ensaio sobre a inserÇÃo da indÚstria no campo … · apontam um significativo aumento do número...
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ENSAIO SOBRE A INSERÇÃO DA INDÚSTRIA NO CAMPO SERGIPANO:
DESCONCENTRAÇÃO/INTERIORIZAÇÃO INDUSTRIAL E SUBORDINAÇÃO DO
CAMPESINATO
Carlos Marcelo Maciel Gomes1
Universidade Federal de Sergipe (UFS)
cmarceloaju@hotmail.com
Márcio dos Reis Santos2
Universidade Federal de Sergipe (UFS)
marcioreisms@yahoo.com.br
GT7: TRABALHO, FLEXIBILIZAÇÃO E PRECARIZAÇÃO
RESUMO
O Estado, por intermédio das políticas de desenvolvimento industrial, oferece
sistematicamente vantagens para que diversos tipos de indústrias se estabeleçam do território
sergipano a partir da desconcentração/interiorização. No contexto da crise estrutural, o capital
monitora, mapeia e ocupa espaços onde seja possível a extração máxima do mais-valor,
provocando uma intensa mobilidade do trabalho e do capital no campo sergipano. Tal política
industrial também vem incorporando a produção camponesa, observado no caso do APL do
Leite, em busca do barateamento da produção, contribuindo para a diminuição do capital
variável frente ao capital constante e na queda tendencial da taxa média de lucro. Por fim, tal
processo provoca a perda da terra dos camponeses, transformando-os em sujeitos supérfluos
na extração de mais-valor, ao mesmo tempo em que busca subordinar a terra e a produção da
unidade de produção camponesa daqueles que persistem no campo.
PALAVRAS-CHAVE: Indústria; Capital; Acumulação Flexível; Camponês.
1 Integra o Grupo de Pesquisa Estado, Capital, Trabalho e as Políticas de Reordenamento Territorial (GPECT).
Mestre pelo Programa de Pós Graduação em Geografia (PPGEO) da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Professor do Instituto Federal de Alagoas (IFAL) e do Grupo de Estudo de Humanas do Brasil Contemporâneo
(GEHB). 2 Integra o Grupo de Pesquisa Estado, Capital, Trabalho e as Políticas de Reordenamento Territorial (GPECT).
Mestre pelo Programa de Pós Graduação em Geografia (PPGEO) da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Professor da Rede Estadual em Sergipe.
2
1 - INTRODUÇÃO
O processo de desenvolvimento capitalista carrega em si o desejo incessante pela
obtenção do lucro mediante subordinação do trabalho. Uma das expressões mais
características desse processo está refletida na produção industrial. A indústria tem sido
historicamente uma das mais claras e intensas formas com as quais o capital exerce sua força
destrutiva sobre os trabalhadores, subjugando-os e expondo-os a condições máximas de
trabalho exaustivo e degradante.
O capital se expande, tendo como expressão a indústria, buscando ocupar e se
apropriar de espaços onde possa extrair maiores lucros e, assim, consiga se reproduzir e
continuar seu processo de dominação da classe trabalhadora.
O processo de ampliação do capital ganhou tanta voracidade que extrapola os limites
do espaço urbano e invade o campo com, por exemplo, a criação de complexos industriais.
Este processo segue conectado ao projeto global de expansão capitalista, representado em
uma nova lógica de acumulação do modelo flexível de produção. A inserção da indústria no
campo acarreta mudanças nas relações de trabalho, ampliando o trabalho assalariado e
contribuindo para a drástica redução da pequena produção de base familiar, característica do
campesinato.
A reestruturação produtiva calcada no modelo flexível fez com que surgissem novas
formas de relações sociais e de produção, principalmente ligadas às relações de trabalho.
Buscando novas formas de se reproduzir, o capital cria, tanto para o campo como para a
cidade, novos mecanismos com o objetivo de intensificar a acumulação, sobretudo da
diversificação de formas de precarização produtiva e das relações de trabalho.
