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ISSN 2176-1396
EDUCAÇÃO COMO DIREITO HUMANO: DA EMANCIPAÇÃO DO
MUNICÍPIO À PARTICIPAÇÃO COMO PRINCÍPIO
Alberto Damasceno1 - UFPA
Emina Santos2 - UFPA
Grupo de Estudos em Educação em Direitos Humanos
Agência Financiadora: não contou com financiamento
Resumo
Nesse artigo discutimos a necessidade de se aliar a educação em direitos humanos com a
implementação de ambientes escolares democráticos por meio da garantia de
institucionalização de espaços democráticos na política educacional brasileira, com destaque
para a esfera municipal. Acreditamos que os municípios sejam o cenário ideal para a realização
dessa tarefa, posto que neles ocorrem os fatos que, efetivamente, mudam a vida das pessoas. A
partir da Carta Constitucional de 1988, com a evolução político-administrativa dos municípios, o
ente federativo teve ampliada sua autonomia administrativa e legislativa. Desde então, os
municípios foram autorizados a atuar em algumas competências que se tornaram comuns com a
União, os Estados e o Distrito Federal. Nesse contexto, a educação em direitos humanos é
dimensão estruturante de um paradigma de educação escolar que prima pela constituição de
agentes de direito, consolidando a tese de que este processo somente se constituirá como
factível diante da existência institucional de espaços públicos e democráticos no cotidiano da
escola, sendo o Plano de Ações Articuladas (PAR) a iniciativa inaugural de estratégias de
gestão da educação municipal a partir da construção de espaços públicos de decisão local.
Tomamos como basilar a tese de que a educação escolar, para além de seus pressupostos
instrucionais, deve agir no sentido de se efetivar enquanto Direito Humano. Para isso, torna-se
imprescindível que se estabeleça, tanto no plano legal como nas ações cotidianas dos agentes
escolares, a implementação de espaços públicos municipais de decisão sobre os rumos do
projeto de humanidade que se está construindo.
Palavras-chave: Educação. Direitos Humanos. Município. Participação.
Introdução
Embora a educação como prática social compreenda, de acordo com a atual Lei de
Diretrizes e Bases da Educação, a formação humana em todas as suas dimensões, abrangendo
1 Doutor em Educação. Professor do Instituto de Ciências da Educação da Universidade Federal do Pará
(UFPA). E-mail: albertod@ufpa.br. 2 Doutora em Meio Ambiente. Professora do Instituto de Ciências da Educação da Universidade Federal do Pará
(UFPA). E-mail: emina@ufpa.br.
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os processos formativos que se desenvolvem em múltiplos e diversos espaços de interação
humana, neste texto analisaremos a prática educativa, que se desenvolve predominantemente
na escola por meio da atividade de ensino. Isso porque essa instituição continua sendo, desde
seu surgimento até os dias de hoje3, um dos mais importantes centros de difusão da cultura
humana. Embora se trate de uma afirmativa incontestável, muito ainda precisa ser discutido
sobre a lógica e a essência do projeto de formação dos seus alunos, tanto no seu aspecto
qualitativo como ideológico.
Como espaço de concepção e socialização de um saber historicamente sistematizado,
parte-se da premissa de que para ser assegurada com qualidade, a educação escolar deve
compreender acesso, permanência, sucesso, organização e participação na discussão do
processo político pedagógico que a dimensiona como instituição de formação humana na
contemporaneidade. Corroborando esse raciocínio, Souza ratifica o princípio de que
[...] tornou-se senso comum associar educação à modernidade e à formação do
cidadão. Todos dizem que a educação é o elemento constitutivo do futuro; que sem
educação nunca seremos modernos; que os países modernos atingiram seu alto grau
de desenvolvimento, porque investiram em educação; que a solução para os
problemas da exclusão social, da marginalidade e da violência está na educação
(SOUZA, 2009, p. 111).
Sendo assim, é importante a análise das iniciativas que a federação brasileira –
destacando o protagonismo de seus entes municipais que nas duas últimas décadas vêm
ocupando um papel estratégico na função organizadora da educação brasileira - vem
implementando para garantir, por meio de políticas públicas, ou reparar, por meio de políticas
afirmativas, a realização do direito à educação, posto que sua efetivação depende diretamente
da atuação do Estado que representa tanto a fonte para o suprimento de recursos para a
instalação das atividades escolares, quanto constitui referência normativa para a regulação
dessas atividades.
