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EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS IMUNIDADES TRIBUTÁRIAS NO MUNDO E
NO BRASIL
Luis Felipe de Sousa e Silva
Graduado em Direito pela
Universidade Federal do Amazonas -
UFAM
1. As Imunidades Tributárias no Mundo
As imunidades tributárias presentes na Constituição da República de
1988 são tema extremamente polêmico entre os estudiosos do Direito.
Aparentemente independente das relativizações de tempo e espaço, as
imunidades despertam controvérsia acerca de inúmeros aspectos que lhe são
essenciais, genérica e especificamente.
A discussão acerca de seu conceito e natureza não foge a esta regra,
sendo necessário que apreendamos um parâmetro referencial para o início do
presente estudo. Para este fim, utilizaremos as lições de Regina Helena Costa,
que define com brilhantismo o instituto:
A definição do conceito deve observar o fato de o instituto em estudo apresentar dúplice natureza: de um lado, exsurge a imunidade como norma constitucional demarcatória da competência tributária, por continente de hipótese de intributabilidade, e, de outro, constitui direito público subjetivo das pessoas direta ou indiretamente por ela favorecidas. (COSTA, 2015, p. 58)
Mais adiante em sua obra, arremata:
A imunidade tributária, então, pode ser definida como a exoneração, fixada constitucionalmente, traduzida em norma expressa impeditiva da atribuição de competência tributária ou extraível, necessariamente, de um ou mais princípios constitucionais, que confere direito público subjetivo a certas pessoas, nos termos por ela delimitados, de não se sujeitarem à tributação. (COSTA, 2015, p. 58)
Desta feita, pode-se assumir como ponto de partida para o presente
estudo a premissa segundo a qual a norma imunizante tem a natureza de
exoneração constitucional, cujo conceito delineia-se a partir de dois prismas:
um formal e outro teleológico.
No particular da imunidade dos templos, trata-se de delimitação da
capacidade tributária inserida no art. art. 150, VI, “b” da Constituição brasileira,
que tem por escopo proteger um valor fundamental para a ordem jurídica, qual
seja, a liberdade religiosa.
A imunidade dos templos religiosos é uma das mais tradicionais
espécies de intributabilidade, de gênese concomitante à criação dos primeiros
Estados. As religiões sempre foram, pode-se dizer, privilegiadas em matéria
tributária.
Sucede que, as imunidades tributárias têm acompanhado a civilização
há tanto tempo que assumiram diferentes feições de acordo com o período da
História em que se decida estuda-las.
1.1 As imunidades tributárias na Antiguidade
A Antiguidade marca o início da História e o fim da pré-História, tendo
como divisor de águas o desenvolvimento da escrita. Dentre os povos antigos
mais notáveis podemos destacar, sem a menor pretensão de atribuir-lhes
especial importância sobre outros: egípcios, hebreus, fenícios, gregos,
romanos, persas, sumérios, acádios, babilônios, assírios, etc.
Naturalmente, a medida em que essas civilizações se desenvolviam,
também interagiam entre si. Tais interações davam-se predominantemente de
duas maneiras: comércio e guerras.
Esta última marca o instrumento pelo qual a figura dos tributos ganhou
relevância inédita e determinante para o desenvolvimento dos conglomerados
humanos que surgiam e iniciavam a se organizar sob uma estrutura estatal
embrionária.
Neste sentido, não há dúvidas de que as imunidades surgiram
concomitantemente aos tributos, posto que estes últimos tiveram sua
concepção fundada em diferenciar pessoas. Apenas fazia sentido tributar
alguém, se em contrapartida outrem fosse isento daquele mesmo tributo.
Sobre este aspecto, Regina Helena Costa assevera que:
A exigência de tributos é um dos mais antigos expedientes utilizados para distinguir pessoas e atividades. Sílvio Meira, em sua obra, já clássica, Direito Tributário Romano, bem demonstra que desde a existência do tributo houve a exoneração dessa prestação para alguns. (COSTA, 2015, p. 31)
A partir das conquistas bélicas de uns povos sobre outros, portanto, o
tributo passa a ser o instrumento de impor a derrota de forma perene ao povo
dominado. Até por isso, a tributação assumiu historicamente um caráter
melindrante para certos indivíduos e enaltecedor para outros.
Desta feita, à medida que evoluíam as civilizações antigas, a cultura de
não tributar mostrou-se útil para outros fins além da sucção dos recursos de
outros povos vencidos em batalha.
Alguns interesses, obviamente aliados aos anseios destes estados
recém-nascidos e imaturos, mereciam alguns privilégios, para que
alcançassem sua máxima expressão. Sobrelevam-se, sob este prisma, as
religiões.
Nesse contexto, os primeiros templos religiosos surgiram em torno do 4o
milênio a.C., na antiga mesopotâmia, situada entre os rios Tigre e Eufrates,
dentre o povo Sumério. As construções eram de uma simplicidade extrema,
sempre com algum tipo de menção à divindade ali adorada. Na civilização
Babilônica, conhecida pela compilação do Código Hamurábi, as edificações
religiosas evoluíram e tornaram-se conhecidas como Zigurates. Também os
gregos, romanos, fenícios e hebreus aderiram à tradição de construir locais de
adoração às suas divindades.
Em suma, o culto ao transcendental manifestou-se em todas as
civilizações da antiguidade, tornando-se importante aspecto de sua
organização social, estrutura de estado e padrão comportamental.
O poder de todos os governantes sobre a Terra há vinte mil anos era, de
um modo ou outro, ligado ao divino. Não havia governo dentre os homens que
não refletisse a vontade de um ser superior, assim permitindo a máxima
expressão de poder e controle social. Expressão máxima disto foi o caso
egípcio, onde o Faraó não era sequer enviado, ou interlocutor, mas um Deus
propriamente dito1.
Vale mencionar que devido à cultura politeísta do povo egípcio – e,
portanto, à multiplicidade de entidades a serem homenageadas com templos,
liturgias, sacerdotes, etc. – a imunidade tributária dos templos e seus
sacerdotes ganhou enormes proporções, chegando a abranger praticamente
um terço de todas as terras daquele território.
Entendia-se que tributar o templo equivalia a tributar a própria divindade
homenageada com sua construção e, por isso mesmo, justificava-se a
exoneração para não despertar a ira daqueles deuses, a qual poderia resultar
em represália ao povo egípcio.
Ademais, sendo o Faraó um Deus, tributar “a morada” de seus similares
não era aceitável2. Surgiu assim, uma espécie primitiva de imunidade recíproca
entre os deuses: Faraó, Osiris, Isis, Set, Anúbis, Rá, etc.
Apesar da particularidade da imunidade recíproca entre as divindades
egípcias e o Faraó, a primeira óptica sob que se analisou a imunidade dos
templos encontrou eco em todo o mundo antigo. De um modo geral, evitava-se
tributar os templos, para não se tributar os próprios deuses.
Outros povos observaram, com percuciência, que a não tributação dos
templos poderia atender a interesses tão mundanos quanto divinos. Em sua
eminente tradição jurídica, os romanos desenvolveram o entendimento de que
melhor serviria aos interesses de Roma que algumas pessoas e situações
permanecessem desobrigadas a custear a sua sustentação, o que se
convencionou chamar de immunitas.3
Impossível deixar de citar a célebre Senatusconsulta SC et epístula
consultum de Oropis, onde consta uma carta dos Cônsules romanos, datada de
79 a.C., interpretando decreto do Ditador Sila, segundo o qual se havia
1 Destaque-se que os antigos egípcios eram politeístas, e por isso mesmo, refere-se ao Faraó
como UM deus e não O deus. 2 Acrescentamos que os Egípcios desenvolveram, no tocante à imunidade de seus templos,
dois entendimentos: 1) que se estaria tributando uma divindade e; 2) que o Faraó não poderia tributar seus similares, revelando um tipo de imunidade recíproca primitiva e divina.
3 Vocábulo que, etiomologicamente, significa negação de múnus ou encargo. Cf. MORAES, Bernardo Ribeiro de. A imunidade tributária e seus novos aspectos. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 34, p. 19-40, jul. 1998.
declarado isentos de tributos os fundos cujas rendas estivessem destinadas ao
culto dos deuses.4
Perceba-se, portanto, que as imunidades tributárias, e a de templos
especialmente, desenvolveram-se concomitantemente ao próprio Estado. Por
meio das conquistas bélicas de outros povos, surgiram como dois lados de
uma mesma moeda os tributáveis e os intributáveis.
Com as subsequentes invasões bárbaras e a derrocada do Império
Romano, o mundo ocidental viu-se mergulhado num fenômeno de
descentralização política e pulverização dos núcleos de poder. Marcava-se o
fim da Antiguidade e o início da Idade Média.
1.2 As imunidades tributárias na Idade Média
O último século de existência de Roma foi extremamente conturbado e
marcado pela estagnação das conquistas militares, fragilização do controle
fronteiriço que redundou em invasões de povos bárbaros, crise econômica,
divisão do território romano, êxodo urbano e, curiosamente, ascensão da igreja
católica.
Por meio dos Imperadores Constantino, e depois Teodósio I, a religião
católica saiu do patamar de seita perseguida para religião oficial do império.
Com a queda do Império Romano do Ocidente5, no ano de 476, deu-se início à
Idade Média.
Na nova organização política que surgiu com esta nova etapa da
História, a religião ganhou especial relevância, em especial a católica. A Igreja
Católica dominava o mundo ocidental e estava, ao lado da nobreza, como
estrato social desobrigado a pagar tributos.
Nesse contexto, observe-se que com o maciço êxodo rural que se
seguiu à queda do império romano, muitas pessoas que deixaram as cidades
precisavam de espaço para construir moradias, cultivar alimentos e se
desenvolver. Todavia, somente detinham terras a realeza e a nobreza. 4 A inteligência contida neste documento fora reproduzida pouco mais de 20 séculos depois, no
art. 150, § 4º da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988. 5 O império romano havia sido divido no século 4 pelo Imperador Teodósio, em Império
Romano do Ocidente, cuja capital era Roma, e Império Romano do Oriente, cuja capital era Constantinopla. Esta última manteve-se como capital do império romano do oriente até 1453, quando fora conquistada pelos Turcos.
O casamento entre a necessidade de trabalho em massa e a absurda
concentração de terras em poder de reis e nobres, originou a estrutura do
feudo, que se pautava em duas premissas básicas: respeito entre suseranos
de igual nível, e troca de abrigo e por produção, entre suserano e vassalo.
Assim, as principais fontes de exigência de tributos nesta organização
estatal tornaram-se o Rei, o suserano e a Igreja. Os sacerdotes católicos eram
os líderes espirituais da coletividade, guardiões do justo e do divino. Inclusive,
por essa posição privilegiada, conquistaram enorme importância política ao se
posicionarem como elo de ligação entre o líder dos homens – Rei ou suserano
- e o líder dos céus.
Delineados, portanto, os estamentos que tinham tanto a imunidade
quanto parcela do poder tributante sobre a grande massa de camponeses:
realeza, clero e nobreza. Os tributos serviam exclusivamente à sustentação
destes grupos.
As imunidades tributárias, portanto, à época medieval, traduziam-se em
verdadeiras liberdades privadas, de titularidade dos estamentos dominantes,
para que se beneficiassem da arrecadação em detrimento da grande massa de
camponeses que os sustentavam.
A este respeito, assevera Ricardo Lobo Torres:
A liberdade na primeira fase do Estado Patrimonial se caracteriza como liberdade estamental ou corporativa. Os estamentos mantêm ou conquistam a liberdade diante do poder fiscal do rei. A liberdade aparece fracionada e dividida entre a realeza, o senhorio e a Igreja e vai consubstanciar no exercício da fiscalidade, na reserva da imunidade aos tributos, na obtenção de privilégios e no consentimento para a cobrança extraordinária de impostos. Em outras palavras, a nobreza e o clero são livres porque, além de não se subordinarem, senão excepcionalmente, à fiscalidade do príncipe (imunidades e privilégios), constituem fontes periféricas de normatividade. (TORRES, 1995, p. 8)
A imunidade tributária tornou-se, portanto, privilégio cujo único fim era
servir aos interesses dos estamentos dominantes e, nesse contexto, a
imunidade tributária dos templos ganhou expressão similar à dimensão do
poder alcançado pela Igreja Católica.
Interessante perceber, doutro giro, que ao contrário do que acontecia na
antiguidade, em que as civilizações mencionadas eram, via de regra,
politeístas, o catolicismo da Idade Média ocidental pressupunha a existência de
um único Deus.
