favelas, pobreza e sociabilidade violenta. uma análise espacial
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Favelas, pobreza e sociabilidade violenta no Rio de Janeiro: uma análise espacial
Autor: Patricia Silveira Rivero Co-autor: Rute Imanishi Rodrigues
Prepared for delivery at the 2009 Congress of the Latin American Studies Association, Rio de Janeiro, Brazil June 11-14, 2009. LASA CONFERENCE 2009 Group: Urban Poverty and Citizenship Rio de Janeiro, 30 de Abril de 2009
1. Introdução
Nesta pesquisa nos propusemos a estudar os fatores que poderiam inibir ou estimular a
concentração de violência em determinados espaços da cidade, e verificar se a distribuição espacial da
violência estava relacionada à provisão de serviços públicos e às características das pessoas e
domicílios em determinadas áreas. Nossa hipótese de trabalho era que as favelas e outras áreas de
moradia precária seriam áreas especialmente vulneráveis como lócus de concentração das vítimas da
violência. Seguindo esta linha de investigação buscamos identificar as condições que poderiam facilitar
a vitimização, as atividades ilegais e/ou criminais em espaços territoriais de favelas e comparar estes
espaços com as características do resto da cidade.
Nosso método de pesquisa foi examinar a distribuição espacial das vítimas de homicídios na
cidade (o local de residência) e superpor essa distribuição a indicadores socioeconômicos, de serviços
urbanos e de tipo de moradia. Além dos locais de moradia das vítimas, foram identificados os espaços
onde ocorria a violência letal e outros tipos de violência, buscando relacionar os locais de residência
das vítimas com as áreas onde há concentração das ocorrências de criminalidade (tráfico de drogas,
violência policial, enfrentamento entre facções do tráfico, mortalidade policial, indicadores de
“produção policial”). Sempre que possível, foram estabelecidas relações entre as características
socioeconômicas das populações e dos territórios e foram identificados os espaços de favela e não-
favela.
2. Marco conceitual
Favela e sociabilidade violenta na cidade do Rio de Janeiro
A definição de favela não resulta de um debate técnico neutro, senão que é produto do conflito
gerado na disputa pela organização e domínio do espaço urbano. Dentro do debate sociológico, “favela
é uma categoria, um rótulo coletivamente construído, que é utilizado, manipulado, por certos grupos
que participaram de sua produção, como acontece com qualquer categoria coletiva” (Machado, 2004).
O termo favela como uma categoria social criada ‘de cima pra baixo’, definindo as condições de
trabalho, habitação e vida da parcela mais pobre da população que reside nesses territórios tem mudado
em diversas ocasiões (Machado, 2004; Valladares, 2005). 1
A discussão em torno do conceito de favela, associa-se ao estudo dos mecanismos de poder que
identificam os ‘excluídos’ ou ‘segregados’ do espaço social e territorial (Elias e Scotson, 1965;
Castells, 1999; Boltanski, 2002). Quem não se integra a coletividades sociais encontra-se isolado. Da
mesma forma que os “vagabundos” prévios à revolução industrial, os “miseráveis” do século XIX, os
destituídos de hoje, encontram-se nas margens da vida social e colocam em questão o conjunto da
sociedade afetando os que estão no centro da vida social.2 Portanto, o processo de construção de
identidade é parte da dupla hermenêutica (Giddens, 1986) onde a sociedade constrói uma interpretação
de quem está integrado e quem é excluído e os próprios atores sociais (os moradores de favela) definem
o que eles são por referência a essa interpretação social e também aos seus próprios valores,
reproduzindo através do habitus os mecanismos de dominação social (Bourdieu, 1989). Os atores
sociais são sujeitos e agentes da sua própria realidade e fazem uma auto-avaliação subjetiva das
próprias características, ou seja, o que eles têm para oferecer ao mercado e a representação do que eles
são na sociedade3 e dentro de seus territórios.
A separação existente entre os integrados e os excluídos assume sua representação no espaço
urbano sob a forma de segregação territorial. No caso das metrópoles brasileiras a divisão sócio-
econômica e cultural é manifesta através da separação entre as favelas e o resto da cidade e aprofunda-
se com o desenvolvimento de uma nova forma de sociabilidade nesse território denominada de
‘sociabilidade violenta’ (Machado, 2004). De acordo com estudos realizados, “está se processando nas
cidades brasileiras uma reorganização das expressões do poder exercido sobre territórios que aprofunda
a redistribuição hierarquizada do espaço urbano. Os principais operadores concretos desta
redistribuição territorial, além dos clássicos indicadores de pobreza, são o crime violento centrado no
tráfico de drogas e as instituições policiais, em particular a polícia militar” (Machado e Rivero, 2005).
Portanto, longe de haver uma representação ‘neutra’ das favelas, estas são percebidas como
ameaças à ‘cidade’, lugares de pobreza e marginalidade onde se concentra a ilegalidade e o crime
1 Machado da Silva, Antonio. “Solidariedade e sociabilidade violenta: verso e reverso da “moeda” memória”, ISER, 2004. 2 Castel, Robert. Op. Cit. p.13-21 3 Elias, Norbert & Scotson, John L. Os estabelecidos e os outsiders. Introdução, Pág. 20. Como Norbert Elias mostra na realizada numa cidade do interior da Inglaterra os diversos mecanismos de construção de identidade (fofocas, etc.), que passam pelas diferenças de poder, mais ainda quando se trata de determinar os conceitos de quem é excluído e quem está estabelecido.
(Leite, 2005). Essa percepção ajuda a aprofundar os estigmas que criminalizam a totalidade dos
moradores de favela, criminalizando a pobreza (Peralva, 2000). As políticas do Estado de ‘guerra
contra o crime’ acentuam a discriminação sofrida pelos moradores, os quais se esforçam sem êxito por
se diferenciar dos criminosos (Machado e Rivero, 2005). A acentuação desses estigmas renova os
limites sociais, simbólicos e reais à circulação dos moradores de favelas pelo resto da cidade e
aprofunda a segregação sócio-espacial (Leite, 2005).
