e maria de fátima ribeiro - universidade de marília · sindicato nacional dos editores de livros,...
Post on 23-Jul-2020
2 Views
Preview:
TRANSCRIPT
Jussara Suzi Assis Borges Nasser Ferreira e Maria de Fátima Ribeiro
(Organizadoras)
ESTADO E CRISE ECONÔMICA: QUESTÕES RELEVANTES
Direção Henrique Villibor FlorySupervisão de EditoraçãoBenedita Aparecida CamargoDiagramação e capaRodrigo Silva RojasRevisãoLetizia Zini Antunes
Conselho editorial aCadêmiCo Coordenação GeralSuely Fadul Villibor Flory
Ana Gracinda Queluz – UNICSULAnamaria Fadul – USP/INTERCOMArilda Ribeiro – UNESPAntonio Hohlfeldt – PUC-RSAntonio Manoel dos Santos Silva – UNESPBenjamim Abdala Junior – USPElizabete Villibor Flory – USPJorge Luís Ferreira Abrão – UNESPJussara Suzi Assis Nasser Ferreira – UNIMARLetizia Zini Antunes – UNESPLucia Maria Gomes Corrêa Ferri – UNESP/UNOESTEMaria de Fátima Ribeiro – UNIMARMaria de Lourdes Zizi Trevisan Perez – UNESP/UNOESTEMaria do Rosário Gomes Lima da Silva – UNESPRaquel Lazzari Leite Barbosa – UNICAMP/UNESPRomildo A. Sant’Anna – UNESPRony Farto Pereira – UNESPSueli Cristina Marquesi – PUC/UNICSULTereza Cariola Correa – USP/UNESPTerezinha de Oliveira – UNESP/UEMWalkiria Martinez Heinrich Ferrer – UNESP/UNIMAR
editora UnimarAv. Hygino Muzzi Filho, 1001Campus Universitário - Marília - SP Cep 17.525-902 Fone (14) 2105-4000 www.unimar.com.br
editora arte & Ciência razão social: lde - livraria, distribuidora e editora ltda. - ePPAv. Paulista, 2200 - 16 andar - ConsolaçãoSão Paulo – SP – CEP 01310-300Tel.: (011) 3258-3153E-mail: editora@arteciencia.com.brwww.arteciencia.com.br
3
2011
Jussara Suzi Assis Borges Nasser Ferreira Maria de Fátima Ribeiro
(Organizadoras)
ESTADO E CRISE ECONÔMICA: QUESTÕES RELEVANTES
4
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
E82
Estado e crise econômica : questões relevantes / Jussara Suzi Assis Borges Nasser Ferreira e Maria de Fátima
Ribeiro (orgs.) - São Paulo : Arte & Ciência, 2011.
258p. : 25 cm
Inclui bibliografia e índice
ISBN 978-85-61165-85-7
1. Crise econômica 2. Crises financeiras 3. Relações econômicas internacionais. I. Ferreira, Jussara Suzi Assis
Borges Nasser. II. Ribeiro, Maria de Fátima.
12-7039. CDD: 338.542
CDU: 338.124.4
27.09.12 09.10.12 039328
© 2011 by autores
Texto fixado conforme as regras do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)
Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.
Todos os direitos desta edição, reservados à Editora Arte & Ciência. As opiniões aqui emitidas são de responsabilidade dos respectivos autores.
5
Sumário
Capítulo 1
A CriSE FiNANCEirA E A rESPoSTA DA uNiÃo EuroPEiA:
QuE PAPEL PArA A FiSCALiDADE?
António CArlos dos sAntos ...................................................................................................... 9
Capítulo 2
A CriSE ECoNÓmiCA E o rEGimE FiSCAL Do CENTro iNTErNACioNAL
DE NEGÓCioS DA mADEirA
Clotilde CeloriCo PAlmA ......................................................................................................... 27
Capítulo 3
oS EFEiToS DA PENHorA oN LiNE NAS PEQuENAS EmPrESAS:
oS rEFLEXoS NA orDEm ECoNÔmiCA E FiNANCEirA
dAvid FerreirA loPes sAntos
dAnielle riegermAnn rAmos dAmião
lourivAl José de oliveirA ......................................................................................................... 45
Capítulo 4
TrANSFormAÇÃo DA ECoNomiA DirECioNADA Ao CrESCimENTo E Ao ALCANCE
Do ProGrESSo SoCiAL, SoB A ÉGiDE DA CoNSTiTuiÇÃo FEDErAL DE 1988
dinAurA godinho Pimentel gomes ..................................................................................... 63
Capítulo 5 A CriSE FiNANCEirA muNDiAL, o ESTADo E A DEmoCrACiA ECoNÔmiCA
Gabriel real Ferrer
Paulo MárCio Cruz .................................................................................................................... 85
6
Capítulo 6
SoCiEDADE PLurAL E FiNANÇAS PÚBLiCAS: NoVoS CoNTEXToS, NoVoS DESAFioS
João riCArdo CAtArino ............................................................................................................ 103
Capítulo 7 oS imPACToS DA CriSE muNDiAL NA ECoNomiA BrASiLEirA
José mAtiAs-PereirA ..................................................................................................................... 117
Capítulo 8
SuSTENTABiLiDADE NEGoCiAL Em TEmPo DE CriSE
JussArA suzi Assis Borges nAsser FerreirA ....................................................................... 141
Capítulo 9
ATuAL CENário DoS iNCENTiVoS FiSCAiS No BrASiL: umA ComPArAÇÃo
A PArTir DoS CoNCEiToS DE State aid NA EuroPA E DE CommerCe NoS
ESTADoS uNiDoS
mArCos André vinhAs CAtão
Antonio henrique PereirA de noronhA ........................................................................ 167
Capítulo 10
PoLÍTiCAS PÚBLiCAS TriBuTáriAS, DESENVoLVimENTo E CriSE ECoNÔmiCA
mAriA de FátimA riBeiro
suely FAdul villBor Flory ...................................................................................................... 185
Capítulo 11
SuSTENTABiLiDADE E SoLiDAriEDADE Em ESTADo DE EmErGÊNCiA
ECoNÓmiCo-FiNANCEirA
suzAnA mAriA CAlvo loureiro tAvAres dA silvA ......................................................... 207
Capítulo 12
A CriSE FiNANCEirA E A NoVA rEALiDADE CriADA PELA DiNÂmiCA
Do mErCADo muNDiAL
WAlkiriA mArtinez heinriCh Ferrer
lAérCio rodrigues de oliveirA ............................................................................................ 231
os Autores ..................................................................................................................................... 255
7
A publicação do livro - Estado e crise econômica: questões relevantes - integra o Projeto editorial
de 2011 do Programa de mestrado em direito da universidade de marília - unimAr, da
área de Concentração em Empreendimentos Econômicos, Desenvolvimento e Mudança Social,
com destaque para suas linhas de pesquisa Relações Empresariais, Desenvolvimento e Demandas
Sociais, bem como Empreendimentos Econômicos, Processualidade e Relações Jurídicas.
A presente proposta temática tem por objeto resgatar a evolução, renovar os debates mais
recentes, os rumos e as tendências da crise econômica e seus reflexos sobre o desenvolvimento,
trazendo novos textos em complemento a outros já lançados e atualizados para este propósito.
o conjunto da obra reúne autores do cenário jurídico nacional e de Portugal, que en-
frentam os temas conforme suas especialidades profissionais e de atuação acadêmica. Juristas,
economistas e cientistas sociais mostram suas teorias e assertivas em diálogos com as interfaces
ora mais otimistas ora demonstrando uma cobrança de atitude mais compromissada dos agen-
tes econômicos. Além do convite à reflexão, os autores mostram um novo olhar para os debates
nos campos do direito e da economia.
Como será e que papel terá a democracia econômica no século XXi? quais são as fragili-
dades e perspectivas de crescimento do Brasil nos próximos anos? é o momento para repensar
o papel do estado e, por conta disso, repensar a democracia nesse contexto histórico, diante da
crise econômica atual, diante das decisões adotadas nos circuitos econômicos e nos mercados
financeiros em decorrencia da globalização.
nos estudos apresentados, fica claro que está ocorrendo uma retomada lenta da economia
mundial após a crise de 2008. embora o Brasil tenha apresentado uma aceleração econômica
nos últimos anos, é de vital importância que sejam efetuados ajustes representativos na política
econômica em vigor. os reflexos da crise na união europeia demonstram que é chegada a
hora de repartir os sacrifícios para recuperar o estado de normalidade econômico-financeira
que despertam outras questões. de quem se deve exigir e o que exigir? Até onde está o estado
legitimado a restringir direitos? quem controla a proporcionalidade das medidas? quem pode
controlar a proporcionalidade em sentido restrito? Como, quem e de que forma se deve contro-
lar a justiça das medidas? está evidenciado que os efeitos da crise continuam afetando a maioria
das economias dos países, principalmente na zona do euro. observa-se, por conta disso, um
Apresentação
8
sentimento de frustração dos cidadãos na união europeia, na medida em que a sociedade veri-
fica a ineficiência de boa parte de seus governantes para enfrentar a crise de maneira adequada,
havendo com isso um custo social representativo.
é chegada a hora também de unir forças. Considerando-se a tendência em financiar o
déficit público por meio de instrumentos cambiais e monetários, bem como a concessão in-
discriminada de subvenções e subsídios em alguns países, os países mostram a crítica situação
econômica e financeira em que se encontram. A crise, vista por muitos como uma crise globa-
lizada, trouxe para discussão a necessidade de os governos em regulamentarem adequadamente
os seus mercados e monitorar os mercados internacionais para evitar que suas economias sejam
comprometidas. A democratização do capitalismo é condição fundamental nesse processo.
o Brasil de hoje está em melhores condições para enfrentar uma crise fiscal e uma crise
cambial. no entanto, deve fazer a lição de casa, controlando suas despesas e observando a lei
de responsabilidade Fiscal, que impõe a necessidade de se estabelecer limites nos gastos públi-
cos por instituir a figura do gestor responsável.
diante dessa crise econômica, os sistemas contemporâneos estão a exigir medidas tribu-
tárias interventivas, fundamentando uma política fiscal de desoneração e sustentabilidade. tais
circunstâncias exigem ações do governo brasileiro como medidas anticíclicas, com destaque
para questões essenciais previstas no PAC – Programa de Aceleração do Crescimento.
Fica, portanto, reforçado o compromisso institucional estabelecido com a interdiscipli-
nariedade caracterizada na presente obra. referida proposta será continuada em novos projetos
editoriais do Programa de mestrado em direito da unimAr, consolidando sua inserção in-
ternacional.
esta publicação alcança os seus objetivos ao proporcionar mais um espaço apropriado
para exposição de ideias. outros frutos ainda virão, dando continuidade à proposta integrativa
e interinstitucional luso-brasileira e aos intercâmbios com pesquisas integradas, objetivando a
difusão regular de estudos, com possibilidades abertas para discussões e ensaios futuros.
Profa. dra. Jussara suzi Assis Borges nasser Ferreira
Profa. dra. maria de Fátima ribeiro
organizadoras
9
A CriSE FiNANCEirA E A rESPoSTA DA uNiÃo EuroPEiA: QuE PAPEL PArA A FiSCALiDADE?
António Carlos dos Santos
A força da europa reside na solidariedade e na capacidade de agir em conjunto. Comissão
1. Ao longo das últimas décadas difundiu-se na europa uma visão demasiado optimista
da situação económica mundial. o discurso das instituições europeias louvava o crescimento,
sem precedentes na história, da economia internacional e dos mercados mundiais, nos últimos
25 anos, sem, ao mesmo tempo, referir que tal crescimento não decorria de um processo linear,
sem crises, com enorme incremento de desigualdades na europa e no mundo, pois nem todos
os países, regiões, estratos e classes sociais beneficiaram do mesmo modo desse crescimento.
uma visão demasiado optimista turvava a percepção da realidade, a ponto de, por exemplo,
o próprio Parlamento europeu, instituição que, dada a sua composição e legitimidade demo-
crática, deve ser um foro de debate atento ao mundo, só ter dado pelos sinais da actual crise
financeira e económica em outubro de 2008.1 um outro sinal significativo: as orientações
gerais de Política económica da união europeia para o período 2008-2010 eram praticamen-
te omissas em relação à crise.2
1 PArlAmento euroPeu, Crise financeira: a resposta do Parlamento europeu (disponível na internet): “A crise financeira mundial, que começou a dar sinais em outubro de 2008, teve um impacto brutal a vários níveis.” (itálico nosso) e relatório sobre o plano de relançamento da economia europeia, de 17 de Fevereiro de 2009 (2008/2334 (ini)), considerando A (disponível na internet).2 recomendação do Conselho 2008/390/Ce, de 14 de maio de 2008, sobre as orientações gerais para as políticas económicas dos estados-membros e da Comunidade (2008-2010) [Jornal oficial l 137 de 27/05/2008].
capítulo 1
10
ora não só a actual crise se desencadeia, como veremos, muito antes de 2008, como, de
certo modo, vivemos, de há muito a esta parte, em plena sucessão de crises, as últimas das quais
ligadas aos custos da energia e à subida dos preços dos bens alimentares e das commodities.3
Com efeito, desde o fim do acordo de Bretton Woods (1971) e da emergência das crises pe-
trolíferas dos anos setenta, que a economia mundial é assolada por crises permanentes.4 Apenas
para citar algumas das mais recentes, lembremos as crises que eclodiram em países asiáticos (in-
donésia, singapura, Japão), em países latino-americanos (méxico, Brasil, Argentina), em países
africanos (etiópia) e mesmo nos estados unidos da América, com o crash bolsista de 1985 e a
crise do dot-com de 2000-2001. mas como as primeiras irromperam longe dos países do centro
do capitalismo mundial, sem os atingir profundamente, e as segundas foram debeladas com
maior ou menor rapidez, gerou-se, no pensamento económico dominante, a convicção de que
as crises estariam superadas, não atingiriam o velho continente ou que seriam fenómenos de
relativamente fácil controlo e resolução.5
não admira assim o espanto com que a actual crise foi recebida por organizações inter-
nacionais, pelo estados e pela maioria dos economistas e financeiros de formação neo-liberal.6
Como era possível irromper, nos dias de hoje, uma crise tão profunda que evocava a grande
depressão de 1929-1931?7
2. A união europeia (ue) não estava preparada para uma crise desta profundidade, uma
crise que desafiava os próprios fundamentos da união económica e monetária (uem). As suas
instituições levaram imenso tempo a reagir e fizeram-no de forma tímida e pouco eficaz. Ainda
3 no estudo de luc laevan e Fabián valencia, “systemic Banking Crisis: A new database”, imF, Working Paper nº 08/224, 2008, refere-se que desde finais da década de oitenta do século passado registaram-se 121 crises finan-ceiras, com efeitos em 121 países.4 WiBAut, serge (in “quelles leçons tirer de la crise financière”, Regards économiques, décembre 2008, n.º 64, p. 2) chama justamente a atenção para a relação das crises com o desmantelamento dos acordos de Bretton Woods, conjugado com a resolução do problema da valorização das opções por Black, merton e scholes em 1973. estes factos estiveram na base do incrível desenvolvimento dos produtos financeiros derivados, como forma de prevenção da incerteza decorrente de taxas de câmbio variáveis, instrumentos sofisticados que as empresas não dominam e, muitas vezes, não compreendem e que ajudaram a desencadear a crise de 2008. 5 sobre estas crises e o papel desempenhado pelo Fundo monetário europeu, é útil a leitura dos livros de georges stiglitz, La Grande Désillusion, Paris: Fayard, 2002 e Quand le capitalisme perd la tête, Paris: Fayard, 2003. vide ainda o livro iconoclasta de georges soros, La crise du capitalisme mondial. L’intégrisme des marchés, Paris: Plon, 1998.6 referimo-nos ao conglomerado teórico decorrente de teorias desenvolvidas no quadro da economia neo-clássica que engloba, como sublinha loPes, J. silva (in “As políticas orçamentais de combate à presente crise económica”, FerreirA, e. Paz et al. (org.), Conferência Crise, Justiça Social e Finanças Públicas, ideFe/ Almedina, 2010, p. 41) as teorias do monetarismo, das expectativas racionais, dos ciclos reais, do princípio da equivalência ricardiana e da eficiência dos mercados financeiros. estas teorias, – escreve o mesmo autor – “terão dado origem a exercícios matemáticos sofisticados que valeram prémios nobel aos seus autores, mas assentam sobre hipóteses sem correspon-dência com a realidade, escolhidas por forma a facilitarem a manipulação matemática ou para corresponderem às preferências ideológicas das correntes neo-liberais dominantes.” sobre o véu ideológico que impediu a leitura dos sinais da actual crise, cf. o meu artigo, entretanto publicado, “A ciência económica e a crise de 2007/8 -20??: Crónica de um terramoto anunciado”, Revista da OTOC, n.º 122, maio 2010, p. 63-66.7 há, contudo, muitas diferenças entre a actual crise e a de 1929. no plano dos valores, uma das mais significativas é a forma como as falências eram sentidas pelos empresários. na crise de 1929, as falências estavam associadas à ideia de desonra, sendo, por isso, muito comuns os suicídios.
11
hoje estão por aprovar muitas medidas que, no plano político, foram avançadas em outubro
de 2008. tudo se passava como se a crise fosse algo exterior à economia e às finanças europeias,
a que estas permaneceriam imunes. o forte abrandamento da economia americana não se
transmitiria à europa. e quando a crise e o seu brutal impacto já não podiam ser ocultados, a
questão mais importante parecia ser a de encontrar a forma mais rápida de regressar aos tempos
antes da crise, crismados de estratégia para o pós-crise.
um dos traços da dificuldade de a ue encarar a actual crise é a ausência de reflexão teórica
consistente sobre o tema. A crise, cujo principal desafio no plano financeiro é hoje o cercea-
mento do crédito e, no plano económico, o aumento do desemprego decorrente da redução da
actividade económica, é quase sempre vista como resultante da crescente falta de confiança dos
agentes económicos, desde logo nos mercados financeiros, com a consequente quebra no inves-
timento, a que acresceria a permanência de políticas monetárias laxistas, o incremento do risco
ligado ao crédito à habitação politicamente imposto e certos desequilíbrios macroeconómicos
do passado. sem pôr em causa a relevância de factores psicológicos ou políticos no exacerbar
da crise, choca a desistência do pensamento económico dominante em procurar a explicação
da crise em factores de natureza essencialmente económica. Como se a crise fosse o resultado
de elementos exteriores ao funcionamento do sistema e não algo de intrinsecamente ligado ao
funcionamento das economias capitalistas.8
3. A simples evocação da cronologia da crise mostra quão tardia foi a reacção europeia.9 em
Fevereiro de 2007, o Banco HSBC anuncia uma queda dos lucros devido a aumento de provi-
sões por créditos imobiliários duvidosos; em 2 de Abril, a New Century Financial, instituição
ligada ao subprime, declara falência, após ter despedido anteriormente metade dos trabalhado-
res10 ; em 17 de Julho, o banco de investimento americano Bear Sterns anuncia a total perda de
valor de dois dos seus fundos devido à crise do subprime; em Agosto, dá-se uma primeira inter-
venção do Banco Central europeu (BCe) no mercado monetário; em setembro, o Northern
Rock pede ajuda ao Banco de inglaterra e regista-se a primeira corrida a depósitos desde 1866;
em outubro, verificam-se perdas nos bancos UBS, Citygroup e Merrill Lynch, tendo o Fed
8 A literatura sobre a actual crise é já abundante, embora desigual. A título de exemplo, destacamos, com perspec-tivas distintas, Artus, P. et al., La crise des subprimes, rapport du Conseil d’Analyse Économique, la documen-tation Française, 2008; krugmAn, P., The Return of Depression Economics and the Crisis of 2008, Allen lane, 2008; soros, g. O Novo Paradigma para os Mercados Financeiros, A crise de crédito de 2008 e as suas implicações, Coimbra: Almedina, 2008; WolF, m., Fixing Global Finance, yale university Press, 2009; AleXAndre, F. et al., Crise Financeira Internacional, imprensa da universidade de Coimbra, 2009.9 Consulte-se, a este respeito, as cronologias estabelecidas por AleXAndre, F. et al., Crise Financeira Internacio-nal, op. cit., e por Artus, P. et al., La crise des subprimes, op.cit. note-se, aliás, que, como escreve WiBAut, serge, “quelles leçons tirer de la crise financière”, op. cit., p. 2, a crise do subprime começou, em regra, em finais de 2006 e desenrolou-se lentamente ao longo de 2007 e 2008 num cenário de “slow crash”. 10 o termo subprime designa um tipo específico de crédito imobiliário hipotecário que se desenvolveu nos últimos anos nos euA e que comporta um alto risco, uma vez que se destina a famílias financeiramente frágeis. As quebras nos pagamentos por parte de muitas dessas famílias provocaram efeitos em cadeia com repercussões negativas no sector bancário e nos mercados financeiros.
12
reduzido a taxa de juros; em 6 de dezembro, Bush aprova um Plano de urgência de 150 bili-
ões de dólares, seguido, em Janeiro, de um Plano de relançamento económico para ajudar 1,2
milhões de famílias endividadas; em Fevereiro, dá-se a nacionalização do Northern Bank, em
março, a falência do Carlyle Capital Corporation, em Julho, a falência do IndyMac (4ª maior
falência na história dos euA) e surge o plano americano de ajuda ao sector imobiliário. tudo
isto culmina, em setembro, com a falência do Lehman Brothers e a compra do Merryil Lynch.
só depois de todos estes acontecimentos ocorria o primeiro importante sinal de alarme
dado pelo Conselho eCoFin de 7 de outubro de 2008, na sequência da segunda-feira
negra (no dia 6) para as bolsas mundiais. As Conclusões deste Conselho alertavam, enfim, para
a necessidade de uma reacção imediata às turbulências financeiras, aumentando a solidez e a
estabilidade do sistema bancário, de forma a restabelecer a confiança e o bom funcionamento do
sistema financeiro.11
são os seguintes os princípios de orientação e coordenação da acção da ue e dos estados-
membros (em) enumerados por este Conselho: as intervenções deveriam ser oportunas e o
apoio, em princípio, temporário; os em deveriam estar atentos aos interesses dos contribuin-
tes; os accionistas deveriam suportar as consequências normais da intervenção; os em deve-
riam estar em condições de introduzir alterações no plano da gestão; os gestores não deveriam
conservar lucros indevidos, podendo os governos ter a possibilidade de intervir a nível das
remunerações; deveria ser protegido o interesse dos concorrentes, em especial através das regras
dos auxílios de estado e, finalmente, deveriam ser evitados efeitos de propagação negativos. A
prevenção do risco sistémico tornava-se assim muito mais importante do que garantir o princí-
pio liberal do risco moral (moral hazard).
em 12 de outubro, efectuou-se a reunião dos Chefes de estado e de governo do euro-
grupo destinada a dar o aval a um plano coordenado para fazer face à crise.12 As conclusões do
Conselho europeu do luxemburgo de 15 e 16 de outubro vieram confirmar as orientações
consagradas no eurogrupo.13
este plano começou a ganhar contornos em 25 de outubro, com a definição das orienta-
ções sobre auxílios estatais às instituições financeiras, em particular dos critérios relevantes para
11 Conclusões do Conselho ECOFIN de 7 de Outubro de 2008 (até há pouco tempo disponíveis na internet no sítio do Conselho: http://www.consilium.europa.eu/ueDocs/cms_Data/docs/pressdata/pt/ecofin/103568.pdf). Anteriormente a esta data deve apenas salientar-se, ainda em 2007, algumas intervenções do BCE no mercado monetário ou a sua participação num acordo de concessão de crédito com as autoridades monetárias dos EUA, Canadá, Reino Unido e Suíça. Não se desconhece também que o ECOFIN do Porto, em 16 de Setembro de 2007, havia mandatado o Comité Económico e Financeiro para analisar formas de incrementar a transparência dos instrumentos e das instituições financeiras, de melhorar os processos de gestão do risco e estudar o papel das agências de rating. Mas as conclusões dos Conselhos ECOFIN de Outubro de 2007 e de Fevereiro de 2008 revelam que a crise não era ainda vista como uma verdadeira prioridade. 12 Cf. summit of the euro Area Countries, Declaration on a concerted European action plan of the Euro area countries (disponível na internet).13 Cf. 2894th economic and Financial Affairs, Council Conclusions on a coordinated EU response to the economic slowdown (disponível na internet).
13
a determinação da compatibilidade desses regimes com o tratado da união europeia.14 são
assim definidos critérios para outorga de garantias que cubram o passivo das instituições finan-
ceiras, para a introdução de regimes de recapitalização dessas mesmas instituições, bem como
para a sua liquidação controlada.15
4. A crise financeira arrastou uma grave crise económica. um segundo vector do plano da
Comissão foi a aprovação de um quadro de acção europeu tendo em vista a retoma económica.16
neste documento a Comissão assinalava que a crise financeira se mantinha e estava mes-
mo a degenerar numa grave desaceleração da economia no seu conjunto, afectando as famílias,
as empresas e o emprego. Previa ainda que os choques que abalavam a economia europeia re-
duziriam a taxa potencial de crescimento a médio prazo e, de modo significativo, o crescimento
em 2009 e 2010. e que, como os investidores estavam a evitar o risco, a produtividade iria ser
sujeita a pressões e a inovação poderia ressentir-se.
neste contexto, o quadro de acção e de enquadramento global de retoma económica na
ue deveria assentar numa estratégia concertada e coordenada desenvolvida em 3 frentes:
1ª - uma nova arquitectura dos mercados financeiros a nível da ue, prosseguindo os
esforços que tiveram em vista retirar o sector financeiro europeu da situação de crise, e iniciar
uma reestruturação do sector bancário, como fase preparatória para o regresso dos bancos na-
cionalizados ao sector privado, comprometendo-se a Comissão, neste quadro, a trabalhar com
os em no reforço da regulamentação e da supervisão do sector. Ao mesmo tempo, foram apre-
sentadas pela Comissão propostas relativas às garantias de depósitos e aos requisitos dos fundos
próprios, bem como à compensação do risco de efeitos pró-cíclicos da regulamentação e das
normas de contabilidade. A estas propostas seguir-se-iam outras sobre as agências de notação de
crédito (rating) e sobre a remuneração dos quadros executivos, sobre a supervisão dos mercados
de capitais e da gestão do risco dos instrumentos derivados, dos fundos de retorno absoluto
(hedge funds) e dos fundos de capitais de investimento (private equity). Por sua vez, o grupo
14 Ao abrigo do então n.º 3, alínea b), do artigo 87.º, hoje, n.º 3, alínea b) do artigo 107.º do tratado de Funcio-namento da união europeia. Cf. Comissão, Comunicação (2008/C 270/02) sobre Aplicação das regras relativas aos auxílios estatais às medidas adoptadas em relação às instituições financeiras no contexto da actual crise financeira global, JoCe C 270, de 25 de outubro de 2008, p. 8 e ss. esta comunicação foi seguida de uma outra destinada a dar orientações aos em relativas à forma como a recapitalização dos bancos devia ser efectuada, de modo a assegurar níveis adequados de empréstimo ao resto da economia e estabilizar os mercados financeiros, sem provocar excessivas distorções de concorrência. Cf. Commission, Communication on the recapitalisation of financial institutions in the current financial crisis: limitation of the aid to the minimum necessary and safeguards against undue distortions of competition, oJ. C 10 , 15.01.2009. 15 em 3 de Fevereiro de 2009, o Comité económico e Financeiro (First horizontal assessment of national Economic Recovery Programs Budgetary and structural policies), ao fazer um balanço dos auxílios estatais concedidos ao sector financeiro, referia que cerca de 6% do PiB da ue havia sido injectado nesse sector, a título de recapitalização ou de apoio à liquidez, e que o valor das garantias prestadas ascendia a cerca de 19% do PiB da ue. o Comité dava ainda conta que os défices e os níveis da dívida pública dos em estavam a aumentar muito rapidamente e que seria necessário coordenar estratégias de saída que tivessem em conta o princípio da consolidação orçamental. 16 ComissÃo, Da crise financeira à retoma: Um quadro de acção europeu, Com (2008) 706 final, Comunicação de 29.10.2008.
14
de larosière ocupar-se-ia da definição do modelo regulamentar e do sistema de supervisão das
grandes instituições financeiras internacionais.17
2ª - medidas para enfrentar os impactos da crise na economia real e para relançar a acti-
vidade económica e a retoma, fomentando o emprego e a procura.
3ª - uma resposta mundial à crise, em coordenação com o g8 e com o g 20, e incluin-
do a colaboração com o Fundo monetário internacional (Fmi), disponível para intervir com
financiamentos de emergência.
5. este quadro de acção seria concretizado, em 26 de novembro de 2008, por um Plano
de Relançamento da Economia Europeia (PREE).18
A filosofia de acção deste plano assentava nas ideias de solidariedade e justiça social
(apoiar os mais carenciados; proteger o emprego; reduzir os custos humanos), na promoção da
confiança dos consumidores e na definição de novas oportunidades, bem como na cooperação
entre ue e em, no quadro do Pacto de estabilidade e Crescimento (PeC), revisto em 2005, e da
estratégia de lisboa. o plano propunha uma resposta anti-cíclica de carácter macroeconómico,
para evitar uma recessão profunda.
não sendo a ue um espaço económico, político e social homogéneo, nem dispondo de
um verdadeiro governo económico nem de um orçamento equivalente ao dos estados federais
(bem longe disso), não era tarefa fácil definir um plano de aplicação global. Com efeito, havia
algumas economias em crescimento (ex: Polónia, Bulgária, eslováquia e roménia), ao lado da
maioria em ponto morto ou mesmo em recessão técnica, havia economias com acentuada in-
flação (acima dos 10%, como a Bulgária, a estónia e a lituânia), enquanto outras se debatiam
com problemas de deflação. mesmo na zona euro, que, recorde-se, não é uma zona monetária
óptima, havia situações e margens de manobra muito distintas entre os em que a integravam.
o Pree assentava em dois pilares, parecendo a lista das medidas propostas no segundo
pilar mais um cardápio para escolha à la carte que um verdadeiro plano, uma vez que a maio-
ria dos instrumentos para atingir os objectivos de relançamento da economia e de evitar uma
recessão profunda, em particular os que visam estimular a procura interna, estariam nas mãos
dos em.
17 Jacques de laroisière, antigo director do Fmi, foi nomeado por durão Barroso, em 8 de outubro, presidente de um grupo de alto nível para decidir como supervisionar mais eficazmente, a nível europeu e global, as instituições financeiras globais, até então supervisionadas, principalmente, no plano nacional. este relatório foi apresentado publicamente em 25.02.2009. Cf., na internet, o texto do relatório The High-Level Group on Financial Supervision on the EU, Report.18 Comissão, Plano de relançamento da economia europeia, Comunicação ao Conselho europeu, Com (2008) 800, 26.11.08 e a nota de imprensa iP/08/1771, de 26.11.2008, A Comissão lança um importante Plano de Relança-mento a favor do crescimento e do emprego, com vista a estimular a procura e a restabelecer a confiança na economia euro-peia. Previa-se que o esforço financeiro dos em ascenderia a 3,3% do PiB da ue, previsão que, segundo tomAz, J. A, deveria ser revista em alta, para uma percentagem superior a 4% (Intervenção no painel Medidas orçamentais e fiscais anti-Crise, in: FerreirA, e. P. et al. (org.), Conferência Crise, Justiça Social e Finanças Públicas, op. cit., p. 237.
15
Assim, o primeiro pilar consistia numa injecção de poder de compra, acordado entre
a ue e os em, para fomento da procura até 1,5% do PiB da ue, dos quais 3% saídos dos
orçamentos da ue e do Banco europeu de investimento (Bei). esta injecção, destinada a fo-
mentar a procura e a estimular a confiança, deveria ser, porém, efectuada no respeito do Pacto
de estabilidade e Crescimento (PeC), questão que tornava dificilmente exequível a proposta e,
em muitos casos, se afigurava mais como um wishful thinking.
o segundo pilar implicaria uma orientação prioritária da acção para investimentos inte-
ligentes (qualificações, eficiência energética, tecnologias limpas, inovação e reforço da compo-
nente ambiental, acelerando a transição para uma economia de baixo carbono), para infraestru-
turas (modos de transporte favoráveis ao ambiente que integrassem as redes transeuropeias,
como o tgv), para as interconexões (redes de energia, redes de tecnologia de informação e
comunicação, redes de investigação), de modo a reforçar a competitividade da ue a longo pra-
zo, bem como a aceleração da execução dos fundos estruturais e a continuidade das reformas
estruturais.
o Pree define as condições monetárias e de crédito tendo em vista a estabilização do
sistema bancário. define o papel a desempenhar no combate à crise pelo Banco Central euro-
peu (BCe) e pelos Bancos Centrais nacionais, em particular na redução de taxas de juro e na
concessão de empréstimos aos banco, bem como do sistema bancário no apoio ao investimento
na economia real e ainda do Bei e do Banco europeu de reconstrução e desenvolvimento no
financiamento de actividades na ue e nos novos em.
o Plano traçava ainda as grandes linhas das políticas orçamental e fiscal. no plano da
política orçamental, previa que, no contexto dos orçamentos nacionais para 2009 e para além
do papel dos estabilizadores automáticos, o estímulo orçamental coordenado, a fim de garantir
um impacto substancial e rápido na economia e no emprego, atingisse 170 mil milhões de
euros, representando 1,2% do PiB da ue19. As despesas e/ou as reduções dos impostos inclu-
ídas no estímulo orçamental deveriam ser, contudo, coerentes com a flexibilidade proporcio-
nada pelo PeC revisto e contribuir para as reformas estruturais da estratégia de lisboa20. este
estímulo deveria ser oportuno, temporário, bem orientado e coordenado. os em deveriam
19 A expressão estabilizadores automáticos designa os estímulos à procura decorrentes da quebra das receitas tributá-rias e do incremento de determinadas despesas públicas, como, por exemplo, os subsídios de desemprego, em virtude da queda do PiB provocada pela crise. segundo teresa ter-minassian (intervenção no Painel Crise económicas e Políticas Públicas. in: FerreirA, e. P. et al. , Conferência, op. cit., p. 31), o impacto orçamental dos estabilizadores automáticos em percentagem do PiB será (média anual 2008-2010) no g20 de -1,4 e no g20 – eu de -2,2.20 de acordo com o Pree, o estímulo deveria ser conduzido no quadro do PeC (haveria uma expansão orçamental coordenada no âmbito da ue, mas as medidas que contribuem para o défice deveriam, a curto prazo, ser reversíveis, a médio prazo deveria haver uma melhoria das políticas orçamentais e, a longo prazo, reformas que contivessem o aumento das despesas relacionadas com o envelhecimento da população), devendo ser acompanhado de reformas estruturais necessárias para enfrentar algumas das causas da crise (ajustar os salários à produtividade, melhorar o funcionamento dos mercados para que houvesse descida de preços, introduzir maior flexibilidade em termos de duração do trabalho, efectuar uma redução da carga administrativa sobre as empresas).
16
comprometer-se a inverter a deterioração orçamental e voltar a prosseguir as metas fixadas nos
objectivos de médio prazo.
6. neste quadro que papel era reservado à fiscalidade?
o Pree deveria orientar-se para os domínios prioritários da estratégia de lisboa (cida-
dãos, empresas, infraestruturas e energia e investigação e desenvolvimento) e poderia socorrer-
se de instrumentos ligados às receitas ou às despesas. mas a Comissão partiu de um prin-
cípio: “em termos gerais, as despesas públicas de carácter discricionário terão impacto positivo
mais forte a nível da procura a curto prazo do que as reduções de impostos. este fenómeno
prende-se com o facto de alguns consumidores preferirem poupar do que gastar, a menos que
as reduções de impostos sejam limitadas no tempo”.21
mesmo assim, o Pree sugeria a adopção, consoante a margem de manobra dos em, das
seguintes medidas fiscais:
descida de impostos e contribuições para a segurança social pagas pelos empregadores
para manter e criar postos de trabalho (emprego para os trabalhadores menos qualificados);
descida da tributação sobre os rendimentos do trabalho (em particular, dos trabalhadores
com mais baixos salários) para apoiar o poder de compra;
redução temporária da taxa normal do ivA; aprovação da directiva que torna permanen-
te a aplicação do ivA a serviços de trabalho temporário; proposta de taxas reduzidas de ivA
para produtos e serviços ecológicos destinados a melhorar a eficiência energética dos edifícios;
Atribuição de auxílios de estado horizontais, dos quais alguns poderiam assumir forma
fiscal, em áreas como a i&d, a inovação, as tiC, a eficiência energética ou os transportes;
no quadro da iniciativa europeia a favor de automóveis respeitadores do ambiente, pre-
via-se ainda a redução dos impostos de registo e de circulação para os automóveis com emissões
poluentes mais baixas, bem como a possibilidade de incentivos para envio dos automóveis em
fim de vida para a sucata.
Para além destas, outras medidas com impacto tributário eram propostas para adopção
pelos em, como era o caso da introdução de cheques de serviços para serviços ou cuidados
domésticos, da redução da carga administrativa sobre as Pme e sobre as microempresas (v.g. a
supressão, quanto a estas, da imposição de elaborarem contas anuais), o pagamento de facturas
no prazo de um mês, a introdução da facturação electrónica (com reflexos no ivA e no comba-
te à fraude), a redução (até 75%) das taxas aplicáveis aos pedidos e à manutenção das patentes
e a clarificação do quadro jurídico das parcerias entre sector público e privado.
o Conselho europeu de Bruxelas, que teve lugar em 11 e 12 de dezembro de 2008, veio
dar o seu acordo ao Pree, mantendo como prioridade a aplicação das medidas destinadas a
reforçar a estabilidade, a supervisão e a transparência do sector financeiro definidas pelo eCo-
Fin. Ao mesmo tempo, tendo em conta o facto de a crise financeira ter atingido a economia,
21 Cf. Plano, op. cit., p. 10.
17
pesando sobre a zona euro a ameaça de recessão, o Conselho definiu como orientação política
a concertação entre a ue e os em no sentido da adopção de políticas de apoio à actividade
económica e ao emprego e de protecção e de inclusão social.22
entre as medidas que são da competência da ue, com incidência tributária, directa ou
indirecta, o Conselho europeu deu o seu aval à possibilidade de os em que o desejassem
aplicarem taxas reduzidas de ivA em certos sectores e à prossecução de uma redução geral e
significativa dos encargos administrativos que pesam sobre as empresas. quanto às medidas a
adoptar pelos em, tendo em conta as margens de manobra distintas de que gozam, o Conselho
europeu propôs uma abordagem comum assente em três vertentes: reafirmou que as medidas
de apoio à procura deveriam ser temporárias e visar um efeito imediato, destinando-se a sec-
tores mais afectados como o sector automóvel e a construção civil; que estas medidas podiam
assumir a forma de aumento da despesa pública, de reduções judiciosas da pressão fiscal e dos
encargos sociais, de auxílios a certas categorias de empresas ou de ajudas directas a famílias
mais vulneráveis; e que deveriam ser acompanhadas por um esforço redobrado de execução de
reformas estruturais no quadro da estratégia de lisboa.
7. em 17 de dezembro de 2008, a Comissão aprovou um quadro comunitário temporá-
rio relativo a auxílios de estado ao financiamento no período da crise.23
esse quadro começava por lembrar aos em a panóplia de medidas gerais de política eco-
nómica que, não constituindo auxílios estatais, estavam ao seu dispor, podendo ser adoptadas
sem qualquer interferência da Comissão. entre essas medidas estavam algumas de carácter
fiscal como o alargamento temporário do prazo de pagamento de impostos e de contribuições
para a segurança social.
em seguida, mencionava as medidas que, constituindo auxílios de estado, não estavam,
porém, obrigadas a comunicação à Comissão. é o caso dos auxílios de estado isentos ao abrigo
do regulamento geral de isenção por Categoria, de 2008, que contempla os auxílios de mini-
mis e certos auxílios de natureza horizontal, como os destinados à inovação e desenvolvimento,
ao ambiente e à formação.
quanto aos demais, a Comissão, sem prejuízo do princípio de que deveriam ser evitadas
intervenções públicas que prejudicassem os objectivos de “menos auxílios” e “auxílios mais
focalizados”, declarava-se pronta para aceitar, ao abrigo do art. 87/b) /3 do tue, auxílios es-
tatais excepcionais (no domínio das garantias, dos juros bonificados, dos incentivos à produção
de produtos verdes e ao capital de risco, ou aceitando o alargamento do limite dos auxílios de
22 Conselho, Conclusões da Presidência do Conselho Europeu de Bruxelas de 11 e 12 de Dezembro de 2008, versão revista, doc. 17271/1/08, de 13 de Fevereiro de 2009.23 Cf. Comissão, Quadro comunitário temporário relativo às medidas de auxílio estatal destinadas a apoiar o acesso ao financiamento durante a actual crise financeira e económica, Comunicação 2009/C 83/01, de 17.12.2008, publi-cada em 7.4.2009, com alterações introduzidas em 31.10.09. sobre o tema, cf. igualmente CAmPo, m. “the new state aid temporary framework”, Competition Policy Newsletter, n.º 1, 2009, p. 21 e ss.
18
minimis), destinados a sanar uma perturbação grave da economia de um em dentro de certos
limites temporais (em geral, de 17.12.2008 até 31.12.2010, mas com aplicação retroactiva às
empresas em situação difícil até 1.07.2008). de fora ficavam, porém, os auxílios às pescas e à
exportação.
questão relevante é que não se prevê qualquer ajustamento ou aligeiramento, mesmo
excepcional e temporário, das condições da Comunicação da Comissão de 1998 relativa aos
auxílios de estado sob forma fiscal, facto que confirma ter a Comissão privilegiado a óptica da
despesa não fiscal.24
8. em Abril de 2009, o impacto da crise financeira na economia real começava a ser
sentido em toda a dimensão (desaceleração, diminuição do financiamento, recessão a curto
prazo), obrigando os em a recorrerem a auxílios estatais e a outras formas de intervenção para
atenuarem os efeitos da crise.25
A utilização da via fiscal pelos em com o objectivo de combater a crise divergiu de em
para em, mas nunca foi o caminho mais trilhado26. Apesar de privilegiar a via da despesa
pública, Portugal adoptou nos orçamentos para 2009 e para 2010 um conjunto de medidas
de natureza fiscal ligadas ao combate à crise. relembremos as principais:
- o oe para 2009 introduziu algumas medidas fiscais esparsas, mais tarde reforçadas
pelas medidas previstas no chamado Plano anti-crise, lançado em dezembro de 2008. Como
exemplos das medidas fiscais previstas para (ou a partir de) 2009 é de salientar um regime mais
expedito de reembolsos do ivA para determinados sujeitos passivos, a criação de uma taxa de
irC de 12,5% para Pme com matéria colectável até 12.500 euros, o reforço do regime fiscal
contratual para investimentos em Portugal, a racionalização do imposto de selo, a criação de
incentivos à reabilitação urbana, certas medidas no domínio da protecção ambiental, a institui-
ção do regime Fiscal de Apoio ao investimento (rFAi) e a redução da taxa social Única.
- o oe para 2010, para além de prolongar medidas do plano anti-crise, como o rFAi,
consagra algumas medidas de desagravamento ou de simplificação com reflexo no orçamento
das famílias e das empresas, como a alteração do regime simplificado de tributação em irs, a
forma de tributação dos rendimentos dos actos isolados, a consagração de deduções fiscais com
a aquisição de bens protectores do ambiente e uma melhor distribuição dos prazos de entrega
das declarações de irs. no mesmo sentido vão as actualizações das deduções que dependem
24 Comissão, Comunicação (98/C 384/03) sobre a aplicação do regime relativo aos auxílios estatais às medidas que respeitam à fiscalidade directa das empresas (JoCe C 384, de 10.12.98).25 Cf. trAnholm-sChWArtz, “the real economy – challenges for competition policy in periods of re-trenchment” Competition Policy Newsletter, n.º 1, 2009, p. 3 e ss. Cf. também Commission, State aid: Overview of national measures adopted as a response to the financial / economic crisis, memo /10/ 52, Brussels, 26 February 2010.26 relativamente à experiência espanhola, cf. serrAno Antón, F., “medidas tributarias y competitividad en tiempos de crisis”, XXXIV Jornadas Colombianas de Derecho Tributario. Memorias, Cartagena de indias: instituto Colombiano de derecho tributario, 14-19 de febrero de 2010, p. 315 e ss.
19
da retribuição mínima mensal que subiu 5,5%, passando de 450 para 475 euros e, sobretudo,
com o aumento da dedução específica dos trabalhadores dependentes e das deduções relativas
a encargos com lares. Acrescem novas alterações ao imposto de selo, o alargamento do prazo
de pagamento de dívidas a prestações de 60 para 120 prestações e, no tocante às empresas, a
acumulação de benefícios de irC e da segurança social na criação de emprego, importante
sobretudo para empresas que iniciam actividade. mas parece claro que muitos destes incentivos
irão perder impacto perante as medidas previstas no novo Programa de estabilidade e Cresci-
mento aprovado entretanto pelo executivo, com vista à redução do défice de 9,3% do PiB para
2,8% em 2013.27
Com efeito, este programa, reflectindo as orientações de Bruxelas para o período pós-crise
e procurando dar satisfação a exigências dos mercados financeiros para o restabelecimento das
condições de financiamento internacional da economia portuguesa, põe o acento tónico no
objectivo (agora acelerado) de consolidação orçamental e sustentabilidade das contas públicas,
relegando o objectivo do crescimento e da superação da crise para segundo plano.
9. o que foi dito permite estabelecer já uma conclusão. Ao contrário da opinião, muitas
vezes propalada, sobre a morte do neo-liberalismo e o regresso ao keynesianismo, a verdade
é que os documentos comunitários mantiveram sistematicamente referências à necessidade
do cumprimento do Pacto de estabilidade e Crescimento, à estratégia de lisboa, às reformas
estruturais, à importância da abertura dos mercados em todo o mundo. isto mostra que a in-
tervenção do estado de apoio ao crescimento era vista, a prazo, como um problema e que não
havia, no essencial, alteração de política económica, mas aproveitamento, no limite, dos meios
e instrumentos disponíveis no quadro existente.
este processo tornou-se particularmente nítido nos documentos que serviram de prepara-
ção para o Conselho europeu da Primavera, de 4 de março de 2009.28
embora aí se continuasse a defender a necessidade de um ambicioso programa de reforma
do sector financeiro e se reafirmasse a ideia de que a retoma económica iria durar ainda bastante
tempo, sendo importante apoiar as pessoas mais atingidas pela crise (como os jovens e os traba-
lhadores migrantes), a verdade é que o acento tónico era dirigido para uma transição, que se de-
sejava suave, para o período pós-crise, identificado como a economia do futuro. essa orientação
consistia essencialmente nas clássicas receitas de reduzir a intervenção do estado e de cumprir o
PeC. e estas vieram a ser desencadeadas a muito curto prazo e a prática mostrou que a transição
– basta pensar na forma como a grécia tem sido tratada – tem sido tudo menos suave.29
27 rePÚBliCA PortuguesA, Programa de Estabilidade e Crescimento 2010-2013, de 15 de março de 2010. Aspecto que se estranha neste programa é a ausência de um plano específico de combate à fraude e evasão fiscal.28 Commission, Driving European recovery, Communication for the spring european Council Com (2009) 114 final, Brussels, 4.3.2009.29 A questão da dívida pública da grécia não é de hoje. era conhecida a frágil posição da grécia no que toca a este critério de adesão ao euro estabelecido pelo tratado de maastricht já no momento da sua entrada para a zona euro. Como o era (e continua a ser) discrepante, desde essa altura, a situação da itália e da Bélgica.
20
recorde-se, aliás, que o Conselho da Primavera dá-se em plena crise e num tempo em
que não se sabia (como, em bom rigor, continua a não se saber) quanto tempo esta iria durar
(A curva da crise será em v? será em W? será em u? será em l?). mas a principal preocupa-
ção das instituições comunitárias não era já combater a crise, mas voltar o mais rapidamente
possível ao statu quo, minorando, quando muito, alguns dos efeitos mais gravosos da crise30. A
margem de manobra dos em para intervirem na economia através de medidas discricionárias
ou do funcionamento dos chamados estabilizadores automáticos perante a emergência da crise
era certamente distinta. A verdade é que, não sendo a ue um estado nem a uem uma zona
monetária óptima, os seus em são diferentemente afectados pelas crises e possuem uma di-
versa capacidade para combaterem tais fenómenos. só uma forte coesão territorial, económica
e social permitiria um real combate à crise, levado a cabo em conjunto e de forma solidária.
mas isso é o que, apesar de encontrar base jurídica nos tratados, não está no horizonte dos
em exportadores líquidos, como a Alemanha, mais preocupada com o rigor orçamental e com
o controlo da inflação (mesmo em tempos de recessão com tendências deflacionistas) ou dos
em que apenas vêm a ue como um grande mercado, como um espaço de livre circulação de
mercadorias, de empresas e de capitais.
esta indeterminação, decorrente de interesses estaduais diferentes e legitimada pelo dis-
curso ideológico neo-liberal que, em larga medida, tem presidido à construção europeia (basta
ler os documentos produzidos pela maioria dos comités ou comissões existentes e pelas asses-
sorias externas para ser clara esta afirmação), conduz, no tempo presente, a uma espécie de
esquizofrenia política.
A palavra de ordem inicial para debelar a crise era “apoiem as instituições financeiras,
evitando riscos sistémicos”, “apoiem os mais desfavorecidos”, “incentivem as Pme”. numa
palavra, pelo menos até ao fim de 2010, incentivava-se o gasto, o aumento da despesa pública.
embora se referisse que o gasto público deveria ser limitado pelo PeC, obviamente a dimensão
e profundidade da crise tornavam impossível para muitos em (em particular os periféricos,
incluindo o “tigre céltico”) manter a despesa dentro dessas baias. o número dos em que dei-
xaram de cumprir os critérios do défice ou da dívida, ou ambos, é, aliás, muito significativo.31
ora, num instante tudo mudou. mesmo que ninguém se tenha afoitado a afirmar que a supe-
ração da recessão técnica ocorrida a partir do último terço de 2009 significava o fim da crise,
a palavra de ordem passou a ser “poupem”, “cortem na despesa pública”, “tenham atenção ao
endividamento”, lamentando-se mesmo, nas entrelinhas, que, em 2005, o PeC se tenha tor-
nado “mais inteligente”.
30 em 19 de Janeiro de 2009, em plena crise, o comunicado de imprensa iP/09/67 sobre as previsões intercalares para 2009-2010 refere em título “A recessão acentua-se, mas o crescimento estará de volta antes do final de 2009.”31 Foram objecto de procedimento de défice excessivo, em 2008, a espanha, a França, a grécia, a irlanda, malta e a letónia e, em 2009, Portugal, a Bélgica, a república Checa, a Alemanha, a itália, os Países Baixos, a áustria, a Polónia e a eslováquia.
21
sintetizando, de forma caricatural: em 2010, em plena crise e na vigência do Pree, os
governos eram convidados a trabalhar às 3ª e 5ª feiras para combater a crise e às 2ª, 4ª e 6º feiras
para debelar o défice e a dívida pública.
Fica, infelizmente, a suspeita que, na base desta súbita mudança, esteja a estratégia do
capital financeiro e das suas instituições virada para a afirmação e consolidação do seu poder.
de facto, o sistema financeiro europeu foi salvo do crédito malparado (e, não raramente,
de ilícitos criminais) pelo dinheiro dos contribuintes. na europa, ao contrário do que ocorreu
nos estados unidos, não foram, até agora, exigidas aos bancos e instituições financeiras quais-
quer contrapartidas sérias. o essencial do programa de regulação e reforço da supervisão destas
instituições, incluindo a criação da agência europeia de rating, várias vezes anunciado, conti-
nua, no essencial, por fazer. ora, sentindo-se de novo com força, houve instituições financeiras
que começaram a especular contra o euro, agravando o custo da dívida pública e os défices dos
em da ue, mas garantindo lucros fabulosos. neste quadro, são legítimas as dúvidas expressas
por muitos economistas e politólogos sobre a forma como a ue e o seu principal em, a Alema-
nha, têm lidado com este assunto, forçando a grécia a recorrer ao Fmi, impondo programas
de austeridade que põem em risco a saída da recessão e o crescimento económico, sem haver
perspectivas de real saída da crise nem esperanças que os sacrifícios redundem num acréscimo
de bem-estar comum, por todos partilhado.
10. voltemos à questão da fiscalidade. Já vimos que ela não teve um papel de grande
relevo nas políticas de combate à crise. o que não é de estranhar pois a fiscalidade não foi,
longe disso, a razão de ser da crise. A questão que agora se põe é contudo outra. não será que,
mesmo assim, houve políticas fiscais que tiveram, em certos casos, um papel de ampliação das
condições de gestação da crise?32
Assim, por exemplo, nos euA, a fiscalidade terá potenciado, em certos casos, o risco e
favorecido a bolha financeira especulativa ligada ao imobiliário, através de incentivos para os
proprietários de casas recorrerem a hipotecas. do mesmo modo, verifica-se que ela favoreceu a
emergência de certos instrumentos financeiros (securitização, planos de stock options etc.) que
ajudaram a desencadear a crise. Acresce que, noutros casos, a existência de benefícios fiscais
injustificáveis e de uma certa complacência com a evasão fiscal pode ter contribuído para o
aparecimento de défices excessivos.