Com efeito, enquanto a Igreja Católica gozava de ampla e irrestrita
liberdade fiscal – contexto em que inserida sua imunidade tributária – outras
religiões recebiam tratamento discriminatório e persecutório, com maior ou
menor intensidade a depender do lugar considerado para Estudo.
Tal concepção aristocrática de imunidade enquanto privilégio dos mais
abonados foi constante durante os séculos que marcaram a Idade Média, e
importaram na saturação dos estamentos inferiores em relação à sua pacata
sujeição ao desejo e à volúpia dos mais abastados.
O início do movimento de superação da chamada “Idade das Trevas”,
deu-se a partir do século XIII, com o declínio da organização administrativa-
econômica conhecida como feudalismo e, principalmente, e virtude do trinômio
guerra-peste-fome6.
Nascia nestes meados históricos o capitalismo, impulsionado pela
pujança comercial empreendida pelos burgueses, que embora revestidos de
poder econômico, ainda não haviam conquistado nenhuma relevância política
no Regime feudal típico da idade média.
A burguesia ansiando por projeção política e os Reis do feudalismo
ansiando por centralização econômica e administrativa, aliaram-se para virar a
mesa da organização política feudal, empreendendo novo processo de
organização político-social, que viria a ser conhecido como absolutismo.
1.3 As imunidades tributárias na Modernidade
Com a reorganização da sociedade ocidental e o advento de
movimentos filosófico-científicos – como o Renascimento do século XIV –
consolidou-se o Estado Patrimonial que vinha sido encubado na última fase da
Idade Média.
6 Referimo-nos à Guerra dos 100 anos, à insuficiência de produção de alimentos aliada à
severa tributação dos camponeses, e à Peste Negra que veio a dizimar 1/3 (um terço) da população europeia durante o século XIV.
As imunidades tributárias, contudo, resguardaram a sua característica de
privilégio estamental, oprimindo unicamente os que não se enquadravam em
nenhuma esfera titular dos malfadados benefícios.
Esta manutenção do estado das coisas, aliado ao poder supremo dos
monarcas absolutistas – sempre aliados e legitimados pelo poder religioso –
marcou o padrão social da Idade Moderna, que fora dominada pela nova
burguesia comerciante e pelas classes privilegiadas pelos reis.
Sucede que, o poder dos monarcas centralizou todo o Estado surgido
das relações modernas, conferindo imensa autoridade àqueles governantes.
Citamos, a título exemplificativo, o famoso caso de Luís XIV, autoproclamado
“O Rei Sol” e cujas palavras “O Estado sou Eu” eternizaram-se na História.
Sempre autorizados pelo direito divino do reinado7, os monarcas tinham
as ferramentas necessárias ao exercício de seu arbítrio e consecução de suas
vontades. Por isso mesmo, permitiram-se abusar dos antigos aliados,
ensejando conflitos principalmente com a burguesia, mas também com o
próprio clero8 9.
Nesse sentido, destacamos dois casos de maior relevância, que
sinalizaram a rotura da forma de organização estatal absoluta e do sistema
tributário estamental reminiscente da idade média: o surgimento do
constitucionalismo inglês e a Revolução Francesa.
O caso inglês foi resultante de um descompasso entre os estamentos
dominantes, diga-se Rei e nobreza. O Rei João Sem Terra passou a tributar
arbitrariamente os lords que lhe serviam e também seus subordinados.
À época, a nobreza e a plebe, reunindo esforços e se insurgindo contra o poder unipessoal de tributar, impuseram ao príncipe João um estatuto, visando a inibir a atividade tributária esmagadora do governo. Em outras palavras, objetivaram impor a necessidade de aprovação prévia dos súditos para a
7 A igreja católica continuou a servir-se de grande autoridade, por ser a intermediadora entre os
homens e o divino, tendo o papel de coroar o Rei para simbolizar a autorização divina à sua autoridade máxima.
8 A história registrou inúmeros episódios desde o conflito entre o monarca francês Luís XIV e o Papa Inocêncio XI.
9 A Igreja Católica era tão envolvida na política dos reinos, e tão preocupada com a manutenção de seus privilégios milenares, que sofreu a Reforma no século XVI. O movimento de Martinho Lutero inaugurou o protestantismo, dando ensejo ao luteranismo e ao calvinismo, que posteriormente viria a ser dissecado em sua estreita relação com espírito do capitalismo por Max Weber.
cobrança dos tributos, do que irradiou a representação “no taxation whitout representation.” (SABBAG, 2014, p. 57, grifo do autor)
Assim, da união entre números (camponeses que vieram a engrossar as
fileiras dos exércitos do lords) e recursos (a nobreza periférica à coroa
dispunha de recursos e homens treinados em armas), surgiu o movimento que
consagrou a primeira constituição inglesa, célebre Carta Magna Libertatum
(SABBAG, 2014).
Já o caso Francês, resultou de uma crescente onda de insatisfação por
parte dos estamentos inferiores: pobres e burgueses. A burguesia que se
desenvolvia na França ansiava por projeção política na sociedade francesa, e a
plebe já não suportava tão alta e injusta tributação. A este respeito, relata
Regina Helena Costa que:
A mesma situação ainda era verificada na França, no século XVIII, quando o Governo exigia impostos dos pobres, e não dos ricos. As classes privilegiadas – o clero e a nobreza – não admitiam que tivessem que pagar impostos como a gente comum, estando desobrigados do pagamento de praticamente todas as taxas da época. Tal fator contribuiu, como sabido, para a deflagração da Revolução Francesa. (COSTA, 2015, p. 33)
Num cenário de miséria generalizada, crises econômicas e agrícolas,
superpopulação e florescimento dos ideais liberais iluministas, reuniram-se
ingredientes explosivos para uma ruptura com regime opressor vigente. Com
propriedade, relata Thomas Piketty sobre a demografia francesa no século
XVIII:
A população francesa se expandiu em ritmo constante ao longo de todo o século XVIII, do final do reinado de Luís XIV até o de Luís XVI, aproximando-se dos tirnta milhões de habitantes nos anos 1780. Tudo leva a crer que esse dinamismo demográfico, desconhecido nos séculos anteriores, de fato contribuiu para a estagnação dos salários no setor agrícola e para o aumento dos rendimentos associados à propriedade da terra nas décadas anteriores à conflagração de 1789. Sem fazer da demografia a única causa da Revolução Francesa, parece evidente que essa evolução só fez aumentar a impopularidade crescente da aristocracia e do regime político em vigor. (PIKETTY, 2013, p. 45)
Nesse diapasão, tem-se que ao ser deflagrada a Revolução Francesa,
em 1789, a nova ordem buscou superar os símbolos de opressão do antigo
regime, contexto em que foi tomada a Bastilha, elaborada uma nova
constituição e, mais importante para o presente estudo, confiscados os bens e
propriedades da Igreja Católica.
Com efeito, o desenrolar da Revolução de 1789 foi extremamente
traumático para a Igreja Católica, pois veiculou as pretensões de burgueses e
plebeus em terminar, de uma vez por todas, com os privilégios clericais, e
retirar a instituição católica do espaço político francês.
Na perseguição deste objetivo, promoveu-se a supressão do dízimo,
utilização dos bens da Igreja para quitar as dívidas nacionais, Constituição Civil
do Clero, secularização dos registros civis, como casamento, nascimento e
óbito.
Durante o Período do Terror10, importante frisar que igrejas foram
apedrejadas, padres foram forçados a abdicar, imagens religiosas foram
destruídas e os cultos religiosos foram proibidos. Tentou-se ainda, vale citar,
instituir cultos à razão e ao Ser Supremo, que exaltavam a vitória da
consciência sobre a dominação da Igreja (NEC, 2009).
De fato, a ruptura com o antigo regime foi violenta e marcada pelo
ataque reiterado aos antigos instrumentos de dominação social e de
diferenciação fiscal. A partir da Revolução Francesa, e de seus ideais de
liberdade, igualdade e fraternidade, findou-se a identificação das imunidades
tributárias com privilégios estamentais ou corporativos. Abria-se caminho para
o liberalismo ditar as novas tendências estatais e tributárias.
1.4 As imunidades tributárias na Contemporaneidade
O novo capítulo da História que se iniciava hasteou-se em grande parte
no pensamento dos grandes contratualistas: Hobbes11, Locke12 e Rousseau13.
10 Período mais radical da Revolução Francesa, que consagrou a execução em massa e a
violência. Comandado por Robespierre, de 1792 a 1794. 11 Em O Leviatã, Hobbes parte da análise do homem para então compreender a sociedade.
Nesse sentido, assevera que “o direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e a razão lhe indiquem
Precursores das liberdades individuais e da relação delas com os poderes
constituídos a partir do pacto social, fizeram surgir a lógica de organização do
Estado moderno.
O novo conceito de Estado, embasado num compromisso fundamental,
num contrato tácito entre instituição governante e governados, teve seus
contornos delineados pelo Constitucionalismo moderno. Aos entes de direito
público era dada uma carta de fundação, estruturação, organização, dinâmica,
valores fundamentais e, delimitação de prerrogativas e obrigações.
Portanto, com o surgimento do Estado de Direito, à tradição legalista-
francesa, consolida-se o Estado Fiscal e se transforma radicalmente o conceito
de imunidade tributária (TORRES, 1995). Sobre esta transformação das
exonerações tributárias aduz Torres que:
como meios adequados a este fim”. Assim, abrindo mão do chamado direito de natureza, ínsito a todos os homens, constitui-se o Estado. Hobbes afirma: “diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou assembleia de homens a quem haja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões, a fim de viverem em paz uns aos outros e serem protegidos dos restantes homens. É dessa instituição de Estado que protegido todos os direito e faculdades daquele ou daqueles a quem o poder soberano é conferido mediante o consentimento do povo reunido”.
12 Em Segundo Tratado sobre o Governo Civil, Locke parte do pressuposto de que os homens são livres e iguais no estado natural, definido como “um estado em que eles (os homens) sejam absolutamente livres para decidir suas ações, dispor de seus bens e de suas posses como bem entenderem, dentro dos limites do direito natural, sem pedir a autorização de nenhum outro homem nem depender de sua vontade”. Todavia, da incompatibilidade entre a natureza social do homem e o exercício arbitrário das liberdades absolutas e gerais do estado natural, surgem as sociedades políticas e o contrato social, cujo raciocínio revela que
“como nenhuma sociedade política pode existir ou subsistir sem ter em si o poder de preservar a propriedade, e, para isso, punir as ofensas de todos os membros daquela sociedade, só existe uma sociedade política onde cada um dos membros renunciou ao seu poder natural e o depositou nas mãos da comunidade em todos os casos que os excluem de apelar por proteção à lei por ela estabelecida; e assim, excluído todo julgamento particular de cada membro particular, a comunidade se torna um árbitro; e, compreendendo regras imparciais e homens autorizados pela comunidade para fazê-las cumprir, ela decide todas as diferenças que podem ocorrer entre quaisquer membros daquela sociedade a respeito a qualquer questão de direito e puna aquelas ofensas que qualquer membro tenha cometido contra a sociedade com aquelas penalidades estabelecidas pela lei”.
13 Em O Contrato Social, Rousseau desenvolve a problemática fundamental de “encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça portanto senão a si mesmo, e permaneça tão livre como anteriormente”. Para o filósofo francês, a resposta para esta necessidade do homem moderno é o pacto social, que o transmuda de ser natural em ser cívico. Sintetizou o contrato social nas seguintes palavras: “cada um de nós põe em comum sua pessoa e toda a sua autoridade, sob o supremo comando da vontade geral, e recebemos em conjunto cada membro como parte indivisível do todo.”
Deixa de ser forma de limitação do poder do Rei pela Igreja e pela nobreza para se transformar em limitação do poder tributário do Estado pelos direitos preexistentes do indivíduo. O Estado moderno é um expropriador, que aboliu as imunidades do antigo regime e as substituiu pelas imunidades dos cidadãos. O mesmo significante – imunidade – passou a agasalhar um outro significado. (TORRES, 1995, p. 27)
Cambiou-se as benesses putrefatas da Idade Média – mantida durante a
Idade Moderna, pela tutela aos direitos naturais do cidadão. As imunidades, no
Estado pós Revolução Francesa, ganham vestes mais democráticas, como
bem observa Regina Helena Costa:
Com o advento do liberalismo houve uma democratização das imunidades, e a partir de então, a imunidade deixou de representar um privilégio, para passar a traduzir uma garantia de que certas atividades estariam exoneradas de imposição fiscal, segundo as exigências sociais. (COSTA, 2015, p. 33)
Nesse contexto liberal, portanto, as imunidades assumiram natureza de
verdadeiras limitações ao poder fiscal. As liberdades individuais é que
impunham as imunidades sobre os governos, para que não constrangessem os
cidadãos em “suas reservas de privilégios e direitos particulares” (HAMILTON;
MADISON; JAY, p. 505).