Na medida em que se consideram as favelas separadas do resto da cidade, territórios em disputa entre
as diferentes bandas de criminosos, facções do tráfico de drogas e também os membros das polícias
corrompidos, acentua-se a exclusão, entendida como limites à cidadania civil, política e social
(Schwartzman e Reis; 2005).
Além disso, não cabe dúvida de que a favela estaria sendo a outra cara do asfalto, necessária e
funcional a este. Da favela, o asfalto extrai as suas empregadas domésticas e a massa de empregados
urbanos desqualificados que trabalham principalmente em serviços e no comércio. Também é no
asfalto onde se trafica e se consome a droga que chega na favela desde diferentes pontos do país ou
extra-fronteiras, desde donde se gerencia o tráfico, assim como onde se investe em negócios ilegais o
dinheiro que se ganha com a comercialização da droga (Claves/Fiocruz, 2000). Como o indica
Machado (2006): “as linhas de comando da cadeia produtiva das drogas ilícitas estão fora destas áreas
e, até mesmo, do território nacional...é sabido que a localização física do varejo está muito longe de
restringir-se aos espaços urbanos mais desfavorecidos que respondem apenas por uma maior
concentração deste tipo de atividade, tornando-a mais visível”.
O desafio é olhar para os moradores das favelas, os cidadãos integrantes da ‘cidade’, assim
como também identificar a heterogeneidade desta população, do ponto de vista de suas condições de
vida, características sócio-culturais e socioeconômicas.
Geralmente os estudos sobre segurança pública em favelas na cidade do Rio de Janeiro
focalizam na descrição e análise de situações de violência, seja através de dados de homicídios (Cano e
Santos, 2001; Phebo, 2003), estudando as operações policiais e a ação da policia (Cano, 1997; Soares,
2006) ou a participação de jovens no tráfico de drogas (Downey, 2003; Zaluar, 1992).
Este trabalho dá continuidade aos estudos já realizados e adiciona os dados georreferenciados
da “violência letal” (mortes por homicídio) na cidade do Rio de Janeiro, mostrando os locais onde as
vítimas de homicídio moravam, as condições socioeconômicas e urbanas desses locais e os lugares
onde são registradas as ocorrências de homicídios, as mortes de civis perpetradas por polícia e outros
crimes ou ocorrências que podem estar relacionados com essas mortes. Desta forma compomos um
panorama através de mapas da origem socioeconômica das vítimas do ponto de vista urbano/espacial e
dos locais onde mais acontecem crimes violentos. Da superposição destas informações podemos
mostrar como a violência está distribuída na cidade do Rio de Janeiro e como a população das favelas
são atingidas e integram esse quadro. Podemos estabelecer a relação entre pertencimento à favela e
probabilidade de se tornar vítima de homicídio mostrando os lugares de concentração de residências de
vítimas. Estes foram comparados como os lugares da cidade que não são favelizados mas que também
são atingidos ou fazem parte da rede de crime que gera tantas vítimas na cidade (Machado, 2008).
Finalmente, mostramos como os serviços de segurança pública (atividades da chamada “produção
policial”) estão distribuídos de forma desigual na cidade, favorecendo as áreas mais abastadas desta
com policiamento mais preventivo do que letal e contribuindo a acentuar a discriminação das favelas e
dos seus moradores já existente na cidade (Ramos e Musumeci, 2005).
3. Metodologia
Definição operacional de favela
Para termos certeza acerca das bases de dados que seriam utilizadas neste estudo era necessário
estabelecer os parâmetros da definição operacional de favela. Partindo do debate anterior, conhecer o
tamanho da população das favelas e suas características é imprescindível para a aplicação de qualquer
política pública.
Visando o trabalho empírico, considera-se elemento definidor de favela a ilegalidade da
propriedade da terra que os moradores ocuparam em um momento dado. Entretanto, essa definição não
é possível de ser conhecida através dos dados censitários, pois os moradores de favela declaram-se
proprietários do terreno onde moram. Segundo alguns estudos, o fenômeno de favelização acontece
quando ‘um conjunto de pessoas ocupa uma gleba ou terreno, para além de possíveis descumprimentos
das legislações edilícias e de uso do solo’ (Marques e Saraiva, 2004), embora isto também seja difícil
de ser levantado.
Por trabalharmos com a base de dados do Censo 2000, neste estudo utilizamos a definição
censitária de favela, conhecida como ‘conglomerado especial de aglomerado subnormal’, única que
permite uma maior aproximação empírica às condições nas quais vive a população de favela.4 No Rio
de Janeiro, os “aglomerados subnormais” podem ser adotados como referência para as informações
sobre favelas5, permitindo uma avaliação – ainda parcial, pois exclui informações sobre os loteamentos
irregulares e clandestinos de baixa renda - das mudanças ocorridas no acesso a serviços e à moradia
adequada em assentamentos precários. 6
Por este motivo também trabalhamos com as informações produzidas pelo Instituto Municipal
de Urbanismo Pereira Passos (IPP) sobre as favelas e os loteamentos. Estas informações combinadas
com as anteriores oferecem uma visão mais abrangente e aprofundada das características das favelas na
cidade.
Foram elaborados mapas dos setores censitários diferenciados em conglomerados subnormais
(favelas) e não-especiais (não-favelas) e a eles superpuseram-se os mapas gerados na base de dados do
Sistema de Assentamentos de Baixa Renda (SABREN) do IPP que disponibiliza informações
completas loteamentos e favelas. Realizaram-se mapas que juntavam num indicador sintético chamado
de “precariedade domiciliar” construído para este estudo, indicadores socioeconômicos dos moradores
e de serviços urbanos por setor censitário. Esse conjunto de dados mapeados apresenta distribuição
espacial das principais informações socioeconômicas que diferenciam as áreas da cidade e a
distribuição dos serviços urbanos na cidade.
