felicidade, morte e absurdo
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Felicidade, morte e absurdo
James Rachels Tradução de Pedro Galvão
Os filósofos antigos tiveram muito a dizer sobre a felicidade. Supunham que "a melhor
vida" e "a vida feliz" eram a mesma coisa, e geralmente aceitavam que a felicidade
consistia numa vida de razão e virtude. Epicuro (341-270 a. C.) recomendou uma vida
simples, de modo a evitar-se sofrimentos e ansiedades. Os estóicos acrescentaram que
um homem sábio não permitiria que a sua felicidade dependesse de coisas que
estivessem fora do seu controlo, como a riqueza, a saúde, a boa aparência ou as opiniões
dos outros. Não podemos controlar as circunstâncias externas, disseram, pelo que
devemos ser indiferentes as essas coisas, aceitando-as como aparecem. Epicteto (c. 55-
135), um dos grandes professores estóicos, deu este conselho aos seus estudantes: "Não
peçam que as coisas ocorram segundo a vossa vontade; façam que a vossa vontade seja
que as coisas ocorram como ocorrem de facto, e terão paz".
Algumas destas ideias podem parecer questionáveis, mas uma parte notável delas tem
sido confirmada pela investigação psicológica moderna. Consideremos, por exemplo, a
ideia de que a riqueza não traz felicidade. Dado que a maior parte das pessoas quer ser
rica, poderíamos pensar que há alguma correlação entre a riqueza e a felicidade. Mas
não há. Quando Ronald Inglehardt, cientista político da Universidade de Michigan,
comparou os níveis de riqueza de países diferentes com aquilo que as pessoas desses
países dizem sobre a sua satisfação com a sua vida, descobriu que as pessoas dos países
mais ricos não são mais felizes do que as dos países mais pobres. Por vezes acontece o
oposto: os alemães ocidentais têm o dobro da riqueza dos irlandeses, mas os irlandeses
são mais felizes. Dentro de países particulares, encontrou a mesma ausência de
correlação: as pessoas que têm mais dinheiro não são mais felizes do que as outras.
Portanto, ser rico não importa. As pessoas afectadas pela pobreza tendem a ser menos
felizes do que aqueles que possuem o suficiente para viver, mas, para quem está acima
da linha de pobreza, o dinheiro adicional faz pouca diferença. O psicólogo David Myers
observa que "Quando se ultrapassa a pobreza, o crescimento económico suplementar
não melhora significativamente o ânimo dos seres humanos".
Os estudos sobre vencedores de lotarias confirmam isto de forma notável. Como é
óbvio, os vencedores de lotarias ficam extremamente felizes quando sabem das boas
notícias e a euforia tende a durar alguns dias. Mas, passado pouco tempo, regressam ao
seu nível normal de felicidade. No essencial, as pessoas amuadas voltar a ficar amuadas.
Podem ser capazes de deixar o emprego e de comprar muitas coisas, mas, no que
respeita ao seu nível de felicidade, a riqueza recentemente adquirida não faz diferença.
Surpreendentemente, pode-se dizer algo semelhante das pessoas que sofrem desastres.
Para as pessoas que são essencialmente felizes, uma calamidade — mesmo que tenha
efeitos a longo prazo — pode causar uma descida momentânea de felicidade, mas elas
recuperaram depressa. Um estudo incidiu em vítimas de acidentes de automóvel de
Michigan que tinham sofrido danos na coluna. Três semanas depois, a felicidade
prevalecia novamente entre elas (ou pelo menos foi isso que disseram). Um estudo da
Universidade de Illinois descobriu que os estudantes sem deficiências e os estudantes
deficientes se descreviam em termos virtualmente idênticos: felizes durante 49 por
cento do tempo, infelizes durante 22 por cento do tempo e neutros em 29 por centro do
tempo. Os estudos sobre pacientes com cancro também não mostraram diferenças de
longo prazo entre os seus estados emocionais anteriores e posteriores ao diagnóstico.
Então o que tornará as pessoas felizes? Se não é a riqueza ou a saúde, o que será? Os
estudos indicam que a felicidade está correlacionada com várias coisas. Uma delas é o
controlo pessoal — ter controlo sobre a própria vida e destino, ou pelo menos acreditar
que se tem esse controlo. (Curiosamente, as pessoas que vivem em países democráticos
com imprensa livre declaram-se mais felizes do que aquelas que vivem noutros países.
Entenda isto como quiser.) Ter boas relações com outras pessoas, especialmente com os
amigos e familiares, também é vital. Um trabalho compensador é um terceiro elemento
de uma vida feliz: as pessoas que sentem estar a fazer algo com valor declaram-se mais
felizes do que as pessoas que não se ocupam de tarefas com sentido.
Num certo sentido, a felicidade sustenta-se a si própria, já que as pessoas felizes tendem
a comportar-se de formas que as mantêm felizes. Têm melhor opinião das outras
pessoas e são menos cínicas. Por isso, fazem amizades com mais facilidade. As pessoas
felizes são mais optimistas: quando se lhes coloca questões específicas sobre como
estão a correr as coisas, têm uma maior tendência para pensar que os seus automóveis e
televisões estão a funcionar bem. Têm também uma maior tendência para preferir
recompensas de longo prazo a satisfações imediatas, e ganham com isso, já que essa
geralmente é uma boa estratégia.