Observe-se que a utilização das imunidades como método de tutela das
liberdades dos cidadãos recebeu estudo inédito e de relevância ímpar no
constitucionalismo norte-americano. Citamos o caso Corfield v. Coryell14, em
que o juiz B. Washington, da Suprema Corte Americana, definiu as imunidades
como o direito de adquirir e possuir propriedade de qualquer espécie, e de
procurar e obter felicidade e a segurança e de se locomover para outro Estado
ou nele residir com o propósito de comerciar ou exercer profissão (TORRES,
1995).
Importante mencionar que, em Corfield v. Coryell, a decisão de
Washington foi pioneira ao estabelecer a diferenciação entre os direitos
naturais que são imanentes à condição humana, e os direitos naturais que
decorrem da cidadania (UPHAM, 2005), estes últimos nitidamente originados a
14 O case data de 1825 e versou sobre a interpretação, pela suprema corte, do art. IV,
parágrafo 2, cl. 1 da Constituição norte-americana de 1789 (“The Citizens of each State shall be entitled to all Priviledges and Immunities of Citizens in the several States”).
partir do pacto social, enquanto liberdades individuais fundamentais oponíveis
ao poder de polícia fiscal do Estado.
Outro caso importante da história da Suprema Corte norte-americana, e
merecedor de nota, é o multicitado McCulloch v. Maryland (CORNELL
UNIVERSITY LAW SCHOOL, 2015)15. Naquela ocasião, o Chief Justice da
Suprema Corte Americana, John Marshall, extraiu do caso concreto a máxima
“the power to tax involves the power to destroy”16. Observou naquela ocasião
que:
[...] a aptidão para destruir não deve ser controlada apenas pela confiança (confidence), mas pela representação, pela estrutura do governo e pela supremacia da Constituição, daí resultando a isenção das ações e operações dos órgãos e instrumentalidades federais. (TORRES, 1995, p. 65)
Perceba-se, portanto, que toda a ideia por detrás dos privilégios e
imunidades dos cidadãos fundava-se em princípios naturais que passaram a
ser paulatinamente positivados – ou reconhecidos, nos países de tradição no
Common Law - nos textos constitucionais em todo o mundo.
Com a substituição dos direitos do homem pelos direitos do cidadão, o
epicentro das imunidades tributárias adequou-se às demandas do positivismo
jurídico dos séculos XIX e XX. Em busca da Teoria Pura do Direito, o jusfilósofo
Hans Kelsen17 tentou dar esfera própria à norma jurídica, livre das impurezas
que a tornaram concebível, assim construindo um conhecimento totalmente
contrário à metafísica.
Isso ocasionou o surgimento de um entendimento diverso sobre a
natureza jurídica das imunidades tributárias neste período.18 Perdida a ligação
entre imunidades e direitos fundamentais, construiu-se entendimento de que o
15Em McCulloch v. Maryland, foi levada a conhecimento da Suprema Corte situação em que o
Estado de Maryland pôs-se a lançar tributos sobre um banco instituído e subsidiado pelo Congresso Nacional. A decisão do Chief Justice John Marshal foi no sentido de que a criação do banco pelo Congresso Nacional revela-se como incidente do poder soberano da união e, por representar toda a coletividade – we the people of the United States – não poderia submeter-se ao poder destrutivo da tributação do Estado de Maryland.
16 Tradução livre: “o poder de tributar envolve o poder de destruir”. 17 Citamos a obra “Teoria Pura do Direito” (1934). 18 Jellinek falava em autolimitação ou auto-obrigação (Selbstverpfichtung), pois “o Estado se
obriga a si próprio no ato de criação do direito”. Para Kelsen o Estado é um sistema de normas e “os assim chamados direitos da liberdade” (die sogenannten Freiheitrechts) não existem “fora da ordem jurídica estatal” (TORRES, 1995, p. 33).
poder fiscal constituído era limitado pelo poder constituinte, no momento de sua
constituição – ou posteriormente, quando assim determinasse a Constituição
de determinado Estado.19
No particular das imunidades dos templos, sua gênese passou a
escorar-se na soberania do poder constituinte, que determinava o nascimento
do Estado Fiscal e também o autolimitava. Esta autolimitação dava-se por
conta de um direito constituído, positivado, que não preexistia ao Estado, mas
era concomitante ou posterior a ele.
Ricardo Lôbo Torres pondera, com habitual precisão, que:
Com a onda positivista, perdeu-se a ligação essencial entre as imunidades e os direitos humanos, aparecendo o poder tributário como ilimitado ou, quando muito, sujeito apenas à autolimitação, enquanto os direitos fundamentais ou eram concedidos pela Constituição ou brotavam espontaneamente da sociedade e se positivavam pelo trabalho do constituinte. (TORRES, 1995, p. 42)
O viés positivista das exonerações tributárias veio a ruir à medida que se
agigantava o imperativo de tutela aos direitos humanos, especialmente no final
do século XX. Com o desenvolvimento das disciplinas ligadas à condição
humana, e sua forte carga axiológica objetivamente posta nos mais variados
tipos constitucionais, tornou-se insustentável a tese de autolimitação do poder
tributário.
A este respeito, relata Torres que:
A tese positivista da autolimitação do poder tributário teve consequências indesejáveis: abriu caminho, aqui e alhures, para o autoritarismo fiscal e esmaeceu o significado dos direitos fundamentais, emburilhando-os com as medidas conjunturais e de pura utilidade representadas pela não-incidências teleológicas de estatura constitucional. (TORRES, 1995, p. 43)
19 No Brasil, verificou-se divergência no tocante ao momento em que se autolimitava o poder
fiscal. Oposição entre a tese da imanência da autolimitação – defendida por Gilberto de Ulhoa Canto, Celso Bastos, A. R. Sampaio Dória e Geraldo Ataliba – e a tese da constituição ilimitada do poder tributário e da ulterior supressão, no próprio texto constitucional, da competência tributária dos diversos entes políticos – defendida por Amilcar de Araújo Falcão, Paulo de Barros Carvalho, Bernardo Ribeiro de Morais.
Tal qual o movimento de um pêndulo, muito observado nas teorias que
buscam explicar a fenomenologia jurídica, o conceito das imunidades
tributárias passou a descrever um movimento de regresso aos direitos
humanos, fundamentais, imanentes. Esta nova fase da ciência jurídico-
tributária, chamaremos de contemporaneidade.
Sob este novo prisma, a luz das imunidades é desviada para direção
oposta embora não desconhecida do instituto. Não é mais o poder do Estado
que se autolimita assim determinando uma zona de não-extensão do poder
fiscal, mas sim o direito fundamental que se autolimita, determinando regiões
onde este cederá espaço para a atuação do Estado Fiscal.
Esta autolimitação dos direitos fundamentais é exatamente o que separa
o tributável do intributável, o contribuinte do imune. Traçada a linha limítrofe, o
Estado somente pode atuar onde o direito fundamental aceitou curvar-se à
atividade fiscal. Esta passa a ser a nova lógica das imunidades tributárias:
áreas cuja incolumidade é inarredável.
Nos dizeres de Torres:
A imunidade se confunde com o direito público subjetivo pré-estatal à não incidência tributária, com a pretensão à incolumidade fiscal, com os próprios direitos fundamentais absolutos, posto que é um dos aspectos desses direitos, ou uma sua qualidade, ou a sua exteriorização, ou o seu âmbito de validade. A imunidade, em outras palavras, exorna os direitos da liberdade e limita o poder tributário estatal, não sendo, de modo algum, uma das manifestações da soberania do Estado, nem outorga constitucional, nem uma autolimitação do poder fiscal, nem uma simples garantia principiológica como poderia dar a entender o caput do art. 150 da CF. Os direitos humanos, em síntese, são inalienáveis, imprescritíveis e intributáveis. (TORRES, 1995, p. 44)
Fazendo um adendo às prestimosas lições do multicitado mestre,
propomos rápido resgate ao conceito de contrato social, em que os indivíduos
entregam parcela de sua liberdade ao Estado para que este lhes reja a relação
entre si mesmos. Neste contexto, as imunidades tributárias fazem parte do
núcleo inegociáveis do pacto social, insuscetíveis de sacrifício no altar da
constituição social.
É exatamente aí onde se situa a imunidade tributária dos templos (e
todas as outras que se fundem em liberdades fundamentais): na zona de
inegociabilidade do pacto social. Não cedendo terreno à atividade fiscal do
Estado, são intributáveis os templos por promoverem o desenvolvimento das
liberdades de consciência e crença, de exercício dos cultos religiosos e de
organização das entidades que promovem as atividades eclesiásticas.
Neste sentido, Regina Helena Costa complementa o celebrado mestre:
Ricardo Lobo Torres lembra que, enquanto o liberalismo contemporâneo à constituição do Estado Fiscal buscou a ideia de imunidade tributária nos direitos naturais, o positivismo do século XIX e XX radicou-se no próprio direito e hoje procura-se ligá-la à natureza das coisas ou aos direitos morais, “preexistindo ao poder tributário como qualidade essencial da pessoa humana e correspondendo ao direito público subjetivo que erige a pretensão à incolumidade diante da ordem tributária objetiva. (COSTA, 2015, p. 33)
Portanto, deve-se partir do ser humano, titular de direito fundamental à
liberdade, para então compreender o papel do Estado expropriador. Com
efeito, tem-se que a este simplesmente não é dado atuar onde aquele não
admitir.
2. As imunidades tributárias e as constituições brasileiras
2.1 A Carta de Tomé de Sousa
O território brasileiro fora descoberto em 1500 e desde então a coroa
portuguesa pôs-se a investir recursos tanto na conversão dos nativos ao
catolicismo quanto na exploração das riquezas naturais de sua recém-
descoberta colônia, tendo como primeira iniciativa as capitanias hereditárias.
Apesar dessa espécie de empreendimento já ter sido testada, com êxito,
pelo povo luso nas ilhas do Atlântico (Madeira e Açores), veio a fracassar no
Brasil devido ao elevadíssimo investimento necessário, à distância em relação
à metrópole e à resistência oposta pelos indígenas (KOSHIBA; FRAYZE,
2007).
Reafirmando o propósito de povoamento das terras lusas além do
Atlântico, Dom João III – Rei de Portugal – outorgou em 1549 a Tomé de
Souza uma Carta20 que basicamente cuidava da disciplina administrativa da
nova fase colonial denominada Governo-geral.21
Em sua obra “Sessão Inaugural do Instituto de estudos Portugueses do
Liceu Literário Português”, Pedro Calmon afirma sobre a Carta de Tomé de
Sousa o seguinte:
[...] projetou-se sobre os climas de ultramar o humanismo português, sem perde na viagem, nenhuma de suas características apreciáveis. Dom João III comunicou à América as esperanças de sua forte política, e mandou-lhe, a par do cabo de guerra, o taumaturgo, para a pacificação dos índios, o juiz, para a definição do direito, o funcionário fiscal, para a contabilidade pública, os códigos dos reis anteriores, o equilíbrio jurídico que na Universidade se instalara com a remoçada seiva da jurisprudência latina, e o fortalecimento sensato e gradual da Nação nos seus interesses morais. (CALMON, 1943)
Esta foi, para muitos, a primeira Carta estrutural do Brasil e no seu
âmago trazia uma fortíssima carga valorativa cristã, incluindo em seu
preâmbulo a expressão in Nominé Domine, ou seja, “em nome do Senhor”,
deixando clara a mescla entre Estado e Igreja Católica, conforme verificamos
ser próprio do Século XVI em tópicos anteriores.
As imunidades tributárias, neste primeiro ato normativo traduziam-se
como protetoras de um imperativo colonial, ou seja, determinavam a
intributabilidade sobre quanto fosse necessário ao êxito da colonização.
Obviamente, os jesuítas que vieram ao Brasil comandados por Manoel da
Nóbrega22 mantinham integralmente os benefícios e privilégios da Igreja
Católica em Portugal.
Neste particular, interessante mencionar que o primeiro bispado no
Brasil foi criado em 1551, sendo D. Pero Fernandes Sardinha o primeiro bispo
de Salvador. Com as levas vindouras de colonizadores, vieram outros
20 Também chamada de “Regimento de Tomé de Sousa”. (KOSHIBA; FRAYZE, 2007, p. 45). 21 Embora se tratasse de uma nova fase colonial, visava a manter a divisão administrativa
consagrada por meio das capitanias hereditárias, atrelando-as a um governo central e assistindo-as para que permanecessem no ímpeto de vencer as adversidades brasileiras.
