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O CONCEITO DE FAMÍLIA CONTEMPORÂNEO: RELAÇÕES
POLIAFETIVAS E SEUS EFEITOS JURÍDICOS
37 ANAIS XIII SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL
GT 1 – RELAÇÕES PRIVADAS FAMILIARES
O CONCEITO DE FAMÍLIA CONTEMPORÂNEO: RELAÇÕES
POLIAFETIVAS E SEUS EFEITOS JURÍDICOS
THE CONTEMPORARY FAMILY CONCEPT: POLIAFFECTIVE
RELATIONSHIPS AND THEIR LEGAL EFFECTS
Ana Flávia Pinheiro Leão Zanella1
RESUMO: O presente artigo trata da evolução do conceito de família, perante o
ordenamento jurídico, até a constituição do poliamor. Neste sentido, através de
princípios Constitucionais, busca analisar os possíveis equívocos perpetrados por
alguns juristas em relação ao tema, bem como retirar a carga preconceituosa
concretizada socialmente e demonstrar que, a partir da afetividade e não intervenção
estatal nas relações privadas, o poliamorismo merece ser elevado a um novo modelo
familiar, tal qual o monogâmico. Desta forma, tratará dos efeitos jurídicos que uma
relação poliafetiva deveria gerar, tendo em vista o ainda recente tema tratado pelos
tribunais. Nesta perspectiva, analisa, de modo restrito, o direito parental em relação
aos descendentes, além dos direitos previdenciários que os membros deste modelo
familiar deveriam gozar.
Palavras-chave: Poliamorismo; Conceito; Efeitos; Afetividade.
ABSTRACT: This article deals with the evolution of the concept of family, before
the legal order, until the constitution of polyamory. In this sense, through
constitutional principles, it seeks to analyze the possible misconceptions perpetrated
by some jurists in relation to the subject, as well as to remove the socially prejudiced
bias and demonstrate that, based on affectivity and non-intervention in private
relations, polyamorism deserves to be raised to a new family model, just like the
monogamous. In this way, it will deal with the legal effects that the relationship
should generate, in view of the still recent issue dealt with by the courts. In this sense,
it analyzes, in a restricted way, the parental right in relation to the offspring generated,
besides the social security rights that the members of this familiar model.
1 Acadêmica de Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail:
annazanella@outlook.com
Ana Flávia Pinheiro Leão Zanella
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Key-words: Polyamory; Concept; Effects; Affectivity.
Sumário: 1. Introdução. 2. As relações familiares e sua evolução: da família
tradicional ao poliamorismo. 3. As mudanças jurídicas presentes no ordenamento: os
avanços conquistados e os equívocos perpetrados. 4. Os direitos perpetrados pelo
ordenamento jurídico: um longo caminho a ser percorrido. 5. Considerações finais.
6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A Em uma sociedade em que, de um lado, há uma fervorosa campanha a
favor do Estatuto da família – Lei 6.583/132 e, de outro, práticas familiares que
contrastam com a famosa “Família Tradicional Brasileira”, faz-se necessário um
estudo não apenas a respeito destas novas práticas – mais especificamente, o poliamor
– mas também a sua aceitação pela doutrina e jurisprudência, a partir de uma
abordagem objetiva, analisando os direitos que os membros de uma família
poliamorosa deveriam possuir, mas que, no entanto, são restritos às famílias
poligâmicas.
Assim, com o advento da Constituição de 1988 e a codificação de princípios
que permitiram que, mais tarde, a instituição familiar fosse adotada pelo Código Civil
de 2002 como um conceito plural, e não mais como a união entre um homem e uma
mulher ligados pelo matrimônio, passa-se a considerar como família um grupo de
indivíduos ligados voluntariamente por laços afetivos, sendo desnecessário o
matrimônio para a constituição familiar.
Neste sentido, o enfoque deste artigo é analisar uma forma de se relacionar
pouco difundida, mas que gera dúvidas e necessidade de regulamentação, bem como
um possível regime previdenciário, de adoção e registro da prole por casais
praticantes deste modelo familiar que, apesar de antigo, é novo para o nosso modelo
social atual.
