formulações identitárias nas páginas de o clarim da alvorada
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Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008
ISBN - 978-85-61621-01-8
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Reinventando a raça:
formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada
Flávio Thales Ribeiro Francisco1
Resumo
A minha pesquisa analisa o modo como notícias e imagens de experiências negras dos
Estados Unidos e da África foram utilizadas no jornal O Clarim da Alvorada (1924-
1932) para criação de um projeto de ascensão social para a população negra de São
Paulo. Este periódico, que tinha grande notoriedade entre a imprensa negra paulista, se
preocupou em entender o lugar do negro na sociedade brasileira. Nesse sentido, as
estratégias políticas de negros norte-americanos e africanos serviam como referência
para a organização política dos negros paulistanos. Essas informações chegavam aos
jornalistas através de duas publicações da imprensa negra norte-americana, The Negro
World e Chicago Defender. A autodeterminação dos negros norte-americanos e a luta
pela descolonização das nações africanas eram tomadas como exemplo para a ação dos
negros em São Paulo. Por outro lado, as políticas de segregação racial nos Estados
Unidos eram reprovadas, o que valorizava o projeto dos jornalistas do O Clarim da
Alvorada de luta pela assimilação da população negra à sociedade brasileira.
No mês de janeiro de 1924, surgia o jornal O Clarim da Alvorada, criado por
Jayme de Aguiar e José Correia Leite. O periódico fez parte do que muitos autores
trataram como imprensa negra paulista, um conjunto de jornais editados por jornalistas
negros e voltados para os negros da cidade e do Estado de São Paulo2. Já no ano de
1915, eles circulavam pelas cidades para trazer aos seus leitores informações
relacionadas principalmente aos clubes sociais da população negra. Os jornais
1 Mestrando do Programa de História Social da Universidade de São Paulo. E-mail: ffrancisco@usp.br
2 FERRARA, Miriam Nicolau. A imprensa negra paulista (1915-1963). São Paulo: FFLCH/USP, 1986.
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estampavam imagens dos sócios mais ilustres destas instituições e publicavam notas de
solenidades e outras atividades recreativas.
Apesar da condição de pobreza de grande parte dos negros que viviam na cidade
de São Paulo, a publicação de artigos tratando da penúria destes e do preconceito de cor
não eram freqüentes. Contudo, os jornalistas não deixavam de chamar a atenção para a
necessidade do negro se educar e andar bem trajado para que pudesse ser visto com
bons olhos pelos outros. Os historiadores e pesquisadores de outras áreas trataram essas
edições como uma primeira etapa da imprensa negra paulista, uma espécie de ensaio
para periódicos com abordagens deliberadamente política que viriam pela frente.
Nesse sentido, O Clarim da Alvorada inaugura uma nova fase dessa imprensa
que, se sempre teve uma carência de recursos financeiros, pelo menos naquele momento
passou a contar com jornais estáveis e com uma tiragem maior do que a das publicações
da fase anterior. Ao invés de se restringir ao universo dos clubes sociais dos negros da
cidade, o Clarim procurou trazer notícias e opiniões de negros intelectualizados que
problematizavam o papel do negro na sociedade brasileira.
No primeiro número do jornal, os editores deixam claros os objetivos do
periódico e as questões que envolveriam as notícias e os artigos publicados em suas
páginas. Moyses Cintra, por exemplo, fala da cidade de São Paulo como a terra de
progresso, indústria e comércio, lugar onde o negro, para se inserir socialmente, deveria
imitar os seus patrícios. A mensagem do autor não se restringia a uma receita para que
os negros pudessem buscar as suas estratégias individuais, era necessário que todos
tivessem unidos em torno de uma causa comum: o progresso intelectual e moral. Nesta
mesma edição, José Correia Leite volta a fazer referência à união dos negros paulistas
que vivem em um ambiente marcado pela miséria e pelos vícios, em completa
desorganização3.
As opiniões publicadas nas páginas do O Clarim da Alvorada são na maioria das
vezes relacionadas ao papel da população negra na construção da nação brasileira. O 3 O Clarim (São Paulo, 6 de janeiro de 1924).
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argumento dos jornalistas e colaboradores que escrevem para o jornal é o de que, apesar
da abolição da escravatura, o negro não se integrou à sociedade brasileira de maneira
satisfatória. Mesmo com a liberdade em mãos, ele não soube se preparar para uma nova
fase que exigia, sobretudo, uma mudança nos seus valores morais, voltados para a ética
do trabalho no universo capitalista.
Assim não deixa de ser comum a idéia de que a população negra do período pós-
abolição vivia em condições semelhantes ou piores do que as da escravidão. Alguns dos
textos publicados no periódico sugerem que a geração de jovens negros da década de
1920 coloca em risco todo o legado das gerações anteriores. Tanto os escravos como os
abolicionistas negros são considerados como heróis e representantes de um patriotismo
negro que perde o seu significado a medida que a mocidade preta de São Paulo
mergulha em vícios como a bebedeira e a vadiagem.
