espacialidade e contexto urbano no trabalho das passagens001
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Sujeitos e crífexto histórico no Jabah) <Jas -Passagens
Desde "£>af75, cap/fô/ <#? séo/to ATA" Benjamin deixa claro que
se propõe a trabalhar afirmando deliberadamente olhares de sujeitos determinados
associados a configurações significativas, "mônadas" que destilam, a partir de suas
particularidades, toda a verdade de uma época. No primeiro escrito para o grande
projeto das passagens, * Paris, capital do século XIX', aparecem pares de sujeitos e
espacial idades que estarão presentes quase todos também na versão final publicada
como "Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo'. Os primeiros seis pares
definidos foram: "Fourier ou as passagens"', "Daguerre ou os panoramas"', "Grandville
ou as exposições universais"1', *Lu/s Filipe ou o interior"] "Baudelaire ou as ruas de
Paris"; "Haussmann ou as barricadas".
As referências urbanas, isto é, as passagens, os panoramas, as
exposições universais, o interior (em oposição ao espaço público), as ruas e as
barricadas, estão todas articuladas na formação histórica da cidade no século
dezenove. Os sujeitos, isto é, Fourier, Daguerre, Grandville, Luís Filipe, Baudelaire,
Haussmann, retraíam as ações e contradições presentes na sociedade moderna
daquela época.
Contexto histórico
Os personagens destacados por Benjamin apontam para o
período conturbado pós napoleônico no qual os ideais da sociedade moderna
iluminista, racional, cidadã, lutam por se firmar diante de novas forcas esmagadoras e
estranhas que se opõem à preservação da personalidade. Aqui, sem dúvida, há uma
r.*.influencia de Simmel para o qual o grande tema da vida moderna nas grandes cidades K
continuava sendo a luta do indivíduo para preservar a sua autonomia e a originalidade
de sua existência, resistindo à ameaça de nivelamento.
Concretamente a afirmação da riqueza de cada indivíduo
insere-se na luta política pela hegemonia travada entre a burguesia e o povo em geral.
Um dos períodos mais destacado é o de Luís Filipe (1830-1848), posto no poder pela
revolução de 1830 que derrubou o regime restaurador de Carlos X (1824-1830). Este
último, juntamente com o seu antecessor e irmão Luís XVIII (1814-1824), Bourbons,
procuraram uma volta ao passado de modo a superar as heranças da Revolução
Francesa e de Napoleão. De fato, a Franca "revolucionária" havia sido derrotada na
Europa e o Congresso de Viena de 1814 havia afirmado o princípio da "legitimidade" e
restabelecido a monarquia absoluta. Carlos X, diferente do antecessor, revive o
absolutismo. Em uma escalada retrógrada indenizou os antigos nobres pela perda de
seus bens em 1789 e, em julho de 1830, com as "Ordenações de 3ulho" tomou uma
série de medidas impopulares como a supressão da liberdade de imprensa, o aumento
do censo para eleitores (o valor em impostos pagos) e a dissolução da Câmara que,
embora conservadora, não o apoiou. Figuras intelectuais de oposição dessa época,
como Vitor Hugo, Lamartine e Thiers (jornalista), vão povoar os escritos de Benjamin.
A insurreição popular, com o apoio de republicanos e bonapartistas, e através da
organização de barricadas, levou à renúncia do rei. Embora uma nova república
estivesse à mão, Thiers leva o regime para Luís Filipe de Orléans, considerado um
liberal, um "rei cidadão". Ou seja, embora a revolução de 1830 tenha sido feita no
essencial pela ação dos republicanos e bonapartistas contra os absolutistas, foram os
monarquistas constitucionalistas que alcançaram a vitória.
É este outro período, o de Luís Filipe, que também é alvo do
autor. A orientação de Luís Filipe foi, de início, liberal, com a abolição da censura e a
ura de uma proximidade com as normas do parlamentarismo britânico, de modo a
:iliar a revolução com o antigo regime. Suas açoes no entanto atendiam muito mais
interesses da burguesia e não do povo em geral, o que trouxe muitos motins
ulares. A esta oposição somava-se, ainda, a resistência dos partidários da volta de
os X ao poder. Ficava-se entre a frustração com os acenos de liberdade, de nova
edade e de modernidade apontados pela Revolução Francesa e a volta ao passado.
caminho firmou-se um outro grupo, adeptos do golpe, e reunidos em tomo de um
irinho de Napoleão, Luís Napoleão. A oposição popular reunia-se em tomo dos
jalistas ditos utópicos, por Engels como Louis Blanc, personagem que
ibém aparece nos escritos de Benjamin, da esquerda moderada, com Thiers e da
luerda dinástica, com Barrot A sua principal campanha, em 1847, teve como
jetivo a reforma eleitoral para aproximá-la do modelo inglês e liberalizar o voto. A
Dibição, pelo governo de Guizot (o primeiro-ministro), de uma dessas reuniões
pulares (um dos "banquetes") em fevereiro de 1848 levou à revolta, às barricadas e
insurreição. No confronto com a guarda nacional houve mortes (vinte e cinco), mais
litação e, por fim, a tentativa de contornar o problema com a demissão de Guizot.
esmo com a nomeação de Thiers, a revolução não foi contida. Luís Rlipe renunciou e
Segunda República foi proclamada, dezoito anos depois de ter sido anunciada.
O vai e vem nesta história de afirmação e sedimentação dos
alores políticos da modernidade, não acabam, no entanto, com este fato. O governo
rovisório, constituído por burgueses e socialistas, incluindo Louis Blanc, atravessou
ontradições e dificuldades na economia e organizou, com tropeços, as "oficinas
lacionais" (inspiração de Blanc) para amparar os desempregados. As manifestações
socialistas levaram às eleições, em abril de 1848, e pela primeira vez na história da
Europa, do sufrágio universal direto e secreto. No entanto, foram os esquerdistas
•noderados que as venceram. Este governo, envolvido nas dificuldades económicos,
optou por fechar as oficinas nacionais, fato que levou o proletariado às barricadas.
Desastradamente, e com apoio da Assembleia Nacional, o governo (através do general
Cavaignac), reprimiu violentamente as barricadas. Foram três dias de combates, com o
resultado de muitos feridos, 4.000 operários deportados e 16.000 mortos. Este triste
episódio ficou conhecido como as "Jornadas de Junho". Essa situação dramática
desmoralizou os moderados mas não favoreceu os radicais. Com a nova constituição
(de novembro de 1848) foi eleito um presidente para quatro anos. Em nome da
ordem, da restauração da glória do país, elegeu-se por maioria esmagadora (73% dos
votos) Luís Napoleão, adepto antigo do golpismo e dito herdeiro de Napoleão.
Este é o outro período de grande interesse do autor, aliás
seguindo as indicações de Marx e a sua obra XXO 18 Brumário de Luís Bonaparte". Luís
Napoleão, quase ao fim de seu mandato presidencial, dá um golpe (em 1851) e
estabelece a ditadura (a Constituição impedia um novo mandato). Em seguida,
organiza um plebiscito que lhe dá poderes para organizar uma nova constituição, a
qual lhe deu poderes ditatoriais por 10 anos, como cônsul (como o tio). No entanto,
em um outro plebiscito (com apoio de 95% de votos) em 1852, instaurou na França o
Segundo Império (1852-1870), período que fascinou Baudelaire e Benjamin. Foi,
então, coroado como Napoleão III. O período é caracterizado internamente pela
ditadura, mas também pela modernização e desenvolvimento económico. É dessa
época a reforma urbana de Paris, com Haussmann, e a atração da cidade com as
exposições universais, espelho do progresso cultural e industrial do mundo. Só em
1869, graças às pressões liberais, foi concedida a garantia de liberdade de imprensa e
ampliação dos poderes da Assemblèa legislativa. A política externa desastrosa de
Napoleão III levou à retumbante derrota francesa, frente à Prússia, em 1870,
formando-se o poderoso Estado Alemão. O fato levou ao fim do Segundo Império e à
proclamação da III República, comandada a partir de 1871 por Thiers. Seu governo,
instalado em Versalhes (ironicamente como havia sido o de Luís XVI), teve que r-
renfrentar o descontentamento do povo de Paris, humilhado pela derrota (a qual [p*
resistiu até o último momento). Em março de 1871 proclamou-se na capital um
governo autónomo, a Comuna, administração municipal eleita pelo povo, reunindo
diversos membros de tendências políticas radicais. A Comuna estabeleceu-se como um
governo paralelo, declarando nulo os atos de Versalhes e proclamando sua autonomia
extensiva a todas as cidades da Franca. A sua política esteve inspirada em ideais
socialistas, como o serviço militar para todos e obrigatório, a igualdade civil da mulher
perante o homem, o fim do trabalho noturno e a criação de pensões para viúvas e
órfãos. A República de Thiers enfrentou Paris, que foi bombardeada, e na luta dentro
da cidade morreram mais de 20.000 pessoas.
Na percepção, apreciação e avaliação do mundo, a época é
também uma fase de consolidação e de transição entre o antigo regime e a
modernidade. A dessacralização do mundo, ao lado da criação de novos mitos,
incluindo os especificamente económicos, ao lado da preocupação de preservar o
encantamento, estão retratados em idas e vindas, superações e composições e é uma
das grandes preocupações do autor. No centro de tudo isto está o sujeito.
Assim, temporalmente o seu estudo desenvolve-se
atravessando a tumultuada época que se sucede à queda de Napoleão. Embora
fazendo algumas referências ao período da Restauração e ao início da Terceira
República, a época de destaque compreende desde o reinado de Luís Filipe de Órleans
ao Segundo Império de Napoleão III. No que se refere aos sujeitos destacados, chama
a atenção a presença de Charles Baudelaire nas temporalidades observadas pelo autor.
Deve-se salientar que Benjamin persegue mais os olhares dos sujeitos que as
temporalidades em si e encontrou em Baudelaire um espectador privilegiado da
ascensão de um mundo moderno onde a mercadoria vai vigorosamente ocupando o
lugar da arte e do mito. Baudelaire, que sempre viveu em Paris, viu a cidade
poeticamente e criticamente, trazendo a sua visão de construção da modernidade
urbana. Benjamin, que viveu em Paris por alguns anos, a estudo, leu em Baudelaire o
caminho para interpretar a modernidade e, de certa forma, o urbano moderno. A
cidade de Paris, note-se, sempre foi motivo de distintos olhares que, partindo de
perspectivas particulares, chegaram a diagnósticos diversos da cidade. Assim, no
século XDC foi intensa a criação de imagens da cidade por estatísticos, médicos,
políticos e escritores. Destas resultava discursos como o otimista dos estatísticos, o da
cidade como centro de cultura e o da imoralidade da vida urbana3.
Rubr.
1830RESTAURAÇÃOOrdenações deJulho - Revoluçãode 1830 (JornadasdeJufto)
************
************************
*********************
1848LUÍS FIUPE
Jornadas de Junhode 1848
**** fofjrfef************************************
************
18512' REPÚBLICA
***********Grandville
**********************
1852.... 18702° IMPÉRIO
Daguerre
******************
18703" REPÚBLICA*Comuna de Paris de1871
Baudelaire*** Haussmann
* Os últimos anos do séculOr XIX e os primeiros do século XX, antecedendo a l' G. M.são conhecidos como Belle Époque
Personagens históricos elegidos
No esboço do projeto das passagens apresentado por Benjamin
foram destacadas personalidades artísticas e políticas que marcaram o século XIX
francês, participando da nova sensibilidade trazida pela modernidade, pela ascensão
do mundo da mercadoria diante da arte e pela luta subjacente ao enfraquecimento dos
ideais iluministas. Esses sujeitos foram o socialista utópico Charles Fourier (1772-
37), o "rei-cidadão" Luís Filipe, o prefeito e reformador de Paris Georges
lussmann, o pioneiro da nova "arte fotográfica" Louis Daguerre (1789-1851), o
ricaturista e ilustrador Grandeville (1803-1847) e o poeta e crítico literário Charles íf™
iudelaire (1821-1867).
Charles Fourier
Charles Fourier (1772-1837 )foi um dos teóricos do socialismo
tópico do século XIX e um dos precursores do urbanismo progressista4. Nasceu em
iesançon, filho de um comerciante de tecidos. Trabalhou no comércio, mas acabou
àlindo. Decidiu, então, servir o Exército. Afastado da ativa por problemas de saúde,
/oltou a se dedicar ao comércio e começou a escrever sobre questões económicas e
sociais da sociedade francesa. A sua proposta de reconstrução social foi fortemente
influenciada pelo idealismo de Jean-Jacques Rousseau. O homem, bom por natureza e
corrompido socialmente, devia ser afastado da sociedade baseada na competição de
interesses individuais e de classe. Tendo em vista a criação de um estado ideal de
harmonia universal, pregava a sociedade organizada em comunidades chamadas
falanstérios, espécie de edifícios - cidades onde as pessoas trabalhariam apenas no
que quisessem. Desse modo defendia o fim da separação entre prazer e trabalho.
Propunha que a educação se adaptasse às inclinações de cada criança, que os bens
fossem distribuídos de acordo com a necessidade de cada um e que o sexo fosse
praticado sem restrições morais.
Ironicamente, a sua vida marcada pela familiaridade com o
comércio significou ao mesmo tempo uma grande crítica ao mercantilismo e uma
admiração por formas de organização comercial como as galerias envidraçadas,
arquitetura parcialmente incorporada em seus falanstérios. Não sem motivo, Benjamin
ornanizou o oarwFourier ou as passageng. Fourier propunha para os seus falanstérios
PfÚC
R
as ruas - galerias, "ruas interiores", reproduzindo a fantasmagoria das passagens
parisienses: "Uma falange é verdadeiramente uma pequena cidade, mas não possui
exteriores e descobertas, expostas às intempéries ...'*.
Por outro lado, apesar de sua crítica à cidade moderna, suas
propostas, em termos teóricos, tem elementos de proximidade com renovadores
urbanos adeptos da modernidade, como o próprio Haussmann. Assim, como todos os
"progressitas", propõe, em contraposição à cidade existente (barroca - medieval) o
espaço amplamente aberto, rompido por vazios e verdes, bem como um traçado
urbano de conformidade com as funções humanas6.
Louis Daciuerre
Louis Daguerre (1789-1851) foi um dos pioneiros da fotografia
na medida em que inventou o primeiro processo fotográfico eficaz, produzindo uma
imagem única, sem mediação de negativo, sobre uma placa de cobre revestida de
prata e sensibilizada com iodo. Esse processo, conhecido como daguerreotipia, insere-
se na difusão da sensibilidade pela imagem que, iniciado no século XIX, caracterizaria
o século XX. Além da formação do mundo das imagens, Benjamin traz à tona Daguerre
porque o processo fotográfico e seus desdobramentos (como o cinema e, antes dele, o
panorama e o diorama) traziam à discussão o sentido da arte, a sua unicidade e
magia. A polémica entre pintura, retrato e fotografia marcou o século passado. Se por
um lado, a fotografia revelaria-se parte de um processo de democratização do acesso
à imagem, por outro lado revelava-se, de certo modo, banalizadora do que antes fora
arte (como o retrato). De todo modo, desde o surgimento da fotografia houve
polémica em relação a seu caráter artístico. Os primeiros fotógrafos tentavam
aproximá-la da pintura. Para isso retocavam as fotos ou embaçavam a imagem. Seus
temas eram, em geral, paisagem, natureza-morta e retrato. Entre os grandes
fotógrafos dessa fase está o francês Félix Nadar (1820-1910), muito citado por
Benjamin. Apesar do preconceito de alguns pintores em relação à fotografia, vários se
basearam em fotos para pintar, como os franceses Ingres (1780-1867) e Delacroix
(1798-1863) e muitos impressionistas.