2 http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1159761
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2. AS RELAÇÕES FAMILIARES E SUA EVOLUÇÃO: DA FAMÍLIA
TRADICIONAL AO POLIAMORISMO
O conceito de família patriarcal consolidou-se na Roma antiga, tornando-se
a base social onde a figura masculina detinha poderes sobre filhos e esposa, sendo
uma autoridade maior que a do próprio Estado.
No Brasil Colonial, da mesma forma, a família patriarcal era a base da
sociedade, vista como algo natural e, portanto, perpetrado pela sociedade como o
único meio de relação aceitável, composta por um casal heterossexual e sua prole.
Neste sentido, “o primeiro passo para estudar a família deveria ser o de “dissolver”
sua aparência de naturalidade, percebendo-a como criação humana mutável”
(BRUSCHINI, 2000, p. 49-79).
Assim, com o processo de industrialização, este modelo familiar começou a
mudar, e, a família que antes era considerada como uma negociação a fim de unir
posses ou benefícios, passa a ser uma união de vontades entre ambas as partes
diretamente afetadas pelo casamento.
Mais tarde, com a criação da pílula anticoncepcional (década de 60) e
consequente dissociação entre sexualidade e maternidade, as técnicas de fertilização
in vitro (década de 80) e outros meios de reprodução capazes de proporcionar
descendentes sem que haja uma família necessariamente constituída por um homem
e uma mulher, tornou-se possível a existência de modelos familiares que antes eram
rechaçados por uma cultura e tradição monogâmica e heterossexual.
Neste contexto surgiu o poliamor e, conforme elucida Daniel dos Santos
Cardoso, sua manifestação se deu a partir de duas vertentes:
A palavra poliamor – e, por conseguinte, a raiz da identidade associada –
foi inventada duas vezes, em dois contextos claramente diferentes que,
como disse, marcam duas correntes diferentes existentes actualmente. [...]
O primeiro registo bibliográfico que conhece, até à data, é de 1953, e surge na Illustrated History of English Literature, Volume 1, por Alfred Charles
Ward – a Henrique VIII é dado o adjectivo de “determinado poliamorista”;
a palavra “poliamorosa” surge depois numa obra de ficção, Hind’s Kidnap,
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de Joseph McElroy, em 1969, associada à ideia de que a instituição
“Família” está “acabada”. [...] A outra vertente do poliamor tem um pendor marcadamente menos
religioso ou transcendentalista. [...]
A partir do blog Poly in the Media, a história é contada na primeira pessoa.
Jennifer Wesp foi a co-criadora da palavra neste outro contexto: durante um debate sobre “a moralidade de ter relações não-monogâmicas, na
[mailing list] alt.sex” com Mikhail Zelany (um outro participante da
mesma mailing list), quando “[se cansou] de escrever não-monogamia e [considerou que] não era boa prática retórica utilizar uma [palavra]
negativa, hifenizada, para tentar fazer passar uma ideia positiva”. Assim,
enquanto compunha um email que ela própria considerava fazer parte de
uma flame war, Wesp resolveu criar uma palavra que pudesse transmitir uma ideia que não estivesse linguisticamente vinculada a uma comparação
directa com a monogamia. Procurava assim, como foi dito acima, isolar e
manter um campo restrito de experiência. O resultado foi a criação de uma nova mailing list, no dia 20 de Maio de 1992 [...]
Na altura, quando lhe pediram para esclarecer a palavra e o uso do hífen
(já que o original rezava “poly-amory”) – visto que ninguém a encontrava no dicionário – ela retirou automaticamente o hífen e disse que ‘poliamor
soa melhor […]. Eu amo mais do que uma pessoa ao mesmo tempo. E não
quero nunca casar-me, portanto a implicação de casamentos múltiplos na
palavra “poligamia” parece-me de mau gosto’. (CARDOSO, 2010, p. 9-12)
Desta forma, este modelo caracteriza-se pela capacidade de convivência
mútua, onde coexistem duas ou mais relações afetivas, sendo que os indivíduos
acordam tal prática. Neste sentido, leciona Pablo Stolze Gagliano:
O poliamorismo ou poliamor, teoria psicológica que começa a descortinar-
se para o Direito, admite a possibilidade de coexistirem duas ou mais relações afetivas paralelas, em que os seus partícipes conhecem e aceitam
uns aos outros, em uma relação múltipla e aberta. (STOLZE, 2008. p. 288).