22 Juntamente do primeiro governador-geral, Tomé de Sousa, vieram para o Brasil os primeiros jesuítas, chefiados por Manoel da Nóbrega, para iniciar a obra de evangelização dos indígenas.
contingentes de jesuítas, que cada vez mais compunham o caldo cultural da
colônia.
Com o avançar da História, o Brasil-Colônia viveu períodos instabilidade,
conhecendo inúmeras revoltas e levantes23 (eram, em sua maioria,
aristocráticos), quase que como um espelho dos acontecimentos no continente
europeu, o que o Hobsbawn veio a chamar de “A era das Revoluções”24.
No Brasil, ganharam cunho nitidamente separatista e emancipacionista a
Inconfidência Mineira e a Conjuração Bahiana, ambas em período posterior à
ebulição da Revolução Francesa.
Esta organização perdurou até o início do século XIX, quando em 1807 a
família Real e a nobreza lusitanas foram forçadas a fugir para o Brasil devido à
expansão napoleônica. Com a transferência da corte portuguesa para o Brasil,
produziu-se o efeito prático de encerramento do pacto colonial.
O então Rei de Portugal, D. João VI, apressou-se em adotar medidas
que garantissem maior liberdade à colônia. A primeira delas foi a abertura dos
portos às nações amigas – quebrando o exclusivo colonial - e a segunda foi a
autorização para instalação de manufaturas no Brasil (ambas as medidas
datadas do mesmo ano do desembarque). Em 1815 o Brasil foi elevado à
categoria de Reino Unido a Portugal e Algarves, por ocasião do Congresso de
Viena (1814-1815).
Tais medidas não deram conta, todavia, de sanar o sentimento
emancipacionista que tomava conta dos brasileiros inebriados pelo sabor do
liberalismo experimentado mundo a fora. Reforçando esta tendência estavam
as indecisões do monarca D. João VI sobre o retorno a Portugal, a
marginalização política dos senhores rurais brasileiros, a opressão fiscal e a
corrupção administrativa.
Com o acirramento das tensões sociais no Brasil - capitaneadas pelos
ruralistas brasileiros e homens não proprietários contra o domínio econômico
23 A Revolta dos Beckman, em 1684. A Guerra dos Emboabas, em 1709. A Guerra dos
Mascates, entre 1710-1711. A Revolta de Filipe dos Santos, em 1720. A Inconfidência Mineira, em 1789. A Conjuração Bahiana, em 1798.
24 Período compreendido entre 1789 e 1848.
português - e a agitação política em Portugal25, D. João deixa as terras
tupiniquins e nomeia seu filho e herdeiro – D. Pedro - como regente do Brasil.
2.2 A Constituição Imperial de 1824
Inicia-se a partir de então período histórico de extrema relevância,
produtor da primeira Constituição Brasileira. Afirma Pinto Ferreira que:
Ainda a independência não havia sido proclamada, e já havia o príncipe-regente D. Pedro convocado, em 23 de junho de 1822, uma constituinte, para votar o estatuto fundamental do país. Acelerada a agitação ideológica para libertação definitiva da nação dos laços de vinculação política a Portugal, reuniu-se a assembleia constituinte, entre 2 de maio e 12 de novembro de 1823. As tendências ultraliberais e revolucionárias dos seus trabalhos provocaram o contragolpe conservador de D. Pedro I, que a dissolveu, encarregando o Conselho de Estado da feitura de novo projeto, que se transformou na Constituição da monarquia brasileira, de 25 de março de 1824, outorgada pelo Imperador ao povo. (FERREIRA, 1978)
O novo texto constitucional outorgado arquitetou a estrutura de poder do
império nos seguintes termos:
Além do poder moderador, funcionavam os clássicos poderes executivo, legislativo e judiciário. O poder executivo era desempenhado por um ministério, sendo criada em 1847 a presidência do Conselho de ministros, nos moldes parlamentaristas franco-britânicos. O poder legislativo exercia-se por um Senado vitalício e uma Câmara temporária, com o número dos representantes populares proporcional ao da população, devendo-se aqui consignar que, em 1880, se decretou a eleição ireta, numa marcha trepidante para a democracia. Enfim, o poder judiciário era confiado ao Superior Tribunal de Justiça, aos Tribunais de Relação nas províncias, além dos juízes de direito. Afora essas instituições, cumpre ressaltar a existência do Conselho de Estado, que, salienta Joaquim Nabuco, foi com efeito uma grande concepção política, que mesmo a Inglaterra nos podia invejar, ouvido sobre todas as grandes questões, e “conservador das tradições políticas do império”. (FERREIRA, 1978)
25 “Desde a transferência da Corte para o Brasil, Portugal vivia um situação incômoda: em
1808, foi invadido pelo exército de Napoleão; posteriormente, coma expulsão dos franceses, passou a viver diretamente sob a tutela inglesa. Até 1820, Portugal foi governada por lorde Beresford.” (KOSHIBA; FRAYZE, 2003, p. 177).
Apesar de pouco cuidar da matéria tributária em si – e mais da
organização do Império – a Constituição de 1824 já abarcava as noções de
capacidade contributiva e de imunidade fiscal, todos alocados sob a égide da
redação de seu art. 179. Sobre este dispositivo, Regina Helena Costa aduz
que:
Após dedicas alguns dispositivos à Fazenda Nacional (art. 170 a 172), traz, em seu art. 179, inicialmente, a determinação de que “ninguém será isento de contribuir para as despesas do Estado em proporção de seus haveres” (inciso XV), preceito consagrador da essência dos princípios da isonomia e da capacidade contributiva. (COSTA, 2015, p. 34)
Ainda sobre o art. 179 da Constituição Imperial de 1824, informa a
mesma autora:
O mesmo art. 179, em seu inciso XVI, estatui que “ficam abolidos todos os privilégios, que não foram essenciais, e inteiramente ligados aos cargos, por utilidade pública”, encerrando, assim, a concessão dos privilégios outorgados à nobreza. De outro lado, porém, salienta a manutenção de “privilégios essenciais”26 – vale dizer, de benefícios que não poderiam ser suprimidos – pelo quê entendemos residir aqui o embrião das imunidades tributárias no Direito Constitucional Brasileiro. (COSTA, 2015, p. 34)
A par do significado dos “privilégios essenciais”, é relevante o fato de ter
sido a Carta Fundamental outorgada “em nome da Santíssima Trindade”. No
artigo 5º do texto constitucional, havia a previsão de que:
A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórmula alguma exterior do templo. (BRASIL, 1824)
A liberdade religiosa consagrada na Constituição do Império era,
portanto, mitigada em nome da supremacia do catolicismo, religião oficial do
Império. As demais manifestações de credo deveriam ser confinadas a 26 Acrescentamos que as Constituições são produtos de processos históricos, sendo
necessário salientar que um privilégio essencial à época do Império não necessariamente será um privilégio essencial na atualidade, podendo até mesmo sinalizar um privilégio inconstitucional.
espaços privados. Já se previa, todavia, a impossibilidade de perseguição
religiosa, desde que respeitado o culto oficial do Império e a moral pública
(fortemente influenciada pela ética católica).
Daí se verifica que de fato o Imperador conteve o ímpeto
demasiadamente liberal que se manifestou na assembleia constituinte de 1823,
outorgando uma Carta que em muito conservava as características do antigo
regime.
2.3 A Primeira Constituição Republicana, de 1891
A experiência monarquista-constitucional no Brasil durou cerca de 65
anos, e veio a ruir no mesmo ritmo da decadência de seus pilares econômicos:
matriz de exploração e escravidão. Sobre estes elementos, ensina Marco
Antônio Villa (2011) que a abolição e as transformações oriundas do grande
desenvolvimento da economia cafeeira estavam levando ao nascimento de
uma sociedade mais plural.
No mesmo sentido, informa-nos o célebre jurista Pinto Ferreira:
A Revolução Republicana de 1889 refletiu a crise econômica que provocou o ocaso o Império. O bouleversement da economia agrária, propulsionado pela abolição, veio desagregar as pilastras em que assentava a nação, de sorte que a aristocracia rural, sentindo-se espoliada no seu direito sobre a propriedade escrava, engrossou as fileiras do partido republicano. A crise do Açúcar, que era pouco antes da República, a alavanca propulsora da econômica nacional, e a emancipação da escravatura, após campanhas onde se salientaram Rui Barbosa e Joaquim Nabuco, tudo isso amalgamado com os entrechoques da monarquia contra o exército e o clero, vieram destarte esculpir nova forma de governo, vitoriosa com o movimento revolucionário. (FERREIRA, 1978)
Eis que nasce a República, sob o texto fundamental elaborado em 24 de
fevereiro de 1891 e posteriormente revisitado em 192627. Rui Barbosa – pai
espiritual da Carta de 1891 – esculpiu a Carta republicana inspirado pela
27 Para o fim de coibir algumas arbitrariedades favorecidas pela ambiguidade de passagens
constitucionais relacionadas à intervenção federal nos estados federados, restrição à concessão de habeas corpus e aptidão da União para regular o comércio em ocasiões específicas.
Constituição norte-americana, que trazia em seu seio as ideias diretoras do
presidencialismo, do federalismo, do liberalismo político, e da democracia
burguesa (FERREIRA, 1978).
A emancipação definitiva do povo brasileiro deu-se não somente em
face de Portugal, mas também de um regime político falido que há mais de um
século havia sido suplantado em diversas regiões do mundo, como América do
Norte e Europa.
Chamamos atenção, nesse aspecto, para o fato de que fora a
Constituição Republicana de 1891 que primeiro rompeu entre Igreja e Estado.
Não consta no preâmbulo qualquer menção a divindades, especialmente à
cristã, denotando que a secularização28 do mundo atingiu os ideais
republicanos, inclusive ganhando redação própria no texto fundamental.
O art. 11, §2º da CF/1891 vedou à União, bem como aos Estados,
estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos. Em 3
de setembro de 1926, sobreveio Emenda Constitucional que acirrou ainda mais
a ruptura com o antigo regime de poder.
O art. 72, §§2º a 7º da então modificada Constituição de 1891
determinavam as seguintes medidas:
1. Deixou-se de admitir privilégios de nascimento e foros de nobreza, e
foram extintas as ordens honoríficas e todas as suas prerrogativas e regalias,
bem como os títulos nobiliárquicos e de conselho. (art. 72, §2º)
2. Abriu-se a prática religiosa para todos os cultos. O exercício religioso
tornou-se público e livre, permitidas a associação e a aquisição de bens para
essa finalidade, desde que observadas as disposições do direito comum. (art.
72, §3º)29
3. A única modalidade de casamento passou a ser a civil, extirpando-se
do poder religioso esta competência. (art. 72, §4º)
4. Os cemitérios passaram a ter caráter secular, ficando disponíveis a
todos os cultos para prática dos respectivos rituais religiosos em relação a seus
crentes. (art. 72, §5º)
28 Vide tópico 1.2. 29 Perceba-se que já a esta época, era dada às igrejas liberdade de adquirir bens para suas
finalidades eclesiásticas, discussão que ainda não chegou a termo atualmente.
5. O ensino em estabelecimentos públicos tornou-se prioritariamente
leigo. (art. 72, §6º)
6. Cindiu-se totalmente o elo entre Estado e Igreja, pela vedação à
subvenção oficial e à manutenção de relações de dependência ou aliança entre
os mesmos, nos diferentes níveis da federação. (art. 72, §7º)
O cenário delineado pela Constituição de 1891 consagrou e
democratizou a liberdade religiosa no Brasil, o que viria a produzir nos futuros
textos constitucionais a imunidade tributária dos templos como instrumento de
sua salvaguarda.
Outras imunidades tributárias debutaram na Constituição 1891, como a
recíproca30; a relativa a impostos de trânsito pelo território de um Estado, ou na
passagem de um para outro, sobre produtos de outros Estados da República
ou estrangeiros31; e a isenção relativa a impostos, no estado por onde se
exportar, a produção dos outros Estados32.