Os jornalistas do O Clarim da Alvorada e os ativistas do movimento negro que
se formara na década de 20 se apresentaram como uma liderança para elevar o moral
dos negros da cidade de São Paulo. Esse grupo se organizou a partir da criação do
Centro Cívico Palmares no ano de 1926, espaço onde se reuniam e discutiam a questão
racial. No periódico, José Correia Leite e Jayme de Aguiar defendiam uma disciplina
rígida para o comportamento dos negros, que deveriam usar a educação formal como
um meio de assimilar os valores vigentes da elite paulistana. A instrução, nesse sentido,
era o elemento primordial para a ascensão social dos negros da cidade de São Paulo.
O processo de integração dos negros brasileiros, entretanto, não viria somente
com a aquisição de uma boa educação e a conquista de um bom emprego. Era
necessário também que a população negra brasileira fosse também reconhecida como
parte fundamental da nação brasileira. Aqui é necessário lembrar que as idéias racistas e
evolucionistas ainda condicionavam de maneira profunda o pensamento de intelectuais,
determinando o uso de políticas oficiosas contra as populações negras do país. Nesse
sentido, o trabalho dos militantes negros do período era o de criar uma imagem digna e
modernizada do negro brasileiro, ou uma imagem que fosse completamente dissociada
da natureza degradada da escravidão
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Ao fazer a análise da política entre os negros de São Paulo, a historiadora Kim
Butler identificou um projeto comum entre as diferentes posições das lideranças do
movimento negro do período: uma integração social que deveria ser encaminhada
através da união entre os negros. Diferente das estratégias paternalistas de ascensão
individual e da criação de uma nação negra dentro de outra nação, como havia sido o
caso dos norte-americanos, os negros paulistas achavam necessária a criação de
instituições negras que pudessem auxiliá-los na integração material e moral à nação4.
Na edição de junho de 1924, Moyses Cintra fala da educação e da necessidade de uma
sociedade beneficente para negros:
Dentre taes promessas que os senhores leitores tiveram a opportunidade de ler, em nossos números passados, é que sempre temos preoccupado proclamar que necessitamos formar sociedades beneficentes, educativas para que, não vivamos por mais tempo em completo atrazo, como até presentemente.
Tudo isso por causa do nosso desleixo... Portanto, quanto antes devemos pensar que não temos sociedades que tratem dos nossos interesses, que é de crenças uma verdadeira união. Creio que não há entre outras raças de povos civilisados, homens to crentes e divertidos como há em nossa.5
Era através de associações de ajuda mútua e de ações cívicas que valorizavam os
negros mais ilustres da história do Brasil que a população negra mostraria o seu preparo
para tomar parte da uma nação que se formara a partir da união de três raças6. Nesse
sentido, além de tirar aqueles mais pobres das ruas e livrá-los do processo contínuo de
degradação, era necessário que os jornais como o Clarim publicassem a biografia de
figuras que serviriam de exemplos a serem seguido pelos seus leitores. Entre elas as
mais comuns eram as de abolicionistas negros como André Rebouças, Luis Gama e José
do Patrocínio. Além de valorizá-los como negros letrados com circulação em ambientes
freqüentados por políticos ilustres, o jornal os tratava como símbolos da história
nacional.
4 BUTLER, Kim D. Freedoms given freedoms won: afro-brazilians in post-abolition São Paulo and Salvador. New Brunswick/New Jersey/ London: Rutgers University Press, 1998.
5 O Clarim (São Paulo, 22 de junho de 1924).
6 O Clarim (São Paulo, 12 de outubro de 1924).
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À medida que os artigos publicados no Clarim discutiam o lugar do negro na
sociedade brasileira, um fenômeno paralelo se manifestava nas páginas do periódico: a
idéia de uma coletividade negra, o discurso de pertença à nação era acompanhado pela
expressão de uma identidade negra paulistana. O clamor pela a união dos negros de São
Paulo se associava a divulgação de eventos políticos e recreativos de clubes sociais
organizados pelos negros paulistanos, o que configurava uma rede de informações que
circulavam entre a comunidade negra da cidade de São Paulo. Além disso, havia uma
variedade de termos utilizados para se referir aos negros brasileiros, paulistas e
paulistanos: irmãos de raça, patrícios, negros, pretos, homens de cor, família negra,
entre outros.
Entre todos eles, chama a atenção o modo como o termo raça é usado em
demasia, não somente em alusão aos negros como também à sociedade brasileira. O uso
da raça nos permite compreender as bases que definiam a identidade dos negros nas
páginas do Clarim. Aqui o termo não se refere a uma identidade política ou cultural
compartilhada pelas vítimas do preconceito de cor, e sim a um grupo racial. Aqueles
que se identificavam como irmãos de cor, acreditavam que, de uma forma ou de outra,
estavam ligados de forma sangüínea a todos os descendentes de africanos e escravos. O
conceito de raça que aparece nos editoriais e artigos do Clarim ainda carrega um sentido
biológico, como era comum naquele período.