Comporta ressaltar que a grande diferença entre o poliamorismo e a traição
seria, justamente, este consentimento entre os parceiros, que optaram por manter este
estilo de relação. Portanto, para ser aceito no modelo jurídico, é exigência não apenas
o consentimento dos parceiros, mas também o objetivo de constituir família e uma
convivência pública e duradoura.
No entanto, não se pode utilizar tal modelo de forma indiscriminada, a fim
de justificar relacionamentos paralelos de satisfação sexual, visto que nem todos os
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envolvimentos que não se encaixam no “modelo tradicional” são exemplos do
poliamor.
Outra distinção necessária de se fazer seria entre o poliamor e a bigamia. O
primeiro, já conceituado, não é proibido no Brasil. Já a bigamia, prática em que uma
pessoa realiza outro casamento sem a dissolução do anterior, é crime, conforme art.
235, caput, do Código Penal, levando à anulação do segundo casamento (art. 1.548,
inciso II, c/c artigo 1.521, inciso VI, do Código Civil).
Assim, o poliamorismo está pautado nos princípios da afetividade, busca pela
felicidade, autonomia da vontade, dignidade da pessoa humana e não discriminação.
Com relação ao dever de fidelidade recíproca (art. 1566, I, do Código Civil), ressalta-
se que em momento algum o código explicita que tal fidelidade só seria possível entre
casais monogâmicos.
Outrossim, uma das características cruciais do poliamorismo seria a ciência
e aceitação das partes da existência de mais de um companheiro, devendo ser exigida
a fidelidade recíproca dentro da realidade desta relação.
Desta forma, tendo em vista as mudanças sociais desde a criação da
Constituição Federal e do Código Civil, bem como os princípios almejados por
aquela, enquanto a inobservância de proibição explícita do poliamor por este, urgente
é a regulamentação desta forma familiar, a qual permanece sendo formada por
parceiros que não tem direito a alimentos, herança, e, se assim desejarem, direito à
adoção.
3. AS MUDANÇAS JURÍDICAS PRESENTES NO ORDENAMENTO: OS
AVANÇOS CONQUISTADOS E OS EQUÍVOCOS PERPETRADOS
O Código Civil de 1916, pautado pelo modelo de família patriarcal,
considerava família apenas aquela formada a partir do matrimônio, sendo aquelas que
estavam à margem desta formalidade consideradas concubinatos e desprotegidas pelo
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direito.
A Constituição Federal, pensando na dignidade dos indivíduos, deixou de
limitar os tipos familiares àqueles que são mais aceitos socialmente, dando autonomia
aos que pretendem se dispor desde formas mais aceitas até as menos comuns. Assim,
o matrimônio deixa de ser algo irreversível e único e passa a ser uma relação jurídica
passível de desconstituição (por meio do divórcio), amparando também os filhos
“ilegítimos” e vínculos extramatrimoniais, possibilitando, ainda, a constituição da
união estável.
Apesar dos avanços ocorridos, o Código Civil de 2002 foi redigido a partir
de uma visão monoparental e heteroafetiva, não reconhecendo as mudanças sociais e
consequente pluralidade familiar; culminando numa necessidade de manifestação
jurisprudencial a respeito do tema, como é o caso do reconhecimento, pelo Supremo
Tribunal Federal, de união estável para casais homoafetivos.
Ressalta-se que um dos pilares desta mudança no pensamento jurídico é o
fim de relações afetivas pautadas na patrimonialidade. Conforme leciona Paulo Lôbo,
a afetividade passa a ser o fundamento da família contemporânea:
A família, tendo desaparecido suas funções tradicionais, no mundo do ter
liberal burguês, reencontrou-se no fundamento da afetividade, na comunhão de afeto, pouco importando o modelo que adote, inclusive o que
se constitui entre um pai ou mãe e seus filhos. A afetividade, cuidada
inicialmente pelos cientistas sociais, pelos educadores, pelos psicólogos, como objeto de suas ciências, entrou nas cogitações dos juristas, que
buscam explicar as relações familiares contemporâneas. Essa virada de
Copérnico foi bem apreendida por Orlando Gomes: “O que há de novo é a
tendência para fazer da affectio a ratio única do casamento”. Não somente do casamento, mas de todas as entidades familiares e das relações de
filiação. (LÔBO, 2011, p. 72).