Sobre a Carta Constitucional de 1891, Regina Helena Costa assevera
que:
A Carta de 1891 contempla, originariamente, a “isenção” da produção dos outros Estados no Estado por onde exportar-se (art. 9o, 2o, §2o), além de vedar aos Estados e à União criar impostos de transito pelo território de um Estado, ou na passagem de um para outro, sobre produtos de outros Estados da República, ou estrangeiros, e bem assim sobre os veículos de terra e água que os transportarem, bem como de estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos (art. 11, 1o e 2o). A imunidade recíproca entre Estados-membros e União (art.10) – a qual, saliente-se, é a única imunidade presente em todas as Constituições Republicanas – não abrangia os Municípios uma vez que o sistema federativo adotado nesse Texto Fundamental não os considerava. (COSTA, 2015, p. 34)
Conforme os ensinamentos de Pinto Ferreira (supra), tem-se que apesar
de inaugurar o período republicano, sinalizando inúmeras rupturas com o
antigo regime monárquico, o texto fundamental de 1891 não instituiu
30 Prevista no art. 10 da CF/1891. Atualmente previsto no art. 150, inciso VI, alínea “a” da CF/1988. 31 Prevista no art. 11, §1º da CF/1891. 32 Previsto no art. 9º, §2º da CF/1891.
mecanismos contra as fraudes eleitoras33, o que possibilitou a consolidação
das novas oligarquias brasileiras, centralizadas nos estados de São Paulo e
Minas Gerais34.
Além do panorama político, também merece atenção o cenário social no
decorrer da República Velha. É que a pujança econômica do café ocasionou
inchaço populacional, circulação de capitais e industrialização, ingredientes já
conhecidos do Velho Continente para o surgimento das demandas operárias.
Nesse contexto, curial o ensinamento de Koshiba e Frayze:
De fato, o crescimento urbano foi um fenômeno característico da Republica Velha. O exemplo mais espetacular foi a cidade de São Paulo, que reunia em 1900 cerca de 240 mil habitantes. Com isso, tornava-se a segunda maior cidade do Brasil, atrás apenas do Rio de Janeiro, com quase 700 mil habitantes. A generalização do trabalho livre assalariado criava, tanto no campo como na cidade, um mercado para produtos manufaturados. Como nos primórdios da industrialização inglesa, as principais indústrias eram de tecido, seguidas das de alimentação. (KOSHIBA; FRAYZE, 2007, p. 338)
Com a urbanização e a industrialização, o Brasil ingressou na
modernidade e, com ela, novos problemas surgiram (KOSHIBA; FRAYZE,
2007). Diante disso, e da falência do sistema de alternância no poder
estabelecido entre a oligarquia mineiro-paulista, o ensaio republicano chegou
ao fim em 1930, quando ocorreu a Revolução que levou a termo instituiu o
governo provisório de Getúlio Vargas35.
Sobre o momento histórico, relata Pinto Ferreira:
No subsolo da sociedade se agitavam, porém, forças bem mais profundas, conflitos econômicos e sociais. Washington Luís, então Presidente da República, prosseguindo na sua política da estabilização da moeda pela valorização do café, apoiou abertamente a candidatura de Julio Prestes, representante dos interesses paulistas. Em sentido contrário se dividiam outras correntes políticas e sociais, a próprio simpatia das massas
33 “O voto, por exemplo, não era secreto, não existiam cédulas eleitorais nem havia uma justiça
eleitoral independente.” (KOSHIBA; FRAYZE, 2007, p. 338). 34 Era a chamada “política do café-com-leite”, em alusão aos produtos mais significativos
daqueles dois estados. 35 Com a crise de sucessão do presidente Washington Luís, e o golpe no vencedor das
eleições daquele ano de 1930, Júlio Prestes, os Estados de RS, MG e PB deram um golpe para instituir um governo provisório que pudesse atentar para as novas demandas da sociedade brasileira no período republicano.
proletárias, que acordaram para a consciência política nacional, daí resultando uma revolução de caráter nacional. Sobrevindo a vitória da Revolução, instalou-se uma junta governativa, sendo transmitido o Govêrno ao candidato da oposição Getúlio Vargas, que expediu o decreto institucional do Govêrno provisório, de 11 de novembro de 1930, lançando as bases do novo regime. (FERREIRA, 1978)
2.4 A Constituição da República de 1934
Tendo sofrido um golpe, a elite paulista não deixou que o governo
provisório tivesse grandes expectativas de perpetuação, posto que já em 1932
eclodiu movimento reacionário ao golpe de 1930, de face libertária, cuja pauta
principal cingia-se à convocação da assembleia nacional constituinte36.
Novamente, o mestre constitucionalista digere o bolo histórico com perfeição:
Convocada mais tarde uma constituinte, em 1933-34, cuja necessidade a Revolução constitucionalista de São Paulo de 1932 acentuou dramaticamente, dela promanou a Constituição de 16 de julho de 1934. A nova Carta Magna sofreu decisiva influência da Constituição de Weimar, é um reflexo sul-americano dela, catalogando-se o nosso regime não mais como uma democracia liberal, e sim como uma democracia social, com a poderosa ampliação da atividade do governo no campo econômico. A justiça do trabalho, o salário mínimo, a nacionalização das empresas, a limitação de lucros, a função social da propriedade privada, o sindicalismo, a representação profissional no Congresso, o intervencionismo estatal, em suma, as grandes bases da democracia social foram instituídas, guardando-se, em certas variantes, no mais, o modelo constitucional de 1981. (FERREIRA, 1978)
As demandas político-sociais que produziram a constituição de 1934 não
fizeram diminuir a preocupação quanto à matéria tributária albergada na Carte
de 1891, muito pelo contrário: os avanços conquistados até então foram
mantidos e outros mais viram-se alargados. Assim nos ensina Costa:
A Constituição de 1934, por sua vez, reitera a vedação ao embaraço aos cultos (art. 17, II), outorgando a exoneração tributária aos “combustíveis produzidos no país para motores
36 O Estado de São Paulo viu suas várias classes sociais mobilizarem-se – em virtude da
comoção gerada pela morte dos estudantes Martins, Miragaia, Dráuzio e Camargo (MMDC) em repressão policial a um ato político ocorrido no centro de São Paulo em 23 de maio de 1932 – para resistir militarmente ao governo provisório de Vargas. O movimento foi contido, mas forçou a mão do então governante para convocar a Assembleia Constituinte.
de explosão” (art. 17, VIII). Abriga, outrossim, a proibição de cobrança, sob qualquer denominação, de tributos interestaduais, intermunicipais, de viação ou de transporte, ou quaisquer tributos que, no território nacional, gravem ou perturbem a livre circulação de bens ou pessoas e dos veículos que os transportem (art. 17, IX). (COSTA, 2015, p. 35)
É digno de nota que, no tocante às imunidades recíprocas, este é o
primeiro registro na história constitucional brasileira de menção aos municípios
como participantes do rol das pessoas políticas da federação37. Ainda, surgem
as imunidades referentes a impostos que constranjam diretamente as
profissões de escritor, professor ou jornalista.38
Outra curiosidade acerca da Constituição de 1934, e aqui no tangente às
imunidades dos templos, é que não somente foi vedado aos entes estabelecer,
subvencionar ou embaraçar o exercício dos templos, como também quis o
constituinte proibir a manutenção de relações de aliança ou dependência com
qualquer culto, ou Igreja sem prejuízo da colaboração recíproca em prol do
interesse coletivo.
Esta passagem, contida no inciso III do art. 17 da Carta Fundamental de
1934, é importante por demonstrar a continuidade do toque secular dos
governos, mas principalmente por revelar o interesse do Estado brasileiro na
propagação dos templos de qualquer culto enquanto células de
desenvolvimento individual e consecução do bem social.
A liberdade religiosa já era, portanto, muito mais que uma atividade a ser
meramente tolerada pelo Estado. O constituinte de 1934 teve a sensibilidade
de compreender que da colaboração entre Estado e Igrejas – sem
estabelecimento, subvenção ou embaraço de umas em detrimento de outras –
pode resultar o bem coletivo e a formação de um senso moral comum, por isso
mesmo sendo interessante que estas associações atuassem perseguindo este
objetivo (o mesmo do Estado) tanto quanto possível.
2.5 A Constituição de 1937 e o Estado Novo de Vargas
37 Art. 17, X e parágrafo único da CF/1934. 38 Art. 113, item 36 da CF/1934.
Apesar da promulgação da Constituição de 1934, o Brasil não conheceu
o fim do governo provisório de Vargas, instituído desde a Revolução de 1930.
Ao invés disso, constatou-se esforços para sua manutenção no poder, tudo
possibilitado em virtude da conspiração das forças internacionais que
influenciavam os acontecimentos nacionais.
Diz-se isto porque, nos primeiros trinta anos do século XX, com a
ocorrência da Primeira Guerra Mundial e do crack da bolsa de Nova York – que
mergulhou o mundo inteiro em crise financeira, inclusive o Brasil – a Europa se
viu arrebatada pelo surgimento de ideologias antiliberais.
A Revolução de 1917 depôs os czares russos e deu origem à URSS39,
disseminando pelo mundo os ideais coletivistas do comunismo. Em resposta,
surgiram no ocidente europeu (Itália e Alemanha) movimentos – embora
antiliberais – anticomunistas como o nazismo e fascismo.
O Brasil obviamente não passaria ao largo da ebulição ideológica
mundial. Sobre a reação brasileira a estas forças internacionais, Koshiba e
Frayze ensinam que embora Getúlio não fosse nem comunista nem nazi-
fascista, ele foi a expressão, no Brasil, dessa tendência mundial.
O chefe do governo provisório – após a promulgação da Carta de 1934 –
apropriou-se da bandeira anticomunista40 41 para construir o momento político
necessário à tomada do poder antes das eleições marcadas para 193842.
Assim, Getúlio Vargas conduz o Brasil à sua primeira ditadura, que ficou
conhecida como Estado Novo.
Sobre este momento histórico do constitucionalismo brasileiro,
recorremos uma vez mais às lições de Pinto Ferreira:
O referido documento político [Carta Magna de 10 de novembro de 1937], expressão nítida das ondas ideológicas internacionais, e ajustado a determinadas condições históricas nacionais, reagia energicamente, destarte, contra a ação
39 União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. 40 Em 1935, um grupo de militares ligados ao PCB encarregou-se de conferir veracidade ao
alarmismo varguista, ao promover um levante armado em Natal e no Recife, facilmente reprimido pelo governo. A rebelião ficou conhecida como “Intentona Comunista.”
41 A Farsa do Plano Cohen foi um plano imaginário de subversão comunista, alardeado pelos veículos de comunicação em setembro de 1937, que permitiu a Getúlio Vargas instaurar o Estado Novo em 10 de novembro de 1937.
42 Duas candidaturas prévias já haviam sido lançadas, em fins de 1936, para o pleito presidencial de 1938: a do paulista Armando de Sales Oliveira, e a do paraibano José Américo de Almeida.
violenta de certas forças imanentes da revolução proletária. A nova lei fundamental estabeleceu a preeminência do executivo frente aos poderes clássicos do legislativo e do judiciário, criando uma ditadura suis generis, que se propunha a conciliar os interesses do trabalhismo incipiente com as tendências conservadoras do capitalismo, na verdade uma conciliação difícil pelos antagonismos extremos das classes sociais. (FERREIRA, 1978)
Sobre a dominação ditatorial do Estado Novo citamos ainda Koshiba e
Frayze:
O Congresso Nacional foi dissolvido, juntamente com as casas legislativas estaduais e municipais. Vargas proibiu os estados de realizar empréstimos no exterior sem sua autorização; os gastos com as Forças Públicas foram limitados e os estados ficaram proibidos de equipá-las com armamentos pesados. (KOSHIBA; FRAYZE, 2007)
Nesta nova ordem constitucional, como se percebe pelo panorama
político-social que a produziu, a questão tributária foi relegada a papel de maior
coadjuvância. Costa relata que:
A Carta de 1937 foi a que menos se preocupou com o tema [das imunidades tributárias], prevendo, originariamente, apenas a vedação do embaraço aos cultos (art. 32, “b”), somente vindo a hospedar a imunidade recíproca com o advento da Emenda Constitucional 9, de 1945 (art. 32, “c”) (COSTA, 2015, p. 35)
Perceba-se, portanto, que em tempos de retrocesso social, de mitigação
das liberdades individuais e relativização de direitos fundamentais, as
imunidades – instrumentos de consecução destes primeiros – restam
igualmente prejudicadas. Ora, se a consequência natural das ditaduras é a
repressão ao que as imunidades protegem, então é natural que elas não
tenham sido objeto da redação do constituinte.
Nesse aspecto, devem ser feitas duas observações quanto aos
apontamentos de Regina Helena Costa, reveladores do tratamento dispensado
às imunidades recíproca e religiosa. Estas são as mais comuns nos textos
constitucionais e, ainda assim, encontraram-se mitigadas – poder-se-ia dizer
até suprimidas - nesta Constituição de 1937.