32 esta questão é, entre outros, analisada por hemmelgArn, t. / niCodeme, g., “the 2008 Financial Cri-sis and taxation Policy, european Commission, Working Paper n.º 20, 2009, por keen, m. “debt Bias and other distortions: Crisis-related issues in tax Policy”, imF (Fiscal Affairs department) June 12, 2009, por keen, m./ klemm, A:/ Perry, v., “tax and the Crisis”, Fiscal Studies, vol. 31, issue 1, 2010, pp. 43-79. e por Bou-zorAA, d., “taxation and the Financial and economic Crisis, Part of the Problem or of the solution”, XXXIV Jornadas Colombianas de Derecho Tributario. Memorias, op. cit., p. 301 e ss. este tema que foi objecto de debate no Tax Forum de Bruxelas organizado pela Comissão em março de 2010 (intervenções disponíveis na internet, no sítio da Comissão), merecia, por si só, uma comunicação específica.
22
se assim foi, será aconselhável que os estados removam as medidas fiscais deste tipo que
contribuíram para potenciar os efeitos da crise. será, do mesmo modo, importante que se acabe
com benefícios fiscais sem justificação económica ou ética (alguns, como tem sido, entre nós,
a não tributação das mais valias ou o regime do artigo 53.º do CivA, configuram-se como
verdadeiros paraísos fiscais internos). Ao mesmo tempo, é importante delinear estratégias de
combate à evasão e à fraude fiscal que, sem porem em causa garantias dos contribuintes, se
mostrem eficazes. entre nós, o reforço dos poderes e do estatuto dgitA é, neste contexto,
decisivo33. de resto, como sublinhou Freitas do AmArAl em entrevista à visão de 1-7 de
Abril, desde o combate à fuga aos impostos até à tributação da riqueza onde ela está, mas não
é colectável, há muito ainda por fazer.
no plano da união europeia, deveria introduzir-se maior neutralidade entre as formas
de financiamento das sociedades, incrementar-se a tributação de bónus e remunerações, das
transacções financeiras e das instituições financeiras (inspirando-se, por exemplo, na acção do
Presidente obama, que obrigou os bancos, através de uma taxa especial a ser cobrada durante
10 anos, a financiar o Trouble Asset Relief Program, no montante de 700 mil milhões de dóla-
res), bem como reforçar-se a pressão sobre os paraísos fiscais (amolecida durante a crise), apesar
das referências ao tema na Comunicação da Comissão sobre a boa governança fiscal.34
11. recentemente, a Comissão, reconhecendo, de forma bastante realista, o impacto ne-
gativo da crise e, de forma implícita, o insucesso da estratégia de lisboa, dá mostras de pre-
tender ganhar algum protagonismo na definição de uma estratégia para a europa até 2020.35
33 Cf. sAntos, A.C./ gonÇAlves, ivo/ AmArAl, luís, “A dgitA e a gestão das tecnologias de informa-ção e Comunicação na Administração tributária” , Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal n.º 209 , lisboa, 2010. 34 COMISSÃO, Comunicação ao Conselho, ao Parlamento Europeu e ao Conselho Económico e Social Europeu, Promover a boa governação em questões fiscais, COM (2009) 201 final, de 28 de Abril de 2009. Sobre o tema do combate aos paraísos fiscais, cf., do autor, “Térmitas fiscais e centros financeiros offshore & onshore: A leste dos paraísos? In FERREIRA, E. Paz et alii (org.), Conferência, op. cit., p. 263 e ss.35 Comissão, Comunicação europa 2020, estratégia para um crescimento inteligente, sustentável e inclusi-vo, Com (2010) 2020 final, de 3 de março de 2010. As consequências da crise descritas neste documento são impressionantes: “A recente crise económica não tem precedentes para a nossa geração. os progressos graduais do crescimento económico e da criação de emprego verificados durante a última década foram anulados ,o nosso PiB desceu 4% em 2009, a nossa produção industrial regressou ao nível dos anos 90 e o desemprego afecta agora 23 mi-lhões de pessoas, ou seja, 10% da nossa população activa. A crise foi um tremendo choque para milhões de cidadãos e expôs algumas fraquezas estruturais da nossa economia. devido à crise, tornou-se muito mais difícil garantir o crescimento económico futuro. A situação ainda frágil do nosso sistema financeiro está a atrasar a recuperação, dado que as empresas e as famílias têm dificuldades em contrair empréstimos, gastar e investir. As nossas finanças públicas foram seriamente afectadas, atingindo os défices em média 7% do PiB e os níveis da dívida mais de 80%. deste modo, vinte anos de consolidação orçamental foram perdidos em apenas dois anos de crise. o nosso potencial de crescimento foi reduzido para metade durante a crise. muitos projectos de investimento, talentos e ideias arriscam-se a ser desperdiçados devido à incerteza, à reduzida dinâmica da procura e à falta de financiamento” (p. 8). um outro modo de avaliar o terrível impacto da crise é comparar o custo que a salvação do sistema financeiro teve para os euA em comparação com os custos de outras acções ou programas. em novembro de 2008 aquele custo ascendia a 4.616 mil milhões de dólares enquanto o somatório dos custos do Plano marshal, da compra da luisiana, da viagem à lua, da crise das instituições de poupança e da habitação, das guerras da Coreia, do vietname e do iraque, da nAsA, todos juntos, era inferior a 3.500 mil milhões de dólares (FogAFin, apud sJÖBerg, “medidas tributarias y Competitividade en tiempos de Crisis” XXXiv Jornadas Colombianas de derecho tributário, memorias, Bogotá: iCdt, 2010, p. 47).
23
As prioridades definidas – crescimento inteligente (uma economia baseada no conhecimento
e na inovação), crescimento sustentável (uma economia mais eficiente, mais ecológica e mais
competitiva) e crescimento inclusivo (uma economia com elevados níveis de emprego, coesão
social e territorial) – são consensuais. A questão, porém, é a de saber como é que esta estratégia
se compadece com as recentes orientações da união no sentido de, em plena crise, ter optado
pela imposição de rígidos planos de austeridade que os em devem pôr em prática num curto
período de tempo, sem que se vislumbre como atingir o oásis de 2020.
Como lição a tirar da crise, a ue deveria, sem tibiezas, reorientar a sua acção e a dos em
na busca de mecanismos que previnam ou minorem o desencadeamento de novas crises, entre
outros, pelos princípios seguintes:
– os custos das crises deveriam recair no fundamental sobre aqueles que as originaram e que foram salvos pelo dinheiro dos contribuintes: no presente caso, as instituições financeiras;– uma vez que a crise financeira explica cerca de metade do aprofunda-mento dos défices, os bancos deveriam, já que o BCe está estatutariamen-te impedido a proceder a financiamentos directos (mas não à compra de dívida soberana dos em), ser obrigados a refinanciar os países em dificul-dade;– deveria ser acelerada a aprovação do pacote europeu que incrementa a regulação e supervisão financeira e a criação da agência europeia de ra-ting; – deveria evitar-se, a todo o custo, que a crise financeira que originou uma grave crise económica e uma crise das finanças públicas derrape no sentido de uma crise política e social que seria muito grave, podendo pôr em causa, não apenas os fundamentos do estado social, mas a própria legitimidade das democracias e do estado de direito, a qual cada vez mais deve ter em conta o bem-estar social.
sem rápida concretização destes princípios e de outros similares e sem a consequente
adopção de medidas que deles decorrem, o pessimismo, a descrença e o desencanto dos ci-
dadãos vão alastrar e a estratégia para 2020 arrisca-se a ter o mesmo destino da estratégia de
lisboa.
termino com três citações que nos obrigam a reflectir. A primeira de martin Wolf, um
liberal que procura ter um olhar lúcido sobre a europa: “A Alemanha pode conseguir os seus
intentos no curto prazo, mas não pode moldar a zona euro da forma como pretende. os défices
orçamentais elevados são um sintoma e não uma causa da crise. haverá uma solução satisfatória
para este dilema? Até aqui não se vislumbrou nenhuma, o que é particularmente assustador”.36
36 Diário Económico de 2/04/ 2010.
24
A segunda de Paul krugman, prémio nobel da economia, que, perante o fracasso polí-
tico da recente reunião do g20 e o ressurgimento da ortodoxia do equilíbrio orçamental e da
moeda forte, receia estarmos no início de uma terceira depressão, similar à longa depressão
de 1873: em todo o mundo – e, mais recentemente, no desanimador encontro do g20 – os governos mostram-se obcecados com a inflação quando a ameaça é a deflação, e in-sistem na necessidade de apertar o cinto, quando o problema de facto são os gastos inadequados. não há evidência de que uma austeridade a curto prazo, ante uma economia depri-mida, vá tranquilizar os investidores. Pelo contrário: a grécia concordou com um plano de austeridade, mas viu os seus riscos ampliarem-se; a irlanda estabeleceu cortes brutais dos gastos públicos e foi tratada pelos mercados como um país com maior risco que a espanha [...].37
A terceira de um escritor português, infelizmente falecido entre a apresentação e a pu-
blicação desta comunicação, e cujas palavras, extraídas do seu livro Diálogo das Compensadas
(2001), vêm-me à memória a propósito dos perigos inerentes aos caminhos que a união eu-
ropeia, na conjuntura actual, continua a trilhar. muitas vezes, é, de facto, na literatura que
encontramos as palavras certeiras:
era aquele tempo em que os senhores dos povos, os descobertos e os encobertos, falavam de uma grande Aldeia mundial e essa Aldeia se formara e tornava próspera a poder do trabalho de homens e mulheres que viam as suas vidas tornadas somente esforço destinado a lucros de poderes discretos e terríveis e à mercê inteira da mui temerosa Conjuntura económica, a qual Conjuntura lhes retirava o pão sempre que tal lhe fosse convenhável a ela, sem atentar em que por força a economia há-de existir para servir os povos e não estes a economia, porém os senhores encobertos e desco-bertos escarneciam deste princípio e de todos os outros. e mais escarneciam dele os encobertos, por estarem mui seguros e quasemente desconhecidos, atrás dos seus Conselhos de Administração de suas anónimas sociedades.
reFerÊNCiaS
AleXAndre, F. et al. Crise Financeira Internacional. Coimbra: imprensa da universidade de Coimbra, 2009.
Artus, P. et al. La crise des subprimes. rapport du Conseil d’Analyse économique, la documen-tation Française, 2008.
CAmPo, m. the new state aid temporary framework. Competition Policy Newsletter, n.º 1, 2009, p. 21 e ss.
Competition Policy Newsletter, n.º 1, 2009, p. 21 e ss.
37 “A terceira depressão”, O Estado de S. Paulo, 29/06/2010 (tradução de um artigo publicado in The New York Times)
25
Comissão, Aplicação das regras relativas aos auxílios estatais às medidas adoptadas em relação às instituições financeiras no contexto da actual crise financeira global, JoCe C 270, de 25 de outubro de 2008, p. 8 e ss. Comunicação (2008/C 270/02).
Comissão, Quadro comunitário temporário relativo às medidas de auxílio estatal destinadas a apoiar o acesso ao financiamento durante a actual crise financeira e económica, Comunicação 2009/C 83/01, de 17.12.2008, em 7.4.2009.
Comissão, Da crise financeira à retoma: um quadro de acção europeu. Com (2008) 706 final, Comunicação de 29/10/2008.
Comissão, Plano de relançamento da economia europeia. Comunicação ao Conselho europeu, Com (2008) 800, 26/11/08 e a nota de imprensa iP/08/1771, de 26/11/2008.
Comissão, Comunicação ao Conselho, ao Parlamento europeu e ao Conselho económico e social europeu. Promover a boa governação em questões fiscais, Com (2009) 201 final, de 28 de Abril de 2009.
Comissão, Comunicação (98/C 384/03) sobre a aplicação do regime relativo aos auxílios esta-tais às medidas que respeitam à fiscalidade directa das empresas (JoCe C 384, de 10/12/98).
Comissão, Comunicação europa 2020. estratégia para um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo, Com (2010) 2020 final, de 3 de março de 2010
Commission, Communication on the recapitalisation of financial institutions in the current financial crisis: limitation of the aid to the minimum necessary and safeguards against undue distor-tions of competition, oJ. C 10, 15/01/2009.
Commission, Driving European recovery. Communication for the spring european Council Com (2009) 114 final, Brussels, 4/03/2009.
Commission, State aid: overview of national measures adopted as a response to the financial / economic crisis, memo /10/ 52, Brussels, 26 February 2010.
Conselho - Conclusões da Presidência do Conselho europeu de Bruxelas de 11 e 12 de dezem-bro de 2008, versão revista, doc. 17271/01/08, de 13 de Fevereiro de 2009.
Conselho eCoFin de 7 de outubro de 2008 (até há pouco tempo disponíveis na internet no sítio do Conselho http://www.consilium.europa.eu/uedocs/cms_data/docs/pressdata/pt/eco-fin/103568.pdf ).
diário eConómiCo de 2/04/ 2010.
FerreirA, e. Paz et al. (org.). Conferência crise, justiça social e finanças públicas. Coimbra: Alme-dina, 2010.
FogAFin, apud sJÖBerg. medidas tributarias y Competitividade en tiempos de Crisis. XXXIV Jornadas Colombianas de Derecho Tributário. memorias, Bogotá: iCdt, 2010, p. 47.
krugmAn, Paul. The Return of Depression Economics and the Crisis of 2008, Allen lane, 2008.
soros, george. o novo paradigma para os mercados financeiros. A crise de crédito de 2008 e as suas implicações. Coimbra: Almedina, 2008.
lAevAn, luc; Fabián vAlenCiA, “systemic Banking Crisis: A new database”, imF, Working Paper n.º 08/224, 2008.
lAroisiÈre, Jacques de. The High-Level Group on Financial Supervision on the EU, Report.(na internet).
26
loPes, J. silva. Conferência Crise, Justiça Social e Finanças Públicas, ideFe/ Almedina, 2010, p. 41, in “As políticas orçamentais de combate à presente crise económica”, FerreirA, e. Paz et al. (org.). Conferência Crise, Justiça Social e Finanças Públicas. Coimbra: Almedina, 2010.
O Estado de S. Paulo, 29/06/2010 - A terceira depressão. (tradução de um artigo publicado in The New York Times)
PArlAmento euroPeu. Crise financeira: a resposta do Parlamento Europeu (disponível na internet).
reComendAÇão do Conselho 2008/390/Ce, de 14 de maio de 2008, sobre as orientações gerais para as políticas económicas dos estados-membros e da Comunidade (2008-2010) [Jornal oficial l 137 de 27.05.2008].
relAtório sobre o plano de relançamento da economia europeia, de 17 de Fevereiro de 2009 (2008/2334 (ini)) (disponível na internet).
rePÚBliCA PortuguesA, Programa de estabilidade e Crescimento 2010-2013, de 15 de março de 2010. Aspecto que se estranha neste programa é a ausência de um plano específico de combate à fraude e evasão fiscal.
sAntos, A.C.; gonÇAlves, ivo; AmArAl, luís. A dgitA e a gestão das tecnologias de informação e comunicação na administração tributária. Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal. n. 209 , lisboa, 2010.
sAntos, António Carlos. A ciência económica e a crise de 2007/8 -20??: Crónica de um terramoto anunciado”, Revista da OTOC, n. 122, maio 2010, p. 63-66.
serrAno Antón, F. medidas tributarias y competitividad en tiempos de crisis, XXXIV Jorna-das Colombianas de Derecho Tributario. Memorias, Cartagena de indias: instituto Colombiano de derecho tributario, 14-19 de febrero de 2010, p. 315 e ss.
soros, georges. La crise du capitalisme mondial. L’intégrisme des marchés. Paris: Plon, 1998.
stiglitz, georges. La Grande Désillusion. Paris: Fayard, 2002.
stiglitz, georges. Quand le capitalisme perd la tête. Paris: Fayard, 2003.
ter-minAssiAn, teresa. intervenção no Painel Crise económicas e Políticas Públicas. in: Fer-reirA, e. P. et al. (org.), Conferência Crise, Justiça Social e Finanças Públicas. Coimbra: Almedina, 2010, p. 31.
tomAz, J. Amaral. intervenção no painel Medidas orçamentais e fiscais anti-cise. FerreirA, e. Paz et al. (org.). Conferência Crise, Justiça Social e Finanças Públicas. Coimbra: Almedina, 2010, p. 237.
trAnholm-sChWArtz, the real economy – challenges for competition policy in periods of retrenchment. Competition Policy Newsletter, n. 1, 2009, p. 3 e ss.
WiBAut, serge. quelles leçons tirer de la crise financière. Regards économiques, décembre 2008, n. 64, p. 2.
WolF, Martin, Fixing Global Finance. yale university Press, 2009.
27
A CriSE ECoNÓmiCA E o rEGimE FiSCAL Do CENTro iNTErNACioNAL DE NEGÓCioS DA mADEirA
Clotilde Celorico Palma
o regime fiscal da zona Franca da madeira (zFm), ou Centro internacional de negócios
da madeira (Cinm), tem sido, entre nós, um filho mal amado. trata-se, é bom ter presente, de
um filho planeado, de um instrumento especialmente concebido pelo governo com o objectivo
de desenvolvimento económico de uma região ultraperiférica especialmente protegida, nos
termos do disposto no tratado de Funcionamento da união europeia (tFue).
mas é, decididamente, um filho mal amado.
Convém relembrar as suas origens. o regime do Cinm foi criado em 1980 por Portugal,
através do decreto-lei n.º 500/80, de 20 de outubro, para fazer face às notórias e persistentes
dificuldades económicas de uma pequena ilha ultraperiférica, como um instrumento fundamental
da política de desenvolvimento da região Autónoma da madeira (rAm). Foi concebido e
instituído com o objectivo fundamental de contribuir para o desenvolvimento económico e
social da região, através da diversificação e modernização da respectiva estrutura produtiva de
bens e serviços, de forma a ser um programa coerente e eficiente, adequado às especificidades
de uma economia de uma ilha ultraperiférica, de pequeno tamanho e profundamente afectada
por diversos tipos de dificuldades agravadas pelo grande afastamento, pelos problemas do
relevo e do clima e pela dependência económica em relação a um número restrito de produtos,
dispondo, à data, de um PiB per capita que corresponde apenas a 54% da média da união.
desde logo, esta é uma questão pouco conhecida, esquecida ou, simplesmente, manipulada
junto dos muitos comentadores, de vários quadrantes, deste regime.
Atento o objectivo subjacente à respectiva criação, importa apurar se, efectivamente, o
regime contribuiu e contribui para o desenvolvimento económico da região. manterá o regime
a sua razão de ser? Justifica-se a sua manutenção? em caso afirmativo, em que termos? Poderá
capítulo 2
28
o regime consubstanciar um veículo de resposta à crise económica com que nos defrontamos?
em que medida?
estas são algumas das questões sobre as quais propomos reflectir no presente artigo. Para
o efeito, faremos uma breve incursão sobre as principais características do regime de forma a
melhor dilucidarmos a realidade em causa.
CaraCterização do reGiMe FiSCal do CiNM
UM REGIME DE AUXíLIOS DE ESTADO
o regime do Cinm configura-se como um regime de auxílios de estado sob a forma fiscal,
com objectivos de desenvolvimento regional de uma pequena ilha ultraperiférica, necessitando,
enquanto tal, de ser devidamente notificado e aprovado pela Comissão europeia.1
note-se, antes de mais, que está em causa uma região ultraperiférica, expressa e
especialmente protegida nos termos do disposto no artigo 349 do tFue. este normativo, ao
determinar, no seu n.º 2, que se deverá ter em consideração “ a situação social e económica
estrutural […], dos Açores, da madeira e das ilhas Canárias, agravada pelo grande afastamento,
pela insularidade, pela pequena superfície, pelo relevo e clima difíceis e pela sua dependência
económica em relação a um pequeno número de produtos, factores estes cuja persistência e
conjugação prejudicam gravemente o seu desenvolvimento […]”, vem, de forma específica, dar
maior intensidade aos normativos relativos à política de coesão económica e social relativamente
a estas regiões, a qual, como se prevê expressamente nesta disposição, se impõe horizontalmente
1 de acordo com o disposto nas regras constantes do tratado, há uma proibição genérica de princípio relativamente à concessão dos denominados auxílios de estado. nestes termos, o actual artigo 107 do tFue vem determinar que “salvo disposição em contrário dos tratados, são incompatíveis com o mercado interno, na medida em que afectem as trocas comerciais entre os estados-membros, os auxílios concedidos pelos estados ou provenientes de recursos estatais, independentemente da forma que assumam, que falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas ou certas produções”. Como excepções pontuais à proibição geral das ajudas de estado, o artigo 107 do tFue, nos seus n.ºs 2 e 3, vem, respectivamente, enunciar taxativamente as situações em que tais auxílios “são compatíveis com o mercado interno” e em que “podem ser compatíveis com o mercado interno”. A proibição geral relativamente aos auxílios de estados comporta algumas excepções, designadamente, o caso dos “ [...] auxílios destinados a promover o desenvolvimento económico de regiões em que o nível de vida seja anormalmente baixo ou em que exista grave situação de subemprego, bem como o desenvolvimento das regiões referidas no artigo 349, tendo em conta a sua situação estrutural, económica e social” (artigo 107, n.º 3, a), do tFue). este tipo de auxí-lios poderá ser considerado compatível com o mercado interno, devendo, para o efeito, ser notificado pelo estado membro à Comissão para que esta o autorize. só após a autorização da Comissão é que o regime poderá entrar em vigor, ou seja, a autorização da Comissão é condição de eficácia, e, consequentemente, de existência do regime de auxílios de estado. em conformidade com a jurisprudência constante, o n.º 3 do artigo 107 do tFue confere à Comissão um poder discricionário cujo exercício implica apreciações de ordem económica e social que devem ser efectuadas num contexto comunitário. no exercício do seu poder discricionário, a Comissão deve demonstrar que o auxílio é susceptível de realizar o objectivo descrito nas referidas derrogações previstas no n.º 3 do artigo 107. este exercício do poder discricionário é igualmente exigido à Comissão na sua apreciação da elegibilidade das regiões. A compatibilidade do regime de auxílios de estado com o mercado comum é, após a sua aprovação, objecto de um exame permanente, devendo os estados membros, para o efeito, fazer entrega de relatórios anuais. na sequência deste exame, a Comissão pode decidir que o regime continua a ser plenamente compatível com o mercado interno, ou, pelo contrário, pode solicitar ao estado membro que o altere ou suprima.
29
na definição das outras políticas, nomeadamente em domínios como as políticas aduaneira,
fiscal, de auxílios de estado e as zonas francas.
em sede de auxílios de estado, o regime foi aprovado pela primeira vez pela Comissão a
26 de maio de 1987, por um período de três anos com início em 1989 e produção de efeitos
até 31 de dezembro de 2011, a título da derrogação prevista no n.º 3, alínea a), do ex. artigo
92.° do tratado, posteriormente artigo 87 e actual artigo 107 do tFue, como um regime de
auxílios fiscais composto por um registo internacional de navios, uma zona franca industrial,
um sector de serviços financeiros e um sector de serviços internacionais. Com características
idênticas, este regime veio a ser novamente aprovado a 18 de dezembro de 1991, por um
período de três anos e com produção de efeitos até 31 de dezembro de 2011, e a Fevereiro de
1995, por um período de seis anos e com produção de efeitos até 31 de dezembro de 2011
(regime constante actualmente do artigo 33 do estatuto dos Benefícios Fiscais/eBF).
Após os trabalhos ocorridos no grupo do Código de Conduta da Fiscalidade das empresas
e da revisão das regras sobre auxílios de estado e fiscalidade directa e sobre auxílios de estado
com finalidades de desenvolvimento regional, o regime voltou a ser aprovado, após vicissitudes
diversas, a 11 de dezembro de 2002 e 22 de Janeiro de 2003, por um período de quatro anos
e com produção de efeitos até 31 de dezembro de 2011 (regime constante do artigo 35.º do
eBF).
Finalmente, o regime que actualmente consta do artigo 36 do eBF foi aprovado a 27 de
Junho de 2007, por um período de seis anos e com produção de efeitos até 31 de dezembro
de 2020.2
UM REGIME DE TRIBUTAçãO PRIVILEGIADA
o regime do Cinm não é um regime típico de um paraíso fiscal. trata-se, antes, de um
regime preferencial, na medida em que determina a aplicação de taxas de tributação mais baixas,
sendo transparente, procedendo-se, nos termos gerais, à troca de informações. Com efeito, a
concessão de benefícios fiscais (essencialmente em sede de imposto sobre o rendimento das
Pessoas Colectivas – irC), é a única excepção ao regime geral aplicável no continente e tem
uma razão de ser específica: contribuir para o desenvolvimento económico de uma região à
qual restam poucas alternativas de desenvolvimento, dadas as perspectivas de esgotamento ao
nível do sector turístico e das obras públicas, e atendendo às limitações dos fundos estruturais.
e, note-se, é um regime preferencial com um estatuto especial, na medida em que, como
salientámos, se trata de um regime de auxílios de estado autorizado pela Comissão.
2 o regime foi apresentado ao governo da república em Fevereiro de 2006, foi enviado para negociação em sede de auxílios de estado nas instâncias comunitárias a 28 de Junho de 2006, foi aprovado pela Comissão a 27 de Junho de 2007, a autorização legislativa foi publicada a 21 de novembro de 2007, através da lei n.º 65-A/2007, de 26 de novembro, e a 18 de Janeiro de 2008 é que veio a ser publicado, através do decreto-lei n.º 13/2008.
30
desde sempre que este regime se encontra inserido na categoria dos regimes fiscais
privilegiados e não dos paraísos fiscais, como incorrectamente muitas vezes o vemos
qualificado. Por outro lado recorde-se que, como a própria Comissão reconheceu, em resposta
ao Parlamento europeu, a zFm não tem características de “actividade off-shore”, qualificação
que incorrectamente muitas vezes lhe é atribuída sobretudo nas discussões políticas.
Com efeito, a única singularidade do regime do Cinm relativamente à demais legislação
nacional consiste na atribuição dos referidos benefícios fiscais.3
neste contexto, deverá denotar-se que a madeira nunca figurou em nenhuma lista oficial
de territórios ou regiões qualificadas como paraísos fiscais, quer da oCde, quer do grupo de
Acção Financeira (gAFi), instituído pelo g-7 para o combate ao branqueamento de capitais
proveniente do tráfico de droga.
desde a criação do regime do Cinm, que todas as entidades licenciadas para o exercício
de qualquer tipo de actividades se encontram sujeitas às mesmas regras, condições e requisitos
que as actividades exercidas no resto do território nacional, sem excepções. de salientar,
a este propósito, a aludida total transparência do regime (da qual não goza a maioria dos
verdadeiros paraísos fiscais), traduzida no facto de se aplicarem as mesmas regras relativas
à fiscalização, controlo e supervisão aplicáveis no demais território nacional, não existindo
quaisquer peculiaridades em matéria de sigilo, designadamente no que se reporta à troca de
informações.
PRINCIPAIS CARACTERíSTICAS DOS REGIMES EXISTENTES
A criação do Cinm remonta há três décadas, tendo na sua origem a zona Franca
industrial, circunscrita a um enclave territorial, mediante decreto-lei n.º 500/80, de 20 de
outubro, autorizando a criação de uma zona franca na madeira, “que revestirá a natureza
industrial, constituindo uma área de livre importação e exportação de mercadorias”.
de zona Franca industrial evoluiu para Centro internacional de negócios.
o decreto regional n.º 53/82, de 23 de Agosto, veio alargar o âmbito da zona Franca,
passando a autorizar que nesta se exercessem todas as actividades de natureza industrial, comercial
ou financeira. As actividades financeiras, concretamente, as sucursais financeiras exteriores, são
regulamentadas pela primeira vez no decreto-lei n.º 163/86, de 26 de Junho, que procedeu à
desmaterialização e internacionalização da zFm. o decreto-lei n.º 165/86, de 26 de Junho,
definiu os incentivos fiscais para promoção e captação de investimentos na zFm.
o regime, tal como foi depois acolhido no eBF, com quatro sectores de actividade, é
completado com o decreto-lei n.º 96/89, de 28 de março, que veio criar o registo internacional
3 A este propósito, note-se que após o 11 de setembro, aquando do levantamento das situações de branqueamento de capitais ligados às redes terroristas, não foi detectada qualquer situação ligada à madeira.
31
de navios da madeira (mAr), determinando a aplicação de benefícios fiscais às empresas e às
tripulações. Finalmente, a adaptação do regime, sendo coligidos os diversos benefícios fiscais,
ocorre em 1989 com o eBF, aprovado pelo decreto-lei n.º 215/89, de 1 de Julho, tendo sido
acolhido no respectivo artigo 41, actual artigo 33.
Como é sabido, o regime fiscal do Cinm consta dos artigos 33, 35 e 36 do eBF,
tratando-se de um regime global unitário que abrange quatro sectores de actividade, a saber, as
actividades financeiras e os serviços internacionais, o registo internacional de navios da madeira
(mAr) e a zona Franca industrial.
Actualmente poderemos distinguir três regimes de incentivos fiscais aplicáveis no Cinm:
regime i, regime ii e regime iii ou regime novo.4
o regime i, constante do artigo 33 do eBF, consubstancia-se num conjunto de benefícios
fiscais, dos quais se destaca uma isenção de irC, aplicáveis aos aludidos quatro sectores de
actividade. este conjunto de benefícios produz efeitos até 31 de dezembro de 2011, fazendo-se
notar que a admissão de entidades no regime ocorreu até 31 de dezembro de 2000.5
o regime ii, constante do artigo 35 do eBF, aprovado pelo decreto-lei n.º 163/2003, de
24 de Julho, tem características próprias que o diferenciam claramente do regime anterior e que
foram impostas a nível comunitário tendo-se a Comissão inspirado no caso do regime zeC de
Canárias, características estas que se consubstanciam numa natural perda de competitividade
do mesmo traduzida nos dados quantitativos disponíveis. tal como os anteriores regimes, este
regime pretende ser um veículo de desenvolvimento regional, contribuindo para a modernização
e diversificação de uma pequena economia insular ultraperiférica. Contudo, distintamente dos
anteriores regimes, introduziram-se requisitos de admissão das entidades em função do número
de postos de trabalho criados e do contributo para a diversificação e modernização da região e
limitaram-se os benefícios em sede de irC a plafonds.
desde logo, o regime ii foi amputado do sector dos serviços financeiros, excluindo-se
expressamente as actividades de intermediação financeira, de seguro e das instituições auxiliares
de intermediação financeira e de seguros, bem como as actividades tipo «serviços intragrupo»
(centros de coordenação, de tesouraria e de distribuição).6
4 sobre a evolução do regime da zFm, veja-se Francisco Costa, «Critérios e objectivos da revisão do regime fiscal da zona Franca da madeira», Fisco n.º 58, 1993, Conferência «o novo regime Fiscal da zona Franca da madeira», realizada a 16 de Junho de 1993 em coorganização da Fisco e da sociedade de desenvolvimento da madeira, e Al-berto Xavier, Direito Tributário Internacional. 2. ed. Coimbra: Almedina, Abril de 2007, p. 563-600.5 este regime foi aprovado pela Comissão europeia em sede de auxílios de estado, para vigorar até 31 de dezembro de 2000, o que significa que, a partir de 1 de Janeiro de 2001, seria necessária uma nova autorização da Comissão.6 o modelo deste regime foi fortemente influenciado pelas «orientações relativas aos auxílios estatais com finalida-de regional», publicadas em 10 de março de 1998, pela «Comunicação sobre a aplicação das regras relativas aos au-xílios estatais às medidas que respeitam à fiscalidade directa das empresas», publicada em 10 de dezembro de 1998, pela «Alteração das orientações aos auxílios estatais com finalidade regional, por forma a tomar em consideração o n.º 2 do artigo 299 do tratado Ce relativo às regiões ultraperiféricas da união», publicada em 9 de setembro de 2000 e, indirectamente, pelos trabalhos do grupo do Código de Conduta da Fiscalidade das empresas. sobre este regime vide, da autora, «Características fundamentais do novo regime fiscal do Centro internacional de negócios da
32
Assim, no tocante à delimitação das actividades a exercer, abrangem-se os sectores da zona
franca industrial, dos serviços internacionais e do shipping.
Como requisito principal de licenciamento surgiu-nos, pela primeira vez, a criação de
postos de trabalho, condição sine qua non para efeitos de aplicação do regime.
Às empresas licenciadas entre 1 de Janeiro de 2003 e 31 de dezembro de 2005,
determinou-se a aplicação de uma taxa de irC de um por cento em 2003-2004, de dois por
cento em 2005-2006 e de três por cento em 2007-2011.
os rendimentos das sociedades gestoras de Participações sociais (sgPs) licenciadas
a partir de 1 de Janeiro de 2003 e até 31 de dezembro de 2006, são tributados em irC
nos termos anteriormente referidos, salvo os obtidos no território português, exceptuadas as
zonas francas, ou em outros estados membros da união europeia, que são tributados nos
termos gerais. estas sociedades não estão, obviamente, sujeitas aos novos requisitos de admissão
relativos ao emprego.
o regime ii vigorou, em termos de admissão de licenciamento de entidades, durante o
período de 2003-2006 e os beneficiários admitidos até essa data poderão continuar a usufruir
dos auxílios concedidos até 31 de dezembro de 2011, data de produção de efeitos do anterior
regime.
o regime iii ou novo regime, previsto no artigo 36.º do eBF, é aplicável às entidades que
se licenciem para operar no Cinm no período entre 1 de Janeiro de 2007 e 31 de dezembro
de 20137.
no essencial, o regime mantém as linhas estruturantes do anterior regime ii: tributação
a taxas reduzidas de irC e limitação da concessão do benefício através da aplicação de plafonds
máximos à matéria colectável objecto do benefício fiscal em sede de irC. nestes termos,
relativamente às entidades devidamente licenciadas a partir de 1 de Janeiro de 2007 e até 31
de dezembro de 2013 para o exercício de actividades industriais, comerciais, de transportes
marítimos e serviços de natureza não financeira, consagra-se um regime geral degressivo dos
benefícios concedidos, passando a tributar-se os rendimentos em irC às taxas de três por cento
nos anos 2007 a 2009, de quatro por cento nos anos 2010 a 2012 e de cinco por cento nos
anos 2013 e seguintes.
madeira», revista TOC n.º 42, setembro de 2003, «o novo regime fiscal do Centro internacional de negócios da madeira», Semanário Económico, Management de 5 de Junho de 2003, «o novo regime fiscal do Centro internacio-nal de negócios da madeira. enquadramento e características fundamentais», Fisco n.º 107/108, março de 2003, ano Xiv, e ricardo Borges, Fernando Brás e Patrick dewerbe, «the madeira Free zone and its standpoint within the european union», Fiscalidade n.º 16, outubro de 2003. sobre a competitividade do regime do Cinm veja-se, da autora, «o regime do Centro internacional de negócios da madeira. um instrumento de competitividade fiscal?» – Jornal de Contabilidade, APoteC, n.º 351, Junho 2006.
7 sobre o novo regime veja-se, da autora, “novo regime do Centro internacional de negócios da madeira. Carac-terísticas fundamentais”, Revista da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas n.º 100, Julho 2008 e “novo regime do Centro internacional de negócios da madeira”, Revista de Finanças Públicas e Fiscalidade, Fdl, ideFF, n.º1, março-maio 2008.
33
no tocante aos plafonds, questão essencial, como iremos verificar, para que o regime
cumpra os seus objectivos, poderemos apresentar o seguinte quadro comparativo entre o
regime ii e o regime iii:
Quadro 1. limites máximos aplicáveis à matéria colectável (milhares de euros)
Postos de trabalho criados e mantidos
Matéria colectável sujeita a taxa reduzida-------------------------------Regime IIN 222/A/2002N 222/B/2002
Matéria colectável sujeita a taxa reduzida--------------------------Regime III
N 421/20061 a 2 postos de trabalho3 a 5 postos de trabalho6 a 30 postos de trabalho31 a 50 postos de trabalho51 a 100 postos de trabalhoMais de 100 postos de trabalho
1 5002 00012 00020 00030 000125 000
2 0002 60016 00026 00040 000150 000
relativamente às entidades devidamente licenciadas para operar na zona franca industrial,
mantém-se a dedução de 50 por cento à colecta do irC (já prevista no artigo 35 do eBF quanto ao
regime ii), desde que preencham determinadas condições.8
são aplicáveis às entidades referidas, bem como aos seus sócios ou accionistas, para as situações
não especificadas, os demais benefícios fiscais e condicionalismos previstos para o Cinm.
quanto às sgPs o regime è igual ao anterior.
As entidades que estejam licenciadas ao abrigo dos regimes previstos nos artigos 33 e 35
do eBF, podem beneficiar do novo regime a partir de 1 de Janeiro de 2012.
8 Pelo menos duas das seguintes condições: i) Contribuam para a modernização da economia regional, nomeada-mente através da inovação tecnológica de produtos e de processos de fabrico ou de modelos de negócio;ii) Contribuam para a diversificação da economia regional, nomeadamente através do exercício de novas actividades de elevado valor acrescentado;iii) Promovam a contratação de recursos humanos altamente qualificados;iv) Contribuam para a melhoria das condições ambientais;v) Criem, pelo menos, 15 postos de trabalho, que devem ser mantidos durante um período mínimo de cinco anos;Para beneficiar do regime especial, as entidades devem observar um dos seguintes requisitos de elegibilidade:i) Criação de um a cinco postos de trabalho nos seis primeiros meses de actividade e realização de um investimento mínimo de (euro) 75 mil na aquisição de activos fixos, corpóreos ou incorpóreos, nos dois primeiros anos de activi-dade; ii) Criação de seis ou mais postos de trabalho nos seis primeiros meses de actividade.
34
ProbleMaS reCeNteS do CiNM
A NíVEL INTERNACIONAL
nos finais dos anos 90, na união europeia e na oCde iniciaram quase concomitantemente
dois exercícios similares sobre a concorrência fiscal prejudicial: o do Código de Conduta da
Fiscalidade das empresas e o do relatório da oCde sobre a Concorrência Fiscal Prejudicial.
Com estes exercícios inicia-se uma época caracterizada por uma nova perspectivas de
abordagem das zonas francas não só a nível europeu como igualmente num espectro mais lato,
a nível internacional, em que impende uma presunção de prejudicialidade, sobretudo quanto
à vertente dos designados “serviços de natureza financeira”, especialmente delicada quanto
estão em causa pequenos países, factor bastante significativo neste tipo de negociações a nível
internacional9.
A preocupação subjacente a ambos os documentos é, essencialmente, a de combater
regimes de tributação dos serviços financeiros e outros serviços móveis tidos por perniciosos
do ponto de vista fiscal, pretendendo obrigar os países a congelarem e a desmantelarem tais
regimes (cláusulas de standstill e de rollback)10. Para o efeito, foram instituídos o grupo do
Código de Conduta e o Fórum da oCde para as Práticas da Concorrência Fiscal Prejudicial.
9 note-se, por exemplo, que o conhecido estado de delaware dos estados unidos e singapura nunca constaram de qualquer lista dos paraísos fiscais da oCde… 10 sobre esta matéria e o Código de Conduta da Fiscalidade das empresas veja-se, entre nós, António Carlos dos santos, L’Union européenne et la régulation de la concurrence fiscale, tese de doutoramento publicada pela Bruylant, 2009, “A posição portuguesa face à regulação comunitária da concorrência fiscal”, Conferência sobre Fiscalidade Internacional, universidade nova, lisboa, 12 e 13 de março de 2002, publicada no livro Planeamento e concorrência fiscal internacional, Fisco 2002, “Point J of the Code of Conduct or the Primacy of Politics over Administration”, European Taxation, vol. 40, n.º 9, 2000, António Carlos dos santos e Clotilde Celorico Palma, “A regulação inter-nacional da concorrência fiscal nefasta”, Ciência e técnica Fiscal nº395, Julho-setembro de 99, Clotilde Celorico Palma, “A oCde, a concorrência fiscal prejudicial e os paraísos fiscais: novas formas de discriminação fiscal?”, Ciência e Técnica Fiscal n.º403, Julho-setembro de 2001, Clotilde Celorico Palma, “o combate à concorrência fis-cal prejudicial – Algumas reflexões sobre o Código de Conduta comunitário da Fiscalidade das empresas”, Fiscália, setembro de 99, n.º 21, “A concorrência fiscal sob vigilância: Código de Conduta comunitário da Fiscalidade das empresas versus relatório da oCde sobre as Práticas da Concorrência Fiscal Prejudicial”, Revisores & Empresas, Jan/ mar/99, “A oCde, a concorrência fiscal prejudicial e os paraísos fiscais: novas formas de discriminação fis-cal?”, Revista TOC n.º 16, Julho de 2001, “A oCde e o combate às Práticas da Concorrência Fiscal Prejudicial: ponto de situação e perspectivas de evolução”, Fiscalidade n.º 16, outubro de 2003, “Código de Conduta da Fisca-lidade das empresas – o desafio dos novos estados membros”, in 15 anos da Reforma Fiscal de 1988/89, Jornadas de homenagem ao Professor Pitta e Cunha, Almedina, novembro 2005, “o controlo da concorrência fiscal prejudicial na união europeia: dois pesos duas medidas?”, Boletim Informativo da Sociedade de Desenvolvimento da Madeira, n.º11, outubro/novembro 2005, O controlo da concorrência fiscal prejudicial na União Europeia – ponto de situação dos trabalhos do Grupo do Código de Conduta, livro de homenagem ao Professor Xavier de Basto, Coimbra editora, Abril de 2006, e Freitas Pereira, “Concorrência Fiscal Prejudicial – o Código de Conduta da união europeia”, Ciência e Técnica Fiscal n.º390, Abril-Junho 98. sobre o papel da crise económica e acção do g20, veja-se Amaral tomaz, “A reunião do g20 de 2 de Abril de 2009 e o futuro dos paraísos fiscais”, Revista de Finanças Públicas e de Direito Fiscal, Ano ii, n.º 2, Julho 2009.
35
o regime i foi avaliado no âmbito destes trabalhos quer na oCde quer na união
europeia, tendo nesta sede o mecanismo dos auxílios de estado funcionado como um
indissociável instrumento complementar.
em ambas as instâncias, os trabalhos tiveram basicamente em consideração a prejudicialidade
dos regimes que beneficiam as actividades mais móveis, tais como as actividades de natureza
financeira, facto que determinou a consideração como “prejudiciais” das actividades financeiras
prosseguidas no Cinm no chamado relatório Primarolo de 1999 (grupo do Código de
Conduta)11 e no primeiro relatório de Progressos dos trabalhos do Fórum da oCde.12
no ecofin de 20 e 21 de Janeiro de 2003, em sede do Código de Conduta sobre a
Fiscalidade das empresas, foi salvaguardada expressamente a data de produção de efeitos
do regime das actividades financeiras do Cinm previsto no artigo 33.º do eBF até 31 de
dezembro de 2011. tal decisão foi, igualmente, respeitada ao nível da oCde. Por outro lado,
ao se terem retirado do regime em vigor a partir de Janeiro de 2003 as actividades financeiras,
considerou-se em ambas instâncias que o regime deixara de ter aspectos prejudiciais.
no ecofin de 19 de março de 2003, as actividades financeiras, o único tipo de actividade
que esteve em causa no grupo do Código de Conduta, foram qualificadas como não prejudiciais,
tendo a situação sido definitivamente resolvida com a aprovação do “Pacote Fiscal” no ecofin,
de 3 de Junho de 2003.
em suma, relativamente ao Cinm poderemos concluir que o regime não apresenta
quaisquer problemas na óptica da concorrência fiscal prejudicial quer na oCde quer na união
europeia.
11 o relatório Primarolo veio a ser publicado entre nós pelo Centro de estudos Fiscais nos Cadernos de Ciência e Téc-nica Fiscal nº 185 de 2000. o grupo do Código de Conduta da Fiscalidade das empresas tem vindo a reunir-se várias vezes em Bruxelas, tendo o seu principal trabalho consistido na elaboração deste relatório que identifica 66 medidas de estados membros e de territórios dependentes, “qualificadas” como prejudiciais, mais conhecido por relatório Prima-rolo, nome da senhora secretária de estado inglesa que presidiu o grupo durante dez anos desde a sua constituição. o relatório Primarolo nunca foi objecto de aprovação oficial pelo ecofin, sendo certo que se encontra repleto de notas de rodapé que reflectem discordâncias dos estados membros. Assim, não poderíamos falar da existência de um consenso nem de uma qualificação oficial das 66 medidas como prejudiciais, pelo que vários estados membros se questionavam sobre o prosseguimento dos trabalhos, entre os quais a Bélgica, o luxemburgo, a áustria e Portugal. Por outro lado, conforme fizemos notar em nota de rodapé aposta ao relatório Primarolo (nota nº8), Portugal nunca concordou com a avaliação que foi feita relativamente ao regime das actividades financeiras do Cinm. Com efeito, contrariamente ao procedimento previsto no ponto g do Código de Conduta (disposição inserida no Código por intervenção das delega-ções portuguesa e espanhola), não foi analisada pelo grupo a questão relativa à proporcionalidade da medida face aos objectivos económicos pretendidos, uma vez que o segundo relatório que para o efeito foi entregue por Portugal não foi objecto de discussão no seio do grupo. de facto, contrariamente ao procedimento que foi adoptado relativamente a to-dos os demais relatórios entregues pelos outros estados membros, a Presidente concluiu, após distribuição do relatório aos estados membros, que o seu silêncio se traduzia na anuência quanto à avaliação da medida como prejudicial.12 “report on Progress in identifying and elimination harmful tax Practices” OCDE, Paris, 2000.
36
A NíVEL INTERNO
Paradoxalmente, no plano interno tem existido uma política indefinida relativamente ao
Cinm, verificando-se, desde logo, que se sucedem alterações legislativas inconsequentes, pouco
claras, e que, contrariamente aos propalados objectivos de aumento da competitividade fiscal,
têm vindo a desferir golpes duros ao regime e a colocá-lo em causa face a regimes congéneres
existentes noutras praças.
neste contexto, é paradigmático o caso das alterações introduzidas com a lei n.º 55-
B/2004, de 30 de dezembro, que aprovou o orçamento do estado para 2005, que veio aditar
um novo n.º 10 ao artigo 46 do Código do imposto sobre o rendimento das Pessoas Colectivas
(CirC) e que veio mais tarde a ser revogado.
Acresce o efeito negativo do excessivo arrastamento das negociações dos regimes de auxílios
de estado e a existência de determinadas exigências legais, desadequadas da prática internacional,
que bloqueiam a execução e a agilização das operações, como é o caso da exigência generalizada
de certificados de residência, mesmo em situações em que o interesse de controlo das mesmas
por parte da Administração Fiscal nos parece suficientemente salvaguardado. Por outro lado,
o timing das decisões administrativas não se compadece com as necessidades operativas de um
regime deste tipo.
mas de entre as questões mais paradoxais ressaltam a exigibilidade do Pagamento
especial por Conta (PeC) a entidades isentas licenciadas no Cinm13 e o recentíssimo caso do
“abandono” da negociação do aumento dos plafonds por parte do governo, esta última história
com contornos verdadeiramente inacreditáveis.
no que toca ao PeC, depois de um longo percurso, foi necessário que o tribunal
Constitucional, por Acórdão n.º 494/2009, de 29 de setembro, viesse declarar a
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma contida no n.º 9 do artigo 98.º do
CirC, na parte em que impõe que efectuem pagamento especial por conta entidades que, no
exercício a que o pagamento respeita, apenas aufiram rendimentos isentos de irC, declarando
a inconstitucionalidade consequencial da norma contida no n.º 5 do artigo 44.º da lei n.º 60-
A/2005, de 30 de dezembro, na parte em que se refere às mesmas entidades, e ressalvando os
efeitos produzidos até à publicação do Acórdão.14
quanto à questão dos plafonds, que, como iremos analisar, é um aspecto crucial para
a consecução dos objectivos do regime, ficou acordado com a Comissão em 2006, ao longo
da negociação do regime iii, que o governo iria apresentar um estudo económico sobre a
necessidade de rever os limites aos benefícios fiscais concedidos em sede de irC (de forma
a não se arrastar mais o processo negocial então em curso). esse estudo veio a ser entregue
13 Através da lei n.º 60-A/2005, de 30 de dezembro, que aprovou o orçamento de estado para 2006.14 sobre esta questão veja-se António Carlos dos santos, «A deriva constitucional do actual regime do pagamento especial por conta», Fisco n.º 122/123, 2007.
37
em Janeiro de 2009, e este processo de alteração ao regime iii com aumento dos plafonds
foi formalmente notificado pelo governo à Comissão em maio de 2009, em consequência
do acordo de princípio estabelecido no decurso de anteriores negociações de prolongamento
do regime do Cinm. iniciou-se, como é habitual, um processo negocial com os serviços da
direcção geral da Concorrência da Comissão europeia. o referido processo implicou a troca
de cartas e a realização de reuniões técnicas com os serviços da Comissão, tendo decorrido
com toda a normalidade desde maio de 2009 até Abril de 2010, tendo sido sempre prestados
à Comissão europeia todos os esclarecimentos solicitados quer oralmente quer por escrito,
designadamente em Julho e em outubro de 2009. eis quando, senão, à terceira carta da
Comissão com questões meramente técnicas, o governo pede uma prorrogação do prazo
de resposta e acaba por não o cumprir enviando uma carta a solicitar a retirada do processo
por motivos relacionados com a crise económica, precisamente os mesmos que justificaram a
apresentação do pedido de renegociação… Por estranho que pareça, no dia seguinte ao envio
da carta, segue-se uma nova carta das autoridades portuguesas mas, desta feita, a dar o dito
por não dito, solicitando que fosse dada sem efeito a carta anterior. A Comissão dá um novo
prazo de resposta e, paradoxalmente, o governo não responde dentro do prazo concedido (as
respostas estavam preparadas há meses), tendo por efeito o encerramento desse processo...15
o CoNtributo do CiNM Para o deSeNvolviMeNto reGioNal – PriNCiPaiS dadoS eCoNóMiCoS
em 1988, estavam licenciadas no Cinm 7 sociedades. em 1989, estavam licenciadas 58
sociedades e, em 1993, mais de 1.000 sociedades.
A passagem do regime i para o regime ii, com as imposições que foram ditadas a nível
internacional, especialmente a introdução de plafonds aos benefícios fiscais em sede de irC,
caracteriza-se por uma perda de competitividade do regime.
entre 2003 e 2006, o número de autorizações concedidas foi, apenas, de 145. de acordo
com os dados publicados pelo instituto nacional de estatística, em 2002 o regime do Cinm
contribuiu em cerca de 21% para o PiB da região.
Ainda em conformidade com os dados do instituto nacional de estatística, em 2003 o
volume total de emprego directo criado no Cinm correspondia a 2.888 postos de trabalho,
excluindo os trabalhadores no âmbito do registo internacional de navios. destes trabalhadores
constavam 422 nos serviços financeiros, 604 na zFi e 1.862 nos serviços internacionais.
em 2006 e 2007, os sectores com melhor desempenho foram a zona franca industrial e o registro
internacional de navios.
15 todo este processo se passou quando era ministro das Finanças Fernando teixeira dos santos, tendo-se iniciado com o secretário de estado dos Assuntos Fiscais Amaral tomaz, prosseguido com o secretário de estado dos Assun-tos Fiscais Carlos lobo e sido interrompido com o secretário de estado dos Assuntos Fiscais sérgio vasques.
38
em 2008 encontravam-se licenciadas para operar no Cinm, no total, 3.630 entidades:
56 na zona franca industrial, 3.303 nos serviços internacionais, 33 nos serviços financeiros e
238 no registo internacional de navios.
de acordo com dados de 31 de dezembro de 2009, encontram-se licenciadas as seguintes
entidades:
Sector de Actividade N.º EntidadesServiços Financeiros Zona Franca Industrial Serviços Internacionais
51 30 2.900
Sub-total de sociedades 2.981Registo de Navios – MAR 240Total 3.221
note-se que foram efectuados vários estudos sobre o contributo deste regime para o
desenvolvimento regional, procurando-se, designadamente, apurar da proporcionalidade dos
benefícios concedidos face aos resultados económicos atingidos. de entre estes destaca-se,
nomeadamente, o estudo elaborado pelo Centre for European Policy Studies16, de Bruxelas, que,
após uma análise substancial e aprofundada, confirma as conclusões de um relatório entregue
por Portugal junto da união europeia quanto ao mérito e indispensabilidade da prossecução do
programa consubstanciado no Cinm, concluindo que “julgamos ser da máxima importância
para a região e também do interesse da própria eu, que a madeira seja autorizada a manter o
regime actual, na sua totalidade, até ao ano 2011 ou mesmo até mais tarde.”17
mais recentemente, em Janeiro de 2009, o European Policies Research Centre da
universidade de Strathclyde apresentou o estudo The reform of the Madeira free zone: impact
and implications of regime change, fundamentado em informações recolhidas em entrevistas
junto dos profissionais do sector, na análise das estatísticas disponíveis, na comparação com
outros regimes concorrentes e na crítica metodológica aos fundamentos das anteriores decisões
da Comissão.
