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1
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Eduardo Scalon
ÔNUS DA PROVA NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2014
2
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
EDUARDO SCALON
ÔNUS DA PROVA NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção
do título de MESTRE em Direitos
Difusos e Coletivos sob orientação da
Professora Patricia Miranda Pizzol.
SÃO PAULO
2014
ERRATA
Inclui-se no índice o Capítulo 4 – Conclusão – página nº 140.
A Bibliografia passa a constar da página nº 142.
O texto referente ao capítulo adicionado segue a baixo.
4.1 CONCLUSÃO
No intuito de guarnecer os direitos dos consumidores, o CDC,
dentre outras previsões, estabeleceu a responsabilidade civil dos fornecedores
como objetiva, de acordo com a teoria do risco, exceção feita à responsabilidade
dos profissionais liberais, cuja culpa no evento ainda precisa ser provada.
Além de retirar a necessidade de prova de culpa, o CDC adaptou as
regras relativas ao ônus da prova às relações de consumo.
Ao autor, consumidor, consequentemente, caberá a prova dos fatos
constitutivos de seu direito, conforme previsto no CPC. Todavia, essa prova
obedecerá aos princípios protetores do CDC, cujo escopo é a facilitação da
defesa.
Esse princípio informará a produção da prova nas hipóteses de fato
ou vício do produto, assim como na responsabilidade civil do profissional liberal
e da publicidade enganosa.
Nas hipóteses de fato do produto, a existência do defeito é
presumida e a prova de sua inexistência atribuída ao fornecedor. Assim como,
caberá ao fornecedor provar que não colocou o produto no mercado ou que a
culpa pelo acidente é exclusiva do consumidor ou de terceiros.
Todavia, a prova produzida pelo consumidor poderá consistir
apenas em indícios e presunções, desde que possibilitem ao magistrado a
compreensão dos fatos.
Essa facilitação na defesa, também inclui a possibilidade de
inversão do ônus da prova, quando presentes os requisitos da verossimilhança
das alegações ou sua hipossuficiência.
Entretanto, a inversão não poderá prejudicar o direito à produção da
prova pelo fornecedor e deverá ser determinada, preferencialmente, por ocasião
do início da produção das provas no processo. Caso o juiz se convença da
necessidade de inversão do ônus da prova após o encerramento da fase
correspondente, deverá converter o julgamento em diligência para oportunizar ao
fornecedor, o cumprimento do ônus que lhe foi atribuído.
O CDC visa a regulamentação das relações de consumo, para
compensar a posição de inferioridade do consumidor, seja nas operações
cotidianas ou em litígios sem, contudo, prejudicar o fornecedor, mas somente
equiparar os partícipes dessa relação.
3
Banca Examinadora
___________________________________________
___________________________________________
___________________________________________
4
Para Gustavo e Beatriz
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço à Professora Patricia Miranda Pizzol pelo auxílio, orientação e apoio.
Agradeço, também, ao amigo Claudio Lima Bueno de Camargo pelos anos de
amizade e valiosas colaborações muito além do Direito.
Para minha sócia e amiga Julia Choueri Sordi, pelo incentivo e colaboração.
Para meus pais e meus irmãos, por tudo até hoje e pelo o que ainda acontecerá.
6
RESUMO
A promulgação do Código de Defesa do Consumidor no Brasil representou uma
verdadeira quebra de paradgima na forma como as relações jurídicas eram
avaliadas e tuteladas. Anteriormente, os conceitos de obrigação e
responsabilidade eram orientados pelo Direito Privado, nos termos do Código
Civil, com conceitos clássicos e arraigados como a autonomia das partes nas
relações jurídicas. O CDC altera sobremaneira tais conceitos ao determinar que
uma relação jurídica específica, relação de consumo, será tutelada diretamente
por regras especiais e orientadas para a proteção e preservação dos direitos e
interesses de uma das partes da relação. Essa orientação, em primeira análise,
poderia se configurar como violação ao princípio da isonomia. Todavia, o foco
das novas regras é justamente o reconhecimento da necessidade de maior
proteção ao consumidor, justamente para equilibrar sua relação com os
fornecedores. Esse novo conceito desafiou desde as faculdades cujo ensino
jurídico sempre foi pautado pela dicotomia entre direito público e privado, como
também os operadores do direito como advogados e juízes. A constatação da
nova orientação que governa as relações de consumo demanda uma séria e
cuidadosa reflexão de como se operacionaliza essa nova norma protetiva. O
manejo descuidado das novas regras levaria esse importante avanço conceitual a
uma maneira de prejudicar fornecedores. As alterações determinadas na tutela
judicial dos direitos do consumidor obrigam a cuidadosa interpretação conjunta
de várias legislações, na medida de sua aparente colisão, para que sejam obtidas
conclusões que atinjam o escopo do equilíbrio entre as partes.
Palavras-chave: consumidor; responsabilidade; prova; ônus.
7
ABSTRACT
The promulgation of the Code of Consumer Protection in Brazil represented a
real change in how legal relationships were assessed and protected.
Previously, the concepts of obligation and civil liability were oriented by private
law, under the Civil Code, with classic and entrenched concepts as the autonomy
of the mutual agreement in legal relations. The CDC greatly alter these concepts
to determine that a particular legal relationship, consumer transaction, will be
tutored directly by special rules and oriented to the protection and preservation of
the rights and interests of one part of the relationship. This guidance, at first,
could be configured as a violation of the principle of equal protection. However,
the focus of the new rules is precisely the recognition of the need for greater
consumer protection, in order to balance their relation with suppliers. This new
concept challenged from law schools whose legal education has always been
oriented by a dichotomy between public and private laws, as well as jurists and
lawyers and judges. The acknowledgement of the new guidance that rules the
relations of consumers demands a serious reflection of how apply this new
protective law. Careless application of the new rules would transform this
important improvement into just a way to jeopardize suppliers. These changes of
the consumer protective law require a careful interpretation of several laws and
the extent of his apparent collision so that conclusions they reach the scope of the
balance between the parties is obtained.
Key-words: consumer; liability; proof; burden
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................................11
CAPÍTULO 1 A TUTELA DOS DIREITOS DO CONSUMIDOR...............12
1.1 FUNDAMENTOS..........................................................................................12
1.1.1 PRINCÍPIO DA ISONOMIA....................................................................17
1.1.1.1 PRINCÍPIOS PROCESSUAIS CONSTITUCIONAIS.............................19
1.1.1.2 PUBLICIDADE DOS ATOS PROCESSUAIS........................................20
1.1.1.3 VEDAÇÃO DO USO DE PROVAS OBTIDAS POR MEIO ILÍCITO...21
1.1.1.4 CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA................................................23
1.2 RELAÇÃO DE CONSUMO - CONCEITOS...........................................25
1.2.1 CONSUMIDOR.........................................................................................25
1.2.2 FORNECEDOR.........................................................................................31
1.2.3 PRODUTOS E SERVIÇOS.......................................................................32
1.3 PRINCÍPIOS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.............33
1.3.1 VULNERABILIDADE.............................................................................34
1.3.2 AÇÃO GOVERNAMENTAL...................................................................38
1.3.3 HARMONIZAÇÃO DOS INTERESSES.................................................40
1.3.4 EDUCAÇÃO E INFORMAÇÃO..............................................................41
1.3.5 MEIOS DE CONTROLE DE QUALIDADE E SEGURANÇA E
SOLUÇÃO DE CONFLITOS...................................................................42
1.3.6 COIBIÇÃO DE ABUSOS.........................................................................42
1.3.7 RACIONALIZAÇÃO E MELHORIA DOS SERVIÇOS PÚBLICOS....42
1.3.8 FACILITAÇÃO DE DEFESA..................................................................43
1.4 RESPONSABILIDADE CIVIL ...............................................................45
1.4.1 CONCEITO E ELEMENTOS...................................................................45
1.4.2 PRESSUPOSTOS......................................................................................46
1.4.2.1 AÇÃO.......................................................................................................46
1.4.2.2 DANO.......................................................................................................47
1.4.2.3 NEXO DE CAUSALIDADE...................................................................52
9
1.4.3 RESPONSABILIDADE CONTRATUAL................................................53
1.4.4 RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL..................................54
1.4.5 RESPONSABILIDADE CIVIL NO CDC................................................60
1.4.5.1 RESPONSABILIDADE PELO FATO DO PRODUTO..........................61
1.4.5.2 RESPONSABILIDADE PELO VÍCIO DO PRODUTO.........................66
1.4.5.3 RESPONSABILIDADE DO PROFISSIONAL LIBERAL.....................73
CAPÍTULO 2 ASPECTOS GERAIS DA PROVA NO PROCESSO CIVIL
..............................................................................................................................76
2.1 CONCEITO....................................................................................................76
2.2 MEIOS DE PROVA.......................................................................................77
a) CONFISSÃO.............................................................................................77
b) DEPOIMENTO PESSOAL.......................................................................78
c) PROVA DOCUMENTAL.........................................................................80
d) EXIBIÇÃO DE DOCUMENTO OU COISA............................................81
e) PROVA TESTEMUNHAL.......................................................................83
f) PRESUNÇÃO............................................................................................85
g) PROVA PERICIAL...................................................................................87
h) INSPEÇÃO JUDICIAL.............................................................................88
2.3 OBJETO.........................................................................................................89
2.4 SUJEITOS......................................................................................................90
2.5 DESTINATÁRIO...........................................................................................92
2.6 MOMENTOS DA PROVA............................................................................93
2.7 VALORAÇÃO DA PROVA..........................................................................94
CAPÍTULO 3 – O ÔNUS DA PROVA NOS PROCESSOS RELATIVOS A
LIDES DE CONSUMO......................................................................................97
3.1. ÔNUS DA PROVA.......................................................................................97
3.1.1. CONCEITO...............................................................................................97
3.2. TEORIA DA CARGA DINÂMICA............................................................100
10
3.3. DO ÔNUS DA PROVA NO CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR...............................................................................................104
3.3.1. ÔNUS PROBATÓRIO DO CONSUMIDOR.........................................104
3.3.2. ÔNUS PROBATÓRIO DO FORNECEDOR .........................................108
3.4. DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NO CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR...............................................................................................120
3.4.1. REQUISITOS..........................................................................................123
a) HIPOSSUFICIÊNCIA.........................................................................123
b) VEROSSIMILHANÇA.......................................................................124
3.4.2. MOMENTO DE INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA.........................128
a) DA INVERSÃO COMO REGRA DE JULGAMENTO.....................128
b) DA INVERSÃO COM REGRA DE INSTRUÇÃO............................129
3.4.3. A INVERSÃO DO ÔNUS ECONÔMICO FINANCEIRO DA
PROVA...............................................................................................................131
3.5. ÔNUS DA PROVA E RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO
FORNECEDOR..................................................................................................133
BIBLIOGRAFIA................................................................................................140
11
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo abordar o estudo do ônus da prova sob a
ótica do Direito do Consumidor. Dentro do escopo pretendido, será analisada a
forma como a matéria é tratada em litígios que versem sobre responsabilidade
civil dos fornecedores, com o apoio da jurisprudência dos Tribunaus pátrios. Para
tanto, é imprescindível verificar os objetivos da legislação consumerista e suas
origens, para que seja possível sua compreensão como uma norma diferenciada
do clássico Direito Privado. O início do estudo remete à Constituição Federal, as
previsões específicas sobre o tema, bem como os princípios informativos
aplicáveis à matéria. Também na Constituição serão apontados os princípios
pertinentes à tutela jurisdicional civil. Ainda na linha dos princípios, tem início a
abordagem específica do Código de Defesa do Consumidor, seus princípios,
conceitos e linhas diretivas. No próximo passo, será apresentado o conceito de
responsabilidade civil, origens, elementos e evolução da natureza subjetiva para a
objetiva, culminando com sua análise dentro do Código de Defesa do
Consumidor. Ultrapassada a análise do direito material, o foco será direcionado
para o direito instrumental, a interpretação das regras processuais do Código de
Defesa do Consumidor com o conteúdo do Código de Processo Civil. Esse feito
será obtido por meio da análise das provas no processo, suas origens no Código
Civil e no Código de Processo civil. Ainda no tocante as provas, a análise será
orientada para o ônus da prova, suas regras de distribução no Código de Processo
Civil e no Código de Defesa do Consumidor. Traços característicos da definição
de consumidor, a hipossuficiência e vulnerabilidade trazem consequências à
instrução probatória processual e regras diferenciadas de inversão do ônus da
prova, suas hipóteses e requisitos. Por fim, o trabalho será dirigido à questão da
possibilidade de inversão do ônus da prova, suas hipóteses e requisitos, além do
momento no qual será determinada.
12
1 A tutela dos direitos do consumidor
1.1 Fundamentos
Publicada em 11 de Setembro de 1990, a Lei nº 8.078 instituiu o
Código de Defesa do Consumidor – CDC, mas as origens do movimento
consumerista que culminou com o código são antigas.
O aumento da produção industrial, bem como sua eficiência,
capacitou a indústria a disponibilizar no mercado consumidor uma quantidade
maior de produtos a preços mais acessíveis. Foi criada a produção em série,
também chamada “standartização” da produção, incrementada exponencialmente
com as Guerras Mundiais1.
Esse novo e crescente mercado demandava regulação e proteção.
Uma das primeiras e muito relevantes legislações destinadas a regular essa nova
realidade industrial foi a chamada Lei Sherman (Sherman Antitrust Act),
promulgada em 2 de julho de 18902.
A norma, criada pelo Senador do Estado americano de Ohio John
Sherman visava impedir a criação e determinar a dissolução de monopólios de
mercado, os chamados “trustes” 3. O Presidente norte americano, William
Howard Taft (1909 a 1913) e procurador-geral dos Estados Unidos na época da
sua promulgação, afirmou que o objetivo da norma era destruir o império
petrolífero criado por John D. Rockefeller Sr., a Standart Oil.
Todavia, seu conteúdo provou-se ineficiente à época, por oferecer
muitas brechas de interpretação favoráveis à manutenção dos “trustes”, ao ponto
de ser apelidada de Swiss Cheese Act (Lei Queijo Suíço – tradução livre), e não
acabou com os monopólios.
Dentre as inúmeras críticas à atuação da empresa na época estavam
péssimas condições de trabalho, manipulação de preços de mercado, prejuízo aos
consumidores e exclusão de produtores independentes.
1NUNES, Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 8ª ed., Sãp Paulo: Saraiva, 2013, p. 43.
2NUNES, Rizzatto. Ob. Cit. 42.
3CHERNOW, Ron. Titan the life of John D. Rockefeller, Sr., Vintage Books, New York:
1998, p. 298.
13
Posteriormente a empresa Standart Oil foi processada (Standart Oil
Co. of New Jersey x United States, 19104) e a decisão da Suprema Corte dos
Estados Unidos obrigou sua divisão em 34 companhias e diluição de seu controle
acionário, o que eliminou a concentração do mercado sob seu comando.
Ainda que o Sherman Act fosse conhecido à época pelo apelido
acima citado, constituiu-se com a base legal para a decisão judicial que acabou
com o monopólio da empresa.
A amplitude dos efeitos dessa legislação foi de extrema relevância,
pois beneficiava todos os consumidores americanos com o aumento da
competição das empresas do setor.
Mesmo no Brasil, em tempos remotos, algumas leis esparsas
tratavam de questões específicas sobre consumo. A cidade de Salvador dispunha
de algumas normas que regulavam as atividades das “tabernas”, o preço do vinho
e até regras específicas aos “vendeiros” 5.
Nos EUA a fusão dos movimentos trabalhistas e consumeristas
resultou na criação da “Consumer League” (Liga do consumo – tradução livre)
em 1891, uma entidade destinada a proteger os direitos dos consumidores6.
Todavia, uma das normas mais relevantes foi a Resolução nº
39/248, de 9 de abril de 1985, da Assembleia Geral da Organização das Nações
Unidas - ONU. Nesse documento, são reconhecidos7, nos objetivos propostos, o
desequilíbrio educacional, econômico e negocial que enfrenta o consumidor.
4 List of United States Supreme Court Cases volume 221, Lista de casos da Suprema Corte dos
Estados Unidos, volume 221 – tradução livre. 5FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de direitos do consumidor. 12ª ed., São Paulo:
Atlas, 2014, p. 4. 6 FILOMENO, José Geraldo Brito. Ob. Cit., p. 4.
7 Guidelines for consumer protection, 1. Taking into account the interests and needs of
consumers in all countries, particularly those in developing countries; recognizing that
consumers often face imbalances in economic terms, educational levels, and bargaining power;
and bearing in mind that consumers should have the right of access to non-hazardous products,
as well as the right to promote just, equitable and sustainable economic and social development,
these guidelines for consumer protection have the following objectives.
Levando em consideração os interesses e necessidades dos consumidores de todos os países,
particularmente aqueles de países em desenvolvimento, reconhecendo que consumidores
frequentemente enfrentam desequilíbrios em termos econômicos, níveis de educação e poder de
negociação, e tendo em mente que consumidores devem ter direito ao acesso a produtos
seguros, como também direito ao desenvolvimento social e econômico justo, equitativo e
sustentável, essas diretrizes para proteção do consumidor tem os seguintes objetivos. (tradução
14
Todos os países membros da ONU são conclamados a editar
normas protetivas dos consumidores, para garantir sua segurança, educação,
qualidade e segurança dos bens e serviços colocados à sua disposição, regras para
obtenção de ressarcimento de danos, bem como normas específicas de proteção
em setores com alimentos, água e medicamentos8.
No Brasil, pode-se atribuir o início do “movimento consumerista”
no ano de 1976, com a criação de uma comissão pelo governador paulista Paulo
Egydio Martins para estudar a implantação de um “sistema estadual de defesa do
consumidor”. Essa comissão originou a Lei nº 1.903/78, criadora do Grupo
Executivo de Proteção ao Consumidor, convertido posteriormente no atual
PROCON.
O fortalecimento do movimento consumerista culminou com a
promulgação da Constituição Federal de 1988, cujo artigo 5º, XXXII estabeleceu
que “o Estado promoverá na forma da lei a defesa do consumidor”.
Para conferir maior efetividade ao comando de natureza
programática, definiu-se no artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias o prazo de 120 dias para que o Congresso Nacional promulgasse o
futuro código.
Vale ressaltar que outras legislações consumeristas estrangeiras9
serviram de suporte para a criação do código brasileiro, assim como para
matérias específicas.
O CDC como norma protetiva dos direitos do consumidor,
estabelece uma série de princípios que deverão nortear toda a relação de
consumo. Trata-se de um elenco de princípios epistemológicos e instrumentais
que visam à defesa do consumidor, o reconhecimento de seus direitos, o pleno
exercício da cidadania e qualidade de vida10
.
livre). Norma obtida junto ao site da ONU – Organizações das Nações Unidas, no endereço:
http://www.un.org/documents/ga/res/39/a39r248.htm. 8 MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 4ª ed., São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2013, p. 37. 9 Ley General para la Defensa de los Consumidores y Usuários, Lei nº 26/1984 (Espanha); Lei
nº 29/81 (Portugal); Lei Federal de Protección al Consumidor, de 5 de fevereiro de 1976
(México) e Loi sur la Protection du Consommateur, 1979 (Quebec). 10
FILOMENO, José Geraldo Brito. Ob. Cit., p. 12.
15
A origem dos princípios que norteiam o CDC encontra-se da CF,
em várias passagens. Destacam-se:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-
se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
Conforme já exposto sobre as origens do movimento consumerista,
a vertiginosa escalada da produção industrial e dos mercados de consumo
demandou a proteção do cidadão, obtido com a elevação a fundamento
republicado a cidadania, dignidade da pessoa humana e valores sociais do
trabalho e livre iniciativa.
A livre iniciativa tem expressa proteção constitucional, mas
acompanhada de princípios bem específicos.
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes
princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento
diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e
de seus processos de elaboração e prestação;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte
constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e
administração no País.
16
Percebe-se que o incremento da atividade econômica e industrial é
um dos objetivos do Estado, mas sob a égide de regras protetivas, dentre as quais
especificamente encontra-se a defesa do consumidor.
Ainda que no caput do referido artigo conste que a ordem
econômica é fundada na livre iniciativa, o que em princípio seria contraditório
com a defesa do consumidor, os incisos do artigo delimitam sua interpretação. O
professor Rizzatto Nunes afirma que a livre iniciativa está garantida, porém
assim definida:
a) o mercado de consumo aberto à exploração não pertence ao
explorador; ele é da sociedade e em função dela, de seu benefício, é
que se permite sua exploração;
b) como decorrência disso, o explorador tem responsabilidades a
saldar no ato exploratório; tal ato não pode ser espoliativo;
c) se lucro é uma decorrência lógica e natural da exploração permitida,
não pode ser ilimitado; encontrará resistência e terá de ser refreado
toda a vez que puder causar dano ao mercado e à sociedade;
d) excetuando os casos de monopólio do Estado (p. Ex., do art. 177), o
monopólio, o oligopólio e quaisquer outras práticas tendentes à
dominação do mercado estão proibidos;
e) o lucro é legítimo, mas o risco é exclusivamente do empreendedor.
Ele escolheu arriscar-se: não pode repassar esse ônus ao consumidor.
Essas considerações são decorrentes da interpretação dos princípios já
expostos e que devem ser harmonizados.
Com efeito, a letra a decorre das garantias constitucionais da função
social da propriedade, da defesa do consumidor, da construção de uma
sociedade livre, justa e solidária e da promoção do bem comum. Tudo
fundado no princípio máximo da garantia da dignidade da pessoa
humana.
Quanto ao estabelecido nas letras b, c, d e e, as bases são as mesmas.
Contudo, reforce-se o aspecto da livre concorrência e da defesa do
consumidor11
.
A intenção do legislador não foi criar uma norma de defesa aos
consumidores que sobrepujasse as demais leis ou que alçasse o consumidor a um
11
NUNES, Rizzatto. Ob. Cit., p. 103.
17
patamar superior ao fornecedor. Seu intento foi de equilibrar as posições, alçar o
consumidor a uma posição de igualdade com o fornecedor. Para observar a
propriedade do escopo da norma em igualar as partes dessa relação jurídica,
iremos adentrar com conceito de isonomia.
1.1.1 Princípio da isonomia
A CF em seu artigo 5º caput, estabelece a igualdade de todos
perante a lei.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
Todavia, a igualdade de todos somente será obtida se observadas
suas características particulares e estas se encontrarem em patamar de igualdade
com os demais.
A igualdade pode ser obtida por meio de legislações protetivas a
determinadas categorias economicamente desprotegidas. São normas de
equilíbrio, com conteúdo diferenciador para atingir a justiça igualitária12
.
O professor Humberto Theodoro Junior, citando Fernando
Noronha, afirma que a defesa do consumidor não implica em se preocupar
exclusivamente com eles, mas impedir que sejam vítimas de abuso. A criação do
CDC não visa sobrepor o interesse do consumidor ao do fornecedor, mas
somente “alcançar razoável equilíbrio entre uns e outros” 13
.
Esse equilíbrio é alcançado pela direta incidência do CDC, de
maneira imperativa nas relações jurídicas antes dominadas pela autonomia da
vontade14
.
12PALHARINI JUNIOR, Sidney. O princípio da isonomia aplicado ao direito processual
civil. Processo e constituição: estudos em homenagem ao professor José Carlos Barbosa
Moreira, coord. Luiz Fux, Nelson Nery Junior e Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 617. 13
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Direitos do consumidor: a busca de um ponto de
equilíbrio entre as garantias do Código de Defesa do Consumidor e os princípios gerais do Direito Civil e do Direito Processual Civil. 8ª ed., Rio de Janeiro: 2013, p. 33. 14
MARQUES, Claudia Lima. Comentários ao código de defesa do consumidor, 4ª ed., São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 74.
18
Nesse sentido, o Código de Defesa do Consumidor visa equiparar
as partes envolvidas numa relação de consumo como forma de aplicar o princípio
da isonomia.
Essa proteção conferida ao consumidor não viola o princípio da
isonomia, uma vez que existe uma adequação racional entre o tratamento
diferenciado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo15
.
De acordo com Bruno Miragem, o reconhecimento da existência de
desigualdade entre fornecedores e consumidores, autoriza a intervenção do
Estado no estabelecimento de normas protetivas. Essas normas diferem daquelas
referentes ao direito civil tanto em matéria contratual, como na responsabilidade
civil16
.
Entretanto, além do princípio da isonomia, a CF estabelece
objetivos fundamentais da República que, da mesma forma, orientam a tutela do
consumidor. Podemos citar o art. 3º, I da CF assim estabelece:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
No conceito de liberdade do artigo incluem-se tanto o cidadão que
deseja empreender, como também daquele que deseja apenas adquirir. Neste
último, trata-se da liberdade de aquisição de um bem. Mas nas hipóteses em que
essa liberdade de escolha não for plena, haja vista que suas opções são
determinadas pelos fornecedores, o Estado deverá intervir para equilibrar a
relação17
.
A sociedade justa se traduz em busca da harmonia e paz18
social
dentro coletividade e todas suas particularidades e conflitos inerentes.
Para transformar a relação de consumo em igualitária, o CDC criou
mecanismos de proteção do consumidor como meios para que a sua
15
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, 3ª Ed.,
São Paulo: Malheiros, 1999, p. 39. 16
MIRAGEM, Bruno. Ob. Cit., p. 40. 17
NUNES, Rizzato. Ob. Cit., p. 69. 18
NUNES, Rizzato. Ob. Cit., p. 69.
19
vulnerabilidade não se torne um empecilho para o exercício de seus direitos ou
que esse não lhe gere prejuízos.
O CDC visa proteger este sujeito, sistematiza suas normas a partir
da idéia básica de proteção de apenas um sujeito “diferente” da sociedade de
consumo: o consumidor19
.
Nesse sentido, e como foco proposto neste estudo, foram
estabelecidas previsões concernentes à tutela judicial do consumidor, bem como
às provas produzidas no processo judicial cujo objeto seja uma relação de
consumo. Tais previsões promovem a adaptação das regras relativas às provas à
condição especial do consumidor, à especial proteção que a lei lhe confere.
Para avaliar as alterações promovidas pelo CDC, faz-se necessário
um esboço legislativo sobre a matéria das provas e sobre a tutela jurisdicional.
1.1.1.1 Princípios processuais constitucionais
Alçado à categoria de princípio constitucional fundamental do
processo civil20
, o devido processo legal informa todo o ordenamento relativo ao
Direito Processual Civil.
Sua previsão no artigo 5º, LIV, da Constituição Federal de 1988 –
CF estabelece as diretrizes para as demais regras processuais.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal;
A adoção desse princípio, due process of law, seria suficiente para
assegurar as demais garantias processuais aos litigantes21
, tais como a
publicidade dos atos processuais, vedação do uso de provas obtidas por meio
ilícitos, garantia do juiz natural e contraditório e ampla defesa.
19
MARQUES, Claudia Lima. Ob. Cit., p. 71. 20
NERY JUNIOR, Nelson. Princípio do processo na Constituição Federal, 9ª ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 77. 21
NERY JUNIOR, Nelson. Ob. Cit., p. 77.
20
Esses princípios podem derivar do devido processo legal ou pode-
se dizer que sua reunião resulta na formação do devido processo legal. Pela
inafastabilidade do controle jurisdicional, a Constituição garantiria o devido
processo22
.
Todavia, a existência do princípio do devido processo legal, não
prescinde da expressa previsão dos demais princípios. Abordaremos a seguir
alguns deles, resumidamente.
1.1.1.2 Publicidade dos atos processuais
A impossibilidade de segredo ou ocultação dos atos processuais
está prevista no artigo 5º, LX e 93 IX, ambos da CF.
Dessa maneira, todos os atos praticados no processo judicial, bem
como as decisões proferidas deverão obrigatoriamente ser públicos e acessíveis a
toda a população.
As limitações a esse princípio, todavia, guardam consonância com
direitos de intimidade como casamento, filiação, separação dos cônjuges,
alimentos e guarda de menores, além do interesse público, nos termos do artigo
155 do CPC.
AGRAVO DE INSTRUMENTO Ação revisional de contrato bancário
Decisão que indeferiu os pedidos de assistência judiciária e de
tramitação do feito sob segredo de justiça - Justiça Gratuita -
Inexistência de documentos que comprovem a efetiva hipossuficiência
econômica dos agravantes, ainda que momentânea. Segredo de justiça
- Interesse exclusivamente privado - Ausência de interesse público
que justifique a limitação da publicidade dos atos processuais -
Decisão mantida - Recurso não provido. (TJSP Agravo de Instrumento
nº 2052316-68.2014.8.26.0000, 17ª Câmara de Direito Privado, Rel.
Des. Irineu Fava, j. 07/05/2014).
Conforme se verifica do caso acima exposto, o pedido de
tramitação do feito em segredo de justiça foi indeferido, haja vista que não
estavam presentes as exceções ao princípio da publicidade.
22
CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Anotações sobre a garantia constitucional do juiz
natual. in Processo e constituição: estudos em homenagem ao professor José Carlos
Barbosa Moreira, coord. Luiz Fux, Nelson Nery Junior e Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 500.
21
1.1.1.3 Vedação do uso de provas obtidas por meio ilícito.
Trazida pelo artigo 5º, LVI da CF, a impossibilidade de utilização
das provas obtidas por meio ilícito, traça importante limite à atuação dos
litigantes. Provas ilícitas seriam as obtidas por violação do direito à intimidade
artigo 5º, X da CF; inviolabilidade do domicílio artigo 5º, XI da CF, e
comunicações artigo 5º, XII da CF.
Parte relevante da doutrina adota o princípio da proporcionalidade e
admite determinadas provas, ainda que obtidas por meio ilícito, caso o direito a
ser protegido pela produção da prova se sobreponha ao direito violado, como o
acusado que grava conversa telefônica clandestinamente, em legítima defesa para
a prova de sua inocência23
.
Todavia, a jurisprudência brasileira adota posição conservadora,
admitindo apenas as interceptações telefônicas autorizadas judicialmente ou
gravações fornecidas por uma das partes que participou da conversa.
RECURSO ESPECIAL. ARTIGO 214 C/C O ART. 224, "A", DO CP
(ANTIGA REDAÇÃO). ART. 619 DO CPP. VIOLAÇÃO NÃO
CARACTERIZADA. GRAVAÇÃO DE CONVERSA EM
TERMINAL TELEFÔNICO PRÓPRIO, COM AUXÍLIO DE
TERCEIRO. PODER-DEVER DE PROTEÇÃO DO FILHO
MENOR. PROVA LÍCITA. ADMISSIBILIDADE. PALAVRA DA
VÍTIMA. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. FALTA DE
INDICAÇÃO DO DISPOSITIVO FEDERAL. SÚMULA 284/STF.
REGIME PRISIONAL INICIAL. MATÉRIA NÃO
PREQUESTIONADA. SÚMULA 211/STJ. RECONHECIMENTO
DE FLAGRANTE ILEGALIDADE. CONCESSÃO DE HABEAS
CORPUS DE OFÍCIO.
1. Não existe a violação ao artigo 619 do Código de Processo Penal
quando o acórdão recorrido decidiu a controvérsia de forma
fundamentada, sem incorrer em qualquer omissão.
2. A teor do disposto no artigo 157 do Código Penal são inadmissíveis
as provas ilícitas, assim consideradas as que violam direito material do
réu, devendo ser desentranhadas do processo, de modo a conferir
23
NERY JUNIOR, Nelson. Ob. Cit., p. 261
22
efetividade ao princípio do devido processo legal e a tutelar os direitos
constitucionais de qualquer acusado no processo penal.
3. No caso concreto, a genitora da vítima solicitou auxílio técnico a
terceiro para a gravação de conversas realizadas através de terminal
telefônico de sua residência, na qualidade de representante civil do
menor impúbere e investida no poder-dever de proteção e vigilância
do filho, não havendo ilicitude na gravação. Dada a absoluta
incapacidade da vítima para os atos da vida civil - e ante a notícia de
que estava sendo vítima de crime de natureza hedionda - a iniciativa
da genitora de registrar conversa feita pelo filho com o autor da
conjecturada prática criminosa se assemelha à gravação de conversa
telefônica feita com a autorização de um dos interlocutores, sem
ciência do outro, quando há cometimento de delito por este último,
hipótese já reconhecida como válida pelo Supremo Tribunal Federal.
4. O recurso especial, quanto à tese de condenação com base exclusiva
na palavra da vítima, prestada na fase inquisitorial, não comporta
conhecimento, pois o recorrente olvidou de apontar o dispositivo
federal interpretado de forma divergente por outro tribunal, o que
atrai, por analogia, a aplicação da Súmula 284/STF.
5. Também quanto ao regime inicial de cumprimento de pena, o
recurso especial não comporta conhecimento, pois, apesar da oposição
dos aclaratórios, a matéria não foi apreciada pelo Tribunal de origem,
o que atrai o óbice da Súmula 211/STJ.
6. Todavia, verificada a flagrante ilegalidade na fixação do regime
inicial de cumprimento da pena, fundamentado exclusivamente na
determinação legal prevista no artigo 2º, § 1º, da Lei n. 8.072/1990, já
declarada inconstitucional, é possível a concessão de habeas corpus de
ofício para sanar a coação ilegal à liberdade de ir e vir do recorrente.