A pretensão de centralização do Poder, e o protagonismo do Executivo
sobre os demais poderes, nos leva a encontrar a justificativa para supressão da
imunidade recíproca no texto original da cártula fundamental posto que esta
exoneração é fundada no pacto federativo, conceito este oposto ao desiderato
varguista.
Por outro lado, verificou-se que a imunidade dos templos permaneceu
no texto original de modo simplificado, ou quase rudimentar. Optou-se por
restringir o estabelecimento, a subvenção e o embaraço aos cultos religiosos e
nada mais, ou seja, sem outras considerações a este respeito a nível
constitucional – nítido retrocesso em relação às Constituições Republicanas de
1891 e de 1934.
2.6 A Constituição Democrática de 1946
A Constituição de 1946 marcou O Retorno Liberal (CHACON, 1987) e o
fim do Estado Novo. Após ser pressionado – pelos Estados Unidos da América
– para entrar na Segunda Guerra Mundial ao lado dos aliados, Vargas não
conseguiu mais sustentar a contradição entre luta externa por democracia e
regime interno ditatorial.
Contra o mal maior da ditadura, as forças sociais que vinham sendo
oprimidas e empurradas para a periferia das decisões políticas, firmaram um
compromisso de composição nacional pautada – nas palavras de Pedro
Calmon – “como um documento histórico-ideológico que assinala uma época
de apaziguamento” (FERREIRA, 1978).
Sob o percuciente analisar de Ferreira, o texto fundamental de 1946
bebeu de três fontes principais: a Constituição norte americana de 178743, a
Constituição francesa de 184844 e a Constituição alemã de Weimar45. Embora
43 Da Constituição norte americana veio o princípio da descentralização, com o federalismo e o
municipalismo. 44 Do sistema constitucional francês importou-se a moderação ao poder do Presidente da
República, permitindo certa infiltração do parlamentarismo, tal qual ocorrera na Constituição de 1934. Ainda, a influencia francesa determinou a responsabilização política dos Ministros de Estado, que deixaram de ser meros assistentes do Presidente da República.
45 Weimar fora o marco democrático-social, que viabilizara novas medidas de intervencionismo, planejamento, leis trabalhistas, sindicalismo, direito de greve e etc.
o autor denote certa decepção no tocante ao alcance do vetor social46, é
inegável que o Texto Fundamental de 1946 devolveu o país aos trilhos
constitucional-democráticos da modernidade.
Com o retorno das liberdades individuais e de suas garantias, as
imunidades tributárias ganharam tratamento mais refinado. Costa destaca
algumas destas tendências albergadas já no texto original:
A Democrática Constituição de 1946, em sua redação original, previa a “isenção” do imposto de consumo em relação aos artigos que a lei classificasse como o “mínimo indispensável” a habitação, vestuário, alimentação e tratamento médico das pessoas de restrita capacidade econômica (art. 15, §1o), a imunidade recíproca (art. 31, V, “a”), a imunidade dos templos, partidos políticos, instituições educacionais e de assistência social (art. 31, V, “b”) e do papel destinado exclusivamente à impressão de jornais, periódicos e livros (art. 31, V, “c”). (COSTA, 2015, p. 35)
Digna de nota, ainda, a imunidade prevista no art. 203 da Carta de 1946,
que protegeu da incidência dos tributos diretos os direitos do autor e a
remuneração de professores e jornalistas. Com a Emenda Constitucional n. 9
de 1964, todavia, esta imunidade viu seu alcance limitado para excluir os
impostos gerais de sua esfera de exoneração (COSTA, 2015).
Posteriormente a Carta de 1946 veio a ser modificada – no tocante às
imunidades – pela Emenda Constitucional n. 10 de 1964, que imunizou os
proprietários no caso de desapropriação para fins de reforma agrária, na
transferência da propriedade desapropriada, em relação a impostos federais,
estaduais e municipais (art. 147, §6º) (COSTA, 2015).
O estudo das imunidades tributárias tal como as conhecemos traça sua
gênese até a constituição democrática de 1946, especialmente no que se
refere à imunidade de impostos. Isto porque a redação do atual art. 150, VI da
CF/88 reproduz em grande parte o que dispunha o art. 31, V do texto de 1946.
Chamamos atenção para a maior precisão que fora dada ao tratamento
das imunidades tradicionalmente postas nas constituições anteriores, e às
46 Afirma Pinto Ferreira que “a Constituição de 1946 insistiu em demasia na índole
conservadora da burguesia esclarecida, reproduzindo constantemente o teor democrático-social de 1934, da qual é uma reprodução mais apurada, de sorte que está antedata em relação ao seu Zeitgeist, ao espírito do seu tempo. A democracia socialista, e não a democracia social, é o imperativo do constitucionalismo moderno [...]”
novas que vieram a integram o diploma fundamental. Nesse sentido,
importante mencionar que o art. 31, V, prevê a impossibilidade dos entes
federados lançarem impostos uns sobre os outros (item a), sobre papel
destinado exclusivamente à impressão de jornais, periódicos e livros (item c), e
– finalmente - sobre templos de qualquer culto bens e serviços de Partidos
Políticos, instituições de educação e de assistência social, desde que as suas
rendas sejam aplicadas integralmente no País para os respectivos fins (item b).
Observe-se que os templos de qualquer culto foram posicionados no
mesmo item que abarcava outras entidades, revelando uma aparente
contradição entre a imunidade objetiva do templo e subjetiva daqueles outros
elementos. Todavia, tal confusão desaparece perante os comentários de
Carlos Maximiliano à Constituição de 1946:
248 – Mais completamente do que no art. 31, acha-se a doutrina de Jefferson condensada no art. 141, §§ 7º e 8º. O §3º, hoje §7º, restituiu às associações religiosas o direito de adquirir e o de vender bens. [...] Apenas se enquadram as corporações religiosas na regra geral: para adquirir, possuir e alienar bens, constituem-se em PESSOAS JURÍDICAS de conformidade com a lei (Código Civil arts. 16 a 18) (MAXIMILIANO, 1954, p. 381)
O art. 141, § 7º da Constituição de 1946 consagrava a liberdade
religiosa enquanto direito individual e consignou que, para seu exercício,
deveriam as corporações religiosas revestir-se de personalidade jurídica –
detentora de patrimônio e renda - justamente por permitir a sua interação com
os demais atores sociais.
Assim, percebe-se que o culto é viabilizado pela mesma pessoa jurídica
– Igreja – que mantém o templo dentro do qual os atos religiosos são
praticados47. Sendo a Igreja-entidade o elo entre o templo-objeto e o Estado
Fiscal, justificava-se sua presença entre as demais entidades elencadas no art.
31, V, “b” da Carta de 1946.
Outra contradição aparente entre os templos e as demais entidades ali
contidas – que se diga, não merece maior sobrevida - é que, enquanto a
liberdade religiosa impõe um comportamento negativo do Estado, ou seja, uma
47 Constatação que gerou muita controvérsia na doutrina nos anos vindouros.
postura de deferência diante do exercício religioso, as outras imunidades
revelam tutela a outros valores fundamentais da República48, que perseguidos
paralelamente ao Estado, merecem seu incentivo – e, portanto, clamam por
uma conduta estatal ativa.
Reforça esta aparente dicotomia os dispositivos – presentes em todas as
constituições brasileiras - que determinam a impossibilidade do poder público
subvencionar as religiões, consagrando intento diverso daquele de incentivar a
atuação dos partidos políticos, instituições de educação e assistência social.
Contudo, defende-se uma melhor análise sobre a vedação à subvenção
dos templos, tal qual fora consignado na Constituição de 1934 em seu art. 17,
inciso III49. O dispositivo fora temperado, naquela ocasião, pela concepção de
que seria possível ao Estado cooperar com as Igrejas – desde que
indiscriminadamente - no tocante às atividades que direcionassem a sociedade
para o bem comum50.
Assim sendo, veja-se que as entidades descritas no art. 31, V, “b” da
Constituição de 1946 eram subordinadas a uma condicionante
constitucionalmente qualificada: a aplicação integral de suas rendas no
território nacional. Posteriormente, os templos foram desmembrados, ganhando
item próprio, e as demais entidades imunes tiveram sua condicionante
ampliada pelo Código Tributário Nacional de 196651.
48 Os partidos políticos viabilizam a democracia, a representação popular, o sufrágio, e o
aparelho federativo. As instituições de educação e assistência social desempenham atividades que são competências do próprio Estado, e cuja execução interessa a toda a sociedade, atendendo a direitos individuais ligados ao mínimo existencial do cidadão brasileiro.
49 Vide item 1.5.3. 50 Importante observar que, a moral religiosa – seja ela qual for – revela-se como um
instrumento de controle social que, embora paralelo ao direito, muitas vezes aponta para a mesma direção dele. É o caso, por exemplo, dos ensinamentos de benevolência, retidão de caráter, comunitarismo. Todavia, deverá estar reservado ao direito seu campo de autonomia – como quer Streck – para eventualmente contrariar a moral religiosa em defesa da Constituição, como nos casos de casamento homoafetivo, descriminalização do uso de certas drogas, etc.
51 A discussão acerca do Código Tributário Nacional iniciaram-se em 1954, quando o então Ministro da Fazenda Oswaldo Aranha encaminhou ao presidente da República o Projeto do CTN. Neste documento, as imunidades tributárias (art. 6o – Limitações da Competência Tributária) estavam dispostas tal qual no art. 31, V da Constituição. Levantou-se a questão do desmembramento do item II do art. 11 do Anteprojeto do CTN ( correspondente à letra “b” do art. 31, V da CR/1946) para dar aos templos regramento próprio e isolado, restringindo-lhes o alcance para o edifício ou parte dele destinada exclusivamente para as cerimônias religiosas. Preferiu-se deixar a disposição dos itens tal qual na Constituição da República. Todavia, com a Emenda Constitucional 18 de 1965 (em seu art. 2o, IV, “b” e “c”), cuja produção foi oriunda dos fecundos debates que geraram o CTN no ano seguinte, alterou o
Vale mencionar que muitas das controvérsias atualmente existentes em
relação à imunidade dos templos religiosos são reminiscentes dos debates
carreados quando da elaboração do Código Tributário Nacional, como a
natureza dessa imunidade, sua extensão e o papel da lei na sua disciplina. A
título de exemplo, consta do Relatório produzido por Rubens Gomes de Sousa
para a Comissão de Elaboração do Projeto do Código Tributário Nacional em
1954:
As sugestões 273 e 488, a primeira delas apoiada por numerosas solicitações que a Comissão registrou como sugestões 274 a 342, postularam que a alínea II definisse o conceito de templos, de modo a incluir veículos, edifícios não destinados à celebração do culto e mesmo instalações e pertences. Embora a interpretação ampliativa conte com subsídio doutrinário autorizado (BALEEIRO, op. Cit, p. 112) a Comissão, atentando para a ausência de qualificação no texto constitucional, preferiu considerar o problema como questão de fato. Coerente com essa orientação, suprimiu a ressalva constante da alínea II do art. 11 do Anteprojeto, que limitaria o conceito de templo exclusivamente a imóveis, sem que isso, por outro lado, importe em admitir no conceito os pertences e acessórios mobiliários, como imagens e alfaias, enquanto não incorporadas por acessão.52
É a partir da segunda metade da década de 1950, portanto, que as
imunidades ganham especial relevância constitucional, em virtude da
estruturação do Sistema Tributário Nacional pela Emenda Constitucional n.
18/1965 e também graças ao Código Tributário Nacional, que consolidava o
ideal federativo ao estabelecer competências específicas aos entes, limitá-las
quando preciso e compartilhá-las quando necessário.
2.7 As Constituições de 1967-69 e a Ditadura Militar
No ano de 1964 o Brasil viu-se novamente mergulhado num regime
militar. Utilizando-se do antigo pretexto varguista de iminência de um golpe
Sistema Tributário-Constitucional, promovendo a separação – em ambos os textos, constitucional e legal – entre templos e demais entidades (partidos políticos, instituições de educação e assistência social), sendo que estas últimas passaram a submeter-se aos requisitos de lei complementar (trazidos pelo art. 14 do CTN).
52 Importante destacar que as numerosas sugestões a que se referiu o Relator do Projeto – 274 a 342 – foram, em grande parte, propostas por entidades religiosas como a Confederação Evangélica do Brasil, a Igreja Presbiteriana de Madureira, dentre outros.
comunista, as Forças Armadas depuseram o atual presidente em exercício,
João Goulart, e instituíram a ditadura.