2 - A REPRODUÇÃO DO CAPITAL E A INSERÇÃO DA INDÚSTRIA NO TEMPO E
ESPAÇO DA ACUMULAÇÃO
A acumulação flexível alterou as formas de exploração do trabalho pelo capital, o
que efetivamente culminou em novas formas de apropriação do espaço pelo capital. O
processo da acumulação flexível introduzido na produção industrial repercutiu no modo de
produção da sociedade. Durante muito tempo, convencionou-se afirmar que a atividade
industrial carregava em seu cerne a característica de ser uma atividade própria dos grandes
centros urbanizados, concentrada em determinados pontos do espaço. Porém, as
3
concentrações industriais, mesmo nessa perspectiva de análise, já eram compreendidas como
possuidoras de capacidade para articular e integrar diferentes parcelas do espaço em todo o
mundo, por intermédio do mercado e da divisão espacial e internacional do trabalho. Para
Carlos (1988), as teorias que se propunham abordar a localização industrial delegavam a
aptidão da articulação espacial da indústria, contudo, a autora salienta que as mudanças
ocorridas no desenvolvimento das forças produtivas puseram em xeque determinadas
afirmativas sobre a localização das indústrias, como a mencionada anteriormente - “atividades
industriais são próprias dos grandes centros urbanizados”.
As mudanças das forças produtivas a partir da acumulação flexível tenderam a torná-
la cada vez mais difundida no espaço, espalhada, capaz de estar em toda a parte, de modo
geral, universal. Portanto,
A localização industrial entendida como o lugar ocupado pela indústria no espaço
significa um entendimento mais amplo do que a simples pontuação ou endereço das
indústrias no mapa. A localização da indústria insere-se no processo da
industrialização que determina, historicamente, o lugar a ser ocupado por cada
indústria, esse lugar resulta da divisão espacial e internacional do trabalho num dado
momento histórico (CARLOS, 1988, p. 20).
Neste sentido, o contexto histórico atual nos mostra que não importa ao capital qual é
o “tipo” de espaço, mas quanto é possível extrair lucro ao utilizá-lo. O caso do estado de
Sergipe é um exemplo desta premissa do capital. Dados do Ministério do Trabalho Emprego
apontam um significativo aumento do número de indústrias e de trabalhadores no setor
industrial da economia no estado de Sergipe. Na última década, o número de estabelecimentos
industriais passou de 2.144, em 2000, para 3.208, em 2010, chegando, em 2015, a 3.896
(Gráfico I). Um acréscimo de 1.752 novas indústrias num período de quinze anos.
GRÁFICO I - NÚMERO DE INDÚSTRIAS, SERGIPE – 1985/2015
691 989
2.144
3.208
3.896
0
500
1.000
1.500
2.000
2.500
3.000
3.500
4.000
4.500
1985 1990 2000 2010 2015
4
Fonte: MTE/RAIS – 1985 a 2015.
Org.: SANTOS, Márcio dos Reis. 2017.
Historicamente, a capital Aracaju exerce uma concentração populacional, de produção
e de serviços em relação ao conjunto dos demais municípios de Sergipe. A partir dos dados
obtidos durante a pesquisa (2017), foi estabelecida uma relação entre o número de indústrias,
seus trabalhadores, em Aracaju e nos municípios do interior. Como resultado, pode-se afirmar
que, de um modo geral, manteve-se o crescimento do número de estabelecimentos industriais,
tanto em Aracaju como nos demais municípios do estado, durante as últimas décadas. Porém,
constata-se que ao final da última década houve uma considerável mudança na estrutura da
distribuição espacial das indústrias em Sergipe, com um elevado número de estabelecimentos
industriais nos municípios do interior, cuja soma ultrapassou o número de indústrias na capital
durante o mesmo período, conforme representado no gráfico II.
GRÁFICO II - NÚMERO DE INDÚSTRIAS: RELAÇÃO ARACAJU – INTERIOR –
1985/2015
Fonte: MTE/RAIS – 1985 a 2015.
Org.: SANTOS, Márcio dos Reis. 2017.