7. Com efeito, reconhecida a inconstitucionalidade do óbice contido
no § 1º do artigo 2º da Lei n. 8.072/1990, tem-se que tal preceito não
se afigura idôneo a justificar a fixação do regime mais gravoso, haja
vista que, para estabelecer o regime inicial de cumprimento de pena,
deve o magistrado avaliar o caso concreto, de acordo com os
parâmetros estabelecidos pelo artigo 33 e parágrafos, do Código
Penal.
8. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, não
provido. Habeas corpus concedido de ofício para determinar que o
23
Tribunal de Justiça avalie a possibilidade de fixar o regime inicial
diverso do fechado, consoante as diretrizes do artigo 33 do Código
Penal. (STJ Resp. nº 1026605/ES, Sexta Turma, Rel. Min. Rogerio
Schietti Cruz, DJe 13/06/2014).
Verifica-se do julgado transcrito a extensão do conceito de parte
interessada à genitora do menor, incapaz e sob a ameaça de crime. A obtenção da
gravação sem respaldo em autorização judicial foi admitida, pois produzida por
parte integrante da comunicação e para prevenção de crime hediondo.
1.1.1.4 Contraditório e ampla defesa
Previsto no artigo 5º, LV da CF, esse princípio assegura a todos
cidadãos o direito de exercer sua defesa, de maneira ampla e livre. Trata-se de
requisito primordial de qualquer estado democrático e não simplesmente uma
benesse generosamente concedida aos particulares24
.
Enquanto o contraditório assegura conhecimento, oportunidade de
defesa de interesses e consideração judicial, a ampla defesa assegura o elemento
dinâmico da bilateralidade, que é a efetiva utilização de meios e recursos pelas
partes.25
Sua formação demanda a ciência do ato processual, oportunidade para
manifestação e consideração judicial26
.
O contraditório deve ser entendido como a necessidade de ciência a
qualquer pessoa da existência de processo em seu desfavor, bem como,
possibilidade de sua manifestação nos autos do processo. A parte tem direito a
fazer prova de suas alegações, como também contraprova das alegações da parte
contrária, como forma de manifestação do princípio do contraditório no
processo27
.
Apesar da relevância do contraditório, o CPC prevê a tomada de
decisões judiciais em casos específicos sem a oitiva da outra parte. A dispensa da
manifestação, todavia, demanda a inexistência de prejuízo na decisão proferida.
24
OLIVEIRA, Pedro Miranda. Anotações sobre a garantia constitucional do juiz natual. in
Processo e constituição: estudos em homenagem ao professor José Carlos Barbosa Moreira, coord. Luiz Fux, Nelson Nery Junior e Teresa Arruda Alvim Wambier. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 557. 25
FERREIRA, William Santos. Princípios fundamentais da prova cível. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2014, p. 44. 26
FERREIRA, William Santos. Ob. Cit. p. 45. 27
NERY JUNIOR, Nelson. Ob. Cit., p. 207.
24
Neste aspecto, cita-se o artigo 557 do CPC, que trata da possibilidade do relator
do Agravo negar seguimento ao recurso pode decisão liminar, sem intimação da
parte contrária.
EMENTA DIREITO PROCESSUAL CIVIL. JUIZADO ESPECIAL
CÍVEL. CONTRATO DE CARTÃO DE CRÉDITO. PRODUÇÃO
DE PROVA PERICIAL. DESNECESSIDADE. ALEGAÇÃO DE
OFENSA AO DEVIDO PROCESSO LEGAL, AO
CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA. MATÉRIA
INFRACONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA DO RELATOR.
ART. 557, CAPUT, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
ACÓRDÃO RECORRIDO DISPONIBILIZADO EM 17.6.2010. O
art. 557, caput, do Código de Processo Civil, prevê: “O relator negará
seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente,
prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência
dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de
Tribunal Superior.” O acórdão recorrido não divergiu da
jurisprudência firmada no âmbito desta Corte, no sentido de que a
afronta aos princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do
contraditório, dos limites da coisa julgada e da prestação jurisdicional,
quando depende, para ser reconhecida como tal, da análise de normas
infraconstitucionais, configura apenas ofensa indireta ou reflexa à
Constituição da República. As razões do agravo regimental não são
aptas a infirmar os fundamentos que lastrearam a decisão agravada,
mormente no que se refere ao âmbito infraconstitucional do debate e
análise da moldura fática constante no acórdão de origem, a
inviabilizar o trânsito do recurso extraordinário. Agravo regimental
conhecido e não provido. (STF ARE nº 732.478/MT, Primeira turma,
Rel. Min. Rosa Weber, DJe 09/04/2014).
Significa a possibilidade de as partes deduzirem as alegações de
suas pretensões ou defesa, tanto no processo judicial como no administrativo,
somada a possibilidade de produção de provas e interposição de recursos28
.
Passada a introdução, com breve exposição sobre os princípios
constitucionais influentes na matéria, será abordada a aplicação do CDC nas
hipóteses propostas de ônus da prova. Para tanto, faz-se mister abordar os
28
NERY JUNIOR, Nelson. Ob. Cit., p. 244.
25
conceitos trazidos pela lei, na medida em que fornecem os subsídios para sua
interpretação.
1.2 Relação de consumo - conceitos
A identificação da relação de consumo e por consequência a
aplicação das normas do29
CDC, demanda a análise de seus elementos, em razão
da opção legislativa de conceituar os sujeitos da relação, consumidor e
fornecedor, bem como seu objeto, produtos ou serviços.
1.2.1 Consumidor
O CDC se vale de expediente pouco comum na legislação ao
estabelecer no artigo 2, os conceitos e definições de quem são os destinatários de
seu conteúdo. Essa tarefa caberia, via de regra, à doutrina, mas seu escopo é
facilitar a interpretação e aplicação de seu conteúdo.
Nessa esteira, definiu no artigo 2º consumidor como a pessoa
jurídica ou física que seja destinatário final da aquisição de um produto ou
serviço.
Art. 2º - Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou
utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Contudo, o alcance do conceito de consumidor deve ser
interpretado pela definição de destinatário final. Do contrário, estariam
equiparadas a pessoa física e a grande empresa multinacional cuja aquisição de
produtos e serviços tenha caráter negocial ou econômico, o que não é o objetivo
da lei. Essa previsão deve ser entendida como um conceito jurídico
indeterminado, a ser interpretado caso a caso pelo Poder Judiciário30
.
Questiona-se a inclusão das pessoas jurídicas no conceito de
consumidor uma vez que não seriam vulneráveis como as pessoas físicas, haja
vista possuírem meios de acesso a informações técnicas e maior possibilidade de
manejo de sua defesa.
29
MIRAGEM, Bruno. Ob. Cit., p.135. 30
CALDEIRA, Patricia. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 1ª ed., São
Paulo: Verbatim, 2009, p. 15.
26
Para a melhor definição do conceito, foram formuladas duas teorias
que visam a definir consumidor, as teorias finalista e maximalista31
. Pela teoria
finalista, o consumidor retira o bem do mercado como destinatário fático e
econômico do bem; ao passo que pela teoria maximalista bastaria a retirada do
produto do mercado para essa qualificação.
De acordo com a teoria finalista, a aquisição que vise a uma
atividade negocial, o exercício de atividade comercial por meio de um produto ou
serviço, não deve ser considerada como relação de consumo. Seria o consumo
não profissional, para uso próprio e de sua família, limitando sua aplicação à
parte mais fraca da relação32
.
A compra de peças automotivas por uma transportadora, um
computador por um escritório de advocacia ou uma geladeira por um restaurante
estariam reguladas pelo direito comum.
Da mesma forma, a aquisição pelo intermediário que pretende a
revenda do bem adquirido não deve ser interpretada como relação de consumo33
.
A aquisição de produtos por um supermercado, de carros por uma revendedora
ou remédio por uma farmácia, não se enquadrariam nas previsões do CDC.
O conceito de destinatário final é informado pelo ato de fruição do
bem adquirido, que deve ser relacionada a uma necessidade pessoal e não
econômica. Esse ato negocial deve ser realizado para consumo final, para uso
próprio ou de terceiro34
.
Dessa forma, estariam excluídas do conceito de consumidor todas
as pessoas jurídicas e físicas cuja aquisição tivesse relação com a atividade
exercida. Nestes casos, o produto adquirido seria qualificado como insumo, cujo
ônus econômico seria transferido35
.
31
NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Código de defesa do consumidor interpretado, 6ª ed.,
São Paulo: Editora Verbatim, 2014, p.38 e MARQUES, Claudia Lima. Ob. Cit., p. 116. 32
MARQUES, Claudia Lima. Ob. Cit., p. 116. 33
ALMEIDA, João Batista de. A proteção jurídica do consumidor, São Paulo: Saraiva, p. 38. 34
FILOMENO, José Geraldo Brito. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado
pelos autores do anteprojeto, 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999, p. 27. 35
PINHEIRO, Juliana Santos. Problemas de direito constitucional. Gustavo Tepedino
(coordenador), Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 345.
27
Admite-se, todavia, o abrandamento dessa posição na hipótese da
presença da vulnerabilidade da pessoa jurídica ou do profissional na aquisição do
bem.
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CÓDIGO DE DEFESA
DO CONSUMIDOR PARA PROTEÇÃO DE PESSOA JURÍDICA.
TEORIA FINALISTA APROFUNDADA. REQUISITO DA
VULNERABILIDADE NÃO CARACTERIZADO.
EXIGIBILIDADE DE OBRIGAÇÃO ASSUMIDA EM MOEDA
ESTRANGEIRA. FUNDAMENTO DO ACÓRDÃO NÃO
ATACADO.
1.- A jurisprudência desta Corte tem mitigado os rigores da teoria
finalista para autorizar a incidência do Código de Defesa do
Consumidor nas hipóteses em que a parte (pessoa física ou jurídica),
embora não seja tecnicamente a destinatária final do produto ou
serviço, se apresenta em situação de vulnerabilidade.
2.- No caso dos autos, tendo o Acórdão recorrido afirmado que não se
vislumbraria a vulnerabilidade que inspira e permeia o Código de
Defesa do Consumidor, não há como reconhecer a existência de uma
relação jurídica de consumo sem reexaminar fatos e provas, o que
veda a Súmula 07/STJ.
3.- As razões do recurso especial não impugnaram todos os
fundamentos indicados pelo acórdão recorrido para admitir a
exigibilidade da obrigação assumida em moeda estrangeira, atraindo,
com relação a esse ponto, a incidência da Súmula 283/STF.
4.- Agravo Regimental a que se nega provimento. (STJ AgRg no
REsp. nº 1.149.195/PR, Terceira Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJe
01/08/2013).
A aplicabilidade das normas, dessa forma, demandaria avaliação do
caso concreto.
Sem adentrar especificamente em nenhuma teoria, o professor
Rizzatto Nunes destaca a importância de interpretar o conceito de destinatário
final para classificar quem se enquadraria na definição de consumidor.
Se o destinatário final utilizar o produto adquirido em sua atividade
econômica, sua natureza será de “bem de produção”, e o adquirente não será um
28
consumidor. Todavia, o professor admite a existência de situações nas quais essa
classificação não será suficiente.
Partindo do exemplo de da compra simultânea de uma caneta por
um aluno e por um professor, e do seu uso distinto na sala de aula, pode-se
constatar a incoerência da definição pela utilização do bem.
O aluno que utilizou a caneta para anotar a aula do professor estaria
protegido pelo CDC, ao passo que o professor ao fazer suas anotações com a
caneta precisaria se socorrer do CC para buscar proteção.
Essa distinção não possui base jurídica e ofenderia o princípio da
isonomia.
Para o professor a solução reside na análise do produto adquirido.
O CDC foi criado para regular as situações de introdução no mercado de
produtos típicos de consumo, produzidos em série, distribuídos de modo amplo
para toda a coletividade. A finalidade da utilização do bem não seria relevante e,
no exemplo das canetas, tanto o professor como o aluno estariam protegidos pela
legislação consumerista no caso de algum problema36
.
Para a teoria maximalista, basta a retirada do bem do mercado para
que esteja presente a figura do consumidor. A destinação do bem ou natureza do
seu uso não interferem na definição do conceito. O CDC seria uma legislação
para regular o consumo, estendendo ao máximo as definições de consumidor, de
maneira objetiva37
.
Bastaria, dessa forma, que o consumidor fosse o destinatário fático
do produto ou serviço, que o retira do mercado e o utiliza em sua casa ou em seu
escritório38
.
Essa definição não contemplaria a miríade de hipóteses presentes
no desenrolar do mercado de consumo, bem como não seriam aplicadas a
contento as regras protetivas39
.
36
NUNES, Rizzatto. Ob. Cit., p.126/128. 37
MARQUES, Claudia Lima. Ob. Cit. p. 116. 38
CALDEIRA, Patricia. Ob. Cit., p. 18. 39
PINHEIRO, Juliana Santos. Ob. Cit., p. 337.
29
Parte relevante da definição de consumidor reside no parágrafo
único do artigo 2º, ao equiparar ao consumidor, a coletividade de pessoas, ainda
que indetermináveis que tenha intervindo na relação de consumo. A relação
jurídica entre as partes não precisa ser um ato de consumo, mas uma
subordinação aos efeitos da ação do fornecedor no mercado40
.
CIVIL. PROCESSO CIVIL E CONSUMIDOR.
ADMINISTRADORA DE SHOPPING CENTER. EXPLOSÃO POR
VAZAMENTO DE GÁS. CADEIA DE FORNECIMENTO.
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. EMPREGADO DO
FORNECEDOR. FIGURA DO CONSUMIDOR POR
EQUIPARAÇÃO. APLICAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.
EXISTÊNCIA DE RELAÇÃO JURÍDICA ESPECÍFICA. DANOS
MORAIS. VALOR. REVISÃO EM SEDE DE RECURSO
ESPECIAL. IMPOSSIBILIDADE. MONTANTE RAZOÁVEL.
DISPOSITIVOS LEGAIS ANALISADOS: ARTS. 2º, 3º, 7º,
PARÁGRAFO ÚNICO, 17 E 25 DO CDC; E 21, PARÁGRAFO
ÚNICO, DO CPC.
1. Ação ajuizada em 13.04.1999. Recurso especial concluso ao
gabinete da Relatora em 14.03.2013.
2. Recurso especial em que se discute a extensão da figura do
consumidor por equiparação prevista no art. 17 do CDC.
3. Os arts. 7º, parágrafo único, e 25 do CDC impõem a todos os
integrantes da cadeia de fornecimento a responsabilidade solidária
pelos danos causados por fato ou vício do produto ou serviço.
4. O art. 17 do CDC prevê a figura do consumidor por equiparação
(bystander), sujeitando à proteção do CDC aqueles que, embora não
tenham participado diretamente da relação de consumo, sejam vítimas
de evento danoso decorrente dessa relação. Todavia, caracterização do
consumidor por equiparação possui como pressuposto a ausência de
vínculo jurídico entre fornecedor e vítima; caso contrário, existente
uma relação jurídica entre as partes, é com base nela que se deverá
apurar eventual responsabilidade pelo evento danoso.
5. Hipótese em que fornecedor e vítima mantinham uma relação
jurídica específica, de natureza trabalhista, circunstância que obsta a
40
MIRAGEM, Bruno. Ob. Cit., p. 140.
30
aplicação do art. 17 do CDC, impedindo seja a empregada equiparada
à condição de consumidora frente à sua própria empregadora.
6. A indenização por danos morais somente comporta revisão em sede
de recurso especial nas hipóteses em que o valor fixado se mostrar
irrisório ou excessivo. Precedentes.
7. Nos termos do art. 21, parágrafo único, do CPC, se um litigante
decair de parte mínima do pedido, o outro responderá, por inteiro,
pelas verbas de sucumbência.
8. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, desprovido.
(STJ Resp. nº 1370139/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy
Andrighi, DJe 12/12/2013).
Conforme se verifica do julgado acima, a preocupação do
legislador com a coletividade de consumidores expostos às práticas dos
fornecedores pode ser comprovada no artigo 17 que equipara ao consumidor,
todas as vítimas de um acidente de consumo.
O mesmo sentido se observa no artigo 29 CDC, ao tratar das
práticas comerciais. São equiparados ao consumidor toda e qualquer pessoa que
seja exposta às práticas abusivas previstas no Capítulo V, CDC. Um claro
exemplo seria a publicidade enganosa, ainda que nenhum consumidor tenha
reclamado do seu teor. Caberá ao Ministério Púbico a adoção das medidas
necessárias para coibir tal prática, em defesa da coletividade de consumidores41
.
A jurisprudência brasileira tem adotado a teoria finalista, conforme
se verifica do julgado abaixo transcrito:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL.
RESPONSABILIDADE CIVIL. CONTRATO DE ABERTURA DE
CRÉDITO E NOVAÇÃO DE DÍVIDA. RELAÇÃO DE CONSUMO.
TEORIA FINALISTA MITIGADA. INSCRIÇÃO INDEVIDA EM
CADASTRO DE INADIMPLENTES. VIOLAÇÃO DO ARTIGO
535 DO CPC. SÚMULA 7/STJ. DANO MORAL.
RAZOABILIDADE.
1.- Tendo o Tribunal de origem fundamentado o posicionamento
adotado com elementos suficientes à resolução da lide, não há que se
falar em ofensa ao artigo 535, do CPC.
41
NUNES, Rizzatto. Ob. Cit., p. 134.
31
2.- A jurisprudência desta Corte tem mitigado a teoria finalista para
autorizar a incidência do Código de Defesa do Consumidor nas
hipóteses em que a parte (pessoa física ou jurídica), embora não seja
tecnicamente a destinatária final do produto ou serviço, se apresenta
em situação de vulnerabilidade. Precedentes.
3.- A convicção a que chegou o Acórdão acerca do dano e do aval
decorreu da análise do conjunto fático-probatório, e o acolhimento da
pretensão recursal demandaria o reexame do mencionado suporte,
obstando a admissibilidade do Especial os enunciados 5 e 7 da Súmula
desta Corte Superior.
4.- A intervenção do STJ, Corte de caráter nacional, destinada a firmar
interpretação geral do Direito Federal para todo o país e não para a
revisão de questões de interesse individual, no caso de questionamento
do valor fixado para o dano moral, somente é admissível quando o
valor fixado pelo Tribunal de origem, cumprindo o duplo grau de
jurisdição, se mostre teratológico, por irrisório ou abusivo.
5.- Inocorrência de teratologia no caso concreto, em que foi fixado o
valor de indenização em R$ R$ 35.000,00 (trinta e cinco mil reais),
devido pelo ora Agravante ao autor, a título de danos morais
decorrentes de inscrição indevida em cadastro de proteção ao crédito.
6.- Agravo Regimental improvido.(STJ AgRg no REsp. nº
1.413.889/SC, Terceira Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJe.
02/05/2014).
Todavia, vale ressaltar que aplicação dessa teoria demanda atenção
às particularidades de cada caso, posição esta partilhada neste estudo.
1.2.2 Fornecedor
Novamente, neste ponto, o CDC estabelece conceito ao determinar
quem são fornecedores. Para mitigar o risco de não o fazer a contento, a redação
do artigo 3º é extensa e abrangente.
Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada,
nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que
desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção,
transformação, importação, exportação, distribuição ou
comercialização de produtos ou prestação de serviços.
32
Conforme se apreende da redação, abrange toda e qualquer pessoa
que introduza bem no mercado de consumo, seja ela física ou jurídica, de esfera
privada ou pública, nacional ou estrangeira. O traço característico é o
desenvolvimento de atividades tipicamente profissionais, além da
habitualidade42
.
Qualquer ato mercantil praticado, presente o consumidor por
evidente, é regulado pelo CDC, seja pela própria pessoa física, desde que dotada
de capacidade conforme artigo 2º, do Código Civil – CC, ou por pessoas
jurídicas, sob qualquer forma de organização, nos termos do artigo 16, I, do CC,
como sociedades comerciais, sociedades civis e demais previsões.
O CDC, ao estabelecer como fornecedora qualquer pessoa jurídica
de direito público, alcança todas as formas de organização, sejam sociedades de
economia mista ou empresas públicas, nas formas do artigo 7º do CC.
O artigo 3º do CDC, após determinar quem se qualifica como
fornecedor, exemplifica quais as atividades que exercidas por tais pessoas
completariam a definição. Novamente, o artigo traz extensa previsão, desde
atividades de manufatura como produção, montagem, criação e construção, até
atividades mercantis, como importação, exportação, distribuição ou
comercialização.
Feita a definição dos partícipes da relação de consumo, faz-se
necessário adentrar-se no seu objeto.
1.2.3 Produtos e serviços
Quanto às definições de produtos e serviços, §§1º e 2º do artigo 3º,
novamente o legislador teve o cuidado de traçar os conceitos para facilitar sua
interpretação. A redação é ampla e genérica, no intuito de englobar todas
possíveis hipóteses.
Classifica-se como produto todo e qualquer bem móvel ou imóvel,
material ou imaterial, resultado da produção no mercado de consumo,
equiparando sua definição aos critérios já utilizados no mercado em geral43
.
42
MARQUES, Claudia Lima. Ob. Cit., p. 179. 43
NUNES, Rizzatto. Ob. Cit., p. 139.
33
Serviço é toda e qualquer atividade prestada ou fornecida no mercado de
consumo44
mediante remuneração. A única ressalva seriam os serviços prestados
sob a égide de uma relação empregatícia, as quais são tuteladas pela legislação
correlata.
Portanto, definidas as características da relação de consumo e a
aplicabilidade do CDC, serão analisados seus princípios.
1.3 Princípios do Código de Defesa do Consumidor
A descrição dos princípios que regem o direito do consumidor é
extensa e minudente, conforme se verifica da redação do artigo 4º do CDC:
Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por
objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito
à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses
econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a
transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os
seguintes princípios:
I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de
consumo;
II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o
consumidor:
a) por iniciativa direta;
b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações
representativas;
c) pela presença do Estado no mercado de consumo;
d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de
qualidade, segurança, durabilidade e desempenho.
III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de
consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a
necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a
viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica, sempre
com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e
fornecedores;
IV - educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto
aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de
consumo;
44
NUNES, Rizzatto. Ob. Cit., p. 144
34
V - incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de
controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como
de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo;
VI - coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no
mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e utilização
indevida de inventos e criações industriais das marcas e nomes
comerciais e signos distintivos, que possam causar prejuízos aos
consumidores;
VII - racionalização e melhoria dos serviços públicos;
VIII - estudo constante das modificações do mercado de consumo.
Dessa lista podem-se destacar algumas observações relevantes, a
seguir abordadas.
1.3.1 Vulnerabilidade
Conforme já abordado, o traço mais característico do consumidor é
sua vulnerabilidade, no sentido de que se submete – sem opção – aos poderes dos
titulares dos meios de produção, os empresários45
.
Esse desequilíbrio é o ponto central da proteção trazida pela lei,
justificativa para todas diretrizes que visam à equiparação das partes, à efetiva
aplicação da isonomia. Constitui-se como presunção legal absoluta decorrente do
desequilíbrio existente entre consumidores e fornecedores, conferindo proteção
ao sujeito mais fraco da relação de consumo46
.
A vulnerabilidade do consumidor decorre tanto de sua situação
financeira, na medida em que não pode ser comparado em termos financeiros aos
fornecedores, como também ao seu desconhecimento técnico dos produtos e
serviços disponíveis no mercado.
De acordo com Bruno Miragem, citando Claudia Lima Marques,
Sua classificação pode ser dividida em quatro espécies, como técnica, jurídica,
fática e informacional.
45
COMPARATO, Fabio Konder. A proteção do consumidor: importante capítulo o Direito
Econômico, Revista de Direito Mercantil, nº 15/16, ano XIII, 1974. 46
MIRAGEM, Bruno. Ob. Cit., p. 114.
35
Na vulnerabilidade técnica47
encontra-se a ausência de
conhecimento técnico específico do consumidor sobre o produto ou serviço
adquirido, ao contrário do fornecedor, possuidor de todo esse conhecimento48
. O
fornecedor, muitas vezes será o responsável pela criação e fabricação do produto
e dominará por completo todas as características técnicas e tecnológicas
envolvidas. Ainda que o consumidor tenha conhecimento de como utilizar o
produto, isso não significa que domine seus detalhes técnicos ou até conheça
todas suas funcionalidades a fundo.
Uma dona de casa pode conhecer a funcionalidade de um
eletrodoméstico como máquina de lavar roupas, mas desconhece por completo
suas características técnicas. Por outro lado, essa mesma consumidora pode
adquirir uma moderna televisão e, além de desconhecer suas características
técnicas, também poderá utilizá-la de maneira básica e desconhecer suas demais
possibilidades de uso.
A vulnerabilidade jurídica49
consiste na falta de conhecimento dos
direitos e deveres do consumidor, bem como das consequências jurídicas dos
contratos que celebra50
ou das relações jurídicas que estabelece. Esse
desconhecimento se estende a questões financeiras e econômicas, cujo impacto
pode ser verificado no extenso endividamento dos consumidores ao contrair
empréstimos bancários, parcelar compras e até decidirem fazer o pagamento
mínimo das faturas de cartão de crédito. Em todas essas situações descritas, os
consumidores não tem conhecimento das regras financeiras das obrigações,
muito menos dos impactos em seu patrimônio.
Por fim, a vulnerabilidade fática tem sua amplitude ampliada pela
realidade de cada consumidor. Traduz-se na verificação das características
pessoais de cada consumidor em relação ao fornecedor, sendo a mais comum à
vulnerabilidade econômica.51
O consumidor encontra-se em posição de
47
MARQUES, Claudia Lima. Ob. Cit., p. 229. 48
MIRAGEM, Bruno. Ob. Cit., p. 115. 49
MARQUES, Claudia Lima. Ob. Cit., p. 229 50
MIRAGEM, Bruno. Ob. Cit., p. 115. 51
MIRAGEM, Bruno. Ob. Cit., p. 116.
36
desvantagem frente às grandes empresas multinacionais, redes de lojas e serviços
em geral.
Essa situação pode ser informada por características pessoais do
consumidor, dentre as quais se cite o consumidor criança, o idoso, o analfabeto e
até o doente52
.
Por fim, a vulnerabilidade informacional seria a decorrente da
publicidade dirigida ao consumidor, seja pela mídia impressa, televisiva,
radiofônica ou eletrônica. Ao consumidor não é possível atestar a veracidade53
das informações prestadas pelo fornecedor, principalmente pelas técnicas de
marketing e publicidade, cujo resultado sempre persegue a sedução e
convencimento do consumidor.
Sua fragilidade reside na impossibilidade de negociar ou discutir as
bases de uma aquisição que pretende fazer ou sequer conhecer os detalhes da
oferta ou produto oferecido. Essa situação enfraquece o consumidor e
desequilibra a relação e seu reconhecimento facilita a aplicação das normas
protetivas, à procura do fundamento da igualdade e da justiça equitativa54
.
Limita-se a escolha na aquisição de produtos ou serviços àqueles
disponíveis no mercado, cuja inserção e produção foram decididas
unilateralmente pelo fornecedor, com base em seus interesses55
.
Para o fornecedor, o consumidor é o destinatário final de seu
produto, mas inserido em um grande volume de pessoas, sem qualquer distinção
ou característica de identidade individual.
A relevância do consumidor reside na qualidade de integrante de
uma coletividade, o público alvo, convencionado para aumentar ou melhorar o
resultado das vendas do produto ou serviço, como um dado estatístico em um
plano de negócios.
52
MIRAGEM, Bruno. Ob. Cit., p. 116. 53
MIRAGEM, Bruno. Ob. Cit., p. 116. 54
MARQUES, Claudia Lima. Ob. Cit. p. 228/229. 55
NUNES, Rizzatto. Ob. Cit., p. 179.
37
Ao passo que para o consumidor, o fornecedor é muitas vezes parte
fundamental de seu cotidiano, única possibilidade de aquisição do bem
pretendido.
Essa drástica diferença insere o consumidor em uma posição de
extrema fragilidade, cuja compensação ocorre pelas normas protetivas do CDC,
que superam o simples reconhecimento de sua vulnerabilidade.
Destas, destacam-se a facilitação do acesso aos instrumentos de
defesa, estabelecimento da responsabilidade objetiva do fornecedor e inversão do
ônus da prova56
, a seguir abordadas.
Contudo, vale a ressalva da necessidade de observar e considerar as
situações concretas da relação. As práticas comerciais dos fornecedores já se
adequaram às disposições do CDC, a situação atual dos consumidores é
indiscutivelmente mais benéfica.
Outra questão relevante é o nível de competição do mercado,
resultante do aumento da quantidade de fornecedores e ofertas à disposição.
Quanto maior a competição57
entre os fornecedores, melhores
condições são oferecidas aos consumidores de seus produtos e serviços. Uma das
56
FILOMENO, José Geraldo. Ob. Cit., p.. 55. 57
Os teóricos clássicos de Chicago não hesitam em admitir a existência de monopólios ou de
restrições à concorrência, casos esses sejam instrumentais relativamente ao objetivo definido: a
maximização da eficiência. (...) Por enquanto, basta observar que, para os economistas
neoclássicos, eficiência é a habilidade de produzir a custos menores e, consequentemente,
reduzir os preços para os consumidores. (...) Consequentemente, não se pode confiar
exclusivamente na eficiência econômica para garantia dos interesses dos consumidores. É
preciso ter certeza de que esses ganhos de eficiência serão efetivamente repartidos com os
consumidores e não simplesmente apropriados pelo monopolista. Assim, andou bem o
legislador brasileiro que, ao tratar do controle das concentrações, impôs como requisito para sua
aprovação não apenas a demonstração do ganho de eficiência (art. 54, §1º, inc. I, letra “c”, da
Lei n. 8.884, de 11 de junho de 1994), mas, também, que os benefícios decorrentes da
concentração (entre eles os benefícios decorrentes da eficiência econômica, representado pela
diminuição de custos) “sejam distribuídos equitativamente entre os seus participantes, de um
lado, e os consumidores ou usuários finais, de outro” (art. 54, inc. II).Ocorre que a única
maneira efetiva de garantir essa repartição de benefícios com os consumidores é a proteção do
sistema concorrencial, isto é, da existência de concorrência, efetiva ou ao menos potencial. Só
ela pode garantir a preocupação constante dos agentes econômicos com a redução de preços,
melhoria da produtividade e qualidade dos bens e serviços. (FILHO, Calixto Salomão. Direito
Concorrencial, as estruturas, 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2007, p. 23, 33).
38
garantias do consumidor, portanto, é a livre concorrência a obrigar o fornecedor a
disponibilizar produtos e serviços melhores do que seus concorrentes58
.
A proteção dos consumidores, ainda que indiretamente pelo
estabelecimento de regras que atuem na salvaguarda da concorrência, sob a égide
da consecução de efetiva melhoria nos preços e eficiência do mercado, implica a
necessidade de avaliação do caso concreto.
O local da residência do consumidor pode influir na conclusão
sobre sua vulnerabilidade ou sobre sua falta de opção de escolha entre
fornecedores. As grandes cidades brasileiras oferecem uma maior gama de
possibilidades de escolha, o que indubitavelmente acarreta maior competição
entre os fornecedores e oferecimento de melhores condições aos consumidores.
1.3.2 Ação governamental
O Estado deve assumir posição ativa no estabelecimento de direitos
aos consumidores e deveres aos fornecedores para que respeitem e realizem tais
direitos59
.
A atuação governamental (alínea a) defesa dos consumidores
reflete na criação de órgãos específicos de implementação dessa política, tais
como os PROCONS possuidores de estrutura para orientar e educar os
consumidores, bem como fiscalizar as atividades dos fornecedores, legitimados60
,
inclusive, a propor ações coletivas.
Paralelamente à atuação governamental, fomenta-se a criação de
associações civis (alínea b), representativas dos consumidores no mesmo sentido
da atuação governamental como, por exemplo, o IDEC – Instituto Brasileiro de
Defesa do Consumidor.
No tocante à presença do Estado no mercado de consumo, entenda-
se como atuação no sentido de sua organização e garantia da livre concorrência e
iniciativa, nos termos do artigo 170 da CF61
. Essa atividade tem como órgão de
58
NUNES, Rizzatto. Ob. Cit., p. 104. 59
MIRAGEM, Bruno. Ob. Cit., p. 131. 60
FILOMENO, José Geraldo. Ob. Cit., p. 14. 61
FILOMENO, José Geraldo. Ob. Cit., p. 59.
39
relevante atuação o CADE – Conselho Administrativo de Defesa da
Concorrência, fiscalizando monopólios, abusos do poder econômico.
Vale mencionar, a presença a que alude o texto não se equipara a
participação do estado no mercado como fornecedor. Apesar de se admitir a
aplicação do CDC nas relações dos consumidores com as concessionárias de
serviço público, a justificativa para tanto não se encontra nesse princípio.
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO
EM RECURSO ESPECIAL. FORNECIMENTO DE ÁGUA.
RELAÇÃO DE CONSUMO. APLICAÇÃO DO CDC. VIOLAÇÃO
DO HIDRÔMETRO NÃO COMPROVADA. PRETENSÃO DE
REEXAME DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. NÃO
CABIMENTO. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO NÃO PROVIDO.
1. "A jurisprudência desta Corte possui entendimento pacífico no
sentido de que a relação entre concessionária de serviço público e o
usuário final, para o fornecimento de serviços públicos essenciais, tais
como água e energia, é consumerista, sendo cabível a aplicação do
Código de Defesa do Consumidor" (AgRg no AREsp 354.991/RJ,
Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, Segunda Turma, DJe
11/09/2013).