Os dados criminais
A secretaria municipal de saúde organiza as informações relativas aos registros de óbitos
ocorridos no município do Rio de Janeiro que fazem parte do “Sistema de Informações sobre
4 Estudos mostram quais são os problemas da definição de aglomerados subnormais para acessar as informações sobre favelas, apesar de reconhecer que “a informação sobre setor subnormal nunca foi disponibilizada pelo IBGE como proxy de favela” e tem sido utilizada desta forma pelos estudiosos de políticas habitacionais (ver em: Assentamentos Precários no Brasil Urbano, CEM/CEBRAP, 2007; Uma metodologia para estimação de assentamentos precários em nível nacional, CEM/CEBRAP, 2008). 5 Estudo recentemente realizado pelo Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passo - IPP em 2006 constatou que a área ocupada pelas favelas cadastradas pela Prefeitura coincide bem com a dos aglomerados subnormais em 72% dos setores censitários e representa 80% da população residente nos aglomerados subnormais cariocas (IPP, 2006). Um estudo mais recente, mostra que para a RM do Rio de Janeiro há 80,1% dos aglomerados subnormais e 10,1% dos não-especiais e para a RM de São Paulo são 77,8% e 5,7% dos não-especiais que correspondem à classificação de “assentamentos precários” (CEM/CEBRAP, 2007). 6 O IPP, com base nos dados do SABREN – Sistema de Assentamentos de Baixa Renda, estima em 406 mil pessoas o total de residentes em loteamentos irregulares e clandestinos de baixa renda. Ver em:“A melhoria das condições de vida dos habitantes de assentamentos precários no Rio de Janeiro: uma avaliação preliminar da Meta 11 dos Objetivos do Milênio”, Fernando Cavallieri e Soraya Oliveira (Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro), Instituto Pereira Passos, dezembro de 2006.
Mortalidade (SIM)” do DATA-SUS, produzidas pelo Ministério da Saúde. Os dados sobre homicídios
utilizados neste trabalho referem-se aos óbitos por “agressões” (causas X85 a Y09 da CID-10) e óbitos
por “intervenções legais e operações de guerra” (causas Y35 e Y36 da CID 10), ocorridos entre os anos
2002 e 2006 com pessoas que residiam no município do Rio de Janeiro. Os óbitos ocorridos no
município de pessoas não-residentes no município, não foram considerados neste estudo. Os dados de
registros de óbitos produzidos pela Secretaria Municipal de Saúde informam sobre o local de residência
das vítimas e o local de ocorrência do óbito.
Cabe observar que os dados sobre a mortalidade por causas externas no município do Rio de
Janeiro apresentam um grau de “indeterminação” elevado. Em primeiro lugar, a proporção de óbitos
por causas externas que não é classificada como homicídios, suicídios ou acidentes é relativamente alta,
compondo 17% do total de óbitos por causas externas, classificadas como de “intenção indeterminada”.
Além disso, uma proporção importante do total de óbitos no município é classificada como causas “mal
especificadas”, ou seja, cerca de 8% do total de óbitos no município são registros para os quais a causa
da morte não foi esclarecida.7 Este grau de indeterminação das causas de morte leva, inevitavelmente, a
um grau de imprecisão das estatísticas sobre qualquer causa de mortalidade e, especialmente daquelas
relativas às causas externas que não é desprezível. Entretanto, a base de dados do SIM-DATA-SUS não
pode ser descartada por suas imperfeições, ao contrário, permanece como a principal fonte de dados
sobre mortalidade no Rio de Janeiro, assim como nos demais municípios do país.
A partir desta base de dados realizou-se um trabalho de georreferenciamento dos óbitos por
homicídios entre os anos 2001 e 2006 de acordo com o local de residência do falecido, dos quais 18%
do total não pode ser geocodificado pelos motivos antes mencionados. Os endereços geocodificados
foram localizados como pontos no mapa dos setores censitários do município, produzido pelo IBGE.
Os endereços não geocodificados apenas puderam ser localizados por bairro de residência (para aqueles
cuja informação sobre o bairro estava preenchida). A alta proporção de registros onde os endereços não
foram geocodificados está, em parte, relacionada à falta de endereço “oficial” dos moradores das
favelas da cidade. Praticamente nenhuma favela está 100% representada no mapa da cidade e, por isso,
é provável que parte importante dos registros de óbitos que não puderam ser geocodificados seja de
pessoas que residiam em favelas. O trabalho de georreferenciamento mostrou que há grande número de
7 Esses números são relativamente altos quando comparados a outros municípios. No município de São Paulo, onde existe há muitos anos um “programa de aprimoramento das informações sobre a mortalidade, PRO-AIM”, a proporção de óbitos classificados como “causas externas de intenção indeterminada” foi de 7,4%, e a proporção de registros sob a rubrica “causas mal especificadas” foi de 1,2%, no período 2002-2006.
óbitos nas vizinhanças das favelas da cidade, porém os registros de óbitos freqüentemente estão
localizados nas bordas das favelas, na área que a circunda.
Os lugares onde se concentram as “ocorrências do fato”, são detectáveis só a partir dos dados
que constam nos registros de ocorrência (ROs) da polícia civil, que reúne todas as informações sobre as
ocorrências criminais. A unidade geográfica de menor dimensão para os dados de polícia disponíveis
são as Áreas Integradas de Segurança Pública (AISPs) que estão compostas por diversos bairros. Como
não dispomos da base com os micro-dados da policia onde estão os endereços de ocorrência e sabemos
por diversos estudos de técnicos do Instituto de Segurança Pública que esses endereços não têm sido
registrados corretamente, havendo muitas imprecisões (Miranda, 2005; Dirk, 2007), remitimo-nos a
essas informações. Apesar de se tratar de unidades geográficas maiores do que os bairros, esses dados
reportam informações sobre os homicídios e sobre outro tipo de crimes por área, permitindo relacionar
o local de residência da vítima com o local de concentração de violência.
Outros indicadores de criminalidade e “trabalho policial” nos locais e sua distribuição espacial
também são incorporados, como a existência de apreensão de armas e drogas ou o número de crianças e
adolescentes apreendidos, pois eles podem estar associados à existência de crimes violentos.8
Focalizamos naqueles indicadores que podem estar relacionados a altos índices de letalidade.
Neste estudo combinamos diferentes técnicas estatísticas (elaboração de percentuais e taxas,
índices de probabilidade, índices de correlação) com a análise espacial através da elaboração de mapas
utilizando o softwere TerraView disponível para isto.
