especial água viva

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ÁGUA VIVA

“Tinha que existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura – o objeto – que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança um mito. Tal pintura contenta-se em evocar os reinos incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna existência.” Michel Seuphor

Leituras de Clarice Lispector

William Faulkner

Virginia Woolf

James Joyce

Marcel Proust

A interpretação da obra deve começar pelo título Água viva. A respeito disso, Olga de Sá afirma: “É coisa que borbulha na fonte. É também medusa, corpo mole, gelatinoso [...], dá picadas ardidas na pele do homem e dos animais [...] é, portanto, água, mar, medusa, fogo, matéria viva escaldante, plasma plástico e cromático.”

Nunes completa, afirmando que Água viva também possui uma conotação espiritual, podendo significar água de vida, batismal

ÁGUA VIVA

Água Viva é um livro que desafia os paradigmas dos elementos narrativos, em que tempo, enredo e personagens se desagregam, formando uma narrativa carregada de lirismo poético; porém, com sua estética em prosa.

ÁGUA VIVA

“No monólogo interior o sujeito expressa seu pensamento mais íntimo, mais próximo do inconsciente, anterior a qualquer organização lógica, ou seja, em seu estado nascente através de frases reduzidas ao mínimo sintático, de modo a dar a impressão de tudo vindo.” MAINGUENEAU, 1996

Um texto muito distante de narrar linearmente uma história. O enredo que se apresenta como um grande poema, ou melhor, como exemplo de uma belíssima prosa-poética em digressões sobre as sensações e as percepções do indivíduo feminino:

“Ouve-me então com teu corpo inteiro. Quando vieres a me ler perguntarás por que não me restrinjo à pintura e às minhas exposições, já que escrevo tosco e sem ordem. É que agora sinto necessidade de palavras – e é novo para mim o que escrevo porque minha verdadeira palavra foi até agora intocada. A palavra é a minha quarta dimensão” (p.10).

Enredo

Não sei sobre o que estou escrevendo: sou obscura para mim mesma. p. 24

No decorrer do discurso, a narradora deixa inúmeras pistas de que seu propósito não é escrever uma história

Isto não é uma história porque não conheço história assim, mas só sei ir dizendo e fazendo: é história de instantes que fogem como os trilhos fugitivos que se veem da janela do trem. p. 73

Enredo

O texto é narrado por uma personagem-narradora que se apresenta como uma pintora e tem como tema a busca de identidade. Em Água Viva um Eu escreve a um Tu explorando suas descobertas interiores e deixando de lado os acontecimentos externos.

E se eu digo "eu" é porque não ouso dizer "tu", ou "nós" ou "uma pessoa", sou obrigada à humildade de me personalizar me apequenando mas sou o és-tu. p. 13

Personagens

Os nomes das personagens não aparecem na história que é narrada em primeira pessoa.

Guardo o seu nome em segredo. Preciso de segredos para viver. P. 72

Quanto ao espaço de Água viva, este segue à risca aquele encontrado nos romances líricos, ou seja, é metafórico, simbólico, alegórico. Embora seja um espaço altamente subjetivo, pode-se perceber marcas de espaço físico, como as montanhas, as plantações de trigos, cachoeiras, jardins, o ateliê com as telas e tintas, dentre outros exemplos, no entanto, essas presenças físicas, além de serem estritamente poéticas, passam a ser filtradas pela consciência da narradora, de modo que o leitor as visualiza pela sua ótica. Dessa forma, o espaço predominante é o da mente da narradora.

ESPAÇO

Tempo Apesar de tempo nesse romance ser, por várias vezes, denominada pela protagonista como o INSTANTE JÁ, nota-se que, especialmente nessa obra clariceana, tempo e espaço são categorias que não se dissociam e, mesmo com a subjetividade predominando, há resquícios lineares dessas categorias. Veja esse fragmento:

São quase cinco horas da madrugada. E a luz da aurora em desmaio, frio aço azulado e com travo e cica do dia nascente das trevas. E que emerge a tona do tempo, lívida eu também, eu nascendo das escuridões, impessoal, eu que sou it. p. 73

A narradora expressa sua ânsia na busca pelo que chama de “quarta dimensão do instante-já”. Essa denominação caracteriza-se por sua atualidade, uma vez que se dá no presente absoluto do instante, e por sua essencialidade.