2. O Tribunal a quo entendeu que não houve violação no hidrômetro.
Para afastar a conclusão adotada pelas instâncias ordinárias,
necessária seria a incursão no conjunto fático-probatório dos autos, o
que é inviável ao Superior Tribunal de Justiça, diante do óbice contido
no verbete sumular 7/STJ.
3. Agravo regimental não provido. (STJ, AgRg no AREsp. nº
372.327/RJ, Primeira Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe
18/06/2014).
A aplicação do CDC aos serviços públicos essenciais decorre da
definição de consumidor, conforme será abordado adiante e da própria previsão
do artigo 22 do CDC.
Quanto à garantia dos produtos e serviços com padrões adequados
de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho, remete-se (inciso c) à
criação de normas técnicas, organismos de controle técnico e fiscalização do
cumprimento de tais normas. Esse escopo é atingido com órgãos como o Sistema
40
Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial - SINMETRO,
adoção das normas técnicas padronizadoras editadas pela Associação Brasileira
de Normas Técnicas - ABNT e também das International Organization for
Standardization – ISO62
.
Por fim, a garantia dos padrões dos produtos e serviços (alínea d),
se traduz como princípio da confiança63
, uma vez que o Estado age diretamente
na relação de consumo para garantir ao consumidor, produtos e serviços de
qualidade, seguros e duráveis, bem como garante regras contratuais protetivas e
garantidoras do equilíbrio entre as partes.
1.3.3 Harmonização dos interesses
A proteção dos consumidores não deve acarretar o atraso
tecnológico ou impedir o desenvolvimento do mercado produtor. Deve-se buscar
compatibilizar os interesses de acordo com o bom senso64
. O estabelecimento da
defesa do consumidor como um dos princípios da livre iniciativa, artigo 170, V
da CF, atua como limitação do regime liberal-capitalista65
.
Exigir a boa-fé na relação entre consumidores e fornecedores,
significa pautar a relação, desde seu nascedouro até sua extinção com lealdade66
.
Essa lealdade irradia seus efeitos para a oferta e publicidade do fornecedor,
geradoras de expectativa no consumidor, bem como na correta e prévia
informação dos detalhes da relação jurídica que será estabelecida, nos termos do
artigo 46 do CDC67
.
Inclui-se no conceito, o dever de esclarecimento técnico68
do
consumidor, informação dos riscos do serviço, modo de prestação assim como
utilidade do serviço ou produto.
62
FILOMENO, Jose Geraldo Brito. Ob. Cit. p. 59. 63
MARQUES, Claudia Lima. Ob. Cit. p. 232. 64
FILOMENO, José Geraldo Brito. Ob. Cit. p. 60. 65
MARQUES, Claudia Lima. Ob. Citi, p. 232. 66
MIRAGEM, Bruno. Ob. Cit., p. 126. 67
Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se
não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os
respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e
alcance. 68
MIRAGEM, Bruno. Ob. Cit., p. 127.
41
Essa harmonização também impede o abuso do direito do
consumidor, pois o escopo do CDC não é impor gravames excessivos ao
fornecedor, mas somente aqueles vinculados à natureza de sua atividade e à
proteção dos interesses legítimos dos sujeitos da relação69
.
Os interesses devem se harmonizar e não se contrapor. Consumidor
e fornecedor devem partilhar o objetivo comum de praticar seus atos típicos de
aquisição e fornecimento no sentido de aumentar e partilhar as riquezas e
benefícios daí decorrentes70
.
O equilíbrio entre na relação entre consumidor e fornecedor
também será atingido na regulação da relação contratual, em busca do princípio
da equidade contratual. Dessa forma, o CDC estabelece a proibição de utilização
de cláusulas abusivas ou incompatíveis com a boa-fé e equidade nos termos do
artigo 51, IV. O controle da abusividade das cláusulas é bem efetivo pela redação
do artigo 51 do CDC, especialmente pelo fato do rol ser exemplificativo, nos
termos do inciso XV, abrindo a possibilidade de interpretação de cada caso
específico.
1.3.4 Educação e informação
O teor e amplitude das disposições do CDC devem ser informados
a toda coletividade, pelo Estado, escolas, meios de comunicação, entidades
associativas e até os próprios fornecedores.
Abarca desde a educação formal ministradas em escolas ou
distribuição de material informativo, como também a informal71
, veiculada por
meios de comunicação em geral, revistas, televisão, rádios, jornais, internet etc.
Importante mencionar a Lei nº 12.291/201072
que obriga todo estabelecimento
69
MIRAGEM, Bruno. Ob. Cit., p. 133. 70
ALVIM, Arruda. Ob. Cit., p. 47. 71
FILOMENO, José Geraldo Brito. Ob. Cit. p. 17. 72
Art. 1o São os estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços obrigados a manter, em
local visível e de fácil acesso ao público, 1 (um) exemplar do Código de Defesa do Consumidor.
Art. 2o
O não cumprimento do disposto nesta Lei implicará as seguintes penalidades, a serem
aplicadas aos infratores pela autoridade administrativa no âmbito de sua atribuição:
I - multa no montante de até R$ 1.064,10 (mil e sessenta e quatro reais e dez centavos);
II – (VETADO); e
III – (VETADO).
Art. 3o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
42
comercial a dispor, em local visível, de um exemplar do CDC para consulta dos
consumidores.
1.3.5 Meios de controle de qualidade e segurança e solução de
conflitos
As normas técnicas citadas acima garantem a qualidade e segurança
mínima dos produtos, caberá ao fornecedor o esmero e esforço no sentido de
atingir a melhor qualidade possível de seus produtos. Essa conduta, em verdade,
destina-se ao melhor desempenho comercial do fornecedor cujo resultado será
positivo, também, ao consumidor, na melhoria de sua satisfação73
.
Deverá o fornecedor disponibilizar ao consumidor canais
competentes74
e efetivos para atendimento e solução de conflitos e dúvidas.
Normalmente conhecidos como Serviço de Atendimento ao Consumidor – SAC,
esse serviço deve ser disponibilizado por todos os meios possíveis, via telefone,
correio tradicional, correio eletrônico, internet e até, atualmente, aplicativos de
telefones celulares.
1.3.6 Coibição de abusos
Este inciso remete ao artigo 170 da Constituição Federal,
disciplinador da livre iniciativa. Com efeito, o ordenamento jurídico brasileiro
dispõe de legislação e órgãos de proteção da concorrência como o já citado
CADE, a Lei de Propriedade Industrial nº 9.279 de 1996, assim como a Lei
Antitruste nº 8.884/94.
Conforme já mencionado anteriormente, garantir a plena
concorrência entre os fornecedores e evitar abusos no mercado, beneficiam, em
última análise, os consumidores.
1.3.7 Racionalização e melhoria dos serviços públicos
O princípio em questão trata da matéria disposta no artigo 22 do
CDC, que estabelece:
Art. 22 Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias,
permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são
73
FILOMENO, José Geraldo Brito. Ob. Cit. p. 65. 74
FILOMENO, José Geraldo Brito. Ob. Cit. p. 18.
43
obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto
aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das
obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas
compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma
prevista neste código.
Portanto, as normas protetivas do consumidor serão aplicadas no
fornecimento de serviços essenciais pelo ente público ou na forma do artigo 175
da CF.
Entretanto, no tocante à necessidade de tutela dos direitos do
consumidor, o CDC trouxe relevantes alterações.
1.3.8 Facilitação de defesa
Sem embargo do reconhecimento da vulnerabilidade do
consumidor, o CDC traz previsões mais efetivas para equilibrar a relação de
consumo. Uma das suas grandes inovações é o estabelecimento de regras
protetivas específicas como garantia contra defeitos e fatos do produto ou
serviço, direito de devolução, prazos especiais e outras questões habituais e
frequentes numa relação de consumo.
Mas a constante modificação e evolução das formas de comércio
jamais poderiam ser acompanhadas por mudanças legislativas concomitantes. O
trabalho legislativo não é tão dinâmico e rápido como a evolução do comércio e
suas alterações.
Dessa forma, optou o legislador por estabelecer critérios e
previsões abertas, que norteiam a forma como deverá ser interpretada uma
relação de consumo.
O artigo 6º trata dos direitos básicos do consumidor, mas neste
estudo a análise será dirigida ao seu inciso VIII, com a seguinte redação:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão
do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do
juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente,
segundo as regras ordinárias de experiências;
44
Na primeira parte do inciso VIII, consta a facilitação da defesa dos
direitos do consumidor. O objetivo é possibilitar a efetiva atividade processual e
consequente proteção judiciária às relações de consumo, de forma a tornar
possível a concreta e efetiva realização de todos os direitos outorgados ao
consumidor e a real reparação aos danos sofridos pelo consumidor com
disposições expressas referentes à defesa deste em juízo (artigos 81 a 89 e 91 a
102 respectivamente) 75
.
Essa orientação pode ser constatada ao longo do Código como nas
previsões de alargamento da legitimidade ativa estendida ao adquirente (artigo
2º), à coletividade (artigo 2º, § único), às vítimas do evento (artigo 17) e ao
consumidor exposto (artigo 29), além da legitimação ampla do artigo 82,
admissão de qualquer tipo de tutela judicial do artigo 83 e estabelecimento do
foro do consumidor como competente para propositura de ações, artigo 101.
AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.
EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA TERRITORIAL. BRASIL
TELECOM S/A. CONTRATO DE PARTICIPAÇÃO FINANCEIRA.
APLICAÇÃO DO CDC. FACILITAÇÃO DOS DIREITOS DO
CONSUMIDOR. AÇÃO QUE PODE SER PROPOSTA NO
DOMICÍLIO DO AUTOR.
1.- Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor ao contrato em
análise, uma vez que, acobertado pela relação societária, há clara
relação de consumo na espécie. Precedente.
2. - A jurisprudência desta Corte é no sentido de que "a facilitação da
defesa dos direitos do consumidor em juízo possibilita que este
proponha ação em seu próprio domicílio" (Resp. 1.084.036/MG, Rel.
Min. NANCY ANDRIGHI, DJ 17.3.09), e de que, tratando-se de
relação de consumo, a competência é absoluta, podendo ser declinada
de ofício.
3.- O agravo não trouxe nenhum argumento novo capaz de modificar
o decidido, que se mantém por seus próprios fundamentos.
4.- Agravo Regimental improvido. (AgRg no REsp. nº 1432968/PR,
Terceira Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJe 01/02/2014).
75
ALVIM, Arruda. Ob. Cit. p. 68.
45
Todavia, a segunda parte do inciso VIII, que trata da possibilidade
de inversão do ônus da prova, acarreta maiores discussões e será abordada mais
detidamente.
Antes de se abordar a inversão do ônus da prova, é fundamental
adentrar-se na questão da responsabilidade civil no CDC, cuja natureza tem
influência no estudo da possibilidade de inversão do ônus da prova.
1.4 Responsabilidade civil
1.4.1 Conceito e elementos
A responsabilidade civil abrange todas as hipóteses nas quais uma
pessoa natural ou jurídica, deva arcar com as consequências de um ato, fato ou
negócios danoso76
. Designa o dever que alguém tem no sentido de reparar o
prejuízo decorrente da violação de outro dever jurídico, pressupõe uma obrigação
descumprida77
.
Trata-se da regra legal para a reparação do dano causado a outrem.
Essa obrigação de ressarcir pode decorrer da inexecução de um contrato ou pela
ocorrência de um fato causador de dano78
.
Objetiva restabelecer o lesado à situação anterior ao dano, por meio
da reparação dos danos sofridos79
, recuperar o equilíbrio jurídico econômico
existente entre agente e vítima. Maria Helena Diniz80
traz uma valiosa
colaboração para definir a responsabilidade civil como:
Aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar dano moral ou
patrimonial causado a terceiros em razão de ato do próprio imputado,
de pessoa por quem ele responde, ou de fato de coisa ou animal sob
sua guarda ou, ainda, de simples imposição legal.
Trata-se de uma relação obrigacional, cujo objeto é o ressarcimento
do dano sofrido.
76
VENOSA. Silvio de Salvo. Direito Civil, responsabilidade civil. 14ª Ed., São Paulo: Atlas,
2014, p. 1. 77
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 11ª ed., São Paulo:
Atlas, 2014, p., 14. 78
GOMES, Orlando. Obrigações, 11ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 19. 79
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. vol. 7, 28ª ed., São Paulo: Saraiva,
2014, p. 24. 80
DINIZ, Maria Helena. Ob. Cit. p. 50.
46
1.4.2 Pressupostos
Para que se configure a responsabilidade e o dever de indenizar,
devem estar presentes uma ação ou omissão do agente, um dano patrimonial ou
moral e o nexo de causalidade entre ambos.
1.4.2.1 Ação
Define-se ação como um comportamento positivo, como a
destruição de algo81
, prática do ato que não deveria ocorrer, e ato omissivo é
abstenção da prática de determinada conduta82
, inatividade cuja observância
impediria a eclosão do dano.
A conduta geradora da obrigação de indenizar deve consistir em um
ato comissivo ou omissivo, qualificada juridicamente como ato ilícito, artigo 187
CC. Por evidente, ausente uma conduta geradora de dano, não há que se perquirir
sobre reparação de danos.
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO
EM RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL.
ACIDENTE DE TRÂNSITO. AUSÊNCIA DE AFRONTA AO ART.
458 DO CPC. FALTA DE COMPROVAÇÃO DA CONDUTA
CULPOSA. NÃO CONFIGURAÇÃO DO NEXO CAUSAL.
REEXAME DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO DOS
AUTOS. INADMISSIBILIDADE. SÚMULA N. 7/STJ. DECISÃO
MANTIDA.
1. Inexiste afronta ao art. 458 do CPC quando o acórdão recorrido
analisou todas as questões pertinentes para a solução da lide,
pronunciando-se, de forma clara e suficiente, sobre a controvérsia
estabelecida nos autos.
2. O recurso especial não comporta o exame de questões que
impliquem revolvimento do contexto fático-probatório dos autos, a
teor do que dispõe a Súmula n. 7 do STJ.
3. No caso concreto, o Tribunal de origem examinou as peculiaridades
fáticas do caso para concluir pela falta de comprovação da conduta
ilícita dos agravados. Alterar esse entendimento demandaria o
81
CAVALIERI FILHO, Sergio. Ob. Cit., p. 38. 82
DINIZ, Maria Helena, ob. Cit., p. 56.
47
reexame das provas produzidas nos autos, o que é vedado em recurso
especial.
4. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no AREsp nº
428.532/RS, Quarta Turma, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, DJe
10/06/2014).
Conforme se verifica do julgado, os danos foram comprovados,
mas não existe conduta atribuível ao agente que possa ter causado tais danos.
1.4.2.2 Dano
Além do ato do causador, deve estar presente um dano, de natureza
moral ou patrimonial. Como a responsabilidade civil se constitui no dever de
reparação, somente na presença de uma lesão poderá ser reconhecido o deve de
indenizar.
Indenização sem dano equivale a enriquecimento ilícito83
, ainda
que presente a conduta lesiva do agente. Portanto é imprescindível que se
comprove o dano, para que exista suporte lógico e fático para a reparação.
APELAÇÃO. COMPRA E VENDA. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO
POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. ALEGAÇÃO DE
IMPOSSIBILIDADE DE REALIZAR TRANSFERÊNCIA POR TER
A VENDEDORA DÍVIDA COM A RECEITA FEDERAL.
AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE QUE OS DANOS
SUPORTADOS DECORRERAM DA NÃO REGULARIZAÇÃO DA
SITUAÇÃO DO VEÍCULO. RECURSO IMPROVIDO. Em
princípio, cabível a imposição de condenação por danos morais
causados a pessoa jurídica, quando maculada a sua reputação, segundo
jurisprudência consolidada na Súmula 227 do STJ. Contudo, devem
ficar demonstrados nos autos fatos denotativos do abalo da reputação
da empresa. Inexiste nos presentes autos prova de que a autora perdeu
credibilidade perante seus clientes, bem como que deixou de contratar
por conta do fato narrado na petição inicial. O dano material também
não restou demonstrado. Não é possível concluir que os débitos
apontados pela apelante decorreram diretamente da impossibilidade de
transferência do caminhão. (Apelação com revisão nº 0009548-
85.2012.8.26.0048. 31ª Câmara de Direito Privado TJSP, Rel. Des.
Adilson de Araújo. julgado em 07/07/2014).
83
CAVALIERI FILHO, Sergio. Ob. Cit., p. 92.
48
O dano patrimonial corresponde a uma redução no patrimônio da
vítima, uma diferença negativa como bem denominou Aguiar Dias84
. Constitui-se
como a lesão concreta relativa à perda ou deterioração do patrimônio da vítima,
passível de avaliação pecuniária85
.
Essa diminuição abrange o patrimônio existente ou o que seriam
adquiridos, conquistados, se não existisse a ação de terceiro que impediu esse
resultado86
.
No dano moral não se verifica essa subtração patrimonial. O dano
moral se constitui na lesão de interesses não patrimoniais, inerentes à
personalidade, que constituem a essência do ser humano, independentemente de
raça, cor, fortuna, cultura, credo, sexo, idade e nacionalidade87
.
Se o dano moral não acarreta prejuízo patrimonial, ainda assim o
lesado tem direito a uma reparação, uma satisfação de cunho compensatório88
.
Até a edição da Constituição, especificamente em seu artigo 5º, V,
não existia no Brasil previsão legislativa concernente ao dano moral. O tema era
tratado apenas no tocante à liquidação do dano, como forma de apuração do valor
indenizatório na hipótese de lesão a alguns direitos fundamentais da pessoa como
a vida, a integridade física, os sentimentos, a honra, a liberdade89
.
84
Essas conclusões não são valiosas para o entendimento do conceito econômico do patrimônio.
Neste sentido, patrimônio é apenas o conjunto de bens econômicos. Fischer o define, com a
precisão de uma fórmula jurídica realmente satisfatória, como “a totalidade dos bens
economicamente úteis que se acham dentro do poder de disposição duma pessoa”.
O inconveniente de aplicar ao problema do dano patrimonial as noções derivadas do conceito
jurídico do patrimônio decorre do fato de que este não tem em conta o valor dos bens
patrimoniais, pelo que deve ser deixado de parte, para utilizar-se, em seu lugar, o conceito
econômico, de onde procede a idéia do valor. Daí a conclusão de que “o dano patrimonial
pressupõe sempre ofensa ou diminuição de certos valores econômicos”.
A idéia do interêsse (id quod interest) atende, no sistema da indenização, à noção de patrimônio
como unidade de valor. O dano se estabelece mediante o confronto entre o patrimônio realmente
existente após o dano e o que possivelmente existiria, se o dano não se tivesse produzido: o
dano é expresso pela diferença negativa encontrada nessa operação. Ob. Cit., p. 759/760 85
DINIZ, Maria Helena. Ob. Cit., p. 84. 86
GOMES, Orlando. Ob. Cit., p. 270. 87
CAVALIERI FILHO, Sergio. Ob. Cit., p. 108. 88
GOMES, Orlando. Responsabilidade Civil, Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 75. 89
CAHALI, Yussef Said. Dano moral. 4ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011,
p. 50.
49
Em verdade, como prossegue Yussef Said Cahali, o dano moral não
está previsto expressamente no atual Código Civil, mas somente regras genéricas
de proteção aos direitos da personalidade, tais como:
Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da
personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras
sanções previstas em lei.
Art. 17. O nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em
publicações ou representações que a exponham ao desprezo público,
ainda quando não haja intenção difamatória.
Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da
justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a
transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização
da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e
sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a
boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a
requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para
impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.
A questão foi resolvida com a previsão da CF, cujo texto do artigo
5º, V, bem como do inciso X, inserirem definitivamente a matéria no nosso
ordenamento jurídico. Para superar questionamentos jurisprudenciais, o Superior
Tribunal de Justiça editou a Súmula 37:
São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral
oriundos do mesmo fato.
O prejuízo transita pelo imponderável, o que dificulta a
determinação de como se efetivará a sua recomposição90
. Neste caso, trata-se de
uma forma de compensação do abalo psíquico sofrido, haja vista que não se pode
mensurar financeiramente o abalo moral.
Indenização significa eliminação do prejuízo e de suas
consequências, algo impraticável no dano moral. O pagamento em dinheiro não
equivale à dor, mas exerce dupla função, de expiação em relação ao culpado e
satisfação em relação à vítima91
.
90
VENOSA, Silvio de Salvo. Ob. Cit., p. 50. 91
GOMES, Orlando. Ob. Cit., p. 76.
50
Caberá ao julgador avaliar se no caso concreto houve efetivo
sofrimento da vítima, ou apenas um fato cotidiano da vida em sociedade. Deverá
estar presente a dor, vexame, sofrimento ou humilhação fora da normalidade, que
interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe
aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar92
.
Uma simples colisão de veículos, a demora no atendimento de uma
fila ou uma eventual discussão entre pessoas, não causam dissabores ao ponto de
serem qualificados como danos morais. A dor psíquica, o vitupério da alma, o
achincalhe social93
, relativos aos direitos da personalidade deverão ser avaliados
conforme o tempo e o local em que forem observados, resultando em conclusões
de acordo com a realidade social vivenciadas pela vítima e o agressor.
Deverá o juiz avaliar criteriosamente se a situação vivenciada
assume proporções suficientes para justificar a responsabilidade pelo dano moral,
excluindo hipóteses de mero dissabor, desconforto ou contratempo presente nas
atividades cotidianas94
.
RESPONSABILIDADE CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL.
ATRASO EM VOO DOMÉSTICO NÃO SIGNIFICATIVO,
INFERIOR A OITO HORAS, E SEM A OCORRÊNCIA DE
CONSEQUÊNCIAS GRAVES. COMPANHIA AÉREA QUE
FORNECEU ALTERNATIVAS RAZOÁVEIS PARA A
RESOLUÇÃO DO IMPASSE. DANO MORAL NÃO
CONFIGURADO.
1. O cerne da questão reside em saber se, diante da responsabilidade
objetiva, a falha na prestação do serviço - atraso em voo doméstico de
aproximadamente oito horas - causou dano moral ao recorrente.
2. A verificação do dano moral não reside exatamente na simples
ocorrência do ilícito, de sorte que nem todo ato desconforme o
ordenamento jurídico enseja indenização por dano moral. O
importante é que o ato ilícito seja capaz de irradiar-se para a esfera da
dignidade da pessoa, ofendendo-a de maneira relevante. Daí porque
doutrina e jurisprudência têm afirmado, de forma uníssona, que o
92
CAVALIERI FILHO, Sergio. Ob. Cit., p. 111. 93
VENOSA, Silvio de Salvo. Ob. Cit., p. 51. 94
CAHALI, Yussef Said. Ob. Cit., p. 52.
51
mero inadimplemento contratual - que é um ato ilícito - não se revela,
por si só, bastante para gerar dano moral.
3. Partindo-se da premissa de que o dano moral é sempre presumido -
in re ipsa (ínsito à própria ofensa) -, cumpre analisar a situação
jurídica controvertida e, a partir dela, afirmar se há ou não dano moral
indenizável.
4. No caso em exame, tanto o Juízo de piso quanto o Tribunal de
origem afirmaram que, em virtude do atraso do voo - que, segundo o
autor, foi de aproximadamente oito horas -, não ficou demonstrado
qualquer prejuízo daí decorrente, sendo que a empresa não deixou os
passageiros à própria sorte e ofereceu duas alternativas para o
problema, quais sejam, a estadia em hotel custeado pela companhia
aérea, com a ida em outro voo para a capital gaúcha no início da tarde
do dia seguinte, ou a realização de parte do trajeto de ônibus até
Florianópolis, de onde partiria um voo para Porto Alegre pela manhã.
Não há, pois, nenhuma prova efetiva, como consignado pelo acórdão,
de ofensa à dignidade da pessoa humana do autor.
5. O aborrecimento, sem consequências graves, por ser inerente à vida
em sociedade - notadamente para quem escolheu viver em grandes
centros urbanos -, é insuficiente à caracterização do abalo, tendo em
vista que este depende da constatação, por meio de exame objetivo e
prudente arbítrio do magistrado, da real lesão à personalidade daquele
que se diz ofendido. Como leciona a melhor doutrina, só se deve
reputar como dano moral a dor, o vexame, o sofrimento ou mesmo a
humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no
comportamento psicológico do indivíduo, chegando a causar-lhe
aflição, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar. Precedentes.
6. Ante a moldura fática trazida pelo acórdão, forçoso concluir que, no
caso, ocorreu dissabor que não rende ensejo à reparação por dano
moral, decorrente de mero atraso de voo, sem maiores consequências,
de menos de oito horas - que não é considerado significativo -,
havendo a companhia aérea oferecido alternativas razoáveis para a
resolução do impasse.
7. Agravo regimental não provido. (AgRg no Resp. nº 1269246/RS,
Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 27/05/2014).
52
O acórdão transcrito é muito claro no sentido de abordar a
relevância de se observar a realidade fática em que a situação ocorreu, os
dissabores verificados em uma grande metrópole devem ser interpretados dentro
de seu contexto. Atraso no horário de partida de voo configura-se como uma
situação corriqueira, ainda que desagradável, mas aliada ao fato de que a
companhia adotou todas as cautelas para minimizar esse transtorno, não
permitem a conclusão da existência de dano moral.
1.4.2.3 Nexo de causalidade
Além da conduta e do dano, deve-se avaliar a presença do nexo de
causalidade entre ambos, a conexão entre o dano e a conduta do agente. Na
hipótese do dano decorrer de negligência da própria vítima, o agente não será
responsabilizado, pois não existe norma que previna a diminuição do patrimônio
próprio95
.
Sua verificação demanda a análise criteriosa do caso concreto e sua
ausência elimina a responsabilidade do agente.
RESPONSABILIDADE CIVIL. Erro Médico. Pedido de indenização
por danos materiais e morais. Sequelas decorrentes do parto. Alegação
de culpa médica. Perícia que não demonstrou inadequação do
procedimento médico a que submetido a gestante. Ilicitude da conduta
não demonstrada. Sequelas que decorreram da prematuridade do
nascimento. Ausência de nexo de causalidade entre o possível erro e o
resultado. Obrigação que é de meio e não de resultado. Sentença
mantida. Agravo retido desprovido. Apelação desprovida. (TJSP
Apelação nº 0169670-23.2006.8.26.0100, 6ª Câmara de Direito
Privado, Rel. Des. Ana Lucia Romanhole Martucci, julgado em
03/07/2014.)
De acordo com a decisão supra, as sequelas verificadas no recém-
nascido não surgiram em razão do procedimento médico ou de falha na conduta
dos profissionais envolvidos, mas decorreram da prematuridade do feto.
Portanto, o dano estava presente, mas dada a ausência de relação deste com o
hospital ou os médicos que realizaram o procedimento, não existe o dever de
indenizar.
95
DINIZ, Maria Helena. Ob Cit., p. 89.
53
No tocante à sua origem, a responsabilidade civil pode ser
contratual ou extracontratual.
1.4.3 Responsabilidade contratual
A responsabilidade contratual pressupõe uma relação jurídica pré-
existente entre as partes, uma obrigação definida. O dever jurídico violado está
previsto em contrato, que já estabelece o comportamento dos contratantes e o
dever específico a cuja observância ficam adstritos96
.
Sua origem decorre da inexecução da obrigação, que poderá ser
pelo inadimplemento conforme disciplina do artigo 389 do CC, com a seguinte
redação:
Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e
danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais
regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
Como também pela mora, prevista no artigo 395:
Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der
causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices
oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
Na definição de perdas e danos, estabelecem os artigos 402 e 403
do CC que:
Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas
e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente
perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.
Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as
perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes
por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei
processual.
Vale ressaltar a ausência de previsão de reparação dos danos morais
na responsabilidade civil contratual. Todavia, isso não elimina a possibilidade de
reconhecimento da existência de danos morais na responsabilidade civil
contratual, haja vista o caráter constitucional da matéria, disciplinada no artigo
5º, inciso V da CF.
96
CAVALIERI FILHO, Sergio. Ob. Cit., p. 31.
54
Importante destacar a possibilidade de o contrato possuir uma
cláusula penal, cujo alcance indenizatório preveja também os danos
extrapatrimoniais, ocasião em que eventual pedido indenizatório deverá ser
negado97
.
1.4.4 Responsabilidade extracontratual
Na responsabilidade extracontratual ou aquiliana, não existe a
relação jurídica obrigacional entre as partes decorrente de um contrato.
Trata-se de violação da norma, lesão a um direito subjetivo ou da
prática de ato ilícito98
.
Sua atual disciplina encontra-se no CC, artigo 927, com a seguinte
redação:
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica
obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano,
independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou
quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano
implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Conforme se depreende da redação do parágrafo único artigo, a regra é
da responsabilidade civil subjetiva, baseada na existência de culpa, mas admite-se a
responsabilidade objetiva, que prescinde de culpa.
Nos casos de conduta ilícita, o componente fundamental 99
é a culpa, ao
passo que na responsabilidade por conduta lícita, é o risco de ocorrência do dano
decorrente da atividade exercida pelo agente causador.
No entanto, a responsabilidade civil no Brasil, ainda se fundamenta
na existência de culpa do agente causador do dano. Logo, deverá ser provada sua
97
DINIZ, Maria Helena. Ob. Cit. p., 158. 98
DINIZ, Maria Helena. Ob. Cit. p., 577. 99
O Código Civil de 2002 fez profunda modificação na disciplina da responsabilidade civil
estabalecida no Código anterior, na medida em que incorporou ao seu texto todos os avanços
anteriormente alcançados. E foi necessário, para que não entrasse em vigor completamente
desatualizado. Podemos afirmar que, se o Código de 1916 era subjetivista, o Código atual
prestigia a responsabilidade objetiva. Mas isso não signfica dizer que a responsabilidade
subjetiva tenha sido inteiramente afastada. Responsabilidade subjetiva teremos sempre, mesmo
não havendo lei prevendo-a, até porque esa responsabilidade faz parte da própria essência do
Direito, da sua ética, da sua moral – enfim, do sentido natural de justiça. Decorre daquele
princípio superior de Direito de que ninguém pode causar dano a outrem. CAVALIERI FILHO,
Sergio. Ob. Cit., p.36/37.
55
negligência ou imprudência, Nos casos de ação ou omissão voluntária, a hipótese
é de dolo.
A dificuldade de tal prova desafia os doutrinadores há muito tempo.
A justificativa seria a injustiça com o lesado, em razão de muitas vezes não
conseguir provar os elementos que compõem a responsabilidade civil100
.
O argumento dos autores é justamente a dificuldade ou
impossibilidade de que seja provada a culpa do agente causador do dano, dadas
as inúmeras possibilidades de ocorrência de um evento danoso.
Dessa maneira, a evolução legislativa do CC atualmente admite a
responsabilidade objetiva em determinados casos previstos em lei ou quando
presente a teoria do risco.
A solução seria, em contrapartida, a teoria do risco, pela qual o
causador do dano, aquele que exerce a atividade criadora o risco, responde pelas
lesões sofridas por terceiros101
. Mostra-se relevante considerar o perigo da
atividade exercida, bem como os meios adotados102
.
DIREITO CIVIL E CONSUMIDOR. ESTACIONAMENTO DE
VEÍCULOS. ROUBO ARMADO DE CLIENTE QUE ACABARA
DE EFETUAR SAQUE EM AGÊNCIA BANCÁRIA.
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTACIONAMENTO.
ALCANCE. LIMITES.
1. Em se tratando de estacionamento de veículos oferecido por
instituição financeira, o roubo sofrido pelo cliente, com subtração do
valor que acabara de ser sacado e de outros pertences não caracteriza
caso fortuito apto a afastar o dever de indenizar, tendo em vista a
previsibilidade de ocorrência desse tipo de evento no âmbito da
atividade bancária, cuidando-se, pois, de risco inerente ao seu
negócio. Precedentes.
2. Diferente, porém, é o caso do estacionamento de veículo particular
e autônomo - absolutamente independente e desvinculado do banco - a
quem não se pode imputar a responsabilidade pela segurança
100
STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade civil, 7ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007, p. 155. 101
DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil, Vol. I, 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense,
1960, p. 80. 102
VENOSA, Silvio de Salvo. Ob. Cit., p. 12.
56
individual do cliente, tampouco pela proteção de numerário
anteriormente sacado na agência e dos pertences que carregava
consigo, elementos não compreendidos no contrato firmado entre as
partes, que abrange exclusivamente o depósito do automóvel. Não se
trata, aqui, de resguardar os interesses da parte hipossuficiente da
relação de consumo, mas de assegurar ao consumidor apenas aquilo
que ele legitimamente poderia esperar do serviço contratado, no caso a
guarda do veículo. REsp. nº 1.232.795/SP, Terceira Turma, Rel. Min.
Nancy Andrighi, Dje 10/04/2013).
Conforme se depreende do julgado acima, a atividade da instituição
financeira é potencialmente arriscada, logo a possibilidade da ocorrência de
roubos a seus clientes não pode ser considerada como estranha à atividade. Uma
vez que o serviço de estacionamento era oferecido pelo banco, deveria contar
obrigatoriamente com serviço de segurança para mitigar o risco de roubos.
