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  • So Paulo, domingo, 23 de novembro de 2008

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    artigo

    Comparao entre Brasil e EUA se baseia em caricaturas

    Para analista, novo presidente americano pode modificar auto-imagem de brasileiros

    NO BRASIL, ASSIM COMO EM PORTO RICO, A IDIA DE UM EUA RACISTA EMOLDURAVA UMA AUTO-IMAGEM DE SUPERIORIDADE MORAL

    A SEGREGAO FOI FCIL DE COMBATER: ERA UMA INJUSTIA EVIDENTE. A DISCRIMINAO SUTIL MAIS DIFCIL DE SER CONTESTADA

    JERRY DVILAESPECIAL PARA A FOLHA

    Me parece que a essncia das relaes raciais est na comparao.Quando eu era menino, em Porto Rico, me ensinaram que na minha ilha no havia discriminao racial: ramos um paraso onde brancos, negros e todos os que ficavam no meio conviviam tranqilamente. Podamos v-lo na praia, onde se viam casais formados por negros e brancos de mos dadas. A discriminao racial era um problema do norte, me ensinaram.Quando minha famlia se mudou para o norte, compreendi esse problema em primeira mo. Em Porto Rico, eu era branco e de classe alta.Nos Estados Unidos, era integrante de uma minoria tnica e fazia parte da classe mdia.Os administradores do meu colgio novo se negaram a acreditar que um porto-riquenho pudesse estar um ano adiantado em matemtica, ento me colocaram em aulas

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  • remediais, numa trajetria vocacional que me levaria a ser

    mecnico. Tive sorte por conseguir sair dela.

    Anos mais tarde, visitei o Rio de Janeiro pela primeira vez

    para aprender portugus, quando fazia meus estudos de ps-

    graduao. Vivendo em Ipanema, eu ouvia exatamente as

    mesmas coisas sobre relaes raciais que ouvira quando

    jovem em Porto Rico: aqui no existe racismo; isso algo

    que existe no norte. Veja as pessoas na praia etc.

    Mas eu tinha justamente dificuldade em conciliar o que me

    diziam com o que eu via. Era verdade que havia muita

    interao entre negros e brancos, mas eu via uma hierarquia

    que estava estampada nos corpos das pessoas de cor, cujo

    lugar na zona sul do Rio era determinado pelo uniforme que

    vestiam: a camisa azul do motorista de nibus, o uniforme

    branco da bab, o uniforme laranja do gari.

    CaricaturaNo Brasil, assim como em Porto Rico, a idia de um Estados

    Unidos racista emoldurava uma auto-imagem de

    esclarecimento e superioridade moral. Uma imagem caricata

    do supremacismo branco e da violncia racial naquele pas

    lanava uma sombra que ofuscava a discriminao

    sistemtica e a desigualdade em outras sociedades.

    Meu primeiro trabalho de professor "brasilianista" foi em

    Minnesota, no extremo norte dos EUA. No Norte do pas, os

    centros urbanos eram predominantemente negros, e as reas

    suburbanas e rurais eram majoritariamente brancas. Negros e

    brancos tinham muito pouco contato uns com os outros,

    diferentemente do Brasil. E, nesse ambiente de separao, os

    brancos viam o Sul dos Estados Unidos como exemplo de

    racismo.

    Pelo fato de o Norte no ter histrico de segregao, os

    nortistas se enxergavam como no sendo racistas e como

    moralmente superiores aos sulistas. Mas no era um

    ambiente em que os brancos se sentissem vontade na

    presena de negros ou vice-versa.

    Hoje eu leciono no Sul do pas, na Carolina do Norte, um

    Estado onde houve segregao racial. Paradoxalmente, esses

    lugares de segregao passada foram e so lugares onde

    negros e brancos interagem muito mais do que no Norte. Foi

    essa proximidade que moveu a segregao, estampando uma

    hierarquia social sobre pessoas que no eram separadas pela

    geografia, como eram no Norte.