Inaugurando o Regime dos Atos Institucionais (SILVA, 2011), veio o AI
1, de 9 de abril de 1964, que mantinha a ordem constitucional vigorante – de
1946 – mas impunha várias cassações de mandatos e suspensões de direitos
políticos. Em seguida, foi eleito presidente o Marechal Humberto de Alencar
Castello Branco.
Sobre a ruptura com a ordem democrática anterior, José Afonso da Silva
leciona que:
Nova crise culminou com o AI 2, de 27.10.65, e outros complementares. Vieram ainda os AI3 e 4. Este regulando o procedimento a ser obedecido pelo Congresso Nacional, para votar nova Constituição, cujo projeto o governo apresentou. A 24.1.67, fora ela outorgada, o que veio a resumir as alterações institucionais operadas na Constituição de 1946, que findava após sofrer vinte e uma emendas regularmente aprovadas pelo Congresso Nacional com base em seu art. 217, e o impacto de quatro atos institucionais e trinta e sete atos complementares, que tornaram incompulsável o Direito Constitucional positivo então vigente. (SILVA, 2011, p. 86)
O insigne doutrinador continua descrevendo os contornos que assumiu o
Texto Fundamental de 1967:
Sofreu forte influência da Carta Política de 1937, cujas características básicas assimilou. Preocupou-se fundamentalmente com a segurança nacional. Deu mais poderes à União e ao Presidente da República. Reformulou, em termos mais nítidos e rigorosos, o sistema tributário nacional e a discriminação de rendas, ampliando a técnica do federalismo cooperativo, consistente na participação de uma entidade na receita de outra, com acentuada centralização. Atualizou o sistema orçamentário, propiciando a técnica do orçamento-programa e os programas plurianuais de investimento. Instituiu normas de política fiscal, tendo em vista o desenvolvimento e o combate à inflação. Reduziu a autonomia individual, permitindo suspensão de direitos e de garantias constitucionais, no que se revela mais autoritária do que as anteriores, salvo a de 1937. (SILVA, 2011, p. 86)
Na questão tributária, a novel Constituição pouco inovou além do que
José Afonso da Silva aponta. Com relação especificamente às imunidades
tributárias, Regina Helena Costa assevera que se manteve – em linhas gerais –
aquilo que previa a superada Carta de 1946 e sua Emenda Constitucional n. 18
de 1965.
Com efeito, um ano após a outorga da Carta de 1967, produziu-se o Ato
Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968. O ato veio romper com a ordem
constitucional, dando ao presidente da República o poder para: decretar o
recesso do Congresso Nacional; intervir nos Estados e Municípios; cassar
mandatos parlamentares; suspender, por dez anos, os direitos políticos de
qualquer cidadão; decretar o confisco de bens considerados ilícitos; e
suspender a garantia do habeas-corpus dos presos políticos.
A partir daí, seguiu-se período tenebroso da história do Brasil, marcado
pela suspensão de direitos e garantias individuais, encerramento das garantias
de autonomia dos magistrados, prática de tortura e paralização da democracia,
o que viria a prolongar-se por 10 anos.53
Em outubro de 1969, a Carta de 1967 sofreu sua primeira Emenda. Em
verdade, “a emenda só serviu como mecanismo de outorga, uma vez que
verdadeiramente se promulgou texto integralmente reformulado” (SILVA, 2011,
p. 86).
A Emenda que aludiu, pela primeira vez, à Constituição da República
Federativa do Brasil, apesar de manter quase que integralmente as disposições
de sua predecessora, com eventual deslocamento de dispositivos, trouxe a
relevante mudança no que diz respeito ao fim do princípio da anualidade
tributária, que obrigava a conter em lei orçamentária a previsão da cobrança do
tributo, para fins de fixação do princípio da anterioridade (GUIMARÃES, 2006).
Outras Emendas sucederam a de 1969, até que se chegasse à Emenda
Constitucional n. 26, de 1985. Esta não mais alterou o texto fundamental de
1967-69, mas convocou a Assembleia Constituinte para destruí-lo, inaugurando
nova ordem constitucional.
Este momento coincidiu com a queda da ditadura e a redemocratização,
após vinte penosos anos de autoritarismo e exceção institucional. Reunida a
Assembleia Nacional Constituinte, a partir de 1o de fevereiro de 1987, produziu-
se o texto final mediante aprovação em dois turnos de discussão e votação,
pela maioria absoluta dos seus membros.
53 O AI5 só veio a ser revogado em 31 de setembro de 1978, último dia de governo do
Presidente Ernesto Geisel.
A Constituição Federal de 1988, segundo José Afonso da Silva, constitui
um texto razoavelmente avançado, moderno, com inovações de relevante
importância para o constitucionalismo brasileiro e até mundial.
2.8. A Constituição Cidadã de 1988
2.8.1 Estrutura das imunidades tributárias na nova ordem constitucional
Não há dúvidas de que a Constituição Federal de 1988 é herdeira do
desejo liberal hospedado na Carta de 1946. A associação é natural quando se
verifica que as duas marcaram o término de regimes ditatoriais e opressores: a
ditadura militar e o Estado Novo de Vargas.
Todavia, não passaram ao largo da “Constituição Cidadã” os direitos
sociais e a preocupação com a grande massa proletária brasileira, que se
firmara no Texto fundamental de 1934.
Também veio a fazer parte de sua estrutura fundamental, a atenção
despendida à unicidade da federação, o ideal desenvolvimentista dotado de
proporcionalidade, o corporativismo tecnicista e a participação do Estado na
economia, típicos do período militar.
A Carta de 1988, desta feita, foi produto de intensa discussão no
Congresso Constituinte54 e buscou conciliar interesses esquerdo-progressistas
com direito-conservadores o máximo possível. Resultado foi a produção do
texto baseado em 9 títulos: dos princípios fundamentais; dos direitos e
garantias fundamentais; da organização do Estado; da organização dos
poderes; da defesa do Estado e das instituições democráticas; da tributação e
do orçamento; da ordem econômica; da ordem social; das disposições gerais
(SILVA, 2011, p. 88).
Em relação à tributação e ao orçamento, a novel Constituição estruturou
o Sistema Tributário Nacional, que contou com seções referentes (1) aos
princípios gerais, (2) às limitações do poder de tributar, à distribuição da
competência tributária para instituir impostos entre (3) União, (4) Estados e (5)
54 Termo a que se refere José Afonso da Silva para aludir à convocação dos membros tanto da
Câmara dos Deputados quanto do Senado Federal para compor a Assembleia Constituinte que daria à luz a Constituição Federal de 1988.
Municípios, e (6) da repartição da receita tributária entre os entes da
federação55.
Importante destacar que as imunidades tributárias se inserem na Seção
“Limitações Do Poder De Tributar”, juntamente com princípios constitucionais
que opõem óbice ao livre exercício da competência tributária.
Nesse sentido, Misabel Derzi ao atualizar a obra do insigne Aliomar
Baleeiro – “Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar” – assevera que
tanto os princípios como as imunidades produzem efeitos similares: limitam o
poder de tributar.56
Entendemos que identificar na imunidade tributária uma limitação ao
poder de tributar não deve ser vista como tentativa de defini-la, mas sim como
técnica útil à sua compreensão no contexto constitucional. Diante da
multiplicidade de elementos – princípios, imunidades, isenções com assento
constitucional – que limitam a competência tributária, e que com imunidade não
se confundem, não seria razoável apropriar-se do epíteto genérico para defini-
los em espécie.
Neste ponto, inclusive, importante salientar que a Constituição Federal
de 1988 não se utiliza do termo “imunidade tributária”. Em vez disso, serve-se
de expressões que redundam em demarcação da zona de incompetência
tributárias dos entes tributantes. É a lição de Regina Helena Costa57:
[...] em nenhuma passagem a Lei Maior contemplo o termo ‘imunidade’, utilizando-se da expressão ‘é vedado (...) instituir impostos sobre’ quando elenca as imunidades genéricas (art. 150, VI), reiterando, insistentemente, a expressão ‘o imposto (...) não incidirá’ em várias hipóteses de imunidades específicas e também fazendo referências, impropriamente, à isenção no que tange a impostos e contribuições. No que tange às taxas, a Lei Maior prefere referir-se à gratuidade do serviço.
Natural que surja o questionamento, diante desta constatação, acerca da
diferenciação entre isenção e imunidade, afinal, os termos desaguam em
55 Consagrando a tendência aflorada desde o período militar de Federação Participativa. 56 A doutrina normalmente diferencia imunidade de princípio, rechaçando sua correlação.
Regina Helena Costa aduz que princípios e imunidades desempenham um papel distinto no papel de limitar o exercício da competência tributária. Estes, porque orientam o válido exercício da competência tributária; aquelas, porque demarcam a amplitude das normas atributivas de competência.
57 In: GUIMARÃES, 2006.
concepções díspares para a ciência do Direito Tributário, muito embora sejam
empregados pela CF/88 indiscriminadamente.
As lições da mesma doutrinadora tornam de fácil deslinde o ponto nodal
proposto:
As diferenças entre os institutos [imunidade e isenção] podem, então, ser assim sumariadas: 1) a imunidade é, por natureza, norma constitucional, enquanto a isenção é norma legal, com ou sem suporte expresso em preceito constitucional; 2) a norma imunizante situa-se no plano da definição da competência tributária, alocando-se a isenção, por seu turno, no plano do exercício da competência tributária; 3) ainda que a isenção tenha suporte em preceito constitucional específico, a norma constitucional que a contém possui eficácia limitada, enquanto a imunidade abriga-se em norma constitucional de eficácia plena ou contida; e 4) a eliminação da norma imunitória somente pode ser efetuada mediante o exercício do Poder Constituinte originário, porquanto as imunidades são cláusulas pétreas, e a partir de então a competência tributária pode ser exercida, desde que não seja o caso de imunidade ontológica; uma vez eliminada a isenção, por lei, restabelece-se a eficácia da lei instituidora do tributo, observados os princípios pertinentes. (COSTA, 2015, p. 120)
Trocando em miúdos, extraímos do magistério de Costa que,
independentemente da técnica de redação constituinte, as imunidades poderão
ser percebidas sempre que se estiver diante de uma norma constitucional de
eficácia plena ou contível, delineadora de competência tributária – e não
presumidora desta demarcação (campo do exercício da competência).
Com efeito, estas expressões transportadoras de imunidades tributárias
estão em diversas passagens do Texto Fundamental de 1988, sendo mais
nitidamente visíveis no art. 150, VI da Constituição, que contém as chamadas
“imunidades genéricas”58, referentes a impostos.
Por outro lado, a Carta de 1988 também trouxe hipóteses de imunidades
tributárias específicas, destinadas a definir a intributabilidade em relação a
impostos, e.g: IPI sobre exportação de produtos industrializados; ITBI sobre os
direitos reais de garantia de bens imóveis; e impostos federais, estaduais e
municipais sobre as operações de transferência de imóveis desapropriados
para fins de reforma agrária; à taxas, e.g: pelo direito de petição aos poderes
58 É neste rol que se insere as imunidades dos templos de qualquer culto – art. 150, §4o da CF/88.
públicos; e pela obtenção de certidões em repartições públicas; e a
contribuições: e.g: dos necessitados da assistência social oficial; e das
entidades beneficentes de assistência social, relativamente às contribuições
para seguridade social.
Diante disso, as imunidades tributárias, sejam elas genéricas ou
específicas, são instrumentos de delimitação de competência tributária.
Enquanto as demais regras assentam a zona de tributabilidade, as imunidades
fixam a zona de intributabilidade, assim traçando o desenho constitucional de
distribuição das competências tributárias dos entes federativos.
Tanto é assim, que Paulo de Barros Carvalho observa que “[...] a
imunidade não exclui nem suprime competências tributárias, uma vez que
estas representam o resultado de uma conjunção de normas constitucionais,
entre elas, as de imunidade tributária”. (CARVALHO, 2004, p.172)
Na persecução deste desiderato estruturante da competência tributária,
as normas constitucionais reveladoras de imunidade revelam sempre um
aspecto formal atinente à impossibilidade de tributação, um obstáculo
intransponível à fixação da competência para determinado ente tributar um
objeto, atividade ou pessoa.