De acordo com Maria Helena Diniz, a responsabilidade fundada no
risco, consiste, portanto, na obrigação de indenizar o dano produzido por
atividade exercida no interesse do agente e sob seu controle, sem que haja
qualquer indagação sobre o comportamento do lesante, fixando-se no elemento
objetivo, isto é, na relação da causalidade entre o dano e a conduta do seu
causador103
· . Na hipótese da ocorrência de potencial dano em função do mau
funcionamento ou qualquer falha no exercício da atividade, adota-se a teoria do
risco. A produção de fogos de artifício, fabricação de automóveis, ferramentas
elétricas, distribuição de combustíveis, dentre outras, constituem-se como
atividades potencialmente danosas na eventualidade de ocorrência de uma falha.
O risco de ocorrência do dano, também é informado pelo risco
empresarial do negócio. A qualidade de um produto é intrinsicamente
relacionada com o custo de sua produção, os melhores insumos e técnicas de
produção, resultam em maior durabilidade, melhor funcionamento e menor risco
de falhas.
Entretanto, quanto maior o custo, menor o lucro do fornecedor. O
maior benefício financeiro do fornecedor será encontrado na diminuição de seus
103
DINIZ, Maria Helena. Ob. Cit.: p. 69.
57
custos, cuja consequência é o aumento do risco de ocorrência de falhas ou
vícios104
.
Mas o risco deve ser inerente à atividade exercida, para que possa
ser atribuído ao empresário. Se o dano advier de uma atividade ou conduta cuja
atividade do empresário não pudesse evitar, não se configura o risco do negócio.
CIVIL E CONSUMIDOR. INTERNET. RELAÇÃO DE CONSUMO.
INCIDÊNCIA DO CDC. PROVEDOR DE CONTEÚDO.
FISCALIZAÇÃO PRÉVIA DO CONTEÚDO POSTADO NO SITE
PELOS USUÁRIOS. DESNECESSIDADE. MENSAGEM DE
CUNHO OFENSIVO. DANO MORAL. RISCO INERENTE AO
NEGÓCIO. INEXISTÊNCIA. CIÊNCIA DA EXISTÊNCIA DE
CONTEÚDO ILÍCITO. RETIRADA DO AR EM 24 HORAS.
DEVER. SUBMISSÃO DO LITÍGIO DIRETAMENTE AO PODER
JUDICIÁRIO. CONSEQUÊNCIAS. DISPOSITIVOS LEGAIS
ANALISADOS: ARTS. 14 DO CDC E 927 DO CC/02.
1. Ação ajuizada em 26.02.2008. Recurso especial concluso ao
gabinete da Relatora em 14.08.2012.
2. Recurso especial em que se discute os limites da responsabilidade
de provedor de rede social de relacionamento via Internet pelo
conteúdo das informações veiculadas no respectivo site.
3. A exploração comercial da internet sujeita as relações de consumo
daí advindas à Lei nº 8.078/90.
4. A fiscalização prévia, pelo provedor de conteúdo, do teor das
informações postadas na web por cada usuário não é atividade
intrínseca ao serviço prestado, de modo que não se pode reputar
defeituoso, nos termos do art. 14 do CDC, o site que não examina e
filtra os dados e imagens nele inseridos.
5. O dano moral decorrente de mensagens com conteúdo ofensivo
inseridas no site pelo usuário não constitui risco inerente à atividade
dos provedores de conteúdo, de modo que não se lhes aplica a
responsabilidade objetiva prevista no art. 927, parágrafo único, do
CC/02.
104
NUNES, Rizzatto. Ob. Cit., p. 219.
58
Portanto, no caso exposto, o controle do conteúdo do material
inserido no site não faz parte da atividade do empresário e qualquer consequência
advinda de teor ofensivo não poderá ser qualificada como risco do negócio.
Mas isso não significa, necessariamente, que o fornecedor esteja
eximido de responsabilidade se o fato não está diretamente relacionado ao seu
negócio. Caso o fornecedor seja cientificado de fatos que possam causar danos
aos consumidores e permanece inerte, sem adotar as cautelas devidas para
impedir ou cessar a conduta danosa, sua responsabilidade poderá ser
reconhecida, mas sob o cunho subjetivo:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO
ELETRÔNICO E RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS
MORAIS. PROVEDOR DE BUSCA NA INTERNET SEM
CONTROLE PRÉVIO DE CONTEÚDO. ORKUT. MENSAGEM
OFENSIVA. NOTIFICAÇÃO PRÉVIA. INÉRCIA DO PROVEDOR
DE BUSCA. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA
CARACTERIZADA. AGRAVO DESPROVIDO.
1. Este Tribunal Superior, por seus precedentes, já se manifestou no
sentido de que: I) o dano moral decorrente de mensagens com
conteúdo ofensivo inseridas no site por usuário não constitui risco
inerente à atividade desenvolvida pelo provedor da internet, porquanto
não se lhe é exigido que proceda a controle prévio de conteúdo
disponibilizado por usuários, pelo que não se lhe aplica a
responsabilidade objetiva, prevista no art. 927, parágrafo único, do
CC/2002; II) a fiscalização prévia dos conteúdos postados não é
atividade intrínseca ao serviço prestado pelo provedor no Orkut.
2. A responsabilidade subjetiva do agravante se configura quando: I)
ao ser comunicado de que determinado texto ou imagem tem conteúdo
ilícito, por ser ofensivo, não atua de forma ágil, retirando o material
do ar imediatamente, passando a responder solidariamente com o
autor direto do dano, em virtude da omissão em que incide; II) não
mantiver um sistema ou não adotar providências, que estiverem
tecnicamente ao seu alcance, de modo a possibilitar a identificação do
usuário responsável pela divulgação ou a individuação dele, a fim de
coibir o anonimato.
59
3. O fornecimento do registro do número de protocolo (IP) dos
computadores utilizados para cadastramento de contas na internet
constitui meio satisfatório de identificação de usuários.
4. Na hipótese, a decisão recorrida dispõe expressamente que o
provedor de busca foi notificado extrajudicialmente quanto à criação
de perfil falso difamatório do suposto titular, não tendo tomado as
providências cabíveis, optando por manter-se inerte, motivo pelo qual
responsabilizou-se solidariamente pelos danos morais infligidos à
promovente, configurando a responsabilidade subjetiva do réu.
5. Agravo regimental não provido. (AgRg no REsp. nº 1.402.104/RJ,
Quarta Turma, Rel. Min. Raul Araujo, Dje 18/06/2014)
Importante destacar que a atividade do fornecedor acima descrita,
não é veicular o material de seus usuários, mas somente fornecer o meio
tecnológico para tanto. Todavia, se a atividade se relacionar com a veiculação do
material, a responsabilidade existe, ainda que o dano resulte de conduta de
terceiros.
RECURSO ESPECIAL. CONSUMIDOR. RESPONSABILIDADE
CIVIL. ANÚNCIO PUBLICITÁRIO FRAUDULENTO
VEICULADO EM CANAL DE TELEVISÃO. DEFEITO DO
SERVIÇO PRESTADO. NÃO RECONHECIMENTO DO FATO
EXCLUSIVO DE TERCEIRO PELAS INSTÂNCIAS DE ORIGEM.
CONCORRÊNCIA DA CONDUTA DO FORNECEDOR PARA O
EVENTO DANOSO. SÚMULA 07/STJ.
1. Demanda indenizatória movida contra canal televisivo por
consumidor lesado pela veiculação de anúncio publicitário
fraudulento.
2. Responsabilidade solidária da empresa detentora do canal de
televisão reconhecida pelas instâncias de origem por não ter o serviço
por ela prestado apresentado a segurança legitimamente esperada pelo
público consumidor.
3. Não acolhimento da excludente do fato exclusivo de terceiro,
prevista no inciso II do parágrafo 3.º do art. 14 do CDC, por não ter
sido reconhecida pelas instâncias de origem a exclusividade do ato
ilícito perpetrado pelos terceiros fraudadores como causa do evento
danoso.
4. Não caracterização da culpa exclusiva da vítima.
60
5. A modificação das conclusões alcançadas pelas instâncias de
origem exigiria a revaloração do conjunto fático-probatório, o que é
vedado pela Súmula 07/STJ.
6. Doutrina e jurisprudência acerca do tema.
7. Recurso especial desprovido. (STJ REsp. 1.391.084/RJ, Terceira
Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 15/02/2014).
No caso caberia ao fornecedor, emissora de televisão, adotar as
devidas cautelas no sentido de evitar a veiculação de um anúncio fraudulento.
Perceba-se que no julgado, restou confirmada a ausência de contrato firmado
entre a emissora e o anunciante, numa evidente comprovação de desídia no
controle do material veiculado.
1.4.5 Responsabilidade civil no CDC
Todavia, vale ressaltar que na previsão anterior do Código Civil,
contemporânea à edição do CDC, não havia a previsão do parágrafo único atual.
Tal era seu teor:
Art. 159. Aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência, ou
imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado
a reparar o dano. A verificação da culpa e a avaliação da
responsabilidade regulam-se pelo disposto neste Código, artigos 1.518
a 1.532 e 1.537 a 1.553.
Portanto, o CDC para regular de maneira mais efetiva dos direitos
dos consumidores adotou a teoria do risco como informativa da responsabilidade
civil nas relações de consumo e acompanhou a evolução da matéria.
A responsabilidade civil na relação de consumo não está focada na
pessoa do fornecedor, mas no produto ou serviço, na existência de defeito105
. O
fornecedor tem a obrigação legal de introduzir no mercado produtos de
qualidade, para serem utilizados de maneira segura.
O foco alterou-se da conduta do autor do dano, para o fato causador
do dano, apurou-se um dever de guarda pela coisa perigosa, uma cláusula de
incolumidade na atividade de risco, culminando com um dever de segurança ou
garantia de idoneidade do produto colocado no mercado106
.
105
MARQUES, Claudia Lima. Ob. Cit., p. 431. 106
CAVALIERI FILHO, Sergio. Ob. Cit., p. 543.
61
A proteção do consumidor contra riscos dos produtos e serviços
introduzidos no mercado de consumo tem seu fundamento no
reconhecimento da existência de interesses legítimos de que estes
produtos e serviços sejam seguros, ou seja, de que não apresentem
nem uma periculosidade ou uma nocividade tal a causar danos para
quem venha a ser exposto aos mesmos107
.
Nestes casos a vítima seria uma figura passiva no evento, ao passo
que o causador do dano, ao optar por exercer a atividade que deu causa ao dano e
criar as condições para o exercício dessa atividade, não observou os cuidados
para sua plena consecução. Funda-se no princípio da equidade, aquele que lucra
com uma situação deve responder pelo risco ou pelas desvantagens dela
resultantes108
.
A responsabilidade civil tradicional se revelou insuficiente para a
proteção do consumidor, demandando a criação de um novo sistema de
responsabilidade com fundamentos e princípios próprios109
.
Essa necessidade de mudança defendida pela doutrina foi acolhida
no CDC, reconhecendo-se a dificuldade da prova pela vulnerabilidade do
consumidor e pela prescindibilidade de prova de culpa do fornecedor nos casos
de responsabilidade civil.
Portanto, excluída a responsabilidade dos profissionais liberais,
abordada adiante, a regra do CDC será de responsabilidade objetiva, nos termos
dos artigos 12 e 14.
Traçadas as linhas gerais da responsabilidade civil, com o
esclarecimento da adoção pelo CDC da responsabilidade objetiva, o estudo será
direcionado para as hipóteses expressamente previstas de proteção aos direitos do
consumidor.
1.4.5.1 Responsabilidade pelo fato do produto
No artigo 12 do CDC está prevista a responsabilidade civil do
fornecedor pelo fato do produto. Ainda que não se utilize da nomenclatura usual,
107
MIRAGEM, Bruno. Ob. Cit., p. 498. 108
DINIZ, Maria Helena. Ob. Cit., p. 68. 109
CAVALIERI FILHO, Sergio. Ob. Cit., p. 541.
62
o artigo prescinde a prova da culpa, qualificando a responsabilidade do
fornecedor como objetiva.
Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou
estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da
existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos
consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação,
construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou
acondicionamento de seus produtos, bem como por informações
insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.
Pode-se classificar o fato do produto como defeito de segurança,
por comprometer a segurança do produto e gera risco à incolumidade física do
consumidor110
. Esse dever de segurança, traduzido na obrigatoriedade do
fornecedor introduzir no mercado apenas produtos seguros ao consumidor,
quando violado, se traduz em defeito111
.
A complexidade de uma relação de consumo prejudica,
sobremaneira, o exercício do direito à obtenção da indenização pelo dano sofrido.
Questões tais como dificuldade de determinar o momento do surgimento do
defeito; a identidade do fabricante, por vezes inserido em uma grande cadeia
produtiva; complexidade da situação tais como medicamentos, máquinas,
produtos eletrônicos etc; impossibilidade de uma análise detalhada na mercadoria
por estar embalada, dentre inúmeras outras112
.
Zelmo Denari113
classifica os defeitos dos produtos em três
modalidades. A primeira seria o defeito da concepção, na qual existiriam vícios
de projeto, formulação e até utilização de matéria prima inadequada. Tais
defeitos afetam as características gerais do produto114
. Um exemplo prático do
defeito de concepção seria um remédio com graves efeitos colaterais, como o
famoso caso da Talidomida no Brasil, medicamento que gerou deformidades
físicas em inúmeros fetos, pois seu uso era indicado para aliviar os enjoos da
gravidez.
110
CAVALIERI FILHO, Sergio. Ob. Cit., p. 548. 111
MIRAGEM, Bruni. Ob. Cit., p. 513. 112
DINIZ, Maria Helena. Ob. Cit., p. 493. 113
DENARI, Zelmo. Ob. Cit., p. 160. 114
MIRAGEM, Bruno. Ob. Cit., p. 514.
63
Esse tipo de vício macula toda a série de produtos fabricados e seria
a assunção do risco do negócio pela busca do lucro, conforme mencionada pelo
professor Rizzatto Nunes.
A segunda modalidade é o defeito de produção, na qual o vício
reside na fabricação, construção, montagem, manipulação ou acondicionamento
dos produtos. Apenas parte dos produtos fabricados traria essa mácula, pois se
trata de falha no sistema produtivo. O avanço da tecnologia industrial reduziu
esse risco sobremaneira, mas a produção em massa atua como fator de aumento
da incidência desse risco. Ainda que tais defeitos possam ser considerados como
exceções, fazem parte do risco do negócio e demonstram uma evidente falha no
controle de qualidade do fornecedor.
A terceira modalidade é o defeito de informação, representado pela
falta de informações claras e corretas acerca do funcionamento ou utilidade do
produto. Trata-se de defeito extrínseco ao produto e engloba toda forma de
comunicação ao consumidor, inclusive material publicitário.
Dificilmente uma relação de consumo é formalizada com um
contrato, com o estabelecimento da identidade das partes, condições do negócio,
garantias e penalidades.
Essas dificuldades inerentes à relação de consumo, assim como o
acolhimento da teoria do risco, resultaram na adoção da responsabilidade
objetiva do fornecedor no CDC.
Em ambos os casos a inovação residiu justamente na superação da
exigência de um vínculo jurídico antecedente, um vínculo contratual
entre as partes para que a vítima pudesse demandar contra o fabricante
em razão dos defeitos de fabricação. Passa a bastar, assim, a condição
de vítima para que o consumidor tenha reconhecida sua legitimidade
para demandar contra o causador do dano. Ou seja, houve a superação
da exigência de uma relação jurídica previamente constituída entre o
fabricante e a vítima, que não precisa mais ser necessariamente quem
tenha realizado o contrato de consumo com o fornecedor, mas
64
simplesmente quem tenha sofrido prejuízo decorrente do produto ou
serviço oferecido115
.
O conceito de fato do produto se traduz no acidente de consumo
que atinge a esfera patrimonial ou moral do consumidor e implica a
responsabilização do fornecedor, independente de culpa116
.
RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - ACIDENTE
AUTOMOBILÍSTICO OCASIONADO POR DEFEITO NO PNEU
DO VEÍCULO - VÍTIMA ACOMETIDA DE TETRAPLEGIA -
CORTE LOCAL QUE FIXA A RESPONSABILIDADE OBJETIVA
DA FABRICANTE DO PRODUTO.
1. INSURGÊNCIA DA FABRICANTE.
1.1 Não conhecimento do recurso especial pela divergência (art. 105,
III, "c", da CF). Dissídio jurisprudencial não demonstrado nos moldes
exigidos pelos artigos 541, parágrafo único, do CPC e 255, §§ 1º e 2º,
do RISTJ. Ausência de cotejo analítico entre os julgados e falta de
similitude fática entre os casos em exame.
1.2. Inocorrência de violação ao artigo 535 do CPC. Acórdão
hostilizado que enfrentou, de modo fundamentado, todos os aspectos
essenciais à resolução da lide.
1.3 Nulidade da prova pericial não configurada. Inocorrendo as causas
de suspeição ou impedimento sobre o profissional nomeado pelo juízo
para realização de prova pericial, torna-se irrelevante o fato de ter sido
ele indicado por uma das partes, mormente quando não evidenciada,
tampouco alegada, de modo concreto, eventual mácula nos trabalhos
do expert.
1.4 Demonstrada a ocorrência do acidente em virtude de defeito do
pneu, fato do produto, esgota-se o ônus probatório do autor (art. 333,
I, do CPC), cabendo à fabricante, para desconstituir sua
responsabilidade objetiva, demonstrar uma das causas excludentes do
nexo causal (art. 12, § 3º, do CDC).
Fixada pela Corte de origem a existência de nexo causal entre o
defeito de fabricação que causou o estouro de pneu e o acidente
automobilístico, inviável se afigura a revisão de tal premissa de ordem
115
MIRAGEM, Bruno. Ob. Cit., p. 502. 116
ALVIM, Arruda. Código do consumidor comentado, 2ª ed., São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1995, p. 118.
65
fática no estrito âmbito do recurso especial. Incidência da Súmula n. 7
desta Corte.
1.5 Danos morais arbitrados em 1.000 salários mínimos. Valor
insuscetível de revisão na via especial, por óbice da Súmula n. 7/STJ.
A tetraplegia causada ao aposentado em razão do acidente
automobilístico, que transformou inteiramente sua vida e o priva da
capacidade para, sozinho, praticar atos simples da vida, cuida-se de
seríssima lesão aos direitos de personalidade do indivíduo. A indene
fixada para tais hipóteses não encontra parâmetro ou paradigma em
relação aos casos de morte de entes queridos.
2. INSURGÊNCIA DO AUTOR.
2.1 O art. 950 do Código Civil admite ressarcir não apenas a quem, na
ocasião da lesão, exerça atividade profissional, mas também aquele
que, muito embora não a exercitando, veja restringida sua capacidade
de futuro trabalho.
Havendo redução parcial da capacidade laborativa em vítima que, à
época do ato ilícito, não desempenhava atividade remunerada, a base
de cálculo da pensão deve se restringir a 1 (um) salário mínimo.
Precedentes.
2.2 Não acolhimento do pedido de majoração do valor arbitrado a
título de danos morais, em razão da incidência da súmula 7/STJ.
Razoabilidade do quantum estipulado em 1.000 salários mínimos.
2.3 Inviável a cobrança de juros compostos quando a obrigação de
indenizar resultar de ilícito de natureza eminentemente civil.
3. Recurso da fabricante conhecido em parte, e na extensão, não
provido. Recurso do autor conhecido e parcialmente provido. (Resp.
nº 1.281.742/SP, Quarta Turma, Rel. Min. Marco Buzzi, DJe
05/12/2012).
Constatado o dano e sua relação com o produto defeituoso, exsurge
a responsabilidade do fornecedor. No caso transcrito acima, foi constatado pela
perícia que o acidente teve como origem um defeito no pneu do veículo, o que
acarreta diretamente a responsabilidade do fabricante.
Estabelecer como objetiva a responsabilidade do fornecedor pelo
fato do produto atua como meio de facilitação da defesa do consumidor,
66
atribuindo-lhe o ônus de apenas provar o fato constitutivo de seu direito, sem
necessidade de perquirir acerca da culpa.
Uma vez determinada sua natureza, o CDC estabeleceu excludentes
de responsabilidade, cujo ônus probatório pertence ao fornecedor.
O artigo estabelece, ainda, quais os defeitos que estão abarcados
pela responsabilidade objetiva, na mesma linha de utilização de completa e
minudente previsão de sua aplicação.
1.4.5.2 Responsabilidade pelo vício do produto
No artigo 18 do CDC está prevista a responsabilidade do
fornecedor por vício do produto. Apesar de ausente expressa previsão, trata-se
igualmente de responsabilidade objetiva, na esteira de todos os princípios
protetivos do Código.
Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não
duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou
quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a
que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles
decorrentes da disparidade, com as indicações constantes do
recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária,
respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o
consumidor exigir a substituição das partes viciadas.
Ao contrário do quanto previsto na responsabilidade pelo fato do
produto, neste artigo aborda-se o prejuízo do consumidor relacionado aos
produtos ou serviços que apresentem defeitos ou falhas, ausente qualquer
acidente.
O prejuízo do consumidor é a falta de relação entre as
especificações do produto, de suas características, e o produto em si, por falha do
fornecedor.
Trata-se de prejuízo patrimonial decorrente da imperfeição do
produto117
.
O prejuízo do consumidor, portanto, situa-se no próprio objeto que lhe
foi repassado pelo fornecedor; é interno, e, assim, a reparação devida
não depende de um dano pessoal ou material ou moral que o
117
NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Ob. Cit. p. 121.
67
consumidor tenha sofrido. É o próprio objeto que não se presta ao uso
a que se acha destinado, ou não corresponde ao preço que por ele se
ajustou.118
Novamente, o artigo se caracteriza pela extensa previsão das
hipóteses de vícios. Busca o artigo a adequação objetiva do bem, a possibilidade
que satisfaça a confiança do consumidor119
.
Por outro lado, a responsabilidade pelo vício do produto o do serviço
decorre da violação a um dever de adequação. Adequação, entendida
como a qualidade do produto ou serviço de servir, ser útil, aos fins que
legitimamente dele se esperam. Daí porque se deve sempre destacar
que os vícios e seu regime de responsabilidade não se confundem com
a noção de inadimplemento absoluto da obrigação, mas a um
cumprimento parcial, imperfeito cuja identificação remete às soluções
previstas no Código Civil e na legislação, para atendimento do
interesse das partes, a princípio, no cumprimento do contrato.120
Na definição do que seriam os vícios de qualidade, pode-se afirmar
que se trata da ausência no produto de características ou propriedades que
possibilitem o atendimento aos fins esperados pelo consumidor121
. O produto
disponibilizado no mercado pelo fornecedor, não atende aos fins pretendidos pelo
consumidor no momento de sua aquisição.
No julgado abaixo transcrito, o consumidor adquiriu um veículo
novo, zero-quilômetro e sua expectativa básica era da ausência de problemas ou
defeitos por um razoável período de tempo. Mas o veículo apresentou inúmeros
problemas de funcionamento, em número muito superior ao que seria razoável se
admitir tendo em vista ser o veículo novo.
CONSUMIDOR E CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL
CONTRATUAL. DEFEITOS EM VEÍCULO ZERO-
QUILÔMETRO. EXTRAPOLAÇÃO DO RAZOÁVEL. DANO
MORAL. EXISTÊNCIA. JUROS DE MORA. DIES A QUO.
CITAÇÃO. DISPOSITIVOS LEGAIS APRECIADOS: ARTS. 18 DO
CDC E 186, 405 e 927 do CC/02.
118
THEODORO JUNIOR, Humberto. Ob. Cit., p. 356. 119
MARQUES, Claudia Lima. Ob. Cit., p. 564. 120
MIRAGEM, Bruno. Ob. Cit., p. 569. 121
MIRAGEM, Bruno. Ob. Cit., p. 572.
68
1. Ação ajuizada em 14.05.2004. Recurso especial concluso ao
gabinete da Relatora em 08.08.2013.
2. Recurso especial em que se discute se o consumidor faz jus à
indenização por danos morais em virtude de defeitos reiterados em
veículo zero quilômetro que o obrigam a levar o automóvel diversas
vezes à concessionária para reparos, bem como o dies a quo do
cômputo dos juros de mora.
3. O defeito apresentado por veículo zero-quilômetro e sanado pelo
fornecedor, via de regra, se qualifica como mero dissabor, incapaz de
gerar dano moral ao consumidor. Todavia, a partir do momento em
que o defeito extrapola o razoável, essa situação gera sentimentos que
superam o mero dissabor decorrente de um transtorno ou
inconveniente corriqueiro, causando frustração, constrangimento e
angústia, superando a esfera do mero dissabor para invadir a seara do
efetivo abalo psicológico.
4. Hipótese em que o automóvel adquirido era zero-quilômetro e, em
apenas 06 meses de uso, apresentou mais de 15 defeitos em
componentes distintos, parte dos quais ligados à segurança do veículo,
ultrapassando, em muito, a expectativa nutrida pelo recorrido ao
adquirir o bem.
5. Consoante entendimento derivado, por analogia, do julgamento,
pela 2ª Seção, do Resp. 1.132.866/SP, em sede de responsabilidade
contratual os juros de mora referentes à reparação por dano moral
incidem a partir da citação.
6. Recurso especial desprovido. (STJ REsp. nº 1395285/SP, Terceira
Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 12/12/2013).
Quanto aos vícios de quantidade, constituem-se na diferença entre a
quantidade apresentada, ofertada ou sugerida pela publicidade, rotulagem do
produto ou serviço, e aquela efetivamente contida ou disponível ao consumidor.
Esse vício foi muito frequente no Brasil anos atrás, em razão da
conduta dos fornecedores de diminuírem a quantidade do produto, mas manterem
o mesmo preço. O interesse dos fornecedores era estritamente financeiro, pois a
redução na quantidade não era informada ou era feita de maneira dissimulada.
Neste aspecto, considerando que essa conduta atinge a coletividade
dos consumidores, mostrou-se exemplar a atuação dos órgãos de defesa do
69
consumidor, culminando com a aplicação de severas multas aos fornecedores,
conforme se depreende do julgado abaixo.
ADMINISTRATIVO. CONSUMIDOR. PROCEDIMENTO
ADMINISTRATIVO. VÍCIO DE QUANTIDADE. VENDA DE
REFRIGERANTE EM VOLUME MENOR QUE O HABITUAL.
REDUÇÃO DE CONTEÚDO INFORMADA NA PARTE
INFERIOR DO RÓTULO E EM LETRAS REDUZIDAS.
INOBSERVÂNCIA DO DEVER DE INFORMAÇÃO. DEVER
POSITIVO DO FORNECEDOR DE INFORMAR. VIOLAÇÃO DO
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA. PRODUTO ANTIGO NO
MERCADO. FRUSTRAÇÃO DAS EXPECTATIVAS LEGÍTIMAS
DO CONSUMIDOR. MULTA APLICADA PELO PROCON.
POSSIBILIDADE. ÓRGÃO DETENTOR DE ATIVIDADE
ADMINISTRATIVA DE ORDENAÇÃO. PROPORCIONALIDADE
DA MULTA ADMINISTRATIVA. SÚMULA 7/STJ. ANÁLISE DE
LEI LOCAL, PORTARIA E INSTRUÇÃO NORMATIVA.
AUSÊNCIA DE NATUREZA DE LEI FEDERAL. SÚMULA
280/STF. DIVERGÊNCIA NÃO DEMONSTRADA. REDUÇÃO DO
"QUANTUM" FIXADO A TÍTULO DE HONORÁRIOS
ADVOCATÍCIOS. SÚMULA 7/STJ.
1. No caso, o Procon estadual instaurou processo administrativo
contra a recorrente pela prática da infração às relações de consumo
conhecida como "maquiagem de produto" e "aumento disfarçado de
preços", por alterar quantitativamente o conteúdo dos refrigerantes
"Coca Cola", "Fanta", "Sprite" e "Kuat" de 600 ml para 500 ml, sem
informar clara e precisamente aos consumidores, porquanto a
informação foi aposta na parte inferior do rótulo e em letras reduzidas.
Na ação anulatória ajuizada pela recorrente, o Tribunal de origem, em
apelação, confirmou a improcedência do pedido de afastamento da
multa administrativa, atualizada para R$ 459.434,97, e majorou os
honorários advocatícios para R$ 25.000,00.
2. Hipótese, no cível, de responsabilidade objetiva em que o
fornecedor (lato sensu) responde solidariamente pelo vício de
quantidade do produto.
70
3. O direito à informação, garantia fundamental da pessoa humana
expressa no art. 5°, inciso XIV, da Constituição Federal, é gênero do
qual é espécie também previsto no Código de Defesa do Consumidor.
4. A Lei n. 8.078/1990 traz, entre os direitos básicos do consumidor, a
"informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços,
com especificação correta de quantidade, características, composição,
qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentam" (art. 6º,
inciso III).
5. Consoante o Código de Defesa do Consumidor, "a oferta e a
apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações
corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas
características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia,
prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os
riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores" (art.
31), sendo vedada a publicidade enganosa, "inteira ou parcialmente
falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de
induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características,
qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros
dados sobre produtos e serviços" (art. 37).
6. O dever de informação positiva do fornecedor tem importância
direta no surgimento e na manutenção da confiança por parte do
consumidor. A informação deficiente frustra as legítimas expectativas
do consumidor, maculando sua confiança.
7. A sanção administrativa aplicada pelo Procon reveste-se de
legitimidade, em virtude de seu poder de polícia (atividade
administrativa de ordenação) para cominar multas relacionadas à
transgressão da Lei n. 8.078/1990, esbarrando o reexame da
proporcionalidade da pena fixada no enunciado da Súmula 7/STJ.
8. Leis locais, portarias e instruções normativas refogem ao conceito
de lei federal, não podendo ser analisadas por esta Corte, ante o óbice,
por analogia, da Súmula 280/STF.
9. Os honorários advocatícios fixados pela instância ordinária somente
podem ser revistos em recurso especial se o "quantum" se revelar
exorbitante, em respeito ao disposto na Súmula 7/STJ.
Recurso especial a que se nega provimento. (REsp. nº 1.364.915/MG,
Segunda Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJe 24/05/2013).
71
A atuação do PROCON na fiscalização desse tipo de conduta
culminou na edição da Portaria nº 82/2002 do Ministério da Justiça, que define as
regras para informação aos consumidores das alterações de quantidades dos
produtos.
No entanto, o traço característico da previsão concernente a esse
tipo de vício é o fato do CDC já trazer as hipótese de sua solução.
A identificação de vício de qualidade, quantidade ou informação,
relativo ao produto objeto de uma relação de consumo difere do
regime dos vícios redibitórios do direito comum, dentre outras
hipóteses, em razão da existência das alternativas dispostas em lei, em
favor do adquirente prejudicado122
.
Dessa forma, o Código já traz a solução para as hipóteses de vícios,
na exata medida de sua extensão, nos incisos do §1º:
§ 1° Não sendo o vício sanado no prazo máximo de trinta dias, pode o
consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:
I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas
condições de uso;
II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada,
sem prejuízo de eventuais perdas e danos;
III - o abatimento proporcional do preço
Conforme se verifica nas hipóteses acima, a opção prioritária e
mais evidente é a solução do vício pelo fornecedor, ou caso não seja possível,
assegurar o ressarcimento do consumidor, evitando novos danos, melhorando a
qualidade de vida e segurança às relações de consumo123
.
Caso isso não seja possível, o consumidor poderá optar pela troca
por um novo produto, devolução do valor pago ou abatimento do preço, sem
prejuízo de perdas e danos.
RECURSO ESPECIAL - DEMANDA VISANDO A RESTITUIÇÃO
DE QUANTIA PAGA PELO CONSUMIDOR NA AQUISIÇÃO DE
VEÍCULO NOVO - APRESENTAÇÃO DE VÍCIOS DE
QUALIDADE - SUCESSIVOS RETORNOS À REDE DE
CONCESSIONÁRIAS PARA REPARO DA MESMA
122
MIRAGEM, Brunoo. Ob. Cit., p 580. 123
MARQUES, Claudia Lima. Ob. Cit., p. 565.
72
IMPERFEIÇÃO - TRANSCURSO DO PRAZO DE 30 (TRINTA)
DIAS (ART. 18, §1º, DO CDC) - ACOLHIMENTO DO PEDIDO
PELA SENTENÇA A QUO - REFORMA DO DECISUM EM
SEGUNDO GRAU, POR REPUTAR RENOVADO O LAPSO ANTE
A REITERAÇÃO DE FALHAS NO FUNCIONAMENTO DO BEM.
INSURGÊNCIA DO CONSUMIDOR.
1. Caso em que o consumidor adquiriu veículo "zero quilômetro ", o
qual apresentou sucessivos vícios, ensejando a privação do uso do
bem, ante os reiterados comparecimentos à rede de concessionárias.
Efetivação da solução a destempo, consideradas as idênticas
imperfeições manifestadas no que tange ao "desempenho " do veículo,
segundo as balizas fáticas firmadas pelas instâncias ordinárias.
Hipótese de cabimento da devolução da quantia paga.
2. Em havendo sucessiva manifestação de idênticos vícios em
automotor novo, o aludido lapso conferido para o fornecedor os
equacionar é computado de forma global, isto é, não se renova cada
vez que o veículo é entregue à fabricante ou comerciante em razão do
mesmo problema.