Na primeira parte foram mapeadas as residências das vítimas visualizadas como pontos no
mapa. Analisaram-se as taxas de mortes por homicídio por setor censitário, que também foram
mapeadas. Elaborou-se um mapa que combina as características socioeconômicas e urbanas dos
diferentes setores censitários da cidade, utilizando indicadores construídos a partir dos dados do Censo
2000, alguns deles projetados para anos mais recentes. Superpuseram-se a este mapa os locais onde
estão localizadas as favelas e loteamentos populares. Depois foi aplicado o estimador de kernel que
determina a intensidade dos eventos considerados no espaço. Neste caso através dele foi possível
identificar as áreas de concentração das residências das vítimas no território da cidade. Essas áreas
8 Segundo diversos estudos já realizados no Rio de Janeiro calcula-se que entre 65 e 70% dos crimes letais estão associados a tráfico de entorpecentes ou a conflitos gerados entre grupos de traficantes e polícia. Por outro lado, como mostrado neste relatório e em diversos estudos sobre violência no Rio a maioria dos homicídios é cometida por arma de fogo e a maioria das vítimas são homens, jovens entre 15 e 24 anos de idade (Phebo, 2005).
foram superpostas ao mapa com indicadores socioeconômicos e urbanos e de favelas e loteamentos
populares e determinou-se a correlação destas características com os locais de concentração de vítimas
por residência. As Áreas de Concentração de Vítimas (ACVs) por residência foram superpostas
também sobre dados mapeados por bairro das ocorrências de homicídio, outros crimes e “produção
policial” para cumprir com o objetivo de determinar a relação no espaço entre ACVs de homicídio.
Ainda ao redor das favelas e loteamentos que pertenciam às ACVs de acordo a sua residência foram
determinadas as áreas de influência através da operação de buffer dentro de um raio determinado de um
quilômetro. Desta forma se pode determinar por exemplo a proporção de pessoas que moravam em
favelas e em lugares próximos às favelas e estavam expostas à probabilidade de morte violenta.
Finalmente mapearam-se as taxas cada 100.000 habitantes por área de segurança para diferentes crimes
e indicadores de segurança (representados a partir das ocorrências chamadas de “produção policial”)
comparando-as com os locais de concentração de vítimas de homicídio.
No final do estudo identificam-se os principais problemas relativos à relação entre espaço
urbano e violência na cidade e propõem-se possíveis linhas de ação e políticas a serem desenvolvidas
no intuito de reduzir a violência.
4. Principais resultados
Como anteriormente exposto, a primeira operação consistiu em georreferenciar os locais de
residências das vítimas de homicídio para o período 2002 a 2006 e observar como estes se distribuem
no espaço da cidade. No mapa a seguir as vítimas estão representadas através dos pontos:
Mapa 1. Vítimas de homicídio por residência e número de habitantes por setor censitário no Município do
Rio de Janeiro, 2002-2006
Fonte: SIM/DATA-SUS; Censo 2000. Elaboração própria.
Como se observa no mapa, as áreas onde a superposição dos pontos é mais densa geralmente
coincidem com os setores censitários mais povoados. No entanto, ainda não é possível delimitar
claramente os lugares de concentração das vítimas. Essa combinação entre densidade demográfica e
concentração de vítimas remete-nos à teoria durkheimniana pela qual na sociedade moderna com o
crescimento da população e a divisão do trabalho social as relações se intensificam, podendo gerar
“solidariedade orgânica” ou anomia social.
Utilizando o estimador de kernel pode-se determinar a concentração de pontos dentro de
determinada área de influência (neste caso no raio de 1 quilômetro), ponderados pela distância de cada
um até o ponto que está sendo estimado. Desta forma obtivemos o número esperado de óbitos de
homicídio para cada setor censitário no período 2002 a 2006.
Ainda superpomos essa estimativa à distribuição das favelas e loteamentos na cidade obtendo o
seguinte mapa:
Mapa 2. Município do Rio de Janeiro: Intensidade da Violência e Localização das Favelas
Sobreposição entre áreas de violência e favelas.
O mapa 2 representa os setores censitários do município do Rio de Janeiro
agrupados de acordo com os quantis da distribuição do indicador de kernel, para 10 grupos.
Os setores com menor número esperado de vítimas (pontuação até 0.2) formam o primeiro
grupo e são representados pela cor branca e, assim por diante, até os 10% com maior
número esperado de vítimas, que estão representados pela cor vinho (pontuação maior que
2.6). É importante ressalvar que a maior parte das áreas em branco no mapa corresponde a
áreas não-urbanas, tais como áreas verdes, lagoas e outras áreas pouco ou nada habitadas.
Definimos como valor de corte para as áreas com maior número de vítimas o
estimador de kernel acima de 2.1, ou seja, os top 20% setores de acordo com a pontuação
de kernel representados pelas manchas em vermelho e vinho no mapa. Tais setores
doravante serão denominados como “áreas de concentração de vítimas da violência”, ou
abreviadamente “ACVs”.
Relação entre ACVs e características socioeconômicas e urbanas
De acordo aos critérios urbanísticos, a cidade do Rio de janeiro encontra-se
subdividida em Áreas de Planejamento Urbano (APs). Cada uma dessas áreas nucleia um
conjunto de bairros que geralmente compartilham as características urbanas e
socioeconômicas, como o mostra a tabela a seguir:
N (a) % N (b) %
Rio de Janeiro 5.857.904 100 1.092.476 100 18,65 90,67AP 1 - Classe Média Baixa - Centro histórico 268.280 4,58 76.787 7,03 28,62 92,63AP 2 - Classe alta e média alta - Área costeira e céntrica 997.478 17,03 146.538 13,41 14,69 94,98AP 3 - Classe média e baixa - próxima do subúrbio 2.353.590 40,18 544.737 49,86 23,14 93,91AP 4 - Classe alta e média alta - área rica em expansão 682.051 11,64 144.394 13,22 21,17 82,43
AP 5 - Classe baixa - subúrbio afastado 1.556.505 26,57 180.020 16,48 11,57 86,29
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Censo 2000 - Tabulação do Instituto Pereira Passos (IPP), Município do Rio de Janeiro, 2007.