Porém, Benjamin traz Daguerre especificamente para a
formação do par "Daguerre ou os panoramas", no qual evidencia-se um sentido
voltado à cidade moderna. Os panoramas eram pinturas de paisagem ou cenas,
dispostas em superfícies semicirculares, tendo o espectador como centro. Tanto a
exposição da paisagem quanto a centralidade do espectador são motivo suficiente para
a reflexão benjaminiana. Enquanto fenómeno urbano, o panorama mostra ao mesmo
tempo a necessidade de retomar uma visão de conjunto do espaço que está se
perdendo e, a capacidade cada vez maior do habitante da cidade ver o entorno como
objeto, pois a urbanização transforma a cidade, a grande cidade, em centro do mundo.
O espectador, por outro lado, é centro e é passividade, mostrando o lado contraditório
da formação e da resistência do sujeito urbano. Os panoramas foram moda desde o
início do século e a eles se dedicaram até mesmo artistas importantes. Não obstante,
Daguerre é o inventor de uma outra criação que relaciona os panoramas com o futuro
cinema. Trata-se dos dioramas. Estes eram pinturas cénicas de grande tamanho,
parcialmente translúcidas, que por meio de variações de iluminação simulavam
acontecimentos naturais. Do mesmo modo que acontecia com os panoramas, o mesmo
termo (diorama) era aplicado aos edifícios que os abrigavam. De todo modo, também
significou um momento de transição e de reestruturação da subjetividade, que não
encontra mais a arte preservada da reprodução e da mercantilização massificada:
* Estive numa exposição/ particular do Diorama; trata-se em parte de uma
transparência; o espectador coloca-se numa sala escura, é tudo muito agradável, e o
efeito produzido tem grande poder de ilusão. Não tem a qualidade de arte, pois seu
flírf* "7objetivo é iludir. O prazer da arte é a recordação, nunca a ilusão.
Jean GrandviHe
Jean Ignace Isidore Gerárd, ditD GrandviHe (1803-1847),
desenhista, teve sua obra disposta em pranchas satíricas e ilustrações bizarras. Filho
de um pintor de miniaturas, GrandviHe tentou seguir esse caminho em Paris, quando
jovem. O seu primeiro grande sucesso público foi As Metamorfoses do Dia, que era um
retrato amargo dos vícios e extravagâncias do povo. Baudelaire comparava-as a um
"apartamento onde a desordem seria sistematicamente organizada". Publicou em La
Caricature diversas caricaturas de contemporâneos ou de ataques violentos contra a
política da Monarquia de Julho (resultado da derrubada do autoritário Carlos X, por
uma revolta popular, e a ascensão de Luís Filipe, inicialmente liberal e que foi marcado
por grandes combates políticos até a sua renúncia em 1848). Os surrealistas
consideram-no um precursor. As suas ilustrações retomam formas da iconografia
medieval e maneirista, anteriormente renovadas por Callot e Goya. No essencial, ele
desenha formalizando uma mistura entre seres humanos, animais e plantas. Assim,
muitas das ilustrações usavam cabeças de animais em sujeitos humanos. Ele também
ilustrou (e se influenciou) as Fábulas, em 1838. Para alguns críticos, o seu
antropomorfismo traspassou o seu trabalho e atingiu a sua vida. Isto porque, casado
com uma prima, ele a consultava em todo detalhe artístico, de modo que qualquer
desenho que ela não gostasse (talvez a maioria) era usado como modelador de cabelo
ou destruído.
Tornou-se muito procurado para ilustrar diversos romances,
destacando-se quando se tratavam de fantasias, como Viagens de Gulliver (1838),
Cenas da Vida Privada e Pública dos Animais (1842, o trabalho mais famoso), As Flores
Animadas (1847), Um Outro Mundo (1844), Robinson Crvsoe. Ainda assim, em sua
época era considerado em primeiro lugar um caricaturista político e em segundo um j:• -,;
ilustrador de obras infantis. De qualquer modo, em ambos os desenhos ele
metamorfoseava humanos e animais, revelando sua tendência a antropomorfia.
A referência à Grandville faz-se a partir do par "Grandville ou as
exposições universais" que consta em Paris, capital do século XIX. A espacialidade das
exposições acabou sendo abandonada no desenvolvimento posterior do trabalho, mas
a temática do fetiche da mercadoria percorre toda a obra benjaminiana. Grandville é
referido por Benjamin a um certo emolduramento da mercadoria que as exposições
continham. Assim, ele inicia esse "par" com o poema seguinte: "... A idade do ouro há
de renascer com todo o esplendor,/Os rios rolarão chá, rolarão até chocolate,/... /Os
espinafres virão ao mundo já guisados,/ ... / As árvores produzirão os frutos já em
compota,/... / Vinho há de nevar, galinha até há de chover,/ E do céu os patos cairão
em nosso papo. "[Langlé e Vanderburch, Louis Bronze et lê Saint Simonien].
Benjamin, ao seguir o olhar de Baudelaire, já havia sido
chamado a atenção para Grandville: a concepção de belo em Baudelaire, ao
contemplar o que não é do costume, do normal e do mediano, incluía o cómico e o feio
na medida em que estes, levado a extremos, também podiam ser belos. O poeta
francês tinha interesse pelos desenhistas e caricaturistas, como Grandville e Daumier.
Luís Filipe
Benjamin traz Luís Filipe ao desenvolver o tema da vida
privada, em especial da concepção de vida burguesa. Ele afirma em "Luís Filipe ou o
interior" que "sob Luís Filipe, o homem privado pisa o palco da história", o chamado
governo do empresário, transformando ações do Estado em negócios particulares.
A tal nova característica social associa-se uma espacialidade;
um espaço em que vive o homem privado, uma organização no interior da moradia
que, pela primeira vez, *contrapÕe-se ao local de trabalho". Esse espaço de cálculo
contrapõe-se às reflexões sociais. É um mundo de fantasmagoria espacial, do interior,
na qual o interior da residência representa o universo.
Luís Filipe, aos olhos de seus contemporâneos, distinguia-se
dos antigos rãs, e portanto do Antigo Regime, por sua própria personalidade, distinta
da aristocracia. Ficou conhecido como "rei cidadão", em parte pelas heranças que nele
foram depositadas após a deposição do conservador Carlos X, e em parte por assumir
o lado da burguesia. De fato, a sua formação educacional havia sido distinta dos
demais aristocratas, recebendo uma formação para a vida prática e uma cultura mais
consistente que a normalmente dada aos seus pares. Ele apoiou o partido da
Revolução e foi membro do clube dos jacobinos. Foi proscrito pela Franca republicana
e odiado pelos emigrados do antigo regime. Reconciliado com estes, retornou à Franca
na época da Restauração e passou o tempo investindo a fortuna da família em
negócios. Ao mesmo tempo, discretamente cortejava a oposição liberal a Carlos X.
Após a deposição deste, o Duque de Órleans apareceu como a solução ideal aos que
temiam instituir uma república que chamasse o conflito com o restante de Europa. No
poder, manteve no essencial o sistema governamental de Carlos X , apoiando-se no
jogo das ambições de políticos e no desejo de ordem e paz das classes proprietárias
para as quais o novo sistema eleitoral reservava o direito de voto.
Charles Baudelaire
Charles Baudelaire (1821-1867) é tratado em Paris, capital do
século XIX (^Baudelaire ou as ruas de Paris"} para representar a procura pela
Rubr,
interioridade na cidade moderna: "A Paris de seus poemas é uma cidade submersa...".
Benjamin, no decorrer de seu trabalho, elege o olhar baudelairiano para fazer suas
análises porque, além de excepcional poeta e crítico literário francês, intérprete da
modernidade e romântico, Baudelaire é um leitor privilegiado do século XIX e das
transformações urbanas daquele período. Para ele "o assunto da poesia é ... a vida
interior, no que ela pode conter de simbolicamente universal, e é também o universo
cotidiano representado por exemplo pela cidade e mais amplamente por tudo o que
Baudelaire designa pelo nome de modernidade. ...O compromisso poético é então a
consciência simultânea, transcrita na ordem da palavra, das correspondências secretas
e todavia evidentes entre interioridade e modernidade, [o que fica evidenciado nas
Flores do Mal, nos títulos "Quadros Parisienses] ... em «O Cisne» [há um] verso que é
um dos versos chaves de Baudelaire: «Tudo para m/m se toma alegoria.». A cidade,
cuja imagem inidal susdta o poema, («Assim diante deste Louvre uma imagem me
oprime»), provoca a experiência concreta e diária que atíva o processo da imaginação
mitológica, a qual gera uma correspondência contínua entre o cotidiano da experiência
e obsessões da alma ele valia-se dos contatos cotidianos ao acaso para formular
numa linguagem poética as dimensões de um mito:: um cisne fugidio, os velhinhos das
ruas de Paris, uma viúva em um concerto no Jardim das Tulherias. Assim, o primeiro
compromisso do poeta é experimentar nele e formular com as palavras uma perpétua
interpretação poética da vida diária. Assim se explica a sua predileção pelo insólito ...
trata-se de submeter o mundo cotidiano dos homens a lei da visão poética, a partir de
uma convicção profunda que todo o cotidiano é feito de insáito, e que é precisamente
uma das formas da "espiritualidade" poética de fazer aparecer, pela magia sugestiva
da linguagem simbólica e alegórica, a indissociável solidariedade, dentro da unidade do
Belo, do atua/ e do sobrenatural..'6
Em sua obra magna, As Flores do Mal, Baudelaire incorpora o
o e o grotesco à linguagem artística, do romantismo. Encontrar a beleza na
idade é um de seus grandes atributos. Para ele, como para todos os
icos, o belo não é o eterno e sim o contingente. Ele deve ser buscado não na
ia e sim na sociedade já que a natureza não é moderna e o belo não é uma
ide natural e sim social. Baudelaire opõe uma recusa absoluta a todas as
as e a todas as poéticas que levam como princípio a solidariedade da arte e a
2a. Para ele *a natureza é a dor... tudo o que pertence à ordem da natureza é
> de corrupção, ... /e crê] numa arte do artifício ... não sem motivo Baudelaire
véu, em seu estudo sobre Constantin Guys, o pintor da vida moderna, um "Elogio
'aqui/agem''. Para ele, no fundo, todo acesso à "espiritualidade" passa por uma
luilagem" e nada é mais contraditório com o homem espiritual que o homem
raf».
O belo deve ser buscado no que há de melhor na sociedade, no
está acima da média, da vulgaridade e da moral comum: o belo é sempre singular.
ielo pode-se distinguir em tudo o que sai do acostumado, do normal e do mediano.
'usive o feio e o cómico, levados ao limite, são belos ..."10. Por isso mesmo, "o
sta tem o dever de ser uma exceçao, de sentir mais que os demais e de maneira
tinta; só marginalizando-se da sociedade pode estar em condições de analisar,
erpretar e, dentro dos limites de suas possibilidades, orientar e dirigir a
ciedadé*1. Por outro lado, compartilha de uma concepção liberal de história como
ítória da liberdade, de luta contra a autoridade12. O historicismo romântico traz o
esente como história em ação e, assim, ao pensar a história, "a atenção não se põe
i antigo e sim no moderno ...o que legitima o poder já não é a aristocracia de
zngue e sim a inteligência e a cultura .,."13. A nova elite "fazendo ver que a entende
3 arte] demonstra sua sensibilidade de espírito e sua rapidez de captar e interpretar
pensamentos e as aspirações da época, das que o artista, como intelectual, é~ *3.
líO romantismo, para Baudelaire, *é "a expressão mais recente e
do belo" e a arte consiste em "uma concepção conforme a moral do século
intendendo por moral a psicologia, os sentimentos, as inclinações e os costumesT15.
Para Baudelaire, o artista moderno é ^alguém capaz de
oncentrar a visão em elementos comuns da cidade, compreender suas qualidades
'jg/dias e ainda assim extrair, do momento fugaz, todas as sugestões de eternidade
lele contidas. O artista moderno ... [é]... capaz de desvelar o universal e o eterno,
'destilar o sabor amargo ou impetuoso do vinho da vida" a partir do "efémero, das
eórmas fugidias de beleza dos nossos dias"'*6. A importância dada ao desprezado, ao
tescartado, ao detalhe aproxima Baudelaire de Benjamin.
Baudelaire admira na modernidade a fugacidade. Segundo
Featherstone, ^Baudelaire era fascinado com a beleza e o horror transitórios e fugazes
da vida em Paris em meados do século XIX: o espetáculo pomposo e mutável da vida
elegante, os fíâneurs divagando através das impressões fugazes da multidão, os
dândis, os heróis da vida moderna .... 'artistas espontâneos' ... que procuravam
transformar suas vidas em obras de arte"17. Ela admirava nos artistas verdadeiramente
modernos, como o pintor Constantine Guys, a capacidade de "perseguir a beleza
transitória, fugaz, que é reconstituída com uma velocidade cada vez maior"16.
Baudelaire elogia a modernidade de Eugène Delacroix. Na sua
concepção artística destaca, como todo romântico, a imaginação. Para ele, "a
natureza outra coisa não é senão um dicionário ... Os pintores Que obedecem à
imaginação procuram em seu dicionário os elementos que se acomodam à sua
concepção; e ainda, ajustando-os com uma certa arte, dão-lhes uma fisionomia bem
nova. Aqueles que não tem imaginação copiam o dicionário. Resulta disso um enorme
IHV t,
wír/o, o wcto tfa banalidade... próprio dos pintores cuja especialidade mais se aproxima. u
tfa natureza dita inanimada ... que consideram geralmente como um triunfo não
mostrar sua personalidade. Por muito contemplar e copiar, eles esquecem de sentir e
pensar.'™. Baudelaire destaca, assim, e Benjamin concordará, a presença realçada do
sujeito na obra de arte (assim como na análise da sociedade e do mundo urbano). Um
certo heroísmo, uma luta tenaz para que o sujeito se perpetue é destacada por
Baudelaire, quando por exemplo elogia o artista moderno (como Guys): "Agora, à hora
em que os outros estão dormindo, ele está curvado sobre sua mesa, lançando sobre
uma folha de papel o mesmo olhar que há pouco dirigia às coisas, lutando com seu
lápis, sua pena, seu pincel, lançando água do copo até o teto, limpando a pena na
camisa, apressando, violento, atívo, como se temesse que imagens lhe escapassem,
belicoso, mas sozinho e debatendo-se consigo mesmo"20.
É assim que Baudelaire define a arte segundo a concepção
moderna como a criação de uma magia "contendo ao mesmo tempo o objeto e o
sujeito, o mundo exterior ao artista e o próprio artista"21. A perspectiva que Baudelaire
admira em Delacroix, aproxima-se do método em Benjamin: "Num semelhante
método, que é essencialmente lógico, todos os personagens, sua disposição relativa, a
paisagem ou o interior que lhes serve de fundo ou de horizonte, suas vestes, tudo
enfim deve servir para iluminar a ideia geral e trazer sua cor original, sua marca, por
assim dizer22. E ainda, quanto ao método: "Um bom quadro, fiel e igual ao sonho que
o criou, deve ser produzido como um mundo. Da mesma forma, a criação tal como a
vemos é o resultado de várias criações das quais as precedentes são sempre
completadas pela seguinte. Assim também, um quadro, conduzido harmonicamente,
consiste numa série de quadros superpostos, cada nova camada dando ao sonho mais
realidade e fazendo-o subir um grau rumo à perfeição*23. A respeito dos métodos dos
artistas, Baudelaire e para compreender a modernidade afirma: "... a imensa classe
artistas, isto é, dos homens que se dedicam à expressão do belo, pode dividir-se
e/?? tfo/s campos bem distintos. Aquele que chama a si mesmo realista, palavra
ambígua e cujo sentido não é bem determinado, e que denominaremos, para melhor
caracterizar seu erro, um positivista, diz: "Quero representar as coisas tais como elas
são, ou tais como seriam, supondo que eu não exista'. O universo sem o homem. E
aquele, o imaginativo, diz: "Quero iluminar as coisas com meu espírito e projeto seu
reflexo sobre os outros espíritos'.