Podemos pensar então que, para sermos felizes, precisamos de controlar a nossa vida,
fazer amigos e procurar trabalho que tenha sentido. Isto pode ser verdade, mas há um
problema. Paradoxalmente, se valorizarmos estas coisas apenas enquanto meio para a
felicidade, elas não nos farão felizes. Não podemos procurar a felicidade directamente.
Em vez disso, temos de valorizar os amigos e o trabalho por si. A felicidade será então
um efeito colateral bem-vindo. John Stuart Mill declarou ter aprendido esta lição com a
sua depressão. Depois de ter recuperado, Mill compreendeu o seguinte:
Só são felizes (pensei) aqueles que fixam a sua mente num objecto que não a sua
própria felicidade, como a felicidade dos outros, o aperfeiçoamento da humanidade ou
mesmo alguma arte ou actividade, procurando-o não como meio, mas como fim ideal
em si. Tendo outra coisa em vista, encontram a felicidade pelo caminho. [...] Pergunte a
si próprio se é feliz e deixará de o ser. A única hipótese é tratar, não a felicidade, mas
outro fim que lhe seja exterior, como propósito da vida.
Morte
A ideia de que, num sentido mais amplo, mesmo uma vida feliz é absurda costuma ser
apoiada por duas ideias. Uma delas é que vamos morrer inevitavelmente; a outra é que o
universo nos é indiferente. Examinemos separadamente estas ideias.
Que atitude deveremos ter em relação à nossa mortalidade? Obviamente, isso depende
do que julgamos que acontece quando morremos. Algumas pessoas acreditam que irão
viver para sempre no paraíso. A morte, portanto, é como mudar para uma casa melhor.
Se acreditamos nisto, devemos pensar que a morte é boa, pois ficaremos melhor depois
de morrermos. Aparentemente, Sócrates tinha esta atitude, mas a maior parte das
pessoas não a tem.
A morte pode ser, pelo contrário, o fim permanente da nossa existência. Se assim for, a
nossa consciência extinguir-se-á e será o nosso fim. É importante compreender o que
isto significa. Algumas pessoas parecem presumir que a inexistência é uma condição
misteriosa, difícil de imaginar. Perguntam "Como será estar morto?" e ficam perplexas.
Mas isto é um erro. A razão pela qual não conseguimos imaginar como é estar morto é o
facto de estar morto ser como nada. Não conseguimos imaginar porque nada há para
imaginar.
Se a morte é o fim da nossa existência, que atitude devemos ter relativamente a isso? A
maior parte das pessoas pensa que a morte é uma perspectiva terrível. Odiamos a ideia
de morrer e estamos dispostos a fazer quase tudo para prolongar a nossa vida. Porém,
Epicuro disse que não devemos recear a morte. Numa carta a um dos seus seguidores,
defendeu que "A morte nada é para nós", já que quando estivermos mortos não
existiremos e, não existindo, nada de mal poderá acontecer-nos. Não estaremos
infelizes, não sofreremos (não sentiremos medo, preocupações ou aborrecimentos) e não
teremos desejos nem remorsos. Logo, concluiu Epicuro, a pessoa sábia não receará a
morte. Epicuro acreditava que, ao eliminar o medo da morte, estas reflexões filosóficas
podiam contribuir positivamente para a nossa felicidade durante a vida.
Há alguma verdade nisto. Ainda assim, esta perspectiva ignora a possibilidade de a
morte ser má por constituir uma privação enorme — se a nossa vida pudesse continuar,
poderíamos desfrutar de todos os géneros de coisas boas. Deste modo, a morte é um mal
porque põe fim às coisas boas da vida. Isto parece-me correcto. Depois de eu morrer, a
história humana prosseguirá, mas não conseguirei fazer parte dela. Não verei mais
filmes, não lerei mais livros e não farei mais amigos nem mais viagens. Se eu morrer
antes da minha mulher, não conseguirei estar com ela. Não irei conhecer os meus
bisnetos. Surgirão novas invenções e far-se-ão novas descobertas sobre a natureza do
universo, mas nunca irei conhecê-las. Será composta nova música, mas não irei ouvi-la.
Talvez venhamos a estabelecer contacto com seres inteligentes de outros mundos, mas
não saberei disso. É por esta razão que não quero morrer e que o argumento de Epicuro
é irrelevante.
Mas será que o facto de ir morrer torna a minha vida absurda? Afinal, diz-se, o que
interessa trabalhar, fazer amigos e constituir uma família se acabaremos por deixar de
existir? Esta ideia tem uma certa ressonância emocional, mas envolve um erro
fundamental. Temos de distinguir o valor de uma coisa da sua duração. Estas são
questões diferentes. Uma coisa pode ser boa enquanto dura, mesmo que não vá durar
para sempre. Enquanto controlaram o Afeganistão, os talibã destruíram diversos
monumentos antigos. Isso foi uma tragédia porque esses monumentos eram
maravilhosos, e o facto de serem vulneráveis não os tornava menos valiosos. Também
uma vida humana pode ser maravilhosa, mesmo que tenha de terminar inevitavelmente.
Pelo menos, o simples facto de que vai terminar não anula o valor que tenha.
James Rachels
Tradução de Pedro Galvão, retirada de Problemas da Filosofia, de James Rachels
(Lisboa: Gradiva, 2009)
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