“O presente é o instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca minimamente no chão. E a parte da roda que ainda não tocou, tocará em um imediato que absorve o instante presente e torna-o passado.” p.16

Em outras palavras, a protagonista está em busca de uma experiência do presente vivo, não rememorado, que coincide, para ela, com a essência de todas as coisas.

O instante é semente viva. p. 12

Tempo

Narrador

Trata-se de um monólogo (missiva) cuja protagonista, que não tem o seu nome revelado, é uma pintora que, no espaço de seu apartamento ou ateliê, resolve se aventurar pela escrita e se lança numa espécie de narrativa em fragmentos aparentemente desordenados.

Tem foco narrativo em 1ª pessoa

Entretanto, há um apagamento da própria figura do narrador, pois não há o que narrar, visto que a narrativa se dissolve em impressões, sonhos, divagações, enfim, em uma viagem pelo íntimo humano.

É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de separação mas é grito de felicidade diabólica. p.09

Parece com momentos que tive contigo, quando te amava, além dos quais não pude ir pois fui ao fundo dos momentos. p. 13

O livro Água Viva foi publicado em 1973. Um texto que nos mostra a angústia de uma pintora, que mergulhada em lembranças da sua relação amorosa desfeita, resolve inusitadamente escrever para o ex-amante e constrói uma carta-despedida que se tornou a mais bonita missiva da literatura brasileira até então.

A carta

A carta Hoje de tarde nos encontraremos. E não te falarei sequer nisso que escrevo e que contém o que sou e que te dou de presente sem que o leias. Nunca lerás o que te escrevo. E quando eu tiver anotado o meu segredo de ser – jogarei fora como se fosse ao mar. Escrevo-te porque não chegas a aceitar o que sou. Quando destruir minhas anotações de instantes, voltarei para o meu nada de onde tirei um tudo? ”Tenho que pagar o preço.

p.73

O que estou te escrevendo não é para se ler_ é para se ser. p.37

Água Viva é um texto poético que se concretiza por

meio de imagens.

Água viva é construída em períodos curtos e o ritmo é intenso. Há momentos em que a prosa se assemelha graficamente a um poema, e é disposta de maneira versificada sobre o papel:

“É-se. Sou-me. Tu te és.”

p. 29

“O ar é o não lugar onde tudo vai existir.” p. 37

Poema em prosa

Sou um coração batendo no mundo. Você que me lê que me ajude a nascer. Espere: está ficando escuro. Mais. Mais escuro. O instante é de um escuro total. Continua. Espere: começo a vislumbrar uma coisa. Uma coisa luminescente. Barriga leitosa com umbigo? Espere – pois sairei desta escuridão onde tenho medo, escuridão e êxtase. Sou o coração da treva. [...] Agora as trevas vão se dissipando. Nasci. Pausa. Maravilhoso escândalo: nasço. p. 36, 37

Salvador Dali, 1943

Poema em prosa

“O excesso de mim chega a doer e quando estou excessiva tenho que dar de mim como o leite que se não fluir rebenta o seio.” p. 80

Poema em prosa

“Eu sou antes, eu sou quase, eu sou nunca.” p. 18

Como fazer se não te enterneces com meus defeitos, enquanto eu amei os teus. Minha candidez foi por ti pisada. Não me amaste, disto eu sei. Estive só. Só de ti. Escrevo para ninguém e está-se fazendo um improviso que não existe. Desloquei-me de mim. p. 82

A metalinguagem se dá pela própria palavra enquanto prática da linguagem escrita. Por isso, a narradora entra na escrita, um mundo de cipós, sílabas, cores e palavras, no qual ela buscará o autoencontro.