Sendo assim, a integração dos negros, pelo menos no modo como aparece nas
páginas do periódico, envolve não somente a questão da cidadania política, mas também
incorporação da raça negra à raça brasileira. Assim como a narrativa das três raças se
apresentara na obra de outros pensadores e intérpretes do Brasil, aqui ela se manifesta
como um estágio inconcluso. Cabe aos negros se organizarem política e
economicamente para tomar parte de um espaço ainda não preenchido. Se o negro
brasileiro ainda não está integrado, a maior parcela da culpa é do próprio por não se
dedicar à educação e ao trabalho.
O Clarim se apresenta como um órgão de divulgação dos valores necessários
para a participação dos negros na sociedade capitalista que havia se estruturado no
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Estado de São Paulo. O periódico publica as vozes de lideranças negras que tentam
recuperar um suposto legado abolicionista, um projeto de nacionalização da raça negra
brasileira que se perdeu durante o período da República.
As páginas estão repletas de imagens e homenagens aos abolicionistas. A
princesa Isabel, por exemplo, é considerada como a redentora da raça negra. A
assinatura da Lei Áurea é o resultado da luta dos heróis abolicionistas, uma falange de
patriotas que reconheceu o valor do trabalho dos escravos africanos na construção da
nação brasileira7. No artigo O negro para o negro de julho de 19288, José Correia Leite
revela a sua admiração pelo abolicionista José do Patrocínio, figura emblemática do
abolicionismo brasileiro. Segundo Leite, o abolicionista colocou a causa da raça negra
acima de seus interesses particulares, um exemplo que deveria ser seguido pela sua
geração. Os ideais de Patrocínio, e outros grandes abolicionistas, se expressaram através
de um compromisso com a raça negra que foi quebrado no período pós-abolição, “a
legítima proteção do branco não veio totalmente ao encontro da raça negra do Brasil,
porque depois que o negro deixou de ser a formidável máquina produtora, ficou só,
parado na estrada do progresso”.
Imprensa negra norte-americana em O Clarim da Alvorada
Como é possível observar em algumas páginas do Clarim, a experiência dos
negros norte-americanos e os movimentos anti-coloniais no continente africano foram
fontes de inspiração para a representação do negro moderno no periódico. À medida que
os artigos publicados tratavam mais da questão de raça no Brasil e questionavam uma
suposta harmonia racial na sociedade brasileira, passavam a discutir também a
importância da política racial entre os negros dos Estados Unidos. O exercício de
comparação entre a condição dos negros brasileiros e a dos negros norte-americanos
ampliou o debate para fora dos limites territoriais do Brasil, levando os jornalistas a
tratar da questão do colonialismo europeu na África.
7 O Clarim da alvorada (São Paulo, 13 de maio de 1928)
8 “O negro para o negro”. O Clarim da Alvorada. São Paulo (01 de junho de 1928).
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As principais fontes sobre estes temas foram os jornais publicados pela imprensa
negra norte americana. Os jornalistas do Clarim recebiam exemplares do Chicago
Defender e uma versão traduzida do The Negro World. No ano de 1923, ao participar de
uma série de encontros com ativistas negros em São Paulo e no Rio de Janeiro, Robert
Abbot, editor do jornal afro-americano Chicago Defender, estabeleceu seus primeiros
contatos com jornalistas negros do Brasil. Como resultado deste evento, os brasileiros e
o editor passaram a trocar exemplares de suas publicações.
Já o jornal The Negro World, publicação do ativista negro de origem jamaicana
Marcus Garvey, chegou às mãos dos editores de O Clarim da Alvorada através de
Mario de Vasconcelos, um professor baiano de inglês interessado na ideologia do líder
jamaicano. Ele traduzia as edições do jornal e as enviava para São Paulo. O resultado
disto foi a introdução de uma coluna em 1930 no jornal sob o título de “O Mundo
Negro”.
Ou seja, a partir de 1924, várias informações relacionadas às experiências negras
fora do Brasil foram selecionadas no sentido de ajudar a delinear atitudes, ações,
compromissos e, por sua vez, uma identidade da população negra de São Paulo. Tudo
indica que a grande maioria das notícias publicadas sobre a vida dos negros nos Estados
Unidos e, curiosamente, na África vieram basicamente dos dois jornais afro-americanos
acima mencionados. O Clarim da Alvorada então usou estes periódicos como fontes de
informação, imagens e símbolos para refletir sobre a experiência dos negros de São
Paulo.