Isto possibilita a busca de praticantes do poliamor por seus direitos, sendo
necessário que o mundo jurídico acompanhe esta mudança social, a fim de
regulamentar tal prática e reconhecê-la como mais um modelo familiar existente.
No entanto, em contrapartida a este avanço jurisprudencial ocasionado pela
constante mudança social existente, há ainda uma parcela da sociedade que insiste
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em manter e querer obrigar os demais a coexistirem de forma monogâmica e
heterossexual. Prova disto é, conforme já mencionado anteriormente, o Estatuto da
Família, redigido em 2013, o qual, em seu artigo 2º, a define como “núcleo social
formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou
união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes”, contemplando um Brasil Colonial do século XVI, em oposição à
mutabilidade do conceito familiar de Bruschini.
Ainda, alguns juristas argumentam no sentido contrário ao poliamor,
confundindo este modelo com bigamia e concubinato. É o caso de Regina Beatriz
Tavares da Silva, em artigo intitulado “Poliamor é negado pelo Supremo e pelo STJ”,
publicado em abril de 2012, onde utiliza-se de julgados destas Cortes em que,
havendo o casamento constituído, um dos parceiros mantém relação com um terceiro,
para tentar demonstrar, erroneamente, a impossibilidade de reconhecimento do
poliamor.
Ora, conforme já exarado inúmeras vezes, o poliamor é uma relação de
concordância de partes, não uma relação monogâmica onde, subitamente, descobre-
se um terceiro envolvido com um dos polos da relação.
De fato, o Superior Tribunal de Justiça, no informativo nº 04353, datado de
maio de 2010, não reconheceu a viabilidade de uniões estáveis simultâneas no
ordenamento jurídico. Todavia, recentemente, embora seja clara a situação
excepcional, o mesmo tribunal reconheceu o direito de uma relação paralela ao
casamento, tendo em vista o tempo de duração do relacionamento, a dependência do
parceiro e sua idade avançada:
RECURSO ESPECIAL. CONCUBINATO DE LONGA DURAÇÃO.
CONDENAÇÃO A ALIMENTOS. NEGATIVA DE VIGÊNCIA DE LEI FEDERAL. CASO PECULIARÍSSIMO.
PRESERVAÇÃO DA FAMÍLIA X DIGNIDADE E SOLIDARIEDADE
HUMANAS. SUSTENTO DA ALIMENTANDA PELO ALIMENTANTE POR
3 www.stj.jus.br/docs_internet/informativos/RTF/Inf0435.rtf
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QUATRO DÉCADAS. DECISÃO.
MANUTENÇÃO DE SITUAÇÃO FÁTICA PREEXISTENTE. INEXISTÊNCIA DE RISCO PARA A FAMÍLIA EM RAZÃO DO
DECURSO DO TEMPO. COMPROVADO RISCO DE DEIXAR
DESASSISTIDA PESSOA IDOSA. INCIDÊNCIA DOS PRINCÍPIOS
DA DIGNIDADE E SOLIDARIEDADE HUMANAS. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL.
INEXISTÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICO-JURÍDICA.
1. De regra, o reconhecimento da existência e dissolução de concubinato impuro, ainda que de longa duração, não gera o dever de prestar alimentos
a concubina, pois a família é um bem a ser preservado a qualquer custo.
2. Nada obstante, dada a peculiaridade do caso e em face da incidência dos
princípios da dignidade e solidariedade humanas, há de se manter a obrigação de prestação de alimentos a concubina idosa que os recebeu por
mais de quatro décadas, sob pena de causar-lhe desamparo, mormente
quando o longo decurso do tempo afasta qualquer riso de desestruturação familiar para o prestador de alimentos.