3. A solução para o imperfeito funcionamento do produto deve ser
implementada dentro do prazo de trinta dias, norma que, uma vez
inobservada, faz nascer para o consumidor o direito potestativo de
optar, segundo sua conveniência, entre a substituição do produto, a
restituição imediata da quantia paga ou o abatimento proporcional do
preço (art. 18, §1º, I, II e III, do CDC).
4. Não é legítimo esperar que um produto novo apresente defeitos
imediatamente após a sua aquisição e que o consumidor tenha que,
indefinidamente, suportar os ônus da ineficácia dos meios empregados
para a correção dos problemas apresentados.
5. O prazo de 30 dias constante do art. 18, § 1º, do CDC, consoante o
princípio da proteção integral (art. 6º, VI), deve ser contabilizado de
forma a impedir o prolongamento do injusto transtorno causado ao
consumidor, na medida em que é terminantemente vedada a
transferência, pelo fornecedor de produtos e serviços, dos riscos da
sua atividade econômica.
6. Recurso especial provido. (Resp. N 1.297.690/PR, Quarta Turma,
Rel. Min. Marco Buzzi, Dje 06/08/2013).
73
As previsões apresentadas estabelecem as opções do fornecedor
para sanar o vício, de maneira a outorgar maior efetividade à solução.
Novamente, o detalhamento da redação do artigo visa a facilitar sua compreensão
e aplicação aos casos concretos.
1.4.5.3 Responsabilidade do profissional liberal
À exceção das demais hipóteses de responsabilidade civil, a relativa
aos profissionais liberais demanda a prova de culpa; logo, subjetiva.
A previsão contida no §4º do artigo 14 do CDC não contém
maiores digressões ou detalhamentos, de modo que são aplicáveis todos os
expedientes que facilitam a defesa do consumidor.
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da
existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos
consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem
como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição
e riscos.
§ 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada
mediante a verificação de culpa.
Justifica-se a necessidade de prova da culpa pela pessoalidade do
trabalho do profissional liberal, caráter único e dirigido à situação específica do
consumidor.
Orienta a decisão do legislador a natureza da prestação realizada pelo
profissional liberal, que de regra será de caráter personalíssimo
(intuitu personae), isolada, e que por isso não detém estrutura
complexa do fornecimento do serviço, em relação ao qual o interesse
básico do consumidor estará vinculado conhecimento técnico
especializado deste fornecedor. Daí porque a identificação do
profissional liberal pareça se ligar a duas condições básicas: a)
primeiro, a espécie de atividade exercida; b) segundo, o modo como é
exercida124
.
Por outro lado, o trabalho do profissional liberal muitas vezes se
configura como uma obrigação de meio, não de resultado. A prestação do serviço
124
MIRAGEM, Bruno. Ob. Cit., p. 550.
74
consistirá na utilização da melhor aptidão possível na busca pelo resultado
pretendido pelo consumidor, que poderá não surgir.
O médico não pode garantir o resultado do tratamento, dependente
de diversas variáveis fora de seu controle, como também não pode o advogado
garantir o sucesso de uma lide. Uma vez comprovado que o profissional exerceu
seu trabalho com a melhor técnica possível, o resultado desfavorável não lhe
poderá ser atribuído como falha, ausente a responsabilidade por eventual dano.
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NOS EMBARGOS DE
DIVERGÊNCIA. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL FUNDADO NA
APLICAÇÃO DE REGRA TÉCNICA DE CONHECIMENTO
RECURSAL. SÚMULA 7/STJ. NÃO OCORRÊNCIA.
POSSIBILIDADE DE CONHECIMENTO DOS EMBARGOS DE
DIVERGÊNCIA. MÉRITO. ERRO MÉDICO.
RESPONSABILIDADE DOS MÉDICOS CIRURGIÃO E
ANESTESISTA. CULPA DE PROFISSIONAL LIBERAL (CDC,
ART. 14, § 4º). RESPONSABILIDADE SUBJETIVA. EMBARGOS
REJEITADOS. (STJ EDcl nos EREsp nº 605.435/RJ, Segunda Seção,
Rel. Min. Raul Araujo, DJe 17/04/2013).
No caso em tela, uma paciente submeteu-se a uma cirurgia em uma
clínica particular, sem intercorrências. Mas após receber alta médica faleceu. Na
perícia realizada, constatou-se que o óbito deveu-se a erro do anestesista, mas o
cirurgião chefe foi isentado de responsabilidade.
Considerando, no caso específico, que o ofício do anestesista não é
subordinado ao cirurgião, mas atua com plena liberdade, não é aplicável a
responsabilidade solidária ao cirurgião chefe, pois esta depende da prova da
culpa.
Todavia, devem-se considerar as mudanças ocorridas no campo de
atuação desses profissionais.
A pessoalidade ou relação de confiança outrora existente entre os
médicos e seus pacientes não podem ser equiparadas nos casos de médicos
75
conveniados a um plano de saúde125
ou pessoas jurídicas formadas por médicos
ou outros profissionais, cujo tratamento seria de fornecedores normais126
.
Nestes casos, apesar da ressalva acima, presume-se que estejam
presentes as liberdades tolhidas nos demais casos. O consumidor pode escolher o
profissional, negociar preços e obter o esclarecimento de suas dúvidas, com o
direcionamento do trabalho às suas necessidades específicas.
125
NUNES, Rizzatto. Ob. Cit. P. 405. 126
MARQUES, Claudia Lima. Ob. Citi. P. 480.
76
2 Aspectos gerais da prova no processo civil
2.1 Conceito
Traçados os fundamentos do CDC, exsurge a necessidade de
adentrar-se no tema objeto deste estudo e, buscar a definição legal de prova para
analisar como deve ser interpretada a prova no CDC. As provas são reguladas
tanto pelo CC como pelo CPC, mas essa aparente duplicidade não merece
críticas127
.
Enquanto o Código Civil define quais são os meios de provas dos
negócios jurídicos e seu valor probante128
, o Código de Processo Civil determina
o modo de sua produção em juízo.129
Excetuados os casos em que o negócio
jurídico demanda forma especial e, consequentemente, determinado tipo de
prova, os meios de prova podem ser escolhidos conforme sua utilidade em
relação ao seu objeto.
Prova seria o meio pelo qual se demonstra a veracidade de uma
alegação130
, a constatação empírica de uma afirmação ou tese.
No processo judicial, a prova visa à reprodução dos fatos que
compõem o litígio, possibilitando ao juiz formular sua convicção.
Para que o juiz possa proferir uma decisão no caso concreto,
necessita de profundo conhecimento dos fatos que compõem a lide. As alegações
das partes não suprem seu convencimento, pois a verdade será encontrada no
conjunto de elementos exteriores (provas) trazidos aos autos131
.
Dessa forma, a prova possibilita ao juiz formar seu convencimento
sobre a existência dos fatos e avaliar de maneira completa o objeto do litígio.
127
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. vol. I, 19ª ed. Rio de Janeiro,
Forense, 2001, p. 380. 128
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil:
procedimento comum: ordinário e sumário, vol. 2, 7º ed., São Paulo: Saraiva, 2014. p. 243. 129
DUARTE, Nestor. Código Civil Comentado, coord. Cezar Peluso. 3ª ed. Barueri, Manole,
2009, p. 170. 130
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 7ª ed., São
Paulo. Malheiros, 2013, p. 309. 131
DINAMARCO, Cândido Rangel. Ob. Cit. p. 309.
77
A busca não reside na verificação efetiva do fato pelo juiz, dada sua
impossibilidade por ser pretérito, mas a construção de um quadro cognitivo que
lhe permita a verificação formal do quanto ocorrido.
Assemelha-se o trabalho do juiz no campo das provas ao trabalho
do historiador, que descobre fatos passados com base em fontes ao seu dispor132
.
Essa descoberta no processo judicial, entretanto, é realizada com a estrita
observância de regras legais.
2.2 Meios de prova
O CPC estabelece em seu artigo 332 que todos os meios legais de
prova, bem como os moralmente legítimos, são hábeis para a prova dos fatos.
Mas apesar dessa redação abrangente, os meios de prova estão
previstos no Código Civil, em seu artigo 212, que estipula como meios de prova
admitidos no ordenamento jurídico brasileiro a confissão; a prova documental;
prova testemunhal; as presunções e a perícia.
A matéria também é tratada pelo CPC, que estabelece ainda a
inspeção judicial, o depoimento pessoal, o interrogatório e exibição de
documento ou coisa. Vale ressaltar que o rol dos artigos é exemplificativo, dada a
generalidade da previsão do artigo 332 CPC já citado.
a) confissão133
: admissão pela parte de veracidade de um fato que
lhe seja desfavorável. Trata-se de um poderoso meio de prova, pois a parte
aquiesce à veracidade de um fato invocado contra si, excluindo a contradita e a
controvérsia134
. Uma vez presente a confissão, está dispensada a produção de
prova acerca do fato.
Por se tratar de ato que encerra a controvérsia acerca do fato e
prejudica o confitente, devem-se observar rigorosamente os requisitos de sua
validade. A parte deve ser capaz e plenamente ciente do ato praticado. Eventual
mácula em seu discernimento prejudica a confissão.
132
ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 2ª ed. Fundação Calouste
Gulbernkian, Lisboa, 1964, p. 71. 133
Arts. 348 a 354 do CPC. 134
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Ob. Cit., p. 389.
78
Sua produção pode ser feita em juízo ou fora do processo,
classificando-se como judiciais ou extrajudiciais respectivamente. A confissão
judicial poderá ser espontânea, quando a parte por ato próprio a pratica ou
provocada, quando obtida em depoimento pessoal da parte.
A extrajudicial, nos termos do artigo 353 CPC, deverá ser feita por
escrito, direcionada à parte contrária para que tenha a mesma validade da
judicial. A justificativa seria o atributo negocial, equivalente à renúncia da prova
contrária pelo confitente e desoneração de prova pelo beneficiado135
.
Caso seja realizada a terceiro ou contida em testamento, caberá ao
juiz sua apreciação para determinar seu valor.
Seu conteúdo é indivisível e não poderá a parte beneficiada
aproveitar somente o que lhe for favorável. Essa previsão legal decorre do caráter
unitário da confissão, que deverá ser tomada em seu conjunto, para o fiel retrato
da exposição dos fatos pelo confitente136
.
b) depoimento pessoal137
: questionamento à parte, em juízo, sobre
os fatos relevantes da causa. Adotando o magistério de Mauro Cappelletti,
Marinoni afirma que a parte é quem detém o mais completo conhecimento dos
fatos, logo o depoimento se constitui como importante meio de prova, mas cuja
confiabilidade pode ser comprometida pelo seu interesse pessoal na causa138
.
Deverá ser pedido pela parte contrária e tomado em audiência, por
meio de inquirições do juiz em primeiro lugar, seguidas pelos questionamentos
do patrono da outra parte.
Será prestado exclusivamente pela parte, admitindo-se, todavia, sua
realização por representantes nos casos de pessoas jurídicas139
. A previsão deve
ser interpretada de maneira coerente com a realidade das corporações atuais, uma
vez que um diretor de grande empresa talvez não tenha conhecimento do fato,
135
MARINONI, Luiz Guilherme. Prova, 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2011, p. 491. 136
MARINONI, Luiz Guilherme. Ob. Cit. P. 494. 137
Artigo 343 do CPC. 138
MARINONI, Luiz Guilherme. Ob. Cit. P. 388. 139
Art. 12, VI e 349, paragrafo único do CPC.
79
sendo mais razoável que seja designado um membro específico da empresa que
detenha conhecimento direto dos fatos140
.
A falta do comparecimento da parte à audiência de instrução e
julgamento ou sua recusa em prestar depoimento, equivalem à confissão, desde
que da intimação conste expressamente da sua intimação a advertência nesse
sentido.
Entretanto, a aplicação da pena de confesso ocorrerá nas ocasiões
em que não houver justo motivo para a conduta da parte. Trata-se da confissão
ficta, pois não existe a admissão expressa de fato contrário, verificada na
confissão.
Existem hipóteses nas quais a parte pode se recusar a prestar
depoimento, sem que isso implique nas penalidades legais. Estabelece o artigo
347 CPC que a parte não será obrigada a depor sobre fatos criminosos ou torpes
que lhe forem imputados e fatos que deve guardar sigilo por estado ou profissão.
O advogado deve guardar sigilo obre fato relacionado com pessoa
de quem seja ou foi advogado, mesmo quando autorizado ou solicitado pelo
constituinte, bem como sobre fato que constitua sigilo profissional141
. A mesma
previsão deve ser aplicada aos médicos142
, contadores, dentre outros.
Esse elenco é ampliado pelo artigo 229 CC, ao estabelecer:
Art. 229. Ninguém pode ser obrigado a depor sobre fato:
I - a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar segredo;
II - a que não possa responder sem desonra própria, de seu cônjuge,
parente em grau sucessível, ou amigo íntimo;
III - que o exponha, ou às pessoas referidas no inciso antecedente, a
perigo de vida, de demanda, ou de dano patrimonial imediato.
Tais disposições não devem ser consideradas como taxativas, dada
a possibilidade de outras situações em que a parte não possa ser obrigada a depor.
140
ALVIM, Eduardo Arruda. Direito Processual Civil. 5ª ed., São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2013, p. 555/556. 141
Artigo 7, XIX, Lei nº 8.906/1994. 142
Artigo 73, parágrafo único, do Código de Ética Médica.
80
Citam-se como exemplo, questionamentos acerca de fatos irrelevantes ou
impertinentes à causa, tais como questões íntimas143
.
Mesmo efeito deve ser atribuído à parte que presta seu depoimento
utilizando termos vagos e evasivas. Neste caso, o juiz avaliará o depoimento e
poderá declarar, na sentença que houve recusa em depor, aplicando a pena de
confissão.
Ainda que não seja considerado como meio de prova, mostra-se
relevante abordar o interrogatório previsto no artigo 342 do CPC. Visa o
esclarecimento do juiz sobre os fatos da lide e poderá ser requisitado a qualquer
momento.
Por não se constituir como meio de prova, não é cabível a aplicação
da pena de confissão, por ausência de previsão legal. A aplicação analógica da
pena prevista no art. 343 não é possível, pois as sanções devem ser interpretadas
restritivamente144
.
A recusa da parte em comparecer ao interrogatório poderá
constituir como crime de desobediência prevista no art. 330 do Código Penal,
violação aos deveres das partes previstos no artigo 14 CPC e litigância de má-fé
nos termos do artigo 17 CPC.
c) Prova documental145
: consiste em elementos utilizados na
instrução do processo que possam ser observados pelo juiz, sejam escritos,
grafados ou impressos em material que permita sua visualização. Nesta
definição, incluem-se documentos escritos, fotos, impressões, desenhos ou
qualquer outra forma de reprodução gráfica.
O documento é elemento representativo da prova, a perpetuação do
ato ou declaração de vontade146
. Podem ser divididos em públicos, quando
produzidos por autoridades públicas ou privados na hipótese de produção por
particulares.
143
MARINONI, Luiz Guilherme. Op cit p. 436. 144
MARINONI, Luiz Guilherme. Op cit p. 396. 145
Artigos. 364 a 389 CPC. 146
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Ob. Cit., p. 383.
81
O documento público faz prova dos fatos declarados como
ocorridos na presença do tabelião ou funcionário público que o produzir, em
decorrência da fé pública outorgada a tais pessoas. No entanto, trata-se de
presunção juris tantum147
, cabendo prova em contrário.
Atribui-se, em determinadas hipóteses, preponderância da prova
documental frente à prova testemunhal148
, conforme se verifica do disposto nos
artigos 400, incisos I e II, 401 e 402, inciso I, do CPC.
Trata-se, em verdade, de prova pré-constituída, cuja produção não
se dará no processo, mas deverá acompanhar a inicial, artigo 283 CPC, ou a
contestação artigo 283 CPC. Admite-se, entretanto, a juntada de documentos em
momentos posteriores, desde que preenchidos certos requisitos. Sua admissão
está condicionada ao tempo de ocorrência do fato probando, que deverá ser
posterior aos já apresentados, ou para contrapor fatos produzidos nos autos.
A jurisprudência149
tem adotado posicionamento favorável à
admissão dessa juntada extemporânea, caso o documento não fosse indispensável
à propositura da ação, bem como não exista o intuito de prejudicar a parte
contrária com a falta de sua juntada. Entretanto, mostra-se justificável tal
entendimento150
, haja vista a hipótese prevista no artigo 485, VII do CPC, que
trata da ação rescisória nos casos de existência de documento novo, mas existente
na época da sentença.
Na hipótese de admissão da juntada do documento em momento
posterior ao previsto, será obrigatoriamente facultado prazo para a outra parte de
manifestar, art. 398 CPC, em respeito ao princípio do contraditório e ampla
defesa.
O documento não poderá conter rasuras, borrões ou qualquer outra
mácula que impeça a plena verificação de seu conteúdo.
147
ALVIM, Eduardo Arruda. Ob. Cit. p. 583. 148
CINTRA, Antonio Carlos de Araujo. Comentários ao código de Processo civil, 3ªed., Rio
de Janeiro, Forense, 2008, p. 95. 149
REsp. nº 1.242.325/RS, Primeira Turma, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe 13/05/2014,
AgRg no REsp. nº 1.183.661/MG, Terceira Turma, Re. Min. Sidnei Beneti DJe 21/06/2013 e
AgRg no REsp. nº 369.139/RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJe 18/12/2013. 150
ALVIM, Eduardo Arruda. Ob. Cit. p. 587.
82
d) exibição de documento ou coisa151
: questiona-se sua
classificação, como meio de prova. Trata-se, em verdade, do procedimento para
apresentar ao juiz o documento ou coisa, cuja previsão seria mais coerente152
em
conjunto com os artigos 340 e 341 CPC.
O pedido deverá ser devidamente fundamentado – artigo 356 CPC,
com a individualização do documento ou da coisa, a finalidade da prova,
relacionando-a ao documento ou coisa pedida e os motivos pelos quais afirma
estar o requerido de sua posse.
Desse pedido será a parte contrária intimada para resposta no prazo
de cinco dias. O requerido poderá afirmar que não está na posse do documento
ou coisa, hipótese na qual o juiz facultará ao requerente a prova da falsidade
dessa afirmação.
Mesmo na posse, o requerido poderá recusar sua apresentação caso
o documento ou coisa for concernente a negócios da própria vida da família; sua
apresentação puder violar dever de honra; a publicidade de o documento
redundar em desonra à parte ou ao terceiro, bem como a seus parentes
consanguíneos ou afins até o terceiro grau; ou lhes representar perigo de ação
penal; a exibição acarretar a divulgação de fatos, a cujo respeito, por estado ou
profissão, deva guardar segredo; subsistirem outros motivos graves que, segundo
o prudente arbítrio do juiz, justifiquem a recusa da exibição.
No entanto, ao contrário da confissão, o conteúdo do documento
poderá ser cindido. Na hipótese de parte dele versar sobre as excludentes acima
descritas, deverá ser extraída uma suma para ser apresentada em juízo.
A recusa na apresentação do documento ou coisa acarreta diferentes
consequências, caso o requerido seja parte ou terceiro na relação processual.
O artigo 359 CPC estabelece como consequência da recusa de
quem for parte, a presunção da veracidade dos fatos que se pretendia provar.
Presunção essa relativa, pois as conclusões do juiz serão baseadas na análise de
todo conjunto probatório.
151
Artigos 355 a 363 do CPC. 152
MARINONI, Luiz Guilherme. Ob. Cit., p. 499.
83
No entanto, a recusa do terceiro poderá ser qualificada como crime
de desobediência, além da possibilidade de ser determinada a busca e apreensão
nos termos do artigo 362 CPC.
Todavia, a recusa não será admitida (artigo 358 CPC) se o
requerido tiver obrigação legal de exibir; se aludiu ao documento ou à coisa, no
processo, com o intuito de constituir prova; ou se o documento, por seu
conteúdo, for comum às partes.
O procedimento de exibição contra terceiro está previsto no artigo
360 e seguintes do CPC, constitui-se como ação que se processará em apartado,
com citação do terceiro para que apresente sua resposta no prazo de 10 dias. Será
designada audiência especial, para oitiva do terceiro, das partes e testemunhas,
caso haja a negativa da obrigação de exibir ou da posse do documento.
Essa audiência poderá ser dispensada, caso o juiz entenda que da
interpretação dos documentos juntados no incidente já seja possível proferir sua
decisão153
.
e) prova testemunhal154
: declaração prestada por pessoa estranha
aos autos, que não seja parte no litígio. Visa obter uma versão de como
ocorreram os fatos relevantes para o litígio155
.
Em razão disso, sua contribuição somente será válida no caso de
haver presenciado o fato a cujo respeito será indagada em juízo. A testemunha
poderá descrever o que viu, além do que ouviu, como também demais
informações que tenha obtido pelos demais sentidos do olfato e tato156
.
O conteúdo de sua contribuição deve ser objetivo, como descrição
dos fatos que presenciou, a despeito de sua opinião pessoal sobre o ocorrido. A
abordagem não deve ser técnica, mas descritiva e isenta.
Evidentemente, a adoção do testemunho deve guardar ressalvas,
haja vista que se trata da versão dos fatos verificada, mas costumeiramente
transmitida de acordo com a interpretação pessoal de cada pessoa.
153
MARINONI, Luiz Guilherme. Ob. Cit., p. 526. 154
Artigos 400 a 419 do CPC. 155
MARINONI, Luiz Guilherme. Ob. Cit., p. 732. 156
MARQUES, José Frederico Marques. Instituições de Direito Processual Civil, 1 ed., Rio
de Janeiro, Forense, 1952, p. 456.
84
Para servir como testemunha, deve-se observar as restrições legais
trazidas pelo artigo 405 CPC. O artigo em comento, no seu parágrafo primeiro,
trata dos incapazes, mas com conceito mais amplo do que o disciplinado pelo
artigo 3º do CC.
No parágrafo segundo, encontra-se o elenco dos impedidos de
prestar depoimento. As restrições são de ordem subjetiva, uma vez que as
pessoas citadas teriam maculada sua imparcialidade. De maneira que não podem
depor o cônjuge, bem como o ascendente e o descendente em qualquer grau, ou
colateral, até o terceiro grau, de alguma das partes, por consanguinidade ou
afinidade, quem for parte na causa e, o que intervém em nome de uma parte,
como o tutor na causa do menor, o representante legal da pessoa jurídica, o juiz,
o advogado e outros, que assistam ou tenham assistido as partes.
Ressalva feita no inciso I quando estiver presente o interesse
público ou quando for o único meio de se obter a prova necessária.
A suspeição é tratada no parágrafo terceiro, que da mesma maneira
trata das pessoas carecedoras da imparcialidade exigida da testemunha, são elas:
o condenado por crime de falso testemunho, havendo transitado em julgado a
sentença; o que, por seus costumes, não for digno de fé; o inimigo capital da
parte, ou o seu amigo íntimo e; o que tiver interesse no litígio.
Apesar dessas restrições, o parágrafo 4 do artigo 405, autoriza a
oitiva de testemunhas suspeitas ou impedidas, caso entenda ser estritamente
necessário, que serão prestados independentemente de compromisso e serão
valorados de acordo com o entendimento do juiz.
Importante destacar que as previsões do artigo 405 CPC, também
são regidas pelo artigo 208 CC, mais recente. Mas não houve revogação ou
modificação das disposições do CPC, nos termos do artigo 2º, § 2º da Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro, as disposições convivem
harmonicamente157
.
Ainda que o CPC vede o depoimento dos incapazes, o CC o admite,
desde que para prova de fatos que sé eles conheçam. Quanto aos interditos por
157
ALVIM, Eduardo Arruda. Ob. Cit. p. 538.
85
demência ou doentes mentais, a interpretação conjunta do artigo 405, § 1º, I e II
CPC com o artigo 228 e § único CC, admite-se o depoimento se ao tempo da
ocorrência dos fatos, podia discerni-los, assim como, quando do depoimento,
tenha condições de transmitir suas percepções158
.
Quanto ao cônjuge, ascendente, descendente e colaterais até
terceiro grau, o CC prevê sua aceitação na hipótese de serem as únicas pessoas
que conhecerem os fatos e no CPC, nas hipóteses de interesse público, causas
relativas ao estado da pessoa ou quando a prova não puder ser feita de outro
modo.
f) presunção159
: dada a ausência de prova direta, admite-se que a
existência de um determinado fato implique, por dedução lógica, a existência de
outro160
. Trata-se de trabalho intelectual, interpretação dos fatos verificados no
processo, para a obtenção de uma conclusão acerca do fato probando161
.
Não se trata de uma prova ou de um fato, logo não se pode
qualificá-la como meio de prova, mas operação mental que parte de um fato
conhecido e provado, para demonstrar outro162
. Os fatos não provados são
assumidos como existentes pelo ordenamento jurídico163
, a partir dessa
construção intelectual.
A presunção poderá ser judicial, quando resultado do trabalho
intelectual do juiz, ou legal, quando prevista em lei. Na judicial caberá ao juiz
observar algumas limitações, como a impossibilidade de sua utilização em
hipóteses em que é exigido ou vedado determinado tipo de prova, como a
prevista nos artigos 230 e 400 CC.
158
MARINONI, Luiz Guilherme. Ob. Cit. p. 752. 159
Artigo 335, CPC. 160
MARINONI, Luiz Guilherme. Ob. Cit., p. 137. 161
SANTOS, Moacyr Amaral. Prova Judiciária no Civel e Comercial. Vol. I, São Paulo: Max
Limonad, 1952, p. 54. 162
LOPES, João Batista. Curso de direito processual civil. volume 2ª, São Paulo: Atlas, 2006,
p. 105. 163
BUENO, Cassio Scarpinella. Ob. Cit. p. 249.
86
Todavia, partindo do pressuposto da impossibilidade de obtenção
da prova escrita, admite-se a prova testemunhal no caso do artigo 402, II CPC e,
da mesma maneira, deverá ser admitida a presunção164
.
O fato de a presunção relativa admitir prova em contrário, equivale
à distribuição do ônus da prova. De acordo com o magistério de MARINONI, a
parte beneficiada pela presunção está liberada de prova o fato e caberá à outra
parte a produção da prova em contrário, independentemente da posição da parte
na relação processual. A melhor definição165
, como ressalta o professor citando
BARBOSA MOREIRA, é distribuição do ônus ao contrário de inversão, uma vez
que a imputação do ônus em razão da presunção coincida com as regras usuais de
distribuição do ônus da prova.
No caso de um acidente entre veículos, na qual um veículo colidiu
com a traseira do outro, o dever de vigilância166
e cautela a serem observados
pelo motorista que conduzia o veículo traseiro, implicam na presunção de que a
responsabilidade pelo acidente lhe deve ser imputada.
Se a ação de reparação de danos for proposta pelo motorista que
seguia à frente, não precisará prova a culpa do réu pelo acidente, transferindo ao
réu o ônus de provar o contrário. Por conseguinte, se a ação for proposta pelo
condutor do veículo que colidiu na traseira, lhe caberá o ônus de provar que o
acidente deve ser imputado ao outro condutor167
. Na primeira hipótese, houve
inversão do ônus probatório, ao passo que na segunda hipótese o ônus não se
alterou.
164
MARINONI, Luiz Guilherme. Ob. Cit. p. 141. 165
MARINONI, Luiz Guilherme. Ob. Cit. P.144 166
Lei 9.503/97: Art. 29. O trânsito de veículos nas vias terrestres abertas à circulação
obedecerá às seguintes normas:
I - a circulação far-se-á pelo lado direito da via, admitindo-se as exceções devidamente
sinalizadas;
II - o condutor deverá guardar distância de segurança lateral e frontal entre o seu e os demais
veículos, bem como em relação ao bordo da pista, considerando-se, no momento, a velocidade e
as condições do local, da circulação, do veículo e as condições climáticas. 167
Lei 9.503/97: Art. 42. Nenhum condutor deverá frear bruscamente seu veículo, salvo por
razões de segurança.
87
Nas presunções legais, o trabalho intelectual é obra do legislador e
subdividem-se em absolutas, iuris et de iure, e relativas, iuris tantum, caso não
comportem prova em contrário.
A presunção absoluta é uma questão de direito material, na qual o
legislador exclui a possibilidade de sua discussão, vinculando o juiz ao seu teor.
Assim não se admite questionamento acerca do esforço conjunto do casal na
construção do patrimônio marital – artigo 1.658 CC.
A presunção legal relativa admite prova em contrário, conforme
previsão do art. 322 CC ao estabelecer a presunção de pagamento de todas as
parcelas com a quitação da última ou artigo 324 CC que determina a entrega do
título ao devedor como prova do seu pagamento.
g) prova pericial168
: Possivelmente o meio de prova mais complexo,
tem por escopo a elucidação de fatos que dependam de conhecimentos especiais
e técnicos, cujo domínio não se espera da formação do juiz. Ainda que o juiz
detenha o conhecimento técnico necessário, deverá determinar a realização da
perícia, para documentar as conclusões técnicas em auxílio a uma nova avaliação
do caso em sede de recurso169
.
A perícia propicia às partes a efetiva participação na elucidação da
questão técnica, por meio de seus assistentes técnicos170
.
Para realização da perícia, será nomeado um perito judicial, pessoa
idônea, da confiança do juiz e com formação específica relacionada com o objeto
da perícia. Ao perito serão aplicadas - artigos 138, III e 423 CPC, as mesmas
regras relativas à suspeição e impedimento que dizem respeito ao juiz, de acordo
com os artigos 134 e 135 CPC.
O juiz poderá indeferir a produção de prova pericial, quando a
prova do fato não depender de conhecimento técnico, mostrar-se desnecessária
em razão de outras provas produzidas ou quando a verificação do fato for
impraticável.
168
Artigos 420 a 439 do CPC. 169
ALVIM, Eduardo Arruda. Ob. Cit. p. 562. 170
MARINONI, Luiz Guilherme. Ob. Cit., p. 792.
88
A cuidadosa análise da pertinência de se deferir a prova pericial é
justificada pela sua onerosidade, além da possibilidade de retardar a conclusão do
processo171
. Poderá, dessa maneira, o juiz indeferir a prova pericial172
se entender
que as partes apresentaram material técnico suficiente para a elucidação dos
fatos.
O indeferimento da perícia também poderá ocorrer nas hipóteses
em que a matéria puder ser decidida à luz das regras de experiência comum do
artigo 335 CPC. Tais regras permanecem como técnicas, mas já integram o
conhecimento do juiz e da sociedade, dispensando sua afirmação por um perito.
O perito judicial não precisa afirmar que eletricidade provoca choque, fato de
conhecimento geral, mas se a controvérsia residir na voltagem da descarga
elétrica ou amperagem, o esclarecimento do perito será necessário173
.
A perícia poderá consistir em exame, vistoria ou avaliação nos
termos do artigo 420, caput, CPC. Os autores divergem sobre o significado
atribuído a cada modalidade. Exame seria a inspeção para verificação de algum
fato ou circunstância que interesse ao litígio, em coisas móveis, semoventes,
documentos, livros comerciais, papéis e pessoas174
. Vistoria consistira na
constatação de imóveis e avaliação trataria da apuração de valor de mercado de
determinado bem175
.
Sem embargo das classificações acima indicadas, seu significado
prático é inexistente, pois o CPC não cria nenhuma distinção entre as espécies.176
Essa discrepância de conceitos seria resultado do uso inadequado dos vocábulos
pelo artigo, devendo o pedido de prova pericial recair apenas sobre seu objeto177
.
h) inspeção judicial178
: meio pelo qual o juiz toma conhecimento
dos fatos de maneira direta, trata-se de ato próprio do juiz na formação de seu
171
ALVIM, Eduardo Arruda. Ob. Cit. p. 564. 172
Artigo 427 do CPC. 173
ALVIM, Eduardo Arruda. Ob. Cit. p. 565 174
MARQUES, José Frederico. Ob. Cit. p. 472. 175
BUENO, Cassio Scarpinella. Op cit. p 304. 176
BUENO, Cassio Scarpinella. Op cit. p 304 177
MARINONI, Luiz Guilherme. Ob. Cit. p. 796. 178
Artigos 440 a 443 CPC.
89
convencimento179
, Poderá ser auxiliado por técnicos se a complexidade da
questão assim demandar facultada, por evidente, a participação das partes e seus
assistentes técnicos.
Após essa breve explanação acerca dos meios de prova,
abordaremos sua finalidade.
179
BUENO, Cassio Scarpinella. Ob. Cit. p. 313.
90
2.3 Objeto
O objeto da prova são os fatos, coisas, acontecimentos ou
circunstâncias que devem ser provados no processo180
· , sobre os quais haja
dúvida de sua existência ou inexistência181
. Tais fatos devem ser relevantes, dada
possibilidade de influenciarem a decisão, além de pertinentes na exata medida
em que dizem respeito à causa182
.
Ainda que às partes seja possibilitada a produção de qualquer tipo
de prova, desde que moralmente legítimos183
, ao juiz caberá disciplinar essa
atividade.
Esse controle é necessário uma vez que não deverá ser admitida
qualquer prova, mas apenas prova dos fatos que demandem essa atividade.
Por conseguinte, não é exigida a produção de prova dos fatos
notórios (artigo 334, I CPC), pois dada sua natureza, são de conhecimento
geral184
. Na hipótese de o réu se interpor contra a notoriedade, o autor poderá
provar o fato ou apenas sua notoriedade185
.