Georqes Haussmann
Haussmann é mostrado em Benjamin para tratar de temas
pertinentes à modernidade, como a tensão relação arte e mercadoria, e o fetichismo.
Assim se wo ideal urbanístico de Haussmann eram as visões em perspectiva através de
longas séries de ruas .. isso corresponde à tendência que sempre de novo se pode
observar no século XIX, no sentido de enobrecer necessidades técnicas fazendo delas
objetivos artísticos''*'. Não sem motivo, Haussmann definiu-se como "artista
demolidor". Por outro lado, explorando a característica alienante da sociedade
moderna, Benjamin observa que ""Assim, ele [Haussmann] faz com que Paris se tome
uma cidade estranha para os próprios parisienses. Não se sentem mais em casa
ne/a."2S
Em "A Modernidade', de A Paris do Segundo Império, Benjamin
trata especificamente da reforma de Haussmann e da capacidade de transformação e
destruição que, já por essa época, podia-se imaginar contida na sociedade moderna.
Ele observa: "Que grau de destruição já não provocaram esses instrumentos limitados
[os meios modestos da época, como pás, enxadas, alavancas]! E como cresceram,
desde então, com as grandes cidades, os meios de arrasá-las! Que imagens do porvir
HS. ,
&Rubr,
já não evocam?. Benjamin destaca essa fria capacidade destruidora, mesmo que em
nome de um ideal de funcionalidade: "bairros inteiros eram destruídos". E, finalmente,
a aproxima do próprio âmago da nossa época: "a modernidade se revela como sua
fatalidade".
Para modernizar Paris, Napoleão III escolheu Georges-Eugène
Haussmann, futuro barão, nomeando-o prefeito do Sena em 29 de junho de 1853:
"Haussmann, com 44 anos, recebeu poderes consideráveis para uma tarefa
gigantesca. ... Ele não obteve jamais uma pasta ministerial, todavia avidamente
desejada, e deixou a prefeitura em 1870, exatamente antes do desastre [do Segundo
Império]. ... Se Napoleão era um romântico, Haussmann foi um clássico: ele amava a
retitude das grandes avenidas, a disposição majestosa e a simetria dos edifícios, as
grandes perspectivas."26
Na obra de Haussmann, segundo Norma Evenson, a cidade
aparece essencialmente como um problema técnico, característica da perspectiva de
um engenheiro abordar a planificação urbana27. No entanto, deve-se considerar a
questão de um modo mais complexo. Não somente há uma dissonância entre as
concepções pré-modernas e modernas, como também há entre os modernos distintas
posições. E nelas insere-se Haussmann. Ainda no século XIX, por exemplo, Camillo
Sitte, embora propondo pensar e mudar a cidade, não concebe a beleza geométrica.
Ele, diferente de Haussmann, apoia suas propostas em espaços íntimos, pequenos e
diversos. Outros críticos denunciam a perspectiva retilínea de Haussmann, na medida
em que não tem em conta a topografia ou as construções já existentes. Roncayolo tem
uma posição intermediária. Segundo o autor, Haussmann é o "urbanismo autoritário"
que se encontra com "novas exigências do capitalismo", legislação urbana e grandes
grupos imobiliários. Toma como ideologia de suporte a dos higienistas e engenheiros,
de forma a caracterizar "embelezamento", "mecânica de fluídos", higiene e comércio28.
H8.
Rubr
e fato, é nessa época que "começa-se a reconhecer a influência benéfica sobre a
wde do sol que destro/ os germes contidos na poeira, e do ar que a dispersa ... [e
imbém] ... a necessidade de conforto começa a se fazer sentir a partir da metade do
éculo, à medida que a burguesia se enriquece. Ela se manifesta primeiro no
quecimento."29 Roncayolo afirma que, apesar da segregação, a nova rede urbana
brigou a uma integração ao centro, uma disciplina obrigatória de integração, trazendo
xlas as classe para uma convivência central. Além disso, o imóvel de Haussmann
Dlera a multiplicidade de funções e de conteúdos sociais30. Segundo Roncayolo, contra
mobilidade de Haussmann (de capital, de pessoas, de bens, de valores) surgiram
«meadas.
A afirmação de Haussmann significou uma grande destruição
ia lie de Ia Cite. "O desventrar do quartíer Latín e do fauburg Saint-Germain, a
destruição quase completa da Cite provocando a demolição de numerosas mansões,
>grejas, colégios, conventos; os dois universos fechados que eram o quartíer da
Universidade e o "noble fauburg", este último portanto bem pouco ameaçador para a
ordem estabelecida, "iluminaram-se" literalmente e perderam a sua unidade.
Praticamente aniquilados, os acessos de Notre Dame, onde o que restou de igrejas e
de capelas veneráveis foi posto à baixo, substituídos por enormes construções
administrativas de uma deprimente fealdade; isolada, a catedral que Viollet-Ie-Duc
conformou a seu modo, perdeu todo contato com os bairros antigos, centro histórico e
religioso da cidade onde ela era a alma."31 O tecido urbano denso e compacto era
tudo o que ele não queria. Propõe, ao contrário, imóveis administrativos em grandes
dimensões. Subsistiram apenas Notre Dame e Sainte Chapelle, porém em um entorno
completamente alterado.
Em Haussmann, os lugares para habitação, "imóveis
haussmanianos", foram desenhados ao longo das novas vias, com suas fachadas de
MB
Rubi
i talhada, com decoração graduada segundo a altura dos andares. Segundo
yéne, acabou-se a coabitação de todas as classes sob o mesmo teto. As famílias
árias foram rejeitadas para a periferia ou "banlieué1, fato que vai pesar muito no
o da luta de classes. Aqueles imóveis foram reservados só aos burgueses, mas
classe comportava diferentes categorias, que até se ignoravam. Repartiam-se,
n, pelos andares, de baixo a alto, segundo a importância de sua posição social ou
ãuas somas. O aparecimento do elevador em 1867 foi pouco a pouco
3ando com esta ordem de fatores32.
Haussmann concebe a cidade com dimensões monumentais e
e densidade de povoamento e, portanto, *sua obra é o reconhecimento implícito da
nde metrópole como componente normal da civilização moderna1**. Ele contrasta
n outras perspectivas que também desenvolveram-se com a cidade moderna, como
lê Ebenezer Howard. Este, em 1898, propõe as cidades jardins a partir da ideia que
limensao das cidades deve ser posta em causa. Ou seja, a solução não se restringe
melhores equipamentos, vias renovadas e embelezamento acumulado. A
perpopulação, a instabilidade, as tensões sociais e a especulação com a alta de
ecos do solo impedem que as propostas anteriores se realizem de modo satisfatório.
Dward apoia, ao contrário, a descentralização e a criação de cidades novas.
O valor e o peso da herança haussmanniana revela-se hoje nas
ficuldades da cidade de Paris para definir a sua "contemporaneidade" frente a uma
modernidade que fascina e ofusca. Haussmann contribuiu muito para um "tipo" de
lodernidade urbana que se impôs em Paris, com suas fraquezas como a obsessão
Ia simetria frente a outras concepções de modernidade que valorizam os contrastes
: virtudes como a construção de uma cidade burguesa, espalhando um ideal de
jeleza que antes era restrito da igreja e da nobreza.
ttffl
Espacialidades e orfexte urbano no Irabahú das -Passagens
L::
Há duas questões a considerar. Uma é a cidade em si, na sua
característica de grande cidade em expansão e de transição para uma nova urbanística
que se desfaz das heranças pré-modernas. Outra questão envolve a renovação urbana
dentro de uma proposta de adaptação da cidade aos novos tempos.
A metade do século XIX surge como um momento de crise em
algumas grandes cidades europeias. O aumento sem precedentes da concentração
demográfica e a industrialização exigiam medidas de adaptação e grandes
transformações em tais cidades. Rondava o mundo urbano a sensação de uma
inadaptação entre forma e conteúdo, uma percepção de anacronismo. A capacidade de
lidar com esse 'tempo - espaço" será a grande tónica do urbanismo e de sua crítica. A
grande transformação da cidade tem em vista o grande fluxo de pessoas, as grandes
construções, as periferias, a submissão aos veículos, as dificuldades sociais inéditas e o
fim de um mundo rural majoritário. A situação contemporânea foi gestada no século
XIX. A aceleração dos ritmos de crescimento está coordenada com a intensa
urbanização (diminuição e transferência da população do campo) e a industrialização.
É por volta de 1830, em Paris, que sucedem-se profundas modificações e movimentos
migratórios com pressão demográfica que faz se sentir sobre o tecido urbano34. Pof
volta da metade do século XIX, com exploração da rede ferroviária e da base territorial
da indústria, novas mudanças importantes ocorreram35. Ao mesmo tempo que a
primeira metade do século XIX assistia transformações violentas da cidade, as políticas
públicas continuavam rotineiras, incapazes de enfrentar os fluxos migratórios e a
miséria como fenómeno próprio das sociedades modernas36. No caso de Paris, embora
o aumento brutal da população começasse a inquietar a opinião pública ao final da
'RiJbf r,-. ^l^TVt^-^-Á^.y
Restauração, foram eventos devastadores, como as grandes epidemias no começo dO|£n*7j5]
reinado de Luís Filipe (sobretudo em 1832), que puseram a questão urbana no centro "' ^-
da cena parisiense37.
No sentido geral, políticas de intervenção urbana, como a de
Haussmann, marcam uma mudança importante na concepção da cidade e do papel do
Estado. Segundo Benévolo, durante muito tempo a cidade que emergiu da revolução
industrial gestionou-se com os regulamentos da cidade pré-industrial, pois em nome
do ideal liberal partia-se da "hipótese de que a cidade poderá desenvolver-se segundo
as leis do mercado, sem uma intervenção reguladora da autoridade pública'3*. No
entanto, a realidade de ritmo diferente da cidade que emergiu da industrialização
mostrava um movimento contínuo que não tendia para um novo equilíbrio estável. As
transformações levavam a outras cada vez mais profundas e cada vez mais rápidas. A
manutenção da concepção de cidade industrial liberal, de livre interferência das
intervenções localizadas no território, só levou a um ambiente precário e caótico na
primeira metade do século XIX. Intervenções como a de Haussmann serviram para
superar a antiga polémica, na gestão da cidade, entre os radicais liberais (não
intervencionistas) e os radicais socialistas (só gestão planificada), de modo a condenar
a interferência desregrada das iniciativas imobiliárias, mas afirmar a necessidade de
regulamentos conciliando o capital imobiliário e o resto do capital. Por isso, segundo
Benévolo, a Paris de 1853 a 1869 é o modelo de cidade industrial pós-liberal, na qual
se realizou um acordo entre a burocracia pública, representante do capital como um
todo, e a propriedade imobiliária.
Embora a crise da transformação que atingiu as cidades tenha
sido um fenómeno universal, há autores franceses que vem pontos específicos de
originalidade na urbanização francesa, O país, quando comparado com a urbanização
dos Estados Unidos ou da Grã-Bretanha, cresceu menos urbanamente desde o século
XIX . Embora no começo do século XIX Paris ainda fosse uma cidade arcaica em
muitos aspectos, o seu estupendo crescimento inibiu o desenvolvimento de ci
grandes em um raio de 300 km40. Em 1800, a população de Paris era menor que 600
mil habitantes; em 1830, não chegava a 800 mil habitantes; em 1890, 1.500.000
habitantes; em 1900, quase 3.000.000 de habitantes41.
Napoleão I fez trabalhos para transformá-la em capital da
Europa, preenchendo-a com rede de esgotos, mansões, pontes, mercado, abatedouros
e monumentos. Ainda assim, Paris assemelhava-se a uma cidade velha com ruas
estreitas. Até 1832 o aspecto da cidade não havia mudado muito desde o Antigo
Regime, embora novas formas urbanas tivessem aparecido, como passagens e bairros
organizados e construídos por sociedades civis de iniciativa privada42. Os problemas
urbanos e sociais explodiam, como a epidemia de cólera de 1832 com 44.000 vítimas.
O afluxo de imigrantes, atraídos pelos empregos na construção de caminhos de ferro,
como a linha Paris-Saint Germain, em 1837, e outras seis linhas em 1842, asfixiava a
cidade tal como estava constituída. O centro velho estava densamente povoado, com
migrantes, e sem condições, desde o início da Restauração, de acolher novos
habitantes43. Essa "asfixia" incomodava, de modo que Luiz Filipe, revelando a
aspiração de muitos setores, definiu como necessidades de Paris "água, ar e
sombra"44.
No entanto, foi com Napoleão III que Paris passou a ser
programada, mais efetivamente, para transformar-se na cidade adaptada à vida
moderna como os grandes espaços de Londres. No entender do imperador, havia que
destruir os "ninhos de ratos" do centro de Paris.
Comparada a Londres de então, parecia que a crise urbana era
avassaladora. Neste quadro, uma grande renovação urbanística, concebendo a cidade
como um todo, efetua-se entre 1853 e 1869 sob o comando do barão George
Prj
Haussmann. Auto denominado "artista demolidor, Haussmann "substituiu a fisionomia
ainda medieval de Paris, repleta de ruelas sombrias e fétidas... dotando-a de grandes
eixos de ligação ... leste - oeste e norte - su/.1*5 Para os seus maiores críticos, como
Baudelaire, os românticos e Benjamin, a obra foi essencialmente policial e política.
Alguns autores contemporâneos também admitem que a reforma urbana de
Haussmann foi "comandada mais pela estratégia que pela estética ..."46. Ainda assim,
serviu de padrão inspirador para a renovação de inúmeras outras cidades pelo mundo
e, posteriormente, foi tida como precursora do moderno urbanismo, elogiada por Lê
Corbusier e valorizada por todos que visitam Paris ao longo deste século. De fato, a
ação de Haussmann não pode ser vista apenas como conservadora. James Holston
observa que "o planejamento modernista surgiu no contexto de vanguardas europeias
como uma tentativa de desenvolver alternativas para a sociedade e a consciência do
capitalismo burguês. Seu propósito era subversivo ... seus insucessos derivam da
natureza utópica de suas contra - formulações, sobretudo de suas premissas
desistorízantes e descontextualizadas'*7. De qualquer modo, em toda a sua história,
segundo Norma Evenson, Paris sempre foi objeto de controvérsias e sempre conheceu
problemas. Houve sempre debates em torno de políticas e medidas governamentais
que influenciaram o desenvolvimento da cidade e não apenas quando foram
implantados programas efetivos de planificação48.
De todo modo, a reforma de Haussmann sucedeu a um
processo espontâneo de abandono do antigo centro, movimento este já iniciado nos
anos 40 do século passado: "... os ricos mudaram-se para os bairros novos do oeste e
do noroeste, os comerciantes os seguiram, os ateliês deixaram as ruas onde a
circulação tomara-se muito difícil. Paris se deslocava.'**. Em paralelo, o abandono do
centro às classes mais pobres trazia novas questões: "Possuída pela miséria, a
população perdia a paciência. As insurreições se sucediam apesar das repressões
,//50atrozes. Nestas condições e antecedendo a Haussmann, embora em muito menor [r;5. *?r otíí -to
alcance, a prefeitura do Sena, com Rambuteau, no período entre 1838 e 1843, pela K*-r*• *»•%-»„..
primeira vez em Paris "demole velhos imóveis para abrir um eixo novo e o cerca de
residências modernas, em lugar de construir adornos emoldurando a cidade como
faziam os poderes antigos.'*^ Portanto, sem "diminuir o mérito de Haussmann... todas
as condições estavam reunidas, em 1850, para uma transformação radical da capital.