Não há dúvida de que a comparação entre os padrões de relações raciais
brasileiro e norte-americano não foi um fenômeno que se manifestou pela primeira vez
nas páginas do Clarim. Nas obras de Joaquim Nabuco e Nina Rodrigues já é possível
perceber a preocupação dos brasileiros em conduzir a integração do negro à sociedade
brasileira de modo a evitar a violência que se deu nesse mesmo processo na sociedade
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norte-americana9. Nesse sentido, a Guerra Civil e a Reconstrução norte-americana
apareceram como eventos definidores de uma diferença entre os dois países. O primeiro
evento desmontou a sociedade escravocrata no sul dos Estados Unidos no conflito entre
os estados sulinos e o resto da União. Já a Reconstrução foi marcada pelo processo
violento de integração do negro à sociedade norte-americana10.
Os resultados destes eventos, considerados pelos brasileiros como desastrosos,
ajudaram a delinear a já tradicional narrativa das três raças, presente desde a obra de
Francisco Adolfo Varnhagen, considerada como a primeira história do Brasil. Enquanto
o Brasil se transformara em uma nação com relações harmônicas entre negros e os
brancos, os Estados Unidos encaminhara para o segregacionismo, mantendo a
população negra distante dos recursos materiais e políticos para a reprodução de
riqueza. Mesmo com a presença da escravidão, e com a crença de inferioridade da “raça
negra”, os negros no Brasil ainda viviam em condições melhores do que a dos norte-
americanos.
A questão da diferença entre os dois países apareceu, naturalmente, nas páginas
da imprensa negra paulista. O Clarim não foi a primeira publicação a discutir tal
assunto, jornais publicados anteriormente já traziam uma pequena quantidade de artigos
que comparavam as experiências dos negros da América do Norte e da América do Sul.
Na sua edição de 28 de dezembro, por exemplo, A Liberdade publicou um artigo sobre
o preconceito contra a raça negra. O autor, que não se identifica, comenta sobre a
condição infeliz dos negros pelo mundo. Aqui a simples menção aos negros da nação
norte-americana serve para retratar uma experiência comum aos negros brasileiros e
norte-americanos. Mesmo vivendo em uma nação civilizada, os negros dos Estados
Unidos estão sujeitos às inconveniências do preconceito que afligem os brasileiros11.
9 Ver NABUCO, Joaquim. O abolicionismo: conferências e discursos abolicionistas. São Paulo: Progresso, 1929. Também ver RODRIGUES, Raimundo Nina. Os africanos no Brasil. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2004.
10 Para entender a abolição da escravatura nos Estados Unidos e a Reconstrução ver FONER, Eric. Reconstructon: America’s unfinished revolution (1863-1877). New York: Harper & Row, 1988.
11 “Hypocrisia da cor”. A Liberdade. São Paulo (28 de dezembro de 1919).
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No artigo mencionado acima o autor reconhece o preconceito de cor na
sociedade brasileira e enxerga semelhanças entre as experiências de negros brasileiros e
norte-americanos. Contudo, na coluna com o título Vagando, publicada na mesma
página, Matuto enfatiza as diferenças entre os conflitos raciais dos dois países. O autor
critica efusivamente os mulatos e negros de pele clara que não reconhecem a sua
identidade racial e procuram se afastar de suas famílias negras. Diferente do outro
artigo, Matuto nega veementemente o preconceito de cor na sociedade brasileira. Este
tipo de conflito é comum nos Estados Unidos onde “a luta é do branco contra o preto”.
No caso do Brasil, a preocupação do negro não deve ser dirigida aos brancos, de fato
eles não são preconceituosos, mas sim ao próprio preto que renega a sua “raça”12.
No Clarim, apesar de o jornal ter sido criado no ano de 1924, a primeira
referência aos negros norte-americanos aparece na edição de julho de 1925. Aqui, como
no artigo Hypocrisia da cor do periódico A Liberdade, a experiência dos negros dos
Estados Unidos é usada de forma a delinear uma narrativa histórica comum a todos os
negros do mundo13. Booker questiona a justificativa religiosa da diferença entre as
raças, que afirma que os negros fazem parte de um povo historicamente amaldiçoado.
Ele retorna aos tempos do Egito clássico para mostrar como na história da humanidade a
raça negra já havia sido soberana e criadora de conhecimento. Os brancos e outras raças
beberam muito dos ensinamentos dos negros, mas continuam a maltratá-los,
principalmente os “brancos selvagens da Norte América” que trucidam os negros de lá.
Este artigo deu início a uma série de outros que trataram do preconceito de cor
no Brasil, nos Estados Unidos e, conseqüentemente, em outras partes do mundo. Na
maioria das vezes, as experiências negras norte-americanas surgiram nas páginas do
jornal como um meio de caracterizar e, até mesmo, de mensurar a natureza harmônica
das relações entre negros e brancos no Brasil. Ao mesmo tempo que os jornalistas e
colaboradores do Clarim exaltavam o caráter pacífico das relações raciais do Brasil,
12 “Vagando”. A Liberdade. São Paulo (28 de dezembro de 1919).
