entre o “like e o match perfeito”: medo raiva … · 1 aplicativo é um termo da língua...
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ENTRE O “LIKE” E O “MATCH PERFEITO”: MEDO, RAIVA, HUMILHAÇÃO... INVADINDO SITES
DE RELACIONAMENTO
Tatiana M. S. P. Filha – UFRGS
Maria Lúcia C. Wortmann– ULBRA/UFRGS
O advento e a ampliação do acesso à internet - e com ela à cultura digital - possibilitou
o surgimento das mídias sociais, da convivência instantânea, da cultura colaborativa e
integrativa, da conexão social e permanente etc. Castells (2007: 255) indica que a Internet
constitui-se em um meio de comunicação e de relação essencial para a nova forma de
sociedade em que vivemos – denominada “sociedade em rede” -, de maneira que a internet
não é simplesmente uma tecnologia, mas o meio organizativo que permite o desenvolvimento
de uma série de novas formas de relações sociais e de comunicação. Para o autor, a [...]
Internet é o tecido de nossas vidas neste momento. Não é futuro. É presente. Internet é meio
pra tudo, que interage com o conjunto da sociedade e, de fato, apesar de tão recente (...), não
precisa de explicação, pois já sabemos o que é Internet. Conforme Santaella (2013: 29), [...] a
circulação e a polissemia consolidam-se como características básicas desta sociedade
interconectada e em rede, o que possibilita a ocorrência de situações que nos instigam a
refletir sobre os modos como os sujeitos têm sido capturados por “novas” tecnologias e
mídias em suas práticas de afetividade. Uma das muitas consequências dessa “vida em rede” é
que se ampliaram as possibilidades de experiências interativas dos sujeitos, as quais têm
implicações nas compreensões e opções por modos de ver e de se relacionar com e no mundo.
Como nos ensinou Foucault (2009: 10), [...] a experiência pode ser compreendida como a
correlação, em uma cultura, entre campos de saber, tipos de normatividade e formas de
subjetividade e as considerações que fazemos neste texto assumem esse modo de configurá-la.
Este estudo decorre de uma tese de doutorado em desenvolvimento na linha de
pesquisa dos Estudos Culturais em Educação, na qual examinamos narrativas postadas em
páginas do Facebook, que versam sobre os usos e apropriações do aplicativo Tinder,
relativamente a dinâmicas ou práticas que caracterizam relacionamentos entre homens e
mulheres que dele se valem. Discutimos como o Tinder tem atuado na produção de
subjetividades, no que tange à afetividade, e que tipos de encontros de parceiros e de afetos
têm sido referidos como possibilitados a seus usuários. Alguns comentários levantados a
partir das postagens feitas nestas páginas, no entanto, reproduzem discursos machistas,
misóginos, homofóbicos ou racistas, ora enunciados sob a forma de piadas, ora como opiniões
impregnadas de “desprezo” e “ódio” em relação a todos aqueles/aquelas que não se
enquadram em determinados padrões considerados desejáveis por grupos de sujeitos que
postulam visões monológicas de cultura, sexualidade, etnia etc. Destacamos a importância de
procederem-se análises de tais conteúdos, propagados cada vez com maior frequência via
redes sociais, mais especificamente via Facebook, pois, se anteriormente esses circulavam na
ordem do privado, nos dias de hoje esses ganharam projeção nos espaços virtuais através de
mobilizações, que incitam ao que Skliar & Duschatzky (2001) refeririam ser “atos
expulsores” perpetrados não apenas através de violência física, mas também simbólica. Aliás,
as mobilizações possibilitadas pelo uso dos espaços virtuais têm caracterizado a vida social
nos dias de hoje, sendo importante ressaltar que a cultura digital, ao mesmo tempo em que
possibilitou a uma parcela da população a democratização do acesso e do diálogo, também
potencializou a intolerância, o desrespeito e a emissão descompromissada e leviana de
opiniões pessoais que podem gerar o fortalecimento de discursos de ódio. Exemplos da
intolerância se multiplicam, muitos deles aplaudidos/incentivados por programas midiáticos
jornalísticos e de entretenimento [...]. Noticiários estão repletos de casos de linchamentos
por suspeitas de crimes (e, ressalte-se, são injustificáveis em quaisquer circunstâncias) [...]