Até 2000, não há dúvidas quanto ao contributo do regime i para o desenvolvimento
regional, quer em termos de contributo para o PiB regional, quer em termos de vAB, quer
em termos de diversificação e modernização do tecido empresarial, quer em termos de resposta
à globalização, quer em termos de emprego (directo e indirecto) qualificado, quer ainda
em termos de incentivo indirecto ao turismo de negócios. Para o conjunto das actividades
não financeiras, o Cinm representa 17% em 2000 e 2001 e 20% em 2002 do vAB total
16 The Madeira International Business Centre: The Economic Context and European Interests, report prepared by Wolfgang hager and matthias levin, January 2002.17 de notar que nos termos deste estudo se conclui ainda que “o regime da madeira não é um offshore no sentido normal do termo. As licenças são sujeitas a regras muito rígidas, as companhias a operar na madeira têm de ser residentes em Portugal e por isso sujeitas a supervisão de entidades oficiais portuguesas”.
39
de tais actividades da rAm. As empresas do Cinm representavam, em termos de vAB,
respectivamente 23%, 22% e 27% do vAB total das empresas não financeiras da madeira, nos
mesmos anos. A importância relativa do Cinm no que respeita ao conjunto das actividades
financeiras exercidas na madeira era de 70%, 48% e 49% respectivamente em 2000, 2001
e 2002. nos mesmos anos de referência (2000, 2001 e 2002), o contributo total do Cinm
para o PiB regional da madeira e para o respectivo vAB a preços de base atingiu percentagens
idênticas, respectivamente de 21%, 18% e 21%. ou seja, em geral e segundo estes indicadores,
a zFm representava nos mencionados anos cerca de um quinto da economia da madeira, com
forte prevalência das actividades dos sectores não financeiros.
A questão que se suscita é a de saber se os regimes ii e iii, tal como foram concebidos,
possibilitam o reforço ou, pelo menos, a continuação, do contributo do Cinm para o
desenvolvimento regional.
Como demonstra o estudo The reform of the Madeira free zone: impact and implications of
regime change, esta questão só pode ser objecto de resposta negativa: sobretudo em comparação
com o regime i, os regimes ii e iii estão longe de assegurar esse objectivo.
os condicionalismos do novo regime, nomeadamente a introdução de plafonds limitativos
dos benefícios e a obrigatoriedade de criação de postos de trabalho para o estabelecimento de
novas entidades, não permitiram sequer realizar inteiramente as previsões que subjaziam à
respectiva notificação e consequente autorização.
no tocante à questão da evolução do emprego, por exemplo, atendamos ao seguinte
gráfico. o ponto de partida da análise levada a efeito no aludido estudo é a constatação que
a atractividade relativa dos três regimes, tal como o quadro seguinte o demonstra, é muito
distinta, com nítida vantagem para o regime i. Para além da não elegibilidade dos serviços
financeiros nos regimes ii e iii, ressalta o peso das sociedades admitidas ao abrigo do regime
i (representando mais de 90,7 por cento do total) e dos serviços internacionais (representando
mais de 91 por cento das licenças activas). o quadro demonstra, em particular, a relativa falta
de atractividade dos regimes ii e iii, nomeadamente para os serviços internacionais.
Quadro 2: licenças activas a 31 de dezembro de 2008
Regime I Regime II Regime III TotalServiços Internacionais
3174 66 63 3.303
Indústria 30 21 5 56Financeiro 33 0 0 33MAR 54 115 69 238Total 3.291 202 137 3.630
40
os dados apresentados demonstram que os regimes ii e iii, sendo absolutamente
necessários, nos seus fundamentos e finalidades estruturais, para o desenvolvimento da
madeira, não são, na sua conformação concreta, adequados para atingir os objectivos a que se
propuseram. Por isso eles devem ser, quanto antes, objecto de reapreciação.
A principal razão de ser deste facto reside, em conformidade com entrevistas efectuadas
para o efeito, na imposição de limites máximos sobre os lucros tributáveis a taxas reduzidas,
determinados pela criação de emprego, limites esses inexistentes em regimes europeus afins,
isto é, na existência dos plafonds tal como se encontram concebidos.
As economias beneficiárias da perda de competitividade do Cinm são aquelas que têm
regimes alternativos com níveis muito baixos de tributação efectiva, como os do luxemburgo,
da holanda, de malta, de Chipre ou das ilhas Anglo-normandas e do Canal da mancha,
economias mais desenvolvidas e desprovidas de muitos dos constrangimentos impostos à
região Autónoma da madeira em sede de auxílios de estado.
a urGeNte NeCeSSidade de alteração do reGiMe
de acordo com os dados disponíveis, o Cinm representa para a rAm 21% do PiB
(Fonte: ine/Contas regionais, 2002), 21% do imposto sobre o valor Acrescentado liquidado
(Fonte: srPF, 2004), receitas significativas a título de taxas de instalação e funcionamento e
dividendos, 10% da massa salarial da rAm (Fonte: sdm), cerca de 3.000 postos de trabalho
em 2008, sendo a maioria qualificados, bem como sinergias com outros sectores da economia
(turismo, imobiliário, telecomunicações, comércio). ou seja, o Cinm é um instrumento
indispensável ao desenvolvimento económico e social da rAm.
ora, os dados económicos supra demonstram, claramente, a perda sucessiva de
competitividade do regime do Cinm e a urgente necessidade quanto à respectiva alteração.
os regimes ii e iii revelaram-se, de acordo com o que o estado Português sustentou,
inadequados para se consubstanciarem como verdadeiros incentivos a um desenvolvimento
regional sustentado, para proceder ao reforço da coesão social no espaço europeu, para atenuar
os constrangimentos estruturais da rAm e, inclusive, para evitar deslocalizações de empresas
para outras regiões ou países da europa (situados fora da área das regiões ultraperiféricas),
com reflexos negativos no emprego criado pelo regime inicial de auxílios ao Cinm. A drástica
diminuição de licenças emitidas e os planos, revelados em entrevistas e inquéritos a empresários
e investidores, para empresas localizadas no Cinm abandonarem, a curto prazo, esta região para
zonas geográficas fiscalmente mais competitivas, como a holanda, o luxemburgo, Chipre, malta
ou a suíça, aliados ao contexto de grave crise financeira, implicam uma urgente reapreciação
dos plafonds. A manutenção dos limites actuais aos benefícios consagrados em sede de irC
tem, rapidamente, conduzido à ineficácia do incentivo e ao atrofiamento do regime, tornando-
41
o inapto para atingir os objectivos a que se propunha. A revisão dos plafonds, respeitando o
princípio da proporcionalidade, daria cumprimento aos critérios do desenvolvimento regional,
criando-se um verdadeiro efeito de incentivo, evitando-se que a madeira tenha, no futuro, de
recorrer de novo a um estatuto prioritário no acesso aos Fundos estruturais.
quer durante o processo negocial dos regimes de 2003 e 2007, quer posteriormente, o
estado Português chamou a atenção para o facto de o regimes ii e, por maioria de razão, o
regime iii não serem adequados para atingir os objectivos a que se propuseram. é o mesmo
estado que agora recua de forma paradoxal no processo encetado nesse sentido.
A situação existente na madeira, agravada pela conjuntura de crise, justifica a urgente
reapreciação dos plafonds.
se já é irónico que o estatuto da madeira como região comunitária (mesmo com o estatuto
de ruP) restrinja, de forma manifesta, a sua capacidade para proporcionar incentivos similares
aos de países ou de regiões que não estão sujeitos ao regime dos auxílios de estado, mais irónico
seria que a promoção de um desenvolvimento sustentável fosse prejudicada pela imposição de
condições suplementares que, no final, apenas beneficiariam directamente países ou regiões que
não são consideradas como ultraperiféricas.
tal facto, como refere o estudo The reform of the Madeira free zone: impact and implications
of regime change, levará a madeira a ter, a exemplo do passado, que recorrer a um estatuto
prioritário no acesso aos Fundos estruturais.
CoNSideraçÕeS FiNaiS
o Cinm foi deliberadamente criado pelo governo português para fazer face aos cons-
trangimentos económico–sociais de uma pequena ilha ultraperiférica, especialmente protegida
nos termos do disposto no tratado de Funcionamento da união europeia.
os dados económicos apresentados demonstram claramente que o regime tem sido
essencial para a concretização do objectivo para o qual foi criado. A Comissão europeia tem
vindo a provar este facto através das sucessivas aprovações dos regimes de auxílios estatais para
o efeito apresentados e do controlo anual dos mesmos.
quais têm sido, então, os principais problemas deste regime? do exposto conclui-se que
os principais problemas, ultrapassada a questão a nível internacional quanto às actividades
financeiras, se têm colocado a nível interno, exactamente nas mesmas instâncias que aprovaram
o regime invocando o seu carácter imperativo tendo em vista os objectivos económicos e sociais
para os quais foi criado.
na realidade o regime é mal compreendido entre nós e tem sido, sucessivamente,
utilizado de forma demagógica por diversos responsáveis supostamente esclarecidos sobre estas
matérias.
42
tem sido prestado um bom serviço ao país através de atitudes como as descritas, das quais
o recente e paradoxal caso da negociação dos plafonds é um exemplo paradigmático? A resposta
parece-nos óbvia. trata-se, fundamentalmente, de conferir ao Cinm condições mínimas de
operação equivalentes às vigentes nos regimes seus congéneres europeus, evitando assim que,
no imediato, se assista a uma deslocalização em larga escala de empresas para tais regimes,
criando desemprego qualificado (estando em risco cerca de dois mil postos de trabalho), com
as consequentes rupturas no tecido económico e social da região, e prejudicando seriamente a
capacidade de cobranças fiscais geradas pelas empresas do Cinm que, a partir de 2012, e apenas
em irC, se estimam em mais de sessenta milhões de euros por ano, com a inerente afectação
negativa da autonomia financeira da região. e, note-se, sem que, também contrariamente
à argumentação infundada de alguns, ocorra qualquer desvantagem para o estado, já que a
alegada “despesa fiscal” das empresas do Cinm não passa de uma mera ficção contabilística,
dado que a receita teoricamente correspondente nunca seria cobrável no caso de inexistência
do regime de benefícios do Cinm, tal como foi reconhecido pelo estado nos documentos
oficiais respeitantes a este processo negocial e em anteriores orçamentos gerais do estado (veja-
se, nomeadamente, os relatórios dos oe de 1999 a 2004).
Para além de se voltarem as costas aos reais interesses económicos e sociais em causa,
a imagem do país e dos seus decisores a nível internacional num processo como estes é
profundamente lamentável.
este regime constitui um compromisso firme de Portugal para com a comunidade
económica internacional, importando acautelar os direitos adquiridos e as legítimas expectativas
económicas, quer no tocante aos agentes económicos que operam no Cinm, quer relativamente
a todos aqueles que, directa ou indirectamente, sebeneficiam da sua existência por motivos
diversos, especialmente porque os respectivos postos de trabalho dependem da existência deste
regime tal como foi previamente delineado.
há, todavia, que ter em consideração que este programa ainda não produziu a plenitude
dos efeitos económicos esperados. os resultados económicos já atingidos, bem como o facto
de o nível de consecução do programa concebido para o Cinm ainda não ter atingido a
respectiva maturação, e de, por outro lado, as capacidades dos modelos de desenvolvimento
centrados nos grandes projectos de obras públicas e no turismo terem limites óbvios, tornam
evidente a necessidade de manutenção daquele regime, como um veículo imprescindível para
o desenvolvimento económico e social da madeira, através da diversificação e modernização da
respectiva estrutura produtiva de bens e serviços.
importa proceder à alteração da legislação em causa, clarificando-a de forma inequívoca,
de forma a não afectar o normal funcionamento do regime e os motivos de desenvolvimento
regional subjacentes a este auxílio de estado.
43
Como temos vindo a salientar, não existindo impedimentos de natureza legal à existência
de controlos, a credibilidade do funcionamento de um regime como o do Cinm passa,
naturalmente, por uma correcta inspecção do seu funcionamento, como, aliás, tem sido
prática.
o regime do Cinm apresenta-se como uma alternativa fundamental de desenvolvimento
económico e social da região Autónoma da madeira e, neste momento de crise que atravessamos,
com sectores como o do turismo fortemente afectados, não compreender esta realidade factual
é, no mínimo, perturbador.
44
45
oS EFEiToS DA PENHorA on line NAS PEQuENAS EmPrESAS: oS rEFLEXoS à orDEm ECoNÔmiCA E FiNANCEirA
david Ferreira lopes Santosdanielle riegermann ramos damião
lourival José de oliveira
As transformações sociais, econômicas e tecnológicas experimentadas pela sociedade
brasileira nas duas últimas décadas ensejaram ao estado assumir um papel voltado à regulação
do sistema e adoção de mecanismos processuais mais transparentes e que garantam a efetividade
e celeridade nas suas ações.
não obstante, as exigências da população por um modelo econômico mais distributivo
e inclusivo levaram ao debate, em todos os níveis, a valorização da pequena empresa, que,
apesar da importância destacada na lei maior, ainda encontra inúmeras dificuldades para o
seu crescimento.
nesse contexto, posiciona-se este artigo, cujo interesse maior é analisar, em específico, os
impactos da técnica processual da penhora on line no capital de giro das pequenas empresas.
sendo assim, o trabalho apresenta-se como um ensaio teórico cujo conteúdo procura associar
duas disciplinas independentes, a Jurisprudência e as Finanças empresariais, que, contudo, no
mundo do ser, convergem e se entrelaçam.
A penhora on line é um dos mecanismos adotados pelo Poder Judiciário como forma
de entregar maior celeridade aos processos de penhora e execução, até então realizados
pessoalmente e que demandavam inúmeros procedimentos formais. Com efeito, tinha-se
um processo moroso, que por vezes, não alcançava o resultado pretendido em razão do lapso
temporal e do oportunismo de alguns devedores.
Por meio da aplicação da tecnologia de informação associada ao sistema financeiro
digitalmente integrado, o Judiciário, sob a tutela do Banco Central do Brasil, desenvolveu uma
ferramenta que garante a penhora do recurso financeiro de forma imediata (on line).
capítulo 3
46
A utilização dessa ferramenta tem ocorrido de forma gradativa nas varas que integram
os tribunais, em especial, as do trabalho, que estão quase que na totalidade “interligadas” a
esse sistema de informação. os resultados positivos, quanto à celeridade e eficácia do sistema,
impulsionaram o uso e a expansão dele; contudo, lacunas na aplicação da penhora on line
por parte dos magistrados têm tornado a gestão do capital de giro das pequenas empresas
mais árduo e prejudicado à sustentabilidade de alguns empreendimentos, principalmente, das
pequenas empresas.
A ordem econômica e financeira da Constituição Federal (CF) preconiza atenção especial
às pequenas empresas por parte do estado, que deve dedicar um “tratamento diferenciado” a
esse segmento empresarial. Postula-se a importância econômica e social da pequena empresa
nas cadeias produtivas que engendram o país inteiro como mecanismo de distribuição de renda
e criação de postos de trabalho.
dessa forma, a motivação que norteou este trabalho foi assim estabelecida: quais os efeitos
da penhora on line no capital de giro das pequenas empresas e como tais efeitos refletem na
ordem econômica e financeira definida na Constituição?
no interesse em responder a questão proposta o trabalho foi estruturado em três seções
teóricas que organizam: a ordem econômica e financeira para a pequena empresa; a gestão do
capital de giro das pequenas empresas e, por último, o procedimento da penhora on line. As
considerações finais são apresentadas na sequência e consolidam as ideias desenvolvidas, bem
como remetem a questionamentos a serem desenvolvidos em pesquisas futuras. Por fim, são
apresentdas as referências bibliográficas.
FuNdaMeNtoS teóriCoS
A PEQUENA EMPRESA NA ORDEM ECONôMICA E FINANCEIRA
A doutrina empenha-se em encontrar o conceito de pequena empresa. é certo que a
expressão “pequena” em nada está ligado à abrangência de seu esforço social e tampouco à
relevância da dita empresa. são vários os critérios para classificação de uma empresa como
pequena. Apesar de subjetivas, a doutrina traz definições que se complementam.
uma das formas para definir-se pequena empresa está embasada na lei. inicialmente, tinha-
se a lei n° 9.317/96, de 5 de dezembro de 1996, que trazia critérios meramente monetários para
se estabelecer o que seria micro e pequena empresa. tal lei foi posteriormente revogada pela
lei Complementar 123, de 15.12.2006, republicada em 31.01.09. tal lei em vigor instituiu o
estatuto nacional da microempresa e da empresa de Pequeno Porte.
no art. 3º da dita lei, tem-se a definição do que seriam, no Brasil, as pequena e micro
empresas:
47
Art. 3º - Para os efeitos desta lei Complementar, consideram-se microempresas ou empresas de pequeno porte a sociedade empresária, a sociedade simples e o empresá-rio a que se refere o art. 966 da lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, devidamente registrados no registro de empresas mercantis ou no registro Civil de Pessoas Jurí-dicas, conforme o caso, desde que:i - no caso das microempresas, o empresário, a pessoa jurídica, ou a ela equiparada, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta igual ou inferior a r$ 240.000,00 (du-zentos e quarenta mil reais);ii - no caso das empresas de pequeno porte, o empresário, a pessoa jurídica, ou a ela equiparada, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta superior a r$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais) e igual ou inferior a r$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais).
no entanto, para a oCde (Organization for Economic Corporation and Development),
descrita por ramos e Fonseca1, e também por longenecker et. al2, uma pequena empresa é
aquela que tem menos de 100 empregados.
o seBrAe, para definição e enquadramento de empresas, na maioria das vezes, utiliza
o número de empregados como paradigma. é certo que há uma classificação diferente para
empresas de comércio e serviço em relação às empresas industriais.
Para este trabalho, será considerado o critério pelo número de empregados, que se traduz
em melhor análise para fins judiciais, bem como trabalhar-se-á com os conceitos de micro e
pequena empresa integrada.
os aspectos jurídicos deste trabalho iniciam-se com a conceituação de ordem econômica
e financeira, para que, após o conhecimento da mesma, possam-se observar seus efeitos em
relação às pequenas empresas.
A ordem jurídica, segundo o ministro eros grau3, divide-se em parcelas (ordens): pública,
privada, econômica financeira e social. dessa afirmação tem-se que a ordem econômica e
financeira é parte da ordem jurídica. e não poderia deixar de ser, porque o legislador constituinte
assim quis ao colocar um título exclusivo na lei maior para tratar dessa ordem (título vii),
ainda que todo o conteúdo econômico não seja esgotado em tal capítulo.
A ordem econômica e financeira deve ser entendida como a política que o governo deve
traçar visando o trabalho e a livre iniciativa, observados os princípios da soberania nacional, da
livre concorrência, da defesa do consumidor e do meio ambiente, da redução das desigualdades
regionais e sociais, da busca do pleno emprego e do tratamento favorecido para as empresas
brasileiras de capital nacional de pequeno porte (art. 170 da CF/88).
1 Centro de ensino tecnológico de Brasília - CeteB. A grande dimensão da pequena empresa: perspectivas de ação. trabalhos de Flávio ramos e José leite de Assis Fonseca. - Brasília: ed. seBrAe, 1995.2 longenecker, Justin g.; moore, Carlos W.; Petty, J. William. Administração de pequenas empresas. são Paulo: makron Books, 1997.3 grAu, eros roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 4. ed. são Paulo: malheiros, 2010.
48
A ordem econômica representa o mundo do dever ser, posto que traduz em norma,
valores representativos e anseios sociais. Com vistas a regular, orientar e normatizar o mundo
do ser, a ordem econômica deve estar sempre voltada para os direitos do homem, posto que
a Constituição cidadã, como é, o coloca em situação de primazia, diante dos postulados
econômicos, ou pelo menos, tenta fazê-lo. A expressão é tentar, uma vez que nem sempre o
estado consegue, de imediato, alcançar seus objetivos (princípios) econômicos.
A dicotomia capital versus trabalho talhada em marx e engels4 despertou a sociedade
para um novo modo de conflito, onde o trabalhador se configurou como o elo mais frágil e
dependente. A transformação que o sistema econômico sofreu ao longo de mais de dois séculos
desde a riqueza das nações de Adam smith (1776)5 mudou a forma de entendimento do
paradoxo inicial.
A expansão e o crescimento da empresa capitalista e, por consequência do próprio
capitalismo tornaram o sistema social dependente dessa. Como afirmou etzioni “a sociedade
atual é caracterizada por uma sociedade de organizações”6, de forma, que hoje é inimaginável
pensar num país sem empresas, pois a riqueza dele é construída dentro daquelas, que também
absorvem mais de 90% da população economicamente ativa e responde direta e indiretamente,
pela quase totalidade do erário público. Assim, a relação deve ser vista como capital versus
direitos dos homens.
no curso dessa transformação, coube ao estado o papel de mediador nas relações
econômicas toda vez que ocorrer relevante interesse coletivo ou a ameaça/violação aos imperativos
da segurança nacional. e é desse conceito que tem-se a premissa maior do neoliberalismo, ou
seja, mínima intervenção do estado nos interesses partículas, mas devidamente permitida (art.
173 da CF/88).
o estado pode intervir e deve intervir na ordem econômica de duas formas: indireta,
quando atua como agente regulador da economia, e direta, quando traz para si o comando de
empresas públicas.
na execução do seu papel o estado tem buscado com erros e acertos, encontrar um
posicionamento que garanta o alcance dos objetivos constitucionais; contudo, em razão da
inexistência de mercados eficientes e autorreguláveis, bem como de uma estrutura pública
econômica que verse pela eficiência administrativa no uso do recurso público, observam-se,
ainda, no seio da sociedade oligopólios econômicos tácitos, condições precárias de trabalho,
salários incapazes de prover o sustento de uma família típica, horas excessivas de labor e outros
eventos que demonstram as violações sem limites da dignidade humana.
4 mArX, k.; engels, F. O Manifesto do Partido Comunista. 4. ed. são Paulo: global, 1984.5 smith, A. A riqueza das nações. rio de Janeiro: hemus, 19846 etzioni, A. Modern organization. englewood Cliffs: Prentice-hall, 1964.
49
importa destacar que não é o capital que explora o trabalho, o capital é e sempre foi um
recurso que, quando aplicado pode produzir um valor, a exploração que por vezes ocorre não é
do capital, mas pelo capital, pois como afirmou hobbes “o homem é o lobo do homem”.7
e é por isso que a ordem social anda em conjunto com a ordem econômica e financeira,
posto que a primeira é gênero e a segunda espécie.
logo, é correto afirmar que a finalidade, a premissa maior do direito (mundo do dever
ser), é a dignidade da pessoa humana. os valores do indivíduo, enquanto ser humano, deverriam
estar sempre à frente dos interesses econômicos. Corroborar com o direito à vida e a dignidade
da pessoa humana é cerne fundamental dos direitos humanos.
A valorização do trabalho, também, é um princípio da ordem econômica, com caráter
conformador, ou seja, elucidativo e direcionador para políticas públicas, julgamentos, leis.
nesse aspecto, tem-se a busca pelo valor social do trabalho, e que se distancia do trabalho
enquanto um recurso econômico qualquer. na verdade, o que a constituição espera é que o
trabalho contribua para o fortalecimento da dignidade humana, tendo em vista que este é uma
característica do homem, na sua relação com a natureza, afirmação e existência.8
As consequências do sistema capitalista, como já dito, por vezes são divergentes dos
interesses sociais. nesse fato, cabe ao estado conciliar essas antagônicas manifestações.
numa sociedade de mercado, nem sempre haverá a valorização do trabalho, no aspecto seja
econômico ou sejasocial, posto que, para que haja maior acumulação de capital, o empresário
buscará sempre a redução dos custos inerentes à empresa, dentre os quais somam as verbas
trabalhistas, despesas relacionadas às condições de trabalho e demais encargos advindos dessa
relação (inss, Fgts).
Para tanto, o estado intervém com incentivos, ditando normas (leis), concedendo mais
direitos aos hipossuficientes em prol dos macrossuficientes e fiscalização junto às instituições,
no sentido de arrefecer práticas que contrariam os princípios constitucionais.
Por outra mão, como já abordado, a sociedade, com suas instituições e famílias depende
do desenvolvimento da empresa capitalista, haja vista, que sem ela não há trabalho, produção
de riqueza e distribuição. Por isso, é nesse diapasão que a ordem econômica e a ordem financeira
devem ter em vistas proteger não só os empregados, mas também aquele que lhe fornece
trabalho: o empresário.
A lei maior, em seu, já mencionado, art. 170, iX, colocou expressamente que a pequena
empresa deve ter tratamento favorecido, reconhecendo, portanto, a sua importância para a
economia brasileira. é nesse aspecto que se espera contribuir, a partir desse trabalho, tendo
em vista que, por vezes, as terminologias “o empresário” ou o “o capitalista” são empregadas
7 hoBBes, t. O Leviatã. são Paulo: martin Claret, 2006.8 lessA, s. Mundo dos homens: trabalho e ser social. são Paulo: Boitempo, 2002.
50
indistintamente, como se não houvesse diferença entre grandes e pequenas empresas, ainda
mais no Brasil.
o desenvolvimento econômico brasileiro, a partir de 1930 foi baseado, sobretudo, no
desenvolvimento conhecido como “fordista”9, isto é, na instalação de grandes empresas nos
pontos de maior valor agregado da cadeia de produção. Assim, formaram-se as principais
cadeias de produção do país, dentre as quais se destacam: automobilística, farmacêutica,
química, metalúrgica, eletroeletrônico, construção civil, têxtil e alimentícia.
essa estratégia permitiu um crescimento econômico acelerado, sobretudo, nas décadas de
1960 e 1970, porém criou um grande hiato entre grandes e pequenas empresas, em razão de
essas últimas atuarem nas atividades de baixo de valor agregado e não desfrutarem do mesmo
acesso aos mercados de capitais e financeiro, pelo fato de o maior segmento de pequenas e
médias empresas ser formado pelo comércio e serviços.
todavia, o crescimento dos processos automatizados, na indústria na década de 1980
e 1990, associado às crises financeiras e às estratégias de terceirização das grandes empresas,
tornou o emprego na indústria escasso. Com efeito, houve um deslocamento da mão de obra
para o setor terciário, incluindo as pequenas e médias empresas.
ressalta-se que as pequenas e médias empresas foram responsáveis por 54% dos empregos
formais no país, entre os anos de 2000 a 2008. nesse período, ainda, foram criados mais de 9
milhões de postos de trabalho nas pequenas empresas.10
observa-se, também, que a valorização das pequenas empresas permite à sociedade
um crescimento econômico mais distributivo e menos dependente de grandes corporações;
lembra-se que as regiões europeias mais desenvolvidas como, por exemplo, o norte da itália
são sustentadas em pequenas empresas que respondem por mais de 60% das exportações do
país.11
no entanto, a mortalidade das pequenas empresas brasileiras é extremamente alta,
atingindo quase 40% das entidades com até quatro anos de existência12. issoratifica a necessidade
de uma atenção diferenciada do estado para com esse segmento empresarial. Contudo, pode-se
afirmar que, depois de 22 anos da lei maior, pouco tem sido feito ao pequeno empresário; ao
contrário, pois enquanto se associa o pequeno empresário ao “capitalista selvagem”, contribui-
se para a insolvência daqueles que empregam mais da metade da população economicamente
ativa.
9 Brum, A. J. o Desenvolvimento econômico brasileiro. 22. ed. Petrópolis: vozes, 2002.10 dieese. Anuário do trabalho micro e Pequena empresa 2009. disponível em: http://www.dieese.org.br/anu/sebrae_completo2009.pdf. Acesso em: 15 julho 2011.11 sAntos, d. F. l.; veloso, C. A. B.; quelhAs, o. l. Proposta de aprendizagem um organizacional em um cluster: estudo de caso do grupo de empresas prestadoras de serviços na área de petróleo e afins - gePs. in: II Congresso Nacional em Excelência em Gestão, 2004, niterói. excelência em gestão, 2004. 12 seBrAe. Fatores condicionantes e taxas de sobrevivência e mortalidade das micro e pequenas empresas no Brasil 2003-2005) Agosto de 2007. disponível em: <http://www.sebrae.com.br> Acesso em: 15 jul.2011.
51
o nosso objetivo, aqui, não é rogar privilégios para o pequeno empresário contra o valor
social do trabalho, mas lançar luzes sobre uma realidade cujo terreno é árido para a sobrevivência
do capital, do trabalho e da igualdade social.
ADMINISTRAçãO DO CAPITAL DE GIRO DAS PEQUENAS EMPRESAS
os investimentos que compõem o capital de giro de uma empresa são denominados ativos
circulantes, cujo arcabouço teórico encontra amparo nas finanças de curto prazo. A distinção
de curto e longo prazo em finanças respeita a régua de um ano, de modo que as atenções dos
administradores aos ciclos financeiros de curto prazo respondem pela maior parcela do seu
tempo de trabalho.13
A essência das decisões financeiras de curto prazo é o equilíbrio no trade-off existente entre
liquidez e rentabilidade. o interesse de todas as empresas é, ao mesmo tempo, serem capazes
de liquidar suas obrigações nos prazos e termos contratados, bem como de proporcionar aos
investidores (proprietários, sócios, acionistas etc.) a rentabilidade esperada pelos recursos
desembolsados à atividade empresarial e aos riscos a ela associados.
os investimentos de uma empresa são contabilmente classificados como ativo, cuja
distribuição no balanço patrimonial segue a orientação de liquidez das rubricas; assim, a primeira
conta observada em toda e qualquer demonstração financeira é o caixa ou disponibilidades de
caixa. no exercício de demonstrar o paradoxo entre liquidez e rentabilidade, pode-se imaginar
um investidor aplicando todos os seus recursos no caixa de uma empresa; se assim proceder, qual
o retorno que esse investidor obteria por tal decisão? num mundo sem inflação, o retorno seria
zero; num ambiente inflacionário, o seu retorno seria negativo em relação à taxa de inflação.
desta forma, toda atividade empresarial é suportada pela qualidade dos seus investimentos
em ativos em produzir receitas da forma mais eficiente possível, contudo, o trade-off existente
entre liquidez e retorno exigirá dos gestores um cuidado especial na condução do negócio, a
fim de que o interesse num melhor desempenho empresarial não comprometa a liquidez da
empresa.14
Apresentam-se, normalmente, como os principais investimentos em capital circulante, ou
seja, capital de giro, os recursos destinados a bancos, aplicações financeiras, contas a receber e
estoques. numa abordagem dinâmica para a gestão desse capital de giro, segregam-se as contas
em dois conjuntos: financeiras e operacionais.15
os ativos circulantes financeiros são aqueles que não possuem uma relação direta com as
operações da empresa, ou seja, o caixa e aplicações financeiras. trata-se de recursos originados
13 gitmAn, l. J. Princípios da administração financeira. são Paulo: harbra, 1997.14 AssAF neto, A.; silvA, C. A. t. Administração do capital de giro. são Paulo: Atlas, 2010.15 Fleuriet, m.; kehdy, r.; BlAnC, g. A dinâmica financeira das empresas brasileiras. Belo horizonte: Fundação dom Cabral, 1980.
52
de aportes de capital ou financiamentos que passam pelo caixa até o momento de sua devida
aplicação, ou são resultados das atividades operacionais da empresa (venda de produtos ou
ativos).
Assim, há um consenso na teoria de que, na hipótese da existência de mercados eficientes,
as empresas não necessitariam manter recursos em caixa; todavia, como os mercados não são
perfeitos, a manutenção de saldo em caixa ocorre por três razões: necessidade de transações,
especulação e precaução.16
As transações referem-se às necessidades de pagamento de fornecedores, funcionários,
impostos e outros, que é realizado, sobretudo em moeda corrente; portanto, as empresas
mantêm o saldo necessário para tal fim. em última instância, pode-se dizer que o saldo de caixa
é o que garante a efetiva liquidez de uma empresa para honrar seus compromissos.
A especulação ocorre quando os gestores observam que haverá um melhor momento no
futuro para realizar uma compra em razão de preços favoráveis; a precaução sem dúvida, o
principal fator para a manutenção de recursos adicionais no caixa para as reais necessidades da
empresa.17
A precaução está associada às incertezas que cercam a empresa quanto a possíveis decisões
ou condições exógenas que possam afetar a liquidez do negócio, como, por exemplo, aumento
nas taxas de juros que remuneram os títulos públicos, aumento na inadimplência e aumento
no nível geral de preços. em todas essas situações, os administradores refazem suas projeções
de caixa, a fim de garantir, emem última instância, a liquidez do empreendimento; portanto,
ambientes de incerteza, em especial, no setor político-econômico, restringem os investimentos
nos negócios, isto é, no desenvolvimento das empresas.
num exercício ilustrativo, deve-se lembrar o período da ciranda inflacionária experimentada
entre os anos de 1987 a 1993 quando o melhor investimento do país era administrar o saldo
do caixa junto as aplicações diárias em títulos públicos (overnight), de maneira que, após a
estabilização, encontrou-se um parque industrial e tecnológico obsoleto.
nesse aspecto, defende-se aqui que a penhora on line aumenta a necessidade de caixa das
empresas, a simples incursão de uma ação deve motivar os gestores ao aumento do investimento
no caixa, pois os prazos processuais, em especial, para julgamentos e audiências não obedecem
a um cronograma limítrofe, nem são conhecidos pelas partes. essa condição é péssima para os
administradores, pois eles não podem projetar uma eventual saída de caixa, devendo, assim,
manter desde o início o valor do saldo de caixa a fim de garantir a liquidez do compromisso.
16 ross, s. A.; WesterField, r. W.; JAFFe, J. F. Administração Financeira (Corporate Finance). são Paulo: Atlas, 2002.17 idem, p. 14.
53
Ainda, a administração do capital de giro não envolve apenas a gestão do investimento
em ativos circulantes, mas também nas suas fontes de curto prazo, isto é nas obrigações que a
empresa contrai junto a terceiros, que a classificação contábil denomina passivos circulantes.
A Figura 1 demonstra, de forma estilizada, um balanço patrimonial, com destaque para o
CCl (Capital Circulante líquido), que representa o excesso de recursos no curto prazo diante
de suas obrigações.
Figura 1. representação do balanço Patrimonial
Fonte: autores
lembra-se que o CCl não é uma classificação contábil, mas um indicador gerencial que
mensura, no agregado, a liquidez da empresa.
As obrigações de curto prazo, também, podem ser segregadas entre financeiras e
operacionais, porque, nos ativos, os passivos financeiros não estão relacionados com o negócio da
empresa. trata-se, fundamentalmente, de empréstimos ou financiamentos junto a instituições
financeiras e antecipação de recebíveis.
os passivos circulantes operacionais representam as obrigações relacionadas ao negócio,
como: fornecedores, tributos, salários, contas a pagar, dividendos e juros de capital próprio a
pagar e as provisões (incluindo as judiciárias).
Assim, a administração do capital de giro das empresas analisa três aspectos centrais para
manutenção da liquidez: o saldo de tesouraria (st); a necessidade de Capital de giro (nCg)
e o próprio capital circulante líquido (CCl). A identidade desses conceitos pode ser expressa
nas fórmulas abaixo:
54
onde:ACF – Ativo Circulante FinanceiroACo – Ativo Circulante operacionalPCF – Passivo Circulante FinanceiroPCo – Passivo Circulante operacional
dessa forma, as obrigações referentes a ações judiciais compõem a necessidade de capital
de giro (nCg), que normalmente é positiva, ou seja, os investimentos em estoques e clientes são
maiores que as obrigações operacionais; isso se deve, principalmente, ao alongamento no giro
dessas contas em razão do esforço de valor adicionado a ser entregue em cada estágio da cadeia
produtiva. não obstante, como evidenciado na Figura 1, haverá necessidade de financiamentos
de longo prazo (passivos não circulantes) para o capital de giro.
o saldo de tesouraria envolve as contas financeiras e a recomendação teórica é que esse
seja sempre positivo, o que, por necessidade, reforça os investimentos em ativos circulantes
financeiros, por outro modo, o financiamento com fontes de longo prazo.
Pretende-se, agora, demonstrar pragmaticamente os efeitos da penhora on line na dinâmica
da gestão do capital de giro, a partir da necessidade do reposicionamento da conta de provisões
de ações judiciais do escopo operacional para financeiro.
esse novo posicionamento não descarta a característica operacional da conta, em razão
de a obrigação ter sido contraída ou estar em discussão, em razão das operações da empresa.
observa-se que o mau gerenciamento dos funcionários, por exemplo, que tenha motivado
uma ação trabalhista é um custo para a empresa, tal qual o retrabalho por uso de uma matéria
prima insuficiente em qualidade ou quantidade ou as despesas decorrentes do uso inadequado
de um veículo.
Portanto, as obrigações judiciais são relativas às operações, mas, a sua manutenção enquanto
passivo circulante operacional reduz a necessidade de capital de giro e, em consequência,
induzirá o administrador a uma visão equivocada da real necessidade de investimento em giro
pelas razões expostas a seguir:
Ao contrário das demais obrigações em que se conhece o prazo para pagamento, as ações
judiciais não possuem data de quando ocorrerão, tampouco o valor a ser eventualmente pago.
A penhora on line implica no bloqueio do recurso financeiro do caixa da empresa; portanto,
compromete diretamente a necessidade transacional do saldo de tesouraria.
As alternativas de financiamento contingenciais no Brasil são extremamente onerosas
(variação entre 5% a 12% a.m.), de forma que não há negócio lícito no país que consiga
entregar uma margem superior a 62% a.a.
desta forma, zelando pela liquidez da empresa junto aos terceiros devem-se transferir
os valores das provisões para o passivo circulante financeiro, de forma que esse reduzirá o
55
saldo de tesouraria e obrigará a empresa a maiores investimentos de longo prazo nesse, ou
seja, no caixa.
no entanto, o reforço nos investimentos no caixa da empresa reduzirá a rentabilidade do
empreendimento e a continuidade do negócio; quando se trata de micro e pequenas empresas,
essa condição é extremamente onerosa para o empresário, em razão das limitações de acesso ao
crédito, dos custos desses e da própria condição financeira para arcar com melhores serviços
advocatícios ou mesmo taxas de recursos que possam prolongar a tramitação do processo.
importa que, se o empresário ou o administrador não realizar a devida re-alocação do
investimento, poderá incorrer em um bloqueio de recursos financeiros na data de pagamento
dos empregados e ou de fornecedores, o que acarretará na inadimplência de alguma obrigação,
inclusive de outros funcionários.
ressalta-se a importância da liberdade individual no questionamento de direitos junto ao
Poder Judiciário, bem como a necessidade de indenizações que não só reestabeleçam o prejuízo
eventualmente causado, como também que sejam fatores inibidores de práticas ilegais no
gerenciamento empresarial. Por outro lado, deve-se prezar pelo direito à defesa, pelo respeito
processual, pela responsabilidade e pela imparcialidade que, por vezes, se ofusca na ideologia
“capital x trabalho”. o prejuízo final se encerra no bojo da sociedade, que assiste, todo dia, o
atrofiamento das pequenas e médias empresas, estimulado por práticas análogas à penhora on
line aplicadas indistintamente.
REGULAMENTAçãO DA PENHORA ON LINE E SUA APLICAçãO NA EXECUçãO TRABALHISTA
há um consenso entre os autores quanto à necessidade de aumentar a velocidade dos
trâmites do Judiciário trabalhista, assim também visto em todos foros, bem como de garantir
à população o acesso aos créditos devidos. é sabido que, por vezes, o exequente tem enorme
dificuldade em receber seu crédito, em face de procedimentos fraudulentos impetrados por
indivíduos e empresas inidôneas, como, por exemplo, o fechamento de contas, transferência de
recursos, saques, extinção/trespasse do estabelecimento, a fim de impossibilitar o cumprimento
da execução. o ideal de eficiência é previsto na norma constitucional, em seu art. 5º, inciso
lXXvii.
na ideia basilar e global de acesso à justiça, idealizou-se, dentre outros projetos, a criação
da penhora on line, que para uns (exequentes) foi uma boa solução para agilizar a execução
trabalhista e para outros, em via geral aos empresários, é uma forma de atingir suas metas
econômicas através de ataques ao capital de giro, o que poderia prejudicar o bom andamento
da empresa.
56
Para a execução, não só a trabalhista, mas em todas as formas, trata-se o credor de exequente
e o devedor de executado. Penhora é a expropriação de bens para que ocorra a efetivação dos
direitos do credor. tem a função de individualizar os bens sobre os quais se dará a execução.
A penhora on line surgiu inicialmente com um convênio, denominado BACen-Jud, que
foi o acordo de cooperação entre o Banco Central do Brasil e o Poder Judiciário. tal convênio,
atualmente, é positivado em lei18. Por este mecanismo, os magistrados, após cadastramento e
breve curso explicativo, podem emitir mandados eletrônicos, a fim de que possam conhecer de
todas as aplicações, contas e investimentos do executado. e mais: através de um simples clique
em seus computadores, podem determinar bloqueios de valores, com o objetivo de quitação de
obrigações. da mesma forma, podem realizar desbloqueios.
Considerando que a maior parte, quase que a integralidade de empresas necessita de
ingresso e fundos mantidos junto ao sistema Financeiro nacional, o magistrado, de dentro
de seu gabinete pode conhecer toda a realidade dos investimentos em caixa das empresas, bem
como suas aplicações financeiras.
em razão da enorme quantidade de processos/execuções trabalhistas, é nessa seara que a
penhora on line foi largamente difundida e é amplamente utilizada.
A lei 11.382/06, que entrou em vigor somente em 22.01.07, incluiu no CPC (Código
de Processo Civil) o presente instituto, de tal sorte que pudesse ser utilizado na justiça comum
e na trabalhista.
somente a título de menção, também foi criado o art. 185-A do Ctn (Código tributário
nacional), fazendo a legalidade do instrumento de penhora para débitos fiscais.
Para que com clareza se possa adentrar nos aspectos polêmicos da penhora virtual, há de
se fazer breves considerações acerca da execução trabalhista, pois, como já dito, é o ramo que
mais se utiliza desta ação.
A Clt (Consolidação das leis do trabalho) trata da execução de seus créditos e
direitos no capítulo v, título X. no entanto, caso haja ausência de norma e que não ocorra
incompatibilidade, poderá o julgador valer-se das normas processuais civis, por elas serem
fontes subsidiárias.
o processo do trabalho é, somente para fins didáticos, divido em duas fases: fase do
conhecimento e fase da execução. A execução é precedida pela liquidação, embora essa faça
parte daquela. A doutrina dominante admite a liquidação como uma fase preparatória da
execução, posto que ela antecede a execução propriamente dita, apesar de ser parte integrante
da mesma.
Após o trânsito em julgado da sentença de mérito condenatória, inicia-se o processo de
execução. Antes de se determinar o pagamento dos direitos eventualmente reconhecidos em
18 BrAsil. lei Federal no 11.382, de 6 de dezembro de 2006. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder executivo, Brasília, dF, 6 dez. 2006.
57
sentença imutável, opera-se a liquidação (conhecimento) de valores. tal ato tem por objetivo
transformar direitos ilíquidos em correspondência monetária. A liquidação é própria do rito
ordinário, porque no rito sumaríssimo, através da liquidação na exordial, o magistrado confere
direitos líquidos (regra geral). A liquidação pode se dar por cálculos, por arbitramento ou por
artigos.
Feita a apuração dos valores, as partes são chamadas ao processo para apresentarem suas
respectivas manifestações/impugnações. Após a consideração dos cálculos e das manifestações
das partes, o magistrado confere a segunda sentença no processo trabalhista: sentença
homologatória de cálculos. Para a doutrina dominante considera-se que esta sentença tem
força de decisão declaratória.
Conforme leciona sergio Pinto martins19, para que se realize a penhora on line, deve ser
observada a ordem do art. 880 da Clt:
Art. 880 - requerida a execução, o juiz ou presidente do tribunal mandará expedir mandado de citação do executado, a fim de que ele cumpra a decisão ou o acordo no prazo, pelo modo e sob as cominações estabelecidas ou, quando se tratar de pagamen-to em dinheiro, inclusive de contribuições sociais devidas à união, para que o faça em 48 (quarenta e oito) horas ou garanta a execução, sob pena de penhora.
Assim, o devedor deve ser citado para pagar o quantum debeatur, de forma atualizada
monetariamente, ou proceder a garantia da execução. Caso não quite a dívida ou não ofereça
bens para a garantia do devido, deve-se proceder a penhora de valores.
observe-se que,conforme posição majoritária, a ausência da citação na execução importará
em violação da Constituição Federal, em especial ao art. 5º, incisos liv e lv, posto que se
estará deixando o executado sem defesa e/ou sem o devido processo legal.
observe-se que após o decorrido prazo, o devedor/executado não será novamente intimado,
podendo o magistrado realizar os meios que achar conveniente para constrição de bens. na
maioria das vezes, opta o magistrado por começar pela penhora on line. não havendo bens
(dinheiro) suficientes ou a ausência total de quaisquer fundos, o magistrado, então determina
outros meios: penhora portas à dentro, desconsideração da personalidade jurídica e outros.
A ordem de bens penhoráveis está tipificada no art. 655 do CPC:
i - dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira; ii - veículos de via terrestre; iii - bens móveis em geral; iv - bens imóveis; v - navios e aeronaves; vi - ações e quotas de sociedades empresárias; vii - percentual do fatura-mento de empresa devedora; viii - pedras e metais preciosos; iX - títulos da dívida pública da união, estados e distrito Federal com cotação em mercado; X - títulos e valores mobiliários com cotação em mercado; Xi - outros direitos.
19 mArtins, sergio P. Penhora on line no Processo do trabalho: constitucionalidade e legalidade. Revista LTr: legislação do trabalho, v. 68, n. 11, nov. 2004.
58
Ademais, o magistrado e a parte exequente podem discordar do bem oferecido em
garantia, desde que o façam de modo fundamentado, quando caberá, mais uma vez, a aplicação
da medida virtual.
Com a efetivação da penhora on line, imediatamente os valores colocados em instituição
financeira são bloqueados, tendo a dita instituição a obrigação de depositar os valores bloqueados
a favor do juízo.
é certo que, mesmo com a forma imediata de bloqueio, o exequente não recebe
prontamente o erário. Ainda existem prazos para embargos à execução, agravos de petição,
além de recurso para os tribunais superiores e mandados de segurança.
Pesando os fatores positivos e negativos da penhora virtual, é célere e unânime que esta
seja feita de forma proporcional e razoável. Assim, pode-se ter a ideia de qual medida contenha
adequação, aceitabilidade, logicidade, e qual seja realizada com o sentido de bom senso,
prudência e moderação.
indubitavelmente, a penhora virtual é o meio preferido do exequente, posto que este
vislumbra receber seu crédito com maior acesso.
de toda sorte, para o empresário, a medida pode cercear até mesmo a continuidade da sua
atividade negocial, com o que se estaria ferindo a função social da empresa.
tendo em vista que o crédito penhorado de natureza trabalhista, em regra geral, na
maioria dos casos, advém de ações trabalhistas de empregados que não mais pertencem aos
quadros da empresa, esta é determinada a pagar o crédito do antigo funcionário coercitivamente,
comprometendo-se, inclusive, com o capital de giro para o pagamento dos salários e contribuições
dos empregados com vínculo ativo.
vale notar que, quando da realização da penhora on line, o juiz não sabe e não se importa
onde está o dinheiro, mas limita-se a buscá-lo. Pretende terminar com a execução e diminuir a
quantidade de ações sem satisfação do crédito.
não se pretende aqui macular a penhora on line, mas sim tecer comentários acerca da
sua influência no capital das pequenas empresas, posto que estas não gozam de fácil acesso ao
mercado de capitais e financeiros, o que resulta, em muitas oportunidades, em ausência de caixa
para saldar todos os compromissos. nesse sentido, o resultado social é o mesmo, a diferença
é o prazo, pois se o empresário direciona recursos para o caixa comprometerá a rentabilidade
do investimento e, no longo prazo, a manutenção do mesmo; e, se ele não investe no caixa, a
empresa incorrerá em ausência de liquidez, tornando-se passiva à falência.
o que se quer é mostrar e alertar para os efeitos das medidas em dissonância com o
princípio da execução menos gravosa para o executado. humberto theodoro Júnior20 entende
que: “[...] deve realizar-se da forma que, satisfazendo o direito do credor, seja o menos prejudicial
20 theodoro JÚnior, h. Curso de Direito Processual Civil. 36. ed. rio de Janeiro: Forense, 2004. vol.2
59
possível ao devedor. Assim, “quando por vários meios o credor puder promover a execução, o
juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor”.
Certamente que a penhora on line não é o meio menos prejudicial. tem-se como exemplo
a seguinte situação hipotética: uma determinada empresa, com 20 funcionários, após não
obter êxito em batalha judicial travada com ex-funcionário, em trâmite há sete anos, após
os recursos cabíveis, deve pagar a liquidação homologada em r$90.000,00. Ainda que o
magistrado penhore com razoabilidade somente 30% (trinta por cento) do valor, importa em
grande monta para uma pequena empresa.
o valor colocado à disposição do juízo, por mera decisão deste, estará, certamente, a
comprometer o capital de giro da empresa, podendo fazer com que o empresário não consiga
arcar com seus custos naquele mês e com consequências futuras.
imagine-se, nesse caso, que o empregador passe a atrasar salários ou até mesmo perpetue em
mora salarial e tributária, uma cascata de novas ações trabalhistas e fiscais certamente irão ocorrer,
uma vez que os outros 20 funcionários vão se insurgir contra seu patrão, além do fisco.
Ademais, pode-se verificar, nesta hipótese, que, mesmo tendo uma administração que
valorize a liquidez, haverá a dificuldade do administrador em dimensionar o valor a ser investido
no caixa e quando deveria fazê-lo.
lógico que medidas preventivas trabalhistas visam ao não ingresso de demandas
trabalhistas; no entanto, sabe-se que os altos custos empresariais, os exagerados tributos advindos
da atividade negocial, e as oscilações do mercado fazem com que os compromissos nem sempre
sejam adimplidos. Além disso, a complexidade do mercado de trabalho e a possibilidade de
diversas interpretações jurídicas do mundo do ser, por vezes, tornam o empregador passivo de
demandas judiciais por questões não condicionadas ao possível oportunismo.
Por isso, não se prega o fim da penhora on line, mas sim a sua moderação. Ainda com base
no caso acima, imagine-se que após três meses, após a “recuperação” do pequeno empresário,
haja nova penhora on line em qualquer quantia. o que ocorrerá? Acúmulo de dívidas ou
desistência do negócio?
Certamente, muitas das empresas não se sustentam e acabam fechando. o fechamento
de uma atividade econômica organizada (empresa) não é interessante para a ordem econômica,
visto que empregos são perdidos, não ocorre arrecadação de tributos, além da insatisfação da
clientela/popoluação, que não poderá mais contar com aquele serviço/comércio.
diante deste quadro: como encontrar um meio equilibrado para as consequências de
um processo executório? Com medidas preventivas, caso ainda haja tempo para se evitar
uma demanda trabalhista e, não sendo assim, agindo o magistrado com razoabilidade e
proporcionalidade, fazendo com que o executado tenha duas condições: de pagar o que deve e
de continuar desenvolvendo seu objeto social.
Bom senso, equilíbrio e ponderação são as expressões do momento.
60
não adianta o Judiciário trabalhista acelerar a satisfação das execuções indistintamente,
realizando penhoras on line, sem dar condições de o pequeno empresário sobreviver; ao
contrário, cabe ao Judiciário, assim como em qualquer processo de recuperação de crédito,
entregar ao devedor uma condição exequível de pagamento. do contrário, estará o Poder
Público, através do Judiciário, corroborando para o fechamento de pequenas empresas, inibindo
o desenvolvimento de novos negócios e, consequentemente, sustentando o desemprego.
tal atitude, certamente atingirá o fim da ordem econômica e financeira, posto que esta
prega, também, a busca do pleno emprego e a valorização do trabalho, que atualmente se
manifesta com maior representatividade justamente nas pequenas empresas.
CoNSideraçÕeS FiNaiS
este trabalho teve como objetivo analisar os efeitos da penhora on line no capital de giro
das pequenas empresas e os possíveis reflexos na ordem econômica e financeira do país.
desta forma, o trabalho apresentou a importância econômica e social da pequena empresa
para o país, em razão dessa classe responder por mais de 98% dos empreendimentos formais do
Brasil e empregar mais de 56% da população economicamente ativa. Contudo, essas empresas
não dispõem das mesmas condições financeiras que as grandes empresas possuem e ainda, por
razões históricas, ocupam segmentos de mercado com margens de ganho reduzidas, o que torna
a continuidade do investimento um desafio constante. Com efeito, tem-se uma das maiores
mortalidades empresariais do mundo.
demonstrou-se, ainda, que as incertezas que envolvem um processo judiciário, em
especial, o trabalhista, seja no aspecto temporal ou na razoabilidade do magistrado, incorrem
o administrador a adaptar a doutrina financeira com o objetivor de reposicionar a provisão
judiciária para o passivo circulante financeiro, a fim de aumentar a demanda por investimentos
no caixa e reforçar o saldo de tesouraria. não obstante, tal prática limitará a rentabilidade do
investimento por restringir investimentos em ativos que geram receita, como demonstrado.
Apesar de tipificada em norma, a penhora virtual ainda possui uma grande porção de
discricionariedade dos magistrados, o que pode, por vezes, fazer com que o dinheiro bloqueado
acabe por comprometer compromissos, aos quais ocapital seria destinado. não se pretendeu
macular a penhora on line, mas sim propor uma reflexão dos seus efeitos para os pequenos
e médios empresários, que, mesmo na condição de réus em processos de execução, passam a
não ter o princípio da execução menos gravosa observado. o pequeno empresário necessita
de maior cautela dos magistrados, sob pena de não conseguir manter seu negócio e acabar
extinguindo sua empresa, com consequências economicamente reprováveis: desemprego, falta
de arrecadação ao fisco e insatisfação da sociedade com a falta daquele serviço.