13 “A raça maldita”. O Clarim da Alvorada. São Paulo (26 de julho de 1925).
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criavam um outro ambiente permeado pela violência racial que afligia a sociedade
norte-americana .
Na edição de novembro de 1926, Gervásio de Moraes, um dos principais
colaboradores do jornal, fez uma crítica contundente aos Estados Unidos. O jornalista
condenou o espírito intolerante dos cidadãos norte-americanos, que apesar de
responsáveis por grandiosas obras da modernidade, estão por trás dos espetáculos mais
violentos de conflito racial. “(...) em meio àquele progresso que assombra e àquela
civilização que intimida, desdobra-se o manto negro de ridícula intolerância”14. Moraes
defende que os negros brasileiros estão em vantagem em relação aos negros dos Estados
Unidos, pois não alimentam nenhum tipo de ódio em relação aos brancos.
Até o momento em que os artigos e notícias não contavam com as informações
vindas dos jornais negros norte-americanos, o debate em torno da diferença entre ser
negro nos Estados Unidos e no Brasil se restringiu a oposição entre um ambiente
violento e outro harmônico. Mesmo assim, ainda é possível encontrar alguns artigos
sobre a contribuição importante de inventores negros e a presença do Jazz entre os
bailes dançantes dos clubes recreativos negros da cidade de São Paulo.
Na edição de março de 1926, por exemplo, Booker apresentou aos leitores do
jornal os inventores do “primeiro relógio da América”, do auto-piano e de um aparelho
que registrava chamadas telefônicas. Ele deu destaque a Joseph Hunter Dickinson, que
além de ser inventor do auto-piano e portador de doze patentes, se revelara um
excelente empreendedor com sua grande fábrica de pianos15. Em um outro artigo nas
mesma página, um autor que se identificara como Tuta comenta como o Jazz e sua
estética “futurística” influenciou desastrosamente a juventude negra. Ele manifesta o
seu sentimento nostálgico ao criticar a atual geração que perde o seu tempo com uma
14 “A inquisição moderna”. O Clarim da Alvorada. São Paulo (14 de novembro de 1926).
15 “Negro!...”. O Clarim da Alvorada. São Paulo (21/03/1926)
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música barulhenta ao invés de valorizar os ritmos musicais que revelam “o lirismo do
verbo amar”16.
O debate em torno da experiência negra nos Estados Unidos ganharia novos
contornos em 1928. A partir desse ano é que é possível perceber a prática jornalística
em torno desse tema. Embora a passagem do editor do Chicago Defender pelo Brasil
tenha acontecido no ano de 1923, o intercâmbio de informações entre o jornal norte-
americano e o Clarim só apresentou seus resultados alguns anos depois. A primeira
referência que se faz ao jornal de Robert Abbot nas páginas do Clarim somente é feita
em 1926 como resposta a artigos publicados no Chicago Defender. Gervásio Moraes
relembra a passagem de Abbot pelo Brasil para fazer uma crítica à falta de sensibilidade
do editor norte-americano à realidade brasileira. Ao que tudo indica, o jornalista
brasileiro teve acesso a esses artigos publicados no Chicago Defender em 1923. Moraes
condena Abbot por não se preocupar em aprofundar o seu conhecimento sobre o Brasil,
já que o jornalista da “América irmã” retornou ao seu país e fez alguns comentários
inapropriados sobre alguns dos costumes dos Brasileiros. Sem especificar quais deles,
Gervásio Moraes acusa Robert Abbot de semear a intolerância racial norte-americana
no seio da sociedade brasileira17.
No que se refere à imprensa negra em geral, a primeira alusão ao Chicago
Defender se dá nos jornais O Kosmos e Getulino, respectivamente em abril e outubro de
192318. Nestas edições os jornalistas comentam a presença de Robert Abbot no Brasil e
seu interesse em conhecer um país onde negros e brancos convivem sem conflitos.
No artigo em que discute a alteridade no contato entre Abbot e os ativistas
brasileiros, o historiador Petrônio Domingues traz informações interessantes sobre o
jornalista norte-americano. Ao que parece, o objetivo de Robert Abbot não era somente
o de estabelecer uma aliança política com as lideranças de um suposto movimento negro
16 “Amor e jazz”. O Clarim da Alvorada. São Paulo (21/03/1926)
17 “A inquisição moderna”. O Clarim da Alvorada. São Paulo (14 de novembro de 1926).
18 Ver O Kosmos (São Paulo, 18 de Abril de 1923) e Getulino (Campinas, 21 de outubro de 1923).
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no Brasil, mas também o de avaliar o potencial da economia brasileira para investidores
afro-americanos19.