(CARVALHO, 2016:2).
Facebook e Tinder: ambientes de investigação
Tanto para a tese como para a reflexão que constitui esse texto selecionamos Páginas e
comunidades do Facebook, nas quais usuários do aplicativo de relacionamento Tinder, espaço
interativo midiático disponibilizado no telefone celular, narram suas experiências afetivas.
Salientamos que o Tinder é um aplicativo (app)1 gratuito que conta, no entanto, com alguns
recursos pagos, disponíveis para iOS e Android. Para utilizá-lo é necessário ter uma conta no
Facebook e fazer login com o perfil no Facebook. O aplicativo mostra, então, quem está no
mesmo raio de distância da área selecionada pelo usuário.
1 Aplicativo é um termo da língua inglesa “application”. É um software desenvolvido para ser instalado em um
dispositivo eletrônico móvel, como um PDA (assistente pessoal digital), um telefone celular, um smartphone ou
um leitor de MP3. Pode ser instalado no dispositivo pelo fabricante ou, se o aparelho permite que ele seja
baixado pelo usuário através de uma loja on-line. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Aplicativo_m%C3%B3vel,
acessado em 07/01/2016. A grande parte dos Apps é gratuita, mas há também os pagos como, por exemplo,
aplicativos para jogos, revistas, músicas, livros etc. Há também a possibilidade das pessoas criarem seus próprios
Apps.
Ainda sobre este aplicativo, é oportuno lembrar ter sido ele criado em 2012, por alunos
da Universidade do Sul da Califórnia, Estados Unidos, e ser sustentado por investidores. Em
entrevista ao site da UOL, no dia 23/04/20142, Justin Mateen, um dos fundadores da
plataforma, explicou que o aplicativo foi criado para permitir a apresentação e a aproximação
de pessoas, podendo ser para um relacionamento amoroso, amizade, ou para fazer negócios,
sendo os usuários que definem a forma de uso da ferramenta. Ou seja, o aplicativo foi criado
com o objetivo principal de possibilitar conexões entre as pessoas, não decorrendo disso,
necessariamente, encontros pessoais. Em janeiro de 2016, a direção do aplicativo informou à
imprensa, que o Tinder atingiu o recorde de usuários ativos e de downloads no dia 03 de
janeiro do referido ano3, indicando o Rio de Janeiro como a cidade com maior número de
combinações (matches) entre usuários do mundo, com um percentual de 7,3% maior do que a
média global. Em, 2016, de acordo com censo da empresa, o aplicativo está disponível para
196 países, sendo utilizado por cerca de 5% da população, em torno de 10 milhões de pessoas.
Ao navegar pelos perfis (tanto de homens como de mulheres), há duas possíveis
escolhas: apertar o botão do coração, sendo essa a ação para demonstrar interesse, também
chamada de like, ou curtida, ou, se o usuário não se interessou pela pessoa visualizada na foto,
ele deve apertar no X, e a descartar. Se a resposta foi uma “curtida”, isso aparecerá na tela
com a seguinte mensagem: “It’s a match!”, termo usado para as combinações feitas pelo
aplicativo. Neste caso, em que se configura um interesse mútuo, aparecerá na tela a
possibilidade de acesso à função bate-papo. Então, como se pode ver, a “conversa” só se
estabelece se há interesse mútuo, sendo o primeiro contato entre as pessoas definido,
inicialmente, pela análise da foto disponibilizada pelo usuário. Cabe ainda salientar, que,
dentre os aplicativos de relacionamento disponíveis no país, selecionamos o Tinder, por sua
popularidade entre os brasileiros, bem como pela recorrência de reportagens sobre o mesmo,
em sites de veículos de informação digital: impressos como Clic RBS (Zero Hora), Folha
Oline (Folha de São Paulo), Estadão Online; revistas digitais e impressas como Veja, Isto É,
Exame, Nova.