No que se refere às conquistas da educação escolar básica como direito,
consideraremos dois aspectos: o primeiro baseado no estabelecimento do marco regulatório
de diversas iniciativas estatais que idealizam e projetam a tão propalada universalização da
educação básica e o segundo, derivado do anterior, é a concepção da educação escolar como
fenômeno capaz de empoderar as pessoas ao exercício da participação social e da
fundamentação da consciência universal (CURY, 2004). Considera-se que a educação escolar
– enquanto direito humano – deve compreender características que vão além da simples
3 . A esse respeito ver: MANACORDA, 1989.
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socialização de conteúdos instrucionais, devendo, também abranger princípios como
totalidade, disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e adaptabilidade, pois “desse modo,
a educação é compreendida como um direito em si mesmo e um meio indispensável a outros
direitos”. (BRASIL, 2006, p. 25)
Com isso, definimos nossa tese central de que, para que a educação escolar se efetive
como Direito Humano para além de seus pressupostos instrucionais, torna-se imprescindível
que se estabeleçam, tanto no plano legal como nas ações cotidianas dos agentes escolares, a
implementação de espaços públicos municipais de decisão sobre os rumos do projeto de
humanidade que se está construindo.
Espaços públicos municipais: inovações democráticas na política educacional brasileira
pós CF 88
No campo da análise da organização institucional das políticas educacionais dos
municípios brasileiros destaca-se o fato de que a maioria das inovações destas políticas gira
mais ao redor de determinações normativas e menos em função de ações organizativas como
geradoras de transformações nas unidades que orientam as ações educativas4. Isso gera pelo
menos duas noções equivocadas no entendimento do funcionamento das estruturas
organizacionais da política educacional brasileira.
A primeira delas é a sensação de instabilidade jurídica e institucional que toma conta
da maioria dos envolvidos nas ações educativas, quando consideram que muito do que a
norma estabelece não ganha corpo nas estruturas das ações rotineiras dessas pessoas e,
consequentemente, não reflete o real teor de atuação institucional das instâncias envolvidas
com educação.
A segunda, resultado da primeira, é uma certa fragilidade na implementação das
políticas educacionais municipais, ainda mais se levarmos em consideração a falta de controle
social por parte da demanda mais próxima que atende. Prova disso é que, ainda hoje, muito se
questiona a respeito do verdadeiro significado da escola na vida das pessoas que nela
transitam.
Diante dessas noções, as investigações acerca do fenômeno educacional acabam por
extrapolar os muros das escolas e as paredes das salas de aula e ocupam outros espaços
4 Vejam-se os estudos de LIMA (2003).
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institucionais a partir, basicamente, de dois ângulos: um de natureza normativa e outro no
plano das ações efetivadas.
No que tange ao plano normativo, pode-se conceber como marco inovador das
políticas municipais no país, a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) que em seu art.
30, Inciso I, estabelece como competência dos municípios: legislar sobre assuntos de interesse
local; concebe-os como entes federativos e dota-lhes da prerrogativa autonômica de gerir seus
assuntos locais; além disso, no seu artigo 206, inciso VI, determina que um dos princípios
segundo o qual o ensino deve ser ministrado é o da gestão democrática do ensino público, na
forma da lei.
Deste modo, delineiam-se, a partir da Constituição Federal e de todo o complexo
normativo que rege a matéria educacional no país, possibilidades inovadoras de
redimensionamento do espaço institucional da educação no território brasileiro, isso porque, a
prerrogativa legal de se conceder aos municípios a condição de ente federativo surge dotada
de responsabilidade pela organização da prestação do serviço educacional a partir de
premissas democráticas.
De acordo com essa estrutura, reposicionam-se novos e antigos agentes diante da
reforma institucional brasileira dentro do sistema de decisões no plano municipal a partir de
critérios que sinalizam perspectivas de modelos de gestão mais democráticos e participativos.
Com isso, emergem novas perspectivas de gestão que fogem às lógicas de organização
centralizadas e patrimoniais ainda muito evidentes, mesmo em período pós-ditadura militar.