Metalinguagem ou Metaliteratura

“Ao escrever não posso fabricar como na pintura, quando fabrico artesanalmente uma cor. Mas estou tentando escrever-te com o corpo todo, enviando uma seta que se finca no ponto tenro e nevrálgico da palavra.” (p. 12)

“ […] escrevo por profundamente querer falar.” (p. 12-13)

“Mas a palavra mais importante da língua tem uma única letra: é. É.” (p. 28)

“Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra _ entrelinha _ morde a isca, alguma coisa se escreveu.” (p. 21 e 22)

Aqui, na 1ª citação, a metalinguagem explica o que é ler nas entrelinhas

“Escrevo-te em desordem, bem sei. Mas é como vivo. Eu só trabalho com achados e perdidos.” (p. 72)

“Sei que depois de me leres é difícil reproduzir de ouvido a minha música, não é possível cantá-la sem tê-la decorado. E como decorar uma coisa que não tem história?” (p. 81)

“Tudo acaba mas o que te escrevo continua.” (p. 95)

Metalinguagem ou Metaliteratura

Podemos compreender catarse, dentro da psicologia, e mais especificamente da psicanálise, como sinônimo de “descarregar”. Quando uma pessoa consegue expor, quase que “vomitando” palavras, tudo o que sente, pensa, imagina sobre uma pessoa, coisa ou situação, muitas vezes sem pensar, apenas descarregando; e, em seguida, geralmente experimentando um estado de alívio por ter posto tudo para fora, temos a catarse.

catarse

Sinto agora mesmo o coração batendo desordenadamente dentro do peito. E a reivindicação porque nas últimas frases andei pensando somente à tona de mim. Então o fundo da existência se manifesta para banhar e apagar os traços do pensamento. O mar apaga os traços das ondas na areia. Oh Deus, como estou sendo feliz. O que estraga a felicidade é o medo. p. 66

catarse

Expresso a mim e a ti os meus desejos mais ocultos e consigo com as palavras uma orgíaca beleza confusa. p. 23

A angústia permeará todo o romance e os tormentos existenciais acompanharão os passos da narradora, que transforma a escrita em uma análise da condição humana, chegando a afirmar que: “O que estou te escrevendo não é para se ler – é para se ser” p.37

Fé, medo e silêncio se entrelaçam nessa narrativa: (...) porque sei que o Deus é o mundo. É o que existe. Eu rezo para o que existe? Não é perigoso aproximar-se do que existe. A prece profunda é uma meditação sobre o nada. p. 30

Deus é uma forma de ser? é a abstração que se materializa na natureza do que existe? Minhas raízes estão nas trevas divinas. Raízes sonolentas. Vacilando nas escuridões. p. 71

Neologismos também aparecem: Como o Deus não tem nome vou dar a Ele o nome de Simptar. Não pertence a língua nenhuma. Eu me dou o nome de Amptala. p. 45

Comparação entre pintura e escrita

Escrevo-te como um exercício de esboços antes de pintar. Vejo palavras. O que falo é puro presente e este livro é linha reta no espaço. É sempre atual, e o fotômetro de máquina fotográfica se abre e imediatamente fecha, mas guardando em si o flash. p. 18

Escrevo-te esse fac-símile de livro, o livro de quem não sabe escrever; mas é que no domínio mais leve da fala quase não sei falar. Sobretudo falar-te por escrito, eu que me habituei a que fosses a audiência, embora distraída, de minha voz. Quando pinto, respeito o material que uso, respeito-lhe o primordial destino. Então quando te escrevo respeito as sílabas. p. 54

MEDO

ESCURIDÃO E LUZ: CENTRO DA VIDA

TENTATIVA DE SER ALEGRE

Luta sangrenta pela paz

Sem título, depois A gruta

Explosão

Na obra Água viva, Clarice se refere a essa tela na página 15 e fecha com a frase: “E tudo isso sou eu”

O sol da meia noite

Pássaro da Liberdade

O que é – o "it" – é por vezes a fusão do humano com o

não-humano, e o clímax da existência e da significação.

Esse clímax também existe no "eu" que escreve a um "tu"

indeterminado.

o “it”

Mas há também o mistério do impessoal que é o “it”: eu tenho o impessoal dentro de mim (...) O it vivo é Deus. p. 30

O tique-taque é it. p. 45

Estou terrivelmente lúcida e parece que e parece que alcanço um plano mais alto de humanidade. Ou da desumanidade _ o it. p. 54

Animais, bichos, zoomorfismo e simbiose

Conheci um ela que humanizava bicho conversando com ele e emprestando-lhe as próprias características. Não humanizo bicho porque é ofensa – há que respeitar-lhe a natureza –, eu é que me animalizo. Não é difícil e vem simplesmente. É só não lutar contra e é só entregar-se. p. 49