    E, paradoxalmente, a segregao levou criao de

    instituies paralelas, com grandes contingentes de

    professores, advogados, corretores de seguros, funerrias e

    outras atividades profissionais e comerciais exercidas por

    negros, resultando num grau de ascenso profissional

    incomum no Norte.

    Em aeroportos de cidades como Charlotte e Atlanta, muito

    mais comum que no Norte ver cnjuges negros em carros

    caros, esperando para buscar viajantes a negcios negros,

    cuja profuso foi gerada primeiramente pelas instituies

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  • paralelas e, mais tarde, elevada pela ao afirmativa.

    No pretendo com isso minimizar a violncia fsica e

    psicolgica que a segregao imps s vidas dos negros no

    Sul dos EUA nem o drama violento e no-violento da

    integrao racial obrigatria no Sul. Mas o Sul mais

    complexo do que sua caricatura difundida em outras regies

    dos EUA, da Amrica Latina e do mundo.

    A segregao racial foi regional e temporalmente especfica.

    Ela existiu numa regio dos Estados Unidos durante oito

    dcadas que culminaram no movimento pelos direitos civis.

    Mas, como o apartheid, virou sinnimo de racismo. Isso

    um problema, porque o foco sobre a discriminao e a

    desigualdade ostensivas desvia a ateno da realidade mais

    onipresente da discriminao sutil e informal, que reproduz

    desigualdades nos EUA, no Brasil, em Porto Rico, na

    Europa.

    A segregao foi fcil de combater: era uma injustia

    evidente. A discriminao sutil mais difcil de ser

    contestada. Suas caractersticas so discretas, normalmente

    ocultas em outras coisas. Ela existe em valores informais e

    nas maneiras como as instituies distribuem oportunidades

    e recompensas. Est presente no vestibular brasileiro e em

    nossa verso dele, o SAT. E est entremeada em padres de

    desigualdade econmica.

    Modelo

    Ademais, o Sul dos EUA criou o quadro de referncia que

    permitiu que outros, em regies diferentes dos Estados

    Unidos e das Amricas, se construssem como

    comparativamente moralmente superiores e no tomassem

    conscincia e reconhecessem seus prprios padres de

    discriminao. A marca da segregao foi to forte que ela

    continua a definir o significado do racismo, meio sculo

    depois de ter terminado. Ela permitiu no apenas ao Brasil

    mas a Porto Rico e a Minnesota se construrem como

    democracias raciais.

    O prprio conceito de democracia racial sempre dependeu de

    uma comparao com o Sul dos EUA para funcionar, de

    modo que no surpreende que sua ressonncia no Brasil

    tenha perdido fora com o fim da segregao nos Estados

    Unidos. Quando Barack Obama foi eleito, ele conquistou

    maiorias dos votos em todo o Norte dos EUA.

    Significativamente, tambm ganhou em Estados do Sul,

    como Carolina do Norte, Virgnia e Flrida. Suas vitrias no

    Sul so um sinal de que, no obstante os legados da

    segregao, muitos sulistas brancos se dispem a votar

    segundo o imperativo de suas carteiras, e no de sua raa.

    Isso no muda a realidade da discriminao que perdura no

    Sul ou no resto dos EUA. Mas desloca o quadro de

    referncia.

    Ao longo de quase um sculo de segregao, e de meio

    sculo depois do trmino dela, os EUA e o Sul do pas

    permaneceram como smbolos de racismo contra os quais,

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  • comparativamente, outros povos puderam construir sua superioridade moral.Agora eleitores do Norte, do Sul, do Meio-Oeste e do Oeste dos Estados Unidos criaram um fato novo contra o qual se podem fazer contraposies. Ao lado do legado do supremacismo branco e da segregao racial, h tambm a capacidade de eleger um homem negro para presidente.Isso certamente reposiciona os pontos de comparao.

    JERRY DVILA , autor de "Diploma de Brancura -Poltica Social e Racial no Brasil" (ed. Unesp), entre outros, professor associado de histria da Universidade da Carolina do Norte em Charlotte.

    Traduo de CLARA ALLAIN

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