A relação Aracaju–Interior apontou que na década passada - 2000 a 2010 - a capital
obteve um aumento de aproximadamente 24% no número de empregos, enquanto que, no
restante do estado, este percentual chegou a quase 85%. Em cinco anos da década atual os
números continuam crescendo no interior do estado. A partir destes dados percebem-se os
primeiros indícios de uma mudança na distribuição espacial das indústrias, além da
intensificação do processo de industrialização, tanto na capital quanto no interior do estado.
Como reflexo da expansão das indústrias no estado de Sergipe, nas últimas décadas,
o número de trabalhadores do setor industrial teve considerável elevação, especialmente nos
municípios do interior, visto que, enquanto o número de trabalhadores da indústria em
406
622
1.236
1.534 1.724
285 367
908
1.674
2.172
0
500
1.000
1.500
2.000
2.500
1985 1990 2000 2010 2015
Aracaju Interior
5
Aracaju cresceu 85%, nos demais municípios juntos, este crescimento foi de quase 150% em
10 anos (2000 – 2010), conforme apresenta o gráfico III.
GRÁFICO III - NÚMERO DE EMPREGOS NA INDÚSTRIA EM SERGIPE:
RELAÇÃO ARACAJU-INTERIOR - 1985/2013
Fonte: MTE/RAIS – 1985 a 2015.
Org.: SANTOS, Márcio dos Reis. 2017.
Ao observar os dados que representam uma expansão industrial, é importante
mencionar que no ano de 2012 havia 32 aglomerados industriais espalhados em 31
municípios do estado (Figura I), sendo que, desse total, 29 estavam localizados fora da capital
Aracaju.
FIGURA I – DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL DOS AGLOMERADOS INDUSTRIAIS EM
SERGIPE – 2012.
Fonte: CODISE, 2012.
24.268 26.246
20.114
37.201 33.423
12.077 15.855 17.551
43.684
49.825
0
10.000
20.000
30.000
40.000
50.000
60.000
1985 1990 2000 2010 2015
Aracaju Interior
6
Elaboração: SANTOS, Márcio dos Reis. 2015.
Com essa distribuição espacial dos aglomerados industriais, nota-se também que 27
destes estavam localizados em municípios que não pertencem à Região Metropolitana de
Aracaju, tradicionalmente concentradora no que tange à indústria e serviços.
3 - AS AGROINDÚSTRIAS E A INCORPORAÇÃO DA PRODUÇÃO NO ALTO
SERTÃO SERGIPANO: O CASO DO APL DO LEITE
O Arranjo Produtivo do leite sob o desenvolvimento local permitiu a gestação de
formas mais eficazes para o ordenamento, através de instrumentos de controle e de
gerenciamento da produção local via associações e cooperativas. O ordenamento da produção
vem assumindo o enfoque territorial em detrimento ao enfoque setorial, em tempos de
exigências maiores sobre a velocidade de fluxos, flexibilidade, maleabilidade e
competitividade. Em Sergipe, por exemplo, o apoio aos Arranjos Produtivos Locais (APLs) se
enquadra bem à abordagem territorial. A política dos Territórios se baseia na proposta de
desenvolvimento endógeno, de vocação produtiva, em articulação com a Política Estadual.
O Território do Alto Sertão Sergipano (TASS) se destaca por sua produção de leite e
pecuária bovina em Sergipe. Segundo o Plano de Desenvolvimento do Arranjo Produtivo de
Pecuária de Leite e Derivados do Alto Sertão Sergipano (SERGIPE, 2008), busca-se aumentar
a produtividade do leite nas comunidades assistidas e incrementar a recepção de leite resfriado
nas fábricas.
As indústrias de maior influência no TASS, inseridas no chamado Arranjo produtivo
Local do Leite, são a Natville e Betânia, com sede em Nossa Senhora da Glória, e SABE, com
sede em Muribeca. Muitas utilizam tanques de resfriamento (Figura II) espalhados nos
municípios como pontos de colhimento. Um pagamento é feito ao proprietário do terreno que
será instalado o tanque e, assim, garante-se a captação de leite para a indústria.