61
destarte, a técnica processual da penhora on line é um passo no caminho da celeridade e
efetividade do Judiciário; contudo, sua aplicação no cotidiano deve ser feita com moderação
e em respeito ao devedor, em especial, ao pequeno empresário. o respeito que se defende é
o direito de entregar a este a capacidade de pagar e não simplesmente lhe tirar um recurso
necessário para o cumprimento das transações de quitação das suas obrigações, que, em última
instância, garantem a liquidez do negócio.
reFerÊNCiaS
AssAF neto, A.; silvA, C. A. t. Administração do capital de giro. são Paulo: Atlas, 2010.
BrAsil. lei Federal no 11.382, de 6 de dezembro de 2006. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder executivo, Brasília, dF, 6 dez. 2006.
Brum, A. J. O desenvolvimento econômico brasileiro. 22. ed. Petrópolis: vozes, 2002.
Centro de ensino teCnológiCo de BrAsília - CeteB. A grande dimensão da pe-quena empresa: perspectivas de ação. trabalhos de Flávio ramos e José leite de Assis Fonseca. Brasí-lia: ed. seBrAe, 1995.
dieese. Anuário do trabalho micro e pequena empresa 2009. disponível em: http://www.dieese.org.br/anu/sebrae_completo2009.pdf. Acesso em: 15 julho 2011.
grAu, eros roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 4. ed. são Paulo: malheiros, 2010.
etzioni, A. Modern organization. englewood Cliffs: Prentice-hall, 1964.
Fleuriet, m.; kehdy, r.; BlAnC, g. A dinâmica financeira das empresas brasileiras. Belo ho-rizonte: Fundação dom Cabral, 1980.
gitmAn, l. J. Princípios da administração financeira. são Paulo: harbra, 1997.
hoBBes, t. O Leviatã. são Paulo: martin Claret, 2006.
lessA, s. Mundo dos Homens: trabalho e ser social. são Paulo: Boitempo, 2002.
longeneCker, Justin g.; moore, Carlos W.; Petty, J. William. Administração de peque-nas empresas. são Paulo: makron Books, 1997.
mArtins, sergio Pinto. Penhora on line no processo do trabalho: constitucionalidade e legalidade. revista ltr: legislação do trabalho, v. 68, n. 11, nov. 2004.
mArX, k.; engels, F. O Manifesto do Partido Comunista. 4. ed. são Paulo: global, 1984.
ross, s. A.; WesterField, r. W.; JAFFe, J. F. Administração financeira (Corporate Finance). são Paulo: Atlas, 2002.
sAntos, d. F. l.; veloso, C. A. B.; quelhAs, o. l. Proposta de aprendizagem um organizacional em um cluster: estudo de caso do grupo de empresas prestadoras de serviços na área de petróleo e afins - gePs. in: II Congresso Nacional em Excelência em Gestão, 2004, niterói. excelência em gestão, 2004.
62
seBrAe. Fatores condicionantes e taxas de sobrevivência e mortalidade das micro e pequenas em-presas no Brasil 2003-2005) Agosto de 2007. disponível em: <http://www.sebrae.com.br> Acesso em: 15 julho 2011.
smith, A. A riqueza das nações. rio de Janeiro: hemus, 1984.
theodoro JÚnior, h. Curso de direito processual civil. 36 ed. rio de Janeiro: Forense, 2004. vol.2.
63
TrANSFormAÇÃo DA ECoNomiA DirECioNADA Ao CrESCimENTo E Ao ALCANCE Do ProGrESSo SoCiAL, SoB A
ÉGiDE DA CoNSTiTuiÇÃo FEDErAL DE 1988
dinaura Godinho Pimentel Gomes
em face da recente crise financeira provocada pelos estados unidos com sérias repercus-
sões na europa, China, Japão e nos países da América latina, dentre os quais o Brasil, já se
admite, sem qualquer perplexidade, ser indispensável a ação intervencionista governamental,
no âmbito da política econômica, inclusive por aqueles seguidores da ideologia neoliberal, do
“laissez-faire”, a qual se mostrava forte e dominante há mais de três décadas.
Assim, a realidade hodierna aponta a manifesta incapacidade do livre mercado de resolver
sua própria crise financeira e, mais ainda, os problemas sociais. Com isso, exige-se a atuação
positiva, séria e transparente do estado, voltada à promoção, ao incentivo, ao planejamento e
à implantação de sérias políticas públicas, destinadas a conduzir a ordem econômica em busca
do equilíbrio financeiro e do progresso social.
nessa senda, torna-se indispensável ressaltar a supremacia da Constituição Federal, no
ordenamento jurídico brasileiro, de forma a realizar seus valores e seu real sentido em prol de
uma sociedade mais humana e mais justa, a partir da valorização do trabalho humano.
Com efeito, sem trabalho humano – e sem emprego – não há possibilidade de se almejar
o crescimento de uma sociedade capitalista, por ser o principal meio de se assegurar à maioria
dos cidadãos ativos o direito à vida com dignidade.
é imperioso, portanto, seguir sempre em busca de uma interação expansionista dos va-
lores da liberdade e da igualdade, centrados no postulado da dignidade humana, no campo
econômico e social, em prol da efetiva realização do valor “justiça”, como fundamentos do
estado democrático de direito. é o que a lei maior estabelece. o que falta, muitas vezes, é a
vontade de Constituição.1
1 nas palavras de konrad hesse. A força normativa da constituição. tradução gilmar mendes. Porto Alegre: sergio Fabris, 1991, p. 19.
capítulo 4
64
uM PerFil JurídiCo-FiloSóFiCo do valor diGNidade
A dignidade humana traduz uma especificação material e independente de qualquer tem-
po e espaço. Consiste em considerar que cada pessoa possui um espírito impessoal, que a torna
capaz de tomar suas próprias decisões a respeito de si mesma e de tudo que gira ao seu redor.
detém o peculiar poder de se autodeterminar, orientando sua liberdade pela razão à semelhan-
ça de deus. Por tudo isso, é preciso considerar que “a dignidade humana consiste na eminência
ou excelência do ser humano, mediante uma intensa participação no mais alto grau do ser,
que o constitui um ser dotado de debitude e exigibilidade em relação a si mesmo e em relação
aos demais homens. em outras palavras, trata-se de um ente cuja ordem do ser compreende a
ordem do dever ser”2. Assim, a dignidade reside na natureza racional ou espiritual do homem,
como imagem do deus Criador.
no contexto da evolução histórico-filosófica da ciência jurídica, o pensamento de kant
apresenta-se como o mais expressivo, no que concerne à conceituação da dignidade da pessoa
humana como fim e não como meio. serve para robustecer a linha do pensamento voltada
contra qualquer tendência à coisificação ou instrumentalização do ser humano3, jungida à exi-
gência por ele enunciada como segunda fórmula do imperativo categórico.
vale dizer, indiscutivelmente, a assertiva de kant de que “o homem, e duma maneira
geral, todo o ser racional, existe como um fim em mesmo, não só como meio para o uso ar-
bitrário desta ou daquela vontade”4, é mais do que oportuna para os dias de hoje, principal-
mente no mundo do trabalho, para chamar à reflexão para o valor da pessoa humana como ser
social, como valor-fonte de todos os valores5, na hodierna e feliz expressão do jusfilósofo brasileiro
miguel reale. resulta daí que o outro deve ser compreendido não como mero objeto, porém
reconhecido como sujeito, tratado como fim em si mesmo, de onde se vislumbra não somente a
dimensão individual da pessoa humana, mas também sua dimensão comunitária e social.
2 Como ensina Javier hervada. A Pessoa. in: Lições propedêuticas de Filosofia do Direito. tradução elza maria gaspartotto. são Paulo: martinsfontes, 2008, p. 311.3 sArlet, i. W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: livraria do Advogado, 2001, p.35.4 kAnt, i. Fundamentação da metafísica dos Costumes. segunda seção. textos selecionados por marilena Chauí, tradução maria Bernkopf, Paulo quintela. rubens rodrigues torres Filho. são Paulo: Abril Cultural, 1980, Co-leção os Pensadores, p. 135.A propósito, nicola Abbagnano assim bem explica o pensamento de kant: “Age de forma que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre também como um fim e nunca unicamente como meio”. esse imperativo estabelece, na verdade, que todo homem, aliás, todo ser racional, como fim em si mesmo, possui um valor não relativo (como é, por ex., um preço), mas intrínseco, isto é, a dignidade. Para kant, “o que tem um preço pode ser substituído por alguma coisa equivalente; o que é superior a todo preço e, portanto, não permite nenhuma equivalência, tem uma dignidade”. substancialmente, a dignidade de um ser racional consiste no fato de que ela “não obedece a nenhuma lei que não seja instituída por ele mesmo”. A moralidade, como con-dição dessa autonomia legislativa é, portanto, a condição da dignidade do homem e moralidade e humanidade são as únicas coisas que não têm preço... In: ABBAgnAno, n. Dicionário de filosofia. tradução Alfredo Bosi. são Paulo: mestre Jou, 1962, p. 259.5 miguel r. A pessoa como valor fonte. in: Introdução à Filosofia. são Paulo: saraiva, 1988, p. 159.
65
é nesse sentido que foram desenvolvidas as linhas do pensamento filosófico contemporâ-
neo, no sentido de enfrentar o positivismo jurídico e o ceticismo moral, ao final materializadas
em textos constitucionais, que incorporaram esses princípios éticos com os quais as regras
jurídicas e as decisões judiciais devem ser compatíveis. no entanto, tal reconhecimento institu-
cional é muito recente, surgindo após a era Hitler marcada pelos horrores do Nazismo, quando
houve o envio aos campos de concentração de 18 milhões de pessoas, causando a morte de 11
milhões, das quais 6 milhões de judeus. todas essas pessoas foram desconsideradas, pelo pró-
prio estado, em sua essência e dignidade, apenas por não pertencerem à escolhida raça ariana
ou pelo fato de não serem enquadradas nos padrões de sociedade rigidamente preestabelecidos,
como os ciganos e os homossexuais.
A partir desse extermínio brutal, lembrado e abominado constantemente até os dias de
hoje, buscou-se a imediata e efetiva reconstrução dos direitos humanos, espelhada na decla-
ração universal dos direitos humanos, adotada e proclamada pela resolução n. 217 A (iii)
da Assembleia geral das nações unidas, em 10 de dezembro de 1948, assinada pelo Brasil na
mesma data. Para tanto, com essa declaração, foi introduzida a revisão da noção tradicional da
soberania absoluta do estado-nação, ao se reconhecer, no âmbito global, a “dignidade inerente
a todos os membros da família humana”.
dito de modo diferente, desde então, toda pessoa humana passou a ser vista como sujeito
de direito internacional, cuja tutela não se restringe mais à competência nacional ou à jurisdi-
ção doméstica exclusiva. A respeito, eis o que reza o art. 22, da citada declaração:
Toda pessoa como membro da sociedade tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de personalidade. (destaquei).
exsurge, então, o primeiro passo de reconstrução universal da sociedade e do estado em
prol do bem de todas as pessoas, sem qualquer distinção, tendo como núcleo central o respei-
to à dignidade da pessoa humana, a exemplo do que dispôs a lei Fundamental da república
Federal da Alemanha, de 23 de maio de 1949, que, por primeiro, erigiu a dignidade da pessoa
humana em direito fundamental, ao proclamar, no seu art. 1º, o seguinte:
(1) A dignidade da pessoa humana é inviolável. todas as autoridades públicas têm o dever de a respeitar e a proteger.
66
(2) o Povo Alemão reconhece, por isso, os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana como fundamento de qualquer comunidade humana, da paz e da justiça no mundo...6
um pouco antes, a Constituição da república italiana, de 27 de dezembro de 1947, em
seu art. 3º, passou a declarar expressamente que todos os cidadãos têm igual dignidade social,
sem qualquer distinção, e estabelece o seguinte:
Art. 3 - Tutti i cittadini hanno pari dignità sociale e sono eguali davanti alla legge, senza distinzione di sesso, di razza, di lingua, di religione, di opinioni politiche, di condizioni personali e sociali. È compito della Repubblica rimuovere gli ostacoli di ordine economico e sociale, che, limitando di fatto la libertà e l’eguaglianza dei cittadini, impediscono il pie no sviluppo della persona umana e l’effettiva partecipa zione di tutti i lavoratori all’ organizzazione politica, economica e sociale del Paese.7
Cumpre destacar, também, que essa Constituição, em seu art. 1º, proclama que “a
itália é uma república democrática fundada no trabalho.”8
Bem posteriormente, a Constituição da república Portuguesa, aprovada em 2 de abril
de 1976, em seu art. 1º, assim veio a proclamar de forma incisiva: “Portugal é uma República
soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de
uma sociedade livre, justa e solidária”.
é o que se deu também com a Constituição espanhola, de 29 de dezembro de 1978, ao
estatuir, em seu art. 10, que a dignidade da pessoa e os direitos fundamentais que lhe são inerentes,
dentre outros valores voltados ao livre desenvolvimento da personalidade, são fundamentos da ordem
política e da paz social, nos termos seguintes:
Art. 10 - [...] 1. La dignidad de la persona, los derechos inviolables que le son inherentes, el libre desar-rolo de la personalidad, el respeto a la ley y a los derechos de los demás son fundamento del orden político y de la paz social...
espelhada mais especificamente nas Constituições portuguesa e espanhola, a vigente
Constituição Federal brasileira, promulgada em 5 de outubro de 1988, também se inspirou
nos cânones democráticos do século XX, ao se voltar enfaticamente para a plena realização
6 A Lei Fundamental da República Federal da Alemanha. Com um ensaio e anotações de nuno rogerio. Coimbra editora, 1996, p. 124.7 “é tarefa da república remover os obstáculos de ordem econômica e social que, limitando de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana e a efetiva participação de todos os trabalhadores na organização política, econômica e social do País” (tradução livre da autora).8 Principi fondamentali – 1. L’Italia è una Repubblica democratica, fondada sul lavoro... (tradução livre)
67
da cidadania, elegendo o valor da dignidade humana como um dos fundamentos do regime
político democrático que instaurou e institucionalizou (art. 1º, inc. iii). Para tanto, proclama
a prevalência dos direitos humanos (art. 4º, inc. ii) e a exequibilidade plena dos direitos funda-
mentais (em seu preâmbulo), alargando sua dimensão para alcançar os direitos fundamentais
sociais (arts. 6º, 7º e 8º). Assim, estabelece que a livre iniciativa não pode estar dissociada do
princípio da dignidade humana, ao qual se reporta como princípio supremo da ordem consti-
tucional e fim último da ordem econômica (art. 1º, inc. iii c/c art. 170).
sob tais enfoques, o estado democrático de direito tem sido visto como o principal
agente de processos de transformação, “comprometido com os valores da democracia, entre os
quais, o valor maior é o da dignidade da pessoa humana. é em respeito a este que os demais va-
lores – vida, liberdade, igualdade, segurança, justiça, propriedade, desenvolvimento... – devem
ser assegurados. sem o reconhecimento da dignidade presente em todo ser humano, os demais
valores ficam sem uma referência que lhes possibilite produzir sentido coerente com a ideia de
democracia’’...” nas precisas palavras de sergio Alves gomes9.
o FortaleCiMeNto doS direitoS SoCiaiS voltado ao deSeNvolviMeNto
eCoNôMiCo: a exPeriÊNCia do welFare State duraNte oS aNoS douradoS
no pós-guerra, tendo como núcleo central fortalecer a credibilidade nas instituições atra-
vés do respeito à dignidade da pessoa humana, a atuação governamental dos países avançados,
principalmente da europa ocidental, buscou jungir os objetivos de desenvolvimento econômi-
co ao alcance da justiça social, tão destroçada, de modo a expandir um capitalismo includente,
mediante a redução de desigualdades, tudo voltado à melhoria das condições de vida.
vale dizer, essa nova era marcou a efetiva combinação do discurso liberal da cidadania
com o discurso social, dando ênfase aos direitos sociais. Coube a cada governo do estado-nação
não apenas buscar a reconstrução da europa, mas, também, garantir a justiça social, de modo
a compensar e remover, de fato e de direito, as distorções causadas pelo livre mercado, que
levaram à forte depressão de 1929, e pelos malefícios de duas grandes guerras.
dessa forte intervenção do estado na ordem econômica e social, nos moldes defendidos
por John maynard keynes, voltados a salvar o capitalismo, emergiram os denominados “anos
dourados”. Como relembra eric hobsbawm10,
todos os problemas que perseguiam o capitalismo em sua era da catástrofe pareceram dissolver-se e desaparecer. o terrível e inevitável ciclo de prosperidade e depressão, tão fatal entre as guerras, tornou-se uma sucessão de brandas flutuações, graças a
9 gomes, s. A. Hermenêutica Constitucional: um contributo à construção do estado democrático de direito. Curitiba: Juruá, 2008, p. 284.10 hoBsBAWm, e. Era dos extremos: o breve século xx 1914-1991. 2. ed. tradução marcos santarrita, são Paulo: Companhia das letras, p. 262-263.
68
– eram o que pensavam os economistas keynesianos que agora assessoram os governos – sua inteligente administração macroeconômica. desemprego em massa? onde se poderia encontrá-lo no mundo desenvolvido da década de 1960, quando a europa tinha uma média de 1,5% de sua força de trabalho sem emprego e o Japão 1,3%... só na América do norte ele ainda não fora eliminado... naturalmente a maior parte da humanidade continuava pobre, mas nos velhos centros industrializados, que signifi-cado poderia ter o “de pé, ó vítimas da fome”, da ‘Internationale’ para trabalhadores que esperavam possuir seu carro e passar as férias anuais remuneradas nas praias da espanha ? e se os tempos se tornassem difíceis para eles, não haveria um estado previdenciário universal e generoso pronto para oferecer-lhes proteção, antes nem sonhada, contra os azares da doença, da desgraça e mesmo da terrível velhice dos pobres? suas rendas cresciam ano a ano, quase automaticamente...
Com essa expansão gerada pelo estado do Bem-estar social, houve mais estabilidade e
mais segurança, tanto no emprego, mediante o sistema público de emprego, quanto nas políti-
cas públicas de seguridade social. nesse círculo virtuoso, com a expansão das responsabilidades
do estado, aumentando a capacidade de gastos públicos, geraram investimentos e consumo. o
alto crescimento da produtividade propiciou o crescimento do salário dos trabalhadores, prati-
camente em todos os níveis. Bem a propósito, marcelo W. Proni11 destaca que, “nas principais
nações capitalistas, no pós-guerra, os governos foram levados a assumir medidas que ultrapas-
savam a tarefa de resguardar a economia nacional da racionalidade especulativa dos mercados
financeiros, assim como de proteger a população contra os desastres econômicos. Compreen-
deu-se a importância de restaurar a confiança nas instituições, de gerar expectativas corretas em
relação ao desempenho da economia e de cultivar um clima de otimismo em relação ao futuro.
mas, acima de tudo, as novas estratégias de concorrência, o novo cenário político e as novas
demandas sociais redefiniram o papel do estado e ampliaram em muito as responsabilidades
das autoridades governamentais”.
A fim de promover a justiça social, a ação governamental do estado passou a desenvolver
a tarefa de coordenação e colaboração no âmbito de uma ordem capitalista comprometida com
objetivos de cunho social. Ao abandonar sua aparente neutralidade, típica do liberalismo, o
estado social12 tomou efetivas providências para a obtenção de um desenvolvimento eco-
11 Proni, m. W. economia e sociedade nos anos de ouro, in: Economia e proteção social: textos para estudo dirigido. Cláudio salvatori dedecca e marcelo Weishaupt Proni (orgs.). Campinas: unicamp. ie/ Brasília, dF: ministério do trabalho e emprego; unitrabalho, 2006, p. 3.12 Com muita propriedade, o Prof. marcelo W. Proni também ensina que “os anos dourados foram marcados por relações comerciais e financeiras bastante dinâmicas e por uma relativa estabilidade do padrão monetário internacio-nal (baseado na paridade entre o dólar e o ouro) [...] Com o tempo, um conjunto de políticas públicas destinadas à seguridade e à promoção social (em especial as políticas nas áreas de educação, saúde, habitação, transporte público, previdência e assistência social) foi capaz de satisfazer as necessidades básicas da população e superar a pobreza absoluta. note-se que, dado o contexto político-ideológico da época, a prioridade inicial dos governantes foi afastar o pesadelo da grande depressão e não dar motivos para qualquer movimento substancial contra as instituições democráticas e os fundamentos do capitalismo. houve, como se diz, um acordo tácito, que envolvia a concessão de direitos sociais, a regulamentação da economia de mercado, a manutenção do pleno emprego e a elevação do poder de compra dos salários em troca do reconhecimento da propriedade privada, da preservação da livre iniciativa, da
69
nômico mais solidário e menos desigual, dando ênfase ao respeito da dignidade da pessoa humana.
trata-se de aspectos tão positivos daquele reinante capitalismo social que, hodiernamen-
te, se apresentam em total sintonia com os fundamentos e finalidades traçados pelas Constitui-
ções modernas, que instituíram o estado democrático de direito.
nessa senda, ao tratar preceito constitucional estatuído no art. 1º, da lei Fundamental
alemã, retro referido, como fundamento da comunidade estatal, Peter häberle13 pontua que,
“uma Constituição que se compromete com a dignidade humana lança, com isso, os contornos
da sua compreensão do estado e do direito e estabelece uma premissa antropológico-cultural.
respeito e proteção da dignidade como dever (jurídico) fundamental do estado constitucional
constitui premissa para todas as questões jurídico-dogmáticas particulares. dignidade humana
constitui a norma fundamental do estado, porém é mais do que isso: ela fundamenta também
a sociedade constituída e eventualmente a ser constituída. ela gera uma força protetiva plu-
ridimensional, de acordo com a situação de perigo que ameaça os bens jurídicos de estatura
constitucional”.
eis, aqui, a lição que se tira do fortalecimento do papel do estado, buscando a recons-
trução dos países destroçados pela guerra e o posterior progresso mediante a efetividade dos
direitos sociais de um modo geral, nesses ‘anos dourados’, de 1945 a 1975. A vontade política,
embasada na vontade de Constituição, pôde bem direcionar a transformação da sociedade em
vista de um mundo mais humano, alicerçado em princípios democráticos a informarem o
desenvolvimento econômico direcionado ao alcance do progresso social. Para tanto, pouco
importou se as medidas adotadas tiveram em mira, por primeiro, assegurar a estabilidade das
economias capitalistas, pois a característica maior do estado social se manifestou pela explícita
adesão à ordem capitalista, contudo, direcionada a resguardar a dignidade humana de todas as
pessoas, o que refoge dos objetivos do próprio mercado.
Bem a propósito, Paulo Bonavides14 ensina que
o estado social representa efetivamente uma transformação superestrutural por que passou o antigo estado liberal. seus matizes são riquíssimos e diversos. mas algo, no ocidente, o distingue, desde as bases, do estado proletário, que o socialismo inten-ta implantar: é que ele conserva sua adesão à ordem capitalista, princípio cardeal a que não renuncia. daí compadecer-se o estado social no capitalismo com os mais variados sistemas de organização política, cujo programa não importe modificações fundamentais de certos postulados econômicos e sociais... o estado social que temos
promoção do crescimento econômico e do abrandamento da luta de classes”. economia e sociedade nos Anos de ouro. in: op. cit. p. 15 e 21, destaquei.13 hÄBerle, P. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In: Dimensões da dignidade. ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. obra coletiva. ingo Wolfgang sarlet (org. e tradutor com Pedro scherer de mello Aleixo). Porto Alegre: livraria do Advogado, 2005, p. 128.14 BonAvides, P. do estado liberal ao estado social. são Paulo: malheiros, 2001, p. 184 e 187.
70
em vista é o que se acha contido juridicamente no constitucionalismo democrático. Alcançá-lo já foi difícil; conservá-lo, parece quase impossível. e, no entanto, é o es-tado a que damos, do ponto de vista doutrinário, valoração máxima e essencial, por afigurar-se-nos aquele que busca realmente, como estado de coordenação e colabo-ração, amortecer a luta de classes e promover, entre os homens, a justiça social, a paz econômica.
toda essa experiência que marcou a era dos ‘Anos de Ouro’ – e da plena florescência do
estado social, que os brasileiros, lamentavelmente, não tiveram a oportunidade de vivenciar
– deve ser trazida à reflexão para indicar caminhos mais definidos e decisões apropriadas à
resolução dos problemas econômicos e sociais provocados pela atual (e de grandes proporções)
crise financeira mundial, que vem exigindo gigantesca ação intervencionista e regulatória por
parte do estado, a exemplo da emergencial atuação de governos dos euA, da europa e China.
tudo de modo a garantir a economia de mercado.
exsurge daí ser possível, sim, obter, nos dias de hoje, a transformação superestrutural das
políticas estatais voltadas a promover o desenvolvimento econômico jungido ao progresso so-
cial, que tanto se almeja e a Constituição Federal brasileira exige, ou seja a necessária valoriza-
ção do trabalho humano como fundamento da própria democracia.
Conforme já demonstrado, o postulado da dignidade humana passou a ser o epicentro
do grande elenco de direitos civis, políticos, econômicos culturais e sociais, inter-relacionados
e interdependentes numa abordagem holística, tal como vem proclamado não só pelas consti-
tuições de cada estado-nação de cunho democrático, mas principalmente através de tratados
internacionais de direitos humanos. tornou-se, assim, o elemento referencial para a aplicação
e interpretação das normas jurídicas, de modo a exigir uma concepção diferenciada do que seja
segurança, igualdade, justiça e liberdade, para impedir que o ser humano, institucionalmente,
volte a ser tratado como mero objeto.
Como o tema da dignidade humana não é estático na ordem democrática, as normas
constitucionais não podem ser consideradas de forma isolada e dispersa, mas, sim, como pre-
ceitos integrados num sistema unitário de regras e princípios.15
vale dizer, a Constituição é posta não apenas como limite, mas sobretudo como fun-
damento da ordem jurídica, justamente para garantir a igualdade substancial, ao proclamar a
dignidade da pessoa humana como fundamento do estado democrático de direito e um valor
que atrai a realização dos direitos fundamentais do homem, em todas as suas dimensões. é por
isso que a democracia tem sido considerada como “o único regime político capaz de propiciar
a efetividade desses direitos”.16
15 CAnotilho, J. J. gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2008, p. 232.16 nas palavras de José Afonso da silva, em seu magistral artigo “A dignidade da pessoa humana como valor supre-mo da democracia”. in: Revista de Direito Administrativo, vol. 212, 1998, p. 93.
71
entretanto, mesmo diante dessas conquistas que renderam uma formidável previsão de
normas internacionais de proteção dos direitos humanos, princípios e regras constitucionais,
normas legais e coletivas, no âmbito de um estado democrático de direito, o Ser Humano
ainda não se posicionou em sintonia com a aspiração de uma sociedade justa, dependente de
um equilíbrio estável e de uma harmonia duradoura. Persiste, hodiernamente, a forte tendên-
cia de predominância do capitalismo perverso que aniquila o valor do trabalho humano e, por
consequência, afronta a dignidade de cada trabalhador.
isto porque, diante da expansão do neoliberalismo, o estado-nação passou a ser visto ten-
dencialmente minimizado no que tange ao desenvolvimento e expansão das políticas públicas,
em defesa da concretização dos direitos sociais. sobressaem polêmicas posições da maioria dos
grandes e poderosos conglomerados transnacionais, a impor programas de privatização dos
monopólios públicos e a substituição dos mecanismos estatais de seguridade social por segu-
ros privados, o que amplia sobremaneira o pluralismo de ordens normativas. A respeito dessa
transformação, imposta nesses moldes, com fortes e negativos reflexos no mundo do trabalho,
assim prelecionam José ricardo ramalho e marco Aurélio santana17:
o mundo do trabalho, principalmente em países desenvolvidos, se modificou rapi-damente e o consenso protetor do welfare state foi substituído pela dieta neoliberal. muitas certezas, consolidadas há pelo menos cinquenta anos, em termos da impor-tância do papel do estado na economia e da necessidade de processos regulatórios para manter a proteção social, foram profundamente abaladas ou enfraquecidas no debate público. não tardou para que a experiência dos países centrais transbordasse, alcançando também os países periféricos, onde tanto a proteção social como a forma-lização das relações de trabalho já não eram das mais sólidas [...]Formas de contratação flexíveis, antes consideradas atípicas, passaram a ser a regra. As políticas de proteção ao indivíduo, dentro e fora do trabalho, foram sendo subs-tituídas por políticas de aumento de competitividade. A própria avaliação acerca da desigualdade social mudou de perspectiva. Pensada antes, na ótica do estado de bem-estar, como problema a ser tratado com o aumento dos benefícios sociais, passava, sob a nova ótica do estado mínimo, a ser identificada como necessária para o maior engajamento e desempenho dos indivíduos na sociedade [...]os fenômenos sociais que temos presenciado não são de fácil encaixe nas categorias preexistentes. tratar-se-ia, portanto, de uma nova questão social. o trabalho, um dos eixos centrais de vertebração da ordem social moderna, ficou enfraquecido, com a chamada crise do trabalho, e a sociedade sofreu as consequências, através de proble-mas sociais diferenciados, no que já vem sendo designado como a nova era das desi-gualdades, marcada, entre outras características, pela perda de institutos de proteção social, pelo aumento das taxas de pobreza global e pelo aumento das disparidades sociais, enfim, pela ampliação das margens de vulnerabilidade social e econômica.
17 rAmAlho, J. r.; sAntAnA, m. A. (orgs.). trabalhadores, sindicatos e a nova questão social. in: Além da fábrica. são Paulo: Boitempo, 2003, p. 12-13.
72
Advém dessa dura realidade o lado perverso e desagregador das políticas econômicas neo-
liberais que mais disseminam a desigualdade social, pois retiram o valor do trabalho humano,
fazendo desencadear um crescimento profundo da divisão da sociedade18, que se torna incapaz
de oferecer soluções aos problemas de desemprego, da desigualdade de renda19, da violência
sexual e da miséria.
ora, no seio de toda sociedade regida pelo estado democrático de direito, o desenvolvi-
mento deve ser relacionado a um processo de transformação voltado ao progresso. é conside-
rado desenvolvido o país que não tem dependência tecnológica nem financeira, resultando daí
mais estabilidade nas relações econômicas e sociais. no entanto, como bem acrescenta ricardo
Antunes20, “essa nova conformação produtiva do capital desafia [...] crescentemente, o mundo
do trabalho, uma vez que o centro da confrontação social contemporânea é dado pela contradi-
ção entre o capital social total e a totalidade do trabalho” (mészáros, 1995). Assim, como o
capital utiliza-se desses mecanismos mundializados e dispõe de seus organismos internacionais,
a luta dos trabalhadores deve ser cada vez mais caracterizada pela sua configuração também in-
ternacionalizada. e, nesse terreno, como sabemos, a solidariedade e a ação de classe do capital
está bem à frente da ação dos trabalhadores.
emerge daí que o estado-nação deve intervir cada vez mais nas relações jurídicas, para
garantir a realização dos direitos fundamentais de cada cidadão, principalmente através do tra-
balho, enquanto meio preponderante para assegurar o direito à vida com dignidade. se não há
mercado sem o estado, conforme vem se proclamando21, agora, com mais frequência e ênfase
diante da atual crise financeira internacional do século XXi, também não se pode pensar em
desenvolvimento de uma sociedade capitalista sem a valorização do trabalho.
urge, portanto, dar ao direito um sentido de instrumento transformador dessa vigente
realidade injusta. Advém dessa assertiva a necessidade de se afirmar, de forma permanente,
a supremacia da Constituição Federal em prol da concretização dos direitos fundamentais
18 simon schwartzmn ressalta que a desigualdade de renda no Brasil é considerada uma das mais altas do mundo. Assinala que “estudos econométricos mostram que, dos diversos fatores que afetam a renda – região, idade, sexo, tipo de ocupação, educação etc. –, o mais importante, de longe, é a educação. em 2001, o rendimento mensal médio de quem tinha educação superior era cerca de r$ 2.200 – um bom salário da classe média, mas longe de indicar riqueza – enquanto o rendimento médio de quem não tinha educação era 10 vezes menor. A implicação desse fato é que o caminho mais importante para melhor distribuição da renda é o aumento e a melhor distribuição das oportunidades educacionais e não a redistribuição da riqueza”. e, ao tratar da pobreza, miséria e indigência, em seguida, enfatiza que “existem boas razões para se preocupar com as situações de pobreza extrema e desenvolver políticas assistenciais e compensatórias que possam socorrer as pessoas em situações de maior privação. Mas a prio-ridade deve estar em melhorar a qualificação e as oportunidades de trabalho e geração de renda das pessoas” (destaquei). in: As causas da pobreza. rio de Janeiro: Fgv, 2004, p. 178 -179. 19 nesse sentido, marcio Pochmann conclui que “a aplicação das políticas econômicas e sociais neoliberais não se mostrou determinante para a expansão ou não das economias avançadas. seus efeitos distributivos, contudo, não deixaram dúvidas sobre o seu caráter de aprofundamento da desigualdade, tendo em vista os prejuízos impostos aos mais pobres”. A escolha dos países ricos e a desigualdade. In: Jornal Folha de S. Paulo, 30/07/2008, p. A3.20 Antunes, r. Os sentidos do trabalho. ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 7. reimp. são Paulo: Boitempo, 2005, p. 116.21 Conforme se manifesta o economista francês guy sorman. in: Jornal Folha de S. Paulo, 19/10/2008, p. B7,
73
sociais, centrada no respeito à dignidade humana. Para tanto, é preciso recolocar em prática
esquemas de cooperação entre as funções estatais e as forças produtivas, inter-relacionando as
potencialidades do mercado com as políticas públicas, em busca do desenvolvimento econômi-
co e do progresso social do país. Constitui impostergável tarefa do estado estabelecer diretrizes
para o exercício da atividade econômica tendentes à formalização de uma ordem futura mais
justa, mais humana e mais fraterna (Preâmbulo da lei maior). nessa senda, o art. 174, caput,
da Constituição Federal, estabelece, como tarefa do estado, o exercício das funções de “fisca-
lização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo
para o setor privado.”
Com efeito, a Constituição Federal brasileira estabelece regras e princípios objetivos da
vida social, impondo até mesmo intervenções governamentais para remodelar as instituições
públicas e privadas, de forma a fortalecer o discurso social da cidadania, o que implica na con-
formação recíproca de metas de ambos os setores (CF, art.. 174), em prol da realização dos di-
reitos fundamentais. trata-se de atividade planificadora e indispensável do estado, justamente
para possibilitar a igualdade de oportunidades, o mesmo ponto de partida para todos. Como
detentor da soberania, deve resgatar e promover a participação ativa dos corpos intermediários
da sociedade civil, cada vez mais pluralista, propondo, como meta primeira, o desenvolvimento
eficaz do sistema educacional, a englobar a permanente capacitação para o trabalho, os progra-
mas de saúde pública e de seguridade social.
dessa interação certamente poderá resultar maior efetividade dos direitos individuais e
coletivos, calcados no postulado da dignidade da pessoa humana. isso porque apenas a ação
estatal soberana tem como melhor concretizar a tutela constitucional porque alcança não só
o indivíduo, mas também entidades de classe, organizações sindicais, blocos empresariais,
grupos vulneráveis da sociedade civil, entre outros. segundo simon schwartzman22, “as po-
líticas de mobilização são aquelas que partem do princípio de que só através da participação
e do envolvimento das comunidades afetadas é que políticas sociais podem ser efetivamente
implementadas.”
Argument, ainda, o festejado autor – ao salientar que, da oposição entre políticas univer-
salistas e focalizadas, emerge muitas vezes o posicionamento daqueles que defendem o estado
do bem-estar social clássico e de outros que defendem a redução do setor público – que,
em um país como o Brasil, onde os gastos sociais são notoriamente mal direcionados e usados de forma ineficiente, a questão do papel do setor público ou do setor priva-do no provimento de serviços é mais genuína, no sentido de que incorpora, de fato, visões distintas sobre até onde pode ir o poder público na implementação de políticas sociais, e qual a possível participação do setor privado. em algumas áreas, como a educação superior e o provimento de serviços de saúde, o setor privado tem presença dominante, e os problemas que se colocam têm a ver com a regulação dessas ativi-
22 sChWArtzmn, s., op. cit. p. 186.
74
dades, e não com sua legitimidade. em outras áreas, como as da previdência social, energia, comunicações, transportes e outras, a capacidade financeira e técnica do setor público tem-se mostrado extremamente limitada, mas as experiências de privatização ainda não demonstraram, de forma inequívoca, sua pertinência.
de qualquer modo, é o estado que deve agir, sempre e cada vez mais, sendo indispensável
sua ação corretiva e regulatória23, traçando permanentes políticas públicas de fomento da econo-
mia, de modo a propiciar o crescimento do País nos seus diversos setores.
dito de modo diferente, ao intervir com seriedade e transparência na ordem econômica
e social, no exercício pleno de sua soberania, o estado tem como estabelecer eficazes políticas
públicas sociais e aplicar investimentos de qualidade no intuito prospectivo de “construir uma
sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a mar-
ginalização, reduzindo as desigualdades sociais, além de promover o bem de todos”, tal como impõe
o art. 3o, inciso iii, da Constituição Federal.
eis, aqui, bem delineada, a função primordial do estado democrático de direito. é para
tanto que ele existe. vale dizer, sua função precípua é assegurar igual dignidade para todos,
indistintamente. e é através do trabalho, condignamente remunerado, aliado à efetividade
de outros direitos sociais (art. 6º), que se constrói uma sociedade democrática nesses moldes
proclamados.
a GaraNtia do aCeSSo ao trabalho e da MaNuteNção do eMPreGo à luz da lei Maior
A Constituição Federal de 1988 estabelece uma ordem econômica voltada a alcançar a
justiça social. desse modo, salvaguarda o capitalismo social ao dar prioridade ao valor do tra-
balho humano. nos termos dos arts.1º, incisos iii e iv, 170, 193 e 219, inciso iv, a atividade
econômica deve ser dinamizada, tendo em vista preservar a livre iniciativa e a livre concorrên-
cia, esta como caráter instrumental, porém tudo de modo a promover a existência digna de
todos, partindo da valorização do trabalho humano. este é o fim último da ordem econômica
e social.
Bem a propósito, buscando dar uma conotação de equilíbrio para não ser elidida a livre
iniciativa, gastão Alves de toledo24 realça que
23 Conforme defende luiz Carlos Bresser-Pereira, ao sustentar que “existem boas razões para acreditarmos no desenvolvimento econômico e político dos povos. é absurda, porém, a ideologia que pretende alcançar o bem-estar econômico capitalista sem se beneficiar do desenvolvimento político democrático – sem contar com a ação corretiva e regulatória do estado democrático e social que tão arduamente a sociedade moderna vem construindo e do qual faz parte um mercado livre mais regulado”. Fim da onda neoliberal. In: Jornal Folha de S. Paulo. 21 de abril de 2008, p. B2.24 toledo, g. A. O direito constitucional econômico e sua eficácia. rio de Janeiro/são Paulo: renovar, 2004, p. 171.
75
jogadas a si mesmas, as forças de produção podem caminhar num sentido inverso ao da justiça. Contudo, ainda assim, os estados que mais têm avançado na melhoria da condição humana são justamente aqueles que adotam a liberdade de iniciativa. Ao estado pode caber um papel redistribuidor da renda nacional e é até indispensável que ele o exerça. o que não é aceitável é ver-se uma contradição entre a liberdade de iniciativa e a justiça social a ponto de se afirmar que esta última só é atingível na medida em que se negue a primeira.
no entanto, deve ter prevalência a trajetória de concretização dos direitos fundamentais
dos trabalhadores apesar das duras e cruéis imposições do neoliberalismo e do mercado glo-
bal.25
resulta disso tudo ser imperioso fazer valer os princípios e regras fundamentais da Consti-
tuição Federal, em sintonia com as normas internacionais de Proteção dos direitos humanos
que resguardam a dignidade da pessoa humana. Cumpre proclamar e exigir a observância do bem
jurídico trabalho como valor social, um dos fundamentos do estado democrático do direito (art.
1º, iv), eis que a ordem econômica deve ser fundada na valorização do trabalho (art. 170).
Com efeito, sob o manto do estado democrático de direito, onde a Constituição Fede-
ral não só sobreleva a eminência da dignidade da pessoa humana, mas a transforma em valor
fundante da ordem jurídica, como enfatiza José Afonso da silva26, todo trabalhador deve ser
visto como detentor de direitos fundamentais sociais, amparado por normas pétreas da Cons-
tituição, que não podem ser afastadas nem eliminadas sequer por emenda Constitucional, em
face do implícito princípio constitucional que veda o retrocesso social. Para tanto, é preciso
conciliar os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa num ambiente de efetiva concre-
tização do princípio da dignidade humana, mediante a fiel observância da função social da
empresa, definida no art. 170, da lei maior.
destarte, se, do ponto de vista econômico, as mudanças impostas pelas leis do mercado,
no campo das relações entre o capital e o trabalho, visando à manutenção da empresa e do
Cumpre mencionar a doutrina de Josué lafayete Petter, ao destacar que se verifica, no mercado, em muitos seg-mentos, “a ocorrência do fenômeno de concentração do poder econômico, que fica, por assim dizer, assenhorado nas mãos de uns poucos, com ofensa à liberdade de iniciativa, invocando a necessidade de tutela e intervenção do estado, pena de aquela literalmente sucumbir. então, ao contrário do que se poderia imaginar, a intervenção do estado no domínio econômico (CF, art. 174), muito antes de limitar a iniciativa e a liberdade do particular, tem por fim, mesmo, preservá-la. in: Princípios constitucionais da ordem econômica: o significado e o alcance do art. 170 da Constituição Federal. são Paulo: rev. dos tribunais, 2005, p. 161.25 segundo naomi klein, ao tratar do pacote de u$700 bilhões de ajuda do governo americano ao mercado financeiro, diante da atual e forte crise financeira, considerada a maior desde o crack da Bolsa de nova york, em 1929, “a ideologia do livre mercado sempre esteve a serviço dos interesses do capital, e sua presença avança e recua, dependendo da utilidade que tem para esses interesses. em épocas de crescimento, pregar o ‘laissez faire’ é rentável, porque o governo ausente permite o crescimento de bolhas especulativas. quando essas bolhas estouram, a ideologia se torna um empecilho e entra em estado dormente, enquanto o grande governo parte em missão de salvamento”. mercado livre. in. Caderno mAis, da Folha de S. Paulo, 28 de setembro de 2008, p. 4.26 Cf. José Afonso da silva. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. in: Revista de Direito Administrativo, vol. 212, 1998, p. 91.
76
emprego, são inevitáveis, urge que seja preservada a pessoa humana, como tarefa inafastável do
estado democrático de direito. Como preleciona sergio Alves gomes,
respeitar a Constituição não significa apenas deixar de fazer o que ela proíbe, mas também e, sobretudo, fazer o que ela determina. isso porque o referido paradigma estatal tem por escopo principal a transformação de uma sociedade injusta, egoísta, de raízes escravagistas e subdesenvolvida para uma sociedade livre, justa e solidária. A Constituição Federal de 1988, ao instituir o estado democrático de direito, docu-menta um pacto comprometido com tal transformação. um pacto que decidiu pelo desenvolvimento nacional, pela erradicação da pobreza e da marginalização, isto é, da exclusão social, bem como pela contínua redução das desigualdades sociais e regio-nais, a fim de ‘promover o bem de todos’ (CF, art. 3º, i e iv). resta claro que quem – por ação ou omissão – colocar-se contra estes objetivos transformadores inscritos na Carta magna da república põe-se, consequentemente, a favor da manutenção do subdesenvolvimento e do retrocesso democrático.27
Como se vive em uma sociedade de trabalho, forçoso é valorizar sobremaneira o trabalho
humano. A redução da taxa do desemprego estrutural depende basicamente do desenvolvi-
mento do país, lastreado na educação e na justa distribuição da riqueza, na diminuição da
taxa de juros e numa autêntica reforma fiscal, em consonância com a qualificação da mão de
obra, conscientização e aperfeiçoamento das lideranças sindicais. nessa esteira, incumbe aos
órgãos governamentais, com a cooperação de grupos representativos da sociedade civil, prin-
cipalmente dos grupos empresariais de grande porte, nacionais e transnacionais, desenvolver
políticas públicas de forma a propiciar o crescimento do País nos seus diversos setores. tudo de
modo a facilitar o permanente acesso à qualificação da mão de obra e à capacitação profissional
dos trabalhadores, mormente diante das inovações tecnológicas, como meios inexoráveis de se
combater o desemprego. só assim será possível assegurar igual liberdade de chances e oportu-
nidades para todos.
nessa senda, exsurge a relevância do papel da empresa, perante seus empregados e demais
prestadores de serviços, por ser o espaço propício para todo trabalhador exercer permanente-
mente sua cidadania com liberdade e responsabilidade, em prol de seus interesses e de toda
comunidade, onde a mesma está inserida. segundo Josué lafayete petter28, valorizar o trabalho
humano diz respeito a todas as situações em que haja mais trabalho, entenda-se, mais postos
de trabalho, mais oferta de trabalho, mas também àquelas situações em que haja melhor traba-
lho, nesta expressão se acomodam todas as alterações fáticas que repercutem positivamente na
própria pessoa do trabalhador [...] o trabalho exercido com mais satisfação, com menos riscos,
com mais criatividade, com mais liberdade etc)”. é desse modo que transparece com nitidez o
caráter institucional da empresa como comunidade capaz de realizar plenamente sua destinação
27 gomes, s. A. Hermenêutica Constitucional, op. cit., p. 445-446.28 Petter, J. l., op. cit. p. 154.
77
econômica e social, porém de um modo mais humano e solidário, para produzir prosperidades
sociais (CF, art. 1º, incisos iii e iv; art. 170). nunca o contrário.
Por tudo isso, a resolução das dificuldades, no mundo do trabalho, não pode ser entregue
ao livre jogo das forças de mercado. há de ser objeto de intervenção consciente do estado,
no pleno exercício de sua soberania junto às empresas e grupos econômicos, os quais, mesmo
sendo detentores de autonomia, devem agir, segundo a programação e tomada de providências
ditadas pelos órgãos estatais, em total sintonia com os princípios e regras constitucionais, a fim
de que o crescimento econômico possa propiciar eficazmente o progresso social. Para tanto, são
necessários grandes investimentos para a criação de novas tecnologias29, a melhoria considerável
da capacitação científica do país e, ao mesmo tempo, da capacitação dos trabalhadores em ge-
ral, diante das exigências do mercado global extremamente competitivo a impor tais avanços.
Com isso, certamente, haverá a diminuição do desemprego estrutural que ainda assola o país,
sendo notório o déficit de trabalhadores qualificados.30
Além do acesso facilitado ao trabalho, como direito social que é (CF, art. 6º), a salvaguar-
da da dignidade humana depende ainda da efetiva garantia de manutenção do emprego con-
quistado. Convém lembrar a respeito que a Constituição Federal vigente, em seu art. 7º, inc.
i, prevê a proteção da relação de emprego contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos
termos de lei complementar que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos. e,
enquanto perdura esse vazio normativo, o art. 10, i, do Ato das disposições Constitucionais
transitórias, dispõe que essa proteção se limita ao aumento, por quatro vezes, da porcentagem
prevista no art. 6º, caput e §1º, da lei n. 5107, de 13 de setembro de 1966. é o que, lamen-
tavelmente, está em vigor desde então, há duas décadas.
29 é sabido que o Brasil é um dos países líderes em produção científica mas continua com atraso tecnológico imenso. “Preferiu comprar tecnologia e conhecimento do exterior a desenvolver aqui, nas palavras do físico ennio Condotti, ex-presidente da sBPC. em quase todos os segmentos não vê transformação do conhecimento em tecno-logia. hoje, o país é responsável por cerca de 2% da ciência mundial, ocupando o 15º lugar no ranking dos países por produtividade, segundo levantamento da CAPes, em termos quantitativos. Contudo, cai para o 20º lugar, em termos qualitativos. Para miguel nicolelis, cientista paulistano, líder de um laboratório na universidade duke, “é preciso mudar o paradigma de que ciência tem de ser feita só na universidade. ela pode ser feita na indústria. o governo tem de começar a incentivar que as multinacionais façam centros de pesquisa aqui”. Cf. Jornal Folha de S. Paulo, Caderno mAis, 28/10/2007, p. 4. na avaliação do geógrafo Carlos Walter Porto gonçalves, Professor da universidade Federal Fluminense, “os pes-quisadores estariam mais interessados em patentear seus conhecimentos do que contribuir para a sociedade”. salien-ta como exemplo das dificuldades pelas quais passa o mundo científico o fato de que os pesquisadores estão negli-genciando informações sobre o impacto de suas pesquisas. um desses casos seria o dos transgênicos. A universidade não diz se o transgênico é bom ou ruim porque as pesquisas são financiadas pelas empresas... disse entender que a universidade passa por um processo de “privatização branca”: os governos restringem o investimento nas institui-ções de ensino superior e empurram o financiamento da pesquisa para o setor privado. essa política, disse ele, leva ao contexto em que a ciência deixa de funcionar ‘no sentido da emancipação humana’. Cf. Jornal de Londrina, 12/22/2007, p. 4. 30 tem sido divulgado, também, pelos meios de comunicação social, que a oferta de trabalho está em desequilíbrio. Propala-se que “não há mão de obra qualificada para 123 mil vagas com carteira assinada abertas pela indústria em 2007, de acordo com pesquisa realizada pelo ipea (instituto de Pesquisa econômica Aplicada), órgão ligado ao Planejamento... A grande maioria – 7,5 milhões – tem baixa ou nenhuma qualificação ou experiência profissional, sobretudo no sudeste.” Cf. Jornal Folha de S. Paulo, 8/11/2007, p. B1.
78
ora, a norma constitucional em vigor reconhece expressamente o direito do trabalhador
de não ser despedido senão por justa causa ou motivo socialmente aceitável, coibindo a des-
pedida arbitrária. restou à lei Complementar – que ainda não veio devido à inércia do Poder
legislativo, no particular, durante esses últimos vinte anos – apenas fixar a indenização com-
pensatória, dentre outros direitos, diante da afronta a tal imposição legal.
na prática, contudo, é a dispensa sem justa causa que persiste. Ao empregado tem sido
assegurado apenas o direito de receber a aludida indenização compensatória, além do aviso
prévio e demais verbas rescisórias. no que se refere ao direito mais relevante, à manutenção
do emprego, sua garantia permanece ao inteiro arbítrio do empregador, a quem cabe a decisão
unilateral de manter, ou não, o trabalhador em seu quadro de pessoal.
dessa injusta e cruel situação resulta a total insegurança ao trabalhador empregado, no
seu dia a dia, diante da ameaça constante de dispensa sem qualquer justificativa plausível, o que
reflete na organização de sua vida pessoal e familiar. Basta o querer da outra parte, para sujeitar
o obreiro à brutal rotatividade do mercado de trabalho, cujas taxas
nos últimos 10 anos se mantiveram acima de 40%, praticamente em todo período. em 2007, 14,3 milhões de trabalhadores foram admitidos e 12,7 milhões foram des-ligados das empresas. do total de empregados de desligados, 59,4%, ou 7,6 milhões foram dispensados por meio de demissões sem justa causa ou imotivadas.31
trata-se, portanto, de verdadeira denúncia vazia, cláusula potestativa implícita no contrato
individual de trabalho, malgrado o disposto no art. 122, do novo Código Civil, em vigor desde
11 de fevereiro de 2003, que a refuta por inteiro.
o direito a um posto de trabalho, bem como à manutenção do emprego, continua sendo
relativizado, mesmo sendo esse o principal meio de se assegurar o direito à vida com digni-
dade e o exercício da cidadania à população ativa, conforme já se destacou. nesse contexto, a
norma estatuída no mencionado art. 7º, inc. i, dotada de eficácia (CF, art. 5º, §1º), deveria
– e deve – ser interpretada em total sintonia com o disposto no arts. 1º, inc. iii, e 170, da lei
maior. esta elegeu o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da ordem
constitucional e fim último da ordem econômica, de modo a compatibilizar os valores sociais
do trabalho e da livre iniciativa numa estrutura empresarial democrática (CF, art. iv). resulta
daí a total impossibilidade de exercício do direito potestativo pelo empregador, incrustado na
cultura brasileira, ainda submetida aos reflexos de um sistema escravocrata que perdurou até
200 anos atrás.
Como bem evidencia maurício godinho delgado,
31 Cf. Jornal da Associação dos magistrados da Justiça do trabalho da 3ª região, Ponto de Vista, abril/maio de 2008, p. 3.