Igualmente é dispensada a prova dos fatos confessados pela outra
parte (artigo 334, II CPC), pois não existe dúvida acerca de sua existência.
Também carecem de prova os fatos impertinentes ou estranhos à
causa, aqueles que apesar de pertencer à causa, não interferem na decisão, os
incontroversos (artigo 334, III CPC), e daqueles cuja presunção de existência ou
veracidade (artigo 334, IV CPC) 186
. Trata-se de presunção absoluta, a vincular o
juiz às conclusões previstas na lei e impedir a avaliação do fato187
.
Os fatos relevantes são aqueles necessários ao convencimento do
juiz sobre o caso, para a compreensão da realidade. O juiz não precisa ser
convencido acerca do direito; este faz parte do seu conhecimento188
, como
180
MARQUES, José Frederico Ob. Cit. p. 365. 181
CINTRA, Antonio Carlos de Araujo. Ob. Cit., pp. 5/6 182
ALVIM, Eduardo Arruda. Ob. Cit., p. 521. 183
Artigo 332 do CPC. 184
BUENO, Cassio Scarpinella. Ob. Cit. p. 255. 185
MARINONI, Luiz Guilherme. Ob. Cit. p. 119. 186
CINTRA, Antonio Carlos Araujo. Ob. Cit., p. 348. 187
MARINONI, Luiz Guilherme. Ob. Cit. p. 133. 188
MARQUES, José Frederico. Ob. Cit., p. 366.
91
pressuposto de sua atividade. Todavia, a parte que alegar direito municipal,
estadual, estrangeiro ou consuetudinário, deverá provar-lhe o teor e a vigência189
.
A prova visa a permitir o embasamento concreto das proposições
formuladas pelas partes por meio da dialética processual, o contraditório, para
que o juiz se convença da realidade dos fatos. O exercício da atividade
jurisdicional não pode se resumir às convicções pessoais do juiz, que podem
sofrer influências externas, como seu temperamento, hábitos, inclinações e
prevenções190
.
Dessa forma, as provas visam a apresentar o quadro mais realista
possível dos fatos que compõem o litígio, produzidas de acordo com
formalidades especiais e participação de todas as partes do processo.
2.4 Sujeitos
As provas são trazidas ao processo não somente pelas partes que
compõem o litígio, mas também por terceiros, como testemunhas ou auxiliares
do juízo, a exemplo do o perito.
Os sujeitos da prova são as partes, incumbidas de solicitar e
produzir as provas necessárias para o convencimento do juiz acerca dos fatos que
lhe são pertinentes e favoráveis.
À parte não interessa produzir uma prova não alinhada com seu
interesse, seja pelas regras de distribuição do ônus da prova, seja por não ser
obrigado a produzir prova em seu desfavor191
. Sua posição no processo informa
diretamente o ato de produção da prova.
Além das partes, ao juiz também são atribuídos poderes
instrutórios, conforme disposição do artigo 130 do CPC. Todavia, essa atividade
não é orientada por interesses ou características pessoais; ao contrário, visa ao
esclarecimento dos fatos relevantes para decisão do litígio.
A doutrina se divide quanto ao entendimento da extensão dos
poderes instrutórios do juiz, alguns autores defendem a subsidiariedade dessa
189
Artigo 337 do CPC. 190
SANTOS, Moacyr Amaral.On. Cit., p. 17. 191
Artigo 5, incisos LXIII, CF, art. 8 Pacto de São José da Costa Rica.
92
atividade, enquanto outros admitem a plena liberdade de determinar a produção
de prova em substituição das partes.
O livre exercício da atividade instrutória pelo juiz violaria a
paridade de tratamento entre as partes, nos termos do artigo 125, I do CPC, ao
completar omissões das partes no cumprimento de seu ônus probatório192
. Em
verdade, não mais existiriam motivos para a existência de regras relativas ao
ônus da prova.
Essa atividade do juiz deveria ser subsidiária à das partes, cabendo
ao juiz exercê-la se da análise do conjunto probatório, permanecer a dúvida193
.
Na defesa de posição contrária, José Roberto dos Santos Bedaque,
afirma que a importância dos poderes instrutórios do juiz reside justamente na
busca da igualdade real entre as partes, corrigindo desigualdades econômicas na
relação processual que possam repercutir no resultado do processo194
.
Com base no pressuposto da impossibilidade da parte mais fraca
produzir as provas necessárias para a melhor demonstração de seu direito, o
papel passivo do juiz equivaleria a “mero assistente passivo de um duelo entre o
lobo e o cordeiro” 195
.
A busca da efetiva prestação jurisdicional de qualidade implica no
comprometimento do juiz na busca do que realmente ocorreu no plano exterior
do processo, a necessidade de sua atuação efetiva de prestar a tutela
jurisdicional196
.
Adota-se, neste estudo, o entendimento dos poderes instrutórios do
juiz como atividade subsidiária à das partes.
Atua o juiz como sujeito objetivo da prova ao requisitar provas de
ofício acerca de fatos não esclarecidos, apesar das provas produzidas pelas
192
ALVIM, Eduardo Arruda. Ob. Cit. p. 525. 193
SANTOS, Moacyr Amaral. Ob. Cit. p. 110. 194
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz. 7 ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 106/107. 195
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Ob. Cit. p. 112. 196
BUENO, Cassio Scarpinella. Ob. Cit. p. 247.
93
partes. Se não puder proferir sua decisão com aplicação do ônus da prova e a lide
versar sobre direitos indisponíveis, poderá determinar a produção de provas197
.
2.5 Destinatário
A prova produzida no processo visa ao esclarecimento dos fatos,
expediente necessário para que o juiz possa aplicar o direito ao caso concreto.
Dessa forma, o destinatário da prova seria o juiz198
.
Dessas afirmações ressurge a importância de se colocar o juiz no
centro do problema probatório. Como destinatário final da prova, é ele
quem deve estar convencido da validade (ou não) das proposições
formuladas199
.
O exercício dessa atividade lhe impõe o dever de disciplinar, na
forma da lei, sua produção e avaliação.
Independentemente desta maior ou menor vinculação, contudo, não
são as partes ou eventuais terceiros intervenientes os destinatários da
prova. É para quem julga a causa que ela deve ser produzida.
Dessa afirmação, que pode parecer despretensiosa, há diversos
desdobramentos importantes para o tema cujo desenvolvimento
interessa para esse capítulo e, mais amplamente, para toda essa Parte
IV. É que na medida em que o juiz (dando destaque, propositalmente,
à pessoa que ocupa o órgão jurisdicional para legar em conta a
situação do art. 132) estiver convencido das alegações das partes ou de
terceiros, não há razão para se produzir prova. Inversamente, na
medida em que o juiz (a ressalva é a mesma) não estiver convencido
das alegações formuladas no processo, do que ocorreu ou deixou de
ocorrer no plano a ele exterior, haverá a necessidade de produção de
provas. Como é o juiz o destinatário da prova, é ele quem determinará
a realização da “fase instrutória” porque é ele, em última análise,
quem entende ser, ou não, possível o “julgamento antecipado da lide”
diante dos pressupostos dos incisos do art. 330200
.
A função da prova é fornecer ao juiz o melhor quadro cognitivo
acerca dos fatos que compõem o litígio para aplicar o direito correlato.
197
ALVIM, Eduardo Arruda. Ob. Cit. p. 527. 198
MARQUES, Ob. Cit., p. 389 e ALVIM, Eduardo Arruda. Ob. Cit., p. 521. 199
MARINONI, Luiz Guilherme. Ob. Cit., p. 56. 200
BUENO, Cassio Scarpinella. Ob. Cit., p. 246.
94
Entretanto, essa atividade não é livre, mas deve ser exercida de acordo com
regras pré-estabelecidas201
.
O juiz não participa do fato litigioso. Este lhe será apresentado de
acordo com as normas legais para que seja conhecido em sua totalidade, decidido
e encerrado.
Todavia, vale ressaltar que todas as provas produzidas compõem o
denominado conjunto probatório, parte integrante e fundamental do processo
judicial.
O conjunto probatório é uno e indivisível, sendo resultante da reunião
de todas as provas existentes nos autos e das regras ligadas ao
momento da apreciação de questões fáticas (presunção, ficção
jurídica, prova legal, máximas de experiência) pelo órgão julgador202
.
Ainda que o destinatário da prova seja o juiz, as provas produzidas
fazem parte do conjunto probatório do processo e servirão para a exata
compreensão dos fatos inclusive para o órgão jurisdicional que analisar o caso
em sede de recurso. Trata-se do princípio da aquisição da prova.
A prova, porque destinada ao juízo e ao próprio juiz, deve ser
considerada, analisada e avaliada independentemente de quem a
produziu em juízo e, em última análise, pode, até mesmo, acabar por
prejudicar quem a trouxe para o plano do processo, isto é, quem a
produziu. Trata-se de princípio segundo o qual é irrelevante quem
tenha sido aquele que produziu a prova em juízo que passa a pertencer
ao próprio processo, longe da disponibilidade das partes ou de
eventuais terceiros203
.
Portanto, ainda que destinada a formar o convencimento do juiz, as
provas permanecerão inseridas no processo, como pedra fundamental do
esclarecimento dos fatos.
2.6 Momentos da prova
Como a atividade instrutória no processo é dirigida pelo juiz,
caberá a ela decidir as provas que devem ser produzidas no processo. Essa
201
CARNELUTTI, Francesco. La Prova Civile, tradução de Niceto Acalá-Zamora y Castillo da
2 ed. Italiana (1947), Argentina, ed. Depalma, 2000, p. 18. 202
FERREIRA, William Santos. Ob. Cit., p. 262. 203
BUENO, Cassio Scarpinella. Ob. Cit., p. 254.
95
atividade pode ser separada em três etapas ou atos processuais, denominados atos
de proposição (pedido), de admissão (deferimento ou indeferimento), atos de
produção (realização das provas) e avaliação204
.
A prova não pode ser interpretada como algo estático, ainda que
possam ser definidas quatro fases, a saber: a proposição ou requerimento; o
deferimento; a produção e sua valoração205
.
Essa divisão remete aos atos processuais, de modo que se situam
dentro do processo. Mas as provas podem ser produzidas antes do processo ou no
seu transcurso.
O processo judicial é dividido tradicionalmente em quatro206
fases,
a postulatória – na qual as partes apresentam suas alegações e pedidos; a
saneatória ou ordinatória ocasião em que o juiz verifica a regularidade do
processo; a instrutória – na qual serão produzidas as provas necessárias; e a
decisória – ocasião na qual o juiz irá proferir sua decisão.
Contudo, a fase instrutória é destinada à produção de provas sob o
crivo do juiz e do contraditório, para o que determinadas formalidades são
observadas.
Outras provas podem ser produzidas em momento diverso, como a
prova documental, cuja produção frequentemente é anterior à propositura da
demanda. Os procedimentos preparatórios, como as medidas cautelares de
produção antecipada de prova e busca e apreensão.
2.7 Valoração da prova
Uma vez abordada a produção da prova, faz-se necessário analisar
como deve ser feita a sua avaliação e interpretação pelo juiz.
Com efeito, caberá ao juiz a formulação de uma conclusão com
base no conjunto probatório que informa o processo: trata-se do princípio da
unidade probatória207
. Todas as provas presentes nos autos servirão ao
204
MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Novo processo civil brasileiro. 20ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2000, p. 56. 205
BUENO, Cassio Scarpinella. Ob. Cit. p. 259. 206
MEDINA, José Miguel Garcia. Parte geral e processo de conhecimento. 3ª ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 171. BUENO, Cassio Scarpinella. Ob. Cit. p. 43. 207
FERREIRA, William Santos. Ob. Cit., p. 261.
96
convencimento do juiz, cabendo a este a escolha criteriosa das mais relevantes ao
deslinde da controvérsia.
Deverá extrair sua convicção para aplicar corretamente o direito à
espécie, a subsunção do fato à norma de acordo com algumas regras e princípios.
Trata-se de um expediente que dignifica o juiz e lhe fortalece a
posição208
.
Entretanto, ainda que presente a liberdade, deverá ater-se aos fatos
que compõem o litígio, às provas produzidas, regras de experiência e direito
aplicável. Sua convicção obrigatoriamente deve-se condicionar aos fatos, pois
são estes que geram a relação jurídica a ser fixada em sentença209
.
A este critério a doutrina denomina persuasão racional, sendo que
alguns autores adotam a denominação livre apreciação ou convencimento
motivado210
.
O artigo 131 do CPC estabelece que o juiz avaliará livremente as
provas produzidas no processo, mas em sua decisão, constarão os motivos que
lhe permitiram o convencimento.
Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e
circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas
partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram
o convencimento.
A relevância dada à obrigatoriedade de fundamentação das decisões
judiciais pode ser verificada nas diversas disposições legais no mesmo sentido,
tais como o artigo 93, inciso IX, da CF, e o artigo 458 do CPC.
208
ALVIM, Arruda. Código de Processo Civil Comentado, Vol. V., São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1979, p. 240. 209
SANTOS, Moacyr Amaral. Ob. Cit., p. 333. 210
Atualmente, os princípios da persuasão racional do juiz e do livre convencimento motivado
vêm sendo empregados como sinônimos, contudo, como adiante se mostrará, se o ponto alto de
incidência é o da análise crítico-valorativa do julgador, a denominação persuasão é inapropriada
porque empregada em época que a iniciativa probatória competia às partes litigantes, daí se
direcionando a nomenclatura para este “esforço” persuasivo de convencer o juiz, quando o que
rege atualmente o sistema probatório é a irrelevância do responsável pela produção da prova,
destacando-se apenas a sua existência para consideração judicial (princípios da aquisição e
comunhão da prova), sendo possível a determinação de provas, inclusive ex officio (princípio
dos deveres instrutórios), pelo que, mais coerente a terminologia livre convencimento motivado.
(FERREIRA, William Santos. Ob. Cit., p. 287.)
97
Art. 93 Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal,
disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes
princípios:
(...)
IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão
públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade,
podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias
partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a
preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não
prejudique o interesse público à informação
Art. 458. São requisitos essenciais da sentença:
I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da
resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências
havidas no andamento do processo;
II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de
direito;
III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes
lhe submeterem.
Essa independência funcional propicia liberdade de atuação do juiz,
sem imposições ou influência de outras pessoas ou órgãos superiores de
jurisdição, mas deverá prestar contas do que decide, mediante a clara e expressa
demonstração de seus motivos211
.
Caberá, inclusive, ao juiz a determinação da repetição212
das provas
já produzidas, caso assim entenda necessária.
211
DINAMARCO, Cândido Rangel. Ob. Cit., P. 248. 212
Art. 132, § único, CPC.
98
3 O ônus da prova nos processos relativos a lides de consumo
3.1 Ônus da prova
3.1.1 Conceito
Ônus significa incumbência. Ônus probatório se traduz em
necessidade de provar os fatos ao juiz no interesse de que seja atingido o seu
convencimento213
. À parte incumbe provar os fatos alegados, convencer o
magistrado da sua existência ou inexistência.
O ônus probatório não se equipara a uma obrigação, haja vista que
não existe sanção ou ilicitude em seu descumprimento. A parte que deixar de
cumprir seu ônus poderá não obter o resultado pretendido.
A satisfação do ônus da prova é interesse do próprio onerado, não
há sua sujeição, seja ao juiz ou à outra parte da demanda, mas apenas escolha
entre satisfazer (o ônus) ou dispor da tutela do seu interesse214
.
O professor Cassio Scarpinella Bueno relaciona o ônus “com a
necessidade da prática de um ato para a assunção de uma específica posição de
vantagem própria ao longo do processo e, na hipótese oposta, que haverá, muito
provavelmente, um prejuízo para aquele que não praticou o ato ou o praticou
insuficientemente215
.
Mais adequado à definição de ônus seria a possibilidade de atuar,
produzir prova em benefício próprio, de acordo com regras pré-estabelecidas. A
omissão da parte nesse sentido poderá apenas prejudicá-la.
Todavia, mesmo diante dessa omissão, o julgamento pode ser
favorável à parte omissa, pois o julgamento favorável pode se fundar em provas
produzidas de ofício ou pela parte adversa216
.
O Código de Processo Civil estabelece qual o ônus probatório de
cada uma das partes litigantes, quais os fatos cuja responsabilidade lhe é
atribuída para promover sua comprovação.
213
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. São Paulo:
Saraiva, 1995. p. 344. 214
MIRANDA, Pontes. Comentários ao Código de Processo Civil, Tomo IV, 2 ed. Rio de
Janeiro, forense, 1979, p. 322. 215
BUENO, Cassio Scarpinella, Ob. Cit. p. 255. 216
MARINONI, Luiz Guilherme. Ob. Cit., p. 179.
99
Dessa forma, outro relevante papel do ônus probatório exsurge nas
hipóteses de carência de provas217
, haja vista que o magistrado deverá proferir
uma decisão que encerre a lide. Caberá ao juiz, dada a precariedade das provas
produzidas, avaliar se as partes cumpriram o ônus que lhes era atribuído para
decidir de maneira desfavorável àquela que não cumpriu seu respectivo ônus.
Neste caso, a regra do ônus da prova equivaleria a uma regra de
decisão, aplicável nos casos de dúvida, para eliminá-la, iluminar o juiz que não
se convenceu sobre como os fatos ocorreram218
. Os fatos deverão ser
considerados como não provados, na hipótese da parte não cumprir o ônus que
lhe cabia219
.
Além de ser uma forma de auxílio ao juiz para o deslinde do caso,
as regras de distribuição do ônus da prova servem também como orientação às
partes acerca de sua incumbência para o pleno exercício de seus direitos no
processo.
Em regra, a distribuição do ônus da prova é feita de acordo com o
estabelecido no artigo 333 do Código de Processo Civil, que determina que o
ônus da prova incumbe:
I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;
II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou
extintivo do direito do autor.
Fato constitutivo transforma situação genérica em juridicamente
relevante ao processo, trata-se exatamente da comprovação da possibilidade de
exercício do direito. Constitui-se como suporte fático a partir do qual se pretende
a tutela do direito220
.
Deve o autor comprovar a subsunção do fato à norma, a situação
fática a lhe permitir o exercício do direito ou o pedido para que o juiz assim o
faça.
Por outro lado, caberá ao réu a prova de fatos impeditivos,
modificativos ou extintivos do direito do autor.
217
MARQUES, José Frederico. Ob. Cit., p. 380. 218
MARINONI, Luiz Guilherme , p.Ob. cit. p. 170. 219
ALVIM, Eduardo Arruda. Ob. Cit. p. 530. 220
BUENO, Cassio Scarpinella, Ob. Cit. p. 255
100
Fatos extintivos encerram a relação jurídica objeto do litígio, ao
passo que os impeditivos evitam seu efeito normal ou próprio e os modificativos
não excluem nem impedem os efeitos da relação, mas os alteram221
.
Com o surgimento do Código de Defesa do Consumidor, tendo em
vista a natureza protetiva de seus princípios, houve uma sensível alteração na
forma de se interpretar a fase de instrução do processo.
Ainda que o destinatário da prova seja o juiz, as provas pertencem
ao processo. Os fatos podem ser comprovados, independentemente de quem
tenha produzido a prova em função222
do princípio da aquisição da prova223
. A
confissão, a título de exemplo, relevante meio de prova, é produzida por quem
não tinha o ônus probatório224
.
A delimitação das regras a serem cumpridas por cada parte tem um
sentido maior de organização, atribuição de responsabilidades para o processo
cumprir sua finalidade e o litígio ser solucionado.
Tais regras podem limitar a produção de provas, seja no aspecto
temporal, ao estabelecer uma fase específica para tanto, como também no aspecto
material, ao negar validade para determinados tipos de prova, como a prova
ilícita, ou estabelecer presunções legais.
Essas regras não visam a impedir ou prejudicar o exercício dos
direitos das partes, mas sua orientação em sentido proveitoso ao processo. Trata-
se de critério objetivo de atribuição de encargo, haja vista que as partes sempre
terão interesse em fazer provas dos fatos, seja de sua existência ou de sua
inexistência.
221
SANTOS. Moacyr Amaral. Ob. Cit., p. 140/141. 222
BUENO, Cassio Scarpinella, Ob. Cit. p. 258. 223
Também é comum a referência ao “princípio da aquisição da prova”, é dizer, a prova, porque
destinada ao juízo e ao próprio juiz, deve ser considerada, analisada e avaliada
independentemente de quem a produziu em juízo e, em última análise, pode, até mesmo, acabar
por prejudicar que a trouxe para o plano do processo, isto é, quem a produziu. Trata-se de
princípio segundo o qual é irrelevante quem tenha sido aquele que produziu a prova em juízo
que passa a pertencer ao próprio processo longe da disponibilidade ou dos interesses da parte ou
de eventuais terceiros. BUENO, Cassio Scarpinella, Ob. Cit. p. 254. 224
MIRANDA, Pontes. Ob. Cit., p. 317.
101
Todavia, a distribuição do ônus da prova poderá ser feita de
maneira diversa da estabelecida no CPC, conforme as hipóteses a seguir
abordadas.
3.2 Teoria da carga dinâmica
O CPC não tem previsão expressa que possibilite a inversão do
ônus da prova, apenas o disposto no artigo 333 que trata dos casos de convenção
das partes acerca da distribuição do ônus.
Entretanto, podem surgir situações em que a aplicação das regras de
distribuição do ônus possa impedir a produção da prova, tornar inútil a prestação
jurisdicional e, consequentemente, impedir o acesso à justiça225
.
Dessa maneira, pode-se defender a aplicação do inciso I, do
parágrafo único, às situações previstas nos incisos I e II.
De acordo com o direito clássico, a previsão do artigo 333 do
Código de Processo Civil seria imutável. Entretanto, adquiriu relevo na doutrina
moderna a chamada teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova.
Referida teoria autoriza, caso o juiz entenda que a outra parte
possui maior possibilidade de produzir a prova de determinado fato, distribuir o
ônus da prova de maneira diversa da prevista no artigo 333 do Código de
Processo Civil.
Trata-se de expediente no sentido de aprimorar as regras
processuais, que datam de época remota e podem não atender às realidades
atuais, com o resultado de desequilíbrio das partes no processo226
.
Essa teoria tem como expoente o jurista argentino Jorge W.
Peyrano227
, defensor da análise das circunstâncias do caso concreto para de
decidir sobre o ônus da prova.
225
KNIJNIK, Danilo. As (perigosíssimas) doutrinas do “ônus dinâmico da prova” e da “situação
de senso comum” como instrumentos para assegurar o acesso à justiça e superar a probatio
diabólica. Processo e Constituição: estudos em homenagem ao professor José Carlos
Barbosa Moreira, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 942. 226
MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Ob. Cit.. pp. 248/249. 227
PEYRANO, Jorge W. e CHIAPPINI, Julio O. Lineamentos de las cargas probatórias
“dinâmicas”, in El Derecho: Jurisprudência General, Tomo 107, Buenos Aires, 1984, pp.
1.006/1.007.
102
O Superior Tribunal de Justiça abordou em julgamento sobre danos
ambientais a aplicação da teoria da carga dinâmica da prova, cuja ementa segue
abaixo:
PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL. CONTAMINAÇÃO
COM MERCÚRIO. ART. 333 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
ÔNUS DINÂMICO DA PROVA. CAMPO DE APLICAÇÃO DOS
ARTS. 6º, VIII, E 117 DO CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR. PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO. POSSIBILIDADE
DE INVERSÃO DO ONUS PROBANDI NO DIREITO
AMBIENTAL. PRINCÍPIO IN DUBIO PRO NATURA.
1. Em Ação Civil Pública proposta com o fito de reparar alegado dano
ambiental causado por grave contaminação com mercúrio, o Juízo de
1º grau, em acréscimo à imputação objetiva estatuída no art. 14, § 1º,
da Lei 6.938/81, determinou a inversão do ônus da prova quanto a
outros elementos da responsabilidade civil, decisão mantida pelo
Tribunal a quo.
2. O regime geral, ou comum, de distribuição da carga probatória
assenta-se no art. 333, caput, do Código de Processo Civil. Trata-se de
modelo abstrato, apriorístico e estático, mas não absoluto, que, por
isso mesmo, sofre abrandamento pelo próprio legislador, sob o influxo
do ônus dinâmico da prova, com o duplo objetivo de corrigir eventuais
iniquidades práticas (a probatio diabólica, p. ex., a inviabilizar
legítimas pretensões, mormente dos sujeitos vulneráveis) e instituir
um ambiente ético-processual virtuoso, em cumprimento ao espírito e
letra da Constituição de 1988 e das máximas do Estado Social de
Direito.
3. No processo civil, a técnica do ônus dinâmico da prova concretiza e
aglutina os cânones da solidariedade, da facilitação do acesso à
Justiça, da efetividade da prestação jurisdicional e do combate às
desigualdades, bem como expressa um renovado due process, tudo a
exigir uma genuína e sincera cooperação entre os sujeitos na demanda.
4. O legislador, diretamente na lei (= ope legis), ou por meio de
poderes que atribui, específica ou genericamente, ao juiz (= ope
judicis), modifica a incidência do onus probandi, transferindo-o para a
parte em melhores condições de suportá-lo ou cumpri-lo eficaz e
103
eficientemente, tanto mais em relações jurídicas nas quais ora
claudiquem direitos indisponíveis ou intergeracionais, ora as vítimas
transitem no universo movediço em que convergem incertezas
tecnológicas, informações cobertas por sigilo industrial, conhecimento
especializado, redes de causalidade complexa, bem como danos
futuros, de manifestação diferida, protraída ou prolongada.
5. No Direito Ambiental brasileiro, a inversão do ônus da prova é de
ordem substantiva e ope legis, direta ou indireta (esta última se
manifesta, p. ex., na derivação inevitável do princípio da precaução),
como também de cunho estritamente processual e ope judicis (assim
no caso de hipossuficiência da vítima, verossimilhança da alegação ou
outras hipóteses inseridas nos poderes genéricos do juiz, emanação
natural do seu ofício de condutor e administrador do processo).
6. Como corolário do princípio in dubio pro natura, "Justifica-se a
inversão do ônus da prova, transferindo para o empreendedor da
atividade potencialmente perigosa o ônus de demonstrar a segurança
do empreendimento, a partir da interpretação do art. 6º, VIII, da Lei
8.078/1990 c/c o art. 21 da Lei 7.347/1985, conjugado ao Princípio
Ambiental da Precaução" (Resp. 972.902/RS, Rel. Min. Eliana
Calmon, Segunda Turma, DJe 14.9.2009), técnica que sujeita aquele
que supostamente gerou o dano ambiental a comprovar "que não o
causou ou que a substância lançada ao meio ambiente não lhe é
potencialmente lesiva" (Resp. 1.060.753/SP, Rel. Min. Eliana
Calmon, Segunda Turma, DJe 14.12.2009).
7. A inversão do ônus da prova, prevista no art. 6º, VIII, do Código de
Defesa do Consumidor, contém comando normativo estritamente
processual, o que a põe sob o campo de aplicação do art. 117 do
mesmo estatuto, fazendo-a valer, universalmente, em todos os
domínios da Ação Civil Pública, e não só nas relações de consumo
(Resp. 1049822/RS, Rel. Min. Francisco Falcão, Primeira Turma, DJe
18.5.2009).
8. Destinatário da inversão do ônus da prova por hipossuficiência -
juízo perfeitamente compatível com a natureza coletiva ou difusa das
vítimas - não é apenas a parte em juízo (ou substituto processual),
mas, com maior razão, o sujeito-titular do bem jurídico primário a ser
protegido.
104
9. Ademais, e este o ponto mais relevante aqui, importa salientar que,
em Recurso Especial, no caso de inversão do ônus da prova, eventual
alteração do juízo de valor das instâncias ordinárias esbarra, como
regra, na Súmula 7 do STJ. "Aferir a hipossuficiência do recorrente ou
a verossimilhança das alegações lastreada no conjunto probatório dos
autos ou, mesmo, examinar a necessidade de prova pericial são
providências de todo incompatíveis com o recurso especial, que se
presta, exclusivamente, para tutelar o direito federal e conferir-lhe
uniformidade" (Resp. 888.385/RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Castro
Meira, DJ de 27.11.2006. No mesmo sentido, Resp. 927.727/MG,
Primeira Turma, Rel. Min. José Delgado, DJe de 4.6.2008).
10. Recurso Especial não provido. (STJ REsp. nº 883.656/RS,
Segunda Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 28/02/2012).
Dessa maneira, em alguns casos a parte que tiver mais condições de
produzir a prova, seja por ter acesso aos documentos ou informações técnicas,
poderá receber o ônus dessa prova, ainda que originalmente não lhe coubesse.
Assim, sempre que o juiz se deparar com um claro desequilíbrio
entre a capacidade das partes de produzir as provas necessárias para verificação
da existência ou inexistência dos fatos alegados no processo, poderá distribuir o
ônus de maneira diversa da estipulada no artigo 333 do Código de Processo
Civil.
Essa teoria ou tendência doutrinária moderna inspirou o projeto do
Novo Código de Processo Civil, que prevê em seu artigo 380, §1º,228
que o ônus
da prova poderá ser invertido em casos de extrema dificuldade ou
impossibilidade de produção da prova, desde que por meio de decisão
fundamentada, respeitadas as particularidades do caso concreto.
228
Art. 380. O ônus da prova incumbe
§ 1º. Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa, relacionadas à
impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à
maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova
de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada. Neste caso, o juiz deverá dar à
parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.
§ 2º. A decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência
do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil. Texto conforme Parecer do
Relator do PL 6.025/2005, Dep. Paulo Teixeira, aprovado na sessão de 2.7.2013.
105
De maneira análoga, dada a relevância da disparidade da situação
concreta das partes no litígio, o CDC estabeleceu regras diferenciadas a serem
aplicadas quanto ao ônus da prova.
Para compreender os motivos de tal previsão, faz-se necessária uma
breve abordagem de como o CDC trata a matéria.
3.3 Do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor
3.3.1 Ônus probatório do consumidor
Conforme já exposto, as previsões do CDC atendem à necessidade
de equilibrar a relação existente entre consumidor e fornecedor. Esse equilíbrio é
atingido com regras que ajudem o consumidor ou facilitem o exercício de seus
direitos.
Todavia, essa orientação não se traduz em simples e direta
modificação das regras do ônus probatório do consumidor, mas na criação de
regras que possibilitem a manutenção do equilíbrio entre as partes no caso de
necessidade.
Nesse sentido, não existe previsão no Código acerca de
modificação do ônus da prova do autor, logo se aplica a regra estipulada pelo
artigo 333, I do CPC.
Entendemos que o mencionado artigo não pode ser entendido desta
maneira (como dispensa da prova do defeito), pois em nada modifica a
distribuição de prova do art. 333, do Código de Processo Civil que
impõe o onus probandi “ao autor quanto ao fato constitutivo de seu
direito” e “ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo
ou extintivo do direito do autor”.
Como visto, somente ao juiz, caberá estabelecer a inversão do dever
de provar a existência do defeito, desde que assim entenda “a seu
critério”, feita a análise de acordo com cada caso individualmente, e
somente se houver plausibilidade na afirmação do consumidor ou se
este for hipossuficiente (Art, 6º)229
.
Ao consumidor caberá a prova dos fatos constitutivos de seu
direito. Em se tratando de fato do produto, a ele cabe a prova da ocorrência do
acidente, dos danos sofridos e do nexo de causalidade.
229
ALVIM, Arruda. Ob. Cit., p. 131.
106
Conforme abordado anteriormente, os danos poderão ser
extrapatrimoniais, como o dano moral ou patrimoniais e, neste último caso,
deverá ser comprovado seu valor.
Dada a vulnerabilidade do consumidor, não lhe é exigida a prova
técnica e contundente do defeito no produto. Deverá, contudo, fazer a prova que
lhe for possível no sentido de demonstrar a existência do defeito no produto ou
serviço prestado pelo fornecedor.
A exata elucidação do defeito será obtida com o cumprimento do
ônus do fornecedor, no sentido de inexistência do defeito. Presume-se a
existência do defeito, com a comprovação do dano, dado o ônus da prova da sua
inexistência recair sobre o fornecedor230
.
Podemos utilizar a comparação entre duas jurisprudências sobre
casos muito similares, as conhecidas “pílulas de farinha”. A empresa Schering do
Brasil Química Farmacêutica produzia e vendia um anticoncepcional chamado
Microvlar. Após adquirir um novo maquinário, a empresa no intuito de testá-lo
embalou diversas caixas do produto, mas seu conteúdo não continha o princípio
ativo, eram apenas placebos.
Parte desses produtos foi distribuída no mercado consumidor, sendo
que várias usuárias do produto engravidaram pela ausência do princípio ativo. Os
julgados abaixo tratam exatamente desse caso.
Todavia, não se perquire acerca da existência do defeito do
produto, haja vista que restou incontroversa a venda dos placebos, dada a ampla
publicidade do caso, inquéritos policiais e investigação do Ministério Público. O
ônus das consumidoras residia na prova do dano (gravidez) e do nexo de
causalidade com o produto defeituoso, ou seja, seu consumo.
PÍLULA ANTICONCEPCIONAL INEFICAZ (PLACEBO). DANOS
MATERIAIS E MORAIS. A RELAÇÃO ENTRE AS PARTES
REGESE PELO DIREITO CONSUMERISTA. A FALTA DE
VERIFICAÇÃO DO PRAZO DE VALIDADE POR PARTE DO
CONSUMIDOR NÃO REVELA CULPA CONCORRENTE.