O Chicago Defender, que tinha uma distribuição nacional, era naquele período o
maior e o mais influente jornal afro-americano. Fundado no dia 5 de Maio de 1905 pelo
próprio Robert Abbot, o periódico se tornou um porta-voz importante contra a
segregação racial nos Estados Unidos. Além de denunciar a prática de linchamentos
contra a população negra, o Chicago Defender recomendava aos seus leitores do sul do
país que migrassem para os estados do norte, onde as oportunidades eram muito
maiores e o preconceito racial menos pernicioso20.
De acordo com Domingues, o Brasil se apresentara aos norte-americanos como
uma nova fronteira racial, um lugar onde o caminho para a ascensão social e o sucesso
econômico estava aberto para pessoas de qualquer raça. Nesse sentido, o território
brasileiro surgia como uma alternativa aos Estados Unidos. A tradicional propaganda de
“imigração negra” do sul para o norte do país poderia ser utilizada para divulgar o
paraíso racial brasileiro.
A projeção que o Chicago Defender tinha nos Estados Unidos, com uma tiragem
de 250.000 exemplares21, propiciou a Robert Abbot os recursos necessários para viajar
pela América do Sul e satisfazer o desejo de conhecer o progresso social do negro em
uma cultura latino-européia22. Da mesma maneira que os jornalistas do Clarim
reproduziam a imagem construída pelos brasileiros dos Estados Unidos como um país
19 DOMINGUES, Petrônio. “A visita de um afro-americano ao paraíso racial”. In: Revista de História. São Paulo, n. 156, 2007, pp. 161-181.
20 STREITMATTER, Rodger. Voices of Revolution: The Dissident Press in America. New York: Columbia University Press, 2001, 141-158.
21Ibidem.
22 DOMINGUES, Petrônio. “A visita de um afro-americano ao paraíso racial”. In: Revista de História. São Paulo, n. 156, 2007, p. 162.
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racialmente violento, Abbot foi induzido pelas imagens de um paraíso racial que
habitavam o imaginário de muitos norte-americanos23.
Mesmo sendo barrado em hotéis das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo,
Robert Abbot deixou uma boa impressão nos artigos que escreveu sobre a sua viagem à
América do Sul. Domingues supõe que o jornalista norte-americano tenha exagerado
propositadamente para despertar a esperança nos leitores do Chicago Defender que
viviam marginalizados mesmo após a abolição. O que faz o historiador afirmar tal
argumento é o fato de Robert Abbot ter promovido uma campanha para que os negros
norte-americanos se transferissem para o Brasil, país onde encontrariam o éden racial 24.
A mensagem de Abbot foi tão profunda que mobilizou um grupo que chegou a fazer o
pedido de vistos para a entrada no Brasil. Entretanto, como não era de se esperar de um
país de boa convivência racial, eles foram negados. O jornalista denunciou em seu
jornal o consulado brasileiro, contudo os vistos continuaram a ser negados durante toda
a década de 1920.
Ao que tudo indica, não houve um contato direto entre Robert Abbot e os
editores do Clarim. José Correia Leite, em sua autobiografia, faz um comentário acerca
da relação de seu jornal com o Chicago Defender, entretanto não entra nos detalhes
sobre o modo como os editores faziam o intercâmbio de exemplares25. A primeira
referência direta ao Chicago Defender enquanto parceiro foi feita em 1928, ano em que
José Correia Leite passa a dirigir o Clarim sozinho, sem a parceria com o Jayme Aguiar.
Na edição de setembro, o cônego Olympio de Castro, em um artigo especial ao Clarim,
fala do interesse de Robert Abbot numa homenagem à mãe preta 26. Castro reproduziu
23 Para entender a construção da idéia de paraíso racial brasileiro pelos norte-americanos ver SEIGEL, Micol. “Beyond compare: comparative method after the transnational turn”. In: Radical History Review, n. 91, 2005, pp. 62-90.
24 DOMINGUES, Petrônio. “A visita de um afro-americano ao paraíso racial”. In: Revista de História. São Paulo, n. 156, 2007, p 180.
25 CUTI (ed). …E disse o velho militante José Correia de oliveira Leite: depoimentos e artigos. São Paulo: Noovha América, 2007, pp. 77-79.
26 “28 de setembro: mãe preta”. O Clarim da Alvorada. São Paulo (28/09/1928).
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um trecho de uma carta enviada pelo próprio jornalista norte-americano que pedia aos
seus colegas mais informações sobre elevação da imagem da mãe preta ao nível de
símbolo de nacional27.
É justamente neste momento em que os contatos entre Robert Abbot e os
jornalistas brasileiros aparecem de maneira concreta nas páginas do Clarim que as
notícias sobre os Estados Unidos e o continente africano se tornaram mais freqüente. Na
edição de outubro, o Clarim traz dois artigos sobre a questão colonial na África. No
primeiro deles, os jornalistas do Clarim celebram o fim da escravidão na colônia
britânica de Serra Leoa. O artigo trata de um encontro da Liga da Nações em Genebra,
em que delegados discutiram um relatório sobre a escravidão no continente africano e a
ação dos ingleses que libertaram cerca de 200 mil escravos no protetorado britânico.