7
FIGURA II – TANQUES DE RESFRIAMENTO DE LEITE EM PORTO DA FOLHA E
GARARU
Fonte: Pesquisa de Campo, 2014.
Durante pesquisa de campo (2012-2014), observou-se uma divisão territorial no
colhimento do leite entre as empresas nos municípios de Gararu e Porto da Folha, em Sergipe.
De leste até o povoado São Mateus, em Gararu, a SABE compra o leite dos produtores. De
São Mateus à oeste, a NATVILLE é a responsável pela compra3. As empresas fazem
acompanhamento técnico e enviam caminhões para coletar o leite, inclusive nas áreas de
assentamento.
FIGURA III – CAMINHÃO DA EMPRESA NATVILLE NO ASSENTAMENTO PAULO
FREIRE EM PORTO DA FOLHA
Fonte: Pesquisa de Campo, 2014.
Além da compra por meio dos tanques de resfriamento, a Natville tem fechado
acordos com laticínios de médio e pequeno porte, como foi constatado na Fazenda “Nova
Esperança” (entidade filantrópica mantida com recursos da Igreja) em Gararu. A parte não
3 Em 2014, o litro do leite variava entre R$ 0,60 e R$ 1,10, a depender da qualidade, sendo o dinheiro transferido
via conta bancária semanalmente.
8
destinada ao consumo direto ou indireto da Fazenda, seja leite, manteiga ou queijo, é vendida
para a Natville (PESQUISA DE CAMPO, 2014).
Durante a aplicação do questionário, um produtor revelou que “vende particular
recebendo menos, porque recebe semanalmente”, já que vendendo seu leite para o Governo
através do Programa de Aquisição de Alimentos, na modalidade “Incentivo à Produção e ao
Consumo de Leite” (PAA Leite), o pagamento geralmente atrasa e o preço permanece estável
- para participar o produtor deve ter uma “declaração de aptidão” ao PRONAF. O Banco do
Nordeste tem apoiado a adequação da “cadeia produtiva do leite” às exigências da Instrução
Normativa número 51 do MAPA4 e pretende firmar acordos de cooperação envolvendo as
agroindústrias e os produtores de leite. O que demonstra o total apoio do Estado e das
instituições de apoio aos grandes laticínios na região e poderão surgir novas investidas na
fiscalização e controle dos processos produtivos de beneficiamento do leite no TASS.
O próprio conceito de arranjo exige um lastro territorial para ser coeso e funcional,
além de poder gerar assim formas adaptáveis de controlar o ordenamento territorial,
reforçando estudos sobre aglomerações produtivas e o novo mundo rural como substrato
ideológico. Em consonância ao exposto, identificamos durante as entrevistas que o segmento
industrial recebe algum tipo de apoio do Estado, tornando-se centros dinamizadores da
atividade formal e envolvendo um número significativo de trabalhadores direta ou
indiretamente (Figura IV).
FIGURA IV – ORGANIZAÇÃO DO APL DO LEITE
Fonte: Pesquisa de campo 2012-2014.
Org.: GOMES, C. M. M.
4 Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Disponível em
<http://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=78904>. Acesso em 10 de jun. de 2014.
9
A demanda desta produção possibilitou o desenvolvimento de outras atividades
relacionadas direta ou indiretamente ao Arranjo Produtivo Local (APL) do Leite,
principalmente o beneficiamento do produto e o cultivo do milho para ração. A variação da
ocupação da produção agrícola tem sido o termômetro das novas configurações políticas e
econômicas no TASS. O desinteresse pelos cultivos do feijão e da mandioca demonstra a
influência do mercado e das políticas agrícolas, na metamorfose produtiva, expressada no
aumento e diminuição da área destinada à lavoura e no fechamento das casas de farinha.
Como sabemos, o feijão e a mandioca são produzidos principalmente para o consumo
humano, porém o cultivo do milho predomina em quase todas as plantações visitadas,
destinado em sua grande maioria para a ração animal para a produção de leite e derivados.
