuses. Ele relata que se tivesse que
participar da cena estaria em um avio a caminho da ilha do Mr. X, indo captur-lo.
Iria destronar o personagem que d origem cena, tomando-lhe o lugar, j que ele
tinha a misso de reconstruir a cidade.
E, aquele que d origem cena, em uma esfera mais ampla,
denominado, dentre outras coisas, de Criador ou de Deus. A histria desse
personagem assemelha-se, deste modo, ao mito de Saturno/Cronos que vencido
pelo seu filho Jpiter/Zeus.
O indivduo-jogador, parece cultivar essa nova maneira de exercer a
religiosidade, tpica do perodo ps-moderno, onde se pinam conceitos de mais de
uma religio/religiosidade, para compor uma forma prpria, individualizada, de se
relacionar com o transcendente.
-
154
Ele constri o desenho/representao grfica em torno de duas
polaridades, o monstro que destri a cidade e o homem que descansa na ilha.
Nela possvel encontrar tanto elementos tpicos da estrutura herica quanto da
estrutura mstica do imaginrio. Os elementos se combinam, sem prejuzo do
desenrolar do enredo.
O elemento cclico aparece relacionado ideia de progresso. O indivduo-
jogador relata que seria feita melhoria na cidade e que a prpria destruio da
cidade necessria para que haja asceno. E, segundo Y. Durand (apud
LOUREIRO, 2004, p. 24), a idia de progresso parece comandar a escolha do
arqutipo cclico.
A maneira de relacionar os termos ascenso e destruio, dando (ou
forando) a idia de complementariedade, igualmente tpica da estrutura sinttica
do imaginrio, porque expressa a dialtica entre o simbolismo da fuga diante do
tempo, e a vitria sobre o destino e a morte: a contraposio positiva ao negativo
(LOUREIRO, 2004, p. 18). Ou seja, da vida versus a morte.
Alm disso, no centro da representao grfica, encontra-se uma rvore,
com seu simbolismo cclico de totalidade do cosmo na sua gnese e o seu devir
(DURAND G., 2002, p. 341). Elemento cclico que se renova atravs dos seus
perodos de reproduo, florao e frutificao.
No desenho ele se apresenta frutfera e frondosa, de grandes propores,
cuja copa cobre quase que toda a extenso da ilha. Representa, segundo o
indivduo-jogador, o equilbrio. a prpria Axis Mundi, fornecendo comida/sustento
e sombra/aconchego e servindo de ponte entre o cu e a terra.
Nesse contexto, a angstia diante da morte atenuada pela ideia de
renovao, compreendida enquanto fases que se alternam. A morte deixa de ser um
fim e passa a ser um recomeo, tornando o tempo positivo, procura-se o dilogo ou
a conciliao entre os opostos (LOUREIRO, 2004, p. 18-19).
Nesse protocolo, os elementos convergem para essa harmonizao entre
os contrrios. E, segundo Loureiro (2004, p. 26), quando no h a oposio entre a
caracterstica herica e mstica e evidencia-se um duplo universo existencial ou
simblico, os agrupamentos dos universos mticos se categorizam como
Disseminatrios.
O personagem se desdobra em dois e vive duas aes temticas ao
mesmo tempo, que acontecem em universos mticos diferentes (um herico e outro
-
155
mstico), mas que fazem parte de uma mesma ideao, o que caracteriza uma
estrutura do tipo sincrnica.
Levando-se em conta o conjunto de elementos encontrados na narrao,
na representao grfica, no questionrio e no quadro, a anlise estrutural realizada
indica a existncia de uma Estrutura Imaginria Sinttica do tipo Duplo Universo
Existencial Sincrnico (DUEX Sincrnico), participando do Regime Noturno da
Imagem.
AT-9 PROTOCOLO N02
Dados de Identificao Idade: 18 anos Sexo: Masculino Profisso: Auxiliar administrativo Nvel de Escolaridade: Superior incompleto Religio: Catlico
1 COMPOSIO DO DESENHO COM OS 9 ELEMENTOS
Micro-universo de Estrutura Herica do Tipo Super-Herico
2 RELATO DO DESENHO
Um drago enfrenta o nobre guerreiro na fortaleza do penhasco e com ajuda de sua
espada mgica derrota o drago e salva a cidade.
-
156
I. QUESTIONRIO
a. Em torno de que ideia central voc construiu a sua composio? Voc ficou
indeciso entre duas ou mais solues? Caso tenha respondido que sim, quais
foram?
No.
b. Voc foi, por acaso, inspirado por alguma leitura, filme, etc? Quais?
Sim, o senhor dos anis e Tolkien.
c. Indique entre os 9 (nove) elementos da sua composio:
1. Os elementos essenciais em torno dos quais voc construiu o seu desenho.
Todos.
2. Os elementos que gostaria de eliminar. Por qu?
Nenhum.
d. Como termina a cena que voc imaginou?
Com o guerreiro derrotando o drago.
e. Se voc tivesse que participar da cena que voc comps, onde voc estaria? E o
que faria?
Ajudaria o guerreiro a derrotar o drago.
II. PREENCHIMENTO DO QUADRO
1. Na coluna A, como voc representou cada elemento da composio. 2. Na coluna B, qual o papel desempenhado na composio por cada um dos 9
elementos.
3. Na coluna C, o que simboliza para voc, pessoalmente, cada um dos 9
elementos.
Elemento Representao A Papel B Simbolismo C
Queda Um penhasco Enfatizar o perigo que o cavalheiro enfrenta Perigo
Espada Espada mgica Ajudar a derrotar o drago Poder
Refgio Castelo Proteger as pessoas Proteo
Monstro O drago O mostro selvagem Um ser selvagem
Cclico O fogo do drago Enfatiza o perigo para o guerreiro A vida
-
157
Personagem O guerreiro com a espada A esperana das pessoas O indivduo
gua O mar Nenhum Tranqilidade
Animal O cavalo O cavalo que acompanha o guerreiro Companheiro
Fogo O fogo do drago Enfatizar o perigo para o guerreiro O fim
ANLISE DO PROTOCOLO N02
Na representao grfica, a espada est empunhada contra o
drago/monstro e o personagem/nobre guerreiro est montado em seu cavalo,
lutando contra a ameaa representada pelo drago. Essa figura caracterizaria o
heri, segundo Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 201), como sendo o s
top related