No plano das ações organizativas, a composição de novos espaços de decisão
estrutura-se com base na atuação de novos interlocutores sociais que vão surgindo. A partir
desses agentes, aumenta gradativamente a possibilidade de mobilização de forças locais das
mais diversas ordens que gravitam em torno de projetos municipais, tendo em vista a
potencialização de recursos que promovam o desenvolvimento local.
Nesse novo arranjo de relações institucionais, aliam-se município e sociedade civil
organizada, esta passando a ser concebida como novo ator social (FISCHER 2002) na
melhoria da qualidade de vida da população. Essa articulação orgânica visa à construção uma
nova cultura administrativa, não mais baseada no poder estatal centralizado, mas funcionando
como uma forma inovadora de gestão social do desenvolvimento social local (idem; 2002) e
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em um sentido mais amplo de democracia com base na ampliação dos critérios de
democraticidade5.
Passa a ocorrer o que Santos et al. (2004) denomina de transformação nos padrões de
gestão das políticas públicas, a partir de três premissas básicas de ação:
1. Maior responsabilidade dos municípios em relação às suas políticas públicas e às
demandas dos cidadãos, a partir da descentralização administrativa e consequente
municipalização de seu padrão de gestão;
2. O reconhecimento dos direitos sociais;
3. A abertura de canais para a ampla participação cívica da sociedade, materializados
através da institucionalização de um sistema político baseado na combinação de
mecanismos e princípios participativos da democracia representativa com a
democracia direta.
Como consequência desse movimento, pode-se perceber por um lado, a redefinição da
relação de interlocução da sociedade civil com o Estado como um espaço privilegiado de
decantação de experiências muito ou pouco participativas, o que tenderia a revelar uma
alteração qualificada na governança democrática local, traduzidas em perspectivas inovadora
nas dinâmicas de interação entre o governo, o mercado e a sociedade. Para Dagnino, esta
dinâmica se define como [...] um novo projeto democrático baseado nos princípios da
extensão e generalização do exercício dos direitos, da abertura de espaços públicos com
capacidades decisórias, da participação política da sociedade e do reconhecimento e inclusão
das diferenças. (grifo nosso). (2006, p.14).
Entretanto, as relações consideradas democráticas, idealizadas sob a égide da
democracia participativa e interventiva, não podem ser divinizadas como única via de
conjunção entre agentes envolvidos em uma dada sincronia social.
Como contraponto, convivem outras matrizes de projetos de sociedade, tributárias de
concepções mais conservadoras de distribuição do poder, o que torna ainda mais complexo o
entendimento de arenas sociais entrecruzadas por múltiplas identidades, interesses, conflitos e
possibilidades de participação na vida pública.
Isso indica o caráter heterogêneo das perspectivas de análise da composição e atuação
do que se qualifica neste estudo de sociedade civil como conjunto dos organismos
vulgarmente ditos privados (GRAMSCI, 1982). A sociedade civil, atuando como conteúdo
ético do Estado – considerado por Gramsci a sociedade política – pode dimensionar seu
espaço de atuação a partir de pressupostos estatais, e construir seu próprio trajeto ideológico,
5 Para Licínio Lima (2003) democraticidade constitui um critério que define a participação não como
metodologia de gestão, mas como participação praticada, vivida e conquistada. A participação praticada seria,
nesta concepção, o agrupamento de mais três critérios: a regulamentação, o envolvimento e a orientação.
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sem, contudo reforçar a reprodução de valores organicamente relacionados à classe
dominante.
Para Habermas essa dimensão de atuação da sociedade civil denomina-se esfera ou
espaço público, “descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomada
de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados a ponto de
se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos.” (2003, p. 92).
Ampliam-se, desta feita, as esferas da vida pública com possibilidade de se
construírem inovadores padrões de democracia e governabilidade, ao mesmo tempo em que
pode ser percebido o caráter privado dos arranjos políticos (DAGNINO, 2006) que tendem a
homogeneizar, ideologizar e naturalizar opiniões, valores, projetos e capacidades de decisão.
Conforme Santos; Queiroz; Azevedo (2004), a relação entre descentralização,
participação, democracia, justiça social, direitos humanos e qualidade de vida não é uma
relação automática e, portanto, incontroversa ou inequívoca. Significa dizer que não basta a
presença de elementos técnicos e instrumentais de gestão que denotem maior descentralização
administrativa e envolvimento ativo6 da sociedade na gestão de políticas municipais para que
seja garantida a tendência democrática, participativa e interventiva da comunidade
constituinte do ente município e sua correspondente melhoria na qualidade de vida das
pessoas.