Cidade do Rio de Janeiro. População Total, proporçã o da população em favelas e serviços urbanos, por Á rea de Planejamento e estrato de classe da área, 2000.
Área de Planejamento por principais estrataos de classes sociais
Total Population Favela's Populationa/b (%)
Population whit every urban services (%)
A maioria das mortes violentas encontra-se nas zonas norte e noroeste, ou Áreas de
Planejamento 3 e 5. Não obstante, chama a atenção uma alta concentração de vítimas no
centro da cidade (AP 1) e, secundariamente, algumas nas zonas sul e sudoeste, APs 2 e 4, e
na Ilha do Governador. O mapa com as ocorrências de morte por homicídio por ACV,
confirma isto.
Mapa 3
Esta disposição das áreas com maior número de vítimas mostra forte
correspondência com a disposição das favelas na cidade, como aparece no mapa que
sobrepõe a cartografia das favelas, produzida pelo Instituto Pereira Passos (IPP), sobre os
resultados do indicador de kernel. Com efeito, a maior parte das áreas em escuras no mapa
são áreas de favelas ou do entorno de favelas, sobretudo nas APs 1, 2 e 3. Outros tipos de
moradia precária, tais como conjuntos habitacionais, também aparecem dentro de áreas de
maior número de vítimas. Por exemplo, na AP4 a mancha em vermelho corresponde ao
conjunto habitacional Cidade de Deus.
O mapa mostra, ao mesmo tempo, que a coincidência entre favelas e áreas de maior
número de vítimas não é total, pois parte das favelas, sobretudo nas APs 4 e 5, não está
localizada nas ACVs.
Aqui tabela entre indicadores socioeconômicos e urbanos e favelas. E o gráfico
entre taxas de homicídio e favelas.
Precariedade domiciliar: favelas e não-favelas
O conceito de pobreza utilizado nesta seção é multidimensional, pois o indicador
construído inclui outras variáveis além da renda para aferir a condição de privação. Para
construir o indicador utilizamos 7 variáveis relacionadas com os seguintes fatores: a
qualidade do domicílio (i), o acesso aos serviços de saneamento básico (ii-iv), o nível
educacional do chefe do domicílio (v-vi) e, finalmente, a renda do chefe em salários
mínimos (vii). Denominamos este indicador de ‘precariedade domiciliar’ - P. A fonte dos
dados utilizada foi o censo de 2000, mais especificamente os dados agregados para cada um
dos setores censitários do município. As variáveis utilizadas são relacionadas a seguir:
i. Proporção de domicílios de tipo cômodo
ii. Proporção de domicílios sem acesso à rede geral de água
iii. Proporção de domicílios sem acesso à rede geral de esgotos ou fossa séptica
iv. Proporção de domicílios sem acesso a serviços de coleta do lixo
v. Proporção de chefes de domicílios analfabetos
vi. Proporção de chefes de domicílios com escolaridade inferior a oito anos de estudos
vii. Proporção de chefes de domicílios com renda inferior a três salários mínimos
Nosso indicador, P, representa a média simples destas 7 variáveis, por setor censitário.
Assim, quanto mais próximo de zero, menor a precariedade domiciliar e quanto mais
próximo de 1 maior a precariedade em cada um dos setores censitários do município.9 No
9 Apesar de pequenas mudanças com relação às variáveis incluídas e também quanto à forma do cálculo, o indicador de precariedade domiciliar guarda estreita semelhança com o IDS – índice de desenvolvimento social – elaborado pelo IPP para a cidade do Rio, com base nos dados do censo de 2000 por setor censitário Veja-se .Cavallieri, Vial, Lopes e Abreu.
restante desta seção consideramos os setores censitários subnormais como representativos
do conjunto de favelas da cidade.10
A tabela abaixo apresenta os valores do indicador de precariedade domiciliar para 10
grupos de setores (agrupados de acordo com os decis da distribuição de P), como também o
número e a proporção da população em setores comuns e em setores subnormais (favelas)
em cada grupo. Observa-se que 94% da população em favelas está entre os três piores
grupos em termos de precariedade e que nestes grupos as favelas representam entre 45% e
67% do total da população.
A tabela a seguir apresenta a média de cada uma das 7 variáveis utilizadas na
construção de P por decil do indicador. Observa-se que até o 4o grupo as variáveis
relacionadas ao saneamento básico (acesso à rede de água e esgotos/fossa séptica) são
praticamente zero, ou seja, tais serviços estão praticamente universalizados para este
conjunto de setores. A partir do 5o grupo a falta de saneamento básico já começa a ser
significativa e, nos últimos grupos, bastante importante. A partir do 7o grupo os chefes de
domicílios são predominantemente de baixo nível de educação e renda.
10 Há algumas diferenças entre o mapa das favelas produzido pelo IPP e o mapa dos setores subnormais do IBGE, porém, tais diferenças referem-se, sobretudo às favelas menores que, em geral, não aparecem entre os setores subnormais do IBGE.
Tabela 2. Município do Rio de Janeiro: População em setores de favelas e não-favelas por classes do indicador de precariedade domiciliar (P)
O gráfico abaixo representa no eixo horizontal os 10 grupos de setores de acordo
com o indicador de precariedade, P, e no eixo vertical a média do indicador de violência
(valores de kernel) para cada grupo. As curvas do gráfico representam os setores
subnormais, os setores comuns e o conjunto de setores do município (comuns e
subnormais). O gráfico mostra uma relação positiva entre os níveis de precariedade e os
Tabela 3. Município do Rio de Janeiro: Média das Variáveis Sócio-Econômicas por classes do indicador de precariedade (P)
Tabela 1. Município do Rio de Janeiro: Média das Variáveis Sócio-Econômicas por classes do indicador de precariedade (P)
níveis médios de violência até o 6o grupo. Note-se que até o 6o grupo a população em
favelas não é significativa e por isso a linha que representa os setores comuns coincide
praticamente com a linha que representa o total de setores.