2 Fonte: O Brasil tem 10 milhões de usuários do Tinder. O criador explica o sucesso do app:
http://tecnologia.uol.com.br/noticias/redacao/2014/04/23/brasil-tem-10-milhoes-de-usuarios-do-tinder-criador-
explica-sucesso-do-app.htm Acessado em 15/01/2016. 3 Fonte: Tinder registra recorde no número de usuários ativos e downloads no Brasil.
http://canaltech.com.br/noticia/apps/tinder-registra-recorde-no-numero-de-usuarios-ativos-e-downloads-no-
brasil-55899/ Acessado em 13/03/2016.
Cabe ainda salientar que o Facebook4 é definido, usualmente, como um site e um
serviço de rede social que surgiu do aprimoramento do site Facemash, criado pelos estudantes
de Harvard, Mark Zuckerberg, Edurado Saverin, Chris Hughes e Dustin Moskovitz, tendo
sido originalmente desenvolvido para ser um jogo entre os estudantes. Em 2004, no entanto,
ele se transformou em um site endereçado, inicialmente, apenas a estudantes da mesma
universidade. No início de 2005 seu uso se expandiu por 21 universidades do Reino Unido e,
em dezembro do mesmo ano, já estava presente em 2000 universidades e dele participavam
25000 colegiais de todo EUA, Canadá, México, Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia e
Irlanda.
Em 2010, o Facebook começou a convidar seus usuários para serem usados como
testadores-beta, depois de passarem por um processo de seleção baseado em perguntas e
respostas e de realizarem um conjunto de quebra-cabeças de engenharia, no qual resolveriam
problemas computacionais. O objetivo de tais “testagens” era efetuar a contratação desses
usuários para trabalharem com o Facebook. Em fevereiro de 2011, o Facebook se tornou o
maior servidor e agregador de fotos online, Pixable, com a expectativa de ter 100 bilhões de
fotos no verão de 2011. Em novembro de 2015, Mark Zuckerberg divulgou através do seu
perfil no Facebook os resultados dos serviços prestados pelo Facebook no terceiro trimestre
de 2015. Dentre os dados divulgados, ele indicou que em setembro de 2015 já contava com
1,5 bilhão de usuários mensais e 01 bilhão acessando a rede social diariamente, sendo, dentre
esses, 900 milhões de acessos anuais via WhatsApp, 700 milhões de acessos anuais via
Messenger e 400 milhões de acessos anuais via Instagram. David Wehner, diretor financeiro
do Facebook, revelou que a rede social terminou setembro de 2015 com 1,39 bilhões de
usuários/mês acessando a rede social através de smartphones, sendo um bilhão deles através
de dispositivos Android.
Usar a internet como objeto, local e instrumento de pesquisa tem sido cada vez mais
comum. Contudo, trata-se de algo recente utilizar a internet como lócus de investigação; ou
seja, essa pode ser uma opção muito produtiva, mas cabe indicar ter ela muitos limites e
desafios éticos específicos. Hine (2005: 13) salienta que [...] as novas tecnologias ampliam a
questão da multiplicidade metodológica por transpor a discussão da evolução tecnológica em
4 Fonte: Facebook supera 1,5 milhões de usuários por mês, WhatsApp tem 900 milhões:
http://idgnow.com.br/mobilidade/2015/11/06/facebook-tem-1-55-bilhao-de-usuarios-por-mes-e-o-whatsapp-900-
milhoes/ e https://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_do_Facebook Acessado em 14/04/2016.
si para as questões de sociabilidade e apropriação: já o agente de mudança não é a
tecnologia, e sim os usos e as construções de sentido ao redor dela. Por essas, e outras razões,
ainda há muito a ser pensado, discutido, estudado e problematizado neste campo (Uwe
FLICK, 2009; Suely FRAGOSO; Raquel RECUERO; Adriana AMARAL, 2015).
Entre um “Like” e um “Match”: Disseminação de medo, raiva, humilhação...