As epidemias e as revoluções assinalavam a urgência. ...As discussões nas gestões
municipais anteriores já haviam identificado os grandes problemas. ...Os progressos
técnicos forneciam instrumentos novos e bem mais eficazes. A acumulação de capitais
oferecia os meios financeiros!***
Na concepção haussmaniana a cidade existente, pré-industhal,
era inadaptada aos novos tempos de grandes massas e grande velocidade. Ela era a
cidade paralisada e sufocada que devia ser substituída por uma nova era, tendo como
parâmetros a higiene e a circulação, mesmo que para isso se tivesse que contrariar
interesses particulares e localizados de populações já sem grandes direitos sociais. A
sua perspectiva de renovação urbana não parte, segundo ele próprio, de uma crítica
social. Ele aborda a modernidade não pelos seus custos sociais, mas por uma visão
própria à concepção de progresso vinculado ao desenvolvimento tecnológico. Mesmo
não havendo nesta concepção urbana uma verdadeira teoria de organização espacial,
existe nela uma concepção de totalidade do espaço parisiense. Ele executa, pela
primeira vez, um plano global de Paris, partindo de sua textura, sua topografia, suas
formas superficiais. Sobre esta visão, em grande medida abstraída da cidade real e
fundando uma concepção que passará a ser idealizada pelos futuros urbanistas
progressistas ele idealiza um sistema de circulação, com hierarquias e
solidariedades. Procura acabar com os espaços fechados sua obsessão e com os
bairros isolados, de modo a relacionar todos os pontos essenciais da cidade. Trata-se
Ph
de estruturá-la como um organismo único, sem necroses. Para isso destrói em
parte a cidade medieval junto com o deslocamento, a expulsão, de seus
pobres, concentrados em habitações miseráveis, envelhecidas e superpovoadas. É a
criação de um espaço ao mesmo tempo de circulação e de aeraçao. Juntam-se
concepções higienistas e mecânicas. O sistema de aeraçao contrapõe a ideia de cidade
como espaço construído em absoluta contradição com o verde do campo. A cidade
medieval já era uma concentração nítida frente ao entorno de uma massa construída.
Ela ficou ainda mais densa com a invasão de grandes massas humanas. Frente a esta
cidade, Haussmann organiza uma hierarquia de espaços verdes, com parques
suburbanos, parques intramuros, jardins, praças arborizadas e árvores alinhadas nos
passeios. Cria-se um espaço urbano que também dará sua contribuição para a
elaboração de correntes no urbanismo que idealizam um espaço misto, campo -
cidade. O programa, além dos sistemas hierarquizados de circulação e de aeraçao,
implanta igualmente um sistema de evacuação de águas servidas, que se tornou
modelo. O resultado global permite, de certo modo em contradição com a expulsão da
população pobre, a facilidade de acesso ao centro para toda a população e a
devolução da cidade, como um todo, e para todos os moradores.
Ainda assim, a renovação haussmaniana não é totalmente
desvinculada da herança histórica. Pelo contrário, Haussmann faz referência às
representações do século XVIII na procura de uma harmonia ideal. Se fixa-se nas
perspectivas e fachadas uniformes. Compartilha de uma crença, que continua a
proliferar no século XX, de que na racionalização por meio da arquitetura superaria a
desordem e a distorção e seria capaz de 'limpar" as áreas afastadas para toma-las
acessíveis ao desenvolvimento e à expansão*3. Essa concepção sofre críticas, tendo
em vista que ao visar a desordem atinge a vitalidade da cidade, o domínio e a vivência
do povo.
»• is
_2±Í
Por outro lado, mesmo os que reconhecem a obra de
Haussmann como necessária e modernizadora, e não desprovida de um caráter
estético, admitem que a sua ação primeira foi instrumental. A arte e o custo social
foram secundários diante da determinação de reorganizar o espaço. "Paralelamente a
estas operações cirúrgicas, a especulação favorecida pelo prefeito ...fez surgir da terra
pesados imóveis, tão tristes quanto opulentos, bordejando as novas vias, ou falsas
mansões Luís XVI para banqueiros, industriais enriquecidos, ou cortesãs da moda.
Nenhuma busca de harmonia, nenhuma ordenação monumental, e sempre o reino do
pastíche, único evangélico estético desta época de decadência e de falso semblante.'**
A sociedade, mesmo que tivesse ganhos a médio prazo, foi instrumentalizada. E,
embora uma concepção mais moderna de arte fosse valorizada, a arte presente na
cidade medieval foi desconsiderada em grande medida. Os contextos específicos
urbanos estiveram sujeitos a um projeto que abstraiu a cidade real. Assim, o contexto
urbano da Catedral de Notre Dame de nada valeu na renovação da lie de France.
Em síntese, desde o começo do século XIX Paris teve um rápido
engrandecimento, revelado no grande crescimento populacional, suportado pela
intensa migração. A cidade sofreu alterações políticas e sociais pós - Revolução, com
mudança essencial nas relações no campo, lugar de concentração da população até
então. A incoerência da cidade para o período burguês tornou-se o tema do século. As
grandes transformações de Paris contrastaram, de início, com as tímidas e rotineiras
políticas públicas. Uma avalanche de contradições empurrou a cidade afim de transpor
a filosofia do "embelezamento", típica do Antigo Regime, em direção à filosofia do
"urbanismo". Ainda assim, até 1832 Paris apresentava, no essencial, o mesmo aspecto
de antes da Revolução. Porém, novas formas urbanas surgiram no período, como as
passagens e bairros programados por sociedades de iniciativa privada. A vida cultural
modificou-se com a "invasão" dos teatros e a formação dos bulevares de intensa
atividade artística. Muitas das transformações tinham raízes nas dificuldades de r~í - -":
circulação e no incómodo das ruas de Paris. Novas ocupações com caráter mais íí:f.
segregado, demolições, abertura de novas vias, insurreições com reivindicações
territoriais, tudo isto já marcava a primeira metade do século. A revolução de 1848
deu, de certo modo, o impulso final para transformar uma Paris de transportes difíceis,
epidemias, moradias caras e miseráveis pressionada pela intensa migração. Uma das
questões que chamava a atenção, e que seria atacada por Haussmann, eram as
dissimetrias urbanas, em especial a leste - oeste. O tema, que talvez rigorosamente
não seja característico da modernidade e sim herança de concepções estéticas de
períodos anteriores, foi (e ainda é) em grande parte incorporado na modernização da
cidade. Firmou-se uma preocupação em conceber a cidade como um todo, incluindo as
suas periferias concêntricas. Caminhou-se na intenção de reatá-las ao centro, de modo
funcional. Tratou-se não somente de atacar as construções antigas, a estrutura viária
tradicional, como também de instalar novos equipamentos urbanos. Inspirada nas
renovações de Londres, o Segundo Império através de Haussmann promoveu uma
obra gigantesca e, em certo sentido, clássica: grandes avenidas retilíneas, concepção
majestosa e simétrica das construções, grandes perspectivas. Utilizaram-se técnicas e
materiais novos. Pressões pela higienização e a nova cultura do conforto, foram
incorporadas nesta renovação. No sistema viário, Haussmann procurou reforçar a
centralidade da cidade (a grande cruz).
Construiu grandes equipamentos públicos, que faltavam na
cidade quando comparada com Londres: abastecimento de água, cemitério, mercado,
parques. No que se refere à água, nos antigos aquedutos não permitiam levar a água a
não ser até certos e belos bairros do noroeste e até o segundo andar. Dois novos
aquedutos conduziram a água do Dhuys ao reservatório de Ménilmontant, a água do
Vanne ao reservatório de Montsourís. Os seus comprimentos (131 e 140 quilómetros)
eram, para a época, inteiramente impressionantes.'** No que se refere às águas
servidas, foi construída uma rede hierarquizada de esgotos de quase 600 quilómetros. 1\'.
"£5335 águas sujas não eram tratadas, e continuaram a poluir consideravdmente o rio, '•
mas o progresso foi imenso.'** Quanto ao abastecimento, houve uma revisão
completa: *os mercados centrais (Halles), que Napoleão I e depois Rambuteau haviam
engradecidos, foram destruídos e substituídos pelos admiráveis edifícios de ferro
construídos por Baltard ...O grande mercado central foi completado por numerosos
mercados cobertos construídos nos diversos bairros de Paris, afim de hierarquizar e de
descentralizar a distribuição dos alimentos. Os grandes matadouros de Ia Villete
completaram este sistema de abastecimento.'*7 Em relação aos espaços verdes, raros
na cidade, houve um grande avanço: "Antigos terrenos de caça reais foram
organizados para o passeio dos parisienses: o Bois de Boulogne foi destinado a tomar
o papel que havia representado há pouco tempo o Champs - Êlysées ...o Bois de
Vincennes asseguraria os mesmos divertimentos às classes populares do leste, mas,
corroído por administrações e empreendedores, a sua superfície diminuiu pela metade
após 1860. O parque Montsouri ao sul, a nordeste o de Buttes - Chaumont ...
completaram este esforço para reproduzir em Paris os grandes parques londrinos,
embora críticas severas deploram que Haussmann destruiu mais parques e jardins que
construiu..." K. Para Pierre Cabanne, "se a instalação dos Halles no centro da capital
foi um erro enorme, ao menos podemos creditar ao impiedoso prefeito ter instalado
uma notável rede de esgotos e trazido a relativa salubridade da Paris atua/, e ainda a
criação de espaços verdes públicos ... notadamente ao nordeste com Buttes-
Chaumont, e Bois de Boulogne à oeste dos bairros ricos de Auteuil e Passy. O leste e
os seus distritos operários foram, apesar da organização do Bois de Vincennes,
abandonados aos empreendimentos da pequena indústria*'**
Por tudo isso, o balanço da obra de Haussmann é motivo de
opiniões contraditórias, segundo Bemard Marchand60. Os seus contemporâneos a
criticaram, e muito. No entanto, esta Paris é hoje motivo de admiração. Como explicar
essa celebridade? Todas as grandes cidades europeias foram modernizadas demolindo
bairros insalubres e abrindo largas avenidas modernas: Londres quarenta anos antes
de Paris, Berlim e Viena vinte anos após61. A originalidade da obra reside
provavelmente em três pontos: a importância reconhecida aos equipamentos coletivos,
a criação de uma cidade burguesa e a produção de um conjunto coerente62. O principal
mérito de Haussmann foi o de realizar a cidade burguesa, uma forma urbana nova e
original, surgida timidamente sob Luis Filipe e que triunfa com o Segundo Império63.
Por outro lado, a política urbana do Segundo Império dispõe os
trabalhadores na periferia da cidade. A reforma urbana de Haussmann agravou muito
as disparidades Centre Paris e o subúrbio, entre bairros do oeste e bairros pobres do
leste, entre a margem direita e a margem esquerda. A segregação vertical (os pobres
se alojavam debaixo dos tetos e os ricos ocupavam os andares nobres) foi pouco a
pouco substituída, desde a Monarquia de Julho, por uma segregação horizontal que os
trabalhos de Haussmann estenderam a toda a cidade.'** .Sobretudo, a reforma cria em
torno de Paris um verdadeiro subúrbio, mas em condições bem particulares, distintas
de outras grandes metrópoles65. O subúrbio parisiense foi povoado menos por
camponeses pobres vindos para trabalhar como operários na cidade, como em Viena,
ou por burgueses fugindo dos transtornos e envelhecimento do centro, como em
Londres, e mais por artesãos e pequenos empregados expulsos do coração da cidade
em vagas sucessivas66. O subúrbio [banlieue] parisiense representa exatamente o
"lugar de banimento [ban]", o endereço dos que foram banidos67. Há uma diferença
grande frente aos antigos "faubourgs", que existiam antes de Haussmann. Eles eram
excrescências da cidade e a prolongavam penetrando dentro do campo. O subúrbio, ao
contrário, é original. É o lugar onde os cidadãos pobres, mas habituados a uma vida
Rub
urbana, foram alojados, em um meio que não era exatamente como a cidade e ainda r T;. '
menos como o campo, uma cultura original e diferente da cultura urbana, constituída
ao lado dela e contra ela66. Paris criou em torno desse subúrbio uma mesda de
desprezo e temor que se manifestou quando da concepção do metro, o qual deveria
permanecer limpamente parisiense69. Em tomo dessa geografia original, Bemard
Marchand faz uma interpretação também bastante particular sobre o significado da
Comuna de Paris, relendo-a enquanto movimento urbano e tipicamente parisiense.
Note-se que Marchand, nessa análise, contrasta com a definição de Benjamin para a
obra haussmaniana, interpretada como "embelezamento estratégico".
Configurações Urbanas Selecionadas
Barreiras
Nos textos de Benjamin sobre Baudelaire a barreira é trazida
pelo seu sentido imediato económico e social. O autor realça, não sem razão, os
magníficos versos que compõem Vinhos dos Trapeiros. As barreiras podem ser
compreendidas como fragmentos, mundos particulares, e, associados a outros
universos, revelam-se mutuamente. Nesse sentido, assim como os trapeiros revelavam
a emersão de novos métodos industriais (e o aproveitamento de rejeitos industriais),
mostrando a miséria do humano como outro produto '"industriar', as barreiras, diante
da emersão de uma nova cidade, eram resto, resíduo e rejeito industrial. Benjamin,
novamente elege, com as barreiras, a metáfora das passagens em seu estudo, as
transições entre mundos.
Economicamente a barreira era um posto fiscal na divisa da
cidade, destinado ao controle da circulação de viaturas, de produtos e bens,
P' wrfffkZí
permitindo o recebimento de impostos. Muitos dos postos aduaneiros edificados junto
às barreiras eram em estilo neoclássico. No século XVIII, havia sessenta portões na
muralha (Muralha dês Fermiers Géneraux dos coletores de impostos). Eles eram as
passagens através das muralhas. O seu declínio é o ocaso da cidade pré-industrial,
feudal e mercantil diante da cidade industrial e burguesa.
A barreira, fragmento selecionada da cidade, articula-se com
outras configurações urbanas como as passagens e seu sentido metafórico, pois
representam o seu contrário, o fechamento. Mas também são passagens entre
mundos. Na origem do termo, há a referência a uma reunião de peças de madeira ou
metal que tem como objetivo fechar uma passagem. De outro lado, o fim das muralhas
da cidade e o seu desaparecimento ou testemunho solitário tem relação com a
abertura de bulevares circundando a cidade moderna. A barreira, por outro lado, é o
outro lado da barricada, na medida em que é uma construção oficial que tanto pode
ser a proteção do burgo quanto elemento de controle fiscal e social. Ambas, como
pontos de controle e fechamento, tem diversos pontos em comum, mas destaca-se a
revelação de projetos vencidos na cidade. As barreiras, elementos característicos da
cidade pré-industrial, relacionam-se, portanto, a todo o processo de transformação
urbana parisiense que abriu a cidade e a modernizou.
As barreiras também assinalavam o ponto no qual terminava a
jurisdição da cidade. Por isto, junto a estes lugares, estabeleciam-se os cabarés (casas
de bebidas) que vendiam o vinho que não pagava imposto, o vinho da barreira70.