Observando a curva que representa o total de setores, vemos que no 7o grupo de
precariedade há um ponto de inflexão, quando o indicador de violência cai, mas no 8o
grupo o nível de violência volta a subir, depois estabiliza-se no 9o grupo e cai fortemente no
10o grupo Em outras palavras, entre o 7o e o 9o grupo a relação entre a precariedade
domiciliar e a violência mostra-se a ambígua, e, entre o 9o e o 10o mostra-se nitidamente
como uma relação negativa, ou seja, de aumento da precariedade e redução dos níveis de
violência.
Observando a curva dos setores subnormais vemos que esta cresce entre o 7o e o 9o grupos
e cai fortemente entre o 9o e o 10o. Já a curva dos setores comuns cai fortemente a partir do
8o grupo. Estas trajetórias indicam que existe uma relação negativa entre a precariedade e a
Gráfico 1. Município do Rio de Janeiro: Precariedade Domiciliar e Violência
violência para os grupos mais precários, porém, entre os setores subnormais esta relação
não é tão clara, mostrando-se verdadeira apenas para os dois últimos grupos de setores.
Nota-se ainda que a partir do 8o grupo os níveis de violência nos setores subnormais são
sempre mais altos que os níveis de violência nos setores comuns, para os mesmos níveis de
precariedade. Em outras palavras, o gráfico revela que nos setores subnormais os níveis de
violência são mais altos, em média, que conjunto de setores precários do município.
O gráfico nos permite formular uma hipótese para explicar a relação entre a precariedade
domiciliar e os níveis de violência, qual seja: de que há uma relação positiva entre a
precariedade e a violência – ou seja, de aumento da precariedade e aumento da violência -
até um dado nível de precariedade. Isto equivale a dizer que, para o grupo de setores com
nível de precariedade relativamente baixo, quanto menos precário o setor censitário, menor
o nível de violência. Porém, a partir de um nível já elevado de precariedade – ou seja, entre
os mais pobres, esta relação torna-se ambígua, sobretudo porque os setores comuns e os
subnormais revelam trajetórias distintas. Por um lado, os setores precários que não são
subnormais tendem a apresentar níveis decrescentes de violência para cada nível de
precariedade. Por outro lado, os setores subnormais apresentam níveis de violência mais
elevados que a média dos setores precários e apenas apresentam uma tendência de declínio
dos níveis de violência do penúltimo para o último grupo de precariedade.
A maior parte dos setores precários e não-subnormais (acima do 7o grupo) encontra-se na
zona oeste da cidade, ou área de planejamento 5. É exatamente nesta área de planejamento
onde localiza se boa parte dos loteamentos irregulares/clandestinos da cidade. Assim, se a
nossa hipótese estiver correta, é possível que os níveis de violência nestes loteamentos
sejam mais baixos que os níveis de violência nas favelas de igual nível de precariedade
domiciliar. Já o conjunto de favelas que está no pior grupo em termos de precariedade
domiciliar, 10o grupo, e que também apresentam níveis de violência relativamente mais
baixos que as favelas com níveis menores de precariedade, estão mais espalhadas pela
cidade. Há neste grupo tanto favelas pequenas, mais distantes e isoladas (em áreas de
floresta, por exemplo), como também favelas em ambiente mais urbano e próximas de
áreas de intenso conflito.
Ocorrências de homicídios, outros crimes e “trabalho policial”
Como vimos, no Brasil há duas fontes principais pelas quais é possível estudar as
ocorrências de homicídios: o Ministério da Saúde que utiliza as declarações de óbito e
nestas o lugar onde ocorreu o óbito, e a Polícia Civil que utiliza os boletins de ocorrência
do fato. Ambas as fontes aportam dados sobre os homicídios, embora tratam das vitimas e
não dos criminosos. Essas fontes têm alguns problemas e não são comparáveis pois
trabalham com categorias classificatórias diferentes.
Os registros dos homicídios da saúde, baseados nos atestados de óbito, são mais
confiáveis pois o os municípios e estados são obrigadas a repassar as informações para o
Ministério da Saúde e existe uma Declaração de Óbito que é padronizada para todo o
território nacional. Um dos problemas sobre os dados das ocorrências registradas pela
saúde é que, diferente dos dados policiais, estes não têm informações sobre o local de
ocorrência “do evento” e sim do óbito. Isto significa que do ponto de vista do lugar
geográfico um evento pode ter ocorrido num bairro mas a morte da vítima pode ter sido em
outro local, incluídos os hospitais e/ou postos de saúde, onde esta foi levada.
Por esse motivo foram trabalhados tanto os dados de ocorrência de morte
registrados pela saúde como os locais de ocorrência do crime registrados pela polícia, cuja
análise outorga um panorama mais claro sobre a distribuição e freqüência criminal na
cidade. Estas informações foram relacionadas com aquelas das ACVs e a localização das
favelas, para poder determinar se realmente há uma superposição entre locais de resdiência
das vítimas, de ocorrência dos crimes e favelas.
O seguinte mapa mostra essa relação no espaço:
Das 751 favelas identificadas 444 pertencem às áreas de concentração das vítimas
de violência e às áreas de influência definidas pelo buffer, como aparece no mapa. As
favelas compreendidas sob essas áreas resultaram ser quase o 60% do total de favelas
registradas para a cidade do Rio de Janeiro pelo sistema SABREM/IPP em 2005. Portanto,
pode-se afirmar que a residência das vítimas de homicídio fica em áreas onde está
concentrada a maioria das favelas da cidade e pertencem aos bairros onde se registram as
maiores taxas de ocorrência de homicídios.
Nesta seção do relatório trataremos dos dados de homicídios que são registrados
pela polícia do Estado do Rio de Janeiro, através do preenchimento do Registro de
Ocorrência. Trata-se dos homicídios dolosos, latrocínios (roubo seguido de morte) e lesão
corporal seguida de morte. Nestes três casos assume-se á intencionalidade do fato.
Analisam-se por separado dos homicídios os ‘autos de resistência’ ou mortes de civis por
policiais em exercício do serviço, os quais serão relacionados à distribuição dos homicídios
e outros crimes no espaço territorial. Também incluímos outros crimes que podem ameaçar
a vida ou integridade física da pessoa como as ameaças. Uma categoria que não tipifica
crime mas que vem em aumento e tem sido vinculada à aparição de cemitérios clandestinos
é a de desaparição. Foram incluídos na análise os indicadores de “produção policial”: nº de
prisões, nº de prisões de criança e adolescentes, nº de apreensão de armas, nº de apreensão
de drogas e também os registros de mortes de policiais civis e militares mortos em serviço.