230
MARQUES, Claudia Lima. Ob. Cit., p. 435.
107
A autora provou que começou a tomar anticoncepcional para
tratamento de cisto nos ovários, em fevereiro de 1997. Tendo testado
pílulas de outras marcas, em setembro daquele ano começou a usar o
Microvlar, por recomendação médica, uma vez que esse medicamento
foi mais bem aceito pelo organismo dela (fls. 42/45). Há declaração da
Drogaria Suafarma, de que ela adquiriu Microvlar em 22 de maio de
1998 (fls. 46).
A corroborar a versão da autora, está também o depoimento da médica
que prescreveu o anticoncepcional, que afirmou que ela era usuária da
referida marca (fls. 1834/1835).
Além disso, a data da concepção (final de maio de 1998) coincide com
o notório período de circulação das pílulas de farinha.
É fato notório a circulação de pílulas ineficazes. Milhentas gravidezes
indesejadas o confirmam. Se não foram encontradas cartelas do
produto viciado no Estado de São Paulo, isso aconteceu porque (muito
provavelmente) na ocasião da busca todas já haviam sido repassadas a
consumidoras.
Não convence dizer que a gravidez se deu pelo mau uso do
medicamento. A autora conseguiu evitar a gravidez por quase um ano.
Apesar de a médica dela ter afirmado que recomendava começar a
nova cartela depois de cinco dias da menstruação, o que, de acordo
com hipótese levantada pela ré, poderia chegar a um intervalo de nove
dias entre uma cartela e outra, é muito revelador que a gravidez
aconteceu justamente no período de circulação do placebo.
Tem-se, portanto, como certo que a gravidez de Karyahn decorreu do
uso do anticoncepcional Microvlar que não continha o princípio ativo.
(TJSP Apelação nº 9162417-63.2008.8.26.0000, 9ª Câmara de Direito
Privado, Rel. Des. Antonio Vilenilson, j. 21/05/2013).
Da leitura do trecho do voto do Relator, observa-se a falta de prova
do consumo efetivo de produtos do lote defeituoso, mas a consumidora provou a
prescrição médica do produto, ser consumidora de longa data, forneceu
declaração da farmácia que já havia comprado o produto e a sua gravidez era
contemporânea à inserção dos lotes defeituosos no mercado.
Com base nesses indícios, o acórdão admitiu como provado o nexo
causal entre o a gravidez e o produto defeituoso, sem inverter o ônus probatório.
108
No caso a seguir transcrito, outra conclusão pode ser observada:
RECURSO ESPECIAL. GRAVIDEZ ALEGADAMENTE
DECORRENTE DE CONSUMO DE PÍLULAS
ANTICONCEPCIONAIS SEM PRINCÍPIO ATIVO ("PÍLULAS DE
FARINHA"). INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. ENCARGO
IMPOSSÍVEL. ADEMAIS, MOMENTO PROCESSUAL
INADEQUADO. AUSÊNCIA DE NEXO CAUSAL ENTRE A
GRAVIDEZ E O AGIR CULPOSO DA RECORRENTE.
1. O Tribunal a quo, muito embora reconhecendo ser a prova
"franciscana", entendeu que bastava à condenação o fato de ser a
autora consumidora do anticoncepcional "Microvlar" e ter esta
apresentado cartelas que diziam respeito a período posterior à
concepção, cujo medicamento continha o princípio ativo
contraceptivo.
2. A inversão do ônus da prova regida pelo art. 6º, inciso VIII, do
CDC, está ancorada na assimetria técnica e informacional existente
entre as partes em litígio. Ou seja, somente pelo fato de ser o
consumidor vulnerável, constituindo tal circunstância um obstáculo à
comprovação dos fatos por ele narrados, e que a parte contrária possui
informação e os meios técnicos aptos à produção da prova, é que se
excepciona a distribuição ordinária do ônus.
3. Com efeito, ainda que se trate de relação regida pelo CDC, não se
concebe inverter-se o ônus da prova para, retirando tal incumbência de
quem poderia fazê-lo mais facilmente, atribuí-la a quem, por
impossibilidade lógica e natural, não o conseguiria. Assim, diante da
não-comprovação da ingestão dos aludidos placebos pela autora -
quando lhe era, em tese, possível provar -, bem como levando em
conta a inviabilidade de a ré produzir prova impossível, a celeuma
deve se resolver com a improcedência do pedido.
4. Por outro lado, entre a gravidez da autora e o extravio das "pílulas
de farinha", mostra-se patente a ausência de demonstração do nexo
causal, o qual passaria, necessariamente, pela demonstração ao menos
da aquisição dos indigitados placebos, o que não ocorreu.
5. De outra sorte, é de se ressaltar que a distribuição do ônus da prova,
em realidade, determina o agir processual de cada parte, de sorte que
nenhuma delas pode ser surpreendida com a inovação de um ônus que,
antes de uma decisão judicial fundamentada, não lhe era imputado.
109
Por isso que não poderia o Tribunal a quo inverter o ônus da prova,
com surpresa para as partes, quando do julgamento da apelação.
6. Recurso especial parcialmente conhecido e, na extensão, provido.
(STJ REsp. nº 720.930/RS, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe
Salomão, Dje 09/11/2009).
Ao contrário do exemplo anterior, nesse julgado somente existe
prova testemunhal de que a consumidora se utilizava do anticoncepcional. Por
outro lado, não existe prova de que lotes do medicamento defeituoso tenham
circulado fora do Estado de São Paulo e a consumidora residia no Estado do Rio
Grande do Sul.
Portanto, neste caso, a consumidora não se desincumbiu de seu
ônus probatório de comprovar, ainda que por meio de provas indiretas, o nexo
causal entre a gravidez e o produto defeituoso, que seria a utilização do
medicamento.
Em nenhum dos casos foi determinada a inversão do ônus da prova,
mas aplicada o artigo 333, I do CPC.
3.3.2 Ônus probatório do fornecedor
Caberá, no entanto, ao fornecedor provar as excludentes de sua
responsabilidade. Essa atribuição é relevante no sentido de manter junto à parte
que criou o produto ou presta o serviço e domina sua tecnologia a incumbência
de demonstrar que as alegações do consumidor não condizem com a realidade.
Importante frisar que as causas excludentes são limitadas às
situações nas quais resta provada a ausência de participação do fornecedor no
dano, a inexistência do nexo de causalidade com o dano ou defeito.231
.
O fornecedor deverá demonstrar, dessa forma, que não falhou em
seu dever legal de introduzir no mercado apenas produtos de qualidade e seguros
para o consumidor.
As hipóteses de exclusão de responsabilidade almejam equilibrar a
distribuição das responsabilidades na relação de consumo, especialmente pela
natureza objetiva determinada pela lei232
. Esse equilíbrio é alcançado pela função
231
NUNES, Rizzatto. Ob. Cit., p. 333. 232
ALVIM, Arruda. Ob. Cit., p. 121.
110
mitigadora dessas excludentes no sistema de responsabilidade objetiva adotado
pelo Código.
Nesse sentido, os artigos 12 e 14 do CDC enumeram as hipóteses
de exclusão, nos seguintes termos:
Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou
estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da
existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos
consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação,
construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou
acondicionamento de seus produtos, bem como por informações
insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.
§ 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será
responsabilizado quando provar:
I - que não colocou o produto no mercado;
II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito
inexiste;
III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da
existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos
consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem
como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição
e riscos.
§ 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando
provar:
I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;
II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro
No inciso I do §3º do artigo 12, consta a ausência de relação entre a
existência do produto no mercado e qualquer conduta atribuível ao fornecedor,
seja por ação ou omissão. Logo, ausente relação entre o fornecedor e o dano.
Importe destacar que não se trata de negar a existência do defeito
ou do fato, mas elidir a responsabilidade do fornecedor, pois o produto foi
colocado no mercado à sua revelia, contra sua vontade. Logo, não existe conduta
atribuível ao fornecedor.
111
Dentre as possibilidades, podem-se citar hipóteses de roubo ou
furto do produto guardado em estoque, falsificação ou até apreensão por
autoridade administrativa e introdução posterior no mercado, sem anuência do
fornecedor233
.
O fornecedor adotou todas as cautelas necessárias para evitar que o
produto estivesse disponível para os consumidores, mas fatos alheios ao seu
controle determinaram a inserção do produto no mercado.
O professor José Geraldo de Brito Filomeno cita o exemplo de um
roubo de carga ocorrido na Rodovia Anchieta, no qual uma carga de peças
automotivas destinadas à exportação foi roubada. Imediatamente após o fato, a
fornecedora veiculou nos principais jornais o fato, com o aviso de que o uso dos
produtos roubados poderia acarretar sérios prejuízos aos consumidores. A
eventual inserção dos produtos no mercado se verificará por ato alheio a vontade
da fabricante e resultado de ato ilícito234
.
O artigo 14 não traz hipótese similar de exclusão de
responsabilidade, pois a prestação do serviço consiste num ato praticado pelo
fornecedor, logo não se pode questionar sua presença no mercado.
Já o inciso II do §3º do artigo 12, assim como no inciso I do §3º do
artigo 14 fazem referência ao defeito alegado pelo consumidor. Ao fornecedor
cabe o ônus de provar que o defeito não existe, de forma análoga à previsão do
artigo 333, II, do CPC. O fornecedor tem o dever de somente introduzir no
mercado produtos livres de defeitos235
.
Se o produto não apresentar vício de qualidade, não existe relação
causal com a verificação do dano, afastando-se a responsabilidade do
fornecedor236
.
Neste ponto, reside uma importante característica do
estabelecimento do ônus da prova, pois atribui à parte mais capacitada
tecnicamente o esclarecimento das questões relativas ao defeito alegado.
233
DENARI, Zelmo. Código brasileiro de defesa do consumidor, comentado pelos autores
do anteprojeto, 6 ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999, p. 165. 234
FILOMENO, José Geraldo Brito. Ob. Cit., p. 217. 235
MARQUES, Claudia Lima. Ob. Cit., p. 436. 236
DENARI, Zelmo. Ob. Cit., p. 165.
112
Conforme já mencionado, o consumidor deverá fazer prova da
existência do defeito, ainda que por meio de indícios ou pela presunção de sua
existência, em face da prova da ocorrência do dano.
O consumidor adquire o produto pela sua funcionalidade, aparência
ou simples desejo. Seu interesse reside no produto em si ou no benefício de sua
utilização, funcionamento, mas não sobre como foi produzido ou seus detalhes e
partes integrantes.
Uma vez que tal produto apresente defeito, o consumidor
desconhece o motivo do defeito, dada a falta de conhecimento técnico. Não se
pode exigir do consumidor a perfeita descrição e prova do defeito do produto,
dada sua vulnerabilidade, seja nos aspecto fático, técnico, jurídico ou
informacional.
Vale ressaltar que quanto maior a complexidade técnica da questão
a ser dirimida, maior será a especialidade técnica exigida da perícia, dada a
profundidade das informações demandas.
Esse esclarecimento cabal e técnico deverá ser promovido pelo
fornecedor, detentor das informações técnicas e capaz do completo e minudente
esclarecimento acerca da existência ou não do defeito.
Não basta, neste sentido, mera argumentação lógica que busque
demonstrar o quão improvável seria a existência de um determinado
defeito. Sem a demonstração cabal da ausência de defeito não se
afasta a responsabilidade determinada ao fornecedor. Da mesma
forma, sempre deve ser destacado, que em matéria de fato do serviço,
sua má prestação que gera danos ao consumidor induz a uma
verdadeira presunção de existência do defeito, que gera danos ao
consumidor, cuja prova em contrário é exigida do fornecedor, para
efeito de eximir-se da responsabilidade237
.
Uma montadora de veículos domina por completo as informações
técnicas dos veículos que fabrica. A introdução de um modelo de veículo no
mercado consumidor se inicia pelo trabalho de engenheiros e uma série de outros
profissionais no desenho e estudo das características do futuro modelo.
237
MIRAGEM, Bruno. Ob. Cit., p. 531.
113
Os detalhes funcionais e estéticos serão escolhidos dentro das
possibilidades que melhor se adequam ao projeto, o tipo do motor, tamanho do
chassi, matérias primas empregadas e outras questões são totalmente decididas
pelo fabricante. O protótipo será ainda testado nas mais variadas condições de
uso, para certificar-se de sua qualidade e segurança. Por fim, aprovado o modelo,
caberá ao fabricante a adaptação de seu parque industrial para a produção em
série do veículo, sendo que novamente todos os cuidados técnicos deverão ser
observados para que as características técnicas e particularidades do produto
estejam presentes em todas as unidades do produto final.
Portanto, no caso de um veículo, caberá ao seu fabricante a prova
de qualquer controvérsia técnica que lhe sirva de excludente. Detentor da
tecnologia de criação, desenvolvimento e fabricação do veículo, o
correspondente lógico é justamente sua incumbência no esclarecimento técnico
dos fatos, a prova que seu produto preenche os requisitos de segurança e
qualidade exigidos.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DO CONSUMIDOR. AÇÃO
FUNDADA EM ALEGAÇÃO DE FATO DO PRODUTO.
ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO. NÃO ACIONAMENTO DE
AIRBAGS. INEXISTÊNCIA DE DEFEITO COMPROVADA POR
PROVA PERICIAL. ALEGAÇÃO DE INAPTIDÃO DO PERITO.
PRECLUSÃO. REGRAS DE INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA.
IRRELEVÂNCIA. JULGADO APOIADO EM PROVA PERICIAL
ROBUSTA. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ.
1. Em se tratando de nulidade relativa, nos termos do art. 245 do CPC,
deve ela ser arguida na primeira oportunidade em que couber à parte
falar nos autos. Assim, diante da inércia do interessado quanto à
nomeação do perito, opera-se a preclusão do direito de arguir sua
incapacidade técnica.
2. Diferentemente do comando contido no art. 6º, inciso VIII, que
prevê a inversão do ônus da prova "a critério do juiz", quando for
verossímil a alegação ou hipossuficiente a parte, o § 3º, do art. 12,
preestabelece - de forma objetiva e independentemente da
manifestação do magistrado -, a distribuição da carga probatória em
desfavor do fornecedor, que "só não será responsabilizado se provar: I
114
- que não colocou o produto no mercado; II - que, embora haja
colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; III- a culpa
exclusiva do consumidor ou de terceiro". É a diferenciação já clássica
na doutrina e na jurisprudência entre a inversão ope judicis (art. 6º,
inciso VIII, do CDC) e inversão ope legis (arts. 12, § 3º, e art. 14, § 3º,
do CDC). Precedente da Segunda Seção.
3. No caso concreto, todavia, mostra-se irrelevante a alegação acerca
do ônus da prova, uma vez que a solução a que chegou o Tribunal a
quo não se apoiou na mencionada técnica, mas sim efetivamente nas
provas carreadas aos autos. A improcedência do pedido indenizatório
decorreu essencialmente da prova pericial produzida em Juízo, sob a
vigilância de assistentes nomeados por autor e réu, prova essa que
chegou à conclusão de que a colisão do veículo dirigido pelo
consumidor não fora frontal e que, para aquela situação, não era
mesmo caso de abertura do sistema de airbags.
4. De fato, a despeito de a causa de pedir apontar para hipótese em que
a responsabilidade do fornecedor é objetiva, este se desincumbiu do
ônus que lhe cabia, tendo sido provado que, "embora haja colocado o
produto no mercado, o defeito inexist[iu]" (sic), nos termos do art. 12,
§ 3º, inciso II, do CDC. Tendo sido essa a conclusão a que chegou o
Tribunal a quo, a reversão do julgado demandaria reexame de provas,
providência vedada pela Súmula 7/STJ.
5. Recurso especial não provido. (STJ REsp. nº 1.095.271/RS, Quarta
Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 05/03/2013).
Portanto, no julgado acima transcrito decidiu-se que ausente o
defeito no produto, padece o nexo causal com qualquer ato ou omissão do
fornecedor; logo, deve ser afastada sua responsabilidade. Ainda que os danos do
consumidor existam, sua responsabilidade não pode ser atribuída ao fornecedor.
Por fim, o inciso III do §3º do artigo 12, assim como no inciso II do
§3º do artigo 14 comprova igualmente a ausência de participação do fornecedor
no dano, uma vez que o consumidor ou o terceiro é o único responsável pelo
dano verificado. Entenda-se terceiro como qualquer pessoa que não participe da
relação de consumo, bem como a hipótese trata de culpa exclusiva e não de culpa
concorrente.
115
Na culpa exclusiva desaparece o nexo de causalidade entre o
defeito do produto e o dano, ao passo que na culpa concorrente se atenua a
responsabilidade, repartindo o prejuízo238
.
Trata-se de hipótese de ausência de ligação entre o dano e o defeito
do produto.
RECURSO ESPECIAL. CIVIL, PROCESSUAL CIVIL E
CONSUMIDOR. RESPONSABILIDADE CIVIL. ROUBO DE
VEÍCULO. MANOBRISTA DE RESTAURANTE (VALET).
RUPTURA DO NEXO CAUSAL. FATO EXCLUSIVO DE
TERCEIRO. AÇÃO REGRESSIVA DA SEGURADORA.
EXCLUDENTE DA RESPONSABILIDADE CIVIL.
CONSUMIDORA POR SUB-ROGAÇÃO (SEGURADORA).
1. Ação de regresso movida por seguradora contra restaurante para se
ressarcir dos valores pagos a segurado, que teve seu veículo roubado
quando estava na guarda de manobrista vinculado ao restaurante
(valet).
2. Legitimidade da seguradora prevista pelo artigo 349 do Código
Civil/2002, conferindo-lhe ação de regresso em relação a todos os
direitos do seu segurado.
3. Em se tratando de consumidor, há plena incidência do Código de
Defesa do Consumidor, agindo a seguradora como consumidora por
sub-rogação, exercendo direitos, privilégios e garantias do seu
segurado/consumidor.
4. A responsabilidade civil pelo fato do serviço, embora exercida por
uma seguradora, mantem-se objetiva, forte no artigo 14 do CDC.
5. O fato de terceiro, como excludente da responsabilidade pelo fato
do serviço (art. 14, § 3º, II, do CDC), deve surgir como causa
exclusiva do evento danoso para ensejar o rompimento do nexo
causal.
6. No serviço de manobristas de rua (valets), as hipóteses de roubo
constituem, em princípio, fato exclusivo de terceiro, não havendo
prova da concorrência do fornecedor, mediante defeito na prestação
do serviço, para o evento danoso.
238
DENARI, Zelmo. Ob. Cit. p. 166.
116
7. Reconhecimento pelo acórdão recorrido do rompimento do nexo
causal pelo roubo praticado por terceiro, excluindo a responsabilidade
civil do restaurante fornecedor do serviço do manobrista (art. 14, § 3º,
II, do CDC).
8. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. (STJ REsp. nº
1.321.739/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino,
DJe 10/09/2013).
No caso em tela, restou comprovado que o roubo do veículo foi
praticado por terceiro, de modo que o restaurante, na qualidade de fornecedor,
estava excluído da responsabilidade nos termos do art. 14, §3º do CDC.
O prejuízo decorre de conduta de terceiros e extrapola o conceito de
risco assumido uma vez que o dano somente se verificou em razão de condições
extraordinárias, fora do alcance e da previsibilidade do fornecedor.
Existe entendimento de que a disposição do artigo 12 como
resultado239
da inversão do ônus da prova estabelecida no artigo 6º, VIII.
No entanto, entendemos que se trata de regra de distribuição do
ônus probatório, pois a inversão conforme estabelecida no artigo 6º se configura
como ato do juiz (ope judicis), ao passo que o artigo 12 está estabelecida na
própria lei, independente de atuação do juiz (ope legis) 240
.
Em verdade, o artigo 12 atua de forma análoga à regra de
distribuição do ônus da prova prevista no art. 333, II, do Código de Processo
239
DENARI, Zelmo. Ob. Cit., p. 168. 240
O fornecedor, no caso o fabricante, na precisa dicção legal, "só não será responsabilizado
quando provar que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste."
Ou seja, o ônus da prova da inexistência de defeito do produto ou do serviço é do fornecedor, no
caso, do fabricante demandado.
A inversão do ônus da prova, nessa hipótese específica, não decorre de um ato do juiz, nos
termos do art. 6º, VIII, do CDC, mas derivou de decisão política do próprio legislador,
estatuindo a regra acima aludida.
É a distinção entre a inversão do ônus da prova "ope legis" (ato do legislador) e a inversão "ope
judicis" (ato do juiz).
Em sede doutrinária, já tive oportunidade de analisar essa delicada questão processual
(Responsabilidade Civil no Código do Consumidor e a Defesa do Fornecedor, 3ª edição. São
Paulo: Saraiva, 2010, p. 355/357).
Em síntese, são duas modalidades distintas de inversão do ônus da prova previstas pelo Código
de Defesa do Consumidor (CDC), podendo ela decorrer da lei (ope legis) ou de determinação
judicial (ope judicis). (trecho do voto do Min. João Otavio Noronha, Eresp n 422.778/SP, DJ
21/06/12).
117
Civil, ao estabelecer ao réu a incumbência de provar fatos extintivos do direito
do autor.
No magistério de Arruda Alvim241
:
A inexistência do defeito é fato impeditivo do direito do
autor/consumidor (cabendo ao fornecedor o ônus da sua comprovação,
nos termos do art. 333, II, do CPC), e por esta razão foi expressamente
previsto pelo Código de Defesa do Consumidor como eximente da
responsabilidade do fornecedor, que deverá prová-lo, em nada se
afasta do regime de distribuição de provas do Código de Processo
Civil.
Nos casos de responsabilidade por fato do produto ou serviço,
caberá ao fornecedor produzir prova no sentido de demonstrar as excludentes
legais. Na hipótese de não lograr êxito, sua responsabilidade estará estabelecida.
A redação do artigo 12 atende à necessidade de uma previsão clara
e específica no tocante ao meio de prova num litígio consumerista, de maneira
análoga às extensas definições de consumidor e fornecedor abordadas no início
deste trabalho.
O consumidor permanece com a incumbência de provar os fatos
constitutivos de seu direito. Deve provar a ocorrência do acidente e o dano
respectivo, mas não lhe é exigida prova plena e técnica do defeito, cabendo ao
fornecedor242
a elucidação técnica desse fato. O defeito se presume em
decorrência da existência do dano.
Um eletrodoméstico que apresente um problema elétrico, por
exemplo, este cause uma pequena explosão. Esta explosão atinge as mãos do
consumidor e causa danos na cozinha, queimando parte da parede e móveis. O
consumidor precisará demonstrar os danos e o defeito no produto. Essa prova
poderá consistir em uma foto do produto com evidências visuais da explosão, em
um orçamento técnico com descrição do ocorrido ou até, com a apresentação do
produto no processo.
241
ALVIM, Arruda. Ob. Cit., p. 70. 242
MARQUES, Claudia Lima. Ob. Cit. p. 435.
118
Mas do consumidor não é exigida a prova dos motivos do problema
elétrico do eletrodoméstico, sua origem e explicação técnica acerca de
componentes internos que falharam ou deixaram de funcionar corretamente.
Caberá ao fornecedor a prova da inexistência do defeito, como por
exemplo, erro do consumidor ao ligar o produto na tensão errada.
Em recente decisão proferida em processo no qual a consumidora
alega que sua prótese ortopédica se quebrou sem motivo, o magistrado assim se
manifestou:
...fixo como pontos controversos a existência do defeito no produto e
se o acidente ocorreu por culpa deste defeito ou por culpa da autora ou
de terceiro. Não há que se falar em inversão do ônus da prova no
presente caso, isto porque, tratando-se de responsabilidade objetiva,
cabe ao réu, para se isentar de sua responsabilidade civil provar a
inexistência do defeito ou que o acidente se deu por culpa da autora ou
de terceiro. Cabe a autora apenas a prova da ocorrência do acidente e
do nexo causal entre este e os prejuízos sofridos243
.
Neste caso acima apontado, a Autora era portadora de uma prótese
de fêmur e estava em viagem internacional quando ocorreu a quebra da prótese.
De acordo com a consumidora, a quebra ocorreu enquanto estava deitada
descansando, ao virar seu corpo na cama.
Atendida em um hospital, foi-lhe recomendado o retorno ao Brasil
e imediata cirurgia com a substituição do produto.
A ação foi proposta com pedido de reparação dos danos materiais e
morais e com a comprovação da viagem internacional, atendimento no hospital
do país onde se localizava relatório médico do cirurgião que efetuou a troca da
prótese quebrada e todo o prontuário médico da cirurgia fornecido pelo hospital.
De acordo com o despacho, pode-se averiguar o cumprimento do
ônus processual da consumidora que provou a ocorrência do acidente e os
prejuízos, com prescrições médicas para diversas sessões de fisioterapia e
medicamentos e seus respectivos comprovantes de pagamento.
243
Processo nº 0014856-53.2011.8.26.0011, 4ª Vara Cível Foro Regional de Pinheiros, Comarca
de São Paulo: Juiz Paulo Jorge Scartezzini Guimarães, disponibilizado em 26/01/2012, p.
1731/1745 DJE.
119
Caberá à fornecedora, nos termos do artigo 12, II e III do CDC,
provar que o defeito não existe ou que o acidente ocorreu por culpa exclusiva da
consumidora. Essa prova poderá ser feita mediante a perícia técnica da prótese
quebrada, bem como comprovação da resistência dos materiais envolvidos na
fabricação do produto, diversos testes de resistência de durabilidade nos produtos
colocados no mercado e qualquer outra prova disponível ao fornecedor.
Assim como no caso da montadora de veículos, a fabricante da
prótese desenvolveu inteiramente o produto, desde seu projeto, funcionalidade,
escolha de materiais usados em sua fabricação e todas as etapas de sua produção.
Portanto, domina inteiramente todos os aspectos técnicos do produto e poderá
produzir a melhor prova nesse sentido.
Portanto, o fornecedor, mais capacitado tecnicamente e responsável
pelo risco do negócio que desenvolve, deverá fazer a prova de que a
responsabilidade pelo acidente não pode lhe ser atribuída.
A mesma interpretação deve ser atribuída à excludente de
responsabilidade pelo fato do serviço do art. 14, §3º, I e II do CDC, cuja
responsabilidade também é objetiva.
Dessa forma, resta bem claro e específico o ônus da prova do
fornecedor para se eximir da responsabilidade objetiva trazida pelo CDC.
O CDC ainda prevê outra hipótese de responsabilidade objetiva no
seu artigo 38 ao tratar da comunicação publicitária.
Art. 38. O ônus da prova da veracidade e correção da informação ou
comunicação publicitária cabe a quem as patrocina.
Já mencionamos a obrigação do fornecedor de atuar com boa-fé nas
relações de consumo, possibilitando ao consumidor o correto e claro
entendimento das características de seus produtos e serviços, sua utilidade,
funcionalidade e riscos.
Dada sua vulnerabilidade, especialmente a informacional, o
consumidor não possui conhecimento técnico suficiente para interpretar com
segurança se as informações transmitidas pela publicidade divulgada em
qualquer tipo de mídia correspondem à realidade.
120
O professor José Geraldo Brito Filomeno244
assim conceitua
publicidade:
Já publicidade vem a ser a mensagem estratégica e tecnicamente
elaborada por profissionais especificamente treinados e
preparados para tanto, e veiculados igualmente por meios de
comunicação de massa mais sofisticados (como, por exemplo,
outdoors, mensagens por televisão, rádios, revistas, jornais, Internet
etc.), cujas finalidades específicas são: (1) tornar um produto ou
serviço conhecidos do público-alvo-potencial-consumidor; (2)
tentar convencer esse mesmo público a comprar o produto ou
serviços anunciados (grifos originais).
Portanto, a característica primordial da publicidade é o
convencimento do público alvo, a sedução no sentido de provocar a vontade de
aquisição dos produtos e serviços ofertados. O aspecto principal é justamente o
manejo, pela publicidade e consequentemente pelo fornecedor dos sentimentos,
crenças e desejos do consumidor.
Essa preocupação reside exatamente no escopo da publicidade, na
sua intenção de convencer o consumidor a adquirir os produtos e serviços nela
veiculados. A norma assegura a seriedade e veracidade do conteúdo da
publicidade, como uma forma de “oferta contratual” 245
.
Imprescindível a remissão ao artigo 36, § único do CDC, assim
redigido:
Art. 36. A publicidade deve ser veiculada de tal forma que o
consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal.
Parágrafo único. O fornecedor, na publicidade de seus produtos ou
serviços, manterá, em seu poder, para informação dos legítimos
interessados, os dados fáticos, técnicos e científicos que dão
sustentação à mensagem.
O texto é claro e expresso no sentido de obrigar o fornecedor a
manter em sua posse as informações técnicas e científicas que corroborem as
informações contidas na publicidade.
244
FILOMENO, José Geraldo. Ob. Cit., p. 221. 245
MARQUES, Claudia Lima. Ob. Cit., p. 881.
121
Portanto, da mesma maneira que o fornecedor de produtos e
serviços é mais capacitado para a prova técnica, por deter o conhecimento acerca
da tecnologia envolvida, na publicidade está obrigado a manter em sua posse a
comprovação da veracidade das informações que divulga.
Logo se o patrocinador da publicidade tem o dever legal de manter
organizados e à disposição dos interessados os dados técnicos, fáticos e
científicos que sustentem sua mensagem, deve suportar o ônus dessa prova246
.
Ao consumidor que ingressar em juízo sob a alegação de ser vítima
de publicidade enganosa ou abusiva, caberá a prova da realização do negócio
jurídico e seus prejuízos, por não corresponder o bem adquirido, à expectativa da
publicidade. O fornecedor deverá provar que o produto representa fielmente a
publicidade divulgada e apresenta todos os atributos mencionados247
.
3.4 Da Inversão do ônus da prova no Código de Defesa do
Consumidor
O traço mais marcante, ao menos para o propósito desse estudo, das
regras relativas a provas no Código de Defesa do Consumidor é a possibilidade
de inversão do ônus da prova com a finalidade de facilitar a defesa do
consumidor.
Entretanto, a alteração promovida pelo Código de Defesa do
Consumidor nas atribuições do ônus da prova deve ser analisada em sua origem,
na sua motivação e em seus princípios para se manter no contexto desse diploma.
Avaliar exclusivamente a possibilidade de inversão do ônus da
prova dificulta sua compreensão, pois completamente dissociada dos motivos de
toda legislação consumerista. Em verdade, as alterações nas atribuições do ônus
da prova são decorrentes do conceito legal de consumidor e de sua finalidade
protetiva.
Frise-se que o consumidor não está liberado de produzir provas do
fato constitutivo de seu direito e que apenas na presença dos requisitos previstos
no artigo o ônus poderá ser invertido.
246
NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Ob. Cit., p. 187. 247
ALVIM, Arruda. Ob. Cit., p. 209.
122
O professor Humberto Theodoro Junior248
assim abordou o tema:
Se cabe ao autor direito de impor ao juiz a abertura do processo e de
sujeitar o réu a seus efeitos, sem que se dê a este liberdade de não
vincular-se à relação processual, é forçoso que ao autor caiba a
responsabilidade maior pelo sucesso da demanda. E, por isso, é ele, e
não o réu, quem tem de proporcionar ao juiz o conhecimento dos fatos
necessários à definição e atuação do direito de que se afirma titular.
Do réu, que não provocou o processo, obviamente, não se pode exigir
que prove os fatos de onde nasceu o direito do adversário. Apenas
quando outros fatos diversos forem invocados na resposta à demanda,
para extinguir ou anular os efeitos do direito do autor, é que o
demandado terá de assumir o encargo de sua comprovação. É que, em
tal quadro, quem alega fato extintivo ou impeditivo necessariamente
reconhece a anterior existência do direito do autor, porquanto só se
extingue ou se impede o que existe ou já existiu.
Como, então, interpretar a regra especial do Código de Defesa do
Consumidor autorizadora da inversão do ônus da prova, permitindo
sua transferência para o fornecedor, mesmo quando este seja réu?
Primeiramente, entendendo-a extraordinária e não como norma geral
automaticamente observável em todo e qualquer processo pertinente à
relação de consumo. Depois, compatibilizando-a com os princípios
informativos do próprio Código de Defesa do Consumidor. E,
finalmente, submetendo-a aos princípios maiores do devido processo
legal e ampla defesa, consagrados por garantia constitucional em favor
de todos os que agem em juízo.
Tal expediente deve ser adotado com extrema cautela pelo juiz para
que seja mantido o equilíbrio entre as partes no processo. A alteração da
atribuição do ônus da prova não pode eliminar ou impedir a produção de provas.
A produção da prova necessária para elucidação dos fatos sempre é necessária.
Por ser medida excepcional, condicionada à presença dos requisitos
previstos em lei, demanda decisão interlocutória devidamente fundamentada nos
termos do artigo 93, IX da CF.
248
THEODORO JUNIOR, Humberto. Ob. Cit., p. 179.
123
3.4.1 Requisitos
O artigo 6º do CDC determina quais são os requisitos para inversão
do ônus da prova. São eles a hipossuficiência do consumidor e a verossimilhança
da alegação.
a) Hipossuficiência
A hipossuficiência significa impotência do consumidor para apurar
e demonstrar a causa do dano249
. Ao contrário da vulnerabilidade prevista no
artigo 4º do CDC, presunção legal aplicável todos consumidores, a
hipossuficiência é característica limitada a alguns, marca pessoal inerente às
características do consumidor250
.