Entre as principais diretrizes de atuação definida pelo Termo de Referência Nacional
aos APLs (BRASIL, 2004, pág. 10), destacam-se a promoção de um ambiente de “inclusão”
através do “acesso das unidades produtivas ao mercado", as ações orientadas para o mercado
e a capacidade do arranjo se manter ao longo do tempo e adquirir autonomia5. O mercado
torna-se a finalidade. Não somente o mercado local, mas o que for possível alcançar no apetite
do Desenvolvimento, da “valorização do Território”. Como todo processo de valorização
implica a exploração do trabalho, o aumento da produtividade e da lucratividade na busca pela
expansão de mercado incorpora um quantum de trabalho (MARX, 1986) no sistema produtivo
das agroindústrias. Assim, cabe-nos entender a inserção das unidades de produção familiar na
lógica dos APLs, considerando o trabalho familiar o que se predomina nas relações produtivas
então pesquisadas.
Eis o conteúdo do chamado Pacto Territorial entre o governo e a sociedade, exigido
pelo Plano de Desenvolvimento, que responsabiliza os trabalhadores pelo desenvolvimento
no/do Território a partir de seu nível de produtividade, de competitividade e de alcance nas
exportações. Tal Pacto garante o nexo entre as atividades produtivas e os territórios gestados
pelo Estado6 e expressado pelo ajustamento sócio produtivo.
A partir do pensamento de Marx, Antunes (2009) afirma que a divisão social do
trabalho representa uma subordinação estrutural do trabalho ao capital, “estrutura totalizante
5 Este conceito é referente ao que chama de sustentabilidade, termo que se tem incorporado ao discurso do
desenvolvimento local nos últimos anos.
6 Os “compromissos do Governo” e os “compromissos da sociedade” tratados no capítulo 1 estão fundamentados
na divisão entre a sociedade política e sociedade civil. Esse discurso tem substituído de forma ideológica a
análise sobre a luta de classes a fim garantir estruturas explicativas sobre a sociedade a partir da divisão entre o
político e o social.
10
de organização e controle do metabolismo societal, à qual todos, inclusive os seres humanos,
devem se adaptar” (pág. 23), levados pela necessidade da produção de mercadorias e pela
valorização do capital, em detrimento da superexploração da natureza e da força de trabalho
(pág. 34). A emergência de funções sob o domínio totalizante do capital que comprometem
profundamente a funcionalidade das mediações de primeira ordem constitui o que Mészáros
chama de sistema de mediações de segunda ordem, ao qual busca subordinar as necessidades
humanas à reprodução do valor de troca. O sistema do capital tem como núcleo constitutivo
desta mediação o tripé indivisível capital, trabalho e Estado.
As alterações no campo brasileiro a partir do processo de industrialização
desencadearam diferentes formas de entendimento sobre a expansão do capitalismo no espaço
agrário. Alguns autores justificavam a criação de novas teorias a fim de contemplar uma
presumível realidade, apresentando um “novo” paradigma em detrimento ao “velho”. A
produção científica, enquanto um discurso racional e legitimador, respaldou o Estado na
adoção de um “novo” paradigma como explicativa da realidade de modo a apresentar suas
políticas enquanto neutras e estritamente técnicas, aparentemente desconsiderando suas
implicações econômicas e políticas nas decisões e outras abordagens e métodos de análise.
Dadas às condições para a expansão capitalista no campo, inserindo sua produção na
lógica fetichista de mercado, a tripartide relação Estado-capital-mercado encontra um
referencial teórico para a chamada “modernização da agricultura”: o “novo mundo rural”.
Müller (apud SILVA, 1997, pág. 25), esboça seu projeto na afirmação de que a integração da
produção agrária deve ocorrer entre as relações do complexo agroindustrial e as relações
comunitárias locais-regionais, requerendo incentivos econômicos de políticas inovadoras sob
novas formas de gestão política e pública.