Num outro artigo, o Clarim trata dum encontro de ativistas africanos em Paris que
termina em tumulto. O autor, que não se identifica, destaca o perfil de Lunion, que
descreve como um “terrível agitador africano”, mas também como um culto discípulo
de Lenin. Através da trajetória de Lunion, ele traça um panorama do protesto dos
africanos contra os projetos colonialistas no continente africano28.
Assim como no caso de artigos sobre os Estados Unidos, o continente africano,
antes do intercâmbio com o Chicago Defender, ainda era tratado como um lugar mítico,
ou o lugar de onde vieram os ascendentes da população negra brasileira. Os comentários
tratavam basicamente da África como um lugar muito distante da civilização, onde as
pessoas viviam em cabanas e isoladas. A partir do momento em que o Chicago
Defender passou a ser usado como fonte, a luta dos países africanos contra o domínio
das nações européias passaram a ser o tema mais freqüente quando a África era citada.
Entretanto a fonte mais interessante no que se refere ao continente africano era o
jornal negro norte-americano The Negro World. A publicação serviu como instrumento
27 Na década de 20 e 30 O Clarim da Alvorada, junto com outras lideranças da política negra, promoveu uma campanha para consagração da Mãe Preta, esta representava as mulheres negras que pariram seus filhos escravos e amamentaram os filhos dos senhores de escravos.
28 “Tumultuosa assembléia de negros”. O Clarim da Alvorada. São Paulo (21/10/1928).
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de divulgação da organização pan-africanista de Marcus Garvey e foi o mais popular
dos periódicos negros entre as décadas de 20 e 30 do século vinte29. Garvey, um ativista
negro de origem jamaicana, se tornou conhecido pelo seu discurso de retorno à África.
De acordo com ele, na impossibilidade de se conquistar a cidadania nos Estados Unidos,
os negros norte-americanos deveriam regressar à terra de seus ancestrais. A perspectiva
pan-africanista de Marcus Garvey fez o The Negro World chegar ao Brasil, à Cuba, à
África do Sul e outras localidades habitadas pelas populações negras30.
Assim, o modo como a África foi construída nas páginas do Clarim já vem, de
certa forma, filtrada pelos olhares dos jornalistas negros norte-americanos. Esta África
não era um continente retratado pelos seus próprios habitantes, coube aos brasileiros
trabalhar sobre uma África “americanizada”31. Nesse sentido, não é estranho que a
Libéria, que durante os anos entre 1820 e 1947 foi tratada como uma espécie de
“refúgio para os ex-escravos dos Estados Unidos”, tenha ganhado destaque entre os
jornais negros norte-americanos e, conseqüentemente, no Clarim.
Ao que tudo indica o jornal brasileiro não fez a mera reprodução dos discursos
políticos dos jornais norte-americanos. A idéia de retorno à África, por exemplo, era
extremamente impopular entre as lideranças políticas da cidade de São Paulo. Contudo,
tanto o empreendedorismo de Robert Abbot quanto o de Marcus Garvey eram exemplos
positivos de organização política que, segundo os jornalistas do Clarim, faltava aos
negros da nação brasileira. Os jornais afro-americanos eram uma referência importante
de solidariedade racial e, mesmo que fossem concebidos em um contexto de violência e
segregação, serviam de recurso para se refletir sobre o processo de integração dos
negros à sociedade brasileira.
29Sobre o Pan-africanismo ver APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997; DECRAENE, Philipe. Pan-africanismo. São Paulo: Difel, 1962.
30Sobre a imprensa negra nos Estados Unidos, ver PRIDE, Armistead S. & WILSON II, Clint C. A history of the black press. Washington: Howard University Press, 1997.
31Para um trabalho sobre um periódico construído completamente através da seleção e condensação de artigos, ver JUNQUEIRA, Mary Anne. Ao sul do Rio Grande. Bragança Paulista: EDUSF, 2000.
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No período entres os anos de 1924 e 1932, o Clarim utilizou as experiências
estrangeiras de organização política de populações negras como um exemplo a ser
adotado e adaptado – ou mesmo rejeitado - para a coesão da população negra brasileira,
especificamente a população negra da cidade de São Paulo. José Correia Leite em uma
entrevista cedida no ano de 1983 afirmou:
No passado nós fizemos muitos esforços para entrar em contato com o negro norte-americano, porque sabíamos que eles estavam em posição de nos ajudarem, não só com seus exemplos, mas também com aquele calor racial de que a gente tinha conhecimento32.