Enquanto a vulnerabilidade informa todo o sistema de proteção ao
consumidor, com base em sua inserção no mercado para aquisição de bens cujas
particularidades não estão sob seu domínio, a hipossuficiência deve ser avaliada
individualmente, pois decorrente das características pessoais de cada
consumidor.
A determinação do que seja a hipossuficiência do consumidor se dá in
concreto, devendo o juiz identificar nesse conceito juridicamente
indeterminado, em acordo com as regras de experiência, a ausência de
condições de defesa processual, por razões econômicas, técnicas, ou
mesmo em face de sua posição jurídica na relação sub judice (é o
consumidor que não teve acesso à cópia do contrato, por exemplo) 251
.
O desconhecimento das propriedades técnicas do produto ou
serviço, funcionamento, motivos geradores do dano, características do vício,
meios de distribuição, dentre outros, são os critérios informadores da
hipossuficiência252
.
O réu em um processo em que se discute uma relação de consumo é
um fornecedor de produtos ou serviços, logo capacitado tecnicamente para
prestar todo tipo de esclarecimento acerca do produto ou serviço que gerou a
lide.
249
THEODORO JUNIOR, Humberto. Ob. Cit., p. 181. 250
ALVIM, Arruda. Ob. Cit., p. 45. 251
MIRAGEM, Bruno. Ob. Cit., p. 623. 252
NUNES, Rizatto. .Ob. Cit. p. 854.
124
Essa capacitação técnica qualifica o fornecedor como a melhor
hipótese de esclarecimento técnico acerca da controvérsia. O juiz, destinatário da
prova, também não é versado tecnicamente na matéria posta em juízo, logo nada
mais coerente de que o esclarecimento técnico sobre a matéria residir em quem
se apresenta como mais capacitado.
Entretanto, a hipossuficiência também poderá ser financeiro-
econômica, traduzida na impossibilidade de arcar com os custos de produção da
prova necessária para obtenção da decisão favorável. O consumidor detentor de
posses e esclarecido dificilmente poderá ser classificado com hipossuficiente.
Partindo de um exemplo sobre um acidente de veículo, ocasionado
por um defeito na roda, José Geraldo Brito Filomeno253
apresenta essa distinção
de maneira clara:
Isso nos impele a inferir, pela lógica de interpretação, que se o rico
proprietário do automóvel de luxo tiver condições econômicas de
arcar com os exames periciais, até porque possíveis de serem
produzidos, faltar-lhe-á não o requisito de vulnerabilidade
técnica/verossimilhança, mas o da hipossuficiência econômica.
Já com relação ao modesto proprietário de um veículo popular,
conforme sua situação, e ainda que possível a produção de prova
técnica, poderá ser beneficiário da justiça gratuita e,
consequentemente, da inversão do ônus da prova, porque
hipossuficiente, nos exatos termos do parágrafo único do art. 2§
da Lei 1.060/1950. (grifos originais).
Portanto, essa incapacidade do consumidor, denominada como
hipossuficiência poderá ser técnica na medida em que não dispõe de elementos
para produzir a prova necessária para o esclarecimento dos fatos, como também
poderá ser financeira, pela impossibilidade de arcar com os custos dessa mesma
prova.
b) Verossimilhança
A verossimilhança das alegações consiste em uma forte aparência
de veracidade. Ainda que ausentes as provas, dado o caso concreto, aplicam-se
253
FILOMENO, José Geraldo Brito. Ob. Cit., p. 415.
125
na hipótese as máximas de experiência do juiz, nos termos do art. 335 do CPC, o
que se traduz em um juízo de verossimilhança, próximo da verdade.
A verossimilhança é juízo de probabilidade extraída de material
probatório de feitio indiciário, do qual se consegue formar a opinião
de ser provavelmente verdadeira a versão do consumidor. Diz o CDC
que esse juízo de verossimilhança haverá de ser feito “segundo as
regras ordinárias da experiência” (art. 6º, VIII). Deve o raciocínio,
portanto, partir de dados concretos que, como indícios, autorizam ser
muito provável a veracidade da versão do consumidor254
.
Trata-se de um conceito operacional, resultado do trabalho de
interpretação do homem médio, com base na conclusão do que normalmente se
espera dos fatos apresentados; uma verdade aproximada, possível255
.
No mesmo sentido, a verossimilhança, que se vai apresentar como
espécie de juízo de probabilidade, segundo as informações das partes
no processo, ou seja, em acordo com o que se verifica do disposto no
processo, se aquelas informações estariam ou não em acordo com um
juízo de razoabilidade ou de probabilidade do que efetivamente tenha
ocorrido256
.
Os requisitos de hipossuficiência e da verossimilhança da alegação
não são cumulativos, como a própria redação do artigo aponta.
Em primeiro lugar, servindo-se das regras de experiência, deve o juiz
verificar se a afirmação é verossímil, ou seja, se dentro de um critério
de plausibilidade, a afirmação se mostra cabível, com aparência de
verdade.
Não havendo verossimilhança, deve o juiz analisar a existência de
hipossuficiência, quer em decorrência da dificuldade de provar à luz
da falta de informações e de conhecimentos específicos acerca da
produção, quer em razão da dificuldade econômica da prova257
.
Bastará a presença de um deles para que o juiz, em decisão
fundamentada, inverta o ônus da prova, conforme jurisprudência abaixo
transcrita:
254
THEODORO JUNIOR, Humberto. Ob. Cit., p. 181. 255
MARINONI, Luiz Guilherme. Ob. Cit., p. 43. 256
MIRAGEM, Bruno. Ob. Cit., p. 623. 257
NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Ob. Cit.. p. 77.
126
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO
EM RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL.
INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. ART. 6º DO CDC.
REQUISITOS. HIPOSSUFICIÊNCIA DO CONSUMIDOR OU
VEROSSIMILHANÇA DAS ALEGAÇÕES. ANÁLISE EM SEDE
DE RECURSO ESPECIAL. IMPOSSIBILIDADE. REEXAME DO
CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO DOS AUTOS. SÚMULA N.
7/STJ. LAUDO TÉCNICO INSUFICIENTE. REVISÃO.
INADMISSIBILIDADE. ÓBICE DA SÚMULA N. 7/STJ. DECISÃO
MANTIDA.
1. O recurso especial não comporta o exame de questões que
impliquem revolvimento do contexto fático-probatório dos autos, a
teor do que dispõe a Súmula n. 7 do STJ.
2. A inversão do ônus da prova depende da aferição, pelo julgador,
acerca da verossimilhança das alegações ou da hipossuficiência do
consumidor, a teor do art. 6º, VIII, do CDC.
3. É vedada, em sede de recurso especial, a análise da presença dos
requisitos autorizadores da inversão do ônus da prova, porquanto tal
providência esbarra no óbice da Súmula n. 7/STJ.
4. O Tribunal de origem examinou as peculiaridades fáticas do caso
para concluir pela insuficiência do laudo técnico apresentado. Alterar
esse entendimento demandaria o reexame das provas produzidas nos
autos, o que é vedado em recurso especial.
5. Agravo regimental a que se nega provimento. (STJ AgRg no
AREsp nº 312555/SP, Quarta Turma, Rel. Min. Antonio Carlos
Ferreira, DJe 05/05/2014).
A simples conclusão de que tal expediente visa a beneficiar o
consumidor pode ser interpretada como tratamento desigual entre as partes no
processo, o que poderia prejudicar ou até colocar o fornecedor numa situação em
que fosse obrigado a produzir uma prova impossível.
O consumidor está obrigado a fazer prova dos fatos constitutivos de
seu direito, ainda que dentro das regras do CDC. A mera alegação da ocorrência
de determinados fatos não é suficiente para o acolhimento de seu pedido,
conforme se observa do julgado transcrito abaixo:
127
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DIREITO DO
CONSUMIDOR. SHOPPING CENTER. PISO ESCORREGADIO.
QUEDA DA PRÓPRIA ALTURA. CASO CONCRETO. AUSÊNCIA
DE PROVAS. INDENIZAÇÃO DESCABIDA.
1. O shopping center tem o dever de zelar pela segurança dos
consumidores. Trata-se de um dever lateral, instrumental ou anexo, de
conduta, imposto pelo princípio da boa-fé objetiva. No caso, com mais
razão tal princípio deve ser observado, uma vez que se trata de relação
abrangida pelo Código de Defesa do Consumidor, consoante previsão
do art. 3º, §2º, CDC.
2. O demandado se responsabiliza de maneira objetiva pelos fatos
decorrentes do serviço prestado, tanto por defeitos da prestação como
por falha nas informações devidas, a teor do disposto no art. 14 do
CDC.
3. Todavia, inobstante o dever da requerida de zelar pela incolumidade
física dos frequentadores de seu estabelecimento, respondendo
objetivamente pelos danos por eles sofridos, há que restar evidenciado
um nexo de causalidade entre o dano sofrido e alguma conduta,
comissiva ou omissiva, da requerida ou de seus prepostos.
4. A queda de uma pessoa pode derivar de muitas causas, tais como
tropeção, desequilíbrio, pisada em falso, etc., nem todas imputáveis a
algum fato imputável à ré, como a existência de piso molhado,
desníveis ou buracos no pavimento, sem a devida advertência.
5. No caso concreto, por não haver demonstração mínima acerca das
circunstâncias do incidente, não há como imputar os danos físicos
sofridos pela autora ao demandado. (Apelação Civil, 0235655-
88.2013.8.21.7000, Nona Câmara Cível, TJRS, Rel. Eugenio Facchini
Neto, j. 10/07/2013).
No acórdão acima mencionado, a consumidora não apresentou
nenhum elemento que pudesse ser considerado na prova de suas alegações ou ao
menos na presunção de sua ocorrência.
Antes de se aplicar indistintamente a inversão do ônus prevista no
artigo 6º, VIII, mostra-se imprescindível avaliar processualmente o objeto da
tutela.
128
A previsão da inversão do ônus da prova precisa ser interpretada
em conjunto com a previsão dos artigos 12, § 3º e 14, 3, do Código de Defesa do
Consumidor também.
A importância dessa contraposição deriva da natureza objetiva da
responsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor. Uma vez que o
consumidor demonstre que houve o dano e que este dano adveio de um produto
do fornecedor, estará, em princípio, presente a responsabilidade deste, sem a
necessidade de se perquirir sobre culpa ou dolo.
Exatamente pelo caráter objetivo da responsabilidade, os artigos
descritos tratam de causas excludentes de responsabilidade.
Nesses casos, o consumidor não tem que provar que o dano
decorreu de ato ou omissão do fornecedor; basta provar o dano e sua relação com
o produto do fornecedor.
Obrigar o consumidor a explicar o motivo do defeito para que tenha
seu direito tutelado representa a vedação ao exercício desse direito. A facilitação
da defesa visa justamente tutelar esse consumidor que teve sua expectativa com a
aquisição do produto frustrada, sem que saiba os motivos.
3.4.2 Momento de inversão do ônus da prova
A doutrina e a jurisprudência divergem quanto ao momento em que
deve ocorrer a inversão do ônus da prova. Há tanto alegação de que a fase
instrutória é o momento adequado, quanto defesa da ocorrência da inversão do
ônus da prova na sentença.
a) Da inversão como regra de julgamento
Essa teoria defende que a inversão do ônus da prova deve ser
interpretada como regra de julgamento e, portanto, aplicável na prolação da
sentença.
Partindo do pressuposto de que a produção da prova é uma
faculdade, as partes teriam interesse em produzir todas as provas que melhor se
apresentem às suas alegações.
129
Dessa forma, o juiz irá proferir seu entendimento de acordo com as
provas trazidas aos autos, independentemente de quem as produziu, pois as
provas visam seu convencimento.
Trata-se de regra de juízo e não de procedimento, o sistema não
estabelece quem deve fazer a prova, mas quem assume o risco pela sua
ausência258
.
Essa tese utiliza como fundamento o dever de lealdade e
colaboração que compete às partes. Nem autor nem o réu poderiam se apoiar nas
regras do ônus da prova para se omitir no processo e deveriam empenhar seus
melhores esforços na revelação da verdade, como um estímulo para produzir a
prova cuja falta lhe traria prejuízo259
.
Portanto, a produção das provas deveria ser norteada pela busca por
justiça e não pelas regras rígidas do Código de Processo Civil, nas quais as partes
muitas vezes se apoiam para obter um resultado favorável, ainda que tenham
condições melhores de produzir determinada prova do que a parte contrária.
b) Da inversão como regra de instrução
Outra corrente doutrinária defende que a inversão do ônus da prova
deve ocorrer antes da produção das provas, ou seja, no saneamento do processo
ou na audiência preliminar.
Por se tratar de hipótese não automática, que demanda a
confirmação da presença dos requisitos, tem-se como condição a expressa
manifestação do juiz nesse sentido260
.
À exceção do artigo 38 CDC, situação em que o fornecedor de
antemão sabe do seu ônus probatório, a parte será surpreendida no momento da
prolação da sentença com um encargo que desconhecia lhe pertencer, numa clara
violação aos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo
legal.
258
NERY JUNIOR, Nelson. Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante,
10 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008 (citação de Echandia, Teoria general de la
prueba judicial) p. 608. 259
CINTRA, Antonio Carlos de Araujo. Ob. Cit., p. 21. 260
NUNES, Rizzato. Ob. Cit. p. 857.
130
Logo, o julgador deve utilizar o despacho saneador como momento
para estabelecer a inversão do ônus da prova, com a fixação dos pontos
controvertidos e determinação das provas a serem produzidas.
Por ser o destinatário da prova, caberá ao juiz a verificação da
possibilidade de produção das provas nas hipóteses em que haja variação das
regras do artigo 333 CPC, principalmente pelo fato de existir um instante
procedimental específico para a análise dos pontos controvertidos261
.
Portanto, de maneira fundamentada, o juiz poderá determinar a
inversão do ônus da prova se entender presentes os requisitos legais.
Deste modo, este posicionamento conclui que o momento mais
adequado para se determinar a inversão do ônus da prova seria do despacho
saneador, no qual devem ser analisadas as questões processuais, fixados os
pontos controvertidos e determinadas as provas a serem produzidas.
No momento da produção das provas, o juiz, ciente da necessidade
da inversão do ônus, deverá fazê-lo imediatamente, sob pena de surpreender as
partes no momento da prolação da sentença262
.
Uma corrente mais conciliadora defende que a inversão pode
ocorrer a qualquer momento, mas, caso seja determinada na sentença, deverá ser
dada oportunidade ao fornecedor a reabertura da possibilidade de produção da
prova263
, com a conversão do julgamento em diligência.
Da leitura das correntes expostas, verifica-se que o traço comum
aos conceitos é o ato de produção de prova. A tese da regra de instrução é
específica nesse sentido ao situar o ato na fase de instrução e possibilitar seu
exercício ao fornecedor.
Ao passo que a regra de julgamento parte do pressuposto que as
partes devem produzir as provas necessárias para elucidação da controvérsia,
motivo pelo qual não existiria prejuízo em sua ocorrência na sentença.
261
BUENO, Cassio Scarpinella. Ob. Cit. p. 257. 262
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente,
consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 25 ed., São Paulo:
Saraiva, 2012, p. 641. 263
MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Ob. Cit. p. 251.
131
Ainda que justificada pela boa fé processual, a produção de provas
de maneira livre não atende aos princípios já expostos nesse trabalho. A prova
deve ser aquela suficiente para o deslinde da controvérsia e de acordo com a
dialética processual.
O risco de que a inversão do ônus ocorra ao final do processo pode
levar o fornecedor a causar tumulto processual com a produção desmedida de
provas ou transformar o processo num longo e tortuoso expediente probatório, no
mais das vezes, inútil264
.
3.4.3 A inversão do ônus econômico-financeiro da prova
Determinada a inversão do ônus da prova, relevante questão a ser
dirimida trata do ônus financeiro da sua produção.
A matéria é regulada pelo CPC, que trata das despesas e das multas
no processo judicial, com a seguinte redação em seu artigo 19:
Art. 19. Salvo as disposições concernentes à justiça gratuita, cabe às
partes prover as despesas dos atos que realizam ou requerem no
processo, antecipando-lhes o pagamento desde o início até sentença
final; e bem ainda, na execução, até a plena satisfação do direito
declarado pela sentença.
§ 2o Compete ao autor adiantar as despesas relativas a atos, cuja
realização o juiz determinar de ofício ou a requerimento do Ministério
Público.
No artigo 33, encontra-se a complementação da matéria, nos
seguintes termos:
Art. 33. Cada parte pagará a remuneração do assistente técnico que
houver indicado; a do perito será paga pela parte que houver requerido
o exame, ou pelo autor, quando requerido por ambas as partes ou
determinado de ofício pelo juiz.
Da leitura dos artigos, constata-se a responsabilidade financeira da
prova do consumidor, autor da demanda. Dessa forma, ainda que o ônus da prova
fosse invertido, caberia ao consumidor o custeio dessa prova, pois ausente
previsão legal em sentido contrário.
264
MAZZILLI, Hugo Nigro. Ob. Cit., p. 641.
132
A matéria relativa à impossibilidade de custeio do processo estaria
regulada pela Lei nº 1.060/50, que trata da assistência judiciária gratuita.
Deferida a gratuidade, os interesses do consumidor estariam preservados.
No entanto, mesmo com a gratuidade deferida, o consumidor não
teria garantida, necessariamente, a plenitude da defesa dos seus direitos, dada a
precariedade da assistência judiciária e, até, recusa de peritos a exercer o ofício
nessas condições. Persistiria, então, a falta de atendimento à facilitação da defesa
prevista em lei.
Todavia, seja pela precariedade do serviço ou pela manutenção do
encargo financeiro, a falta de inversão do ônus financeiro da prova prejudicaria o
consumidor. Parte da doutrina alega contrariedade dessa interpretação com os
princípios consumeristas uma vez que não beneficia o consumidor, ao qual
persiste o custo da prova.
O benefício da inversão do ônus da prova seria concedido ao
consumidor, mas, ao mesmo tempo, ser-lhe-ia retirado ao tratar de maneira
diversa a questão das custas265
.
A matéria foi pacificada pela jurisprudência do STJ266
, que
determinou não ser automática a inversão do ônus financeiro da prova, contudo,
arcando o fornecedor com as consequências processuais da não produção da
prova.
Uma crítica a essa interpretação consiste na alegação de que se
equipararia à inversão indireta do ônus financeiro da prova, pois o fornecedor
precisaria arcar com o custo para evitar prejuízos advindos da falta de
cumprimento do ônus probatório.
Todavia, conforme abordado no início deste trabalho, o ônus
processual não é uma obrigação, mas um poder da parte de produzir as provas
que suportem suas alegações. Obrigar o fornecedor a arcar com o custo da prova
265
“Uma vez determinada a inversão, o ônus da produção da prova tem de ser da parte sobre a
qual recai o ônus processual. Caso contrário, estar-se-ia dando com uma mão e tirando com a
outra”. NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Ob. Cit. p. 858. 266
REsp. nº 443.208/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 17/03/2003.
133
equivaleria a transformar o ônus probatório em uma obrigação, de maneira
contrária à sua natureza.
3.5 Ônus da prova e responsabilidade objetiva do fornecedor
O modo pelo qual o CDC regulamenta a responsabilidade do
fornecedor pelos danos sofridos pelo consumidor lhe garante a efetiva facilitação
da defesa de seus direitos.
A adoção da teoria do risco e estabelecimento da responsabilidade
objetiva do fornecedor facilita, sobremaneira, a defesa dos interesses do
consumidor, cujo exercício de seus direitos prescinde da prova de culpa do
fornecedor.
Constitui-se como premissa do CDC a desigualdade fática entre
consumidor e fornecedor, justificando a adoção da responsabilidade objetiva.
Visa tutelar situações em que a vulnerabilidade do consumidor e a falta de
conhecimento sobre a atividade de fornecimento de produtos e serviços se
confronte com o conhecimento técnico do fornecedor, culminando com a
assunção dos riscos do exercício de sua atividade267
.
Em adição, as previsões do CDC acerca do ônus da prova,
notadamente as excludentes dos artigos 12 e 14, suprem a contento a necessidade
de equilíbrio das partes no litígio consumerista.
Dada a efetividade protetiva das normas consumeristas, sua
aplicação não pode se dar de maneira desmedida, sem observar a realidade
econômica em que se insere.
O mecanismo de inversão do ônus da prova se insere nessa política
tutelar do consumidor e deve ser aplicado até quando seja necessário
para superar a vulnerabilidade do consumidor e estabelecer seu
equilíbrio processual em face do fornecedor. Não pode,
evidentemente, ser um meio de impor um novo desequilíbrio na
relação entre as partes, a tal ponto de atribuir ao fornecedor um
encargo absurdo e insuscetível de desempenho.
(...)
267
MIRAGEM, Bruno. Ob. Cit., p. 41.
134
Arruinar a empresa por meio de demandas absurdas, cuja solução se
dê à luz da inversão do ônus da prova empregado de maneira a
inviabilizar a defesa do fornecedor, é medida que , à evidência, agride
o princípio fundamental de harmonização das relações entre as partes
do mercado de consumo. Sem empresas fortes não há incremento no
próprio consumo. E do aniquilamento das fontes de produção
desaparece até mesmo a figura do consumidor, ou anulam-se suas
potencialidades de usufruir os bens e as riquezas que sem o mercado
não se logra obter.
Para bem aplicar a regra tutelar da inversão do ônus da prova, como
de resto todo o sistema protetivo do CDC, “cabe ter presente, ademais,
constituírem as normas de proteção ao consumidor um direito de
caráter especial que, evidentemente, revoga normas de caráter geral,
ou, em certos casos, as detalha e especifica, o que, por si só, deve
conduzir a uma interpretação mais restritiva de seus dispositivos”.
Enfim, a aplicação de todos os mecanismos protetivos do CDC é de
ser feita, sempre, “com vistas a assegurar uma justa e adequada
proteção ao consumidor, sem, no, entanto, implicar ameaça
desabusada à empresa, cuja presença e desenvolvimento representam
a garantia de uma sã economia e condição para que nela se estabeleça
um razoável grau de concorrência, que, por sua vez, redundará em
proteção automática do próprio fornecedor268
.
Ainda que o consumidor necessite fazer a prova de suas alegações,
nos termos do artigo 333 do CPC, transferiu-se ao fornecedor a prova das
excludentes de sua responsabilidade, de conteúdo técnico e potencialmente mais
oneroso.
No tocante ao momento em que a inversão deverá ocorrer, a
questão foi pacificada pelo julgamento do EDREsp nº422.778/SP, que definiu a
natureza dessa inversão como regra de instrução.
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. INVERSÃO DO ÔNUS DA
PROVA. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. LEI 8.078/90,
ART. 6º, INC. VIII. REGRA DE INSTRUÇÃO. DIVERGÊNCIA
CONFIGURADA.
268
THEODORO JUNIOR, Humberto. Ob. Cit., p. 182.
135
1. O cabimento dos embargos de divergência pressupõe a existência
de divergência de entendimentos entre Turmas do STJ a respeito da
mesma questão de direito federal. Tratando-se de divergência a
propósito de regra de direito processual (inversão do ônus da prova)
não se exige que os fatos em causa no acórdão recorrido e paradigma
sejam semelhantes, mas apenas que divirjam as Turmas a propósito da
interpretação do dispositivo de lei federal controvertido no recurso.
2. Hipótese em que o acórdão recorrido considera a inversão do ônus
da prova prevista no art. 6º, inciso VIII, do CDC regra de julgamento
e o acórdão paradigma trata o mesmo dispositivo legal como regra de
instrução. Divergência configurada.
3. A regra de imputação do ônus da prova estabelecida no art. 12 do
CDC tem por pressuposto a identificação do responsável pelo produto
defeituoso (fabricante, produtor, construtor e importador), encargo do
autor da ação, o que não se verificou no caso em exame.
4. Não podendo ser identificado o fabricante, estende-se a
responsabilidade objetiva ao comerciante (CDC, art. 13). Tendo o
consumidor optado por ajuizar a ação contra suposto fabricante, sem
comprovar que o réu foi realmente o fabricante do produto defeituoso,
ou seja, sem prova do próprio nexo causal entre ação ou omissão do
réu e o dano alegado, a inversão do ônus da prova a respeito da
identidade do responsável pelo produto pode ocorrer com base no art.
6º, VIII, do CDC, regra de instrução, devendo a decisão judicial que a
determinar ser proferida "preferencialmente na fase de saneamento do
processo ou, pelo menos, assegurando-se à parte a quem não incumbia
inicialmente o encargo, a reabertura de oportunidade" (RESP 802.832,
STJ 2ª Seção, DJ 21.9.2011). 5. Embargos de divergência a que se dá
provimento. (STJ Embargos de Divergência em REsp. nº 422.778/SP,
Relatora Maria Isabel Gallotti, DJe 21/06/2012).
O reconhecimento da diferença entre as hipóteses do artigo 6º, VIII
e do artigo 12, §3º do CDC é fundamental, pois a prova das excludentes de
responsabilidade do fornecedor decorre de expressa previsão legal e não de
decisão judicial de inversão do ônus probatório.
No art. 6º, n. VIII, o CDC, não se instituiu uma inversão legal do
referido ônus, mas, sim, uma inversão judicial, que caberá ao juiz
efetuar quando considerar configurado o quadro previsto na regra da
136
lei. Em outras hipóteses, o CDC realmente inverteu ipso iure o ônus
da prova: em relação, v.g., aos defeitos de produtos (art. 12, §3º n. II)
e de serviços (art. 14, §3º, n. I), a lei protetiva do consumidor
simplesmente estabeleceu a presunção do vício. Aí, sim, pode-se
falar em inversão legal do ônus da prova. O mesmo, porém, não se
passa com a situação disciplinada genericamente pelo art. 6 º, n. VIII,
onde a previsão da lei é de um poder confiado ao juiz para promover a
inversão, se julgada cabível269
.
Da análise de diversos julgados sobre o tema, pode-se concluir que
hipóteses de ônus probatório do fornecedor são tratadas como casos de inversão
do ônus da prova do artigo 6º, VIII do CDC.
CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE REPARAÇÃO
POR DANOS MATERIAIS E DE COMPENSAÇÃO POR DANOS
MORAIS. OCORRÊNCIA DE SAQUES INDEVIDOS DE
NUMERÁRIO DEPOSITADO EM CONTA POUPANÇA.
INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. ART. 6º, VIII, DO CDC.
POSSIBILIDADE. HIPOSSUFICIÊNCIA TÉCNICA
RECONHECIDA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO
FORNECEDOR DE SERVIÇOS. ART. 14 DO CDC270
.
No caso em tela, o consumidor pediu reparação dos danos sofridos
em virtude de saques indevidos em sua conta bancária. A instituição financeira
negou tal responsabilidade, uma vez que os saques foram realizados com cartão
eletrônico e senha, que são pessoais do cliente.
Da própria ementa se verifica o objeto do recurso no sentido de
delimitar “o ônus de provar a autoria de saque em conta bancária, efetuado
mediante cartão magnético, quando o correntista, apesar de deter a guarda do
cartão, nega a autoria dos saques”.
O Tribunal confirmou a decisão recorrida que inverteu o ônus da
prova, atribuindo à instituição financeira a necessidade de provar que os saques
indevidos decorrem de desídia do cliente.
A fundamentação do recurso especial, quanto ao ponto, busca esteio
em possível excludente de responsabilidade do banco-recorrente
269
THEODORO JUNIOR, Humberto. Ob. Cit., p. 186. 270
REsp. n 1.155.770/PB, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, Dje 09/03/2012.
137
advinda ou da inexistência do defeito citado – os saques teriam sido
realizados por um dos correntistas ou alguém a quem tivessem
confiado o cartão magnético e a senha –, ou da culpa exclusiva dos
correntistas-recorridos – desídia na guarda do cartão magnético e da
senha (art. 14, § 3º, I e II, do CDC).
A questão central resume-se em definir se o sistema de segurança nas
transações bancárias por meio de cartão eletrônico é tão eficaz como
quer fazer crer a recorrente, a ponto de construir presunção – iure et
iure – de que, se ocorreu débito não pretendido pelo recorrido, esse se
deu por culpa exclusiva desse ou de terceiro.
Da leitura do trecho acima, relevantes conclusões podem ser
admitidas. O acórdão aborda no trecho destacado, a alegação da excludente de
responsabilidade do fornecedor, atribuindo responsabilidade exclusiva do
consumidor por ter confiado seu cartão e senha eletrônicas a terceiros.
Todavia, a instituição financeira não produziu essa prova, mas
simplesmente alegou a presunção de que houve desídia do cliente, dada a eficácia
da tecnologia bancária.
O acórdão, apesar de reconhecer que o fornecedor não se
desincumbiu de provar a excludente de sua responsabilidade, fundamentou a
decisão na inversão do ônus da prova.
A atribuição do ônus da prova das excludentes da responsabilidade
ao fornecedor atua no sentido de proteger e facilitar a defesa do consumidor,
principalmente em questões de maior complexidade técnica.
DIREITO DO CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. FATO DO
PRODUTO. ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO. NÃO
ACIONAMENTO DO AIR BAG. REGRAS DE INVERSÃO DO
ÔNUS DA PROVA. FATO DO PRODUTO. INVERSÃO OPE
LEGIS. PROVA PERICIAL EVASIVA. INTERPRETAÇÃO EM
FAVOR DO CONSUMIDOR.
(...)
4. Ocorre que diferentemente do comando contido no art. 6º, inciso
VIII do CDC, que prevê a inversão do ônus da prova "a critério do
juiz", quando for verossímil a alegação ou hipossuficiente a parte, o §
3º do art. 12 do mesmo Código estabelece - de forma objetiva e
138
independentemente da manifestação do magistrado - a distribuição da
carga probatória em desfavor do fornecedor, que "só não será
responsabilizado se provar: I - que não colocou o produto no mercado;
II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito
inexiste; III- a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro". É a
diferenciação já clássica na doutrina e na jurisprudência entre a
inversão ope judicis (art. 6º, inciso VIII, do CDC) e inversão ope legis
(arts. 12, § 3º, e art. 14, § 3º, do CDC). Precedentes. (REsp. nº
1.306.167/RS, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe
05/02/2014).
No caso restou incontroverso a ocorrência do acidente e não
acionamento do air bag. A questão a ser dirimida era justamente se a falta de
acionamento do air bag deveu-se a um defeito do produto.
O acórdão modificou a decisão recorrida, reconhecendo que cabe
ao fornecedor a prova de que o defeito não existe, ou seja, que a falta de
acionamento do air bag não se constituiu como defeito no produto.
A perícia técnica concluiu que “no caso em questão, conforme a
conclusão apesar de identificar o choque, o sistema interpretou que as condições
de desaceleração não foram suficientes para atuação do sistema de segundo
estágio, e assim, não acionou as bolsas do air- bag”.
De acordo com o relator, essa conclusão não afasta a controvérsia
do fato, pois não havia dúvida que o sistema não funcionou. A prova necessária
seria “aferir, por meio de métodos técnicos e científicos e demais elementos que
se fizessem necessários (CC, art. 429), se o sistema de air bag estava
devidamente calibrado, se a energia cinética - no momento da colisão e diante da
velocidade e da força do impacto, bem como do local da batida - seria suficiente
ou não para o acionamento do dispositivo, além de outros pontos relevantes para
se aferir a dinâmica do defeito apontado na inicial”.
Pela conclusão da perícia não foi possível a confirmação de que o
defeito não existiu, ônus do fornecedor, logo deve ser reconhecida sua
responsabilidade.
A possibilidade de inversão do ônus da prova do artigo 6º, VIII,
deve ser interpretada como uma exceção, de forma a respeitar o contraditório e a
139
ampla defesa, vedada a possibilidade de surpreender a parte ao final do processo
com um encargo probatório que desconhecia lhe pertencer.
A melhor interpretação para o dispositivo é a de que a inversão nele
admitida – e a orientação vale para quaisquer outras hipóteses de
inversão legal do ônus da prova – deve ser sempre previamente
comunicada às partes para que elas possam, adequadamente,
desincumbir-se de seu ônus em atenção ao dispositivo legal271
.
O fornecedor de produtos ou serviços, réu no litígio que verse sobre
direito do consumidor, na hipótese do objeto ser responsabilidade civil pelo fato
do produto ou do serviço, saberá de antemão quais será seu ônus probatório,
expressamente previstos nos artigos 12, § 3º, 14, § 3º, do CDC. Qualquer
alteração desse encargo deve ser promovida a tempo e modo que possibilite ao
fornecedor que se desincumba do ônus que lhe foi atribuído por decisão do juiz.
A parte litigante não pode ser surpreendida com um ônus que não
lhe cabia no processo, até o momento da prolação da sentença.
Temos para nós que a solução mais adequada no que tange ao
momento da decretação do ônus será initio
Admite-se a utilização das regras sobre o ônus da prova para
solucionar questões verificáveis no momento de sentenciar, mas em respeito ao
princípio do contraditório e ampla defesa as partes precisam conhecer quais serão
as regras aplicáveis na apuração da verdade real por ocasião da solução da lide272
.
271
BUENO, Cassio Scarpinella. Ob. Cit., p. 256. 272
THEODORO JUNIOR, Humberto. Ob. Cit., p. 186.
140
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