A reformulação das concepções, tanto de democracia como de participação exige,
então, uma reinterpretação do papel de interlocução, ocupado por agentes sociais e políticos
envolvidos entre si, de forma a articular um arranjo de relações permeadas por interesses
diversos, perspectivas conflitantes, valores antagônicos e projetos políticos disjuntivos. Isso
ocasiona uma forma inovadora de se gerir o público e demandar pelos seus serviços a partir
da construção do um novo espaço de relações que valorize a educação em direitos humanos
como experiência política de participação social, na qual o maior legado constitui o fato de as
sociedades e comunidades deixarem de ser meras espectadoras dos seus destinos. Neste
sentido, educar em direitos humanos constitui estratégia essencial à construção de espaços
públicos democráticos que potencializam a formação de posturas cidadãs e de combate a
qualquer violação de direitos humanos.
6 De acordo com Lima (2003), a passividade também é um tipo de envolvimento que denota a não participação
como tomada de decisão por inação.
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Nessa perspectiva, é possível o Plano de Ações Articuladas (PAR)7 como instrumento
de planejamento da educação capaz de, ao sistematizar o regime de colaboração, contribuir
para o estabelecimento de um protagonismo do ente municipal na política educacional
brasileira.
A partir dessa lógica o município constrói para si uma perspectiva de atuação
inovadora, visto que estaria concentrado no processamento de esforços para mobilizar
recursos na construção de práticas de gestão municipal descentralizada a partir do que
Dagnino (2002) convencionou chamar de espaço público com vistas ao real aperfeiçoamento
de debates potencializadores de decisões coletivas e de democracia. (SANTOS, 2008).
No PAR, as ações que o Ministério da Educação e o Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação (representando a União) comprometeram-se a realizar são
executadas por meio de seu apoio técnico e/ou financeiro. Por sua vez, as subações de
responsabilidade dos estados e municípios, além de terem sido escolhidas e previstas por suas
próprias equipes locais, devem ser executadas por seu próprio empenho institucional, na qual
a sociedade civil, por meio de sua equipe local8 exerce o controle social dessas ações.
Por equipe local na elaboração do PAR, entende-se a experiência de participação
democrática que orienta e fortalece a gestão da educação básica pública em cada município
brasileiro, constituindo-se num aprendizado coletivo dos processos decisórios a serem
7 O Governo Federal lançou em 2007 o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), a partir do qual todas as
transferências voluntárias e a assistência técnica do Ministério da Educação (MEC) aos municípios e estados
passariam a estar vinculadas à adesão destes ao Compromisso Todos pela Educação e à elaboração do PAR,
considerados instrumentos fundamentais para a melhoria do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
(IDEB). Todavia, para que o PAR fosse elaborado coube aos gestores (governadores e prefeitos) a assinatura do
Termo de Adesão ao Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação e a inserção de dados sobre sua
realidade educacional em um sistema informacional – inicialmente no sistema do Compromisso todos pela
Educação (CTE), posteriormente substituído pelo Sistema Integrado de Monitoramento do Ministério da
Educação (SIMEC) – concebidos e cedidos pelo FNDE. Por meio deste último sistema, os municípios realizam
um diagnóstico minucioso da sua realidade educacional e, a partir dele é que se desenvolveu um conjunto
coerente de ações que resultou no seu Plano de Ações Articuladas - PAR. 8 Esta equipe local é composta pelas pessoas que elaboram, implementam e monitoram a execução do PAR e
contempla a presença dos seguintes segmentos: dirigente municipal de educação; técnicos da secretaria
municipal de educação; representante dos diretores de escola; representante dos professores da zona urbana;
representante dos professores da zona rural; representante dos coordenadores ou supervisores
escolares;·representante do quadro técnico-administrativo das escolas; representante dos conselhos
escolares;·representante do Conselho Municipal de Educação (quando houver). (BRASIL, 2013). É importante
destacar a racionalidade de participação e controle social presentes nesse processo, a partir da composição das
equipes locais enquanto eixo estruturante da atividade de planejamento. Este grupo torna-se o responsável pela
sistematização das informações que serão inseridas no sistema e constituirão o PAR do município. Resguardada
a presença de técnicos das secretarias municipais de educação, ressalta-se a atuação de segmentos que possuem
significativo potencial de diálogo com a sociedade civil, podendo atuar como porta-vozes de interesses de
segmentos sociais importantes nos arranjos sociais locais. (DAMASCENO, 2011).