Segundo Jill Forbes, o espaço para além da muralha Ia zone "era visto como
uma área violenta povoada por bandidos e marginais variados, mauvais garçons e
prostitutas conhecidas como Vénus de Ia barrière, um local não somente em que os
dispositivos legais não tinham validade mas também onde as convenções normais da
sociedade civilizada não prevaleciam"7*-.
Além disso, o uso desses locais frequentemente adquiria
significação simbólica. As barreiras "eram muitas vezes o local de atos simbólicos ou
rituais, notadamente a Barríère St Jacques, onde foi instalada a forca, cuja tradição de
associações macabras é descrita em pormenores por Victor Hugo em O ú/timo dia de
um condenado e em Os miseráveis72. No entanto, assinalavam também *os
lugares em que as barreiras caíam, em que aristocratas, burgueses e classe operária
se misturavam de um modo que era impensável em qualquer outra parte e
v/vendavam juntos coisas que norma/mente teriam vivenciado separadamente se
tanto. Aqui abundavam ladrões, prostitutas e todos os outros indivíduos que com
facilidade atravessavam as barreiras de classes. Aqui era possível ir para o outro
lado e tornar-se alguma outra coisa. Isto era tanto um feto geográfico e social quanto
um tropo literário ,.."73. As barreiras, onde estivessem, nno mur ou nas fortífs, é a
área que fica mais além, paraíso de trapeiros e traficantes de drogas hoje centro do
comércio de objetos usados que serve para definir e circunscrever a essência e a
quinta-essênda da cidade**. E, citando Victor Hugo de Os miseráveis'. "Paris, centro,
subúrbios, circunferência: e/s a terra inteira para esses meninos. Eles nunca se
aventuram mais além, e não podem deixar a atmosfera parisiense do mesmo modo
que um peixe não pode viver fora d 'água".
Tavernas de Vinho
Em "A Paris do Segundo Império em Charles Baudelaire",
Walter Benjamin, na parte intitulada Boémia, faz um retrato da movimentação social
que caracterizou o período. Estabelece-se uma nova sociedade, uma nova
acomodação, significando deslocamento e readaptação do espaço. Um exemplo foi a
[Rui
mobilidade social representada por fatos como a ascensão de determinados estratos (a
burguesia) e a nova inserção de camadas sociais (os camponeses migrantes
transformados em proletários). A mobilidade e mobilização, por outro lado, estão
representadas na nova cultura que se estabelece, a moderna, com características de
fugacidade e velocidade. Politicamente, a estruturação de uma nova sociedade deu-se
sob a resistência da antiga e com a produção de fraturas sociais. Deste modo, o
período foi caracterizado, no caso francês, por um longo processo representado por
intensas lutas por hegemonia e acomodação.
Benjamin, considerando essa insegurança, essa flutuação, traz
à tona elementos sociais representativos tais como o conspirador profissional, o
trapeiro e o artista marginal. Se aproxima o trapeiro com a boémia, com o conspirador
profissional e com o literato. A propósito afirma: "Cada um que pertencesse à boémia
podia reencontrar no trapeiro um pedaço de si mesmo". De certo modo, neles havia
um protesto contra a sociedade diante de um amanhã precário. A propósito, Benjamin
lembra Sainte-Beuve no poema: * Neste cabriole de aluguel examino / O homem que
me conduz, verdadeira máquina / Hediondo, barba espessa, longos cabelos
emplastrados: / Vício e vinho e sono carregam seus olhos bêbados. / Como o homem
pode cair assim? pensava / Enquanto me recolhia ao outro canto do assento.". Esse
aparente afastamento do poeta frente ao marginalizado é logo superado no próprio
texto. Benjamin continua: * Assim é o começo do poema; o que se segue é uma
interpretação edificante. Sainte-Beuve pergunta a si mesmo se sua alma não estaria
igualmente abandonada como a do cocheiro de aluguel."7*
Espacialmente é em torno dessas reflexões que Benjamin insere
as tavernas de vinho. Elas funcionavam como as poucas estações fixas públicas dos
conspiradores profissionais e dos trapeiros.
O vinho foi símbolo explosivo, de certo modo, da exclusão
iodai da época. A propósito, Benjamin lembra do vinho vendido nas tavernas daf*
í.«riferia, mais barato por estarem além das barreiras que davam acesso a Paris, as :;
íuais serviam como cobradoras de impostos e, consequentemente, aumento do preço
inal dos produtos. Citando um chefe de polícia da época, Benjamin aponta que
quando podiam fazer essas incursões "os trabalhadores, cheios de soberba e
insolência, exibiam então o seu prazer, como se fora o único a lhes ser concedido'. E,
de acordo com outro contemporâneo, *o vinho da barreira poupou ao governo muitos
choques". O nosso autor observa: WO vinho transmite aos deserdados sonhos de
desforra e de glórias futuras". Não sem motivo, Baudelaire escreveu O Vinho dos
Trapeiros: "... Vê-se um trapeiro cambaleante, a fronte inquieta,/ Rente às paredes a
esgueirar-se como um poeta,/ E, alheio aos guardas e alcaguetes mais abjetos,/ Abrir
seu coração em gloriosos projetos./ Juramentos profere e dita leis sublimes,/ Derruba
os maus, perdoa as vítimas dos crimes,/ E sob o azul do céu, como um dossel
suspenso>/ Embriaga-se na luz de seu talento imenso."™
Barricadas
Na origem, a barreira era uma trincheira feita com barricas
cheias de materiais diversos, com vistas a interditar o acesso de uma rua ou de uma
passagem, É curioso notar que a barrica é uma espécie de subproduto mercantil, pois
o tonel de madeira de 200 a 250 litros destinava-se a transportar e guardar
mercadorias, sobretudo líquidos, como o vinho. Paris foi marcada por barricadas e este
século também as viu. A primeira barricada que se tem notícia foi feita em 12.05.1588
pelos partidários da Liga contra Henrique III, isto é, pelos partidários de Henrique I,
duque de Guise, na sua intolerante luta contra o partido protestante.
As barricadas aparecem em Benjamin, em primeiro lugar, no
seu escrito Paris, capital do século XIX. Neste, elas estão associadas ao primeiro
urbanismo de Haussmann que transformou a fisionomia de Paris, destruindo boa parte
da antiga cidade e marcando-a com avenidas largas. Para Benjamin, "a verdade/rã
finalidade das obras de Haussmann era tornar a cidade segura em caso de guerra civil.
Be queria tomar impossível que no futuro se levantassem barricadas em Paris."77
Dentro do mesmo cenário desenvolvido para as tavernas de
vinho, utilizando o contexto histórico selecionado a sociedade em transição para a
modernidade Benjamin detêm-se na fugacidade desta estrutura espacial. As
barricadas, na tradição revolucionária francesa, representavam um ponto central do
movimento conspirativo, uma fixação de sua mobilidade. A barricada, em Benjamin, é
uma referência espacial à luta de classes. Ela, ao mesmo tempo que divide a cidade,
pela ação de sujeitos organizados que queriam mudar os seus destinos, nega a
concepção vencedora de modernidade.
As barricadas representam, simbolicamente, o congelamento do
tempo quantitativo e, assim, contraponto à ideologia do progresso. A paralisia do
tempo opõe-se ao ritmo frenético determinado pela máquina, na fábrica e fora dela. A
interrupção do tempo homogéneo e contínuo, para Benjamin, transformando os
acontecimentos em eventos. Deste modo, é como se houvesse a instauração do reino
do sono e do sonho a noite frente ao estado de choque permanente e acordado.
A compreensão do sentido íntimo da barricada também se revela quando comparada
com a barreira, puro símbolo económico de controle alfandegário das cidades.
O simbolismo das barricadas, na concepção de Benjamin,
também se faz através dos paralelepípedos, reveladores eles próprios da metrópole
moderna e do mundo moderno. A propósito, Benjamin lembra Baudelaire: "/Vá
alocução a Paris, que permaneceu fragmentária e que deveria fechar As Flores do Ma L
Baudelaire não se despede da cidade sem evocar suas barricadas; lembra-se de seus
"paralelepípedos mágicos que se elevam para o alto como fortalezas". Naturalmente
essas pedras são "mágicas", uma vez que o poema de Baudelaire não conhece as
mãos que as colocaram em movimento,"7* Benjamin compara este objeto mágico
"os paralelepípedos mágicos" com a mágica (fetiche) da mercadoria a qual atraia
nas galerias ou nas feiras os homens - consumidores: "... clama o blanquista Tríton:
"d força, rainha das barricadas... tu, que brilhas no darão e no motim ...é para ti que
os prisioneiros estendem as mãos acorrentadas."71*
Interiores
Na sua obra Benjamin, ao fazer referências a configurações
urbanas diversas, detêm-se em temas como a fantasmagoria do espaço e a
transformação dessas configurações em interiores. Na transição e afirmação de uma
nova sociedade estruturando-se no século passado, o autor reflete sobre a auto-defesa
do burguês nas quatro paredes de sua casa. Aprofundando-se no tema, Benjamin
acompanha o raciocínio de Simmel sobre a grande cidade. Este trata a metrópole do
século XIX como aquela que põe em destaque a questão da dissolução do sujeito
frente a forcas objetivas esmagadoras. Walter Benjamin, ao tratar do desaparecimento
de vestígios da vida privada na cidade grande, faz ver que se criaram compensações
entre as quatro paredes. O interior burguês surge para "não se deixar perder nos
séculos", para "não se deixar perder os rastros dos seus dias ou ao menos o dos seus
artigos de consumo e acessórios". Diante dessa ameaça, desenvolve-se toda uma
concepção de "estojo do ser humano", de "cápsula" na moradia. Proliferam-se moldes
de objetos, como capas, estojos, coberturas as mais diversas, os quais guardam a
impressão de todo contato, utilizando-se para tal de materiais como o veludo e a
pelúcia. O "estojo do ser humano" acomoda o ser e seus pertences e reserva os seus>r
vestígios como a "natureza preserva no granito uma fauna extinta". Outro aspecto
gira em tomo das explicações de Benjamin sobre os interiores é mostrar o avanço dt
lógica mercantil na própria interioridade: as "molduras" salientam o valor dos objetos e
os "estojos" subtraem estes da visão profana, do não proprietário, apagando seus
contornos.
Exposições
A presença das exposições é associada por Benjamin ao
desenvolvimento da capacidade de atração da mercadoria e da nova indústria da
diversão. O autor lembra que, logo após a Revolução de 1789, organizaram-se
exposições nacionais da indústria, a primeira das quais em 1798. Foram estas que
precederam as exposições universais. Nas primeiras, a exposição marca também um
primeiro passo para a indústria da diversão, ainda nascente. As festas populares, deste
modo, serão superadas por uma indústria que encontra na exposição uma primeira
forma organizada. Em ambas, a mercadoria passa a desenvolver cada vez mais seu
caráter atrativo, fazendo confluir as massas para a sua apreciação, superando a
atração que a arte (e o sagrado) ocupara na atenção social. O fetichismo das
exposições, em si, está no invólucro que conferem à própria mercadoria, criando uma
moldura. O homem se distrai nessa fantasmagoria, desfrutando a sua própria
alienação.
A palavra exposição vem do latim e significa "abandono,
explicação'. O seu primeiro sentido é exposição de obras de arte, de forma organizada,
e desenvolveu-se na França a partir do século XVII, com exposições oficiais dos
pintores da Academia no Palais-Royal. Posteriormente foram para a Grande Galeria do
Louvre e, a partir do século XVIII, realizaram-se no Salão Carré. Mais tarde, no século
XVIII, foram organizadas outras exposições para artistas jovens. A oficialidade dessas
exposições, o rígido padrão académico imposto, fizeram com que, no século XIX,
fossem organizados vários salões e exposições em reação ao Salão Oficial. O que mais
chama a atenção de Benjamin, nesse processo de visibilidade da arte para o grande
público, é a aproximação entre arte e mercadoria. Enquanto as galerias, no seu sentido
original, expunham para olhos eleitos (religiosos ou nobres) objetos únicos e artísticos,
as passagens expunham para todos as mercadorias. O Ralais Royal que acomodou as
exposições oficiais de obras de arte no século XVII, passa a ter no século XVIII
exposições de mercadorias.
No âmbito artístico mais restrito, a obra de arte, as grandes
pinturas e esculturas, conferiam dignidade a castelos e mansões dos nobres. Embora a
propriedade contasse com obras em todos os seus ambientes, espaços particulares
galerias foram sendo montados com elas. Do mesmo modo, tais obras eram dignas
de retratar o sagrado e se sacralizaram nas igrejas e catedrais. Também estas
possuíam as suas galerias. Nestes espaços particulares ou nos seus nichos especiais,
seus altares, estes fragmentos endeusados ficavam abandonados ao olhar, à
contemplação e reflexão. Os artistas, cujas obras estivessem entre as eleitas,
dignificavam-se.
Como sabemos, é com a ascensão da burguesia que a obra de
arte passa a adquirir um caráter menos sacro e mais popular. Bas não somente
passam a ocupar espaços mais públicos, como as residências de mercadores e
banqueiros, como também os espaços do trabalho. A isto soma-se o papel da iniciativa
privada, dos grandes marcharias [mercadores] de arte, na promoção de obras e
artistas. Este processo de dessacralização do mundo, por outro lado, caminhou
imbém na direcao da mercantilização intensa da arte e a complexa relação arte-
c:.:'lercadoria.
O século XIX, com a emersão intensa do mundo urbano, traz *"""
im novo mundo que é, além do trabalho, o da necessidade cada vez maior de
'isibilidade, de um mundo produzido para o olhar e para o lazer. No que se refere à
)bra de arte, em contraste com períodos anteriores de restrição, criam-se exposições
Deriódicas de arte contemporânea como a Bienal de Veneza (1895). A obra chega a
quase todos, seja como arte, seja como mercadoria. Galerias privadas organizam-se
em função da conquista e ampliação do mercado de arte e os museus multiplicam
grandes exposições didáticas.
As grandes exposições universais, que traziam lado a lado arte
e mercadoria, as novidades mercadológicas e as novas tecnologias, consagraram à
mercadoria um altar antes inimaginável. No entanto, havia uma diferença fundamental
entre as galerias de arte e as exposições de mercadorias: a efemeridade. Das
exposições universais quase nada restou; "A Galeria das Máquinas, de uma altura de
35 metros, sustentada por arcos metálicos, revelou na Exposição de 1867 um jovem
engenheiro colaborador do arquiteto J. B. Kraníz, Gustav Eiffel. Uma segunda Galeria
das Máquinas foi construída para a exposição de 1878, mas é a terceira, em 1889, que
é a mais notável; devida ao arquiteto Dutert e ao engenheiro Contam/n é também uma
das realizações metálicas das mais importantes do século. E o símbolo, com a Torre
Eiffel que se levantou um pouco mais longe sobre o Campo de Marte, do triunfo da
arquitetura do ferro. As três galerias das máquinas foram destruídas, a Torre Eiffel,
muitas vezes ameaçada, foi salva pela utilização que se fez sucessivamente a T. S. F. e
a televisão.'™ Assim, a exposição de 1889, trunfo do metal e comemorativa do
centenário da Revolução Francesa, deixou a Torre Bffé, reino da técnica, atraindo
trinta milhões de pessoas. Foram justamente as exposições de 1889 e 1900 que
"contribuíram para dar a Paris a reputação de cidade alegre e agitada. Parisienses e
milhões de visitantes vindos do resto da Franca e do estrangeiro se precipitavam para
passear nestas exposições e admirar as últimas descobertas'*1.