3. O acórdão recorrido, com base na existência de circunstâncias
peculiaríssimas - ser a alimentanda septuagenária e ter, na sua juventude, desistido de sua atividade profissional para dedicar-se ao alimentante;
haver prova inconteste da dependência econômica; ter o alimentante, ao
longo dos quarenta anos em que perdurou o relacionamento amoroso,
provido espontaneamente o sustento da alimentanda -, determinou que o recorrente voltasse a prover o sustento da recorrida. Ao assim decidir,
amparou-se em interpretação que evitou solução absurda e manifestamente
injusta do caso submetido à deliberação jurisprudencial. 4. Não se conhece da divergência jurisprudencial quando os julgados
dissidentes tratam de situações fáticas diversas.
5. Recurso especial conhecido em parte e desprovido. (REsp 1185337/RS, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA,
TERCEIRA TURMA, julgado em 17/03/2015, DJe 31/03/2015).
Na mesma linha, é o entendimento da 12ª Câmara Cível do Egrégio Tribunal
de Justiça do Estado do Paraná:
APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO ORDINÁRIA DE RECONHECIMENTO
DE SOCIEDADE DE FATO - SENTENÇA DE PARCIAL
PROCEDÊNCIA - PEDIDO DE AFASTAMENTO DO
RECONHECIMENTO DA ENTIDADE FAMILIAR - IMPOSSIBILIDADE - INEXISTÊNCIA DE IMPEDIMENTO À
CONSTITUIÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL - SEPARAÇÃO DE FATO
COMPROVADA - PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS DO ART. 1723 DO CÓDIGO CIVIL - MATERIAL PROBATÓRIO CAPAZ DE
DEMONSTRAR A EXISTÊNCIA DE UNIÃO PÚBLICA, CONTÍNUA,
DURADOURA E COM O ÂNIMO DE CONSTITUIR FAMÍLIA -
MANUTENÇÃO DA SENTENÇA - RECURSO DESPROVIDO 1. A jurisprudência do e. Superior Tribunal de Justiça é pacífica quanto à
possibilidade de reconhecimento de união estável paralela ao casamento,
quando configurada a separação de fato, nos termos do art.1723, § 1º, do
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Código Civil.2. Nos termos do art. 1723 do Código Civil, para a
configuração de entidade familiar é necessário que a convivência entre os companheiros seja pública, contínua, partilhando relação duradoura e com
o objetivo de constituição de uma família (affectio maritalis).3. O casal se
portava como marido e mulher perante a sociedade, de forma contínua e
com indícios de durabilidade. Assim, não havendo qualquer impedimento matrimonial, é de se reconhecer a união estável entre a apelada e o de cujus.
(TJPR AC - 1478156-9 Rel.: Denise Kruger Pereira - - 12ª C.Cível -
Julgado em. 27.07.2016)
Ainda mais ousado é o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o qual
reconheceu juridicamente os múltiplos vínculos afetivos, já em 2005:
APELAÇÃO CÍVEL. 1)UNIÃO ESTÁVEL PARALELA A OUTRA
UNIÃO ESTÁVEL. RECONHECIMENTO. O anterior reconhecimento
judicial de união estável entre o falecido e outra companheira, não impede o reconhecimento da união estável entre ele e autora, paralela àquela,
porque o Direito de Família moderno não pode negar a existência de uma
relação de afeto que também se revestiu do mesmo caráter de entidade
familiar. Preenchidos os requisitos elencados no art. 1.723 do CC, procede a ação, deferindo-se à autora o direito de perceber 50% dos valores
recebido a título de pensão por morte pela outra companheira.
2)RESSARCIMENTO DE DANOS MATERIAIS E EXTRAPATRIMONIAIS. Descabe a cumulação de ação declaratória com
ação indenizatória, mormente considerando-se que o alegado conluio,
lesão e má-fé dos réus na outra ação de união estável já julgada deve ser deduzido em sede própria. Apelação parcialmente provida. (SEGREDO
DE JUSTIÇA) (AC Nº 70012696068/ TJRS, Relator: José Ataídes
Siqueira Trindade, Oitava Câmara Cível. Julgado em 06/10/2005)
Assim, ainda que as relações ora mencionadas não sejam propriamente um
exemplo de poliamor, evidencia-se, por meio de tais decisões, o início de um avanço
no modo de se tratar, juridicamente, as relações que vão de encontro ao modelo
familiar “tradicional”.