79
mesmo a leitura que defende a absoluta esterilidade da garantia de emprego mencio-nada no inciso i do art. 7º constitucional é, tecnicamente, passível de questionamen-to... A teoria constitucional moderna, mais bem ajustada à interpretação de novas constituições, tende a apreender, necessariamente, certa eficácia às normas consti-tucionais – ainda que diferenciada, em intensidade, a eficácia de uma e outra regra constitucional. nessa linha, o preceito contido no inciso i do art. 7º em análise pode ser tido como regra de eficácia contida, produzindo, pelo menos, certo efeito jurídico básico, que seria o de invalidar dispensas baseadas no simples exercício potestativo da vontade empresarial, sem um mínimo de justificativa socioeconômica ou técnica ou até mesmo pessoal em face do trabalhador envolvido.32
Contudo, esse não é o entendimento dominante da doutrina e da jurisprudência tra-
balhista, que insiste em reconhecer a falta de eficácia e, por consequência, a não aplicação
imediata da norma estatuída no inciso i, do art. 7º, da Constituição Federal, a qual exige uma
motivação relevante para a dispensa do empregado.
A par disso, recentemente deixou de existir a possibilidade de nova ratificação da Conven-
ção 158 da organização internacional do trabalho (oit)33. isto porque, em 14/02/2008, o
Presidente da república encaminhou mensagem (59/08) ao Congresso nacional a propósito da
ratificação dessa Convenção (CF, art. 84, inc. viii). Porém, a Comissão de relações exteriores
e de defesa nacional, no dia 2 de julho de 2008, rejeitou, por 20 votos a 1, a adesão do Brasil
à aludida Convenção, por considerar a legislação brasileira suficiente para garantir direitos dos
trabalhadores, reconhecendo, ainda que, a Convenção 158, “ao estabelecer uma complexa bu-
rocracia nos procedimentos sem justa causa, é inibidora da abertura de novas vagas”.34
ora, a Convenção 158, da oit, não proíbe a dispensa do empregado, ou seja, não restau-
ra a vetusta estabilidade geral. Apenas prevê que o empregador pode dispensar seu empregado
desde que de forma justificada, diante de uma causa relacionada com sua capacidade ou seu
comportamento e de relevantes motivos econômicos, tecnológicos, estruturais ou análogos, basea-
dos no funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço. Para tanto, em se tratando de
dispensas coletivas, reconhece ainda o direito à prévia informação e consulta aos representantes
32 delgAdo, m. g. Curso de Direito do Trabalho. são Paulo: ltr, 2004, p. 1115. o festejado autor define direito potestativo “como a prerrogativa assegurada pela ordem jurídica a seu titular de alcançar efeitos jurídicos de seu interesse mediante o exclusivo exercício de sua própria vontade. o poder, em suma, de influir sobre situações jurídicas de modo próprio, unilateral e automático”. in: op. cit. p. 649.33 Convém registrar que, nos termos do decreto 1.855, de 10 de abril de 1996, foi promulgada a Convenção 158 da oit, pelo Presidente da república, Fernando henrique Cardoso, anteriormente submetida à aprovação do Congresso nacional, por meio do decreto legislativo n. 68, de 16 de setembro de 1992. Posteriormente, através do decreto 2.100, de 20 de dezembro de 1996, baixado pelo mesmo Presidente da república, tornou-se pública a denúncia, pelo Brasil, da Convenção 158 da oit, que assim deixou de vigorar no Brasil, mesmo sob a égide da Constituição Federal de 1988. 34 nas palavras do relator, deputado Júlio delgado, que, ao pedir o arquivamento da mensagem presidencial, salientou que a norma internacional é prejudicial aos trabalhadores e à economia. Foi rebatido pelo deputado nilson mourão (Pt-AC), o único a votar a favor, que destacou a prevalência dos interesses dos empresários, sendo certo que o crescimento da economia garante a geração de empregos, diante da assertiva do relator de que “o alto custo e a restrição de dispensas tendem a reduzir a rotatividade, mas vão inibir a geração de empregos”. in: http//www.camara.gov.br.
80
sindicais que atuam no âmbito da empresa, visando uma atuação conjunta a respeito dos crité-
rios a serem estabelecidos. em qualquer caso, impõe ao empregador a prova cabal da existência
de uma causa justificada para qualquer dispensa de empregados.
Cumpre ressaltar que, sob o manto do estado democrático de direito, a empresa, no
pleno exercício de sua autonomia e função social, deve propiciar ao obreiro oportunidades de
bem exercer sua cidadania de forma permanente, participando, em comunhão de esforços, para
o aumento do produto social, ao ser integrado nessa estrutura. Com isso, criam-se vínculos de
lealdade e de compromisso mútuos em busca de metas direcionadas à satisfação de interesses
próprios, tanto do empresário quanto dos empregados, bem como da própria comunidade.
Já a alta rotatividade dominante afasta a possibilidade de formação desse espírito de par-
ceria e gera total insegurança aos trabalhadores na condução de suas vidas e de suas respectivas
famílias, uma vez que a continuidade de seus contratos de trabalhos permanece dependendo
quase que exclusivamente da vontade do outro contratante, o empregador. Com isso, o traba-
lho humano se desvaloriza em manifesta afronta à dignidade de todo obreiro. Por outro lado,
essa mesma rotatividade impossibilita, por parte dos trabalhadores a ela submetidos, a forma-
ção de liames de maior responsabilidade e de comprometimento com os objetivos empresariais,
inclusive no sentido de melhor assegurar a continuidade da própria empresa.
em face dessa nefasta realidade, urge bem interpretar os princípios e regras da Consti-
tuição Federal como um complexo normativo unitário, de modo a salvaguardar as relações
de emprego contra despedidas arbitrárias e sem justa causa. e, desse modo, forçoso é atribuir
hierarquia e natureza material constitucional às normas das convenções internacionais que
reconhecem e tutelam direitos humanos, dentre as quais a Convenção 158, da oit, diante
do que dispõe o §2º do art. 5º, em total sintonia com o art. 7º, inciso i, ambos da mesma lei
maior, a qual proclama a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho, dentre
outros, como fundamentos do estado democrático de direito.
CoNSideraçÕeS FiNaiS
A tutela do trabalho humano e a efetividade dos direitos sociais resguardam a própria
democracia, o que impõe a justaposição de forças políticas manifestadas pela intervenção estatal
na ordem econômica, no sentido de garantir o respeito à dignidade humana, sem o qual o es-
tado democrático de direito não se sustenta. Assim, sobreleva a transcendência do princípio
fundamental da dignidade humana que supera qualquer outra elaboração legislativa, porque
ocupa um lugar central no pensamento filosófico, político e jurídico como valor supremo da
ordem constitucional.
Partindo dessas premissas, a questão do desenvolvimento depende da tomada de sérias
políticas públicas tendentes a estabelecer uma dinâmica de equilíbrio entre os objetivos de
81
ordem capitalista, voltados ao crescimento econômico, e a atuação regulatória do estado de
agregar aliados para enfrentar os problemas sociais. instrumentos legais não faltam à luz de
uma Constituição Federal que legitimou o capitalismo, ao propiciar condições efetivas para a
liberdade de iniciativa e à livre concorrência, orientadas, porém, ao alcance da justiça social.
no âmbito internacional, como se deu na chamada era dos anos de ouro, busca-se, também
neste histórico ano de 2008, a forte e indispensável intervenção do estado na coordenação da
política econômica, principalmente por aqueles que pregavam de forma impositiva os postula-
dos neoliberais da desregulamentação. Com isso, retoma-se, com vigor, a ideia de inter-relação
dos planos econômicos e sociais direcionados ao desenvolvimento e ao progresso social. isso
pode significar a transformação em realidade dos anseios democráticos de se proporcionar a to-
dos as mesmas oportunidades de melhores condições de vida. Para tanto, a atuação dos poderes
governamentais, da administração pública, deve ser séria e transparente, afastada do câncer da
corrupção.
vale dizer, havendo vontade política, o estado tem condições, sim, de dar prioridade à
concretização de direitos fundamentais à educação de qualidade, à saúde, à moradia digna,
como ponto de partida, com vista à inclusão social.
é preciso investir em novas tecnologias, no solo brasileiro, para gerar novas demandas e
decorrentes empregos. nesse particular, ainda falta às empresas – mais ainda aos grandes con-
glomerados nacionais e transnacionais – o exercício de sua função social, valorizando o trabalho
humano, tal como vem proclamado no art. 170, da lei maior. no entanto, o estado, no exer-
cício de sua soberania, tem instrumentos institucionais de vincular suas ações de impulsionar
a democracia às potencialidades das empresas em face do mercado, para daí extrair os meios
necessários de obter o crescimento econômico de forma justa e sustentável.
nesse contexto, deve ser eficazmente garantido o emprego conquistado, como único meio
de se assegurar vida digna à grande maioria da população ativa, nos termos dos artigos 7º, inci-
so i, da lei maior, 122, do Cód. Civil, e à luz da Convenção 158, da oit, sendo certo que sem
trabalho humano, não se pode pretender a prosperidade do sistema capitalista, principalmente
sendo este social. Por tudo isso, a valorização do trabalho humano se impõe, pois
o homem elabora seu potencial criador através do trabalho. é uma experiência vital. Nela o homem encontra sua humanidade ao realizar tarefas essenciais à vida humana e essencialmente humanas. A criação se desdobra no trabalho porquanto este traz em si a necessidade que gera as possíveis soluções criativas.35
espera-se que esta conscientização seja mais eficazmente disseminada no seio da sociedade
brasileira, democrática, pluralista e capitalista, em busca do crescimento econômico aliado à
exigência ética de justiça social, sob a égide de uma Constituição Federal a estabelecer que a
35 nas palavras de Fayga ostrower. Criatividade e processo de criação. Petrópolis: vozes, 1987, p. 31.
82
ordem econômica deve ser fundada na valorização do trabalho humano (art. 170). sem isso,
não há como se alcançar o progresso social da nação. Portanto, impõe-se a ação conjunta do
estado e da sociedade, para fazer prevalecer o direito e o respeito à pessoa humana em
qualquer circunstância, principalmente no mundo do trabalho.
reFerÊNCiaS
ABBAgnAno, n. Dicionário de filosofia. tradução Alfredo Bosi. são Paulo: mestre Jou, 1962.
Antunes, r. Os sentidos do trabalho. 7. reimp. ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. são Paulo: Boitempo, 2005.
BonAvides, P. Do estado liberal ao estado social. são Paulo: malheiros, 2001.
CAnotilho, J. J. gomes. Direito constitucional. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2008.
delgAdo, m g. Curso de direito do trabalho. são Paulo: ltr, 2004.
gomes, s. A. Hermenêutica onstitucional: um contributo à construção do estado democrático de direito. Curitiba: Juruá, 2008.
hÄBerle, P. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. in: Dimensões da dignidade. ensaios de Filosofia do direito e direito Constitucional. obra coletiva. ingo Wolfgang sarlet (org. e tradutor com Pedro scherer de mello Aleixo). Porto Alegre: livraria do Advogado, 2005.
hervAdA, J. A Pessoa. in: ______. Lições propedêuticas de filosofia do direito. tradução elza maria gaspartotto. são Paulo: martinsfontes, 2008.
hesse, k. A força normativa da constituição. tradução gilmar mendes. Porto Alegre: sergio Fabris, 1991.
hoBsBAWm, e. Era dos extremos: o breve século xx 1914-1991. trad. marcos santarrita, 2ª edi-ção, Companhia das letras.
kAnt, i. Fundamentação da metafísica dos costumes. segunda seção. textos selecionados por mari-lena Chauí, tradução maria Bernkopf, Paulo quintela. rubens rodrigues torres Filho. são Paulo: Abril Cultural, 1980. ( Coleção os Pensadores)
lei FundAmentAl da república Federal da Alemanha. Com um ensaio e anotações de nuno rogeiro. Coimbra editora, 1996.
ostroWer, F. Criatividade e processo de criação. Petrópolis: vozes, 1987.
Petter, J. l. Princípios constitucionais da ordem econômica: o significado e o alcance do art. 170 da Constituição Federal. são Paulo: rev. dos tribunais, 2005.
Ponto de vistA. Jornal da Associação dos magistrados da Justiça do trabalho da 3ª região, abril/maio de 2008.
Proni, m. W. economia e sociedade nos Anos de ouro. in: ______. Economia e proteção social: textos para estudo dirigido. Cláudio salvatori dedecca e marcelo Weishaupt Proni (orgs.). Campi-nas: unicamp. ie/ Brasília, dF: ministério do trabalho e emprego; unitrabalho, 2006.
rAmAlho, J. r.; sAntAnA, m. A. trabalhadores, sindicatos e a nova questão social. in:_____. (orgs.) Além da fábrica. são Paulo: Boitempo, 2003.
83
reAle, m. Introdução à filosofia. são Paulo: saraiva, 1988.
sArlet, i. W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: livraria do Advogado, 2001.
sChWArtzmn, s. As causas da pobreza. rio de Janeiro: Fgv, 2004.
silvA J. A. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. Revista de Direito Administrativo, vol. 212, 1998.
toledo, g. A. O direito constitucional econômico e sua eficácia. rio de Janeiro/são Paulo: reno-var, 2004.
84
85
A CriSE FiNANCEirA muNDiAL, o ESTADo E A DEmoCrACiA ECoNÔmiCA
Gabriel real FerrerPaulo Márcio Cruz
enquanto este artigo é escrito, o mundo do capitalismo globalizado é sacudido pela maior
crise financeira da história, fato que merece uma profunda reflexão. é, provavelmente, mais
uma comprovação dos riscos apontados por ulrich Beck1. Como o espaço público transnacio-
nal ainda está em fase de construção teórica, as nações assistem perplexas à derrocada do grande
cassino global montado pelos estados unidos. os países da europa, que se esbaldaram jogan-
do nesse cassino, afundam junto com a pretensa credibilidade e solidez do sistema financeiro
norte-americano.
os estados unidos e o mundo certamente sairão diferentes dessa crise, até em termos
ideológicos, e adotarão mecanismos mais rígidos de controle financeiro. não obstante, essas
necessárias transformações provavelmente não abordarão de maneira consistente o problema
caso se limitem a incorporar mecanismos que pretendam dotar, de maior segurança, o sistema
e seus operadores, esquecendo, que em sua raiz, se encontra um modo de entender as relações
econômicas, baseadas exclusivamente no interesse individual, que alimenta um desaforado afã
de lucro e ignora totalmente o interesse da maioria.2
Ainda que o “tsunami” financeiro , de modo imediato, haja afetado diretamente um bom
número de operadores econômicos que basearam sua atividade e expectativas de benefício em
movimentos especulativos, é certo que tal “onda” está atingindo setores essenciais da economia
real, o que alterou de maneira muito negativa o modo de vida e a possibilidade de desenvolvi-
mento pessoal e social de centenas de milhões de pessoas no planeta. entre outros efeitos, a cri-
1 especialmente na obra La sociedad del riesgo global: amor, violencia y guerra, cuja citação completa encontra-se na bibliografía deste artigo.2 sobre o interesse da maioria, ver o artigo sobre o princípio republicano – about the republican principle, de Paulo márcio Cruz, publicado em: http://vlex.com/vid/principio-about-the-principle-45092232.
capítulo 5
86
se financeira pode implicar 20 milhões de pessoas desempregadas em todo o mundo até o final
de 2009, conforme afirmou o diretor geral da oit (organização internacional do trabalho),
Juan somavía, em uma entrevista coletiva à imprensa.
segundo as estimativas da oit apresentadas por somavía, o número de desempregados
poderá subir de 190 milhões em 2007 para 210 milhões no final de 2009 e, inclusive, ser maior
se a crise se agravar3. não há, portanto, como não se discutir com profundidade teórica essa cri-
se, especialmente no âmbito do direito e da teoria do estado e, em geral, do direito Público,
pois essa é a única perspectiva que permitirá que os interesses gerais estejam presentes na nova
ordem que é preciso construir.
o mundo acadêmico foi incapaz de prever essa crise e deve, ao menos, discuti-la na
medida de sua gravidade. Ainda que seja uma ideia que aparece de modo recorrente quando
se discutem problemas globais4, nunca esteve tão evidente a necessidade de se criar um espaço
regulatório transnacional, o que compete mais especificamente à problemática em discussão,
um estado que submeta o capital ao interesse da maioria dos habitantes do planeta.
A fim de lançar luz sobre esse impasse, a possibilidade de republicanização da globaliza-
ção5 deve ser, sem dúvidas, uma questão central do grande debate que se avizinha e, portanto,
um ótimo começo de discussão. mas é o papel da democracia o assunto que melhor representa
as consequências possíveis para essa crise que transformou as bolsas de valores em pesadelos
diários para as instituições financeiras e para boa parte dos habitantes do planeta.
Assim, as principais perguntas às quais se quer ajudar a responder com o presente artigo
são: Como será e que papel terá a democracia econômica no século XXi6, já que esta é uma
das formas teóricas de Capitalismo democrático? Adianta-se que os requisitos que podem sa-
tisfazer um projeto de democratização das relações econômicas são de dois matizes: primeiro,
apresentar um “desenho global” da capacidade de persuadir aquelas pessoas que reconheçam
valor nas políticas de inovação (de identidade e de solidariedade). segundo, prever benefícios
materiais que os indivíduos possam perceber imediatamente ou calculá-los com facilidade (in-
centivos materiais e individuais).
os programas de democracia econômica podem, então, desenvolver a dupla função de
mobilizar as paixões e os interesses – os dois matizes. nesse sentido, é importante a investigação
que realiza domenico nuti7, que parte da hipótese de que as diferentes acepções de democra-
cia econômica – correção do funcionamento espontâneo do mercado através de políticas de
intervenção do Poder Público a partir da constituição de instituições regulatórias de governo
3 oit prevê 20 milhões a mais de desempregados devido à crise financeira. Folha de S. Paulo, 20/10/2008.4 em especial, cabe lembrar aqui os esforços para estabelecer uma Autoridade Ambiental mundial vinculada à organização das nações unidas.5 Cruz, P. m. Sobre o princípio republicano, p. 1-10.6 Cruz, P. m.; ChoFre sivent, J. F. Ensaio sobre a necessidade de uma teoria para a superação democrática do estado constitucional moderno. p. 41-62.7 nuti, d. m. Democrazia economica: mercato, política econômica e participazione. p.123.
87
transnacional e valorização de diferentes âmbitos de democracia microeconômica – não são
alternativas, mas sim instrumentos complementares à democracia como valor. As pesquisas
do autor italiano concluem que o processo de democracia econômica se desenvolve através de
uma pluralidade de dimensões, que vão desde o econômico, passando pelo social e chegando
ao fundamental fator ambiental.
Além de domenico nuti, outros autores apontam, de modo geral, que a democracia
econômica pode ser associada a algumas dimensões. uma delas estaria relacionada com a “su-
peração dos modelos de industrialismo”. segundo esta visão, os programas de democracia
econômica terão dificuldades para alcançarem êxito se não forem abertos à maioria dos tra-
balhadores e cidadãos. Considerando-se o modelo socialdemocrata sueco, que funciona como
uma espécie de paradigma, a democracia econômica deve ser considerada a terceira etapa no
desenvolvimento da democracia e deverá assinalar a evolução desde as democracias política e
social (que já estão razoavelmente discutidas, mas não implantadas, principalmente nos países
ditos emergentes, como o Brasil) até a democracia econômica. A questão está, pois, ligada a
todas as tentativas para ampliar e qualificar a cidadania8. é claro que um novo modelo de Po-
der Público, superados os conceitos clássicos de soberania, divisão de Poderes e democracia
representativa, constituirá um fundamental meio de cultura para os projetos de democracia
econômica.
Já a outra dimensão está vinculada com as reformas e funcionamento das relações indus-
triais. o processo, muito provavelmente, será multidisciplinar, e aqui, no caso, economistas e
administradores públicos e privados devem estar convencidos da premência da mudança, até
para a própria sobrevivência da espécie humana. na maioria dos países, existe uma crise crônica
e desorientadora dos modelos clássicos do pluralismo e do neocorporativismo. As relações em-
presariais mais eficazes são aquelas que combinam um bom grau de concentração com margens
de descentralização, de regulação rigorosa com elementos de flexibilidade. o rol de empresas
interessadas só poderá se consolidar se estiverem presentes propostas de aumento de qualidade
e a participação nos seus resultados e nas suas funções de coordenação e administração9.
Como se consegue perceber, é preciso ir fundo nas propostas de reforma dos fundamen-
tos do Capitalismo. Caso não seja controlado pela sociedade, qualquer tipo de tentativa de
desenvolvimento de modelos de Poder Público transnacional será efêmero, infrutífero. e o
único modo talvez de convencer os centros de comando capitalistas é demonstrar que o futuro
da humanidade e o do próprio capitalismo depende dessa mudança de concepção, fazendo-se
convergir democracia, lucro e interesse social transnacional para o bem comum.
8 importante destacar, nesse sentido, o esforço doutrinário no âmbito do direito Ambiental que está sendo realiza-do para conceituar e difundir a noção de “Cidadania global”.9 CArrieri, m. No hay democracia sin democracia econômica. p.21.
88
Colocar esse tipo de questão pouco tempo depois de derrubado o mundo comunista
pode soar como provocação ou um convite duvidoso à predição. mas, mesmo que ninguém
duvide que a queda do muro de Berlin tenha marcado o final de uma época, deve-se precisar
qual a época que terminou para se poder medir o verdadeiro alcance desse acontecimento e
suas repercussões.
os otimistas defendem que a época terminada começou em 1945. em nome do combate
pela democracia, havia-se derrotado hitler. e, não se pode esquecer, a derrota só se deu com a
ajuda de stalin, que cobrou uma conta bastante alta por isso: a servidão de metade da europa
ao comunismo. quarenta e cinco anos mais tarde a vitória foi completa. Parece que foi ganha
a batalha das ideias.
quem hoje recorre a lênin para questionar montesquieu? isso passou a ser coisa do pas-
sado, pois a evolução das ideias políticas havia alcançado sua última fase, e a república liberal,
herdeira do século Xviii e da filosofia ilustrada, representaria a forma mais perfeita de organi-
zação humana. A liberdade burguesa havia triunfado e se estaria perto do fim da história, se é
verdade que a história, apesar de tudo, é a batalha das ideias. Francis Fukuyama e seu The end
of history and the last man parecia ter razão10.
os pessimistas denunciaram essa interpretação, que julgaram simplista e ingênua. o pe-
ríodo que termina não começou em 1945, mas sim em 1917. o parêntesis ideológico da
revolução bolchevique estava encerrado e não se estaria assistindo ao final da história, mas sim
ao retorno das nações. nossa triunfante modernidade estaria ameaçada por um retrocesso his-
tórico. estar-se-ia obcecado pelo século XiX.
sobre o conhecimento que se tem dessa interposição de épocas, esse artigo enseja uma
hipótese muito mais ampla. o ano de 1989 não encerra uma época iniciada em 1917 ou em
1945. graças a 178911, o ano de 1989 encerra o que se institucionalizou: a era do estado Cons-
titucional moderno soberano e endógeno. A era da modernidade político-jurídica caracteri-
zada pela “justificação do político”. logo, o problema passou a ser que o âmbito do “político”
transbordou inquestionavelmente dos estreitos limites do estado Constitucional moderno,
mudando radicalmente.
Assim, depois de realizada uma revisão histórica de certas alterações político-econômicas,
tornou-se inevitável verificar a obsolescência das instituições modernas e descobrir que, entre
a era em que estamos entrando e as construções da era das luzes há mais diferenças do que
entre essa e a era patrimonial que a havia precedido. todavia, ainda será muito difícil admitir o
10 FukuyAmA, F. The end of history and the last man. p.146.11 A situação social era grave e o nível de insatisfação popular tão grande que o povo francês foi às ruas com o objetivo de tomar o poder e arrancar do governo a monarquia comandada pelo rei luis Xvi. A revolução Francesa foi o mais importante marco da era moderna. significou o fim do sistema absolutista e dos privilégios da nobreza. A Pós-modernidade significará o fim dos privilégios dos beneficiários dessa mesma revolução e deverá ser levada a efeito, espera-se, por métodos muito mais avançados e civilizados.
89
esgotamento do estado Constitucional moderno, assim como será difícil abandonar o barco à
deriva e seminaufragado12. o desafio se coloca porque não se conheceu mais nada diferente das
categorias democracia representativa, liberdade, igualdade e Política, as quais ainda definem
os horizontes do pensamento. Por outro lado, já não há segurança em conhecer significados de
categorias a que se adere mais por um “ato reflexo” que por uma reflexão, propriamente dita.
Como escreve Ferrajoli13 vive-se hoje – e todos devem estar conscientes disso – uma crise
histórica não menos radical do que a que aconteceu com as revoluções burguesas do século
Xvii. A potência destrutiva das armas nucleares, as agressões cada vez mais catastróficas contra
o ambiente, o aumento das desigualdades sociais e a explosão dos conflitos étnicos fazem com
que o equilíbrio planetário seja cada vez mais precário e, portanto, que se torne mais difícil a
conservação da paz. e agora a crise financeira.
está-se chegando à conclusão de que os herdeiros da era das luzes são apoplécticos: as
leis se converteram em receitas, o direito em método e o estado Constitucional moderno em
meros espaços jurídicos incapazes de enfrentar os desafios transnacionais. A grande questão a
ser respondida é se isso é suficiente para assegurar o futuro da democracia. tem-se que pergun-
tar, hoje, como será a democracia sem soberania nacional. o grande edifício da era moderna
perdeu seus alicerces e flutua, livre de todas as amarras, abandonado a si mesmo, feito papel
carregado pelo vento, como escreve Ferrajoli.
Por outro lado, parece ser um erro ver com temor o fim desta era. seria um enorme erro
ver o estado Constitucional moderno como um fim em si mesmo. A organização política
herdada da idade das luzes representa só um episódio da história humana, o meio que foi
encontrado, numa certa etapa de seu desenvolvimento, para fundamentar a liberdade numa
ordem política.
no momento atual, a sociedade mundial está carente de um upgrade civilizatório. As
últimas gerações humanas são devedoras de um efetivo novo avanço do que se pode chamar
de um mundo solidário e humanizado. A modernidade caracterizou um significativo avanço,
apesar de um avanço baseado no individualismo. o mundo atual é complexo demais para seus
obsoletos paradigmas teóricos.
deve-se compreender que esta nova era não deve ser combatida – seria trabalho inútil
– e sim ser objeto de novas teorizações, que possam conduzir a humanidade ao seu episódio
seguinte, sempre com a perspectiva de uma evolução positiva14.
o ser humano, dono de inteligência e diferente dos outros animais, está no planeta, pro-
vavelmente, para provar que pode sobreviver sem estar no estado de natureza, que é possível
viver em uma organização política democrática adstrita aos paradigmas de participação, da
12 FerrAJoli, l. Derechos y garantías: la ley del más débil, p. 184.13 FerrAJoli, l. Derechos y garantías: la ley del más débil, p. 150.14 deve-se anotar que os elementos negativos também evoluem, como é o caso dos aparatos de guerra.
90
política de tolerância, da distribuição da riqueza, da utilização sustentável do meio ambiente,
da solidariedade e da diversidade e do sociatismo15, não necessariamente nessa ordem.
Para isso é preciso entender que o capitalismo “solto” e “desteorizado” formou uma tecno-
estrutura que é uma rede global que nada tem a ver com livre mercado, já que esse está baseado
em um sistema mundial assentado sobre cinco monopólios16: i - o monopólio das finanças,
baseado no padrão dólar dos estados unidos da América e nas políticas do Banco mundial e do
Fundo monetário internacional. o monopólio das finanças faz da economia financeira especu-
lativa um vírus que está destroçando – ou já destroçou – as economias produtivas, fazendo com
que os trilhões de dólares que circulam diariamente nos principais centros financeiros superem
em mais de duas vezes as reservas dos bancos centrais dos países que compõem a organização
para Cooperação e desenvolvimento econômico 17 – oCde. mesmo com o euro, é impor-
tante dizer, essa realidade permanece praticamente intacta; ii - o monopólio tecnológico, que
atua, principalmente, sobre as patentes e direitos de propriedade, atentando gravemente contra
a biodiversidade das espécies. o complexo de indústrias mundiais de alimentos controla cada
vez mais as “variedades de alto rendimento” e arrasa as culturas de sementes tradicionais; iii -
o monopólio energético, que atua sobre os recursos naturais e, especialmente, sobre o petróleo,
através de sua comercialização mundial e por meio dos países intermediários. dessa maneira,
os preços do petróleo podem ser controlados e o dinheiro utilizado na sua compra recuperado
via mercado financeiro para investimentos nos países ricos; iv - o monopólio da comunicação,
que faz com que, cada vez mais, a realidade seja virtual e manipulável, já que, através dos meios
de informação, podem convencer a todos de que a verdade é a verdade que lhes convém; v - o
monopólio militar, que, como foi demonstrado nas guerras do golfo e na invasão do iraque,
tem relação intrínseca com os monopólios citados anteriormente, formando uma estrutura
integrada. Por estes conflitos, pode-se exemplificar tanto a capacidade de violência física como
sua relação com os monopólios de recursos naturais, comunicativos, tecnológicos e financeiros,
e suas lógicas relações internas.
Caso não se possa, teórica e praticamente, ajustar o Poder Público de modo que ele possa
atuar para impedir que essa tecno-estrutura mundial concentre riqueza e ameace a própria vida
15 sociatismo é o termo utilizado por alguns autores para designar uma nova opção ideológica, que é, ao mesmo tempo, democrática, solidária, tolerante, distributiva, inclusiva e ecológica. Aparece nesse artigo como mera dispo-sição de informação.16 Amin, s. El 50º aniversário de Bretton Woods. p. 108.17 A organização para Cooperação e desenvolvimento econômico – oCde é um órgão internacional e inter-governamental que reúne os países mais industrializados. Por meio da oCde, os representantes se reúnem para trocar informações e alinhar políticas com o objetivo de potencializar seu crescimento econômico e colaborar com o desenvolvimento de todos os demais países membros. A oCde não constitui foro de negociação político-diplo-mática, mas sua atuação no aspecto normativo vem adquirindo importância crescente. esse fato é particularmente significativo, pois a oCde representa, por meio de membros, cerca de 65% do PiB mundial. soma-se a isso a agilidade decisória da organização, para concluir-se que tal foro se credencia como um dos focos privilegiados para a tomada de decisões relativas à economia mundial, em seus mais diversos aspectos.
91
no planeta, o futuro estará ameaçado. Como aponta tomas villasante18, a “internalização” do
Poder Público da modernidade provavelmente cederá passo ao processo de transnacionalização
do Poder Público. Caso contrário, a debilidade do estado Constitucional moderno poderá
conduzir a civilização a perigosas posições de confronto e autodestruição.19
está-se vivendo uma acelerada etapa de transição para novas formas de organização, em
escala planetária. é importante ter-se consciência de que, na configuração da nova ordem mun-
dial, a democracia deverá desempenhar um papel mais importante que o estado Constitucio-
nal moderno, mesmo que, algumas vezes, pareça ser o contrário.
esse novo papel prevê que a globalização do mercado e das tecnologias da informação
deve estar acompanhada de uma globalização política e social, na qual os valores democráticos
tenham um claro protagonismo. essa é a única via, se a intenção é tratar de uma globalização
que beneficie a todos e que não seja meramente quantitativa, mas principalmente qualitativa.
uma globalização que seja assumida como uma nova maneira de estar no mundo e que impli-
que, portanto, um novo estilo de vida. um estilo para todos, com comunhão de civilizações e
não o choque delas, como explica samuel huntington.20
A globalização só terá sentido e será verdadeiramente universal se for capaz de estruturar
e criar um conjunto de relações de um novo tipo. um mundo globalizado pressupõe novas
relações de interdependência, novas necessidades e, por que não, novos problemas. Pressupõe,
ainda, novos sujeitos capazes de fazer frente aos desafios globais. A reconstrução da sociedade
pós estado Constitucional moderno passa pela reabilitação do político, do social e do cultural
contra a hegemonia da razão econômica21. isso implica uma redefinição ou, mais exatamente,
um redescobrimento do bem comum, de um saber viver juntos e de um novo sentido para a
aventura de viver.
é possível que haja o entendimento de que isso seja uma utopia. também não se está pen-
sando que tratar de um assunto com essa capacidade para gerar polêmica será fácil. mas o que é
certo é que não se pode continuar por mais tempo nessa “racionalidade irracional” em que está
mergulhado o mundo atual. está-se diante de uma singular oportunidade histórica: configurar
um Poder Público que possa ser aplicado ao local, ao regional e ao mundial, que seja sensível
ao ser humano e propenso a incluir todas as pessoas a um mínimo de bem-estar.
urge perceber que a ausência do político está permitindo que as grandes corporações
multinacionais levem a cabo, na prática, uma autêntica tomada do poder, um verdadeiro con-
trole do mundo à margem da política. sob o véu de uma pretensa racionalidade econômica
e por trás de uma aparência formal de apoliticidade, está-se desenvolvendo, na prática, com
18 villAsAnte, t. r. Las democracias participativas. p. 273.19 sobre isso ver Cruz, Paulo marcio e Bodnar, zenildo Bodnar. transnacionalidade e a emergência do estado e do direito transnacionais Revista Eletrônica do CEJUR, vol. 1, n. 4 2009.20 huntington, s.P. Choque de civilizaciones. p. 34.21 Jáuregui, g. La democracia planetária, p. 45.
92
extraordinária força, um novo tipo de política, que pode ser qualificada como “parapolítica”.
essa atividade “parapolítica”, gerada a partir dos centros financeiros, está permitindo que as
corporações globais ocupem os centros materiais vitais da sociedade, de forma imperceptível,
sem revolução, sem mudanças na lei nem nas constituições, através do simples desenvolvimen-
to da vida cotidiana. Por consequência, os cidadãos estão sendo jogados a um mundo de redes
anônimas, no qual as empresas multinacionais se transformam no modelo de conduta.
A nova utopia prevê, por outro lado, a existência de uma integração entre o mercado da
informação e o da comunicação, graças às redes eletrônicas e de satélites, sem fronteiras, fun-
cionando em tempo real e de forma permanente.
Assim, a globalização pode ajudar em três sentidos: tornadoevidente a interdependência;
despertando o pluralismo da diversidade e ampliando a várias camadas da população mundial a
sensação de pertencer a uma realidade transnacional e, também, transestatal, capaz de despertar
os vínculos de solidariedade imprescindíveis para a emergência de uma sociedade global, algo a
que a humanidade nunca assistiu22.
a(S) deMoCraCia(S)
o sistema mundial atual é um produto do capitalismo industrial transnacional que in-
tegra em si tanto setores pré-industriais, como setores pós-industriais. então, a utopia de uma
sociedade mais justa e de uma vida melhor somente poderá prosperar com a inserção dos
princípios democráticos nas práticas capitalistas; uma ideia que, sendo utopia, é tão necessária
quanto o próprio capitalismo.23
em que pese o desaparecimento das fronteiras que separavam os sistemas políticos em
função de sua adesão a modelos econômicos antagônicos, continua tendo uma elevada dose de
atualidade o problema da relação entre democracia e economia de mercado. o problema está
na possível incompatibilidade entre a “autodeterminação do estado” – como reflexo teórico,
por sua vez, da vontade da maioria popular soberana – e o poder financeiro e econômico das
grandes corporações empresariais. essa dialética ganha maior intensidade se considerado esse
muito conhecido fenômeno denominado globalização, que vem confirmar a subordinação do
estado Constitucional moderno às decisões adotadas nos circuitos econômicos que formam
as grandes multinacionais e os mercados financeiros, nos quais o protagonismo está a cargo de
instituições bancárias com um considerável nível de independência com relação aos ambientes
democráticos.
22 efetivamente, a solidariedade, no sentido de vínculo social, é um requisito imprescindível para a conformação de um espaço público transnacional, já que “a solidariedade é a ação dispersa em ação coletiva, o privado em público”, como se expressa gabriel real Ferrer, no artigo A solidariedade no direito administrativo, publicado na Revista de Administração Pública (rAP), nº. 161, em 2003, p. 123 à 179.23 sAntos, B. s. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. p. 277.
93
essa realidade está na pauta da doutrina mais avançada, que entende serem necessários
esforços para democratizar o capitalismo e torná-lo solidário, superando a ideia de acumulação
individual, ou de grupos, em detrimento do conjunto da sociedade global.
repensar a democracia neste momento histórico significa fazê-lo a partir de um pluralis-
mo que possui duas vertentes: a pluralidade de atores que disputarão a governabilidade mun-
dial e que romperão o paradigma da endogenia estatal moderna, e a pluralidade de culturas
que exigem que a liberdade seja vivida a serviço da inclusão social e que a igualdade seja vivida
a serviço da diferença. isto implica, claramente, ir muito mais além do modelo de democracia
representativo liberal.
A teoria da democracia não tem que ser necessariamente reinventada, mas, certamente,
tem de se reorientar. o termo “repensar” deve ser entendido como um intento para captar e
centrar os novos problemas de uma história que virou uma página e que volta a começar. trata-
se de algo diferente do fim da história. Ao contrário do que sustenta Fukuyama, está-se diante
de um futuro denso de incógnitas e seguramente muito distinto do presente que se conhece.
Para tanto, será necessária uma boa dose de valentia e esperança diante de um futuro que, em
boa medida, estará nas mãos daqueles que se proponham a teorizar um novo Poder Público,
para depois do estado Constitucional moderno.
seja como for, e seja qual for o “cimento” das vidas em comunidades políticas comuns
– língua, costume, cultura, religião ou, até, etnia – o mundo do século XXi já não crê na legi-
timidade que não seja verdadeiramente democrática.
hoje, embora sua gravidade não seja totalmente reconhecida, está-se presenciando uma cri-
se profunda não desse ou daquele setor, mas do próprio modelo de civilização da modernidade.
é importante destacar que as premissas básicas dos revisionistas democráticos falharam:
a elite não defende valores democráticos, mas antes instituições oligárquicas; mais frequente-
mente do que o seu apoio às elites autoritárias, os movimentos de massa defendem direitos
democráticos e mudanças que contrariam os interesses das elites (direitos civis, femininos,
ecologia, trabalho). James Petras24 assinala, a propósito, que sociedades complexas são mais di-
ficilmente compreendidas por elites que defendem conjuntos estreitos de interesses privados.
Assim, é importante destacar que, para a democracia funcionar no ambiente atual, é
preciso rever mentalidades e atitudes e não métodos ou procedimentos. Como escreve Arnaldo
miglino25, a democracia não pode ser apenas uma forma de se proceder. ela é, acima de tudo,
um valor que pressupõe a aplicação de outros princípios, como o da liberdade de expressão e
opinião, o da liberdade de obtenção de informação imparcial e correta e o da publicidade dos
fatos que se referem à esfera pública. Considerando-se que um dos momentos fundamentais
da democracia é a escolha dos governantes, seria impossível, de maneira eficaz, que o povo
24 PetrAs, J. Neoliberalismo: América latina, estados unidos e europa. p. 359. 25 miglino, A. Democracia não é apenas procedimento. p. 20.
94
pudesse fazer uma escolha do gênero sem gozar da liberdade intelectual e sem poder dispor de
informações sobre a realidade.
A categoria “democracia” não é utilizada aqui no sentido da teoria sistêmica, na esteira do
que pensa Friedrich muller26, mas no do direito Público e da teoria do estado. diz respeito,
portanto, a todas as normas, estruturas, objetivos e valores essenciais de um estado – ou de um
espaço público transnacional, que se possa denominar “democrático”. também se esclarece
que a categoria “exclusão social”27 não diz apenas respeito à pobreza ou marginalização, mas à
conhecida e fatal “reação em cadeia da exclusão”, que se materializa pela exclusão econômico-
financeira e até pela exclusão jurídica (negação da proteção jurídica e dos direitos humanos
etc.), passando pela exclusão social, cultural e política. são valores que, ao contrário, impedem
que um estado possa ser denominado de democrático.
A democracia não está livre do perigo da destruição, da autodestruição. isso porque
a democracia encontra-se, paradoxalmente, em contradição com a necessidade desse sen-
timento de pertencer à comunidade. A democracia representativa moderna é um sistema
frio. está constituída por princípios, regras e instituições. mas sua existência depende do
esforço e do engajamento do cidadão. Assim, o inimigo mortal que ameaça a democracia
é a indiferença e a passividade do cidadão, a impotência dos indivíduos diante do universo
kafkaniano do poder transverso do estado Constitucional moderno e do poder insensível do
mercado e da economia.
Percebe-se que, nesse contexto complexo, há quem trate de buscar diagnósticos mais ou
menos definitivos e soluções de emergência, que operam, não raro, a partir da simplificação
arbitrária do complexo. sempre surgem comentaristas e interessados que, dispostos a ignorar a
magnitude e o alcance de muitos dos problemas, encontram fáceis receitas milagrosas ou fór-
mulas salvadoras capazes de regenerar o edifício da democracia representativa.
sendo assim, para evitar o erro de simplificar arbitrariamente o complexo, sem cair na ar-
madilha de complicar arbitrariamente o simples, o que se tem procurado fazer, por meio deste
artigo, é analisar o impacto de todo esse conjunto de transformações históricas sobre o modelo
de representação política e sobre o modelo do próprio estado Constitucional moderno, tendo
como hipóteses a insuficiência de ambos os figurinos políticos.
o longo período de estabilidade vivido no pós segunda guerra mundial começou a ver-se
afetado a partir da década de 1980, por um discurso mais ou menos difuso de “mal-estar civil”,
pelo qual, de maneira ambígua, foram projetados diversos tipos de argumentos críticos contra
o sistema representativo vigente: desde um certo sentido de “apoliticismo” difuso, conectado
com o apogeu da sociedade Civil, de um “regeneracionismo” mecanicista de viés utópico, de
26 muller, F. Que grau de exclusão social ainda pode ser tolerado por um sistema democrático? p. 38.27 A organização das nações unidas – onu, define a exclusão social como a “escassez crônica de oportunidades e de acesso a serviços, ao mercado de trabalho, ao crédito, a infra-estruturas e a justiças.
95
uma lógica sensação de marginalização de certas minorias ou grupos de opinião, até demandas
não concretas de um maior controle sobre a política.
Pode-se especular, então, que o grande desafio para o século XXi será a construção de uma
sociedade democrática global, respeitadora das diferentes concepções humanas, baseada na paz,
na preservação da vida, na justiça social, no acesso de todos ao bem-estar28. o objetivo será cons-
truir um modelo de organização social, política e jurídica que supere e substitua o atual modelo
de exclusão e de concentração de riquezas, denominado estado Constitucional moderno, por um
outro modelo de Poder Público, democrático, capaz de tornar realidade esses desejos. não sendo
assim, seria, então, um estado que nenhum democrata poderia mais tolerar29.
Por isso, é preciso, antes de qualquer coisa, que a comunidade científica dedicada à ciência
e à teoria do estado esteja – pelo menos boa parte dela – de acordo com a tese da necessidade de
se teorizar uma alternativa ao estado Constitucional moderno e à democracia representativa.
Antes disso, qualquer proposição será tida como devaneio e acusada de ingênua, romântica,
utópica etc.
na tentativa de rever a teoria de estado, alguns doutrinadores insistem em refundar o
marxismo e o Anarquismo, que padecem dos mesmos anacronismos que acometem o estado
Constitucional moderno e a democracia representativa. Foram, se pode dizer, reações ao es-
tado Constitucional moderno. e, assim, acabam sendo o próprio espectro antitético do estado
Constitucional moderno em uma relação dialética.
o estado, lato sensu, é importante sempre ressaltar, como Poder Público, não está em
causa. tanto é assim que, como se poderá perceber adiante, parte-se sempre da hipótese da
existência futura de uma organização destinada a exercer o Poder Público. Assim, a caracte-
rização clássica do estado, como existência de população, governo e capacidade decisória e
autônoma, e não mais soberana, estará hígida, o que nos impele a olhar. olha-se na direção
do Poder compartilhado, globalizado, com um capitalismo sociatista democrático, um estado
transnacional. estas questões levantadas são fruto de constatações científicas, que forneceu a
base para uma teoria sobre a superação do estado Constitucional moderno30.
os elementos que se podem recolher da doutrina mais avançada sugerem que é preciso ser
produzido intenso debate teórico sobre a possibilidade de superação de algumas das categorias
secularizadas da modernidade: liberalismo, socialismo, Capitalismo liberal, Welfare State, so-
cial-democracia. todas estão contaminadas pelo conjunto de teorias que idealizaram o estado
Constitucional moderno e a democracia representativa.
desse conjunto, deve-se chamar atenção para o Capitalismo liberal. ele sim é o vírus
contaminador de todo o modelo denominado estado Constitucional moderno. A crise finan-
28 PorrAs nAdAles, A. El debate sobre la crisis de la representación política. p. 12-13.29 muller, F. Que grau de exclusão social ainda pode ser tolerado por um sistema democrático? p. 16.30 Cruz, P. m.; ChoFre sirvent, J.F. Ensaio sobre a necessidade de uma teoria para a superação democrática do estado constitucional moderno. p.41-62.
96
ceira internacional, que provavelmente matará milhões de pessoas por suas consequências, não
pode ser combatida eficazmente pelos instrumentos disponíveis atualmente. A complexidade
mandarinesca do sistema financeiro internacional desorienta os setores produtivos, enquanto as
reações espasmódicas dos tomadores de decisões do governo contribuem para a sensação preva-
lente de anarquia. o sistema político, ziguezagueando erraticamente de dia para dia, complica
enormemente a luta de nossas instituições sociais básicas para a sobrevivência.
As últimas duas décadas do século XX e a primeira do século XXi vêm registrando um
estado de profunda crise mundial. é uma crise complexa, multidimensional, cujas facetas afe-
tam todos os aspectos de nossa vida – a saúde e o modo de vida, a qualidade do meio ambiente
e das relações sociais, a economia, a tecnologia e a política31. é uma crise de dimensões inte-
lectuais, morais e espirituais. uma crise de escala e premência sem precedentes na história da
humanidade. Pela primeira vez, temos que nos defrontar com a real ameaça de extinção da raça
humana e de toda a vida no planeta.
o ecossistema global e a futura evolução da vida na terra estão correndo sério perigo
e podem muito bem resultar num desastre ecológico em grande escala, como acontece agora
com a economia global. A deterioração de nosso meio ambiente tem sido acompanhada de um
correspondente aumento nos problemas de saúde dos indivíduos32. enquanto as doenças nu-
tricionais e infecciosas são as maiores responsáveis pelas mortes no terceiro mundo, os países
industrializados são flagelados pelas doenças crônicas e degenerativas apropriadamente chama-
das de “doenças da civilização”, da civilização do estado Constitucional moderno.
é por se prever um futuro assim tão caótico que faz-se urgente o investimento em uma
proposta inovadora como a que seguirá.
a traNSNaCioNalização
o problema maior da economia e das finanças globalizadas, derivado das entranhas da
modernidade, emerge da base da sua filosofia de liberdade política: emerge do capitalismo e
do liberalismo econômico, como anota Friedrich muller33. tem-se a sensação de que se está
saindo de um ciclo político que dominou os últimos dois séculos, mas a falta de alternativa
está levando o mundo a uma crise financeira sem precedentes; e não há evidências capazes de
sugerir, ainda, quais serão os termos futuros da confrontação política34. o espaço ainda não
explorado pela política e criado pela mundialização do capitalismo demonstra a necessidade de
um locus de poder público entre os estados nacionais.
31 CAPrA, F. O ponto de mutação. p. 19.32 CAPrA, F. O ponto de mutação. p. 22. 33 muller, F. Que grau de exclusão social ainda pode ser tolerado por um sistema democrático? p. 45.34 dAhrendorF, r.; Furet, F.; geremek, B. La democracia en Europa. p. 120.
97
nesse sentido, é importante destacar a proposta do sociólogo alemão ulrich Beck35 com
relação à substituição das relações “internacionais” de conflito e/ou disputa por relações “trans-
nacionais” de solidariedade e cooperação.
o autor alemão aponta que a “globalização” põe o tema da compreensão e organização da
sociedade novamente na ordem do dia dentro do debate público, e isto com uma urgência que
não se conhecia desde o marxismo, e as disputas sobre a luta de classes.
em outras palavras, a sociedade mundial, formada a partir da “globalização” promovida
pela hegemonia capitalista consolidada a partir de 1989, remete a um “mundo novo”, uma
espécie de continente não investigado que se abre a uma terra de ninguém transnacional, a um
espaço intermediário entre o nacional e o local. Como consequência, Beck indica o surgimento
de uma faixa de ação própria das sociedades mundializadas. isso pode ser percebido na relação
dos estados nacionais com as empresas multinacionais, o que acaba vinculando um possível
futuro direito transnacional. essa previsão se justifica pela persecução da criminalidade trans-
nacional, pelas possibilidades de realização de uma política cultural transnacional, pelas possi-
bilidades de ação dos movimentos sociais transnacionais, entre outros.
o conceito de estado transnacional, trazido por Beck, é uma das alternativas possíveis
ao fenecimento do estado Constitucional moderno e à crise financeira internacional. Beck
aponta, ainda, que há uma racionalização subjacente: o estado Constitucional moderno está
não só antiquado, mas também é irrenunciável como espaço público garantidor das políticas
internas e internacionais de transição, o que o regulará “transnacionalmente” e configurará
politicamente o processo de globalização.
não há dúvidas de que hoje se está diante de uma formidável crise das bases teóricas do
estado Constitucional moderno, agravada pelo colapso das finanças globais, crise que pode
traduzir-se (ou que já se traduz) em aumento do nível de rejeição das instituições por parte
dos cidadãos36. é justo perguntar-se, já que uma possível via de saída vem indicando uma
integração entre as diversas tendências teóricas que tratam do futuro do estado no ambiente
globalizado, se as tecnologias de informação – permitindo, tecnicamente, uma associação mais
imediata dos cidadãos nas fases da proposta, da decisão e do controle – podem ajudar-nos a
propor, teoricamente, o necessário espaço público transnacional do século XXi.
Parece claro que o capitalismo globalizado vai fazer de tudo para atenuar a atual crise
financeira, sempre impondo maiores sacrifícios aos menos abastados. mas, mesmo que haja
êxito, as sequelas serão muitas e grandes. desemprego, aumento da pobreza e da miséria, inten-
sificação da concentração da riqueza, mais degradação do meio ambiente, entre outras.
os espaços públicos e, por consequência, o possível futuro espaço público transnacional
ou é de interesse de todos e pertence a todos ou não faz sentido. ou o excluído, que tem di-
35 BeCk, u. Qué es la globalización? Falacias del globalismo, respuestas a la globalización. p. 153.36 BergAlli, r.; restA, e. Soberanía: un principio que se derrumba. p. 34.
98
reitos como todos e deve ser considerado em todas as atitudes e movimentos, tem a ver com a
mundialização econômico-financeira (e, mais uma vez, com o espaço público transnacional),
ou se estará desenvolvendo um puro diletantismo, que interessará apenas às empresas multina-
cionais, descompromissadas com o equilíbrio vital do planeta. esse é o grande desafio: possibi-
litar a esses excluídos se reconhecerem e atuarem como cidadãos globalizados. que o local e o
global se complementem.
Para isso, a democracia econômica deve servir, antes de tudo, para que a sociedade evo-
lua, para que a diversidade de opções políticas e não políticas (culturais, relacionais, territoriais,
sindicais, étnicas, de idade etc.) possa se movimentar o mais livremente possível, enriquecendo
a complexidade da comunidade37. isto implica diversos mecanismos e instrumentos de valida-
ção, adaptados às peculiaridades de cada iniciativa, segundo o âmbito e o momento determi-
nado. os movimentos livres de iniciativas culturais e sociais definem melhor uma democracia
que quer avançar, sem o jogo moderno da soberania do estado Constitucional, que tende a
bloquear iniciativas discrepantes.
a deMoCratização do CaPitaliSMo Global: CoMeNtárioS FiNaiS
A democratização do capitalismo é condição fundamental para que asejam impedidos
novos desastres financeiros globais que possam corroer, ainda mais, a combalida qualidade de
vida no planeta.
A economia está destinada a produzir riquezas. A política se dedica, ainda que nem sem-
pre seja assim, à distribuição ou redistribuição destas riquezas. e são as distribuições as que
podem ser declaradas de direita ou de esquerda. mas, em todo caso, a política pode distribuir
riqueza somente se a economia a produz. se a economia não funciona, a política já não tem
nada que redistribuir e acaba por distribuir pobreza. A autonomia e prioridade da produção da
riqueza sobre a distribuição, são procedimentais. Pode-se, muito bem, dizer que a distribuição
é mais importante que a geração da riqueza. mas a prioridade procedimental continua sendo
a mesma. Caso não haja o que comer, só se pode dividir a fome. e essa não é uma opção inte-
ressante.
Assim, considerado o procedimento lógico descrito acima, concebido por giovanni sar-
tori38, o que resta é a democratização do capitalismo, ou seja, que a comunidade possa participar
da decisão do que e como será produzido, e do como e onde será distribuído, principalmente
pelo acesso ao crédito, através de políticas publicas distributivas e através de um sistema tribu-
tário transnacional, cujo conceito e caracterização serão objeto de artigo científico futuro.
37 villAsAnte, t. r. Las democracias participativas. p. 136. 38 sArtori, g. La democracia depues del comunismo. p. 98.
99
em princípio, uma economia de mercado é compatível com qualquer sistema político que
conceda liberdade ao mercado. Portanto, teoricamente, mercado e ditadura podem acoplar-se,
como já se observou durante as ditaduras sul-americanas das décadas de 1970 e 1980. mas está
claro que a realidade hoje é outra39. não há como escapar do “contágio democrático”, o que
torna, na atualidade, praticamente impossível aquele acoplamento. A vitória da democracia
como princípio de legitimidade permite prever que o êxito do mercado se converterá, cada vez
mais, numa demanda da democracia. Com a condição, bem entendido, de que o mercado
tenha êxito e de que verdadeiramente produza Bem-estar.