Utilizando-se dos mesmos parâmetros formais da arte, a
mercadoria e a novidade procuram se revistir de uma sacralidade referida a tempos
passados. Quase todas as grandes exposições internacionais contaram com
importantes seções de belas-artes, como por exemplo a de 1900 que apresentou a
"Centena/ da arte francesa". Tomou-se tradicional conferir medalhas, símbolos de
honra, para os produtos premiados em exposições.
Uma outro referência ao passado que as exposições do século
XIX fazem está nas antigas feiras. Já havia uma cultura de feira da qual a indústria fez
uso para expor as novidades. Segundo Braudel, a França ainda em 1841 era um país
coberto das antigas feiras comerciais que existiram desde os períodos medievais ou
antes82. "O seu papel é romper o círculo demasiado estreito das trocas comerciais.
Quanto às grandes feiras, mobilizam a economia de vastas regiões; por vezes todo o
Ocidente marca aí encontro ...w63. "Todas as feiras apresentam-se como cidades
efémeras sem dúvida ...". Nas verdadeiras feiras "uma cidade Inteira abre as suas
portas. Então, ou a feira submerge tudo e identifica-se com a cidade e até extravasa
da cidade conquistada; ou esta é assaz forte para manter aquela a boa distância:
problema de peso respectivo. Lyon é em parte vítima das suas quatro feiras
monumentais: Paris domina as suas, reduz essas feiras às dimensões de mercados de
vulto; assim a antiga feira sempre viva de Lendit realiza-se em Saint-Denis, fora de
muros1'.
O rol de exposições internacionais iniciou-se em Londres e
segue até este século.
f^^A^r
Exposições Internacionais no Século XIX:
ano1851
18531855186218631865186518671871187218731875187618781879188018831883188318851885-188618871887188718871888188818881888188918901891189318941894189418971900
cidadeLondres
Nova YorkParisLondresConstantinoplaDublinPortoParisLondresLimaVienaSantiago do ChileFiladélfiaParisSidnevMefooumeAmsterdamLouisvilteBostonAntuérpiaNova Orleans
ManchesterBombaimAdelaidelekaterinburgBarcelonaCopenhagueMeboumeBruxelasParisLondresMoscouChicagoAntuérpiaMadriSão FrandscoBruxelasParis
observaçãoPrimeira exposição de caráter universal,construção do Crystal Palace
Distinguiu-se pela
Construção do palácio do Trocadero
Construção da Galeria das Maquinas e da Torre Erffel
Construção do Grand Ralais e do Petít Ralais. Tambémfoi construída urna série de palácios dedicados asdiversas indústrias, plantados sobre a Esplanada dosInválidos. O Palácio da Eletrícidade foi construído noCampo de Marte.
• •r*— tf--^^r=-a— i- l*'r.-.- í
Bulevares
Os bulevares são inseridos na análise benjamiana, em Boémia,
quando o autor trata dos cafés. Surgem, neste sentido, como os espaços à disposição
Rubr
onde ocorrem os incidentes e os boatos.
Na parte intitulada Flâneur, Benjamin volta à análise dos
bulevares, inserindo-os em novas questões que permitem compreender melhor a
estruturação da sociedade e da cidade modernas. Em dado momento, ao tratar de um
tipo de literatura específica as fisiologias o autor observa que elas dedicavam-se
a descrições diversas, porém dentro de uma superficialidade que buscava distanciar-se
de qualquer consideração mais incisiva, de modo que retratavam o próximo
distanciado da experiência. A calma presente neste tipo de literatura, nas suas
descrições, significava o distanciamento frente aos riscos e perigos que compunham a
política repressiva e conspirativa daquele período, a omissão em citar a miséria e a
desconsideração dos riscos para a personalidade com o avanço da lógica liberal
mercantil para todas as dimensões da vida. Essa sensibilidade no campo da arte é
aproximada, pelo autor, à figura do fíâneur aquele que "dá vida" ao sujeito amorfo
- multidão e seu mundo urbano,
Para Afazer botânica no asfalto', de acordo com Benjamin, o
flâneur precisava muito das calcadas largas dos bulevares. As calçadas só foram
ampliadas com Haussmann. Até então elas eram estreitas e não ofereciam a suficiente
proteção contra os veículos. A calçada do bulevar era um ponto de observação. Com
elas, a multidão o espetáculo que fascinava podia ser vista à distância, nas
mesas dos cafés. Desse ponto de vista, tinha-se na calcada, como nas fisiologias, a
"passagem em revista da vida burguesa". Tudo passava em desfile. No sentido poético,
Benjamin, acompanha o flâneur baudeleriano, e chama a atenção para os aspectos
contraditórios, alienantes e libertadores, de tal ponto de vista. Ele observava a massa
como se tal vida não lhe dissesse respeito. Apesar de tudo, a observação distanciada
significava a preservação de uma certa centralidade do sujeito. Pela observação via a
massa e os seus elementos: o anti-social asilado nela e o qualitativo refugiado neste
Ru br
homogéneo. Benjamin se compraz com a aguda sensibilidade de Baudelaire para com
esse qualitativo da multidão. Ele exemplifica com um poema (A uma passante) de•-
encontro do amor nesse ambiente, em aparência, totalmente homogéneo: A rua, em
tomo, era ensurdecedora vaia/ Toda de luto, alta e sutíl, dor majestosa/ Uma mulher
passou, com a mão vaidosa/ Erguendo e balançando a barra alva da saia;/ Pernas de
estátua, era fidalga, ágil e fina./ Eu bebia, como um basbaque extravagante,/ No
tempestuoso céu do seu olhar distante,/ A doçura que encanta e o prazer que
assassina./ Brilho ... e a noite depois! Fugitiva beldade/ De um olhar que me fez
nascer segunda vez,/ Não mais te hei de rever senão na eternidade?/ Longe daqui!
tarde demais! nunca talvez! Pois não sabes de m/m, não sei que fim levaste,/ Tu que
eu teria amado, ó tu que o advinhaste!
Benjamin, no entanto, nota que a despreocupação do fiâneur, o
seu distanciamento da multidão, da massificação, tinha data para acabar. A sua
condição social, até então, permitia-lhe o luxo de não se envolver e colocar-se como
personalidade centrada. No entanto, embora imaginasse que criava uma barreira
invisível ao seu redor, o fiâneur já compartilhava a situação de mercadoria na medida
em que, abandonado na multidão, procurava onde encaixar a sua identidade, o seu
espaço. Já inebriado pela mercadoria, levitava a sua volta.
Essa perspectiva de observador é fundamental no pensamento
benjaminiano. Sujeitos particulares e lugares particulares formam perspectivas.
Esquematicamente, podemos apontar algumas perspectivas particulares, postos de
observação privilegiados na análise benjaminiana como os bulevares, as passagens e
os cafés84:
1. o olhar do bulevar
O
2. o olhar do café
2. o olhar da passagem:
No sentido paisagístico, o bulevar é uma avenida larga e
arborizada, com espaçoso passeio, o qual permitiu, como nunca antes, o
desenvolvimento da sociabilidade urbana. Os bulevares, além da arborização, foram
concebidos com largas calcadas. "Estes passeios com árvores plantadas, animados dia
e noite, contribuíram muito na atraçâo da cidade, fornecendo um espaço aberto e um
espetáculo permanente acessível a todos"65. A circulação nas ruas medievais do centro
tinha sido, no século XIX, grandemente agravada pelo adensamento populacional e
pelo crescimento dos transportes, dificultando-se ainda mais a movimentação nas vias
estreitas e obstruídas. Para os pedestres a criação de passeios foi uma boa solução. Os
I Rubr
írimeiros passeios foram construídos em 1823 e por muito tempo foram escassos86. Os
ISfa>ulevares do século XIX incorporam os passeios na sua constituição. £».«...
rA história da inserção dos bulevares na vida parisiense, como
•»orma e referência, é, no entanto bastante polémica na medida em que eles inserem-
>e em um processo de destruição da antiga cidade medieval. A palavra "boulevard"
:em origem no termo holandês "bulwerc", o qual tem o significado de fortificação. Os
bulevares tomaram este nome porque foram construídos sobre as antigas muralhas da
cidade. Segundo Pierre Lavedan, o termo bulevar designa "o caminho que costeia a
muralha externamente; com o crescimento da aglomeração ele passa de exterior a
interior"67. Esse sentido original foi, frequentemente, modificado: o bulevar que
substitui a fortificação é, em geral, uma avenida larga plantada de árvores. Muitas vias,
com origem muito diferente como o Bulevar Raspail ou o Bulevar Haussmann, em
Paris, que nada tem a ver com as antigas cercas por semelhança, foram designados
da mesma forma.
Estas largas avenidas bordejadas por árvores geralmente
evocam Haussmann, mas a origem é bem anterior. A cidade de Paris desenvolveu-se
no interior de linhas de fortificação. Charles V iniciou a construção de uma muralha
semi-circular sobre a "Rive Droite", margem direita do Sena, para proteger a nova área
importante da cidade. A "Cite", a "lie de Ia Cite" já era uma área fortificada. Nos ranos
de Charles IX e Luís XIII a muralha foi prolongada. Na época de Luís XIV este muro
fortificado já havia perdido a sua estratégica razão de ser. Por isso, em 1646, ele foi
destruído e substituído por ruas bordejadas de árvores. Os primaros bulevares foram
construídos no século XVII, criando-se grandes avenidas: Bulevar de Ia Madeleine, dês
Capucines, dês Italiens, Montmartre, Poissoniere, de Bonne-Nouvelle, Saint-Denis e
Saint-Martin. Estes constituíram um grande eixo, desde a Praça de Ia Madeleine até a
Praça de Ia Republique. Esta área formou uma grande artéria sinuosa, das mais
Rubi
animadas em Paris, e tornou-se um centro de distrações e de comércio, uma grande
via de circulação, constituindo os chamados bulevares interiores ou grandes
bulevares (da Madeleine à Bastilha)88. Os grandes bulevares, criados por Luís XIV,
"te/?? 35 metros de largura: 17 de pavimento; duas calçadas com 9 metros com árvores
plantadas, de modo que a largura total do passeio ultrapassa a do pavimento, o que
revela bem o destino principal da via para passeio ou para fíanar diante das vitrines'*9.
Mais além dessas antigas fortificações situava-se outra
muralha, construída no século XVIII para cobrar imposto de mercadorias que entravam
na cidade. O sistema de artérias construído sobre estes limites ficou conhecido como
bulevares exteriores, os quais tem como poios leste e oeste a Praça Nation e a
Praça d'Étoile. A ação de Haussmann, em 1859, visou justamente estender a cidade
até essas fronteiras, de modo a implantar, ptanificadamente, uma nova rede urbana na
qual os bulevares ficavam integrados ao sistema global de circulação. Esta nova rede
urbana é considerada por Evenson a parte mais importante do programa
haussmanniano90. É o período de maior sucesso de Haussmann na prefeitura, entre
1853 a 1860. Um dos maiores projetos foi a construção da "cruz" de Paris, a chamada
primeira rede. Até então, Paris "dispunha de um eixo duplo norte - sul (ruas Saint -
Denis e Saint - Martin, rua Saint - Jacques, rua de Ia Harpe), sobre o traçado de duas
vias romanas, e de um eixo leste - oeste (ruas Saint - Honoré e Saint - Antoine), ao
longo de um antigo dique insubmersível do Sena. Depois de muito tempo, esses dois
eixos foram se tomando muito estreitos e gravemente congestionados.'**- Além da
grande cruz, Haussmann abriu uma segunda rede, na periferia da velha Paris
(boulevares de Port - Royal, Saint - Mareei, Voltaire e outros). No total abriu-se 95
quilómetros de novas vias no centro da capital e mais 70 na periferia, "formando uma
rede coerente de comunicação entre os centros vitais da capital e as novas estações.
Esta rede, fundada sobre um certo número de eixos retilíneos, provocou a destruição
de muitos monumentos, a sua adaptação discutível aos novos traçados, ou seu
isolamento, mas igualmente a criação, para "animar" estas perspectivas, de realizações W "v
monumentais que tomam-se igualmente suscetfveis, segundo Haussmann, de novos
diálogos arquiteturais: fonte Saint-Michel, Domo do Tribunal do Comércio, Saint-
Augustín, Opera, a igreja de Ia Trinité, ett?'.92 Durante o Segundo Império foram
:riados os bulevares Saint-Michel e Sébastopol: "pavimento de 14 metros; duas
calcadas de 8 metros cada; largura total de 30 metros1**. A mais bela realização de
Haussmann é, segundo Lavedan, a avenida Foch, antiga avenida Bois-de-Boulogne:
^com 120 metros, mais servidão de 10 metros sobre os ribeirinhos, o que perfaz 140
metros de espaço livre entre as fachadas; a parte central (40 m) está reservada à
circulação continua e dividida em três seçoes: viaturas (16 m), cavaleiros e pedestres
fcada uma com 12 m); à direita e à esquerda destes elementos estão dois grandes
"erraplenos e plantações com 31 metros cada; enfim duas vias laterais extremas
'pavimentadas com calcadas) servindo as habitações1'*.
A ação haussminiana revestiu-se de uma dramaticidade
ompreensíveJ. Independente do plano em si, ela assinalava um momento de ruptura
om o antigo, de adeus. Segundo Richard Sennet, "a caixa que continha Paris no
lecurso de sua história era o seu muro. O muro serve a diferentes propósitos numa
idade, em diferentes momentos", como defesa até o século XVII, contenção "do
opulacho" no século XVIII, cobrança de impostos95. Em seu lugar, Haussmann
onstruiu *um novo muro legal, administrativo e residencial para a cidade, um muro
Diferente dos precedentes apenas no fato de que não era mais uma estrutura física...
'a reconstrução da cidade por Haussmann nos anos 1850 -1860, a mistura de classes
'entro dos distritos foi reduzida pela esquematização ... um esforço em fazer da
izinhança uma unidade económica homogénea1**.
(j-uibf
Não somente a década de 1830 é motivo de discussões sobre
KJernização de Paris. Próximo à época em que Benjamin escreve, nas décadas
20 e 1930, novamente a modernização é motivo de polémico em função da
struição de um segundo anel de fortificações em volta de Paris. Aragon o tomou
mo tema em Os camponeses de Paris, Benjamin inspira-se nele: "Ato começo [do
Dgramado Trabalho das Passagens] há Aragon. O Camponês de Paris, livro do qual
i não podia ler mais do que duas ou três páginas à noite, na cama, meu coração
itendo tão forte que me fazia deixá-lo de fado."97 A destruição dos fortífs, das
issages observadas por Aragon, a limpeza da zone além das muralhas era um
;sunto atual para Benjamin e ganhava uma atualidade com o retorno ao passado.
No século XIX, o eixo compreendido pelas grandes avenidas
tuadas no sentido Place de Ia Madeleine - Place de Ia Republique era a área principal
e vivência urbana. No Bulevar du Temple (o "bulevar do crime", dos teatros
lelodramáticos), concentrava-se a população mais pobre nas suas andanças. As
assagens, galerias cobertas entre ruas, tinham a sua localização entre o Bulevar de
lontmartre e a Rua Saint Marc, e entre as Ruas Quatre Septembre e dês Petits
-hamps.
O Bulevar du Temple era no século XIX conhecido por ser uma
área de casas de espetáculos em razão de já existir nesta área uma tradição de
2Spetáculo popular e passeio a pé. Este bulevar havia sido aberto em meados do
século XVII. Em meados do século XVIII foi arborizado, atraindo um sem número de
pessoas para passeios e caminhadas ociosas (flânerie). Estas multidões tornaram-se
elemento de atração para vendedores de diversas mercadorias. Instalaram-se
confeitarias, cafés e cabarés, que eram as casas que vendiam bebidas alcoólicas.