4. OS DIREITOS PERPETRADOS PELO ORDENAMENTO JURÍDICO:
UM LONGO CAMINHO A SER PERCORRIDO
Após o acima exposto, imperioso observar que o poliamor já existe no Brasil.
Isto é um fato imutável. A questão, agora, é como o ordenamento jurídico o
regulamentará, a fim de não gerar enriquecimento injustificável de uma das partes em
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detrimento das outras, bem como proporcionar aos partícipes de tal relação os
mesmos direitos e deveres daqueles que vivem em uma relação monogâmica. É o que
leciona Maria Berenice Dias:
Eventual rejeição de ordem moral ou religiosa à dupla conjugalidade não
pode gerar proveito indevido ou enriquecimento injustificável de um ou de
mais de um frente aos outros partícipes da união. Negar a existência de famílias poliafetivas como entidade familiar é simplesmente impor a
exclusão de todos os direitos no âmbito do direito das famílias e sucessório.
Pelo jeito, nenhum de seus integrantes poderia receber alimentos, herdar,
ter participação sobre os bens adquiridos em comum. Nem seria sequer possível invocar o direito societário com o reconhecimento de uma
sociedade de fato, partilhando-se os bens adquiridos na sua constância,
mediante a prova da participação efetiva na constituição do acervo patrimonial (DIAS, 2013).
Portanto, ao pensar em uma relação poligâmica como união estável ou até
mesmo casamento, deve esta possuir todas as garantias dadas, por lei, a este modelo.
Em primeiro lugar, durante a vida entre parceiros, pensa-se em uma eventual
prole gerada, bem como uma possível adoção.
Cabe ressaltar que Lei nº 11.294/094 reconhece a paternidade ou maternidade
sócio afetiva e possibilita a inclusão do nome do padrasto ou madrasta pelo enteado,
concomitantemente ao nome do pai ou mãe.
No entanto, a criança não poderia obter a herança do padrasto, tendo em vista
que não seria equiparado ao filho, mas sim manteria a sua posição de enteado.
Neste sentido, a lei supracitada peca na abrangência de seus resultados, tendo
em vista que, ao ter a oportunidade de inovar o direito sucessório, manteve-se
conservadora em seus efeitos.
Ora, apesar de reconhecida a importância em se admitir formalmente uma
relação socioafetiva entre o menor e seu padrasto ou madrasta, necessário é uma
efetividade na implicação deste reconhecimento. Afinal, sendo possível a inclusão de
nome diverso dos pais, que seja dado o devido benefício ao filho, qual seja, o direito
de herança sob os bens do padrasto e demais vantagens que um filho consanguíneo
4 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11924.htm
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teria.
Afinal, sendo o objetivo da lei demonstrar a importância da relação de afeto,
que seja dado fim à distinção entre filho consanguíneo e socioafetivo, sobre a égide
do princípio da afetividade, já comentado anteriormente.
Trazendo tal pensamento para a relação socioafetiva, ao ser criada uma prole
a partir de tais relacionamentos, e, sendo possível a adoção do nome de todos aqueles
que convivem em família, sem priorizar a relação de sangue, deve-se ser oportunizada
à criança os benefícios que os filhos de pais monogâmicos teriam.
Da mesma forma, em relação ao direito previdenciário, não é possível que o
Estado, garantidor da dignidade da pessoa humana, deixe de proporcionar aos
membros da família poligâmica algum respaldo após a morte de seu provedor.
Por conta disso, a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, em
que este excepcionaliza as relações paralelas ao casamento e possibilita o recebimento
de pensão por morte, por ambas as parceiras do falecido, deveria se tornar regra e,
apesar de não se tratar propriamente de praticantes do poliamor, necessita ter
abrangência em relação a todos os modelos familiares.