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enfrentados pela população. Inaugura, a nosso ver, um novo paradigma da educação
municipal democrática por meio da institucionalização de espaços públicos de decisão.
Educação municipal escolar em direitos humanos a partir do PAR: rumos de uma nova
ordem política
Inúmeras foram as alterações do texto original da LDB (com destaque para a Emenda
Constitucional 59) no sentido de referenciá-lo mais socialmente. Nesta medida, é possível
afirmar que seu texto atual foi construído baseado em premissas que o identificam com
setores que historicamente constroem a tão almejada escola pública de qualidade,
contrapondo-se à lógica “mais à direita” de seu conteúdo original. Essas alterações, mais que
diretrizes de organização da estrutura e do funcionamento da educação nacional, demarcaram
uma nova concepção de oferta da escolarização à população brasileira, na qual os incrementos
à universalização da educação básica são as tônicas principais. Neste sentido, tem-se a
garantia de acesso à educação pública, sem qualquer tipo de obstáculo ou discriminação,
posto que a não discriminação é princípio primordial das normas internacionais dos direitos
humanos e se aplica a todos os direitos.
No que se refere ao planejamento das ações propostas pela norma, um dado importante
e inovador é o Plano de Ações Articuladas, instrumento de planejamento inaugural na
efetivação de ações de formação docente voltadas à educação em direitos humanos, o que
potencializa a escola como espaço garantidor desses direitos.
Mais ainda, é possível conceber o PAR, originário do Plano de Desenvolvimento da
Educação – PDE, como um momento oportuno de inserção do tema dos direitos humanos para
além do discurso, consolidando uma oportunidade de participação da sociedade civil na
concepção de uma política de Estado tendo em vista seus reais carecimentos e particularidades.
(DAMASCENO, 2011). Tais iniciativas representam bem mais que mera inovação normativa,
pois são capazes de mudar a fisionomia da educação brasileira (GENTILI e OLIVEIRA,
2013), consolidando a educação como direito humano fundamental, possibilitando o exercício
dos demais direitos e ampliando as capacidades das pessoas para o exercício de sua liberdade.
(UNESCO, 2008, 28).
Nessa perspectiva, apesar da centralidade da coordenação da política educacional ser
prerrogativa da União, cremos ser o município o cenário ideal para a realização dessa tarefa,
posto que é lá que ocorrem os fatos que, efetivamente, mudam a vida das pessoas. Como já
mencionado, o necessário ambiente institucional para a consolidação desta ação foi a
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evolução político-administrativa dos municípios a partir da Carta Constitucional de 1988.
Com isso, o então recém- criado ente federativo teve ampliada sua autonomia administrativa e
legislativa.
Desde lá aos municípios foi autorizado o compartilhamento de algumas competências
que se tornaram comuns com a União, os Estados e o Distrito Federal, além de conquistarem
competências privativas como a de legislar em assuntos de “interesse local”. Outro aspecto
não menos importante foi o fato deles terem maior participação nos impostos federais e
estaduais.
Em síntese, com a Constituição de 1988, os municípios experimentaram importante
evolução no que tange ao exercício de sua autonomia. Isto significou o fortalecimento de
cerca de 5.600 novos entes federativos com diferentes potenciais econômicos, demográficos e
culturais, exercendo uma pressão de grande magnitude em função das necessidades mais
prementes de seus habitantes, por meio do ecoar de “vozes” de novos e diferentes segmentos
de suas populações.
Isso ocorre, de acordo com Dowbor e Pochmann (2008, p. 6), devido à existência de
“várias territorialidades que precisam se articular de maneira mais inteligente”. Daí a
importância dos vários atores locais se organizarem em torno de maior participação nas
decisões que dizem respeito à governança municipal. Para eles, na base dessas mudanças
estão o processo de urbanização, o surgimento acelerado das novas tecnologias de informação
e comunicação, e a emergência das políticas sociais como centro de atividades no território
local.