Muitos artistas itinerantes exibiam-se ao longo do bulevar98. Nos bulevares, como este,59
(Rua?
i
"todos os espectadores encontravam alguma coisa de seu agrado, e esta era a força
do lugar™,
Um aspecto interessante a observar nos bulevares é que
também eles assinalavam transições. O bulevar era uma fronteira. Os bulevares eram
as muralhas da cidade e assinalava a transição de jurisdição, de poderes, de
fiscalização. Assim, na área do Bulevar du Temple, antiga muralha, não vigorava,
desde séculos, a exigência de obtenção de licença {privilégio do rei) para a construção
de teatros, por exemplo, como era a exigência no burgo propriamente dito. Deste
modo, diversos teatros foram construídos, aproveitando-se da frequência de potenciais
espectadores. O teatro, desde a década de 1830, desde a Monarquia de Julho, era a
principal fornia de entretenimento público em Paris. Este impulso vinha desde os
tempos da Revolução que, em 1791, permitira a qualquer um a abertura de um teatro,
tirando o caráter exclusivo e oficial que até então tinham. A abolição da censura em
1830, tornou-o muito popular. Sobreviviam, no entanto, dois tipos de teatro para, de
certa forma, duas Paris. Havia o teatro subvencionado pelo Estado, como a Opera, o
Théâtre Français (Comédie França/sé) e o Théâtre Odeon. A estes se opunha o
chamado Boulevard. "A distinção entre estes dois setores era histórica, geográfica e
financeira: refletia-se em repertórios diferentes e, em certa medida, públicos
diferentes. O setor subvencionado pelo Estado datava de antes da Revolução,
localizava-se longe dos bulevares (no caso do Odéon, na Rive Gaúche, o que era uma
desvantagem), e seu repertório era basicamente clássico e neoclássico, consistindo em
Molière, Radne, alguma coisa de Marivaux, um pouco de Comeille, tragédias de
Voltai ré e tragédia neoclássica contemporânea. Por sua vez, o que se poderia chamar
de setor privado era especializado em vaudeville (uma combinação de pantomima e
opereta}, melodrama e, mais tarde, teatro romântico. .. [os principais teatros] ... se
situavam no Boulevar du Temple e... na vizinhança"™3.
Metodologicamente, Benjamin, como Baudelaire, deixa-se levar
pelos tipos que preenchem o bulevar, como o flâneur. Este não encontra concretude
na realidade urbana aparente e, centrando-se em si mesmo, vaga pela multidão e
observa a paisagem urbana apenas para evocar associações, semelhanças e memórias.
Há um jogo de montagem que retira os objetos de seu contexto aparente e os repõem
em novas conexões.
Cafés
Walter Benjamin, nesse estudo de génese da modernidade,
retrata o avanço da mercantilizaçao para todas as dimensões sociais e, especialmente,
na direção da arte, considerada o âmago do sujeito. Assim, tratando da literatura, da
expressão viva e autónoma do literato, Benjamin rememora a expansão dos periódicos,
dos diários e dos folhetins pós 1830. Os diários incorporaram a literatura e, tutelados
por uma lógica mercantil cada vez mais poderosa, fragmentaram o romance em
folhetim, bem como a informação em notas curtas e bruscas, acompanhando-as de
anúncios que se confundiam com a própria informação. Eles eram os reclames, notas
com aparência de autonomia, mas pagas pelo editor para chamar atenção para
determinado livro que estava sendo anunciado. O jornal diário, composto assim pelo
editorial político, pelo romance - folhetim, pela informação, encontra nesta última uma
das suas principais justificativas: a aparência de renovação (normalmente mexericos
urbanos, intrigas teatrais, curiosidades), de sempre novo, próprio do espírito da
modernidade. Nesse contexto que Walter Benjamin insere os cafés.
No contexto político de repressão que caracterizou o Segundo
Império, em dado momento os jornais passaram a ser vendidos somente por
EP
assinaturas e, portanto, deixaram de estar disponíveis para toda a população. Os cafés
dispunham desses jornais e aumentaram o seu poder atrativo, mesclando mercadoria,
censura e crítica. Por outro lado, os cafés representavam, a princípio, um posto
interessante para o jornalista obter a informação. Antes do telégrafo elétrico, com
notícias correndo o mundo todo, as novidades da cidade eram captadas nas fofocas do
café, somadas à observação da vida citadina que decorria no bulevar.
Paris ficou caracterizada pelos inúmeros cafés que povoam os
bulevares. Em Benjamin, os cafés surgem não somente como símbolo importante da
grande cidade, mas também como palco de transformações no réacionamento social e
como elemento construtor de olhares e perspectivas na cidade.
A primeira casa para a comercialização da bebida café foi
aberta em Veneza em 1645 e congéneres o foram em Londres, em 1651. Nesta
cidade, já ao final do século XVII, havia ao menos 30 casas. Mas, se Paris não foi
pioneira, os cafés a tornaram célebre. O café, por outro lado, surge no espírito da vida
burguesa, como assinala Fernand Braudel. Assim, junto à bolsa de Amsterdam, a mais
dinâmica e especulativa do século XVII, haviam cafés montados por pequenos
empresários. Braudel cita Joseph de La Vegga, mercador judeu espanhol, em seu livro
Confusión de confusiones: nOs nossos especuladores /requentam certas casas nas
quais se vende uma bebida que os holandeses denominam coffy e os do Levante café
... são muito agradáveis no inverno, com os seus fogões acolhedores, os seus
passatempos sedutores: uns oferecem livros para ler, outros mesas de jogo e todos,
interlocutores com quem discutir; um toma chocolate, outro café, outro leite, outro chá
e todos, por assim dizer, fumam tabaco... Assim aquecem-se, regalam-se, divertem-se
com pouco dinheiro, ouvindo notícias ...Se entra então numa destas casas, às horas
da Bolsa, qualquer jogador da Bolsa, perguntam-lhe quanto valem as ações, ele
acrescenta um ou dois por cento ao preço da ocasião, tira um pequeno caderno de
5 e põe-se a anotar o que só calculou mentalmente, para fazer crer a todos que
j/ou verdadeiramente e para avivar ...o desejo de comprar qualquer ação com o
io de que suba a/nda"1*1.
Os cafés aparecem nas análises de Benjamin, através de
jelaire, porque também se prestam a desenvolver um dos temas eleitos pelo autor,
seja, o da relação entre mercadoria e arte, permeado pela constituição da
edade urbana de consumo de massa. O café em Paris surge para atender ao
snvolvimento de uma vida mundana, própria ao desenvolvimento das grandes
ides.
A proliferação dos cafés assinala a transição da antiga
vivência para a nova sociabilidade parisiense, durante o século XIX, tendo como
) o consumo de bebidas. A história dos cafés de Paris relaciona o consumo e a
essidade de proximidade, O café surge como um novo tipo de estabelecimento, de
io atraente pelo seu exotismo e depois pelo gosto do luxo e do conforto. Surge na
is do século XVII, tardiamente frente às tavernas, albergues e cabarés que existiam
de há muito. Tomaram-se um sucesso considerável desde o século XVIII. O
iforto que ofereciam frente às vendas enfumaçadas, barulhentas e mal mobiliadas
- existentes, o bom renome e a qualidade das bebidas servidas, em particular o
é, enfim o exotismo e o luxo contribuíram muito para este sucesso102. Os primeiros
és foram marcados pelo exotismo, até o final do século XVIII. Após essa data, o
:o passa a caracterizar esses estabelecimentos, com a contribuição de artistas e
ndo origem a um estilo francês. Acrescem-se terraços e jardins. Proliferaram-se a
rtir dos anos 40-50 do século passado, com o aumento do padrão de consumo de
Já a população. Novos hábitos temporais alimentares se estabeleceram após a
volução e se sedimentaram por volta dos anos 50-60 do século passado. A venda de
bidas, desde o modesto bistrô e a loja do vendedor de vinho até o grande café-
l Fls.
restaurante e a brasserie, a sua concentração densa em certos lugares ligados à
proximidade de determinadas atividades comerciais, culturais ou lúdicas, são |?:,í r-f
significativas da evolução da sociedade desde o fim do século XVII até o século XX e
também da vida e expansão da cidade de Paris103. Eles se tornaram sede de
sociabilidade, centro de informação e de reuniões, lugar de distrações e de
espetáculos, reunindo a burguesia e toda a classe média. A diversidade e
especificidade dos cafés em Paris fazem com que eles se assemelhem a microcosmos
da população parisiense. Mas também receberam influências estrangeiras, na medida
em que o francês e o parisiense em particular são assimiladores bem conhecidos,
"adaptando e importando sucessivamente da Alemanha as brasseries, da Áustria os
cafés - vienenses, da Grã-Bretanha os salões de chá, dos Estados Unidos os bares
americanos ...os selfs, os snacks e as drugstores, da Itália as cafeterias, da Inglaterra
ospubs ,..."IM. Desde o Antigo Regime, o café destaca-se o seu papel na vida artística
e sobretudo política pois, como escreveu Robert Darnton, o café funcionava como
antítese do salão. Ele estava aberto a todos, a dois passos da rua.
Panoramas
A conjuntura política do Segundo Império, marcada por grande
frustração popular e revoltas sufocadas pela força, convivia lado a lado com os grande
problemas sociais da transição ainda não equacionados, apesar do forte avanço da
produção capitalista da Franca de então. Walter Benjamin observa em F/âneur (parte
de A Paris do Segundo Império em Baude/aire) que esta situação também contribuía
para tendências escapistas no plano da sensibilidade artística e da vida cultural. Ele
ÊÈ?
recorda a chamada "literatura panorâmica" que descrevia a cidade na superficialidade
de modo a ignorar deliberadamente os seus verdadeiros riscos. O fundo informativo
era apenas esboçado tendo em vista o entretenimento. Nessa literatura, tudo passava
em revista, em desfile, como a superficialidade da vida no bulevar. A calma daquelas
descrições era marcante. É com esse retraio que Benjamin insere os panoramas. Estes,
e de certo modo como as barricadas, constituíam-se em improvisações enquanto
estruturas urbanas. A famosa Passage dês Panoramas tinha como principal atração os
panoramas.
O panorama era formado por uma grande pintura circular feita
na parede interna de uma rotunda construção circular, terminada em cúpula
dando a ilusão de realidade através de efeitos de perspectiva e de ilusão de óptica.
Nessas grandes torres circulares eram apresentadas ao público gigantescas telas,
pintadas por artistas de talento, ilustrando, com grande realismo, temas como cidades
ou batalhas célebres105. O termo vem do inglês e significa vista ampla. O espectador,
colocado no centro, tem a impressão de descortinar um vasto horizonte, como se
estivesse no alto de uma montanha. Segundo a Universalis, o primeiro panorama
parece ter sido o de Londres, instalado na capital inglesa em 1796, por Robert Baker.
Muitos outros foram feitos durante o século XIX. Em 1888, Vitor Meireles exibiu em
Bruxelas um Panorama do Rio de Janeiro de sua autoria, que era circular, usando um
cilindro giratório que permitia ao espectador imóvel contemplar o desfile de vistas da
cidade. Neste género de pintura destacaram-se na Franca: Detaille, Neuville e Poilpot
Segundo Jill Forbes, a revolução política e industrial que
caracterizou o início do século XIX acabou com a chamada "semiótica transparente do
antigo regime", destruindo a legibilidade imediata da cidade e do povo que havia
nela106. Para Forbes, é nesta situação que devem ser compreendidos os panoramas.
"Panoramas ilustrados procuraram restaurar essa legibilidade numa tentativa de exibir
a cidade ao olho popular a fim de dissipar o mistério e a ameaça de um meio ambiente _lf-
que se tornara incompreensível e opressivo"107..
Passagens
No desenvolvimento do Flâneur, Benjamin observa que a
flânerie precisava de algo mais que as calcadas largas dos bulevares: as passagens.
Estas pareciam reservar uma interioridade que na calcada do bulevar parecia
atropelada. Benjamin, nesse tipo de observação lembra Simmel: a existência de vidas
autónomas dentro da grande cidade é cada vez mais difícil, diante de uma objetividade
avassaladora; o indivíduo é arrastado por um fluxo de incitações e estímulos externos
a ponto de dispensá-lo de nadar por si mesmo; diante dos espetáculos impessoais, os
elementos individuais devem, para subsistir, fazer um esforço extremo; precisam
esforçar-se até o exagero, nem que seja para continuar audíveis, começando por eles
mesmos108.
As passagens "reduziam" a cidade, pareciam um "mundo em
miniatura". Elas permitiam contemplar o espetáculo da multidão, mas sob protecão,
sob controle. A atracao da massa ficava relativamente controlada na galeria e, ao
mesmo tempo, vencia-se o tédio do nada fazer e a espera pela hora de transformar-se
também em mercadoria. Havia lá um micro mundo de passantes, fumantes (absortos
na fumaça) e pequenas ocupações. Elas eram um meio-termo entre a rua e o interior
da casa. Assim como os bulevares, as passagens também faziam as vezes de
interiores, de casa para o flâneur. Se para o burguês comum o interior estava entre as
quatro paredes, para o flâneur o lar estava entre as fachadas dos prédios. Era lá que
ele, flâneur, era ele mesmo.
Benjamin, então, inclui as passagens como parte de uma
fantasmagoria do espaço. A passagem é o espaço fantasmático que é tanto casa - ' "•i: * -*-L
quanto rua. Ela se soma à fantasmagoria do tempo: a incompreensão da história, a
alienação do sujeito, a marginalização de amplos setores sociais, faz com que a
história apresentada seja parcial e mítica. Ela foge do sujeito e parece flutuar sobre
ele. É um fantasma. O mesmo se dá com a espacialidade construída. Benjamin aponta
a transformação dos bulevares e das passagens em interiores. No que se refere
especificamente às passagens, Benjamin aponta os seguintes paralelos com o interior
burguês: os letreiros das firmas substituem a pintura no salão; os muros a
escrivaninha; as bancas de jornais as bibliotecas; os terraços dos cafés as sacadas. Na
coletanea de fragmentos Flâneur encontra-se a seguinte observação de Benjamin: "As
ruas são a morada do co/etivo. O co/etivo é um ser eternamente inquieto,
eternamente agitado, que, entre os muros dos prédios, vive, experimenta, reconhece e
inventa tanto quanto os indivíduos ao abrigo de suas quatro paredes. Para esse ser
co/etivo, as tabu/etas das firmas, brilhantes e esmaltadas, constituem decoração mural
tão boa ou melhor que o quadro a óleo no salão do burguês; os muros com "défense
d'afficher" (proibido colocar cartazes) são sua escrivaninha, as bancas de jornal, suas
bibliotecas, as caixas de correspondência, seus bronzes, os bancos, seus móveis do
quarto de dormir, e o terraço do café, a sacada de onde observa o ambiente. O gradil,
onde os operários do asfalto penduram a jaqueta, isso é o vestíbulo, e o portão que,
da linha dos pátios, leva ao ar livre, o longo corredor que assusta o burguês, é para ele
o acesso aos aposentos da cidade. A galeria é o seu salão. Nela, mais do que em
qualquer outro lugar, a rua se dá a conhecer como o interior mobiliado e habitado
pelas massas."109
Um outro aspecto de fantasmagoria espacial que Benjamin
associa às passagens é a presença escondida da arquitetura do ferro. O novo ainda se
vestia do passado, sem a necessidade funcional: "Nas vigas de sustentação essesF (s,
instrutores imitam colunas pompeianas e nas fábricas eles imitam moradias assim
>mo mais tarde as primeiras estações ferroviárias tomam por modelo os c/ra/és"110.