Estamos compondo o corpus de análise da tese através da seleção de postagens dos
perfis fictícios do Facebook “Omi no Tinder”, “Eu no Tinder e da Comunidade do Facebook
“Pérolas do Tinder”. Contudo as postagens analisadas e socializadas aqui não são
necessariamente as mesmas da tese, visto que foram selecionadas através de critérios
distintos. Para essa reflexão nos detivemos em postagens que expressassem direta ou
indiretamente algum preconceito relacionado a gênero, sexualidade, etnia e faixa etária
Tanto Kozinets (2014) como Fragoso, Recuero e Amaral (2015) indicam a
necessidade de atentarmos eticamente para a participação em espaços virtuais, bem como para
a coleta e análise dos dados disponibilizados na internet. Segundo Fragoso, Recuero e Amaral
(2015:21), há autores como Elm (2009) e Ess (2009), que se dedicam a discutir e delimitar
aspectos que pertencem à esfera do público ou à esfera do que é considerado privado, sendo
possível classificar os ambientes virtuais em quatro níveis de privacidade, ressalvando-se não
serem essas categorias estanques. São estes os níveis apontados: Público (aberto e disponível
a todos); semipúblico (requer cadastro ou participação); semiprivado (requer convite ou
aceitação) e privado (requer autorização direta) (ELM, 2009:75).
O acesso às Páginas, perfis fictícios e comunidades do Facebook é publico, mas como
esses estão disponíveis a quaisquer usuários do Facebook, ou seja, é necessário ter um perfil
no Facebook para acessá-las, esses podem ser categorizados como semipúblicos. Como
possuo perfil no Facebook, e como já acesso tais Páginas, perfis e comunidades, estamos
considerando que os dados coletados não precisarão ser autorizados. No entanto ocultamos os
nomes dos usuários que as postaram, bem como dos que as comentaram.
Com o advento das tecnologias da comunicação à distância, através de artefatos como
carta, telégrafo, telegrama, fax, telefone, internet, e-mail, comunicadores instantâneos, entre
outros, a interação entre as pessoas tem sido alterada. Os artefatos acionados via internet
possibilitam comunicações mais frequentes e rápidas, sendo sempre ressaltadas as
possibilidades que essas oferecem à ampliação e ao fortalecimento de redes sociais e ao
estreitamento de laços afetivos, mesmo que à distância. No entanto, fala-se sobejamente dos
distanciamentos gerados entre pessoas fisicamente próximas, sendo muitos os exemplos
satíricos apresentados sobre tais situações. Mas adesões e críticas à parte, é inegável que as
tecnologias de comunicação alteram nossos modos de interagir e de estabelecer vínculos
afetivos. A internet e suas possibilidades de contato instantâneo oferecem recursos e
possibilidades de interação, talvez, nunca antes imaginados, que são potencializados através
da construção de redes sociais e de comunidades online integradas, muitas vezes, por pessoas
que nunca se encontraram face a face, mas que constituem coletividades, laços afetivos e
vínculos pautados, na situação examinada neste estudo, em preconceitos, ódio e na
humilhação de pessoas eleitas como foco de tais atitudes.
O Tinder, dentre outros aplicativos de relacionamento, como já referido, possibilita a
aproximação e o diálogo entre pessoas em um determinado raio de distância e as relações
estabelecidas a partir desse contato são as mais variadas. Para essa reflexão nos detivemos a
examinar a maneira agressiva e preconceituosa como alguns usuários se expressam,
compartilhando e/ou comentando em páginas e comunidades específicas opiniões sobre o
aplicativo. Em tais postagens estão presentes estratégias associadas à naturalização do
preconceito e que servem, igualmente, à banalização da intolerância, do desrespeito e da
agressividade. Percebe-se que pessoas “raivosas” têm se encorajado a expressar com maior
frequência suas opiniões em tais espaços, uma vez que a virtualidade permite o uso de nomes
e perfis “fake”5. Como salientou Carvalho (2016:11)
A internet, como terra de ninguém, pode ser, contraditoriamente, um promissor
lócus para o exercício da pluralidade, da democracia, da diversidade e do convívio
na aceitação e pleno reconhecimento das diferenças, mas também o oposto, terreno
onde vicejam o ódio, o preconceito, o desrespeito às leis e aos direitos humanos
elementares
Comentamos a seguir o caso de Fernanda Teixeira, que criou um perfil no Tinder nele
incluindo sua foto e descrição, e afirmando ser mãe e feminista. Tais características
motivaram vários “pretendentes” a insultá-la. Ela compartilhou essa sua experiência no
Facebook e no Instagram e o número de ‘indignados’ – agora os usuários da internet – se
multiplicou, pois esses recompartilharam alguns dos diálogos por ela compartilhados em seus