Por causa dos desafios que essa nova situação impõe, já não é tão fácil admitir-se a
ideia de organizações e/ou processos rigidamente hierarquizados e verticalizados. Em
contrapartida, começam a emergir estruturas organizacionais horizontais cada vez mais
complexas, porque partem da compreensão de que a execução de tarefas será tanto mais
efetiva quanto maior e melhor for a participação, o acompanhamento e o controle nas decisões
tomadas. Na esfera da educação municipal isso se traduz na necessidade de implantação dos
Conselhos Municipais de Educação, Conselhos do FUNDEB9, Conselhos Escolares e de
demais canais de participação direta da população no debate da gestão educacional.
9 FUNDEB é abreviatura do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos
Profissionais da Educação, que se constitui em uma estratégia de distribuição de recursos para a educação
levando em consideração o desenvolvimento social e econômico das regiões – a complementação do dinheiro
aplicado pela União é direcionada às regiões nas quais o investimento por aluno seja inferior ao valor mínimo
fixado para cada ano. Seu principal objetivo é a redistribuição dos recursos vinculados à educação e a destinação
dos investimentos é feita de acordo com o número de alunos da educação básica, com base em dados do censo
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Para que isso ocorra, é preciso que se deixe de priorizar interesses individuais ou
corporativos dos diversos segmentos da escola (direção, funcionários, professores,
pais e alunos). Esses interesses (corporativos, particularistas, clientelistas, troca de
favores), caso não sejam eliminados, podem propiciar a prática da corrupção, do uso
incorreto e ilegal dos recursos públicos e da improbidade administrativa, tanto no
âmbito da unidade escolar quanto nos órgãos intermediários e centrais dos sistemas
públicos de ensino. (SANTOS et. al., 2004, 165-166).
Dentre outras razões, é para evitar esse tipo de inflexão que a sociedade deve estar
alerta e ativa. Por isso, a concepção da democracia participativa, que resurge com maior
robustez a partir do início década de 90 no Brasil com a campanha das Diretas Já10, e se
fortalece baseada no conceito de "empoderamento", estabelecendo-se por meio de relações de
poder mais equilibradas entre as tarefas de pensar e agir, de planejar e operar, de decidir e
executar.
Configuram-se, desta feita, inovadoras relações de trabalho baseadas na perspectiva da
institucionalização de processos participativos de gestão das políticas públicas, condição que
exige mais cooperação entre os atores envolvidos; definição clara de funções e atribuições;
noção mais clara da interdependência entre as atividades e, finalmente, uma maior
consciência da responsabilidade de cada um na conquista dos avanços pretendidos. Ao
mesmo tempo possibilita maior consciência sobre o papel de cada um e da organização como
um todo; gerando maior compreensão da estrutura de poder tanto no âmbito interno como no
externo.
Todavia, na maioria dos programas e projetos de formação atuais, o que se tem visto é
a participação majoritária – em alguns casos, exclusiva – de técnicos do serviço público. Que
isso é positivo não se discute, entretanto, sem a presença de representantes da sociedade civil
as possibilidades para o processo democrático deslanchar são bem menores.
Mesmo diante de todo esforço despendido, ao fim e ao cabo, permanece a ideia de que
o processo de construção de uma educação de qualidade na maioria dos municípios brasileiros
é uma aventura político-pedagógica que só poderá se efetivar a partir de um formidável
esforço integrado de União, estados e municípios, por meio do regime de colaboração, na
direção de um Sistema Nacional Articulado que contemple a sociedade civil na discussão de
escolar do ano anterior. O acompanhamento e o controle social sobre a distribuição, a transferência e a aplicação
dos recursos do programa são feitos em escalas federal, estadual e municipal por conselhos criados
especificamente para esse fim. O Ministério da Educação promove a capacitação dos integrantes dos conselhos. 10 Concebemos o movimento das Diretas Já como ressurgimento, na medida em que no período anterior á 1964,
ocorreram uma série de movimentos populares que fortaleceram o surgimento de experiências democráticas.
Dentre essas dinâmicas, destacam-se na área educacional: o Movimento de Educação de Base, o sistema Paulo
Freire, a UNE, a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases Nacional e a Campanha de Pé no Chão Também se
Aprende a Ler. (GOÉS, 1980)
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seus rumos. Uma missão, portanto, gigantesca e inadiável para a realização da utopia da
educação democrática tendo a escola como direito humano garantido e a participação como
princípio exercitado, por todos e para todos.
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