A voz de Água Viva aborda os não-humanos. Desautorizando as fábulas humanizantes, em que os animais estavam a serviço da moralidade humanista, deixa clara sua epistemologia sobre o outro:

Não ter nascido bicho é uma minha secreta nostalgia. p. 52

Arrepio-me toda ao entrar em contato físico com bichos ou com a simples visão deles. Os bichos me fantasticam. Eles são o tempo que não se conta. Pareço ter certo horror daquela criatura viva que não é humana e que tem meus próprios instintos embora livres e indomáveis. p. 48

Animais, bichos, zoomorfismo e simbiose

Formiga e abelha já não são it. São elas. p. 61

Muitos bichos povoam as páginas de Água viva, alguns deles são: cavalos, gatos, cachorros, cobra, passarinhos, corujas, lobos, tartarugas, tigre...

O animal, para Clarice Lispector, inegavelmente dotado de subjetividade, quando troca olhares com o humano, propõe-no a entrar em reflexão.

AS FLORES Clarice Lispector desenvolve uma fenomenologia das flores, pois sente, analisa, cheira, estuda o sexo, a feminilidade e o comportamento de cada uma, começando pela rosa:

A rosa é a flor feminina que se dá toda e tanto que para ela só resta a alegria de se ter dado. Seu perfume é mistério doido. Quando profundamente aspirada toca no fundo íntimo do coração e deixa o interior do corpo inteiro perfumado. O modo de ela se abrir em mulher é belíssimo. As pétalas têm gosto bom na boca – é só experimentar. Mas rosa não é it. É ela. As encarnadas são de grande sensualidade. As brancas são a paz de Deus. (...) As amarelas são de um alarme alegre. As cor-de-rosa são em geral mais carnudas e têm a cor por excelência. As alaranjadas são produto de enxerto e são sexualmente atraentes. p. 56,57

Efemeridade

Fixo instantes súbitos que trazem em si a própria morte e outros nascem – fixo os instantes de metamorfose e é de terrível beleza a sua sequência e concomitância. p. 13

Escrevo-te na hora mesma em si própria. Desenrolo-me apenas no atual. Falo hoje_ não ontem nem amanhã_ mas hoje é neste próprio instante perecível. p. 25

Onírico

Como se arrancasse das profundezas da terra as nodosas raízes de árvore descomunal, é assim que te escrevo, e essas raízes como se fossem poderosos tentáculos como volumosos corpos nus de fortes mulheres envolvidas em serpentes e em carnais desejos de realização, e tudo isso é uma prece de missa negra, e um pedido rastejante de amém: porque aquilo que é ruim está desprotegido e precisa da anuência de Deus: eis a criação. p. 20

Presença da morte

Quero que me enterrem diretamente na terra, embora dentro do caixão. Não quero ser engavetada na parede porque não tem mais lugar na terra. Então inventaram essas diabólicas paredes onde se fica como num arquivo. p. 45

Acho que vou ter que pedir licença para morrer. p. 59

Tenho que interromper para dizer que "X" é o que existe dentro de mim. "X" - eu me banho nesse isto. É impronunciável. Tudo que não sei está em "X". A morte? a morte é "X". p. 79

O mistério – a difícil compreensão

Não sei sobre o que estou escrevendo: sou obscura para mim mesma. p. 24

Mas o meu principal está sempre escondido. Sou implícita. E quando vou me explicitar perco a úmida intimidade. p. 25

Tudo o que te escrevo é tenso. Uso palavras soltas que são em si mesmas um dardo livre... p. 27

O melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas.

4 narrativas cronológicas dentro de Água viva

A coruja, p. 50

Os lobos, p. 50

A rosa, p.50 e 51

O homem bonito, p. 62

Superstição com os números

Mas 9 e 7 e 8 são os meus números secretos. Sou uma iniciada em seita. Ávida do mistério. Minha paixão pelo âmago dos números, (...) p. 33

Atrás do pensamento: monólogo com a vida, 151 páginas - 1971

Objeto gritante, 185 páginas -1972

Água viva, 87 páginas - 1973

O que te escrevo é um “isto” . Não vai parar: continua. Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas. É o que está certo. O que te escrevo continua e estou enfeitiçada. p.95

E o fim é, ainda, continuação

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