As democracias representativas atuais estão carentes de uma estrutura ética concebida a
partir de valores democráticos conectados com as necessidades da sociedade globalizada. os
valores que foram impostos são os valores do mercado, enquanto que o modelo de conduta é
o das estratégias empresariais que se movem pelo lucro, deixando de lado outros padrões éti-
cos e de valores totalmente indispensáveis para a convivência, como são os da gratuidade e da
generosidade40. Assim, a única política possível parece ser a da lógica que o sistema econômico
proporciona. esta colonização da vida pública pela economia fez com que os estatutos de de-
fesa do consumidor (e sua lógica) fossem se afirmando sobre os direitos de cidadania, supondo
a mercantilização da vida política, que fica eclipsada. deve-se recordar, nesse sentido, que o
mercado, mesmo com a pretensão descabida de ser um dos paradigmas da liberdade, produz
desigualdade e não ajuda a configurar o exercício responsável da liberdade. isso ocorre porque
o mercado, ao proporcionar modelos de discussão privados em lugar de públicos, impede as
pessoas de falarem como cidadãs sobre as consequências de nossas ações em comum.
o conceito de “bem comum” passou para a história. hoje prevalecem os interesses parti-
culares, parciais, o que tem muito a ver com a progressiva tendência de se estruturar o sistema
de representação de interesses através de organizações especializadas ou competências estrutura-
das em torno de critérios setoriais41. isto, junto à própria incapacidade transnacional intrínseca
da máquina estatal, vem ajudando a debilitar a capacidade de resposta do estado Constitucio-
nal moderno ante a cidadania.
Alguns recentes e importantes debates, estão acontecendo principalmente no plano aca-
dêmico com a participação de teóricos do pós-liberalismo, como robert dahl42, que em seu
livro La democracia y sus críticos, reclama uma “terceira transformação” na democracia, ou seja,
o desenvolvimento de uma “democracia avançada”, capaz de levar os métodos e procedimen-
tos da democracia à esfera econômica.
Caso isso não seja providenciado, a magnitude das dificuldades econômicas que afetam, na
atualidade, tantos países, terá inevitáveis consequências políticas. haverá um agudizamento dos
39 sArtori, g. La democracia depues del comunismo. p. 25.40 oller i sAlA, m. d. Un futuro para la democracia: una democracia para la gobernabilidad mundial. p. 18. 41 oller i sAlA, m. d. Un futuro para la democracia: una democracia para la gobernabilidad mundial. p.18.42 dAhl, r. A. Despues de la revolución. p.13.
100
antagonismos sociais de todo tipo, intensificando a luta pelo bem-estar econômico e fazendo mais
insuportável o custo da derrota. haverá esímulo da migração econômica43, o que, por sua vez,
poderá suscitar, nos países mais desenvolvidos, a hostilidade contra os imigrantes e a exigência de
que o estado se converta numa fortaleza44. Como se vê, a depressão econômica torna muito mais
difícil a consecução do ideal de igualdade cidadã e provoca uma perda de confiança na capacidade
dos governos democráticos para solucionar problemas sociais45. os sistemas democráticos mais
robustos podem, talvez, resistir a estes choques, enquanto que as democracias mais recentes, que
necessitem de panorama mais favorável para consolidar-se, podem sofrer danos irreparáveis.
não deverá ser surpresa, portanto, se, em futuro próximo, for discutida a criação de es-
paços públicos entre os estados e que aqueles perpassem esses, a fim de regular e democratizar
os mercados, tornando-os distribuidores de riquezas. em tal sentido, a criação de novas insti-
tuições transnacionais mundiais democráticas – capazes de regular e controlar com efetividade
a atividade econômica e financeira dos mercados – deverá contribuir para ajustar a padrões
humanitários esse grande cassino em que se converteu o atual mercado financeiro.
As desigualdades em todo o mundo chegaram a proporções sem precedentes. somente
vinte por cento da humanidade usufrui as riquezas, enquanto oitenta por cento vive em con-
dições muito precárias.
Para se alcançar um mínimo de justiça social é preciso, portanto, que se teorizem – e em
seguida se apliquem – instrumentos de governança transnacional sobre a produção global e
sobre o sistema financeiro transnacionalizado, sendo esse um primeiro passo necessário para
uma redistribuição radical de riqueza e poder. e é importante anotar que só a redistribuição
da riqueza não seria suficiente. seria preciso considerar a adoção de novas relações de classe e
propriedade, fora e além daquelas teorizadas pela modernidade. o local e as relações de pro-
priedade têm implicações globais. redes de interdependência ligam o local ao global.
reFerÊNCiaS
Amin, s. El 50 aniversário de Bretton Woods. madrid: Alfoz, 1994.
BeCk, u. Qué es la globalización? Falacias del globalismo, respuestas a la globalización. Barcelona: Paidós, 2004.
______. La sociedad del riesgo global: amor, violencia y guerra. 2 ed. madrid : siglo XXi, 2006.
BeethAn, d.; Boyle, k. Cuestiones sobre la democracia. madrid: Catarta, 1996.
43 A união europeia é, atualmente, a região do planeta com maior fluxo migratório, o que está produzindo diver-gências entre os países membros na discussão desse problema. recentemente, o o Conselho de Justiça e Assuntos do interior de 25 de setembro de 2008 aprovou o Pacto europeu sobre imigração e Asilo, que tende a reforçar os controles sobre a mesma. não se deve esquecer que boa parte do progresso dos países mais adiantados foi possível graças à imigração. em todo caso, o século XXi se caracterizará pelos fluxos migratórios. 44 Jáuregui, g. La democracia planetária. p.38.45 BeethAn, d.; Boyle, k. Cuestiones sobre la democracia. p.115.
101
BergAlli, r.; restA, e. Soberanía: un principio que se derrumba. Barcelona: ediciones Paidós, 1996.
BoBBio, n. O futuro da democracia. lisboa: Fundação Calouste gulbenkian, 1995.
CAPrA, F. O ponto de mutação. são Paulo: Cultrix, 1982.
CArrieri, m. No hay democracia sin democracia econômica. madrid: ediciones hoAC, 1998.
CArvAlho netto, m. Constituição e justiça. 2003. in: Coutinho, J. n. m. (org.). Ca-notilho e a constituição dirigente. rio de Janeiro: renovAr.
Cruz, P. m.; ChoFre sirvent, J. F. ensaio sobre a necessidade de uma teoria para a superação democrática do estado constitucional moderno. Novos Estudos Jurídicos, itajaí: v. 11, 2006.
Cruz, P. m. sobre o princípio republicano – about the republican principle. v. 63. Barcelona: revista de derecho vlex, novembro de 2008. (http://vlex.com/vid/principio-about-the-principle-45092232).Cruz, P. m.; BodnAr, z. B. transnacionalidade e a emergência do estado e do direito trans-nacionais Revista Eletrônica do CEJUR, vol. 1, n. 4, 2009.
dAhl, r. A. Después de la revolución. tradução maria Florência Ferre. Barcelona: gedisA, 1994.
dAhrendorF, r.; Furet, F. ; geremek, B. La democracia en Europa. madrid: Alianza editorial, 1992.
Feliz tezAnos, J. et al. La democracia post-liberal. madrid: editorial sistema, 1996.
FerrAJoli, l. Derechos y garantías: la ley del más débil. madrid, trotta, 1999.
FukuyAmA, F. The end of history and the last man. los Angeles, simon & schuster, 2005.
hABermAs, J. Más allá del estado nacional. Ciudad de méxico: Fondo de Cultura económica, 1998.
huntington, s. P. Choque de civilizaciones? madrid: tecnos, 2003.
Jáuregui, g. La democracia planetária. oviedo: ediciones nobel, 2000.
miglino, A. Democracia não é apenas procedimento. Curitiba: Juruá, 2006.
muller, F. Que grau de exclusão social ainda pode ser tolerado por um sistema democrático? Porto Alegre: unidade editorial, 2000.
nuti, d. m. Democrazia econômica: mercato, politica economica e participazione. roma: Ceste, 1991
oller i sAlA, m. d. Un futuro para la democracia: una democracia para la gobernabilidad mun-dial. Barcelona: Cristianisme i Justícia, 2002.
PetrAs, J. Neoliberalismo: América latina, estados unidos e europa. Blumenau: editora da FurB, 1999.
PorrAs nAdAles, A. El debate sobre la crisis de la representación política. madrid: tecnos, 1996.
sAntos, B. s. A escala do despotismo. Coimbra: revista visão. 2006.
______. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. são Paulo: Cortez, 1995.
sArtori, g. La democracia despues del comunismo. madrid: Alianza, 1993.
villAsAnte, t. r. Las democracias participativas. madrid: ediciones hoAC, 2003.
102
103
SoCiEDADE PLurAL E FiNANÇAS PÚBLiCAS:NoVoS CoNTEXToS, NoVoS DESAFioS
João ricardo Catarino
As alterações profundas verificadas nos últimos decênios em todos os campos da vida
social têm tido um impacto da maior monta na estruturação e nas tendências das finanças
públicas modernas.
não é possível, num texto desta dimensão, dar conta, em termos gerais e abrangentes, das
questões mais significativas e do impacto que tais desafios vêm tendo nas nossas vidas coletivas.
Por isso, não se trata aqui de esgotar cada eixo ou tema mais relevante, mas de apresentar os as-
petos mais críticos ou essenciais dessa evolução, quais as questões que ganharão relevo e quais as
que mais impacto terão nas finanças públicas dos dias à frente, em ordem a suscitar o debate e a
interrogação.
oS NovoS CoNtextoS daS FiNaNçaS PúbliCaS
O LUGAR E O PAPEL DO ESTADO NUMA SOCIEDADE PLURAL EM AMBIENTE ABERTO
um dos contextos mais importantes das finanças públicas dos nossos dias passa pela
(re)definição do papel do estado na sociedade global. Persiste a forte dicotomia entre os que
defendem mais estado, no sentido de maiores níveis de intervenção pública, e os que tendem a
eleger a melhoria da regulação pública, abrindo todavia mais espaço para a atividade privada.
de um lado, temos os que defendem uma evolução na continuidade com melhoria dos
procedimentos e controlos sobre a atividade pública; outro, os que apostam em defender uma
revisão mais profunda do papel do estado na sociedade global, com devolução à sociedade de
todos os bens e serviços cuja natureza não imponha a intervenção pública.
capítulo 6
104
entre uns e outros vai florescendo um clima propício ao clientelismo e ao enviesamento
ideológico, que condiciona a maneira como os problemas públicos são formulados e resolvidos,
contribuindo para perpetuar o controlo das agendas políticas e mediáticas.
A arrastada crise de fundo, intercalada por períodos de crescimento em certas zonas do
mundo, não esconde um mal-estar geral e uma instabilidade de fundo que nos assola. sobretu-
do na economia portuguesa deparamo-nos com a estagnação e o empobrecimento real.
de modo que, muito objetivamente, para alguns existem duas opções em matéria finan-
ceira: ou se corta nos gastos públicos e se aumentam os índices de poupança de modo a gerar
os fundamentos para um crescimento económico sustentado, ou então insistimos nas receitas
keynesianas habituais de elevar a despesa pública na mira de uma boa reprodutividade final,
desenvolvendo políticas anti cíclicas visando alcançar um grande efeito multiplicador a partir
desses investimentos públicos.1
na verdade, importa reconhecê-lo, a opção mais comum – e até, paradoxalmente, a única
que os cidadãos parecem compreender – é a do aumento dos gastos públicos como forma de
compensar a retração do consumo e do investimento privado. Aceitam-no sem aparentemente
compreender que, ao reclamar mais políticas públicas, aqui e ali, estão na verdade reclamando
mais impostos.
A carga fiscal está entre nós extraordinariamente mal distribuída. ela incide, no caso do
imposto sobre o rendimento, em larga medida sobre os trabalhadores por conta de outrem;
tais aumentos refletem-se em agravamentos que são tendencialmente suportados pelo mesmo
grupo de contribuinte. este conformismo de soluções é comum a todas as sensibilidades, ainda
que com fundamentos diferentes.
A solução que nos é apresentada é a mesma há quase um século. em face das crises defen-
dem-se as políticas que muitas vezes são responsáveis por essa mesma crise: aumento do peso
do estado e promoção de um quadro legal em que este desconsidera a sua função reguladora e
entra abertamente no condicionamento e no jogo económico como medida de política geral.
A questão é muitas vezes colocada num plano onde se confrontam as ideias de neolibera-
lismo com o modelo e o papel das finanças públicas neste quadro evolutivo. todavia, a nosso
ver, não deixamos de reconhecer a importância de discorrer sobre dois termos frequentemente
mal densificados: democracia e liberalismo. efetivamente, eles são coisas diferentes.
A democracia responde essencialmente à questão de saber quem deve exercer o poder
político, isto é, que sujeito deve ser considerado legítimo para o efeito. Já porém o liberalismo
responde a coisa diferente: saber quais são os limites do sujeito ou do poder político legitimado
pelo voto popular. o facto é que nenhum dos conceitos exclui o outro.
1 veja-se, a propósito, a lúcida reflexão de Antonio sousa lara, O interesse nacional, a política externa portuguesa e as ideologias, dislivro, 2009, sobretudo a p. 77 e ss.
105
A regra de ouro da democracia é o voto, responsável e soberano do povo. todavia, o sis-
tema de maioria, se funciona bem na escolha de quem governa, não deve alargar-se a aspetos
da vida coletiva onde essa realidade seja estranha, para além “da substituição pacífica de um
governo por outro”, como o lembra oportunamente José manuel moreira.2
daí, a maioria reduz a ideia de liberalismo ao campo económico ou ao neoliberalismo,
visto este como a doutrina segundo a qual o estado não deve intervir na economia. esta é,
porém, uma perspetiva redutora.
A nosso ver o neoliberalismo é mais do que isso, situando-se no campo das garantias con-
tra as arbitrariedades do governo. daí, falar das tendências de evolução das finanças públicas
é equacionar o papel dos governos, das elites e das ideias que os nossos modelos sociais vêm
pondo em prática há quase um século, sem questionar.
e, na verdade, uma análise honesta não pode deixar de se confrontar com questões como
estas. será que o intervencionismo dos governos tem realmente produzido elevados níveis de
bem-estar para todos, incluindo os mais desfavorecidos? têm diminuído as desigualdades eco-
nómicas e sociais, ou simplesmente operado uma redistribuição do poder do indivíduo para
o estado? Aumentaram as possibilidades de acesso às estruturas do poder? o voto perdeu ou
ganhou real significado? As estruturas políticas representativas dos cidadãos atuam de modo
efetivo?
o que dizer, também, do papel dos grupos de pressão organizados e em que medida eles
realmente influenciam as decisões políticas na aplicação dos imensos recursos públicos em
favor dos seus associados? e quais, já agora, são as reais motivações das elites políticas e dos
burocratas na adoção de políticas distributivas, amplamente divulgadas como coisa adequada
ao fim anunciado, mas cujo efeito é inegavelmente marginal sobre a condição económica e
social de quem realmente precisa?3 não será tal política fiscal redistributiva, afinal, uma forma
de legitimar interesses de políticos e burocratas?
são perguntas que devem induzir à reflexão, centradas na preocupação essencial de que
necessitamos de desenvolver sistemas políticos e sociais que realizem uma muito melhor dis-
tribuição dos níveis de bem-estar. os elevados níveis de carga fiscal e de taxa de esforço fiscal,
de par com a permanente insatisfação com os níveis de provisão pública (nem sempre realistas,
diga-se em abono do estado), assim como a proliferação de políticas públicas, nem sempre har-
moniosas entre si, o gigantismo do aparelho de poder público, o crescimento da predisposição
para deixar de cumprir, aderir ou de todo o modo, anuir às políticas públicas que o requeiram,
elevam os níveis de informalidade e de desinteresse do cidadão pela “coisa pública” levando à
alienação dos verdadeiros problemas e desafios nacionais, com evidente prejuízo para todos.
2 José manueal moreira, Leais, Imparciais e Liberais. lisboa: Bnomics, 2009, 3 vejam-se os insuspeitos estudos da oCde sobre os efeitos das políticas tributárias redistributivas através dos atuais modelos de tributação do rendimento em L’impôt négatif sur le revenue, Paris, 1974; Fundamental Reform of Personal Income Tax, oeCd tax Policy studies, n.º 13, Paris, 2006.
106
há uma profunda modificação das sensibilidades sobre quais devam ser as conceções
económicas dominantes, num contexto de crise que teima em prolongar-se e onde os estados
privatizaram serviços e empresas, mas o seu peso não diminuiu. todavia, modificaram-se já as
tradicionais formas de prestação de serviços públicos, nem sempre acompanhadas por profun-
das reformas do sector público e onde, pese embora o ambiente de crise, por um lado, e a nova
realidade económica, por outro, reclama-se sobretudo, prudência sobre como evoluir.
há ainda uma confluência de sensibilidades perante a omnipresença do estado, o gigan-
tismo da despesa, a ação de grupos estruturados que reclamam para si medidas peculiares, de
exceção ou, então, decisões de investimento público que os beneficiem.
no extremo oposto, há os que não compreendem que os recursos dos estados são finitos,
que a abertura dos espaços económicos lhes retirou uma centralidade que os impede de evitar a
deslocalização das atividades das empresas e que um modelo de capitalismo sem limites preju-
dica todos. que, afinal, o problema não está totalmente nem numa nem outra dessas posturas
mas, muito provavelmente, nas derivações práticas que resultam da sua aplicação.
uns procuram resolver os problemas insistindo com maiores níveis de intervenção pú-
blica e, consequentemente, maiores níveis de tributação, ao passo que outros reclamam menos
estado, com a devolução à atividade privada de algumas esferas de ação pública, em suma de
maior liberdade individual.
mais do que efetuar escolhas radicais é necessário procurar consensos, buscar novos equi-
líbrios, tendo sobretudo em mente que a tarefa de despertar para tais questões é, já de si, muito
relevante.
NOVOS CONTEXTOS, IDêNTICAS OPçõES: MAIS ESTADO OU SOBREPESO DO ESTADO?
os problemas e desafios das finanças públicas poderão agregar-se em duas áreas distintas,
a saber: de um lado, as relativas às questões financeiras mais genéricas e, de outro, as questões
mais diretamente ligadas à (sub)área fiscal, cujo relevo autónomo é manifesto.
quanto às primeiras, há um conjunto de temas estruturantes alinhados segundo um con-
texto valorativo que tem vindo a ser equacionado nos seguintes termos. qual o papel do estado
e, consequentemente, qual o papel das finanças públicas?
não há consensos absolutos nem ideias inequívocas sobre qual deva ser o papel do es-
tado, sobretudo deste modelo de estado de bem-estar, sobre o qual se lançam, injustamente,
inúmeras invetivas. nem há consensos sobre qual espécie de estado de bem-estar devemos
desenvolver.
tais posicionamentos distintos fazem variar a medida de apoio ao modelo, pois que,
segundo um deles, o problema não está no modelo em si mesmo, mas na forma como se tem
107
conseguido efetivá-lo na prática. o outro defende uma modificação conceptual, de fundo, mais
centrada num primeira linha de responsabilidade individual para, só depois, fazer acionar a
responsabilidade coletiva.
uma e outra procuram o mesmo bem essencial, qual seja o da maximização do bem-estar
coletivo, impedindo que, sobretudo os mais carenciados, sejam deixados em patamares de infra
cidadania, nas margens do desenvolvimento social.
diversos autores têm abordado a questão, seja num contexto dito “mais liberal”, seja
num mais assente na diluição dessa realidade numa responsabilidade geral pelo semelhante,
num contexto de um maior comprometimento coletivo. no primeiro, alinham nomes como
ludwig von mises, Friedrich hayek, leonel robins, Bertand de Jouvenel, gordon tullock,
A. niskanen, Arthur seldon ou James Buchanan, entre outros.
no segundo, a perspetiva mais tradicional e teorizada por rousseau e, depois, desenvol-
vida por vários outros, incluindo keynes no campo da economia, perante a inevitabilidade
dos ciclos económicos, justificando o alargamento da intervenção do estado às mais variadas
políticas.4
Ambos buscam nos mesmos referenciais a sua base comum, extraindo embora deles ângu-
los diversos, como é o caso de tomas hobbes, samuel Pufendorf, John locke, david hume,
Adam smith, emanuel kant, thomas Paine e stuart mill, entre outros.
mais recentemente, cada uma das linhas conheceu quer desenvolvimentos específicos
com contributos transversais como o de John rawls e a substanciada busca de uma teoria de
justiça adequada a modelos sociais muito diversos e plurais, tendencialmente participados pelos
cidadãos. mas também de Amartya sen, descartando a necessidade de uma teoria de justiça
assente nas justificações de posses e mais centrada nas valências, nas qualificações pessoais e no
mercado como forma de alcançar a justiça social e a realização pessoal.5
4 Para mais desenvolvimentos veja-se hugo Consciência silvestre, Gestão Pública: modelos de prestação de serviço público. lisboa: escolar editora, 2010 e José tavares, Alguns aspectos estruturantes das finanças públicas da atuali-dade, Almedina, Coimbra, 2008.5 é interessante ver comoAmartya sendescarta a necessidade de uma teoria da justiça que estabeleça critérios sobre como distribuir bens no meio social. Para sen, sobretudo em Desigualdade Reexaminda, o problema está mal formu-lado pois nada nos diz que todas as pessoas entendam que a posse de bens seja a chave para a felicidade pessoal. Para muitos, defende, o problema deve ser posto em temos diferentes: os de dar primazia ao ensino, qualificação, cultura e desenvolvimento pessoal como forma de alcançar uma elevado padrão de bem-estar coletivo e de desenvolvimento humano, capaz de tornar as pessoas mais felizes não porque possuem muitos bens, mas porque são sobretudo in-divíduos completos que, tendo diferentes medidas de bens, têm em comum elevados índices de satisfação pessoal. o relatório da Comissão stiglitz, Amartya sen e Jean-Paul Fitoussi vem exatamente nesta direção. Ao apresentar 10 principais recomendações para melhorar a medição da qualidade de vida, e para desenvolvimento sustentável e Ambiente, dá mais ênfase às rendas e ao consumo do que à produção. Com isso, visa alcançar uma avaliação mais adequada do bem-estar material, e conferir um papel mais importante à distribuição da renda disponível. Para medir o nível de vida, o relatório propõe levar em conta atividades ou critérios que definiriam a qualidade de vida dos habitantes de um país, tais como, saúde; educação; condições de trabalho e vida (entre elas, lazer, deslocamento, atividades domésticas e condições de moradia); influência política e governança; conexões sociais; condições am-bientais; insegurança pessoal (criminalidade, acidentes, desastres naturais) e insegurança económica (desemprego, seguro de saúde, pensões).
108
o aumento da despesa pública global verificado a partir dos anos setenta, com a primeira
crise petrolífera, elevou-a para níveis incomportáveis. esta levou alguns (poucos) países a in-
fletirem fortemente na trajetória da despesa do estado, como é o caso da nova zelândia, do
Canadá ou da holanda, onde, pela via da eficiência da despesa pública, foi possível descer tais
níveis globais em percentagem do produto interno bruto, enquadrada por reformas eficazes e
silenciosas, como o testemunham os relatórios da oCde.
Por outro lado, a estrutura da despesa pública na generalidade dos países europeus, in-
cluindo Portugal, vira crescer as rubricas com as despesas sociais, impactando diretamente
sobre o futuro e a sustentabilidade deste modelo social.
naturalmente, não se questiona a necessidade de desenvolver – a aprofundar até – esses
regimes de apoio, mas num contexto de maior exigência, que seja capaz de aumentar os níveis
de segurança dos cidadãos e, ao mesmo tempo, fazer crescer a responsabilidade individual em
ordem à limitação dos fenómenos de rent seeking e à desresponsabilização pessoal. um estudo
de caso interessante é o da flexisegurança dinamarquês, por conseguir altos níveis de solidarie-
dade social com comprometimento individual.6
NovoS ModeloS de GeStão do iNtereSSe PúbliCo
As reformas estruturais do sector público estão sendo empreendidas um pouco por toda
a parte. As tendências de evolução notadas e recomendadas pela oCde recentram o modelo
de gestão dos serviços públicos no desenvolvimento de um conceito de prestação de serviços ao
invés da postura autoritária tradicional.
As novas práticas gestionárias, requerendo maior proximidade e participação do cidadão
na tomada de decisão, estão em linha com as práticas de good governance7 propugnadas pelas
instâncias internacionais e com o fomento das parcerias público-privadas, que não têm mereci-
do o adequado relevo no pensamento académico que as suas potencialidades encerram.8
neste respeito, é notória a tendência para a crescente entrega da gestão de serviços públi-
cos a entes privados, introduzindo modos de atuação típicos de uma motivação lucrativa em
fins em estruturas públicas, visando extrair o melhor das duas realidades. trata-se, afinal, de
um certo triunfalismo do contratualismo próprio do direito privado numa lógica pública, com
sujeitos tradicionalmente colocados numa posição assimétrica, mas aqui dispostos a se ajusta-
6 salientaremos, entre outros, o levantamento feito por medina Carreira, O dever da verdade. lisboa: dom quixote, 2008, e também o estudo de eduardo Paz Ferreira, em coautoria marta rebelo, o novo regime Jurídico das Par-cerias Público-Privadas em Portugal, Revista de Direito Público da Economia, n. 4, out./dez. 2003.7 veja-see João Bilhim, Ciência da administração. lisboa: universidade Aberta, 2000; Gestão estratégica de recursos humanos, lisboa: isCsP, 2004; Teoria organizacional: estruturas e pessoas, 4. ed. revista, lisboa: isCsP, 2005.8 veja-se, todavia, a investigação realizada por maria eduarda Azevedo, As parcerias público-privadas: instrumento de uma nova governação pública Coimbra: Almedina, 2009; José tavares, Ponderação de interesses na gestão pública vs. gestão privada, estudos jurídicos em homenagem ao Prof. doutor António sousa Franco, Faculdade de direito de lisboa, Coimbra editora,2006 (separata).
109
rem segundo os parâmetros próprios da igualdade, da liberdade de contratar, tal como emerge,
em especial, do artigo 406.º do Código Civil.
no âmbito das medidas preconizadas pelo PrACe – Programa de reestruturação da
Administração Central do estado, do modelo de evolução da administração pública e das ten-
dências dominantes aplicadas à realidade portuguesa9, sobressai, precisamente, a da crescente
sujeição dos serviços públicos a diferentes regras, sobretudo os denominados serviços públicos
por opção, tais como os regimes de pessoal, patrimonial e de gestão financeira.10
o modelo gestionário como alternativa para a execução do serviço público tem sido
fundamento para a reforma dos sectores públicos na procura da eficiência, descentralização
e da qualidade. esta última, de resto, levou à criação de um conceito e de um modelo eu-
ropeu de qualidade baseado em critérios precisos e focados na obtenção de um resultado de
excelência.11
de resto, bem se vê, no nosso caso, uma aplicação mais imperfeita destas ideias, materiali-
zada no surgimento de institutos Públicos e de Autoridades de regulação, mas que correspon-
9 os relatórios finais, de 20 de Fevereiro de 2008, assim como o relatório da Comissão técnica, podem ser consul-tados em http://www.min-financas.pt/inf_geral/default_PrACe.asp10 ver decreto-lei n.º 86/2003, de 26 de Abril, que veio permitir o estabelecimento de um relacionamento de longo prazo entre os parceiros públicos e privados, envolvendo a repartição de encargos e riscos entre as partes e o estabelecimento de compromissos de médio ou longo prazo que, quando implicam encargos a satisfazer pelos entes públicos envolvidos, afetam e condicionam imperativamente a totalidade ou parte dos respetivos orçamentos futuros, compreendidos no período de duração dos contratos celebrados, o qual define parceria público-privada o contrato ou a união de contratos, por via dos quais entidades privadas, designadas por parceiros privados, se obri-gam, de forma duradoura, perante um parceiro público, a assegurar o desenvolvimento de uma atividade tendente à satisfação de uma necessidade coletiva, e em que o financiamento e a responsabilidade pelo investimento e pela exploração incumbem, no todo ou em parte, ao parceiro privado. Pode ver-se também o Livro verde sobre as parcerias público-privadas, da União Europeia, em www.europa.eu.int e ainda teodora Cardoso marta rebelo e eduardo Paz Ferreira, Pedro siza vieira, Jorge Abreu simões, João Pontes Amaro, António garcia, Carlos moreno, André riscado, Manual prático das parcerias público privadas, nPF, Pesquisa e Formação, Publicações, 2004 (www.npf.pt); Carlos soares Alves, Os municípios e as parcerias público-privadas: concessões e empresas municipais, edição da Associação dos técnicos Administrativos municipais (www.atam.pt); Abby ghobadian, david gallear, nicholas o’regan, howard viney, Public-Private Partnerships – Policy and experience, Palgrave, 2004 (www.palgrave.com); gabriela Figueiredo dias, Project Finance (Primeiras notas), Miscelâneas, nº 3, Almedina, 2004; João Canto e Castro, o decreto-lei nº 86/2003: uma perspetiva jurídico política (Revista de Ciências Empresarias e Jurídicas, nº 5, 2005); vital moreira, A tentação da “Private Finance Iniciative (PFI)” A Mão Visível – mercado e regulação. Coimbra: Almedina, 2003; tiago duarte, As mil e uma comissões das Parcerias Público-Privadas (www.plmj.com); rui machete, o âmbito de aplicação das Parcerias Público-Privadas (www.plmj.com); Alexandra Pessanha e Fernando Xarepe silveiro, estudo do decreto-lei nº 86/2003, de 26 de Abril, regime jurídico procedimental das PPP, Revista do Tribunal de Contas, nº 40; Pedro siza vieira, regime das Concessões de obras Públicas e serviços Públicos, Cadernos de Justiça Administrativa, nº 64, Julho-Agosto 2007; sítio do triBunAl de ContAs – www.tcontas.pt onde se podem encontrar relatórios sobre diversas parcerias público-privadas e sobre alguns casos de empresas municipais, de que são exemplos os seguintes: relatório de consulta pública sobre o livro verde Comuni-cação interpretativa da Comissão sobre as concessões em direito Comunitário; sítio dA PArPÚBliCA – www.parpublica.pt e o link: parcerias público-privadas (alguns artigos e apresentações sobre o tema; links para sites de outros estados).11 Ana Andrade, Programa de qualidade do ministério da segurança social e do trabalho: um modelo integrado de aplicação da CAF. secretaria-geral do ministério da segurança social e do trabalho, lisboa, 2004; Joaquim Fi-lipe Araújo, Hierarquia e mercado: a experiência recente da administração gestionária, Comunicação apresentada no Fórum 2000, reforma do estado e Administração gestionária, lisboa, 2000 e Reform and Institutional persistence in Portuguese Central Administration, universidade de exter, reino unido, 1999.
110
de já, em vários sentidos, a esta nova forma de gestão dos interesses tradicionalmente desenvol-
vidos pelo estado através da sua administração central, que não foi atenuada pela postura algo
conservadora da lei-quadro dos institutos Públicos, aprovada pelo decreto-lei n.º 105/2007,
d.r. n.º 66, série i de 3 de Abril de 2007.
Forte tendência esta pela qual se criaram, nos últimos 25 anos, mais institutos públicos e
autoridades reguladoras, com autonomia administrativa, financeira e patrimonial do que nos
anteriores cem.
Por outro lado, assiste-se à empresarialização de certos serviços públicos, nomeada e espe-
cificamente os hospitais, a gestão de certas infraestruturas, correspondendo ao desejo confesso
de compatibilizar uma lógica pública de prestação de serviços adequados à população em geral,
mas aproveitando os ganhos em termos de eficiência, produtividade e menor custo que a lógica
de mercado parece poder alcançar.
alGuNS ProbleMaS do FiNaNCiaMeNto PúbliCo
uma outra tendência notória está no crescente pagamento individual pela prestação de
serviços públicos até aqui normalmente cobertos com a receita dos impostos, em obediência
a uma lógica de utilizador-pagador, não desconhecida dos denominados impostos ecológicos,
de poluidor-pagador, sobretudo quando estejam em causa serviços que prestam utilidades in-
divisíveis.
é nesse sentido que se inscreve o novo regime geral de taxas locais, de 2007. depois de
uma vazio legislativo de quase trinta anos em que o imperativo constitucional deixou de ser
observado, a sua aprovação representa um avanço notório, embora levante as perplexidades de
redação, sobretudo quanto aos princípios do benefício ou do sacrifício patrimonial.
de facto, a proliferação das taxas públicas representa o afastamento da tradicional gra-
tuitidade genérica dos serviços públicos e a sua cobertura essencial por impostos. Assume-se,
agora, o seu pagamento, pelo menos parcial, pelo utente ou beneficiário efetivo, o que não é
um disparate em si mesmo.
importa, todavia, salientar que esta evolução, a nosso ver, se bem que acobertada por um
regime geral novo, não é tanto ditada pela dogmática própria das finanças públicas sobre o
financiamento do estado, mas por atrozes pressões financeiras dos organismos públicos, obri-
gando-os a financiar os seus orçamentos correntes através da receita das taxas.
essa é, também, a razão pela qual, do nosso ponto de vista, se tem exagerado no seu lança-
mento em termos dos valores individualmente exigidos aos cidadãos pela prestação de serviços
públicos concretos, muitas vezes acima do que seria o valor normal do mercado em condições
de concorrência.
111
Pior ainda, tem-se a noção de que a exigência de taxas públicas nem sempre corresponderá
à prestação de um serviço público efetivo e materialmente necessário, mas tão só de um serviço
emergente de uma exigência formal da lei, ainda que enroupada num interesse público não raro
difuso. de facto, a facilidade com que, por mero ato normativo, se criam taxas públicas tem-se
prestado a abusos tão intoleráveis quanto o seria a exigência de imposto sem lei.12
A frequência, a amplitude e o peso das taxas permitem hoje questionar se não deveríamos
lançar mão de mecanismos que melhor protegessem o cidadão contra abusos, tanto mais que,
hoje, as taxas deixaram de ser prestações insignificantes, excecionais e pouco frequentes.
Aspetos que, no seu conjunto, nos deveriam levar a refletir sobre a medida em que esta
realidade nova e pouco estabilizada representa um vector essencial de cidadania e um modo
de aprofundar, ao invés de diluir, o estruturante postulado do consentimento dos povos, tão
carente de reafirmação.
os problemas do financiamento público são problemas de administração pública. A lon-
go prazo, alargam-se ainda ao sistema de segurança social, onde a necessidade de reformas
visando o seu equilíbrio requereu uma severa limitação dos benefícios no imediato. o financia-
mento estrutural, a medida de retorno esperada, a necessidade de estabelecer tetos máximos de
benefícios, o encurtamento real dos níveis de proteção social e as perspetivas pouco animadoras
do seu reequilíbrio futuro, de par com o envelhecimento da população e as baixas taxas de
reposição, mostram que veio afinal a ser feito, in extremis, o que poderia muito bem ter sido
diluído num espaço temporal muito mais alargado, digamos, desde pelo menos meados dos
anos oitenta, com responsabilidades para todos.
sendo inequivocamente um direito social, ele evolucionou conforme se esperava, dentro
do espectro evolutivo de todo o modelo europeu, onde, para além das questões de natureza
ideológica, o problema da sustentabilidade futura era (é) real e em que a solução passa desde
já por um conjunto de medidas que mitigam a amplitude dos direitos. e talvez requeiram a
adoção de regimes de diferenciação positiva e o estabelecimento de patamares mínimos em
ordem a assegurar uma proteção na reforma digna para todos. Assim se garante que os mais
desfavorecidos sejam beneficiados e, ao mesmo tempo, permite-se o opting out ou a conjugação
do sistema público com regimes públicos ou privados, para os que o desejam ou possam fazer.
não se trata de abjurar o estado, mas de fortalecer a sua capacidade de capitalização do
sistema, de par com soluções mistas que conciliem práticas privadas com lógicas públicas, em
benefício de todos.
em tese mais geral, o gigantismo do estado e as crescentes dificuldades em obter receita
suficiente para cobrir todas as demandas públicas, são tratados no ponto seguinte.
12 uma análise de alguns Acórdãos do tribunal constitucional (v. g. 92-85) permitirá verificar o sentido dominante da Jurisprudência e do seu impacto na densificação desta realidade e do seu impacto sobre a ideia de estado social ou de bem-estar.
112
ProbleMaS de CoNtrolo e avaliação daS CoNtaS PúbliCaS
igualmente estruturantes são as questões que hoje se colocam acerca do controlo e ava-
liação das contas públicas. estas devem evoluir no sentido do seu alargamento, de uma lógica
direcionada para a obtenção de resultados através da generalização dos orçamentos-programa
e da reestruturação orçamental, com maior ênfase num controlo que vá para além do mero
controlo clássico da legalidade da despesa.
A orçamentação por programas implica uma maior a mais profunda informação analítica
sobre os custos e uma melhor definição das responsabilidades, desde logo da Administração pú-
blica. um outro aspeto relevante reside no aumento da atenção ao controlo das contas públicas
ao invés de ao orçamento do estado. este tem recebido uma atenção que tem sido causa de
alguma desatenção a outros agregados essenciais à sanidade das contas do estado.13 são eles a
despesa pública, a dívida pública e o défice público. Assim, preconizamos uma maior atenção
aos aspetos seguintes:
. o reforço das garantias de transparência das finanças públicas, realidade que, não sendo exatamente nova, apresenta todavia novos contornos, como é o caso da fuga para o direito privado nas relações jurídicas em que intervém o estado. . uma melhor definição sobre os tipos de controlo que se revelam mais eficientes para cada instrumento público.. uma evolução da estruturação da contabilidade pública e do modo de a realizar por parte dos serviços públicos, pondo de lado a natureza eminentemente “de caixa”, para se tornar mais sofisticada, abrangendo a contabilidade patrimonial e a adequada va-lorização destes elementos no orçamento de cada organismo da Administração Públi-ca.. A melhoria da comunicação com os cidadãos, aperfeiçoando a informação financei-ra dada a conhecer, incluindo a relativa aos cenários macro económicos. Pese embora a informação disponibilizada aquando da apresentação e discussão da proposta de orçamento do estado, os cidadãos não têm uma perceção geral sobre o estado das contas públicas nem conhecem os grandes agregados e tendências. em parte, isso dá-se porque não existe uma cultura financeira, mas isso dá-se também, paradoxalmente, porque existirá uma excessiva quantidade de informação. A racionalização desta e a sua simplificação em grandes agregados permitira uma perceção mais facilitada sobre quais os recursos disponíveis e as responsabilidades futuras. Permitira, também, que o cidadão interagisse mais quando se tratasse de decidir investimentos com impacto presente e futuro se lhe fosse dada a oportunidade de se pronunciar.. melhorar a sustentabilidade das finanças públicas, tal como vem sendo preconizado pelo Fmi, elaborando-se um relatório sobre tal sustentabilidade de cinco em cinco anos com informações projetadas para uma década.. no plano político, parece-nos ser de reforçar a ênfase de um princípio de sincerida-de ou realismo orçamental, atualmente condenado a cenários rosados e pouco reais,
13 José tavares, Alguns aspetos estruturantes das finanças públicas da atualidade. Coimbra: Almedina, 2008; O Fede-ralismo: contributo para o estudo da natureza da união europeia. Coimbra: Almedina, 2010.
113
onde cabem cenários de crescimento económico e outros índices estruturantes esti-mados de forma pouco realista.. é necessário reforçar a atenção aos fenómenos de suborçamentação, prática corrente dos governos, mas com claro prejuízo do poder de controlo da Assembleia da repú-blica e uma evidente descaracterização do dever de audição e direito de consentimen-to dos povos.. o reforço, em termos qualitativos e quantitativos, da capacidade de controlo da execução orçamental por parte da Assembleia da república que, por razões várias, efetua hoje um controlo tendencialmente formal e pouco profundo sobre as contas públicas e não realiza uma apreciação crítica das reais necessidades de endividamento nem dos níveis da dívida ou do serviço da mesma.. o reforço da informação a fornecer à Comissão e economia e orçamento em regi-me concomitante, permitindo-lhe conhecer, no momento, as alterações à execução orçamental introduzidas pelos governos dos estados membros e bem assim do direi-to de audição, de investigação em tempo real e in situ das suas opções financeiras e orçamentais. em parte, os défices excessivos resultam não só de comportamentos pouco responsáveis dos governos, como também de um sistema de controlo europeu pouco assertivo e eficaz.. A implementação de estruturas que permitam à Assembleia da república ser assisti-da por outros órgãos de estado que possuam conhecimentos e meios técnicos ade-quados ao controlo orçamental e financeiro, como é o caso do ministério das Finan-ças ou do Banco de Portugal. em muitos países, as estruturas de controlo financeiro são auditores gerais, controladores gerais ou órgãos que dependem diretamente dos parlamentos nacionais, tornando a cooperação mais assídua e, por certo, mais profí-cua.de facto, a impreparação teórica e prática dos deputados, em especial quando mem-bros dessa Comissão Parlamentar, impede-os de efetuar uma análise crítica tanto das propostas contidas no orçamento de estado como da sua execução geral. impede-os também de aprofundar o controlo do desenvolvimento sectorial das diferentes políti-cas públicas, sobretudo as mais críticas, como a de saúde, educação ou de investimen-to e obras públicas, em especial para conhecer os motivos das frequentes derrapagens orçamentais.. Aprofundar os poderes da Assembleia da república de realizar inquéritos e ações de controlo bem como reforçar os poderes de avaliador das políticas públicas, indo além do papel, mais tradicional, de mero controlador de legalidade, mas do mérito subs-tantivo das decisões tomadas.. Para o efeito, importa dotar a Assembleia da república de novos poderes de contro-lo substantivo e recentrar as suas funções no exercício de poderes de impulsionar ou propor políticas públicas.
o conjunto dos factos e medidas enunciadas não esgota a realidade. Constitui, todavia,
um ponto de partida alargado para a reflexão ampliada que se impõe sobre o tema.
114
reFerÊNCiaS
AleX roBson, A. The costs of taxation, the centre for independent studies, Cis Policy monogra-phy, 68, 2005.
Alves, C. s. os municípios e as parcerias público-privadas: concessões e empresas municipais, edição da associação dos técnicos administrativos municipais. disponível em: www.atam.pt.
ArAuJo, J. F. hierarquia e mercado: A experiência recente da administração gestionária, in: Fó-rum, isCsP, lisboa, 2000.
Azevedo, m. e. As parcerias público-privadas: instrumento de uma nova governação pública. Coimbra: Almedina, 2009.
CAmPos, d. l. O sistema tributário no Estado dos cidadãos. Coimbra: Almedina, 2006.
CArdoso, t. et al. Manual prático das parcerias público privadas. lisboa: nPF, Pesquisa e Forma-ção, Publicações, 2004. disponível em: www.npf.pt.
CArreirA, medinA. O dever da verdade. lisboa: dom quixote, 2008.
CAstro, J. C. o decreto-lei nº. 86/2003: uma perspectiva jurídico política. Revista de Ciências Empresarias e Jurídicas, n.5, 2005.
CAtArino, J. r. A política pública tributária como fator de compensação dos desequilíbrios territoriais. in: Anais XIII Congresso do CLAD, Buenos Aires, 2008.
______. Finanças públicas e direito financeiro. Coimbra: Almedina, 2011.
______. Lições de fiscalidade. Coimbra: Almedina, 2012.
______. O liberalismo em questão: justiça, valores e distribuição social. lisboa: isCsP 2009.
______. Redistribuição tributária, estado social e escolha individual. Coimbra: Almedina, 2008. (Col. teses).
diAs, g. F. Project Finance (Primeiras notas). Miscelâneas. Coimbra: Almedina, n. 3, 2004.
dourAdo, A. P. Lições de direito fiscal europeu. Wolters kluwer, Coimbra: Coimbra editora, Coimbra, 2010.
duArte, t. As mil e uma comissões das parcerias público-privadas. disponível em: www.plmj.com.
FerreirA, e. P.; reBelo, m. o novo regime jurídico das parcerias público-privadas em portu-gal. Revista de Direito Público da Economia, editora Fórum, n. 4, out./dez. 2003.
ghoBAdiAn, A. Public-private partnerships: Policy and experience, Palgrave, 2004. disponível em: www.palgrave.com.
guimArães, v. B. A tributação do comércio eletrónico: uma perspetiva jurídico-fiscal. Ciência eTécnica Fiscal, lisboa, n. 403, 2001.
lABAn, d.; mCClintoCk, l. The Transfer Society. Washington: Cato institute, 2001.
lArA, A. s. O interesse nacional, a política externa portuguesa e as ideologias lisboa: dislivro, 2009.
mAChete, r. O âmbito de aplicação das Parcerias Público-Privadas. disponível em: www.plmj.com
115
moreirA, J. m. Leais, imparciais e liberais. lisboa: Bnomics, 2009.
moreirA, v. A tentação da “Private Finance iniciative (PFi)”. A mão visível – mercado e regula-ção. Coimbra: Almedina, 2003.
oCde Consumption tax trends, Paris, 2001.
oCde Fundamental reform of Personal income tax, oeCd tax Policy studies, n.º 13, Paris, 2006.
oCde taxing Wages, special Feature: Broadening the definition of the Average Worker – 2003/2004, Paris, 2004.
oCde, tax and economy: A Comparative Assessment of oeCd Countries, Paris, 2001.
oCde. Fundamental reform of Personal income tax, oeCd tax Policy studies, n. 13, Paris, 2006.
oCde. harmful tax Competition: An emerging global issue, Paris, 1998.
oCde. l’impôt négatif sur le revenue, Paris, 1974.
oWens, J. reforma fiscal fundamental: uma perspetiva internacional. Ciência e Técnica Fiscal, lisboa, n. 421, Janeiro-Junho, lisboa, 2008.
PAlmA, C. C. A regulação internacional da Concorrência Fiscal nefasta. Cadernos de CTF, lis-boa, n. 395, 1999.
PAlmA, C. o combate à concorrência fiscal prejudicial – algumas reflexões sobre o código de con-duta comunitário da fiscalidade das empresas, Fiscália, lisboa, n. 21, setembro, 1999.
PessAnhA, A.; silveiro, F. X. estudo do decreto-lei n. 86/2003, de 26 de Abril, regime jurí-dico procedimental das PPP, Revista do Tribunal de Contas, lisboa, n. 40, 2003. tributação direta.
Pinto, A. v. P. A tributação do comércio eletrônico. Boletim de Ciências Económicas, Coimbra, vol. Xlv, 2002.
sivestre, h. C. s. Gestão Pública: modelos de prestação de serviço público. lisboa: escolar editora 2010.
soros, g. s. La crise du capitalisme mondial: l’intégrisme des marchés Paris: Plon, 1998.
stiglitz, J. La grande désillusio. Paris : Fayard, 2002.
tAnzi, v. Fiscal Policy in the Future: Challenges and opportunities, Conferência sobre Fiscal Policy Challenges in Europe, Berlin, march 22-23, 2007.
tAnzi, v. globalization and tax systems, in: ______. 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, (Jornadas em homenagem ao Professor doutor Pitta e Cunha) Coimbra: Almedina, 2003.
tAvAres, J. Alguns aspetos estruturantes das finanças públicas da atualidade. Coimbra: Almedina, 2008.
tAvAres, J. O federalismo: contributo para o estudo da natureza da união europeia. Coimbra: Almedina, 2010.
______. Ponderação de interesses na gestão pública vs. gestão privada, estudos jurídicos (em homena-gem ao Prof. doutor António sousa Franco, Faculdade de direito de lisboa) Coimbra: Coimbra editora, 2006. (separata).
116
teiXeirA, g. (org.) O comércio eletrónico, estudos jurídico-económicos. Coimbra: Almedina, 2002.
tourAine, A. Un nouveau paradigme pour comprendre le monde d’aujourd’hui. Paris: Fayard, 2005.
tulloCk, g. replace Costs and tariffs, monopolies and theft. Western Economics Review, n. 5, 1967.
vieirA, P. s. regime das concessões de obras públicas e serviços públicos. Cadernos de Justiça Ad-ministrativa, n. 64, Julho-Agosto 2007.
117
oS imPACToS DA CriSE muNDiAL NA ECoNomiA BrASiLEirA1
José Matias-Pereira 2
iNtrodução
Constata-se que nas últimas décadas um crescente número de estados-nação, num con-
texto de profundas transformações socioeconômicas, políticas e culturais, vem enfrentando
enormes dificuldades para cumprir suas atribuições de promover ajustamentos na alocação de
recursos, na distribuição da renda e, em especial, para manter a estabilidade econômica (mus-
grave, 1989). o aprofundamento da crise econômica mundial, iniciada em 2008, revela que os
esforços feitos pela maioria dos governantes no mundo, em especial os dirigentes dos países que
integram os denominados zeus, membros dos 17 países da zona do euro e os estados unidos,
para amenizar a desaceleração das suas economias não alcançaram os seus propósitos.
esse cenário descrito evidencia os enormes desafios e ameaças presentes no meio ambiente
global. diversos autores e economistas dos principais organismos multilaterais, com destaque
para o Fundo monetário internacional (Fmi) e o Banco mundial (Bird), vem alertando que
a economia mundial poderá enfrentar um colapso semelhante ao que ocorreu no período da
grande depressão na demanda, caso a europa não consiga adotar medidas para aumentar de
forma significativa o tamanho da sua proteção contra a crise da dívida, bem como estimular
1 este capítulo tem como referência o artigo do autor, ampliado e atualizado, denominado “gestão das Políticas Fiscal e monetária: os efeitos colaterais da crise mundial no crescimento da economia brasileira”, publicado na revista observatorio de la economía latinoamericana, vol. 148, p. 1-23, 2011.2 economista, advogado, doutor em ciência política pela universidade Complutense de madri (uCm/espanha), pós-doutor em Administração pela universidade de são Paulo (FeA/usP), é professor de Finanças Públicas e Administração Pública e pesquisador associado do Programa de Pós-graduação em Contabilidade da universidade de Brasília. Autor, entre outros livros, de Curso de Administração Públi-ca, 3. ed. são Paulo: Atlas, 2010; Curso de Administração estratégica, são Paulo: Atlas, 2011; e Finanças Públicas: Foco na política fiscal, no planejamento e no orçamento público do Brasil, 6. ed. são Paulo: Atlas, 2012.
capítulo 7
118
políticas que induzam o crescimento, além de promover a consolidação da integração da zona
do euro. eles destacam que somente dessa forma será possível evitar a repetição do fenômeno
ocorrido em 1930, decorrente da inércia, da insularidade e da ideologia rígida, que somados
provocaram um colapso da demanda global.
uma parcela significativa desse quadro descrito está delineada nos estudos, relatórios e in-
dicadores econômicos e sociais divulgados no final de 2011 e no primeiro semestre de 2012 por
diferentes instituições multilaterais e órgãos de pesquisa econômica e de estatística nacionais
(Banco mundial, Fmi, oCde, iBge, BCB). esses documentos indicam que os países desen-
volvidos e emergentes, na sua maioria, apresentam problemas de crescimento e de deterioração
nos seus mercados de trabalho, apesar dos esforços feitos por seus governos para amenizar a
desaceleração das suas economias.
observa-se que a crise na economia mundial começa a ser percebida de maneira crescente
pela sociedade mundial como resultado das medidas inadequadas dos governantes. e que o
seu agravamento é decorrente da incapacidade das principais lideranças políticas e econômicas
mundiais de contê-la. essa percepção das populações que vivem nos países mais afetados pelos
efeitos da crise econômica global (que eclodiu nos estados unidos, no final de 2008), está
provocando protestos e colocando os governantes em dificuldades.
verifica-se, nesse contexto, que os países desenvolvidos possuem espaço menor de mano-
bra diante da crise de dívida soberana que atinge os países da zona do euro. é preciso alertar,
entretanto, que além dos países-membros da zona do euro (países que adotam a moeda única)
e os estados unidos, os efeitos da crise também está afetando, com intensidades diferentes, as
quatro maiores economias emergentes: Brasil, rússia, índia e China (BriCs), sinalizando uma
redução do crescimento econômico e no aumento da inflação.
é relevante destacar que a postura cautelosa, e até de ceticismo, por parte dos principais
atores econômicos, políticos e sociais no mundo é decorrente de um ambiente onde estão pre-
sentes enormes incertezas e turbulências, como por exemplo, a forma como irá ocorrer o pro-
cesso de desaceleração da economia chinesa, as dificuldades para a retomada do crescimento da
economia dos euA e os riscos decorrentes de uma possível saída de algum membro da zona do
euro. esses fenômenos representam uma ameaça concreta à estabilidade da economia global,
e devem ser avaliados de forma contínua e incorporados pelos governantes nas suas decisões
políticas, notadamente nas suas políticas econômicas.