Neste sentido, Rafael da Silva Santiago defende não apenas a divisão
igualitária da pensão, mas o dever do Estado em auxiliar economicamente os
membros da família poliamorosa, bem como a responsabilidade solidária existente
entre eles:
Esse mesmo cenário se estende ao Direito Previdenciário, p. ex., nos casos em que a pensão por morte de um dos membros da família poliamorosa –
que, em geral, deve ser dividida por todos os integrantes dessa união afetiva
– não for suficiente para prover o sustento de todos. Em atenção à especial proteção que merece a entidade familiar, o Estado deve garantir o auxílio
material para sua manutenção. Vale ressaltar que os praticantes do
poliamor também têm o direito de pleitear os alimentos de que necessitem
para subsistir, bem como para viver com dignidade e de forma compatível com sua condição social. Esse direito pode ser exercido contra todos os
parceiros da antiga família poliamorosa, de forma a haver uma
responsabilidade solidária de todos na prestação de alimentos uns dos outros. (SANTIAGO, 2014. p. 196)
Por fim, em relação à possibilidade de adoção, apesar desta já ter sido tratada
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ao longo deste trabalho, merece ter especial atenção.
Utilizando-se como base a possibilidade de adoção por casais homoafetivos,
reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal5 sob o argumento de que, a partir do
reconhecimento da união homoafetiva como contínua, pública e duradoura, é
reconhecida também a existência de uma entidade familiar e, portanto, possível a
adoção por casais formados por pessoas do mesmo sexo.
Neste sentido, é o entendimento da nossa Suprema Corte:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL.
RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA E RESPECTIVAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS. ADOÇÃO. AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 4.277. ACÓRDÃO
RECORRIDO HARMÔNICO COM A JURISPRUDÊNCIA DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO.
[...] Assim interpretando por forma não – reducionista o conceito de
família, penso que este STF fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo da coerência, pois o conceito
contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em
discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico.
Quando certo – data vênia de opinião divergente – é extrair do sistema de comandos da Constituição os encadeados juízos que precedentemente
verbalizamos, agora arrematados com a proposição de que a isonomia entre
casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direiro subjetivo à formação de uma
autonomizada família. Entendida esta, no âmbito das duas tipologias de
sujeitos jurídicos, como um núcleo doméstico independente de qualquer outro e constituído, em regra, com as mesmas notas factuais da
visibilidade, continuidade e durabilidade. [...]
(RE 846.102/ AC 529976101/TJPR. Relatora: Min. Carmen Lúcia.
Julgado em 05/03/2015)
Pensando em tal isonomia defendida pelo Supremo Tribunal Federal, bem
como na família “autonomizada”, defende-se o reconhecimento da união poliafetiva
como entidade familiar e, posteriormente e de igual forma, a possibilidade de adoção
também por esta. Afinal, se impedir a adoção por casais homossexuais seria
considerado uma discriminação não apenas da sociedade, mas pela própria
Constituição Federal, por que não o seria em relação ao poliamor?
5 Recurso Extraordinário 846.102 (722)
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Óbvio é a dificuldade da sociedade em assimilar tais mudanças e direitos. No
entanto, necessário é pensar nestas questões que, mais cedo ou mais tarde, serão
objeto de litígio no judiciário.
Afinal, impossível conceber que um grupo de pessoas, que acordam em
manter uma relação de parceria umas com as outras, não possuam qualquer tipo de
respaldo em sua vida privada devido a uma intervenção estatal distorcida, que
indiretamente as proíbe de exercer o modelo familiar que escolheram, renegando a
elas os direitos básicos que um membro familiar teria.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ressalta-se a impossibilidade de se prever todos os dilemas e litígios
possíveis decorrentes de um relacionamento poliamoroso. Entretanto, este artigo
buscou demonstrar alguns equívocos cometidos por juristas a respeito deste modelo
familiar, bem como algumas soluções para conflitos básicos que começarão a fazer
parte, com mais intensidade, da realidade dos tribunais brasileiros.
Desta forma, a partir de uma analogia com os direitos alcançados pelos casais
homoafetivos, o presente trabalho objetivou demonstrar que, assim como tal realidade
era estranha a uma parcela da sociedade, e, apesar disso, foi aceita pelos tribunais,
seria possível aceitar juridicamente o poliamor – que já é praticado no Brasil e no
mundo – e garantir os direitos daqueles que o vivenciam.
REFERÊNCIAS
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Submetido em: 09/02/2018
Primeiro parecer:16/04/2018
Segundo parecer:17/04/2018
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