Uma das limitações que sofrem estas informações é relativa a unidade territorial,
pois os dados só estão disponíveis por Área Integrada de Segurança Pública (AISP), que é a
jurisdição onde se encontram os Batalhões de Polícia Militar e Delegacias de Policia Civil.
A seguinte tabela mostra os dados dos homicídios e outras informações criminais e
trabalho policial por AISP.
5. Considerações finais
Os resultados dessa pesquisa confirmam algumas hipóteses formuladas
anteriormente por pesquisadores do tema da violência no município do Rio de Janeiro. Em
primeiro lugar, constatou-se que há forte coincidência entre as áreas de favelas e outros
tipos de assentamentos precários e as áreas de maior número de vítimas da violência no
município. Em segundo lugar, nossa pesquisa também confirmou que a relação entre a
pobreza e a violência não é sempre positiva para níveis muito altos de pobreza. Mais
especificamente, os setores mais precários do município não são simultaneamente os mais
violentos.
Um resultado inesperado da pesquisa foi o de trazer evidências sobre as
conseqüências da falta de endereços oficiais da maioria dos moradores das favelas. Do
ponto de vista restrito à pesquisa ora realizada, essa falta de identificação “oficial’ tornou
Indicadores criminais (dados polícia) por AISP –
Município do Rio de Janeiro 2006
Taxa homicídios
p/AISP
Auto de Resistência
Policiais Militares Mortos
em Serviço
Policiais Civis Mortos em Serviço
Apreensão de Drogas
Armas Apreendidas
Prisões Apreensão de criança/adolescente
(ECA)
Ameaça (vítimas)
Pessoas Desaparecidas
AISP 1 78.7 24.5 1.0 0.0 233.0 217.6 375.0 8.2 481.3 54.2
AISP 2 16.0 3.7 0.0 0.0 54.5 79.3 203.5 22.9 315.3 21.5
AISP 3 33.4 19.0 0.2 0.0 86.8 167.5 98.5 12.6 306.7 30.2
AISP 4 73.5 24.5 0.0 0.0 1031.2 268.1 347.8 29.1 341.7 55.2
AISPs 5 e 13 109.4 7.3 0.0 0.0 972.0 377.5 1059.6 1.8 1765.3 193.3
AISP 6 24.4 13.4 0.8 0.0 38.0 96.3 110.0 15.0 284.8 15.0
AISP 9 59.7 17.6 0.1 0.0 61.0 158.9 84.0 12.0 428.0 39.3
AISP 14 47.8 9.7 0.1 0.1 41.5 77.0 55.9 7.6 243.6 19.6
AISP 16 36.5 13.5 0.2 0.0 31.6 114.9 50.0 5.1 268.5 26.7
AISP 17 25.6 12.0 0.4 0.0 36.7 68.8 65.8 17.1 213.5 14.1
AISP 18 26.7 5.0 0.6 0.2 26.9 33.4 60.7 5.2 348.9 18.2
AISP 19 14.3 3.4 1.4 0.0 228.9 63.2 258.8 36.0 431.4 35.3
AISP 22 47.3 15.8 1.7 0.0 175.5 90.0 144.0 24.9 228.2 37.8
AISP 23 15.0 8.1 0.8 0.0 67.1 63.8 163.0 20.7 210.9 21.5
AISP 27 63.8 9.1 0.0 0.0 47.3 50.3 109.7 13.5 398.3 35.5
AISP 31 20.7 0.4 0.4 0.0 67.3 49.1 128.2 10.1 495.7 23.5
AISP 39 48.8 2.0 0.3 0.0 14.6 137.1 57.0 5.0 428.9 24.6 Taxas médias 43.6 11.1 0.5 0.0 189.1 124.3 198.3 14.5 423.0 39.1
Taxas gerais 41.4 10.7 0.4 0.0 76.2 95.3 107.0 11.7 349.3 28.4
impossível aferir com precisão o número de mortos por homicídios dentro de áreas de
favelas. Inclusive, algumas favelas conhecidas por seu alto nível de violência apareceram
fora das áreas de maior concentração de vítimas, provavelmente devido à limitação das
informações.
Foi constatado que existe uma proximidade entre os lugares onde as vítimas
residiam e o lugar onde foi registrada a ocorrência da morte. Mesmo se tratando de mortes
que foram registradas em centros hospitalares trata-se geralmente de centros emergenciais
que pertencem á área onde também reside a vítima.
Por outro lado considerando as ACVs e sua área de influência traçada a partir do
raio de um quilômetro (pelo buffer) entorno das favelas que integram essas áreas, a maioria
(60%) das favelas da cidade pertencem às áreas identificadas como de concentração de
residência de vítimas e o seu raio de influência. Além disso, do total de 13181 ocorrências
de homicídios cujas vítimas tinham a residência geo-referenciada, 68% (8961) são vítimas
de homicídio cuja ocorrência foi dentro das ACVs e adjacências (pertencem ao raio de
influência das favelas das ACVs).
A partir desses dados pode-se adiantar que a maior parte da vitimização por
homicídio como da ocorrência criminal de mortes letais encontra-se em áreas de favelas ou
próximas às favelas.
Tanto os dados de distribuição das mortes e causas de morte visualizadas por AISP
com os dados da saúde quanto os dados dos homicídios intencionais e outros crimes por
AISP levantados das informações da polícia, parecem mostrar padrões comuns e
diferenciados de criminalidade por áreas.