O termo “agricultor familiar” busca substituir o “camponês”, fruto do embate entre o
paradigma do capitalismo agrário e o da questão agrária. Neste sentido, toda representação
vinculada à unidade do trabalhador com a terra e a família pelo conceito de campesinato é
extirpada. O uso do conceito “agricultor familiar” tem como objetivo permitir uma
generalização dos que trabalham no campo de forma a enquadrá-los ao novo paradigma,
estimulando a busca por “recursos internos das propriedades, visando adequar-se ou atender
as exigências para a sua inserção socioeconômica como produtores de matéria-prima
destinadas às agroindústrias” (MIOR, 2005, pág. 201). Desta maneira, nega-se a necessidade
da reforma agrária como processo de avanço em função da produtividade como critério de
eficiência.
11
A economia familiar – considerada informal - é considerada mais competente que a
economia de mercado ou estatal, conforme analisa Shanin (2008) ao considerar a existência
do campesinato no capitalismo, por isso a preocupação dada ao capital social em torno da
cooperação e governança local nos APLs. Com isso, a absorção desta dinâmica ao mercado
implica uma reorganização territorial do trabalho que, por sua vez, provoca um vínculo entre
o trabalho dos sujeitos locais e as normatizações impostas pelo mercado, muitas vezes
estimuladas por políticas públicas. Portanto, a recriação do campesinato não significa
necessariamente uma resistência aberta contra o capital, tão pouco significa sua completa
capitulação, pois não possuem interesses em comuns, mas conflitantes.
A dinâmica econômica necessita da subsunção do trabalho como atividade geradora
de valor, produtiva, ou que o auxilie, atrelando mesmo atividades não capitalistas ao sistema
do capital. Com efeito, a reprodução ampliada do capital pressupõe a criação capitalista de
relações não capitalistas, uma vez que se permite criar condições para a reprodução da
produção familiar camponesa no capitalismo, subordinando a terra e a força de trabalho aos
interesses do capital (OLIVEIRA, 1990, pág. 26 e 27). A propriedade do trabalho familiar
camponês só é possível a partir da terra, pois existe uma relação indissociável entre terra e
trabalho em sua condição social, mas a expansão da lógica do capital carrega consigo a
intensificação da exploração, deslocando o sentido de realização social do trabalho para o
devir ascendente-infinito da acumulação que foge de qualquer esforço individual. Sem
autonomia, o ser fenece ao controle sociometabólico do trabalho, da produção, da terra.
O sistema produtivo agroindustrial ao incorporar a produção de leite das unidades de
produção familiar em seu ciclo produtivo, incorpora também todo o conjunto de técnicas e
conhecimentos tácitos acumulados ao longo do tempo por inúmeros camponeses, pois, a
própria força de trabalho social é considerada como a força do capital (SMITH, 1988). Cabe
lembrar que uma enorme gama da produção do milho é consumida na produção de leite, que
por sua vez é consumida na produção de seus derivados materializados na mercadoria,
considerando a relação dialética na produção, distribuição, troca e consumo segundo Marx
(2011).
Neste sentido, o excedente produzido pelos camponeses nos municípios de Porto da
Folha e de Gararu, sobremodo por meio do APL do leite, é apropriado por pequenos grupos
empresariais que controlam a produção. Além disso, a indústria de insumos e de sementes
garante a venda de seus produtos aos trabalhadores como condição para a produtividade.
12
Desta maneira, a subsunção do trabalho vem permitindo a reprodução das unidades de
produção familiar camponesa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As transformações ocorridas nas relações da sociedade têm seus rebatimentos
espaciais, e são reflexos desta mesma sociedade. As diferentes formas de organização
convergem para a manutenção dos processos nos quais esta sociedade é submetida, e o
desenvolvimento desse processo necessita obrigatoriamente da interação com o espaço.
Entendemos que o espaço geográfico é, portanto, um produto histórico e social
resultante das relações estabelecidas entre a sociedade e a natureza. Essas relações sociais são
relações de trabalho estabelecidas no conjunto do processo produtivo geral da sociedade. O
modo de produção capitalista é desigual, e o capital se reproduz na sociedade, produzindo
espaços desiguais.