Sob este prisma formal da imunidade, aduz Costa que:
Sob o prisma formal a imunidade, em nosso entender, excepciona o princípio da generalidade da tributação, segundo o qual todos aqueles que realizam a mesma situação de fato, à qual a lei atrela o dever de pagar tributo, estão a ele obrigados, sem distinção. Assim, sob esse aspecto, a imunidade é a impossibilidade de tributação – ou intributabilidade – de pessoas, bens e situações, resultante da vontade constitucional.” (COSTA, 2014, p. 58, grifo nosso)
2.8.2 Substância das imunidades tributárias na nova ordem constitucional
A mesma doutrinadora, todavia, entende a imunidade como uma moeda
de duas faces, possuidora de dúplice natureza: além de norma constitucional
demarcadora de competência, constitui direito público subjetivo das pessoas
direta ou indiretamente por ela favorecidas (COSTA, 2014).
Esta face de direito público subjetivo justifica-se pela essência da norma
imunizante, sempre contendora de forte conteúdo axiológico, orientado à
concretização de princípios constitucionais.
Nesse sentido, impende observar que a Constituição de 1988
estabeleceu novo paradigma no que pertine à constituição de uma carta de
valores consagradora de princípios morais e direitos fundamentais inafastáveis,
frequentemente utilizados pelo constituinte como a própria substância das
imunidades.
A nova ordem é inaugurada com uma profunda reformulação ideológica
de seu texto. Com a vitória da democracia sobre a ditadura que durou 20 anos,
pela primeira vez o legislador constituinte entendeu por bem posicionar os
princípios fundamentais da República (COSTA, 2014) e os direitos e garantias
do cidadão como capítulos inaugurais do texto normativo-constitucional.
Chamamos a atenção para o fato de a Constituição democrática de 1946
apenas tratar dos direitos e garantias individuais a partir de seu art. 141,
integrante do Título IV daquele diploma fundamental.
É que tradicionalmente – nas constituições brasileiras - a preocupação
com a organização do Estado e com a arquitetura dos três poderes ganhavam
os primeiros Títulos das Constituições, sendo os direitos do cidadão (civis,
sociais, econômicos e políticos) relegados para um segundo momento da
preocupação do Constituinte.
A “Constituição Cidadã”, todavia, irrompeu o ciclo, para inaugurar nova
disposição geográfica dos títulos constitucionais, demonstrando a adoção de
proeminente preocupação com direito humanos, dignidade da pessoa e
garantias individuais e sociais.
Trouxe em seu seio uma perspectiva moderna e abrangente dos direitos
individuais e coletivos, dos direitos sociais dos trabalhadores, da nacionalidade,
dos direitos políticos e dos partidos políticos (COSTA, 2014). Dentro desta
nova lógica, e considerado a superação histórica de um regime ditatorial que
restringia as liberdades do indivíduo, as liberdades fundamentais ganharam
especial relevo no artigo 5º da Constituição Federal de 1988.
Os chamados direitos fundamentais de “primeira geração”59, vieram a
encerrar liberdades públicas enquanto manifestações externas da liberdade
interna de escolha. Sobre estes dois prismas da liberdade, conceitua José
Afonso da Silva:
Liberdade interna é o livre-arbítrio, como simples manifestação da vontade do mundo interior do homem. Por isso é chamada igualmente liberdade do querer. Significa que a decisão entre duas possibilidades opostas pertence, exclusivamente, à vontade do indivíduo [...]. A questão fundamental, contudo, é saber se, feita a escolha, é possível determinar-se em função dela. Isto é, se se têm condições objetivas para atuar no sentido da escolha feita, e, aí, se põe a questão da liberdade externa. (SILVA, 2011)
Sobre esta última, continua o autor:
Esta. Que é também denominada liberdade objetiva, consiste na expressão externa do querer individual, e implica o afastamento de obstáculo ou de coações, de modo que o homem possa agir livremente. Por isso é que também se fala em liberdade de fazer, “poder de fazer tudo o que se quer.” (SILVA, 2011)
Estas liberdades fundamentais vieram a ser revestidas de garantias
contra abusos do Estado e de particulares. Quanto àquele, passou a ser
vedado o exercício da soberania invasiva e inibidora das liberdades individuais
(sem justa causa) e, sendo o poder de tributar um incidente daquela
soberania60, o mesmo veio a conhecer as imunidades enquanto demarcadoras
de sua incompetência em relação a determinados princípios constitucionais.
Percebe-se a associação direta entre estes elementos substanciais das
imunidades e aquelas expostas no rol genérico trazido pelo art. 150, VI, da
CF/88. É o texto:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...]
59 Terminologia inicialmente desenvolvida por Karl Vasak e, posteriormente, desenvolvida por
Norberto Bobbio. A propósito, v. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 8ª ed. Rio de Janeiro.
60 Vide Cornell University Law School , 2015.
VI - instituir impostos sobre: a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros; b) templos de qualquer culto; c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei; d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão. e) fonogramas e videofonogramas musicais produzidos no Brasil contendo obras musicais ou literomusicais de autores brasileiros e/ou obras em geral interpretadas por artistas brasileiros bem como os suportes materiais ou arquivos digitais que os contenham, salvo na etapa de replicação industrial de mídias ópticas de leitura a laser. (BRASIL, 1988)
A letra “a” resguarda a conjugação necessária entre os princípios
federativo e da autonomia municipal (SILVA, 2011), ambos princípios
fundamentais da república. A letra “b” encerra salvaguarda às liberdade
fundamentais de crença e manifestação religiosa.
A letra “c” protege o pluralismo político e a cidadania, os valores sociais
do trabalho – fundamentos da república – e a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária, e promoção do bem – objetivos da República. A letra “d”
ampara os direitos fundamentais à informação e à liberdade de expressão e
manifestação do pensamento, bem como atua como catalisador dos objetivos e
fundamentos da República.
E, por fim, a letra “e”, adicionada ao texto fundamental pela Emenda
Constitucional n. 75 de 2013, dá suporte a alguns dos valores tutelados pela
alínea “d”, especialmente no que tange à liberdade de comunicação, à
liberdade de manifestação do pensamento e à expressão da atividade artística.
Em virtude do caráter fundamental da substância das normas
imunizantes – em especial das imunidades genéricas61 - seu entendimento
deve acompanhar o do objeto de sua proteção. Nesse sentido, Ingo Sarlet
entende os princípios fundamentais da República como detentores da
“qualidade de normas embasadoras e informativas de toda a ordem
constitucional, inclusive (e especialmente) das normas definidoras de direitos e
garantias fundamentais” (SARLET, 1988, p. 61).
61 As imunidades genéricas estão contidas em normas de maior amplitude ou de maior
abertura horizontal (COSTA, 2015).
No mesmo sentido, Ricardo Lobo Torres assevera que imunidade
tributária, do ponto de vista conceptual, é uma relação jurídica que
instrumentaliza os direitos fundamentais (TORRES, 1995).
Portanto, a correspondência entre as imunidades genéricas (art. 150, VI
da CF/1988) e os artigos 1o a 5o (insertos nos Títulos I e II: princípios
fundamentais e direitos e garantias fundamentais, respectivamente) da
Constituição Federal, demandam a aproximação do art. 60, §4o da CF/1988,
consagrador das cláusulas pétreas. É o texto:
“Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: […] § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais. (BRASIL, 1988)
Em virtude de consubstanciarem instrumentos de efetivação de
clausulas pétreas, as imunidades não permitem ao legislador aboli-las, e nem
ao intérprete empreender exercício hermenêutico que venha a a menoscabar
seu conteúdo.
Ganha força a afirmativa quando considerada a rigidez da constituição
brasileira62. Nos dizeres de Costa:
Em outras palavras, quando a exoneração tributária é outorgada por uma Constituição, pretende-se seja perene. Se a Constituição é rígida, tal perenidade está assegurada em termos mais consistentes, diante do maior grau de dificuldade estabelecido para sua modificação. (COSTA, 2015, p. 75)
Nesse diapasão, as imunidades figuram no rol das mais rígidas
estruturas constitucionais, impassíveis de serem atacadas por qualquer ato
emanado do Poder Constituinte Derivado. Somente a convocação de nova
Assembleia Constituinte, apta a exercitar o Poder Constituinte Originário,
poderia vir a tolir estas normas delimitadoras da competência tributária estatal.
62 Sobre a rigidez das constituições, apropriamo-nos do conceito de José Afonso da Silva, para
quem rigidez constitucional significa imutabilidade da Constituição por processos ordinários de elaboração legislativa.
2.8.3 Método de interpretação das imunidades tributárias
Do cotejo entre os aspectos teleológico e formal das imunidades
tributárias, exsurgem preocupações. É que os vetores liberdade fundamental e
soberania tributária precisam produzir imunidade que mantenha o equilíbrio das
normas constitucionais.
É papel do intérprete da Constituição, portanto, mergulhar nas entranhas
do texto constitucional para então retirar-lhe o significado. A tarefa não é nada
fácil, como bem lembra Canotilho ao aduzir que “a questão do método justo em
Direito Constitucional é um dos problemas mais controvertidos e difíceis da
moderna doutrina juspublicística” (COSTA, 2015, p. 124).
A justiça no método de conjunção dos vetores acima denominados,
encontra-se nas lições de Marco Aurélio Greco apud Regina Helena Costa:
Em função dessa duplicidade de feições, a interpretação das limitações, ao mesmo tempo (e este é o grande desafio), não pode resultar nem numa conclusão que implique em ela se tornar maior que o próprio poder que está sendo limitado (pois limitação não é negação do poder, mas restrição na sua amplitude e no seu exercício), nem pode dar à norma constitucional que a prevê um sentido tão restrito que iniba a proteção ao valor subjacente. (COSTA, 2015, p. 127)
Completa a autora pontuando que:
Desse modo, a interpretação da norma imunitória deve ser efetuada na exata medida; naquela necessária a fazer dela exsurgir o princípio ou valor nela albergado. Sendo assim, não se apresenta legítima a interpretação ampla e extensiva, conducente a abrigar, sob o manto da norma imunizante, mais do que aquilo que quer a Constituição, nem a chamada “interpretação literal”, destinada a estreitar, indevidamente, os limites da exoneração tributária. Em ambos os casos, o querer constitucional estaria vulnerado. (COSTA, 2015, p.128)
Extrai-se destas lições que à norma constitucional não deve ser dada
demasiada extensão, e nem excessiva restrição, sendo certo que ambas as
situações não se coadunam com a intenção do constituinte, ou seja, são
igualmente reprováveis.
Rechaçada a interpretação literal das imunidades tributárias, entendida
como “a mais pedestre das interpretações”63, a autora supracitada sugere que,
consideradas as particularidades enfrentadas pelo intérprete ao interpretar
normas constitucionais (supremacia da Constituição, a natureza da linguagem,
o caráter político e a especialidade de seu conteúdo), sejam privilegiados os
métodos sistemático e teleológico. É o texto:
A partir da identificação do objetivo (ou objetivos) da norma imunizante, deve o intérprete realizar a interpretação mediante a qual aquele será atingido em sua plenitude, sem restrições ou alargamentos do espectro eficacial da norma, não autorizados pela própria Lei Maior. Em outras palavras, a interpretação há que ser teleológica e sistemática – vale dizer, consentânea com os princípios constitucionais envolvidos e o contexto a que se refere. (COSTA, 2015, p. 127)
Sobre o elemento teleológico da norma, discorre Carlos Maximiliano
que:
Segundo os Estatutos da Universidade de Coimbra, de 1772, descobrem-se o sentido e o alcance de uma regra de Direito, com examinar as circunstâncias e os sucessos históricos que contribuíram para a mesma, e perquirir qual seja o fim do negócio de que se ocupa o texto; põem-se em contribuição, portanto, os dois elementos – a Occasio legis e a Ratio juris. Conclui o repositório de ensinamentos jurídicos: “este é o único e verdadeiro modo de acertar com a genuína razão da lei, de cujo descobrimento depende inteiramente a compreensão do verdadeiro espírito dela. (MAXIMILIANO, 2000)
E, por fim, arremata o mesmo autor, em sintonia com as lições outrora
expostas:
Não se deve ficar aquém, nem passar além do escopo referido; o espírito da norma há de ser entendido de modo que o preceito atinja completamente o objetivo para o qual a mesma foi feita, porem dentro da letra dos dispositivos. (MAXIMILIANO, 2000)
É interessante observar que o próprio Maximiliano, apesar de
reconhecer que o método teleológico deva assumir precedência na
63 Frase do constitucionalista e Vice-Presidente da República, Michel Temer (CÂMARA DOS
DEPUTADOS, 2009).
interpretação constitucional, reconhece que o mesmo não é absolutamente
infalível.
Mais uma vez, tornam-se relevantes as instruções de Regina Helena
Costa, no sentido de aliar ao elemento teleológico o método de interpretação
sistemática, especialmente porque sendo as imunidades garantias de
liberdades fundamentais, acabam por conectar outras regras e princípios.
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