Quando analisadas as causais de morte por AISP, vemos que a maioria tem como
causa principal a morte por arma de fogo e seguindo a linha interpretativa de diversos
estudos realizados no Rio de Janeiro sobre causas criminais (Miranda, 2005; Beato, 2001;
Misse, 1997) a arma de fogo está diretamente relacionada à circunstância de crime ligada
ao tráfico de entorpecentes, fundamentalmente às disputas de facções do tráfico pelo
controle dos territórios a partir dos quais se negociam as drogas e conflitos de vingança e
disputa pelos integrantes das facções entre si. Também aparece entre as circunstâncias dos
homicídios por arma de fogo o “confronto policial” que depois é registrado como autos de
resistência ou morte de civis por polícia. Na maioria dos casos coincide com os lugares de
concentração e disputa de territórios por facções do tráfico de drogas, mas isto não significa
que os mortos por polícia sejam todos envolvidos em tráfico ou propriamente ditos
traficantes. Há inúmeros casos destacados na imprensa e apontados por alguns relatórios de
direitos humanos de execuções cometidas por policiais sem provas de que os assassinados
sejam traficantes e também casos onde se sabe que a vítima não estava envolvida em tráfico
(ver Relatório Rio: Violência Policial e Segurança Pública da ONG de Direitos Humanos
Justiça Global). Por outro lado a distribuição das taxas dos autos de resistência confirma em
parte essa causalidade de morte.
Entrando particularmente na questão da distribuição por AISP das taxas de mortes
de civis por polícia, por um lado constata-se que em muitos das áreas onde estas se
concentram também estão concentrados os homicídios, como no caso das AISPs
localizadas no centro da cidade e na Zona Norte. Em menor proporção que os homicídios,
os autos de resistência atingem também AISPs da zona Oeste. Mas o que delata claramente
a distribuição deste tipo de morte é que os lugares menos atingidos são sem dúvida as
AISPs localizadas na Zona Sul e Sul-Oeste da cidade ou nas APs de nível socioeconômico
mais elevado. Se por um lado pode-se atribuir esta distribuição à menor concentração de
favelas e enfrentamentos entre facções do tráfico nessas áreas (embora isso seja relativo
como o mostramos através dos enfrentamentos que estão havendo entre traficantes que
controlam favelas situadas nessas AISPs), por outro devemos também pensar na
distribuição dos efetivos policiais na cidade e no tipo de ação de policiamento desenvolvida
por local. Há estudos levantando a questão de que esta ação é diferenciada e privilegia com
estratégias de tipo mais preventivo e menos repressivo as áreas mais abastadas da cidade
(Ramos e Musumeci, 2005).
A distribuição de outros crimes como “ameaças” continua a reforçar os padrões de
distribuição dos homicídios. A localização de ocorrências que são categorizadas pela
polícia como “produção” policial como apreensão de armas, drogas, prisões de crianças e
adolescentes e prisões em geral, mostra outros aspectos da distribuição da criminalidade e
da ação da polícia por área na cidade.
Em primeiro lugar a distribuição de apreensão de armas está também concentrada
nas Zonas Norte e Oeste da cidade, acompanhando a distribuição dos homicídios e autos de
resistência. No entanto, a distribuição das drogas está mostrando outro padrão e delata que
os pontos de tráfico atingem muito mais as áreas nobres da cidade, mas não
necessariamente gera mortes nem por polícia nem homicídios.
A partir desta constatação podemos assumir que o tráfico de drogas gera morte nas
áreas populares e não nas áreas abastadas da cidade. Qualquer política dirigida a diminuir a
criminalidade letal na cidade deve levar este dado em consideração. Estes dados podem
estar reforçando a tese de que não é o consumo de drogas o que gera a letalidade, senão a
ilegalidade que gera o tráfico produz as mortes (Soares, 2006). Também aponta para um
dos componentes interpretativos da “sociabilidade violenta” na cidade, que trata da
extensão da criminalidade a outras áreas da cidade que não são favela, mas que cobra
principalmente suas vítimas entre os favelados (Machado, 2004).
Em geral parece que a distribuição das prisões acompanha as taxas de apreensões de
drogas e denotando que o tipo de trabalho policial não letal está mais concentrado nas áreas
menos pobres da cidade. Note-se que é nessas áreas onde se concentram os crimes contra o
patrimônio e as prisões podem estar diretamente relacionadas à proteção da polícia contra
estes crimes. Portanto, enquanto o crime e o trabalho letal da polícia se concentram em
áreas e populações pobres, o trabalho menos letal observa-se em locais mais abastados da
cidade (Ramos e Musumeci, 2005).
A distribuição das ameaças e desaparições deve ser levada em consideração, já que
significam possíveis perigos à integridade das pessoas e podem estar relacionadas em
alguns casos com os crimes. Chamam à atenção as altas taxas de ameaças nas áreas do
centro da cidade e podem estar relacionadas com tráfico como também com outro tipo de
delito. No caso das altas taxas de ameaça na Zona Oeste pode estar denunciando a presença
de um fenômeno que é mais recente do que o tráfico. Trata-se da ocupação de certos
territórios pelas milícias (grupos de paramilitares, ex-funcionários de segurança pública que
controlam territórios em troca de pagamento das populações pobres por serviços ilegais
como gás, luz, etc.). Algumas pesquisas aprofundadas mostram que a ação das milícias
parte do exercício da força da ameaça, força que aparece como simbólica mas que pode ser
acionada através das armas (os milicianos não andam armados ostensivamente como os
traficantes, mas está implícito entre os moradores que portam armas).
As desaparições têm uma distribuição similar às ameaças, e podem estar
relacionadas com diferentes formas de criminalidade: com as mortes em enfrentamentos
entre facções do tráfico, com a ação letal de polícia e/ou com o domínio das milícias em
alguns territórios. Não é por acaso que onde há um número expressivo de desaparecidos
também há registros de ameaças e freqüentemente denúncias da aparição de cemitérios
clandestinos.
A violência letal que afeta fundamentalmente as áreas pobres da cidade e as pessoas
que moram em favelas populosas da área urbana envolve um circuito de criminalidade que
está além das fronteiras dessas áreas e que se espalha por toda a cidade. A ação da polícia
parece privilegiar com policiamento mais preventivo as áreas ricas e ser mais violenta nas
áreas mais pobres, aprofundando a vitimização nestes locais. Por esse motivo, quando se
trata de medir a relação entre a precariedade e a violência a correlação não é linear. Há
outras variáveis intervindo nessa correlação e estão relacionadas tanto aos padrões de
configuração da criminalidade no Rio (tráfico, milícias) como a ação das forças de
segurança pública.
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