5 Em inglês “fake” significa “falso”, ou seja, um nome ou perfil falso.
Figura 1: “Mãe solo”
Muitas pessoas se surpreenderam com os comentários e reações agressivas dos
homens que conversaram com Fernanda através do Tinder, creio que a intensidade dos
comentários se deva, entre outras razões, por ter sido a declaração de Fernanda compartilhada
no final de semana do dia das mães do corrente ano. Cabe no entanto salientar que há vários
post com conteúdos muito semelhantes a esse em circulação nas Páginas e comunidades do
Facebook que temos analisado. Ou seja, a experiência de Fernanda não é isolada como se
pode ver no recorte reproduzido abaixo.
Figura 2: “Mulher de fé. Não quero mulher para consumo.”- “Omi no Tinder’:
No perfil de apresentação, o rapaz já indica que “tipos” de mulheres não lhe
interessam. Frente ao que ele postou é possível perguntar: O que seria uma mulher para
consumo? Ou uma Mulher rodada? Que características fazem de uma mulher um lixo? Ao
que parece ele pretende definir a priori que mulheres podem dele se aproximar. É ele que
estabelece as condições prévias para um possível relacionamento. E esse estabelecimento de
condições prossegue no diálogo que mantém com alguém que lhe respondeu – ele não quer
ser enganado por fotos incompletas! Mas a “garota” com quem dialoga parece ter “virado” os
termos do jogo ao indicar que ela também poderia ser enganada!
Ele estabelece um “padrão” de mulher que o interessa e se autoriza a pedir provas para
“descartar” e ao fazer isso desrespeita e humilha quem não se enquadra no padrão por ele
definido. Pretendemos mostrar, a partir de uma postagem como essa, bem como dos diálogos
que a partir dela se desenrolam, os modos como os relacionamentos se processam em uma
artefato como esse, ao mesmo tempo em que buscamos salientar como nessa instância de
comunicação são explicitados talvez como em nenhuma outra instância, preconceitos de
diferentes ordens.
Por certo, o preconceito não se instaura apenas em postagens realizadas por homens,
como podemos ver na postagem abaixo.
Figura 3: “Se quisesse velho, aumentava a idade no filtro” – “Perolas do Tinder”
Nos comentários sobre esse perfil é explícito o preconceito etário. O Tinder se vende
com o discurso de ser um dos aplicativos que possui maior número de filtros de seleção do
perfil de quem cada usuário deseja localizar. Sendo assim, o diálogo ocorreria somente entre
pessoas que aceitam o “like” que possibilita o esperado “match”. Nesse caso, o “match” se
deu para que “alguém” se divertisse as custas do seu interlocutor. E assim, um homem mais
velho tornar-se piada e passa a ser rejeitado e ridicularizado. Ao que parece sua interlocutora
não lhe atribui o direito de ocupar um espaço neste aplicativo e ela desconta sua “ira” por
encontrá-lo lá despejando sobre ele comentários irônicos.
Outros tipos de postagens são ainda mais agressivas e debochadas, tal como a que está
reproduzida na Figura 4, na qual possivelmente algum/a usuário/a fez print de um perfil e o
alterou tornando explícito o preconceito etário.