é relevante destacar nesta parte introdutória que as mudanças em curso no mundo estão
acelerando o nascimento de um mundo diferente daquele que conhecemos, no qual será decisi-
va a utilização intensiva de novas tecnologias que irão permitir a construção de novas bases das
economias dos países mais ricos, notadamente no campo de produção de energia. é previsível
nesse novo cenário que importantes questões geopolíticas, culturais e ambientais no mundo fi-
carão relegadas a um plano secundário conforme evidenciado nos baixos resultados alcançados
119
na Conferência das nações unidas sobre desenvolvimento sustentável (Rio+20), realizada no
Brasil, de 13 a 22 de junho de 2012.
nesse sentido, partimos do entendimento de que o Brasil, por estar fortemente interliga-
do ao sistema econômico e financeiro mundial, não está imune aos efeitos do agravamento da
crise econômica global. observa-se que a elevação do desempenho da economia brasileira nos
últimos anos, num contexto de comércio mundial favorável, foi beneficiada pelo crescimento
da demanda e na elevação nos preços das commodities. esse cenário favorável contribuiu para
reforçar a crença no acerto do modelo econômico em vigor, em particular, das políticas fiscal
e monetária. A crise, entretanto, vem provocando alterações significativas no mercado global,
impedindo a recuperação dos países desenvolvidos, e por consequência, sinalizando a necessi-
dade de diversos países, entre os quais o Brasil, de redefinir os seus modelos econômicas.
Frente a esse cenário inquietante formulamos a seguinte pergunta: Quais são as fragilida-
des e perspectivas de crescimento do Brasil nos próximos anos?
Com vista a alcançar os objetivos propostos vamos utilizar como base de apoio da pesqui-
sa os estudos e os relatórios e indicadores socioeconômicos recentes produzidos pelas principais
instituições internacionais e nacionais orientados para o tema em análise. nesse sentido, iremos
nos apoiar, em especial, nos indicadores de crescimento da economia mundial, do comporta-
mento do nível de emprego e da inflação nos países desenvolvidos e emergentes, para avaliar de
forma preliminar, as perspectivas de crescimento da economia brasileira nos próximos anos 3.
Além de analisar os relatórios e os dados que tratam da economia mundial, iremos ava-
liar, também, o nível de consistência do modelo econômico em execução no governo dilma
rousseff (2011-2014), com base nos indicadores do Banco Central (BCB, 2012) e nas Contas
nacionais (iBge, 2012). nessa análise se buscará evidenciar se a política econômica proposta
pelo atual governo, que busca conciliar crescimento econômico com juros altos (que compro-
mete o desempenho da economia e a redução da dívida); manutenção de uma carga tributária
elevada e o corte nos investimentos públicos é uma política viável para atender as necessidades
da sociedade brasileira.
este estudo é essencialmente bibliográfico, descritivo e qualitativo. ressaltamos que não
temos a pretensão de esgotar o assunto em análise, destacando que ele possui diversas limita-
ções, notadamente diante de dificuldade de avaliar em toda a sua extensão os efeitos colaterais
da crise na economia do Brasil, o que reflete nas suas conclusões.
3 o crescimento da economia, o nível de emprego e a inflação surgem como importantes variáveis para avaliar as tendências da economia mundial e nacional. havendo uma demanda menor, somada a uma queda acentuada no nível de emprego, o comércio mundial será afetado, o que produzira efeitos negativos em larga escala na economia nacional (matias-Pereira, 2011).
120
reFereNCial teóriCo: evolução da teoria eCoNôMiCa e daS FiNaNçaS PúbliCaS
observa-se que, as contribuições do marginalismo do século XiX, do keynesianismo e do
monetarismo no século XX foram bastante significativas para a evolução da teoria econômica.
essas idéias refletiram fortemente na teoria e na prática das finanças públicas. Para keynes, os
estados têm como principal objetivo adotar medidas para evitar os dois grandes males carac-
terísticos dos ciclos econômicos: o desemprego e a inflação. Junto com a política monetária,
atribui-se à política fiscal, portanto, um papel primordial na obtenção da estabilização econô-
mica (keynes, 1983).
nesse sentido, o estado, como agente fiscal, deve buscar evitar que sua despesa total não
seja nem muito grande, nem muito reduzida. o principal instrumento dessa política está num
orçamento que, ao abrir mão do princípio de equilíbrio proposto pelos economistas clássicos,
seja capaz de atender à renda e ao gasto do país como um todo e não apenas às finanças públi-
cas; e que planifique as despesas em função das necessidades da sociedade, em vez de fazê-lo
exclusivamente para atender aos recursos financeiros. um princípio inerente a essa teoria é o do
gasto anticíclico, ou seja, um orçamento com déficit (as despesas superam as receitas), durante
as fases de recessão ou crise, e um orçamento com superávit (as receitas superam as despesas),
no auge da prosperidade.
esse princípio, quando aplicado, conduz, em períodos de crise, à redução dos impostos,
de forma que a população disponha de mais dinheiro para gastar; ao aumento das despesas
públicas com subsídios para o desemprego e subvenções para os produtos agrícolas; e, por últi-
mo, ao aumento das obras públicas. Busca-se, dessa maneira, estimular a demanda total, com a
finalidade de superar a etapa depressiva e voltar a uma fase de expansão. nesse caso, a atuação
fiscal seria inversa, ou seja, elevação de impostos, redução do gasto público e amortização da
dívida pública emitida durante a depressão.
o emprego dessa política orçamentária evitou os principais inconvenientes da política
tradicional de orçamento equilibrado, na qual se elevavam os impostos e diminuíam-se as
despesas públicas durante a depressão. Acentuavam-se com isso as flutuações econômicas e
retardava-se a recuperação.
observa-se que o pensamento neoliberal, em especial as teorias monetaristas, nas últimas
décadas do século XX, passou a criticar de maneira sistemática a excessiva importância que a
teoria keynesiana atribuiu ao estado. Para os monetaristas, foi em conseqüência dela que se
havia distorcido o livre jogo da oferta e da procura. Argumentava, também, que havia sido
reduzida a competitividade e a eficiência das economias de livre mercado (sArgent, 1982,
1986). essas análises motivaram profundas alterações nas políticas econômicas, em particular
121
nas políticas orçamentárias dos países, sem que isso conseguisse refutar a importância e a con-
sistência do modelo keynesiano.
As críticas dos teóricos monetaristas aos keynesianos quanto à discricionariedade do po-
licymaker na condução das políticas econômicas serviram para intensificar o debate acadêmico.
nesse contexto os teóricos keynesianos buscaram regras de políticas ótimas, modeladas com
fundamento microeconômico e com ênfase no papel das expectativas (incorporando as expec-
tativas racionais, além de dar uma melhor fundamentação a questão da rigidez de preços). Com
isso permaneceu em evidência a curva de Phillips e os efeitos não neutros da política monetária
no curto prazo.
ForMaS de iNterveNção do eStado Na eCoNoMia
é sabido que o estado possui diversos instrumentos para intervir na economia. Por meio
da política econômica o governo promove a intervenção na economia com o objetivo de man-
ter o crescimento econômico e os níveis de emprego elevados, com estabilidade de preços 4.
destacam-se entre esses instrumentos as políticas: fiscal e monetária. Por meio delas torna-se é
possível controlar, por exemplo, preços, salários, inflação, impor choques na oferta ou restrin-
gir a demanda (musgrAve; musgrAve, 1980; mAtiAs-PereirA, 2011, 2012).
esses instrumentos e recursos utilizados pelo estado para intervir na economia podem ser
definidos da seguinte forma:
Política Fiscal - envolve a administração e a geração de receitas, além do cumprimento de metas e objetivos governamentais no orçamento, utiliza-do para a alocação, distribuição de recursos e estabilização da economia. é possível, com a política fiscal, aumentar a renda e o PiB e aquecer a econo-mia, com uma melhor distribuição de renda. Política monetária – envolve o controle da oferta de moeda, da taxa de juros e do crédito em geral, para efeito de estabilização da economia e in-fluência na decisão de produtores e consumidores. Com a política monetá-ria, pode-se controlar a inflação, preços, restringir a demanda, etc.Política regulatória - envolve o uso de medidas legais como decretos, leis, portarias, etc., expedidos como alternativa para se alocar, distribuir os recursos e estabilizar a economia. Com o uso das normas, diversas con-dutas podem ser banidas, como a criação de monopólios, cartéis, práticas abusivas, poluição, etc.
4 é sabido que a identificação das restrições e incentivos que condicionam a tomada de decisões é um elemento essencial de qualquer teoria positiva da política econômica. merece uma atenção especial o processo de formação de expectativas por parte dos agentes e a credibilidade das políticas macroeconômicas, em particular em cenários de crise econômica. A verdadeira relevância deste tipo de questão aflora quando se aprofunda na natureza estratégica das interações que se estabelece entre o policymaker e os agentes privados e as autoridades de política econômica (matias-Pereira, 2012).
122
neste estudo iremos utilizar como referencial teórico a teoria keynesiana 5, a teoria neoins-
titucionalista e a teoria das finanças públicas (keynes, 1983; north, 1997; musgrAve,
1959). registre-se que a teoria das finanças públicas, de uma forma geral, preocupa-se com a
existência das falhas de mercado, que torna necessária a presença do governo, do estudo das
funções do governo, da teoria da tributação e do gasto público.
sabemos que a tributação deve servir como instrumento para a correção de desequilíbrios
conjunturais e para a obtenção de taxas satisfatórias de crescimento. os tributos devem ser
avaliados tanto de um ponto de vista restrito, com relação a sua eficiência econômica, quanto
de um ponto de vista mais amplo, à sua adequação aos objetivos da política fiscal. sob a ótica
de sua de sua eficiência, dois princípios norteiam a teoria da tributação: neutralidade e equida-
de. num sentido mais amplo, ou seja, adequar os tributos aos princípios da Política Fiscal, a
teoria da tributação tenta aproximar-se de um sistema tributário ideal através dos princípios da
equidade, progressividade, neutralidade e simplicidade.
na análise da incidência da atividade do setor público - com ênfase para a política fiscal
-, sobre a distribuição de renda, fica evidenciado que, tão importante quanto os efeitos dos
tributos, são também os efeitos dos gastos do governo. nesse sentido, pode-se constatar que
para o adequado funcionamento do estado é essencial à gestão adequada das finanças públicas.
Assim, as finanças públicas além de assegurar a manutenção da administração e dos serviços
públicos é uma ferramenta essencial para gerar estímulos e corrigir os desequilíbrios na econo-
mia do país.
qualquer que seja o foco do debate sobre redução de gastos governamentais e do “ta-
manho” do estado, é fundamental que seja levado em consideração a sua participação na eco-
nomia, bem como as inúmeras funções desempenhadas por ele. nesse contexto, a questão do
gasto público deve receber uma maior atenção, em especial, a forma como se decide onde serão
feitos os cortes, como por exemplo, na saúde, educação, defesa, policiamento, justiça ou no
investimento econômico-social. observa-se um fenômeno de crescente participação do gasto
público no PiB em todas as principais economias mundiais. historicamente esse fato é expli-
cado pelo envelhecimento da população e pelo processo de urbanização. A elevação do gasto
público tem sido total ou parcialmente compensada com elevação tributária, não causando
grandes impactos no percentual da dívida dobre o produto interno.
os principais conceitos utilizados neste trabalho estão destacados a seguir. As finanças pú-
blicas de um país, de forma geral, estão orientadas para as operações relacionadas com a receita,
despesa, orçamento e o crédito público. Preocupa-se, portanto, com a obtenção, distribuição,
utilização e controle dos recursos financeiros do estado (musgrAve; musgrAve, 1980;
mAtiAs-PereirA, 2012).
5 destacamos na escola keynesiana os trabalhos de leeper (1991, 2005), taylor (1993), sims (1994) e Woodford (1995; 2003).
123
Política fiscal deve ser entendida aqui como o conjunto de medidas relativas ao regime tri-
butário, gastos públicos, endividamento interno e externo do estado, e as operações e situação
financeira das entidades e organismos autônomos ou estatais, por meio dos quais se determina
o montante e distribuição dos investimentos e consumo públicos como componentes da des-
pesa nacional. ou seja, a política fiscal é a manipulação dos tributos e dos gastos do governo
para regular a atividade econômica. ela é usada para neutralizar as tendências à depressão e à
inflação. Por sua vez, a política monetária é o conjunto de ações conduzidas pelo Banco Cen-
tral, cujo fim é influir no crescimento econômico mediante manejo de variáveis monetárias da
economia. Por meio da sua aplicação, se prevê o manejo de variáveis como a inflação, emissão
de moeda, funcionamento do Banco Central, regulação dos bancos comerciais, juros, proteção
das reservas do país, entre outras. ou seja, a política monetária representa a atuação das autori-
dades monetárias, por meio de instrumentos de efeito direto ou induzido, com o propósito de
se controlar a liquidez global do sistema econômico. registre-se que existe uma estreita relação
entre as políticas fiscal e monetária, visto que são políticas complementares.
A carga tributaria pode ser definida como o total da arrecadação das receitas fiscais do
estado em relação ao Produto interno Bruto do país. o tributo é o percentual que se paga
sobre uma receita, decorrente de fornecimento de bens ou serviços ou transação econômica.
As receitas fiscais é o dinheiro que ingressa nos cofres do tesouro nacional como resultado da
arrecadação dos tributos.
A inflação deve ser entendida como o crescimento contínuo, persistente e generalizado
dos preços 6. os tipos de inflação são: de demanda, de custos ou inercial. A inflação de deman-
da é a mais comum. ela ocorre quando existe excesso de procura por bens e serviços ou deman-
da agregada por parte dos agentes econômicos (categorias conhecidas como famílias, empresas,
governo e resto do mundo), pressionando o consumo além da capacidade que a oferta tem para
satisfazê-la mantendo constantes os preços médios da economia. o seu controle é feito por
meio da restrição do consumo por meio da restrição monetária, elevando a taxa real de juros
(taxa de juros básica nominal, que no caso brasileiro é a taxa selic, descontada a projeção da
inflação), por meio da política monetária executada pelo Banco Central, com base no sistema
de metas de inflação. A política fiscal, por meio da redução de gastos públicos com o aumento
das receitas públicas, também é utilizada no esforço para reduzir a inflação.
6 inflação é o crescimento contínuo e generalizado dos índices de preços, particularmente, do índice oficial – o iPCA –, que no Brasil é calculado pelo iBge, em onze regiões metropolitanas. o índice é calculado com base em uma cesta de bens e serviços consumida por amostragem da população que tem renda de um a 40 salários-mínimos. A ponderação dos gastos com alimentos, por exemplo, é de 22%; gastos com habitação, 16%; gastos com transpor-tes, 20%; gastos com saúde, 12%; gastos com educação, 5%; gastos com lazer, 10%, e os demais com os restantes 15% do total (matias-Pereira, 2011).
124
obStáCuloS Na reCuPeração do CreSCiMeNto da eCoNoMia MuNdial
o processo de retomada do crescimento econômico no mundo, conforme sustenta a
literatura, continuará lento nos próximos anos, com efeitos perversos sobre o emprego e a
renda das populações mundiais 7. nesse sentido, fica claro que a capacidade de recuperação
dos países mais desenvolvidos, em particular os zeus (países da zona do euro e os euA) está
aquém da necessária, em que pese terem uma maior responsabilidade na solução da crise, pois
foi naqueles países que ocorreram as bolhas especulativas, decorrentes de falhas de regulação
financeira 8.
A desconfiança nos mercados ainda persiste, apesar das inúmeras ações dos estados desen-
volvidos e emergentes, atuando na preservação do monopólio da emissão e do poder regulador
da moeda, existem indícios de que algumas das economias envolvidas diretamente na crise
estão caminhando rumo à deflação. recorde-se que no Brasil o efeito da forte desvalorização do
real em relação ao dólar, na segunda metade de 2008, foi compensado, no índice de inflação.
torna-se oportuno destacar as recomendações do relatório da Agência da organização
das nações unidas para o desenvolvimento e Comércio (unCtAd, dez. 2011), que indica
que o desemprego em países ricos preocupa mais do que os desequilíbrios fiscais. A crise da dí-
vida de países europeus e dos estados unidos vem levando governos a promover os chamados
planos de “austeridade”, com medidas recessivas de contenção de despesas públicas e corte de
direitos – incluindo reajustes salariais e aposentadorias, por exemplo.
no seu relatório a unCtAd assinala que austeridade fiscal cria ameaça de recessão glo-
bal, a estratégia de enfrentamento da crise corre o risco de repetir erros cometidos no início
dos anos 1930, logo após a quebra da Bolsa de nova york em 1929, quando se anteciparam
medidas austeras aos primeiros sinais de recuperação. A medida adiou uma persistência maior
de crescimento econômico no período. o mesmo efeito poderia estar em processo atualmente.
governos de países como Portugal, grécia, espanha e itália promovem uma série de medidas
para reduzir despesas como forma de dizer aos investidores internacionais que são capazes de
honrar suas dívidas. As iniciativas, porém, tendem a causar recessão, elevar o nível de desem-
prego, reduzir o poder de compra da população e dificultar o crescimento econômico. sem
7 o aprofundamento da crise evidencia que o processo de crescimento econômico no mundo continuará lento nos próximos anos, com efeitos perversos sobre o emprego e a renda das populações mundiais. esse cenário pode ser mensurado com os dados mais recentes divulgados pelas principais instituições multilaterais, em especial, Banco mundial e o Fundo monetário internacional (matias-Pereira, 2011). 8 registre-se que ocorreu, tanto na crise econômica de 1929 como na crise atual, uma clara ineficiência dos me-canismos reguladores do estado. é preciso lembrar que as crises são fenômenos inerentes ao sistema capitalista, decorrentes de suas reconhecidas imperfeições, o que reforça a necessidade do estado atuar de maneira consistente como ente regulador (matias-Pereira, 2012).
125
crescer, as receitas advindas dos tributos também ficam estagnadas e a recuperação de fato
demora mais.
nesse sentido o relatório da unCtAd ressalta que os déficits fiscais são conseqüência
e não causa da crise, dessa forma, o crescimento, e não o déficit é o alvo apropriado para o
momento. o cenário deve prejudicar a todos os países, incluindo os emergentes – como Bra-
sil, índia e China, razão pela qual recomenda que mesmo nações em desenvolvimento devem
preparar planos de contingência para um período prolongado de recessão internacional, em
função da opção usada para fazer face à crise.
verifica- que as inúmeras ações dos estados desenvolvidos não foram capazes de resolver
os graves problemas existentes nos países desenvolvidos decorrentes da deflagração da recente
crise econômica e financeira mundial. registre-se que essa demora na adoção de medidas con-
sistentes por parte dos dirigentes mundiais está contribuindo para aumentar as desconfianças
dos mercados. A frágil recuperação da economia dos estados unidos (euA) e dos países da
zona do euro 9, agravada pela crise fiscal instalada em Portugal, grécia, espanha e itália, indi-
cam que o mundo está diante de uma crise econômica que terá uma longa duração.
Banco mundial: Perspectivas de Crescimento da economia mundial
o relatório do Banco mundial, denominado Perspectivas de crescimento da economia
mundial (Bird, jun. 2012), prevê que a economia global deverá crescer apenas 2,5% em 2012
e 3,1% em 2013. A crise na zona do euro se agravou em agosto de 2011 coincidindo com o
abrandamento do crescimento em vários grandes países em desenvolvimento (Brasil, índia e,
em menor medida, rússia, áfrica do sul e turquia).
Por sua vez, o relatório assinala que os países avançados deverão crescer 1,4% em 2012,
enquanto os emergentes registrarão alta de 5,4%, sinalizando que a economia global entrou em
uma fase muito difícil, caracterizada por significativos riscos e fragilidade. Para a instituição o
grande freio à economia mundial é a situação na zona do euro, onde a incerteza financeira e a
intensificação da crise fiscal provocarão recessão este ano, para quando está previsto crescimen-
to negativo de 0,3% no conjunto dos 17 países da moeda única 10.
os indicadores de crescimento da economia global e dos países selecionados - desenvolvi-
dos e emergentes - em 2012 e 2013 podem ser verificados no quadro 1, apresentado a seguir.
9 observa-se que a crise na zona do euro está mais amena nos países do norte, os mais ricos (Alemanha, holanda, Finlândia e França), e mais grave nos países do sul (grécia, itália, Portugal e espanha).10 A taxa de desemprego na zona do euro chegou a 10,8% em fevereiro de 2012 (eurostat, abr. 2012). no total, 17,134 milhões de pessoas estavam desempregadas nos 17 países que usam o euro. nos 27 países da união euro-peia, a taxa de desemprego em fevereiro foi de 10,2%, o que significa 24,550 milhões de desempregados no bloco.
126
Quadro 1. indicadores de Crescimento da Economia mundial – 2012 e 2013
Países e regiões 2012 2013
Global 2,5% 3,1%
Desenvolvidos 1,4% 1,9%Zona do Euro -0,3% 0,7%EUA 2,1% 2,3%Japão 2,4% 1,5%Emergentes 5,3% 6,0%China 7,2% 8,5%
Brasil 2,9% 4,2%
Fonte: banco Mundial (jun. 2012).
o relatório ressalta que as recentes medidas implantadas na europa, como o fortaleci-
mento do fundo de resgate e o progresso rumo à unidade fiscal na zona do euro, conseguiram
reduzir a pressão sobre a dívida soberana de países como grécia, itália, espanha e França.
Apesar disso, o Banco mundial alerta em seu relatório sobre o perigo de a crise financeira e a
redução da demanda das economias avançadas se estenderem aos países emergentes, pelo que
indica que a economia global pode cair em uma recessão igual ou maior que a registrada em
2008 e 2009. Por isso, recomenda que os países em desenvolvimento, diante de um cenário de
descenso dos fluxos de capital e de redução dos preços das matérias-primas, que se preparem
com medidas prudentes.
Para o Banco mundial o principal risco atualmente é que, ao contrário da crise de 2008,
tanto os países avançados como os emergentes dispõem de menor espaço fiscal para oferecer
uma resposta contracíclica ou para apresentar o mesmo nível de apoio às instituições finan-
ceiras com problemas. o relatório destaca que o lento crescimento mundial afeta, também, o
comércio internacional, com exportações globais que seguem em declínio desde 2010.
em 2010, as exportações mundiais de bens e serviços cresceram 12,4%, mas em 2011
registraram aumento de 6,6% e em 2012 é esperada alta de 4,7%. Além disso, os preços mun-
diais das matérias-primas caíram 10,2% desde os recordes alcançados no começo de 2011, e os
produtos agrícolas perderam 19%, o que tem implicações diretas para os países exportadores,
que podem ver sua receita reduzir-se em cerca de 4% de seu PiB.
o Banco mundial recomenda ainda no seu relatório que os líderes dos países em de-
senvolvimento se preparem para enfrentarem mais problemas, avaliando vulnerabilidades e
adotando medidas de contingenciamento. nesse sentido, sugere que sejam definidas medidas
que busquem o financiamento para o déficit orçamentário, priorizando gastos em redes de
segurança social e infraestrutura para garantir crescimento de longo prazo e impedir que as
instituições bancárias entrem em crise.
em relação à América latina em 2012 o Banco mundial reduziu as suas previsões de
crescimento para 3,5% e para 4,1% em 2013 e ressaltou o arrefecimento na economia do
Brasil e a forte freada no desenvolvimento da Argentina. o organismo internacional destacou
as alterações procedentes das tensões na europa que provocaram um descenso nos preços das
127
matérias-primas e nos fluxos de capital na região. nesse sentido destaca o Banco mundial que
houve desde janeiro de 2012 um ajuste em baixa nas previsões globais e a principal razão tem a
ver com os acontecimentos na europa, que começaram a transmitir-se com efeitos adversos ao
crescimento dos países emergentes.
uma das principais causas desse cenário desalentador é a revisão na queda das perspectivas
de crescimento para o Brasil, principal economia regional, que deve terminar 2012 em 2,9%,
meio ponto abaixo das previsões de janeiro, que o localizavam em 3,4%. nesse sentido, destaca
o contexto de fraqueza externa como uma das razões da desaceleração do Brasil, mas considera
que o país retomará um maior ritmo de crescimento, de 4,2%, em 2013 como consequência
do forte investimento previsto para a Copa do mundo de 2014 e da expansão das políticas
monetárias 11.
FMi: PerSPeCtivaS de CreSCiMeNto da eCoNoMia MuNdial
os dados do relatório do Fundo monetário internacional (World economic outlook—
update 2012), aponta para uma significativa redução das perspectivas de crescimento da eco-
nomia mundial nos próximos anos, em função dos efeitos da retomada da crise na economia
global. As projeções foram revistas para baixo pelo Fmi (jul. 2012), em decorrência da desa-
celeração na zona do euro, na China e no Brasil. Para o Fundo a economia mundial crescerá
3,5% em 2012, e em 2013 avançará 3,9%.
Para o Fundo as economias emergentes também foram afetadas nas suas previsões de ex-
pansão, que serão de 5,6% em 2012 e de 5,9% em 2013, especialmente devido ao resfriamento
da economia chinesa. A América latina crescerá 3,4% em 2012, três décimos a menos que o
previsto em abril de 2012, e em 2013 avançará 4,2%. A China deverá crescer 8% em 2012 e
8,5% em 2013, dois e três décimos a menos, respectivamente. A previsão de crescimento do
Brasil para 2012 foi reduzida em seis décimos percentuais, encerrando 2012 com um avanço
de 2,5% do Produto interno Bruto, e de 4,6% em 2013. Para o Fundo, os ajustes em baixa em
muitos países emergentes refletem não só um ambiente externo mais frágil, mas também uma
demanda interna que desacelerou em resposta às políticas moderadas dos últimos anos, assim
como pela saída de investidores e de capital e à desvalorização das moedas locais.
observa-se que o relatório do Fundo, ao mesmo tempo em que reduziu sua estimativa
para o crescimento global, alertou que a perspectiva pode cair ainda mais se as autoridades na
europa não agirem com força suficiente e acelerarem as ações para mitigar a crise da dívida da
região. o Fundo também ressaltou que a capacidade produtiva em vários países emergentes,
11 o Brasil é destacado no relatório do Banco mundial (Bird, jun. 2012), entre aqueles países onde a rápida expan-são do crédito – mais de 10 pontos percentuais do PiB entre 2007 e 2011 – elevou a possibilidade de empréstimos de má qualidade em um ambiente de aversão ao risco. Além disso, a política monetária frouxa, ainda que adequadas por causa da desaceleração da atividade econômica, reduz o espaço de ação para prover mais estímulos no futuro.
128
como China, índia e Brasil pode ser menor do que se esperava anteriormente e que o cresci-
mento futuro pode decepcionar.
no que se refere à zona do euro, o Fundo reiterou que é preciso continuar progredindo
em duas frentes: a criação de uma entidade única de fiscalização dos bancos da região e de
mecanismos para “romper o elo entre dívidas bancárias e soberanas”, permitindo que o fundo
europeu de resgate possa emprestar dinheiro diretamente a bancos em dificuldades. o Fmi
reduziu sua previsão de crescimento da zona do euro para 0,7% em 2013, mas manteve sua
projeção de uma contração de 0,3% neste ano.
quanto aos estados unidos, a preocupação do Fundo é com o denominado abismo
fiscal, uma série de cortes de gastos e o fim de isenções fiscais que se aplicariam já a partir de
janeiro, se o Congresso americano não chegar a um plano para aplicá-los gradativamente. o
Fundo acredita que, apesar de dividido, o legislativo norte-americano irá postergar a entrada
em vigor do gatilho, evitando o freio sobre a economia. Assim, o rebaixamento da previsão
de crescimento do PiB dos euA em 2012 para 2% (recorde-se que o crescimento de abril de
2012 era de que o PiB dos euA cresceria 2,1%), revela um quadro desanimador em relação às
perspectivas de crescimento daquele país.
o Fundo prevê dois obstáculos ao crescimento na zona do euro: a primeira barreira está
relacionada ao fato de que muitos países são forçados a reestruturar seus orçamentos e reduzir
a dívida. mas se para isso forem adotadas medidas extremas, elas podem frear o crescimento da
economia. no entanto, nem todas as nações que adotam a moeda comum estão na mesma si-
tuação: muitas ainda estão em condição mais confortável e deveriam trabalhar numa consolida-
ção mais lenta, a fim de não colocar a economia em risco; o segundo obstáculo diz respeito aos
bancos, que deveriam se fortalecer contra a crise e se equipar com mais capital próprio. isso, no
entanto, não deveria ser alcançado com uma limitação na concessão de créditos pelos bancos.
o Fmi sugere o contrário: deveria ser feito de tudo para evitar consequências sobre o mercado,
ou seja, o Banco Central europeu (BCe) deveria assegurar liquidez suficiente e prosseguir com
seu programa de compra de títulos do governo.
o Fundo alerta também para a necessidade de as economias ao redor do mundo seguirem
com os ajustes fiscais, em especial as avançadas, mas alertou que esse processo deve ocorrer dan-
do suporte também ao crescimento e ao emprego. Até porque em 2011 os déficits fiscais caíram
significativamente em muitas economias avançadas. o Fmi reconhece que se trata de um gran-
de desafio, pois uma vez que os riscos para baixo aumentam, a política fiscal tem de andar num
caminho estreito. Assim, uma consolidação fiscal muito rápida em 2012 poderia exacerbar os
riscos para baixo. os países com espaço fiscal, portanto, devem reconsiderar o ritmo de ajuste
no curto prazo, mas a consolidação fiscal no médio prazo continua prioridade.
verifica-se que o Fmi vem desenvolvendo medidas para promover um aumento em seus
recursos para empréstimos para emprestar a países que estejam em dificuldade a fim de atender
129
as necessidades financeiras globais por causa dos efeitos da crise de dívida da zona do euro.
nesse sentido o Fundo está buscando levantar até us$ 600 bilhões em novos recursos para
empréstimos, prevendo que vai usar us$ 500 bilhões para emprestar aos países-membros e
que os us$ 100 bilhões restantes serão guardados como uma reserva de proteção. Para o Fmi
as necessidades financeiras globais, poderiam chegar a us$ 1 trilhão nos próximos anos se as
condições econômicas piorarem consideravelmente.
merece destaque, nesse contexto, o relatório do Fundo que trata da estabilidade Finan-
ceira global, divulgado em julho de 2012, que assinala que as economias emergentes estão
diante de um duplo desafio: tentar conter os efeitos negativos provenientes da instabilidade
financeira nos países avançados, e lidar com vulnerabilidades domésticas que aumentaram nos
últimos meses. entre estas últimas, está uma expansão rápida do crédito, o que aumenta o risco
de empréstimos de má qualidade, e uma erosão do crescimento econômico, como já vem sendo
verificado no Brasil, China e índia. nesse sentido, o Fundo reiterou a sua recomendação de
que os emergentes exportadores de commodities construam colchões enquanto os preços de
matérias-primas ainda continuam altos e há boas condições de liquidez.
oS riSCoS de redução aCeNtuada NoS PreçoS daS CoMModitieS
o relatório do Fmi (jul. 2012), no que se refere aos preços das commodities, destaca que
o patamar ainda permanece elevado, apesar de quedas recentes, o que continua a beneficiar a
América latina, mas que a situação pode mudar. o Fundo adverte que os riscos permanecem
altos e que uma eventual deterioração no cenário externo debilitaria ainda mais a já escassa
confiança dos mercados, contagiando os emergentes. Assim, uma forte desaceleração na ásia
– provocada, por exemplo, por uma recessão nas economias avançadas – poderia afetar ain-
da mais os preços das commodities, o que teria efeitos negativos nos países exportadores de
matérias-primas da América latina.
é relevante ressaltar que no cenário atual, diante da perspectiva de redução nos preços
das commodities que a economia brasileira, ao lado da rússia, se encontra numa posição mais
vulnerável no caso de ocorrer uma elevação duradoura do dólar em relação às cotações de
matérias-primas. é previsível que uma queda nos preços das commodities deverá impactar de
forma negativa a oferta de liquidez na economia brasileira, e o efeito dessa redução atingiria o
mercado de ações e ao crédito.
oCde: relatório de PerSPeCtivaS de CreSCiMeNto
na mesma linha das demais instituições multilaterais mundiais, a organização para Co-
operação e desenvolvimento econômico (oCde, mai. 2012) também reduziu suas previsões
130
econômicas para a zona do euro em 2012 e 2013, e advertiu sobre a possibilidade de um
aumento dos riscos devido ao desencadeamento de um círculo vicioso recessivo. A oCde
estimou que a economia da zona do euro irá contrair 0,1% em 2012, contra a previsão de alta
de 0,6% anunciada em novembro de 2011, e crescerá 0,9% em 2013, em vez de 1,7%.
Para a oCde a pior situação é a da grécia, que viverá em 2012 seu quinto ano con-
secutivo de recessão, desta vez registrando encolhimento do PiB de 5,3%, ao que se seguirá
outra queda de 1,3% em 2013. outros sete de seus 34 estados-membros, todos europeus,
terão uma evolução econômica negativa em 2012: Portugal (-3,2%), eslovênia (-2,0%), itália
(-1,7%), espanha (-1,6%), hungria (-1,5%), holanda (-0,6%) e república tcheca (-0,5%).
em 2013, a recessão continuará, além de na grécia, em Portugal (-0,9%), espanha (-0,8%),
itália (-0,4%) e eslovênia (-0,4%).
em relação aos estados unidos a oCde prevê que o seu PiB deverá subir 2,4% em
2012, em vez dos 2% esperados há seis meses, e 2,7% em 2013, dois décimos mais que a esti-
mativa anterior. no que se refere ao Japão, foram mantidos os dados para este ano (2%), mas
reduzidos os de 2013 (1,5%, em vez de 1,6%).
quanto as maiores economias emergentes, como Brasil e China, a oCde sustenta que estão
se beneficiando de uma melhora moderada de seu crescimento, após um período de desaceleração.
no caso do Brasil, a instituição assinala que existem sinais de que a economia está melhorando,
graças ao consumo privado e aos investimentos, com risco de pressões inflacionárias. o crescimento
do PiB brasileiro caiu de 7,6% em 2010 para 2,7% em 2011, mas estima a oCde que em 2012
subirá para 3,2% e em 2013 para 4,2%.
no tocante a China, que registrou um crescimento do PiB de 10,4% em 2010 e de 9,2% em
2011, a oCde estima que aquele país terá um avanço de 8,2% em 2012, invertendo a tendência
de desaceleração em 2013, e subirá 9,3%. na índia, onde a inflação continua sendo relativamente
alta, a instituição prevê um crescimento de 7,3% este ano e de 7,8% em 2013.
oit: CriSe e deSeMPreGo No MuNdo
os efeitos da crise econômica mundial no nível de emprego estão evidenciados nas pro-
jeções contidas no relatório da organização internacional do trabalho (oit, abr. 2012) que
trata de perspectivas do emprego para 2012, que prevê que, até o fim de 2012, mais de 202
milhões de pessoas estarão desempregadas em todo o mundo. o prognóstico da entidade é de
que o índice cresça 6,1% em 2012 e 6,2% em 2013. Até 2016, 210 milhões de pessoas ainda
estarão à procura de emprego, apesar da retomada paulatina do crescimento econômico.
o referido relatório concluiu que o número de postos de trabalho nos estados unidos
e na união europeia está abaixo dos níveis desde 2008, ano em que eclodiu a crise. o do-
cumento indica que os euA precisam criar cerca de 4 milhões de empregos para voltar aos
131
níveis pré-crise, o que não considera que o número de pessoas que buscam trabalho cresce
aproximadamente 1,5 milhão por ano. Por sua vez, na europa, o desemprego disparou desde
2010. Constata-se que dos 27 países membros da união europeia apenas 10 reduziram seus
indicadores. o cenário mais preocupante é o da espanha, onde 25% da população economi-
camente ativa estão desempregadas e o número cresce para 50% entre os jovens. o relatório
alerta que os jovens de 15 a 24 anos sofrem com o dobro de desemprego em relação a outras
faixas etárias.
no que se refere à precariedade das condições de trabalho, a oCde informou que exis-
tem 42 milhões de trabalhadores de meio período na união europeia, dos quais pelo menos
20% gostariam de trabalhar mais horas por semana. esse cenário revela um aumento do risco
de pobreza e de contestação social em 17 dos 24 países da ue avaliados pelo relatório.
discussão dos indicadores de desempenho da economia mundial
observa-se que os resultados dos esforços que vem sendo feitos pelos governos da Alema-
nha e França e pelo Banco Central europeu, além do Fmi, para resolver as questões envolven-
do a crise da dívida soberana da zona do euro, por meio da concessão de elevados empréstimos
aos países mais afetados, e assim amenizar a desaceleração das economias, não são animadores.
A crise, que na sua origem era um problema de liquidez dos bancos, transformou-se numa
crise fiscal em importantes países da zona do euro, como por exemplo, a espanha e a itália.
destaca-se nesse cenário, também, os riscos de uma possível saída da grécia da zona do euro,
o que está exigindo que os países que integram o bloco preparem um plano de contingência
individual, na eventualidade de que isso ocorra.
deve-se ressaltar, nesse contexto, que, tanto o Fmi como os governos dos estados-nação,
em particular as economias mais desenvolvidas, não estão avançando de forma adequada na
adoção de medidas de regulação do mercado financeiro. esses países, sem exceção, estão levan-
do em conta apenas os seus interesses econômicos e políticos, procurando encontrar soluções
que não desagradem as suas populações, especialmente os eleitores.
A existência de um sentimento de frustração e a forma de reação dos cidadãos em diversos
países da zona do euro, na medida em que constatam os custos socioeconômicos das políti-
cas de austeridade que vem sendo adotadas por seus governantes para enfrentar a crise (o que
vêm provocando a desaceleração do crescimento econômico e reduzido às receitas públicas e
aumentando o nível de desemprego), também é um fenômeno social preocupante. A crescente
insatisfação das populações, traduzidas nas pesquisas de opinião pública e nas manifestações
de protestos contra as referidas medidas de austeridades que estão sendo adotadas na grécia,
irlanda, Portugal, espanha, reino unido, itália, França e Alemanha, são ameaças que pairam
sobre a região. Caso intensifiquem-se, como já vem ocorrendo na espanha, podem refletir na
governança e mesmo na governabilidade dos países em crise, colocando em risco a própria
sobrevivência da união europeia.
132
Feitas essas análises e constatações sobre a economia mundial, iremos abordar, a seguir, as
fragilidades e perspectivas de crescimento da economia brasileira em 2012 e 2013.
PerSPeCtiva da eCoNoMia braSileira Sob a ótiCa da oCde
o PiB do Brasil, conforme prevê o relatório da oCde, vai crescer 3,2% em 2012, e
4,2% em 2013. A organização destaca ainda que a inflação deverá diminuir para 4,9% neste
ano e aumentar para 5,3% em 2013. A inflação brasileira, alerta a oCde, poderá voltar à
tona em razão do apertado mercado de trabalho e da recuperação do crescimento do crédito.
isso pode ser exacerbado caso o Banco Central continue cortando as taxas de juros. Para a ins-
tituição, a visão do governo de que as taxas de juros brasileiras não podem voltar aos antigos
níveis, considerados excessivamente altos, está correta. Ainda assim existem riscos associados
ao movimento do governo para reduzir os juros. o corte de taxas de empréstimos por parte
dos bancos estatais brasileiros pressiona os bancos privados a fazerem o mesmo, mas isso tende
a aumentar a inadimplência da pessoa física e pode impor riscos para os bancos privados. o
governo poderá, por isso, ter de intervir em algum momento para conter um crescimento de
crédito possivelmente desestabilizador.
o Brasil, para a oCde, continua atraindo fluxos significativos de capital estrangeiro, o
que resulta em uma taxa de câmbio forte, porém volátil. As exportações, em particular do setor
manufatureiro, estão sofrendo com a valorização do real e os desafios estruturais. na avalia-
ção da organização, as medidas do governo para conter a alta da moeda nacional podem, no
máximo, fornecer um alívio temporário. diz o relatório que resolver questões estruturais de
competitividade e tirar vantagem das pressões de concorrência geradas pelo comércio aberto irá
melhorar o crescimento da produtividade no longo prazo.
A análise da oCde sustenta que o período de fraco crescimento do Brasil parece estar
chegando ao fim, mas ainda existem riscos na forma de inflação, crédito e competitividade. A
atividade está projetada para aumentar rapidamente e, então, se desacelerar gradualmente para
taxas em linha com a tendência, puxada pelo consumo privado e o investimento.
vulNerabilidade exterNa teCNolóGiCa e Produtivo-CoMerCial do braSil
o Brasil possui no seu elenco de fragilidades na área externa, o que vem contribuindo
para prejudicar o desempenho na sua balança de pagamentos. esses indicadores desfavoráveis
recomenda a necessidade do governo adotar medidas consistentes para reduzir essa fragilidade
externa do país, em particular, elevando os investimentos em setores estratégicos, com vista a
133
melhorar o desempenho produtivo-comercial do país 12. os indicadores mais relevantes do ba-
lanço de pagamentos nos anos de 2010 e 2011, por exemplo, mostram o desempenho sofrível
da balança comercial. registre-se que a conta de transações correntes do balanço de pagamen-
tos apresentou um resultado negativo de us$ 47,5 bilhões em 2010.
registre-se que as exportações, conforme os dados do ministério do desenvolvimento,
indústria e Comércio exterior (mdiC/AeB, 2011)13, somaram um total de us$ 256,04 bi-
lhões em 2011, enquanto as importações atingiram us$ 226,25 bilhões. observa-se que o su-
perávit de us$ 29,7 bilhões registrado na balança comercial brasileira em 2011 foi decorrente
do baixo valor das importações, o que representou um aumento de 47,8% no saldo comercial.
A AeB estima que em 2012 as exportações deverão cair para cerca de us$ 236,580 bilhões,
em função do cenário internacional adverso. As importações alcançarão us$ 233,540 bilhões,
o que irá gerar um superávit no ano de apenas us$ 3,040 bilhões. A queda estimada em
comparação ao saldo de 2011 é 79,5%. Alerta a AeB que as exportações, de uma forma geral,
em dezembro de 2011, mostram queda de preço em quase todos os produtos, principalmente
do minério de ferro e o complexo soja, prevendo-se assim, um impacto em 2012, visto que
os produtos terão uma queda de preço e, eventualmente, queda de quantidade, refletindo na
redução das exportações.
é importante destacar que as commodities representam mais de 70% da pauta de ex-
portações brasileiras. observa-se que as elevações nos preços das commodities brasileiras per-
mitiram que as receitas com esses produtos passassem a ter uma participação significativa nas
exportações brasileiras nos últimos dez anos. A receita de exportação do café foi para us$ 8
bilhões em 2011; a soja alcançou us$ 16,3 bilhões (estima-se que em 2012 deverá ficar próxi-
mo de us$14 bilhões); de açúcar e açúcar refinado o país vendeu us$ 5,8 bilhões em 2011;
no minério de ferro, vendeu us$ 41,8 bilhões, em 2011. verifica-se que nos últimos dez
anos em decorrência do crescimento da demanda houve aumento da quantidade exportada,
observando-se, entretanto, que os preços desses produtos aumentaram numa velocidade maior.
Assim, as exportações brasileiras alcançaram 1,4% das exportações mundiais em 2011, o que
posiciona o Brasil no 22º lugar do ranking do mundo em exportação 14.
observa-se que o Brasil, diante de um ambiente externo desfavorável, encontra-se na
dependência da elevação da produtividade de sua economia. Para que isso ocorra o governo
12 recorde-se que o nível de investimento do Brasil na atualidade é de 19% do PiB, quando é sabido que o nível ideal é 25% do PiB.13 veja o informativo de Comércio exterior – AeB, nov./dez. 2011, Ano Xii, nº 113, p. 1.14 os dados disponíveis estimados para o segmento de commodities brasileiras indicam que o açúcar que atin-giu us$ 573 a tonelada em 2011 e tem o seu preço previsto para us$ 530 em 2012; a carne bovina alcançou us$ 5.077 a tonelada, e deve ficar em us$ 5.000 em 2012; o minério de ferro que em 2011 foi vendido a us$165 a tonelada, deverá ser vendido a us$ 145 a tonelada em 2012, e cair para us$130 a tonelada em 2013; a tonelada do café que era vendido a us$ 4.463 em 2010, deve alcançar us$ 4.600 a tonelada em 2012. A vulnerabilidade externa brasileira se revela também a partir das formas de fragilidade tecnológica e da fragilidade produtiva e comercial.
134
necessita, entre outras medidas, dar continuidade nas reformas microeconômicas, que gerem
estímulos para os investimentos privados. entre essas reformas, destacam-se a definição de
um marco regulatório consistente, continuidade do aperfeiçoamento do sistema tributário,
entre outras. essas medidas tenderão a aumentar a competitividade na economia, criando
assim as condições básicas para permitir o crescimento sustentado da economia brasileira nos
próximos anos 15.
Assim, é essencial aprofundar as reformas microeconômicas, que possibilitarão reduzir
os gastos fiscais, aumentarem o grau de competição de nossa economia, mitigar as distorções
do nosso sistema tributário, e aumentar a segurança dos contratos. Com essas reformas o país
tenderá a reduzir as vulnerabilidades da economia. e desse novo patamar, adotar uma política
econômica com maior autonomia, que lhe permita reduzir os juros reais e os superávits primá-
rios, bem como o uso de políticas anticíclicas, como o fazem as economias desenvolvidas.
A fragilidade produtiva e comercial ocorre, principalmente, nos países emergentes e subde-
senvolvidos, onde há fragilidade tecnológica aliada a uma estrutura produtiva negativa – em que
os principais produtos para exportação são commodities, com baixo valor agregado e com preços
definidos internacionalmente, e as importações concentram-se em bens de consumo ou de ca-
pital, com alto valor agregado. essa combinação de exportações de baixo valor e importações de
alto valor prejudica o país, na medida em que potencializa um déficit comercial, dificultando a
mudança estrutural da produção, haja vista a tecnologia ter de ser importada. outro ponto frágil
da estrutura produtiva do Brasil diz respeito às crescentes participações de empresas estrangeiras,
pois as decisões de investimento e exportação são transferidas para outros países.
A vulnerabilidade externa tecnológica e produtivo-comercial pode ser aceita como um
único processo em que o atraso e a dependência tecnológica nacional produzem uma estrutura
produtiva direcionada ao mercado interno, provocando uma estrutura de comércio exterior
negativa - exportações de baixo valor agregado e altamente dependente de cotações internacio-
nais -. Assim, a vulnerabilidade externa brasileira além de financeira é também estrutural. isso
é preocupante, na medida em que a capacidade de reação das autoridades econômicas frente a
eventuais das mudanças na conjuntura internacional externa é significativamente baixa. nesse
sentido, o país precisará de mais bens de capital e equipamentos para realizar os investimentos
necessários em infraestrutura e para ampliar a produção de commodities.
nesse cenário, observa-se que a economia brasileira está assimetricamente internacionali-
zada. A abertura do mercado nacional não implicou na conquista de outros mercados na inten-
sidade necessária. A internacionalização da economia brasileira, de forma passiva, é um fenô-
15 A vulnerabilidade externa brasileira se revela também a partir das formas de fragilidade tecnológica e da fragilida-de produtiva e comercial. A fragilidade tecnológica é decorrente do fato de que as tecnologias, hoje, são dominadas por um conjunto restrito de empresas que, em sua maioria, possuem origem nos países centrais. desse modo, para modernizar o parque produtivo nacional, há a dependência destes mercados para adquirir tecnologia, o que gera a fragilidade (mAtiAs; krugliAnskAs, 2004).
135
meno antigo, cujos efeitos eram atenuados por elevadas proteções comerciais. Fica evidenciado,
assim, que a abertura do mercado, os déficits e os desequilíbrios exigem medidas adicionais,
como por exemplo, a geração de apoio à internacionalização ativa de empresas brasileiras.
diSCuSSão doS iNdiCadoreS de deSeMPeNho da eCoNoMia braSileira
é relevante destacar, inicialmente, que o significativo crescimento do PiB brasileiro em
2010 teve como base de comparação um crescimento negativo da economia em 2009. Por
sua vez, o desempenho do PiB em 2011, alcançou apenas 2,7%, sendo que a agropecuária
teve um crescimento de 3,9%, serviços de 2,7%, e a indústria apenas 1,6% (iBge, 2012). o
baixo desempenho do setor industrial nos últimos anos mostra que o país está em processo de
desindustrialização. diante desse quadro, fica cada vez mais premente a necessidade de uma
estruturação consistente das bases de competitividade do Brasil, o que requer a elevação da
produtividade por meio da educação de qualidade e pela priorização da ciência e tecnologia,
em especial da inovação.
deve-se destacar que o desempenho sofrível da economia nacional em 2011 (apenas
2,7%), evidencia que o Brasil ainda não superou as suas fragilidades, que continuam atuando
como obstáculos ao desenvolvimento. observa-se que a possibilidade do país iniciar um círculo
virtuoso de crescimento econômico sustentado – necessário para elevar o nível do emprego,
reduzir a informalidade e as desigualdades sociais – não é factível nas atuais circunstâncias, em
decorrência das deficiências da política econômica que vem sendo implementada, em particu-
lar as políticas fiscal e monetária.
em 2012, por sua vez, a economia brasileira se contraiu 0,35% em março, na comparação
com fevereiro, na série com ajuste sazonal, conforme indicam os dados do iBC-Br (BCB, abr.
2012). registre-se que esse índice se apresenta como uma prévia do PiB do país. no acumulado
do primeiro trimestre deste ano, o iBC-Br sinaliza que a atividade econômica registrou alta de
0,15% na comparação com o quarto trimestre de 2011. Por sua vez, os dados divulgados pelo
instituto Brasileiro de geografia e estatística (iBge) no início de junho deste ano mostram
que o PiB do país cresceu 0,2% nos primeiros três meses de 2012. esses resultados evidenciam uma
clara perda de dinamismo da economia brasileira, provocada pela perda da competitividade da
indústria, a queda na taxa de crescimento do varejo e do consumo, que sofreu o impacto do
aumento do endividamento e do crédito mais seletivo. nesse sentido, a projeção inicial do go-
verno federal de crescimento do PiB para 4,5% em 2012 não se sustenta. é oportuno destacar,
com base nos dados do iBC-Br e do iBge, que o PiB brasileiro em 2012 deverá ficar próximo
de 2,0%, e a demanda doméstica, com incremento da renda e baixo desemprego, continuará a
ser o principal motor do crescimento do país.
136
Assim, a partir das análises feitas, torna-se possível alertar sobre os custos da manutenção
da atual política econômica, particularmente das políticas fiscal e monetária, que mantêm a
transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos, na medida em que privilegia excessi-
vamente o capital financeiro. os sinais de fragilidades da economia do Brasil estão evidenciados
no nível da dívida pública interna, numa baixa taxa de poupança doméstica, reduzida inserção
no comércio internacional - no qual importa e exporta pouco em relação ao PiB -, e por uma
integração imperfeita no sistema financeiro internacional.
o modelo econômico em vigor, no nosso entendimento, que tenta conciliar crescimento
econômico, taxas de juros reais elevadas, aumento do superávit primário e avanços nas con-
tas fiscais não é sustentável por muito tempo. nesse sentido, fica evidenciado a necessidade
promover-se mudanças criativas no atual modelo econômico, buscando combinar a obtenção
de superávits primários com taxas de juros mais baixas 16 e a manutenção do crescimento eco-
nômico em nível adequado. dessa forma será possível reduzir gradualmente a relação dívida
interna/PiB. na condução da política fiscal: redução dos gastos correntes e elevação dos gastos
em investimentos, para depender menos da elevada taxa de juros na contenção da inflação; e
na política monetária: adoção de medidas menos danosas para a economia, como por exemplo,
elevação do depósito compulsório ou do imposto sobre operações financeiras (ioF) para com-
bater a inflação, além da continuidade da redução da taxa de juros.
torna-se relevante, ainda, alertar que as ações e medidas adotadas isoladamente na área
de oferta de crédito, em que pesem ser necessárias num momento de queda no desempenho da
economia, não serão suficientes para que o Brasil enfrente de maneira adequada os complexos
problemas socioeconômicos decorrentes do agravamento dos efeitos da crise econômica mun-
dial, que começam a chegar com mais intensidade no Brasil, com destaque para a queda nos
preços das commodities. é relevante destacar que as principais ameaças estão no cenário externo,
e que o Brasil não dispõe de instrumentos políticos e econômicos para modificar esse cenário.
CoNCluSÕeS
As sistemáticas revisões para baixo dos indicadores econômicos e sociais divulgados por
diferentes instituições multilaterais mundiais para 2012 e 2013, revelam que, além dos zeus
(países da zona do euro e euA) estão sentindo, em escalas distintas, os efeitos dos refluxos da
crise, especialmente na deterioração do mercado de trabalho e da renda. A configuração desse
cenário está contribuindo para colocar em alerta o mundo sobre a possibilidade de uma reces-
são global.
16 A decisão do Comitê de Política monetária (Copom), do Banco Central, de 11 de julho de 2012, de cortar a taxa básica de juros (a selic) em 0,5 ponto percentual, indo de 8,5% para 8% ao ano, foi o oitavo corte seguido na taxa. A série de reduções começou em agosto de 2011, quando os juros caíram de 12,5% para 12%. registre-se que essa é a menor taxa que o Brasil já teve desde a criação da selic, em julho de 1986 (matias-Pereira, 2012).