Constatamos que o Estado, por intermédio das políticas de desenvolvimento
industrial, oferece sistematicamente vantagens para que diversos tipos de indústrias se
estabeleçam do território sergipano. No contexto da crise estrutural, o capital monitora,
mapeia e ocupa espaços onde seja possível a extração máxima do mais-valor.
O atual agravamento da crise estrutural do capital se deu, entre outras coisas, devido
à redução das taxas de lucro por conta do aumento do preço da força de trabalho; ao
esgotamento do padrão de acumulação taylorista/fordista de produção, dado pela redução do
consumo ocasionado pelo início do desemprego estrutural; à crise do “Estado de bem estar
social”, acompanhado da crise fiscal do Estado capitalista; e às privatizações,
desregulamentações generalizadas e flexibilização do processo produtivo.
O agravamento da crise cíclica do capital é responsável pelo acirramento da tensão
contraditória que existente intrinsecamente à relação Capital-Trabalho.
A crise é, não somente, o produto de uma contradição inerente entre a necessidade
de desenvolver as forças produtivas e as condições sob as quais esta deve ocorrer;
em seu desenvolvimento concreto, assim como em sua gênese, a crise econômica é
essencialmente contraditória (SMITH, 1984, p. 185).
A indústria, sustentada no discurso da garantia de melhoria de vida através do
assalariamento, provoca uma intensa mobilidade do trabalho e do capital, em que os
trabalhadores são transformados em sujeitos supérfluos para o sistema do capital, ao tempo
13
que provoca a perda da terra dos camponeses, quando não captura o campesinato à sua
dinâmica produtiva, subordinando-o. O capital se expande espacialmente e em pleno
desemprego estrutural faz ascender, tanto no campo quanto na cidade, novas formas de
acumulação baseadas no aumento acentuado e precarizado das relações de trabalho,
principalmente em decorrência de processos cada vez mais avançados de potencialização da
extração do mais-valor.
A inserção da indústria no campo permite a diminuição do capital variável. A
redução dos preços surge a partir da necessidade criada pela concorrência na expansão de
mercado ou na entrada de produtos concorrentes no “Território”. Em relação à incorporação
da produção camponesa ao APL do Leite em função das agroindústrias, constatamos que a
busca pelo barateamento da produção - inclusive subordinando o trabalho camponês sem o
assalariar - influi na diminuição do capital variável frente ao capital constante e,
consequentemente, na queda tendencial da taxa média de lucro. Ao assumir o APL como
forma de reduzir custos, as empresas fortalecem a tendência para maior produtividade gerada
pela alteração da taxa de lucro, alimentando as condições favoráveis para a crise de
superprodução e sua consequente precarização do trabalho. Deste modo, a acumulação
tende a concentrar e centralizar o capital mediante a desapropriação de pequenos capitalistas e
de trabalhadores em tempos de crise, exigindo maiores reduções nos custos e formas
desmedidas de manutenção da lucratividade.
REFERÊNCIAS
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Apoio ao Desenvolvimento de Arranjos Produtivos Locais, 2004.
CARLOS, Ana Fani Alessandri. Espaço e Indústria. São Paulo: Contexto, 1988.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. 2º edição. Volume IV, Livro
Terceiro, Tomo 1, O Processo Global da Produção Capitalista (editado por ENGELS,
Friedrich). Nova Cultural, São Paulo, 1986.
MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1958: esboços da crítica da
economia política. São Paulo. Boitempo; Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 2011.
14
MIOR, Luiz Carlos. Agricultores Familiares, Agroindústrias e Redes de Desenvolvimento
Rural. Argos, Chapecó, 2005.
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo capitalista de Produção e Agricultura. 3º
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e da Ciência e Tecnologia. Núcleo Estadual de Arranjos Produtivos Locais. Aracaju, set. de
2008.
SILVA, José Graziano da. Novo Rural Brasileiro. José Graziano da Silva. Publicado na
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SMITH, Neil. Desenvolvimento Desigual: Natureza, Capital e a Produção de Espaço.
Tradução: Eduardo de Almeida Navarro. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1988.
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