A fantasmagoria revela-se também por ser um espaço público
listribuído em uma terra privada. A passagem, ao mesmo tempo que sedutora da
>ré-modemidade nas grandes cidades, é também, de certa forma, uma reprodução
lê soluções das cidades fechadas da Idade Média. Segundo a Universalis, cidades
Jaquela época, densamente ocupadas e encerradas dentro de fortificações,
encontram solução na construção de vias de comunicação muito estreitas, de modo a
Dtimizar os raros espaços vagos. Também é reconhecida a influência do bazar oriental
__ cujo interesse havia sido reavivado com a expedição de Napoleao Bonaparte ao
Egito em finais do século XVIII o mercado com ruas cobertas cheias de lojas.
Muitos deles eram cobertos em arco. No entanto, a passagem incorpora elementos
modernos, como o vidro na cobertura e o ferro na sustentação. Reconhece-se
também na passagem as utopias arquitetônicas concebidas no século XIX. Benjamin
observou que o falanstério de Charles Fourier se inspira da arquitetura de passagem.
As passagens parisienses foram um dos grandes temas de
Aragon, cujo livro O Camponês de Paris era um dos preferidos de Benjamin. Aragon
assim se refere a elas: "<9 espírito dos cultosf dispersando-se na poeira, fez desertos os
lugares sagrados. Mas há outros lugares que florescem entre os homens, outros
lugares em que os homens se ocupam descuidadamente de sua vida misteriosa, e que
pouco a pouco nascem para uma religião profunda. A divindade ainda não os habita.
Ela se forma neles ..,//ul
As passagens foram apresentadas como símbolo da
modernidade:
"Aragon conheceu a passagem ...no auge de sua decadência
A Passagem da Ópera que, inaugurada em 1821, estava sendo destruída, em 1924,
ara dar lugar ao Bulevar de Haussmann], quando ela já era uma espécie de ruína do
iue fora outrora, tendo se transformado assim num lugar insólito, num "santuário do
:ulto do efémero", numa "paisagem fantasmátíca dos prazeres e das profissões
malditas'' tomados obsoletos com o avanço inexorável do tempo e as mudanças
económicas e sociais que ele impõe, e condenados a se eclipsarem para sempre,
soterrados como novas Pompé/as.'A12
Benjamin aprecia em Aragon a referência crítica à modernidade
que a passagem revela: "no limite das duas luzes que opõem a realidade exterior ao
subjetivismo da Passagem"113. Do mesmo modo, a sua indução metodológica: "essa
Passagem é outra coisa além de um método para me alforriar de certas coações, um
meio de ter acesso, além de minhas forças, a um domínio ainda proibido."11*
O tema das passagens também aparece em Benjamin como
uma herança da crítica de esquerda e dos românticos à sociedade moderna. Isto
porque ela é associada, pelo autor, ao fenómeno da multidão que caracteriza as
grandes cidades. Para os frankfurtianos, a importância da individualidade frente à
massificação era sempre afirmada. Benjamim partilha, parcialmente, destas
preocupações, mas encontra outros ângulos na abordagem do assunto. Assim, as
passagens podiam ser vistas como um contraponto ao fluxo quase mecânico dos
grandes bulevares. Havia uma certa interiorização naquele espaço, uma certa
subjetividade, uma certa ausência de repressão que fascinou autores como Baudelaire,
Aragon e Benjamin. Segundo Van Reijen, as galerias representavam "espaços
espirituais da psique"115.
A galeria em francês galerie tem, além do sentido
arquitetônico, uma referência específica à "sala de exposição onde se faz o comércio
2 quadros e de objetos de arte, etc", de acordo com o Larousse. De imediato saltay^ssisyjci.
)s nossos olhos essa relação complexa entre arte e mercadoria. Benjamin, em Fourier 125: .
y as passagens afirma: "fí?? su0 decoração, a arte põe-se a serviço do comerciante".
ate aspecto contempla dimensões humanas, como os tipos descritos por Benjamin
as suas referências à multidão e às "passagens". Não sem motivo, utiliza-se em
ancês a expressão "pour Ia galeríe" no sentido de enganar, iludir, fazer-se valer
lante dos olhos dos outros".
A passagem em francês passage galeria de um tipo
special, é um termo de vários sentidos, incluindo os metafóricos. Diretamente é o
ugar por onde se passa", "direito de passar sobre a propriedade do outro" [como a
assagem em português que é o direito de passar numa situação feudal ou
istitucional, ou da passagem de travessia em ônibus, ete] e também "galeria coberta
wde só podem passar pedestres1'. O significado marcante de transição ganha,
rquitetônica e urbanisticamente, o sentido de passagem de dois mundos, um mais
iterior e outro mais exterior.
Benjamin preocupa-se com os vários sentidos dessas ^galeríes
itrées". Os muitos sensos de transição seduzem o autor e as passagens aparecem
omo metáfora deles. Trata-se da transição para a modernidade; da instauração de
ima sociedade de consumo de massa que atropela as qualidades individuais; da
•ansição de um mundo mais privado para uma grande convivência pública; da
ransição da arte para a mercadoria; da transição de uma cidade fechada para uma
idade aberta à circulação e a um ritmo mais rápido. Benjamin retoma Aragon de Lê
">aysan de Paris na qual estão destacadas as galerias cobertas próximas aos grandes
lulevares. O nome "passagem" provoca uma '"filosofia" da passagem em Aragon, a
|ual será recolhida por Benjamin116. "Eu sou a passagem da sombra à luz, eu sou da
nesma cepa, o ocidente e a aurora. Eu sou um limite, um traço"...[Aragon]. É a
passagem do sujeito ao objeto, do real ao sonho e do "eu ao outro". Passa-se a uma B1
"projeção" do espírito, um "espaço" "consagrado", aos caminhos iniciáticos de
subjetividades reclusas117.
A passagem, arquitetonicamente, é um corredor no meio do
quarteirão, ligando duas vias de circulação e ocupado pelo comércio. Muitas passagens
sucediam-se em quarteirões distintos, entrecortadas pelos cruzamentos das ruas, como
o eixo Jouffroy - Panorama - Verdeau. Para Lemoine, é importante, na definição das
passagens, ir além do sentido topográfico evidente. Assim, ela é mais que uma
pequena rua interditada aos veículos, geralmente coberta e unindo duas artérias. A
própria referência à rua é inapropriada pois está sedimentada a uma outra conotação
cultural. A passagem coberta também deve ser distinguida da passagem a céu aberto
e da galeria118. A arquitetura particular servia para valorizar nichos urbanos e elas
favoreciam o desenvolvimento do comércio119. Em geral é coberta por uma abóbada. A
passagem coberta significa a procura de um processo de densificaçlo do coração de
uma área construída. O seu sucesso corresponde à ascensão de uma classe social, a
burguesia capitalista, industrial e comercial, e também ao apetite desta classe pela
novidade, sobre a qual ela funda o seu dinamismo120. Construídas nas proximidades
dos bulevares interiores, as passagens parisienses tem como referência inicial o
"loteamento" do Ralais Royal, abrindo-se lojas junto às arcadas e voltadas ao jardim.
Na suas referências históricas, a passagem cita o extenso local
*r»«!*t*> âti4ShtaS^^
sacras. Além das passagens nobres e sacras, muitas com arcadas, havia também
galerias em praças de comércio. Um exemplo do século XVIII (1770), em Múnster,
Vestefália, é a galeria das arcadas, isto é, o mercado central. Na Idade Média eram a
parte do edifício, palácio, museu ou mansão, onde se colocavam quadros famosos,
71
Proc-
retratos de família e esculturas. Nas catedrais góticas designa o corredor longo com
abertura na parte superior. O primeiro sentido aparece no marketing dos apartamentos
de luxo hoje. Na Franca não se pode esquecer da "Galeria dos espelhos", do palácio de
Versalhes, construída por Hardouin-Mansart (1678-1684) e decorada por Lê Brun, com
74 m de comprimento, iluminada por 17 grandes janelas abertas para os jardins,
situados em frente a 17 falsas arcadas guarnecidas de espelhos.
A passagem surgiu como uma criação de Paris e se impôs em
uma época na qual a cidade afirmava-se como centro político e cultural da Europa121.
O seu desenvolvimento foi efémero, dentro de um período de 60 anos, desde a
Passage Feydeau (1791) à Passage dês Princes (1860). Oitenta por cento foram
construídas entre 1822 e 1848. Esta grande época corresponde à Restauração e à
Monarquia de Julho.
Algumas passagens parisienses e a sua inauguração
PassagemPalais-RoyalCairoPanoramasDelormeOperaVivienneChoiseulColbertVéro-DodatOrleans
Ano de inauguração1784179918081808182318251825182618261829
Na sua época foram salões elegantes e de fantasia. Segundo
Bertrand Lemoine, as passagens representaram a combinação da concentração
comercial, do urbanismo de bairros novos e mais frequentemente dos bairros antigos
recuperados e de uma nova sociabilidade. Ao final do século XVIII, as grandes lojas já
procuravam oferecer aos seus clientes o charme e o conforto dos "salões" da
aristocracia. Em uma segunda etapa, as lojas foram reunidas em um espaço protegido,
isolado da circulação e das intempéries. A galeria de madeira do Palais Royal
naugurou este género novo. Para Lemoine, do ponto de vista do urbanismo, a
)assagem insinua no tecido "duro" da aglomeração de casas e de ruas um novo
:ircuito "doce" que foge tanto da visão aérea, quanto do público que se desloca de um
ado a outro. É uma cidade dentro da cidade dando ao usuário o prazer intenso de
Denetrar em um "espaço meio fechado, de violar um segredo, de descobrir a caverna
de Ali Babá sob os clarões feéricos dos candeeiros a gás"122.
Na sua origem, a passagem foi uma especulação imobiliáha
associada à indústria e ao capitalismo florescentes. A passagem está envolvida pelo
movimento de especulação por terras, pela explosão da construção civil e pelo
desenvolvimento do comércio123. A lógica de localização das passagens parisienses
acompanha o deslocamento do centro comercial e aproveita-se das terras disponíveis.
Este movimento traduzia o giro para o oeste, perceptível na cidade desde o princípio
do século. As passagens aproveitaram-se, também, da situação caótica que as ruas,
então, apresentavam, sujeitas ao escoamento das águas servidas não canalizadas e a
perigosa circulação dos coches concorrendo com o movimento cada vez maior da
multidão. Embora já tivesse havido uma tentativa de sistematização de calcadas, elas
só foram comuns a partir da Restauração. Somente após 1838, ruas com fisionomia
moderna, com calcadas formais e canais laterais, além da pavimentação, foram
estabelecidas.
A primeira iniciativa, especulativa, partiu de um primo de Luís
XVI, Filipe cfóríeans, o Duque de Chartres, futuro "Filipe-Egalité", o qual loteou o
jardim de seu palácio o Ralais Royal para obter rendas com o comércio. Ele
mandou construir nos jardins do palácio as arcadas de pedra (1781-1784), formando a
galeria do Palais Royal. As lojas foram postas à venda e se tornaram um epicentro de
Paris. Este sucesso fez com que, pouco depois, fosse construída no jardim uma galeria
de madeira124. Dessa experiência bem sucedida, seguiram-se aplicações por homens
[RCbr. s-fJe negócios, de forma a criar outras passagens ou galerias. Outras galeriais r ~3
&-i_ii "f\—l2spelharam-se nesta.
LSA proliferação das passagens e o sucesso que tiveram entre
1823 e 1831, época da maioria das aberturas, deslocou o centro de atividades até
então localizado junto às galerias do Ralais - Royal125. De fato, as passagens
arruinaram o Ralais Royal.
A maioria das passagens foi construída sobre terrenos de
mansões ou de conventos confiscados. Elas representavam, assim, uma certa
dessacralização da sociedade. Com a Revolução Francesa propriedades eclesiásticas,
mansões de nobres e de imigrantes foram nacionalizadas (1789). Postos no mercado
esses confiscos foram comprados principalmente por burgueses e utilizados de modo
a gerar riquezas com a mercantilização. A Universalis cita como exemplo a passagem
de Feydeau que está em parte na terra do convento das Servas de Saint-Thomas; a
passagem do Cairo no convento das Servas de Deus; a passagem de Panoramas,
construída nos jardins da mansão de Montmorency-Luxemburg; a galeria Saint-
Honoré está no local do tribunal da igreja do convento dos Capuchinhos; as duas
galerias paralelas da passagem da Ópera está na área dos jardins da mansão de
Morei de Vinde. Tais terras eram tão vastas que era necessário traçar ruas: "foram
cobertas e interditas às viaturas para responder às necessidades de vias calmas e
próprias onde os fregueses pudessem admirar as lojas sem riscos de serem
enlameados ou mesmo derrubados"™,
O princípio das arcadas do Ralais Royal prefigura
particularmente as passagens, como a da Rua das Columns (1798) e a Passage
Feydeau (1791). A cobertura as protegia da chuva e do sol127. A cobertura vítrea
chamou a atenção para as passagens, mas nota-se que elas nem sempre tiveram a
mesma cobertura. De início, a luz que garantia o aspecto fantasmagórico de espaço
Rubi
interior - rua vinha a partir de aberturas vítreas no telhado. Posteriormente a
passagem cobriu-se por inteiro com um telhado de vidro. No seu primeiro modelo, o [jp-
telhado de duas águas tinha como apoio uma estrutura metálica. Na segunda fase toda
a armação da passagem será metálica, tomado-se um todo arquitetônico coerente.
A grande novidade das galerias é que, pela primeira vez, deu-
se a oportunidade para que a burguesia consumisse objetos de luxo, privilégio que até
então era dos habitues da Corte. Associava-se, então, o aumento dos rendimentos da
indústria nascente e o comércio de "luxo em série". Juntava-se à mercantilização, a
possibilidade de distração. Com a Restauração e o Segundo Império, as passagens,
outrora vistas com deslumbramento, revelaram-se muito modestas diante do porte dos
novos bairros que estavam sendo loteados. Elas pareceram ainda mais arcaicas,
medievais no sentido da crítica modernista, sobre o Segundo Império, pois com
Haussmann não eram mais bairros isolados que se transformavam, mas a cidade como
um todo. Com Haussmann, a passagem revela-se como relíquia e como fragmento
diante das reformas. A indústria do vidro e do ferro fizeram com que sua arquitetura
evoluísse. Desta forma, com o tempo tornaram-se maiores, mais luminosas e mais
arejadas128.
As passagens, no seu período áureo, não continham todas o
mesmo tipo de empreendimentos comerciais. As passagens de luxo, como a Opera e a
Vivienne, continham comércio de artigos de seda, novidades, guarda-chuvas, gravatas,
brinquedos, delicatessen, perfumes, relojoaria, ourives, entre outros, além de
restaurantes, teatros, cafés, banhos, hotéis, panoramas. Atraíam um público rico,
parisiense e do exterior. Outras passagens tinham um comércio mais popular, como a
do Cairo, com atividades pré-industriais, lingeries e produtos baratos. No princípio do
século XIX, o comércio de luxo parisiense concentrava-se nas passagens do Palais
Royal (galeria coberta, de madeira, construída em 1784, junto ao jardim do palácio,
'
:om comércio de moda, livrarias, cafés, espetáculos; foi destruída em 1828).
'aralelamente, as passagens da rue Saint Dennis tinham um caráter mais popular.
O desenvolvimento comercial, com novas formas (como as lojas
te departamento), bem como a "haussmanização" da cidade, dando uma nova
:oncepção de espaço urbano, tornaram as passagens menos importantes,
aracterizando o declínio no começo do século XX. Na nova espacialidade, a
concentração perde o terreno para a difusão, condenando nesse sentido as passagens.
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