Figura 4: “Tenho parkinson. Fui mijar, gozei” – “Perolas do Tinder”
Figura 5: “Uhh ela da direito à sobremesa” – “Perolas do Tinder”
Já na figura 5 a postagem associa uma mulher negra com o docinho brigadeiro,
também referido como “negrinho”. Tanto essa postagem, quanto a anterior parecem ser
montagens, mas em ambas o preconceito está expresso na intenção de fazer humor. Tal
postagem pode ser vista como uma “piada internética”, que banaliza e naturaliza preconceitos,
estereótipos e dá legitimidade a discriminações, tal como anteriormente ocorria em programas
humorísticos veiculados no rádio e na televisão. Continua, portanto, a ser necessário que,
como salientou Carvalho (2016: 14) que se examinem tais interações virtuais “[...] em termos
de disputa de sentido, de jogos de poder, e não como uma seara romanticamente vista como o
reino das interações, como primado do relacional que desconhece tais hierarquias”.
Como já indicamos anteriormente, somos convocados de diferentes maneiras a ser
usuários de tais artefatos; contudo, o uso e a relação que estabelecemos com eles são
produzidos por nós. Ainda que o Whatsapp faça com que o nosso celular vibre e pisque
incessantemente nos “chamando” para a conversa, somos nós que estabelecemos a relação de
dependência, necessidade, indiferença, enfim, o modo como nos apropriamos e nos utilizamos
de tais artefatos. Muitos dos nossos hábitos têm sido alterados pela inserção dos artefatos de
tecnologia digital, não só quando acessamos suas funcionalidades originais, mas, também,
quando as adaptamos, recriamos ou significamos. Como Sibilia (2008) indicou, vivemos uma
“tirania da visibilidade”, na qual práticas como o selfie e compartilhamentos de ações
cotidianas em redes sociais e aplicativos borram e hibridizam as fronteiras entre
público/privado, real/virtual, individual/coletivo.
A banalização da violência, a disseminação do preconceito de maneira agressiva e
maldosa parece ter sido intensificada nos últimos dois anos, pois não raro nos defrontamos
com atitudes, piadas e desrespeito no nosso cotidiano. As estatísticas que mapeiam a
impunidade do feminicídio e de crimes de homofobia são exemplos de situações reais que
enfrentamos no país. Em nove de abril de 2016 a ONUBR6 divulgou que a taxa de
feminicídio no Brasil é a quinta maior no mundo, 4,8 para 100 mil mulheres – segundo dados
da Organização Mundial da Saúde (OMS). No dia 23 de novembro de 2016, o especialista da
ONU Vitit Muntarbhorno denunciou a proliferação de discursos de ódio e ataques
“desenfreados” de violência e discriminação a homossexuais nas redes sociais.7 Depois de
termos vivido por muitos anos crendo no mito da democracia racial no país, provar a
intencionalidade do racismo tem se revelado como uma tarefa árdua se a atitude racista não
for completamente explícita. Enfim, como também salientou Carvalho (2016: 03), a
6 Organização Nações Unidas no Brasil, fonte https://nacoesunidas.org/onu-feminicidio-brasil-quinto-maior-
mundo-diretrizes-nacionais-buscam-solucao/ Acessado em 17/05/17. 7 Fonte: https://nacoesunidas.org/pessoas-lgbti-enfrentam-turbilhao-de-violencia-e-discriminacao-diz-relator-da-
onu/ Acessado em 17/05/17.
intolerância às diferenças parece ter se tornado “uma característica atávica da nossa
sociedade, cultivadora do cinismo e do faz de conta, hábil em varrer para debaixo do tapete
nossas dificuldades de convívio plural, em todas as dimensões culturais, religiosas,
comportamentais e políticas [...]”. Faz-se necessário, portanto, revelar e denunciar situações e
discursos de ódio e intolerância que geralmente se utilizam de “roupagens” sedutoras como o
humor, a liberdade de expressão, entre outras, impedindo que a banalização das mesmas se
cristalize em nosso cotidiano, uma vez que estas inviabilizam a convivência com a pluralidade
e a concretização da alteridade. Assim sejamos todos/as Fernanda: botemos a “boca no
trombone” e façamos muito barulho para que a raiva, a intolerância e o desrespeito não
“choquem seus ovos” em nosso meio social, estejamos nós no território que estivermos,
virtual ou não. E par que o nosso respeito à diversidade e ao direito de ser quem se é
“viralize” em todas as esferas dos nossos relacionamentos.
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