Por outro lado, os conflitos raciais ocasionados por políticas de segregação
foram utilizadas nas páginas do jornal como um exemplo negativo para reforçar a
importância da organização da população negra em torno de um projeto de inclusão à
sociedade brasileira. Apesar da admiração pela luta dos negros dos Estados Unidos, o
ambiente extremamente conflituoso das relações entre brancos e negros no país era
muito mal visto pelos jornalistas negros do jornal brasileiro. Nas edições de novembro e
dezembro de 1928, o Clarim traz um artigo interessante sobre a história e a estrutura
organizacional da Klu-Klux-Klan, apresentada no jornal como “uma poderosa e cruel
sociedade que atua contra os negros da América do Norte”33. Este e outros artigos sobre
linchamentos de negros nos Estados Unidos são utilizados como contra-exemplos que
servem para se fazer uma reflexão sobre os cuidados que devem ser tomados para que a
política dos negros brasileiros não se transforme em um racismo às avessas.
Esse processo de incorporação de experiências negras estrangeiras à reflexão
sobre o “lugar do negro” na sociedade brasileira foi um jogo que envolveu momentos de
alteridade e de identidade. Se, por um lado, “os negros da América do Norte” eram
considerados como portadores de um ódio ao branco e vítimas de uma política
extremamente violenta, por outro eram negros, ou irmãos de “raça”, que se
solidarizavam e criavam instituições de excelência para a ascensão da população negra.
32Cuti (ed)...E disse o velho militante José Correia Leite. São Paulo: Noovha América: 2007, p. 207.
33 “Klu-Klux-Klan”. O Clarim da Alvorada. São Paulo (Novembro de 1928).
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Na edição de dezembro de 1930, José Correia cita os negros norte-americanos como
exemplo de perseverança:
Os americanos instruíram os negros, fizeram-lhe a educação, tornaram-se fortes, energicos, resistentes, trabalhadores prosperos. E a prova é que o negro dos Estados Unidos levanta a cabeça, tem audacia e desassombro, ao passo que o nosso negro bebe cachaça e morre... Nós com nosso sentimentalismo teríamos matado os dez milhões de negros que existem na América do Norte.34
Os brasileiros, de acordo Leite, estão longe de alcançar o nível de civilização
dos negros norte-americanos. Levando em consideração que o jornalista do Clarim é o
que mais enfatiza a necessidade de união entre os “homens da raça negra”, é possível
interpretar que existe uma série de valores necessários para participar de uma sociedade
moderna. Os negros norte-americanos, como faziam parte de uma república
desenvolvida, adquiriram tais valores. Já os negros brasileiros ainda não haviam tomado
a “consciência” de que a educação e o trabalho eram prioritários para a elevação social.
Nesse sentido a experiência negra norte-americana, apesar dos seus graves
problemas, apresentava modelos muito interessantes para serem seguidos pelos negros
brasileiros. Como a proposta apresentada no Clarim era relacionada a uma concepção de
negro moderno, o caso dos negros dos Estados Unidos servia como uma referência
importante. Os exemplos não eram somente políticos, mas também estéticos, no sentido
de oferecer uma imagem modernizada, distante daquela relacionada à escravidão.
Como resultado disso, aqueles heróis abolicionistas foram enquadrados em uma
narrativa maior, de uma identidade negra diaspórica que colocava lado a lado José do
Patrocínio e Frederick Douglass, ou Booker T. Washington e Luis Gama. Ou seja, junto
com a narrativa nacional se elaborava uma transnacional que reforçava o caráter
moderno do negro de São Paulo. A partir das páginas do Clarim se percebe que o
diálogo da população negra com a de outros países, sobretudo os Estados Unidos, surgiu
no início do século XX. 34 “Ensaios para a formação de uma grande cruzada de apostolização que a mocidade negra deve precisar – devemos formar nossa gente única, e deixarmos definitivamente as pequenas intrigas e os despeitos”. O Clarim da Alvorada. São Paulo (07/12/1930).
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A publicação do Clarim foi abreviada em 1933, após um longo conflito com a
Frente Negra Brasileira, eminente organização negra que se transformaria em um
partido político35. José Correia Leite e mais o grupo que comandava a jornal
questionavam a centralização da Frente Negra Brasileira nas mãos dos irmãos Arlindo e
Isaltino Veiga. Para revidar a contestação por parte dos jornalistas, a milícia da
organização invadiu a redação e destruiu todo o equipamento de impressão do jornal,
dando um ponto final à história de O Clarim do Alvorada de maneira violenta.
Fontes:
“Imprensa Negra” – IEB/USP
A Liberdade (1918)
O Clarim da Alvorada (1924)
O Getulino (1923)
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35Para conflitos entre lideranças do movimento negro, ver André Côrtes Oliveira, Quem é a “gente negra nacional”?: Frente Negra Brasileira e a Voz da Raça (1933-1937). Campinas, 2006. Tese (Mestrado): Departamento de História do IFCH-Unicamp. (Mimeogr.)
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