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Literatura e nacional-desenvolvimentismo:Tensão na forma literária e promessas de integração social

Grande sertão: veredas e Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa: similaridade

estrutural e dilemas da modernização

Orientador: Prof. Dr. Homero AraújoAutora: Mariana KlafkeBolsista CNPq

Kathrin Rosenfield, em Grande sertão: veredas – Roteiro de leitura, propõe a leitura de GSV a partir do estabelecimento de sete sequências narrativas. A proposta de interpretação é de que cada sequência pode ser definida por uma pergunta norteadora, que orienta aquele trecho da narrativa.

•Primeira sequência (p. 9-86): “Qual é o princípio ordenador do universo?”

•Segunda sequência (p. 86-160): “Qual é a causa dos acontecimentos, do medo e do mal?”

•Terceira sequência (p. 160-234): “O que significa ser jagunço?”

•Quarta sequência (p. 234-237): “O que é saber tudo?” – suspensão reflexiva, para “amarrar” o que passou e apontar o que vem a seguir, “parêntese metanarrativo”, orienta a atenção do leitor

•Quinta sequência (p. 237-320): “O que é um sujeito?”

•Sexta sequência (p. 320-401): “O que está no fundo da desordem?”

•Sétima sequência (p. 401-460): “De que trata a estória?”

Em Desenveredando Rosa, Kathrin Rosenfield retoma esse raciocínio: o fluxo aparentemente ininterrupto da narrativa em GSV está marcado por modificações formais e temáticas que permitem estabelecer sete sequências, ordenando o texto primeiramente através de uma divisão mediana.

A autora estabelece comparação entre Grande sertão: veredas e Primeiras Estórias em termos de temática e estrutura. As Primeiras Estórias seriam uma espécie de modulação de temas fundamentais de Grande sertão: veredas e também estariam ordenadas através de uma divisão mediana, o conto “O espelho”, que guarda grandes semelhanças com Grande sertão: veredas. Ambos, Grande sertão: veredas e “O espelho”, são construídos em torno de um virtual diálogo, lidando com a perplexidade diante do enigma da identidade.

Kathrin Rosenfield propõe ainda um esquema de construção arquitetônica de Primeiras Estórias, algo talvez análogo ao esquema de leitura proposto para Grande sertão: veredas, mas aqui menos como progressão rítmica e mais como esqueleto que sustenta a estrutura. Além da divisão mediana, “O espelho”, Rosenfield aponta para a importância de duas tríades: os contos 1 – 11 – 21 (“As margens da alegria”, “O espelho”, “Os cimos”) e os contos 6 – 12 – 17 (“A terceira margem do rio”, “Nada e a nossa condição”, “A benfazeja”).

Em O lugar do mito, tese de doutoramento, mais especificamente no capítulo “As formas do espelho – dilemas da representação”, Ana Paula Pacheco propõe uma análise de “O espelho” que aponta para sua importância na leitura de Primeiras Estórias, já que o conto gira em torno de uma questão central à poética rosiana – a pergunta pela identidade.

Além disso, a autora indica o descompasso entre este conto e o restante de Primeiras Estórias. Diferentemente dos outros contos, “O espelho” se passa em contexto urbano: o narrador-protagonista, vindo do interior, narra algo como uma experiência de perda de identidade, que parece identificável com o novo contexto em que se encontra. A partir da visão de si como imagem monstruosa em um jogo de espelhos, inicia-se a obsessão por descobrir-se como sujeito único, fora da cultura, da História e da própria natureza.

Ana Paula Pacheco aponta que a estrutura de narrador em primeira pessoa falando a um interlocutor oculto em “O espelho” é simetricamente oposta ao que vemos em Grande sertão: veredas.

A forma aparente do discurso traz semelhanças com a do romance (um narrador que finge não saber narrar e assim produz pausas e suspensões que propiciam a revelação final; a valorização das qualidades do interlocutor; as perguntas a ele dirigidas), semelhanças reperspectivadas, entretanto, pelo contexto de um discurso apenas na aparência aberto a réplicas. Ao longo da narrativa, o pensamento do interlocutor não está presente, mas pressuposto e rebatido por todos os lados, de modo que a situação de falar a um outro especular – e que deve permanecer mudo – repõe na estrutura narrativa a duplicidade, e não a alteridade. Trata-se de um falso diálogo, como se ainda fosse preciso olhar-se num espelho: também desse duplo é preciso se livrar para poder ser “eu” (PACHECO, 2006, p. 231, grifos da autora).

Homero Araújo, em artigo intitulado “A terceira margem sobre a qual se equilibra Riobaldo”, propõe uma análise de Grande sertão: veredas apontando para uma espécie de luto pela pátria arcaica perdida para a modernização, questão já apontada por Kathrin Rosenfield.

Porém, Araújo indica que o contraste entre arcaico e moderno não aponta conflito em Grande sertão: veredas, justamente devido à posição conciliatória do narrador Riobaldo, ex-jagunço e sertanejo relativamente letrado, nem arcaico nem moderno, que se desenha, assim como sua história, como travessia.

A chave de leitura proposta por Homero Araújo é de que seja possível entrever alguma utopia na obra rosiana, de um Brasil em que arcaico e moderno se harmonizem, em uma espécie de progresso inocente (retomando a expressão de Roberto Schwarz) presente na promessa de felicidade já enunciada pelos contemporâneos da Bossa Nova, por exemplo.

Após expor brevemente esses argumentos, gostaria de propor um passo adiante no raciocínio interpretativo, trazendo Primeiras Estórias também para este quadro da modernização brasileira. Se Grande sertão: veredas guarda certo caráter utópico conciliatório, em Primeiras Estórias não podemos apontar o mesmo efeito. Mesmo com as semelhanças estruturais e temáticas apontadas por Kathrin Rosenfield, podemos perceber, a partir da análise de Ana Paula Pacheco, especialmente, o quanto em Primeiras Estórias há outra noção do moderno, que agora aponta para o conflito.

Se nos anos 50 havia um cenário cultural brasileiro voltado em boa medida para uma espécie de utopia de progresso inocente (retomando expressão de Roberto Schwarz) e de um Brasil moderno em que se conciliassem a cultura rural e urbana e o projeto nacional-desenvolvimentista e se formasse uma nação integrada (cenário no qual podemos incluir Rosa, conforme, por exemplo, o raciocínio de Fernando de Barros e Silva, apontado por Homero Araújo), nos anos 60 a utopia parece não estar mais no horizonte, com agitações políticas constantes e o desenlace no golpe militar de 1964.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Homero José Vizeu. “A terceira margem sobre a qual se equilibra Riobaldo”. Conexão Letras - História, linguística & literatura, Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, v. 6, n. 6, 2011, p. 55-62.

PACHECO, Ana Paula. O lugar do mito: Narrativa e processo social nas Primeiras estórias de Guimarães Rosa. São Paulo: Nankin, 2006.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1958.

ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. 14. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. Desenveredando Rosa – A obra de J. G. Rosa e outros ensaios rosianos. Rio de Janeiro: Topbook, 2006.

ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. Grande sertão: veredas – Roteiro de leitura. São Paulo: Editora Ática, 1992.

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