137
no que se refere ao Brasil, como decorrência dos efeitos da retomada da crise mundial,
é previsível que haverá uma sensível redução do crescimento da economia do país em 2012 e
2013, em decorrência, em especial, da desaceleração na indústria. é importante alertar que o
cenário mundial favorável que beneficiou o Brasil no período de 2003 a 2008 está passando
por fortes transformações e gerando incertezas. diante dessas mudanças argumentamos que é
necessário que o país prepare-se de forma adequada para enfrentar as turbulências externas.
registre-se que a condução da política econômica no Brasil se apresenta bastante comple-
xa, pois vai além da preocupação com a maximização do emprego e da estabilidade do valor da
moeda. nela também está incluída a proteção social, diminuição do nível da pobreza, a redu-
ção das desigualdades de renda pessoais, a redução dos desequilíbrios regionais, entre outros. o
governo atual já definiu como prioridade, por exemplo, a execução do plano de aceleração do
crescimento (PAC 2) e da política de desenvolvimento produtivo (PdP), reduzir gastos corren-
tes, preservar os programas sociais, os investimentos e o nível de emprego; assegurar proteção
aos segmentos mais vulneráveis; continuar a valorizar o salário mínimo, entre outras ações.
em relação às mudanças necessárias na condução da política monetária no país, em espe-
cial, a redução das taxas de juros, é essencial que o Banco Central (BCB), mesmo diante das in-
certezas no cenário externo, continue assumindo uma postura mais proativa nas suas decisões.
é importante lembrar que o Brasil, apesar das quedas nas taxas de juros selic nos últimos doze
meses, ainda pratica uma das maiores taxas de juros reais do mundo (BCB, jul. 2012). esse ce-
nário nos permite argumentar que os custos das decisões equivocadas que vem sendo adotadas
nos últimos anos pelas autoridades monetárias são muito elevados para a sociedade brasileira.
Argumentamos, apoiado nos indicadores e nas análises dos documentos selecionados, que
as políticas econômicas implementadas pelo governo brasileiro para enfrentar as turbulências
presentes na economia mundial mostram-se insuficientes para fazer frente às ameaças externas.
A taxa de investimento não está crescendo e a produtividade está avançando de forma lenta, de-
corrente, entre outros motivos, da mudança de composição do PiB, das deficiências da gestão
pública, da interferência do estado na economia e do aumento do protecionismo. diante desse
cenário preocupante revela-se necessário que se defina um diagnóstico consistente para o Brasil,
que permita uma mudança estrutural no potencial de expansão da economia do país, em espe-
cial, preparando de forma mais adequada os ambientes macroeconômico e microeconômico.
nesse diagnóstico é recomendável que os governantes levem em consideração a necessida-
de de aprofundar os cortes nos gastos correntes do setor público, priorizando os investimentos
em setores estratégicos de infraestrutura essenciais para o desenvolvimento, diminua tributos,
em particular os impostos indiretos, reduza o serviço da dívida, dando continuidade aos cortes
na taxa de juros, controle a inflação, adote medidas para evitar a desvalorização acentuada do
real, melhore o desempenho da governança pública, combata a corrupção, aumente a com-
petitividade, estimule a inovação, e em especial, estimulando o desenvolvimento do capital
138
humano, elevando a qualidade da educação da população, por meio de reformas educacionais
consistentes e alocando investimentos na formação profissional.
reFerÊNCiaS
BAnCo mundiAl. relatório Perspectiva econômica global 2012 (geP). Washington d.C.: Banco mundial, jun. 2012.
BrAsil. senado Federal. Constituição da república Federativa do Brasil. Brasília: senado Federal, 2011.
BrAsil. Banco Central. relatório do Comitê de Política monetária. Brasília: CoPom/BCB, jul. 2012. disponível em: www.bcb.gov.br. Pesquisa feita em 19.07.2012.
BrAsil. Banco Central. indicadores econômicos. Brasília: dePeC/BCB, jul. 2012.
BrAsil. Banco Central. Focus – relatório de mercado. Brasília: BCB, jul. 2012. disponível em: http://www.bcb.gov.br
BrAsil. iBge. Contas nacionais. rio de Janeiro: iBge, 2011a. disponível em: www.ibge.gov.br. Pesquisa feita em 12.07.2012.
BrAsil. iBge. Pesquisa industrial mensal Produção Física – regional. rio de Janeiro: iBge, 2011b. disponível em: www.ibge.gov.br. Pesquisa feita em 15.07.2012.
BrAsil. iBge. síntese dos indicadores sociais. rio de Janeiro: iBge, 2011c. disponível em: www.ibge.gov.br. Pesquisa feita em 15.07.2012.
imF. international monetary Fund. World economic outlook update. Global recovery Ad-vances but remains uneven. Washington – dC: imF, jul. 2012. disponível em: www.imf.org. Pesquisa feita em 27.07.2012.
keynes, John m. teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro. são Paulo: Abril Cultural, 1983. (os economistas).
keynes, John m. the Collected Writings of John maynard keynes, 30 volumes. london: mac-millan e Cambridge: Cambridge university Press. volumes identificados como CW, seguidos pelo número respectivo.
leePer, e. m. equilibrium under active and passive monetary and fiscal policies. Journal of mo-netary economics, v. 27, n. 1, p. 129-147, 1991.
leePer, e. m. A simple model of the fiscal theory of the price level. Bloomington: indiana uni-versity, 2005.
mAtiAs-PereirA, J. Curso de Administração Pública. 3.ed. são Paulo: Atlas, 2010.
mAtiAs-PereirA, J. Finanças Públicas: foco na política fiscal, no planejamento e no orçamento público do Brasil. 6. ed. são Paulo: Atlas, 2012.
mAtiAs-PereirA, J. Curso de Administração estratégica. são Paulo: Atlas, 2011.
mAtiAs-PereirA, José. gestão das Políticas Fiscal e monetária: os efeitos colaterais da crise mundial no crescimento da economia brasileira. revista observatorio de la economía latinoame-ricana, vol. 148, p. 1-23, 2011.
musgrAve, r.; musgrAve, P. B. Finanças Públicas – teoria e Prática. são Paulo:
139
editora Campus – editora da universidade de são Paulo, 1980.
musgrAve, richard. the theory of Public Finance. new york: mcgraw-hill, 1959.
north, d. institutions, institutional change and economic performance. 7th ed. Cambridge: Cambridge university Press, 1997.
onu. nações unidas. Conferência das nações unidas para o Comércio e o desenvolvimento - unCtAd. relatório ‘situação e Perspectivas da economia mundial. genebra: unctad, jan. 2012.
onu. nações unidas. organização internacional do trabalho - oit. relatório Panorama laboral 2011. genebra: oit, jan. 2012. disponível em http://www.ilo.org.
onu. nações unidas. oit. organização internacional do trabalho. relatório tendências mun-diais de emprego 2012: prevenir uma crise mais profunda de empregos. genebra: oit, jan. 2012. disponível em http://www.ilo.org.
onu. nações unidas. oit. organização internacional do trabalho. relatório tendências mun-diais de emprego 2012. genebra: oit, abr. 2012.
oeCd. organization for economic Co-operation and development. oeCd economic outlook no. 88. Paris: oeCd, november 2010. disponível em:
http://www.oecd.org/dataoecd/41/33/35755962.pdf. Pesquisa feita em 17.07.2012.
sArgent, t. J. Beyond demand and supply curves in macroeconomics. American economic review Papers and Proceedings, n. 72, 1982.
sArgent, t. J. reaganomics and credibility, rational expectations and inflation. new york: har-per and row, 1986.
sims, C. A. A simple model for study of the price level and the interaction of monetary and fiscal policy. economic theory, n.4, 1994.
World BAnk. the international Bank for reconstruction and development. global economic Prospects 2012. Washington dC: the World Bank, jun. 2012. disponível em: WWW.worldbank.org. Pesquisa feita em 11.07.2012.
WoodFord, m. Price level determinacy without control of a monetary aggregate. nBer Working Paper, n. 5204, 1995.
WoodFord, m. interest and prices: foundations of a theory of monetary policy. new Jersey: Princeton university Press, 2003.
140
141
SuSTENTABiLiDADE NEGoCiAL Em TEmPo DE CriSE
Jussara Suzi assis borges Nasser Ferreira
A temática acerca da sustentabilidade tornou-se recorrente no campo do conhecimento
científico. Contudo, torna-se indispensável descrever contornos e definições ao derredor da
amplitude do conceito, principalmente pelas várias dimensões assumidas.
A circunscrição conceitual e limitativa para a apreensão do conceito de sustentabilidade
envolve reflexão intrínseca e extrínseca, visando àinstrumentalidade da própria temática para
ser empregada no direito com nitidez, afastando ambiguidades e pontuando os diversos sen-
tidos de sustentabilidade.
A proposta, como lançada, apenas enumera as possibilidades plurais do estudo e utiliza-
ção do conceito, diferenciando, assim, os vários perfis de uma mesma categoria.
o conceito de sustentabilidade vem sendo definido em relação à: sustentabilidade Políti-
ca, sustentabilidade Jurídica, sustentabilidade social, sustentabilidade econômica, sustenta-
bilidade ecológica, sustentabilidade Ambiental e sustentabilidade Cultural.
Para fins do estudo, a sustentabilidade negocial é apreendida pela conjugação da susten-
tabilidade jurídica, econômica e política. Assim, a leitura mais detida remete para uma outra
perspectiva do conceito de sustentabilidade, contextualizado na sociedade de massa a partir dos
preceitos econômicos responsáveis pelo desenvolvimento econômico sustentado do país.
o núcleo temático definido pela investigação da sustentabilidade negocial conduz, inega-
velmente, ao questionamento da ordem econômica e da ordem jurídica na perspectiva mundial.
A indagação permanece, ao considerar implícita na finalidade do negócio jurídico a efetivação
dos resultados, como pactuados, ponto fundamental de sustentação e, portanto, equilíbrio das
relações negociais, principalmente, em tempo de crise.
capítulo 8
142
iNterMitÊNCiaS eNtre oS ModeloS eStataiS e oS ModeloS NeGoCiaiS
o estado liberal, dentre outras consequências, rompeu com a intervenção na economia,
assentando as bases do liberalismo, privilegiando a proteção dos interesses individuais. nos
movimentos seguintes, a ordem estatal retoma, no pós-guerra, o modelo intervencionista pas-
sando a defender e regulamentar um maior grau de intervenção na economia, sendo adotado
pelas democracias de então, prosperando no estado social com a constitucionalização predo-
minante, a ponto de consagrar a denominada Constituição econômica ao lado da Constituição
Política.
A partir da Constituição de Weimer (1919), que serviu de modelo para inúmeras outras constituições do primeiro pós-guerra, e apesar de ser tecnicamente uma Cons-tituição consagradora de uma democracia liberal – houve a crescente constitucionali-zação do estado social de direito, com a consagração em ser texto dos direitos sociais e a previsão de aplicação e realização por parte das instituições encarregadas dessa missão. A constitucionalização do estado social consubstanciou-se na importante intenção de converter em direito positivo várias aspirações sociais, elevadas à catego-ria de princípios constitucionais protegidos pelas garantias do estado de direito. A necessidade de regulação da maior intervenção estatal na economia, por pressão da corrente política social-democrata nas diversas Assembleias Constituintes, gerou a existência de previsões expressas nas diversas constituições, gerando a denominada Constituição econômica.1
Além das normas e princípios políticos, são tutelados os direitos humanos com a adoção
de normas de ordem social e, na sequência, de normas de ordem econômica.
o negócio jurídico, instituto fundamental do estado democrático de direito, acompa-
nha a ordem evolutiva dos modelos estatais. o perfil liberal do negócio jurídico com a con-
templação do interesse individual, consagrado pela autonomia privada no âmbito do contrato,
sofre as limitações definidas pelo estado social. As transformações observadas nas esferas da
autonomia privada são essencialmente decorrentes da intervenção estatal.
no estado social, a autonomia privada na esfera negocial está para o contratante, assim
como a livre iniciativa está para a empresa, conforme os limites impostos pela ordem econômi-
ca e determinados pelos princípios e valores.
A Constituição da república Federativa do Brasil trata dos princípios gerais da atividade
econômica (arts. 170 a 181); da política urbana (arts. 182 e 183); da política agrícola e fundi-
ária da reforma agrária (arts. 184 a 191) e do sistema financeiro nacional (art. 192), definindo,
assim, as normas específicas em relação à ordem econômica e financeira.
1 morAes, A. Direito Constitucional. 22. ed. são Paulo: Atlas, 2007, p. 795.
143
José Alfredo de oliveira Baracho2 defende a clara existência de relação vinculativa entre
a Constituição e o regime econômico, exatamente pela contemplação da matéria econômica
como estabelecida pelo texto constitucional.
OS FINS DA ORDEM ECONôMICA
os fins da ordem econômica, como previstos no art. 170 da Constituição Federal, re-
sidem em assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, reconhe-
cidos como princípios-fins, observado o conjunto de demais princípios de funcionamento da
ordem econômica, como elencados: soberania nacional; propriedade privada; função social
da propriedade; livre concorrência; defesa do consumidor; defesa do meio ambiente; redução
das desigualdades regionais e sociais; busca do pleno emprego; tratamento favorecido para as
empresas de pequeno porte, assegurando a todos, na forma do parágrafo único, o exercício de
qualquer atividade econômica.3
Para o professor Celso Antonio Bandeira de mello:
[...] com o advento da Constituição de 1988, tornou-se enfaticamente explícito que nem mesmo o planejamento econômico – feito pelo Poder Público para algum setor de atividade ou para o conjunto deles – pode impor-se como obrigatório para o setor privado [...] em suma: a dicção categórica do artigo deixa explícito que, a título de planejar, o estado não pode impor aos particulares nem mesmo o atendimento às diretrizes ou intenções pretendidas, mas apenas incentivar, atrair os particulares, me-diante planejamento indicativo que se apresente como sedutor para condicionar a atuação da iniciativa privada.4
2 BArACho, J. A. o. o princípio de subsidiariedade: conceito e evolução. in: Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. n° 19, p. 11.3 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim asse-gurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:i - soberania nacional;ii - propriedade privada;iii - função social da propriedade;iv - livre concorrência;v - defesa do consumidor;vi - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos pro-dutos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; vii - redução das desigualdades regionais e sociais;viii - busca do pleno emprego;iX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.4 BAndeirA de mello, C. A. liberdade indevida. intromissão estatal indevida no domínio econômico Apud BArroso, l. r. A ordem econômica constitucional e os limites a atuação estatal no controle de preços. di-sponível em: <http://www.direitopublico.com.br/pdf_14/diAlogo-JuridiCo-14-Junho-Agosto-2002-luis-roBerto-BArroso.pdf>. Acesso em: 4 nov. 2008.
144
os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência asseguram a autonomia da inicia-
tiva privada sem, contudo, desvincular a conformação referente ao atendimento dos princípios-
fins e dos princípios de funcionamento da ordem econômica.
Cabe ao estado fiscalizar o regular atendimento, pela iniciativa privada, dos princí-pios de funcionamento da ordem econômica. no desempenho dessa competência, deverá editar normas, coibindo abusos contra o consumidor, prevenindo danos à natureza ou sancionando condutas anti-concorrenciais, para citar alguns exemplos. Ao traçar esta disciplina, deverá o Poder Público, como natural, pautar-se no quadro da Constituição, tendo como vetor interpretativo os fundamentos do estado e da ordem econômica: livre iniciativa e valorização do trabalho humano.5
em outras palavras, não se pode falar, sem prejuízos dos princípios fundamentais da ordem econômica, consagrados na lei maior, transferir aos particulares de forma cogente o ônus de concretizar princípios-fins de responsabilidade do estado. A reali-zação de seus próprios objetivos privados não é incompatível – deve-se enfatizar – com a função social da empresa e certos deveres de solidariedade, mas não inclui o de substituir-se ao Poder Público. Como é intuitivo, o papel da iniciativa privada na ordem econômica é diverso daquele desempenhado pelo estado.6
A Constituição Francesa, no Preâmbulo, reafirma o ideal comum de liberdade, igualdade
e fraternidade como divisa da república estabelecida pelo artigo 2º. A partir do artigo 69, faz a
previsão da intervenção estatal na ordem econômica exercida através do Conselho econômico
e social, com competência para ser consultado acerca de qualquer assunto de caráter econômi-
co e social. o artigo 70 da Constituição Francesa determina que todo plano ou projeto de lei,
de caráter econômico e social, deverá ser submetido para exame e parecer do Conselho.
A república democrática e social Francesa mantém o apego à liberdade, fazendo a re-
missão ampla a toda forma de liberdade, portanto, não excluindo a livre iniciativa, não prevista
de forma expressa, considerando, porém, limites mais significativos à matéria econômica sem
fazer distinção entre interesses público e privado, expressando-se, assim, mais rígida que a Car-
ta magna nacional.
o sistema francês trata com clareza tanto a liberdade de mercado, quanto o interesse so-
cial, visando ao equilíbrio indispensável à atuação econômica no plano privado.
mercados são estruturas relevantes quando agentes econômicos tomam decisões so-bre produção, pois à liberdade de mercado corresponde a liberdade de iniciativa eco-nômica, possibilidade de oferecer a própria força de trabalho nos mercados. interesse social é uma das razões que justificam a promoção das trocas eficientes porque isto aumenta o bem-estar das pessoas.7
5 idem, ibidem.6 idem, ibidem.7 sztAJn, r. Teoria Jurídica da Empresa: atividade empresária e mercados. são Paulo: Atlas, 2004, p. 43.
145
A Constituição italiana, no artigo 41, estabelece que a iniciativa econômica particular é
livre, não podendo ser exercida em contradição com a utilidade social ou de maneira a causar
dano à segurança, à liberdade, à dignidade humana. vai além para regular os controles apro-
priados e distintos da economia pública e da economia privada, devendo as respectivas ativi-
dades serem orientadas e coordenadas para fins sociais. A visibilidade da relação entre os textos
constitucionais italiano e nacional permite antever a significativa aproximação explicitada pela
finalidade social como primordial e fundada na pulsão original da função social.
Portanto, mercado implica ordem e liberdade. equívoco é pensar que mercados, or-ganizações ou instituições sociais para alguns, estruturas ou superestruturas para ou-tros, surgem espontânea ou naturalmente nas sociedades, que são simples construções voluntaristas dos agentes econômicos.8
A Constituição Portuguesa de 1976, com as revisões constitucionais de 1997 e 1982,
assegura a intervenção direta e substitutiva do estado na gestão de empresas privadas, confe-
rindo-lhe competência para a prática de todos os atos e de todas as providencias necessárias à
promoção do desenvolvimento econômico e social e à satisfação das necessidades coletiva, de
conformidade com o art. 199. na forma do art. 83, compete exclusivamente à lei determinar os
meios e formas de intervenção. os limites à atividade econômica privada, portanto, só podem
ser fixados por lei, em especial, no que respeita à liberdade de iniciativa econômica, consagran-
do o princípio da legalidade da intervenção.
A Constituição europeia, no art. iii, 130º, regulamenta o funcionamento do mercado
interno, assegurando a liberdade, a livre circulação, visando à eficácia e protegendo contra
perturbações.
1. A união adopta as medidas destinadas a estabelecer o mercado interno ou a asse-gurar o seu funcionamento, em conformidade com as disposições pertinentes da Constituição.2. o mercado interno compreende um espaço sem fronteiras internas no qual a livre circulação de pessoas, serviços, mercadorias e capitais é assegurada em conformidade com a Constituição.3. o Conselho, sob proposta da Comissão, adopta os regulamentos europeus ou as decisões europeias que definem as orientações e condições necessárias para assegurar um progresso equilibrado no conjunto dos sectores abrangidos.4. Aquando da formulação das suas propostas destinadas a realizar os objectivos enunciados nos n.os 1 e 2, a Comissão tem em conta a amplitude do esforço que certas economias que apresentam diferenças de desenvolvimento devem suportar ten-do em vista o estabelecimento do mercado interno e pode propor as medidas adequa-das.
8 sztAJn, r., op. cit., p. 41/42.
146
se estas medidas tomarem a forma de derrogações, devem ter carácter temporário e implicar o mínimo possível de perturbações no funcionamento do mercado interno.9
A união europeia, diversamente do sistema americano, adota a regulação da economia
considerada indispensável ao exercício das atividades econômicas entre os estados-membros,
observadas as peculiaridades referentes à multiplicidade de soberanias estatais.
o modelo americano representa exceção à intervenção do estado na economia, ao sus-
tentar a American-style regulation.
Para se referir à forma de intervenção estatal que acredita no funcionamento perfeito do mercado em circunstâncias normais e que, por isso, deixa a propriedade das em-presas em mãos de pessoas privadas. [...] específica concepção de todo relacionamen-to do estado com a economia [...] a atenuação da intervenção direta e o favorecimen-to à intervenção regulatória [...] uma diferente concepção estrutural da própria economia, do papel do estado e dos agentes econômicos [...]. Assim, se nos estados unidos da América é difícil de se vislumbrar uma intervenção econômica direta e ativa [...], isso nem sequer seria possível de se cogitar frente à Comunidade europeia. [...] o que se pode vislumbrar é a regulação econômica, submetida a determinadas peculiaridades ínsitas à soberania dos estados-membros.10
os estados unidos prestigiam a função regulatória, estimulando o setor privado, tudo
conforme o perfil do próprio mercado, determinando o modo de interferência do estado em
relação à atuação de mercado. de certa forma, o Brasil absorveu a influência regulatória ame-
ricana no período das privatizações, porém, o estado americano conduz a política de regulação
de forma significativa, visando à retirada do estado desse segmento, incorrendo na ausência de
supervisão e, portanto, na falta de qualidade da regulação.
mercados, em geral, promovem os objetivos básicos de uma ordem social, e qualquer ordem social que pretenda operar bem não dispensa a organização de mercados, afir-ma sunstein. mercados tendem a premiar as pessoas com base em elementos estanhos à moral e à justiça; o que se nota é que mercados permitem que as pessoas desenvol-vam as características que se desejam, que se premiam. A teia de normas sociais que se cria em mercados precisa ser estudada no sentido de se aperfeiçoá-las para que não se tolham as liberdades individuais na decisão. Por isso é que as instituições devem visar à diminuição de riscos de abuso de poder, seja do governo, seja de particulares. mercados transparentes são aqueles em que, do comportamento dos participantes, é possível extrair informações claras, em que a assimetria nesse campo é reduzida por-que facilitam a comparação entre bens e preços. Com isso, as decisões serão melhores.
9 Constituição da União Europeia, título iii: Políticas e Ações internas, seção 1 – estabelecimento e Funciona-mento do mercado interno (art. iii, 130º). disponível em: < http://www.fd.uc.pt/Ci/Cee/pm/tratados/Consti-tuicao/Constituicao_pdf/index.html>. Acesso em: 15 dez. 2008.10 moreirA, e. B. o direito Administrativo Contemporâneo e a intervenção do estado na ordem econômica. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico. salvador, instituto de direito Público da Bahia, n° 1, fever-eiro, 2005. disponível em: < http://www.direitodoestado.com/revista/redAe-1-Fevereiro-2005-egon%20BoCkmAnn.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2008.
147
mas é preciso que haja normas jurídicas e instituições sociais para que se atinjam os benefícios do processo de maneira eficaz.11
o mercado americano, alheio às próprias normas de autorregulação, potencializou ris-
cos através de ações temerárias, calcadas em títulos podres, vetando qualquer possibilidade de
transparência de suas ações, impedindo o consumidor e, principalmente, o mercado nacional e
internacional de obter informações claras, objetivas, precisas e éticas, operando a lógica contrá-
ria às regras orientadoras dos mercados democráticos, violando normas jurídicas, convenções
sociais, causando, através de sua forma negativa de atuação, a insustentabilidade econômica
resultante da quebra de paradigmas definidores das regras dos mercados modernos.
no Brasil, todo este seguimento financeiro de mercado está sob controle e supervisão do
Banco Central, que faz supervisões regulares, acompanhando os movimentos do mercado, em
especial, o financeiro.
dos ordenamentos apontados, à exceção do americano, fica patente que a ordem econô-
mica está sujeita à ação do estado, naturalmente de caráter regulador, respeitando a iniciativa
privada sem descaracterizar a atuação do estado no exercício de uma atividade própria de suas
competências e atribuições. A intervenção na ordem econômica se faz indispensável, organi-
zando as ações típicas do mercado, assegurando o desenvolvimento das atividades econômicas
de maneira equilibrada e considerando o caráter público ou privado nas esferas inerentes de
cada setor.
PerFil do NeGóCio JurídiCo Na PóS-ModerNidade
o perfil negocial, na pós-modernidade, é representado pelas profundas transformações
havidas no ambiente negocial, partindo da inexorável crise do negócio jurídico para alcançar o
status de pluralidade que representa a resignação dos pactos democratizados com a valorização
dos fins sociais e o retorno à boa-fé.
A análise do novo contexto negocial, influenciado pela constitucionalização do negó-cio jurídico, revela dois ambientes de realização dos pactos, de acordo com as previ-sões das codificações ou de acordo com o estatuído pelo texto constitucional, consi-derando as dimensões individuais e plurindividuais dos pactos, na medida em que são socializados na expectativa de efeitos, igualmente de espectro social. [...] o movimen-to de superação da crise do contrato impõe limites à autonomia privada em busca da igualdade material das partes, pluralidade de interesses coletivos e a possibilidade da intervenção do estado e do estado-juiz na revisão do contrato. [...] A reflexão con-junta acerca dos diversos níveis e estágios de insatisfação do contratante de menor
11 sztAJn, r, op. cit., p. 41.
148
poder e condições de negociar, oportuniza o desenvolvimento das ideias revolucioná-rias, voltadas para o ideal social em nome das liberdades e igualdades.12
o modelo liberal ao ser preterido pela concepção democrática de estado faz emergir a re-
visão do negócio jurídico concebido sob o movimento de modernização de diversos institutos
jurídicos e, em específico, em relação aos pactos particulares, individualistas, solidificados pelas
relações negociais pretéritas.
A concepção tradicional do negócio jurídico, permitindo o uso do instituto como instrumento de exploração social, faz desmoronar as bases do contrato rompendo com o paradigma liberal. nessa perspectiva, altera-se o lastro principiológico negocial formado, anteriormente, por princípios, igualmente herméticos, como organizados pela metodologia racionalista. [...] A invocação principiológica, partindo dos princí-pios constitucionais, representa fenômeno pós-moderno para o direito brasileiro. no direito europeu, em especial no direito germânico, a prevalência dos princípios ocor-re por influência da Jurisprudência dos valores, assimilada pelos modernos estados democráticos de direito e respectivas Constituições democráticas e sociais contem-porâneas.13
Com as transformações determinantes da finitude do individualismo negocial desenvol-
veu-se toda uma fase de revisões, reflexões, análises críticas que, no conjunto, permitem a
elevação da categoria, nivelando-a com os princípios assumidos nos compromissos e ideais das
novas democracias.
Considerando as razões que conduzem à reestruturação da teoria negocial, importa ressaltar a influência de todo o direito continental voltado a um contratualismo social em contraponto ao contratualismo originário focado, com exclusividade, no indivíduo. [...] o contrato como uma das grandes forças estruturantes do direito privado afasta-se do perfil individual, evoluindo, a exemplo da tendência internacional, em direção à concepção plurindividual e social dos pactos. neste ponto, importante remarcar a evo-lução do modelo estatal democratizado, implicando na democratização dos pactos. su-jeito e objeto são redesignados e a vontade realizadora da pactuação apresenta-se reves-tida da significação do que pode ser nominado como vontade social.14
induvidoso que a transformação do modelo negocial implica, em linha direta, em novas
concepções de mercados, questionando-se a adequação e importância em relação ao desenvolvi-
12 FerreirA, J. s. A. B. n.; mAzeto, Cristiano de souza. Constitucionalização do negócio jurídico e ordem econômica. Argumentum - revista de direito da Faculdade de direito da unimAr. v. 5. marília: unimAr, 2005, p. 86/87.13 FerreirA, J. s. A. B. n. teoria Crítica do negócio Jurídico. Diritto & Diritti – Rivista Giuridica on line. disponível em: <http://www.diritto.it/all.php?file=27048.pdf>. Acesso em: 18 dez. 2008.14 idem, ibidem.
149
mento econômico norteado pela previsão constitucional referene à ordem econômica, considera-
da estrutural para o exercício das atividades econômicas, destacadamente no ambiente privado.15
SuSteNtabilidade NeGoCial, PriNCíPioS da ordeM eCoNôMiCa e CriSe
A ordem negocial, como definida pelos sistemas democráticos na pós-modernidade, tem
por base e fundamento a ordem econômica pré-estabelecida constitucionalmente através de
Constituições político-econômicas e sociais. nesta perspectiva, observa-se a relevância da in-
tervenção estatal para fins de estudo tomada em linha de conta, considerando-se os princípios
da ordem econômica referentes ao trânsito negocial, com reflexos nas operações de mercado
mundializado e em crise.
o pré-estabelecimento de uma ordem econômica traduzida na indicação de princípios-
fins, orientadores da efetivação econômica e social do estado, secundados pelos princípios de
funcionamento, responsáveis pela operabilidade das previsões constitucionais, institui a dinâ-
mica das transformações e modernizações das instituições, das estruturas e dos atores econô-
micos e sociais.
A delimitação principiológica explicitada pelo cardápio de valores do art. 170 e consubs-
tanciada pelos princípios que estabelecem, a um só tempo, os fins e o funcionamento da ordem
econômica – valorização do trabalho humano, livre iniciativa, existência digna, conforme os
ditames da justiça social –, impõe uma diretriz axiológica de dimensão imensurável, estabele-
cendo os eixos da ordem negocial. os pactos próprios do ambiente do trabalho, delimitado
nas relações contratuais trabalhistas para fins desta investigação, considerados paradigmáticos
em relação à sustentabilidade negocial, têm por finalidade precípua, igualmente, a existência
digna do empregado e do empregador, copartícipe de uma atuação empresarial responsável e
limitado pela concretização da justiça social. nesse eixo de operabilidade negocial residem as
condições de possibilidade para uma dissecação das demais ambiências negociais, atreladas à
indispensável sustentabilidade, e analisadas, na sequência, focando-se os princípios eleitos pela
investigação.
15 A previsão constitucional do artigo 170 da magna Carta é, inegavelmente, núcleo de revalorização do sujeito, aquele mesmo espectador dos fins práticos. A ordem econômica constitucional torna assentar a dignidade humana do sujeito para então, recolocá-lo nos diversos lugares que realmente ocupa em sociedade. Assim, o primeiro sujeito nomeado pela ordem, é o trabalhador, seguido do empresário, aquele da livre iniciativa, quiçá o empregador. A esses sujeitos a promessa de segurança e esperança do trabalho humano digno e da liberdade equilibrada. [...] na indica-ção do cardápio principiológico do artigo 170, e incisos, o sujeito é eleito, sem dúvida, o titular dos ditames da jus-tiça social; define-se como cidadão no âmbito da soberania nacional, seguido do sujeito-proprietário da propriedade privada e funcionalizada. Por fim, o sujeito-consumidor, de bens, serviços, valores, princípios e justiça social. não há no ordenamento jurídico pátrio similar contemplação do sujeito, contextualizado vezes tantas, como “sujeito de titularidades”, como defende luiz edson Fachin. (FerreirA, mAzeto, op. cit., p. 86/87.
150
PROPRIEDADE PRIVADA E FUNçãO SOCIAL: PERSPECTIVA NEGOCIAL
A propriedade privada vista em uma perspectiva diferenciada, mas considerada como
direito de usar, gozar e dispor (Código Civil, art. 1.228), exercido em consonância com suas
finalidades econômicas, sociais e ambientais, de conformidade com a proteção constitucional
prevista no art. 5º, incisos XXii e XXiii, representa lócus de significativa expressão no âmbito
negocial. Assim, a propriedade é disciplinada como direito fundamental, devendo atender à
sua função social.
Pela primeira vertente tem-se a análise da propriedade destinada à moradia, de regra ad-
quirida pela via negocial, incluindo a compra e venda, doações, permutas, cessões, ressalvadas
as hipóteses de aquisição por sucessão hereditária. induvidosamente, este primeiro viés repre-
senta uma das formas mais tradicionais de realização de negócios jurídicos, perpetrado pela
tradição do direito e significante de uma extensa movimentação negocial que necessariamente
deve ser considerada como um imperativo da sustentabilidade negocial, especialmente por ser
fundamental o direito de moradia.
À guisa de exemplo, impende trazer à colação a mais vertiginosa das crises econômicas
enfrentadas mundialmente e que, de forma inusitada, originou-se da implosão do sistema de
financiamento de casa própria nos estados unidos da América do norte, movimentando valo-
res financeiros incalculáveis através da modalidade de hipotecas, na grande maioria, destinadas
àaquisição de propriedades para fins de moradia. naturalmente, trata-se do mais gigantesco e
trágico exemplo de insustentabilidade negocial que extrapola a capacidade de análises econô-
micas e financeiras dos mais renomados e experientes economistas, financistas e analistas de
mercado. o estranhamento, nesse particular, reside na ausência das análises jurídicas acerca
das implicações decorrentes de uma implosão do sistema negocial americano de financiamento
de moradias.
A abertura de crédito extraordinário, desmedido e com uma regulação mínima, como
foi o caso, deixa transparecer que a denominada ‘maior democracia do mundo’ foi, também,
a maior irresponsável pela forma de concessão, de extraordinária liberdade de iniciativa, de
livre concorrência, no caso, entre as potentíssimas instituições bancárias que desaguaram na
distância da observação dos próprios preceitos constitucionais e referentes à ordem econômica
na mais absurda crise econômica mundial concebida, nascida e eclodida no âmbito negocial.
Cabe destacar que o negócio jurídico enquanto instituto não foi banalizado senão pela irreve-
rência da falta de parâmetros com que a ganância do lucro fácil e excessivo extrapolou todos os
limites estabelecidos.
A liberdade de mercado atende aos interesses de todos ao facilitar a oferta de bens e a concorrência entre agentes e, portanto, o incremento do bem-estar social. essa a no-ção de livre iniciativa, possibilidade de participar dos mercados, ou de qualquer mer-
151
cado ou de um dado mercado. [...] mercados abertos, livres, interessam ao direito, mas ganham especial relevo no plano do direito privado porque é neles que se desen-volvem atividades econômicas, notadamente a troca econômica, promovida entre e por particulares. necessário, portanto, compreender a disciplina jurídica dos merca-dos, usualmente vistos como instituição social que emerge naturalmente das relações econômicas. só depois de captar a função e os problemas criados em e por operações em mercados é que se podem compreender as razões que levam à organização de empresas.16
A compreensão da disciplina jurídica dos mercados remete à necessidade de regulação
comum na intervenção estatal democrática, delimitando as regras do jogo, ao mesmo tempo
em que, de um lado, limita a livre iniciativa e livre concorrência para, em seguida, assegurá-las
em relação à liberdade da atuação do particular no trânsito negocial, cada vez mais complexo
em decorrência da pluralidade, inovações e transformações geradas pelas próprias particulari-
dades do mercado. nesse sentido, “natalino irti17 explica que, ausente o sistema normativo, os
mercados não prosperam, pois mercado é a norma que o disciplina e constitui”.
Ao comercialista o mercado e a empresa sempre interessaram, seja no que concerne à regulação do mercado, sobretudo quando o comércio adquire importância social, ultrapassando o interesse dos mercadores, seja no que se refere à continuidade da prática de certos atos negociais que se vê como atividade. [...] A intensidade do tráfi-co negocial imposto pela industrialização incipiente requer regras que contemplem não apenas a velocidade com que as operações são realizadas, mas, sobretudo, a repe-tição de padrões e a necessidade de novos instrumentos que reflitam as mudanças no processo negocial.18
A regulação de mercados deve ser apreciada de forma positiva “na medida em que se
entenda mercado como uma instituição que vise a criar incentivos, reduzir incertezas, facilitar
operações entre pessoas, fica clara a ideia de que mercados aumentam a prosperidade e, portan-
to, o bem-estar geral”.19
Cabe considerar as modalidades de intervenção em mercados visando tanto à disciplina
quanto ao equilíbrio e à moderação das relações negociais próprias das atividades econômicas.
Assim sendo, “intervenções em mercados podem ser tanto reguladoras quanto moderadoras do
conjunto de operações neles realizadas. Aquelas são intervenções disciplinadoras de certos merca-
dos, estas as destinadas a corrigir desvios que comprometem o funcionamento do mercado”.20
A observação da crise econômica em seus desdobramentos indica a ruptura em relação
à cadeia de sustentabilidade negocial no que se refere tanto ao regramento jurídico, violando
16 sztAJn, r., op. cit., 2004, p. 25, 26 e 29.17 irti, n. apud sztAJn, r., op. cit., p. 40.18 sztAJn, r., op. cit., p. 21-22.19 idem, ibidem, p. 34.20 idem, ibidem, p. 34.
152
as previsões indispensáveis à regulação de mercado, como em relação à moderação sequer co-
gitada. os contratos de hipoteca, na forma adotada, envolvendo uma complexidade negocial
inédita e avassaladora, esfacelam as bases negociais, causando impactos inteiramente negativos
na economia. A proporção do desequilíbrio econômico pode ser aquilatado pela cadeia esta-
belecida entre os fornecedores de bens e produtos, os consumidores, no caso americano os
tomadores de empréstimos para o financiamento de casa própria, e no ‘estouro da bolha’ com
a quebra dos contratantes, representados pelos bancos, financeiras e tomadores, o rompimento
da cadeia produtiva gerando o pleno desemprego – avesso dos fins e fundamentos da ordem
econômica pós-moderna – que tem por princípio primeiro assegurar o pleno emprego. A insus-
tentabilidade é de mercados, repita-se, não é do instituto, não é do contrato. A credibilidade,
ou melhor, a ausência de credibilidade abalou o mercado mundial financeiro e real.
em relação à função social da propriedade, princípio-fim da propriedade privada, cabe
observar dois ângulos que conduzem ao afastamento da finalidade, de forma inusitada e con-
traditória. dentre as maiores funções sociais da propriedade está a moradia, consagrada entre
os direitos fundamentais. incrivelmente, o financiamento da casa própria – objetivando con-
solidar e assegurar a aquisição do teto próprio para a família, base da sociedade –, representa
ônus tão elevado que conduz o tomador à inadimplência, exatamente pela impropriedade da
via de acesso.
no caso brasileiro, as normas incongruentes e afastadas dos princípios da função social,
da razoabilidade e da proporcionalidade, mais das vezes transformam o sonho da casa própria
em pesadelo da casa “imprópria”. o sistema americano foi muito além, fazendo implodir, jun-
to com o financiamento da casa própria, a economia mundial. em ambos os sistemas observa-
se o distanciamento da busca pela efetivação da função social da propriedade, ressalvando que,
em outras dimensões, a funcionalização apresenta-se como factível e em direção à realização do
preceito constitucional.
As democracias contemporâneas prestigiam o coletivo como forma de equilíbrio e res-
trição ao excesso de tutela do interesse individual. desse consenso emerge a função social de
diversos institutos, dentre os quais a função social da propriedade, considerando-se
a igualdade essencial de todos os homens, postulado básico da democracia [que] im-plica a resultante, necessária, de que todo poder humano só se legitima enquanto ser-viço [...]. esse pensamento representou um ganho no esforço civilizador de eliminar da convivência social toda e qualquer forma de arbítrio.21
Posto desse modo, ficam evidenciados os propósitos democráticos voltados para um uni-
verso de sociabilidade referendado por um contexto ético em quese insere a ordem principio-
21 PAssos, J. J. Calmon de. Função social do processo. Jus Navigandi, teresina, ano 6, n. 58, ago. 2002. dis-ponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3198>. Acesso em: 14 dez. 2008.
153
lógica constitucional. no pólo oposto da não observância da função socializadora tem-se a
emergência do retrocesso.
J. J. gomes Canotilho, ao indicar o princípio da vedação ao retrocesso ou do não re-
trocesso social, observou que “os direitos sociais econômicos (ex.: direito dos trabalhadores,
direito à assistência, direito a educação), uma vez obtido em determinado grau de realização,
passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo”22.
naturalmente as rupturas em relação a tais garantias são significantes de um extremo retroces-
so. Com relação à propriedade funcionalizada e democratizada, o ilustre mestre preconiza que
“o reconhecimento dessa proteção de ‘direitos prestacionais de propriedade’, subjetivamente
adquiridos, constitui um limite jurídico do legislador [...] congruente com os direitos concretos
e as expectativas subjetivamente alcançadas.”23
A lesão ao direito de propriedade explicita-se, pois, tanto em relação aos direitos fun-
damentais como em relação à função social, caracterizando retrocesso inconcebível, no caso
americano.
A situação instalada em relação a esta dimensão torna-se insustentável e inescapável no
curto prazo, quiçá no médio prazo, e no longo prazo reside a expectativa de um outro alvore-
cer demarcado pela experiência e enfrentamento dos conflitos produzidos por uma crise que,
ao inverso de todas as outras, não foi gerada pela pobreza e ausência de recursos, mas, sim,
concebida em ambiente próspero de excesso de riqueza americana, até então a maior potência
econômica do planeta.
RELAçãO DE CONSUMO, MERCADO, EMPRESA E CRISE
o ordenamento jurídico pátrio, recepcionando o mandamento constitucional na pro-
teção e defesa do consumidor, regula as relações de consumo tomando por base as regras do
art. 4° do Código de defesa do Consumidor. A Política nacional das relações de Consumo
tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignida-
de, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade
de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo. A observância dos
princípios impõe-se como regra e referente à vulnerabilidade, ação governamental de proteção
efetiva do consumidor, intervenção do estado no mercado de consumo, indispensável ao de-
senvolvimento econômico e tecnológico, sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações
entre consumidores e fornecedores.
o CdC brasileiro concentra-se justamente no sujeito de direitos, visa proteger este sujeito, sistematiza suas normas a partir desta ideia básica de proteção de apenas um
22 CAnotilho, J. J. g. Direito constitucional e teoria da constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998, p. 322.23 idem, ibidem, p. 323.
154
sujeito “diferente” da sociedade de consumo: o consumidor. é um Código especial para “desiguais”, para “diferentes” em relações mistas entre um consumidor e um fornecedor.24
A proteção ao consumidor, nos moldes adotados pelo ordenamento pátrio, bem como
por seus fundamentos e estatura principiológica, impõe um conjunto de valores com peculia-
ridades suficientes ao envolvimento de texturas eficaciais incomparáveis, buscando, através do
processo disciplinador, chegar, como chegou, a níveis de satisfação na tutela das relações de
consumo.
A legislação consumerista tem por objeto “resgatar a imensa coletividade de consumi-
dores da marginalização não apenas em face do poder econômico, como também dotá-la de
instrumentos adequados para o acesso à justiça do ponto de vista individual e, sobretudo,
coletivo.”25
nesse particular e sem adentrar no mérito da tutela das relações de consumo, como ado-
tada pelo sistema americano, cabe analisar o impacto causado na rede de consumo mundial.
Com o evoluir da crise o consumidor, na ponta final da explosão do mercado financeiro,
é o primeiro a sofrer baixas significativas. A ação primeira implica em cortar gastos, deixar de
consumir e poupar quanto possível. A figura do tomador recua, os bancos não emprestam, há a
queda de consumo e a demanda fortemente mitigada causa uma estagnação no mercado. Com
os bens e serviços restringidos pela forte queda na demanda ressurge a recessão, considerada, na
quadratura atual, como a maior já conhecida pelos mercados internacionais. Potências como
o próprio estado Americano, união europeia, Japão, índia, China, gigantes de produção e
consumo, declaram-se em recessão.
Presentemente, a intervenção estatal é o meio mais adequado, rápido e fácil para aquecer
o mercado, gerando políticas desde o corte de impostos, que isoladamente não representa o
caminho de saída, podendo não funcionar e necessariamente fazendo investimentos e gastos de
forma planejada para gerar empregos, reconduzindo o consumidor ao status quo assegur, aum
só tempo, a empregabilidade e a retomada do consumo, contraído, retraído e interrompido por
absoluta incapacidade de recursos.
A intervenção estatal em sede de relações de consumo goza de ampla proteção de espectro
constitucional de conformidade com o disposto no art. 5º, XXXii: “o estado promoverá, na
forma da lei a defesa do consumidor”. Com esse tratamento, a matéria retirada da esfera do
direito privado alcança a disciplina e regramento, inserida em definitivo no rol dos direitos e
24 mArques, C. l.; BenJAmin, A. h. v.; mirAgem, B. Comentários ao código de defesa do consumidor: aspectos materiais. 2. ed. rev. atual. ampl. são Paulo: revista dos tribunais, 2005. p. 60.25 Filomeno, J. B. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 6. ed. rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 26.
155
garantias fundamentais, sendo considerada em sua função social e dirigida à tutela do interesse
coletivo.
As relações de consumo no contexto econômico respondem pela organização e operabi-
lidade do trânsito jurídico de forma expressiva, representando a maior parcela negocial e, uma
vez vitimada pela drástica crise econômica, apresenta como resultado um mercado reprimido
pelo descontrole gerado pelo que os economistas estão denominando “ativos tóxicos” (créditos
problemáticos), que contaminaram a economia mundial com os chamados ‘ativos ruins’ dos
bancos americanos.
A “crise” dos bancos é muito mais aguda e profunda do que foi imaginado no momento
do “estouro da bolha”. em verdade, os bancos americanos e outros ligados à corrente de finan-
ciamento bancário estão em situação de insolvência e não mais de liquidez como foi noticiado
pela mídia. ora, não sendo uma crise de liquidez e sim um estado de absoluta insolvência, o
papel do estado é de intervenção junto aos bancos, na tentativa de salvar o maior para alcançar
o menor, no caso o consumidor. de fato, o estado Americano está intervindo fortemente na
economia, adotando pacotes anti-crise, objetivando reverter o desemprego, fluxo de consumo,
visando à retomada do crescimento sustentável, conforme declarações do governo americano.
A situação emergencial apontou claramente para a ausência de uma qualidade regulatória
de parte do estado americano. houve uma falta de controle por parte dos agentes responsáveis
pela intervenção e regulação da economia. o consumidor americano sofreu os prejuízos decor-
rentes da ação de agentes bancários irresponsáveis e gananciosos, agindo unicamente em nome
do interesse individual em detrimento do interesse coletivo, alcançando na ciranda financeira
impacto jamais visto anteriormente, vitimando o interesse coletivo em uma sociedade globa-
lizada, remarcando a violação dos princípios reguladores da ordem econômica das grandes
democracias.
no Brasil, a intervenção estatal na economia está assegurada e efetivada por meio do
processo de regulação e, principalmente, do processo de supervisão, exercida pelo controle
do Banco Central em relação aos atores financeiros. mais que a regulação, a supervisão eficaz
garantiu o acompanhamento das atividades negociais das instituições bancárias, zelando pelo
mercado negocial como um todo e garantindo as relações de consumo realizadas em decorrên-
cia das diversas modalidades negociais.
o caso americano, ao causar um impacto incomensurável no mercado nacional e interna-
cional, expõe a fragilidade e, ao mesmo tempo, a condição exacerbada que a livre iniciativa as-
sumiu para além dos limites da razoabilidade em nome do American-style regulation. o mundo
assiste estarrecido a uma situação que fugiu do controle econômico internacional.
no modo de produção capitalista a economia é que ocupa o papel dominante na es-trutura global da sociedade e, concomitantemente, é ela que determina essa domina-
156
ção [...]. enquanto nível do todo social o direito é elemento constitutivo do modo de produção, porém por ele informado e determinado. A compreensão dessa realidade nos permite verificar que o direito é sempre e também no modo de produção capita-lista, um instrumento de mudança social, para ser dinamizado, nessa função, ao sabor de interesses bem definidos.26
evidentemente, o ensaio aponta para o “sabor de interesses” de natureza capitalista extre-
mada, rompendo com o elo de conexão entre direito e economia, em decorrência da ausência
de delimitação de interesses individualistas que tiveram por escopo exclusivo o maior lucro
determinado pelas relações econômicas, sem considerar as determinações jurídicas e, muito
menos, os interesses de massa representados pelo conjunto de sujeitos de direito globais.
o modelo capitalista resta esgarçado e, quiçá, esgotado pela “mão americana”, ela própria
esquecida da “mão invisível”27 e dos “jogos de mercado”.28
“o funcionamento de uma economia capitalista ou de mercado, como é o caso da econo-
mia brasileira, está baseado em um conjunto de regras, pelo qual se compram e vendem bens e
serviços, assim como os fatores produtivos.”29. Por esses fundamentos o impacto na economia
brasileira vem sendo absorvido com menos intensidade e sob controle. A não observância do
conjunto de regras aplicáveis ao mercado, acrescida da falta de supervisão e acompanhamento
no sistema americano, causou o caos econômico responsável por profundas e sensíveis altera-
ções nas relações de consumo, gerando inseguranças, incertezas e, mais que isto, uma situação
de calamidade negocial, entrecruzando, de um lado, empresários, grandes responsáveis pela
produção de serviços e, de outro, o consumidor, sentindo-se agora solitário e desamparado
diante da consequência inarredável da ruptura nas relações trabalhistas.
Com a retração do consumo, ocorre a retração da produção que, por via de consequência,
causa a retração do trabalho, instalando-se o círculo perverso da insustentabilidade, gerado no
seio de uma economia capitalista desenfreada e distanciada das premissas e lógica do direito,
indispensável à atividade econômica em uma economia de mercado global.
os modelos capitalistas – próprios das democracias pautadas pela proteção dos direitos
humanos e sociais e pela indispensável intervenção do estado na ordem econômica – delimi-
tam as interdependências indispensáveis entre economia e direito. “o desenvolvimento sus-
tentável é uma questão-chave para o futuro do País e do planeta. As empresas possuem papel
fundamental perante a sociedade na consolidação dessa visão de desenvolvimento.”30
26 grAu, e. r. O direito posto e o direito pressuposto. são Paulo: malheiros, 1996, p. 39.27 Foi um termo introduzido por Adam smith em ‘A riqueza das nações’ para descrever como numa economia de mercado, apesar da inexistência de uma entidade coordenadora do interesse comunal, a interação dos indivíduos parece resultar numa determinada ordem, como se houvesse uma “mão invisível” que os orientasse.28 ver teoria dos Jogos de John nash.29 troster, r. l.; moChón, F. Introdução à economia. são Paulo: editora makron Books, 1999, p. 4530 JohAnnPeter, J. g. As empresas e a sustentabilidade, p. 7. in: Sustentável 2006 – Ciclo de encontros sobre sustentabilidade e gestão responsável. disponível em: <http://www.sustentavel.org.br/arquivos/sustentavel_2006.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2008.
157
lamentavelmente, é cedo para pensar em superação da crise econômica mundial, porém,
cabe, desde logo, a reflexão de que “é extremamente importante repensar a forma de fazer
negócios [...] desenvolver relacionamentos construtivos com todos os públicos e promover a
redução das desigualdades sociais.”31
A desconexão entre os planos econômico e jurídico conduz a uma ruptura de dimensões
extraordinárias afastando a empresa do lócus indispensável à consolidação do seu papel no con-
texto negocial. “As empresas não podem abster-se de seu papel na construção de uma sociedade
mais justa.”32
o novo panorama da dimensão negocial foi elastecido pela concepção da função social
da empresa, não devendo ser esquecida na revisão dos valores e do conjunto de interesses pre-
sentes no trânsito jurídico. disse alhures que a função social da empresa implica, igualmente,
na revisão da função ética da empresa, ambiente próprio dos negócios idôneos e referidos nos
princípios, como concebido em ensaio anterior, sistematizados nos princípio da dignidade
empresarial, da moralidade empresarial e da boa-fé empresarial.33
A ausência da base principiológica associada aos demais fatores declinados, causa o
rompimento da cadeia de sustentabilidade negocial mediante o esfacelamento das bases eco-
nômicas e jurídicas indispensáveis à manutenção da empresa como veículo fundamental à
cadeia produtiva.
“A função social de qualquer empresa, não importa seu tamanho ou setor, pode ser de-
finida como a geração de valor sustentável para seus acionistas e para a sociedade na qual está
inserida.”34
Cabe realçar que “o adjetivo sustentável reflete uma tensão inerente à gestão empresarial
da necessidade de geração de valor no presente sem comprometer a capacidade de a empresa
de gerar valor no futuro.”35
A crise econômica sequestrou das empresas, em dimensão global, a capacidade da geração
de valores, levando, de cambulhadas, eixo fundamental da sociedade em todos os tempos, a
capacidade de gerar emprego. no polo oposto, fora do seu eixo natural de produção, diante da
ruptura causada na cadeia produtiva, surge uma outra forma de produção, desta feita, geradora
de desemprego, comprometendo, além da função natural da empresa, sua função social, fazen-
do um retorno ao liberalismo cru e, portanto, individualista ao extremo.
31 idem, ibidem.32 idem, ibidem. 33 ver artigo FerreirA, J. s. A. B. n. Função social e função ética da empresa. Revista Jurídica da UNIFIL. Ano ii, nº 2. londrina: uniFil, 2005, p. 67-85.34 AltenFelder, J. P., AlmeidA, F. Função social da empresa e o desenvolvimento sustentável. disponível em: < http://4good.wordpress.com/>. Acesso em: 13. dez. 2008.35 idem, ibidem.
158
não é mera coincidência que esta interpretação da função social de uma empresa se assemelhe ao próprio conceito de desenvolvimento sustentável, cunhado em 1987 pelo relatório final da Comissão da onu para o meio Ambiente e desenvolvimento (unCed). segundo o relatório, que trazia o sugestivo nome “nosso Futuro Co-mum”, desenvolvimento sustentável seria aquele modelo de desenvolvimento que “satisfaz as necessidades das gerações presentes, sem comprometer a capacidade de as gerações futuras satisfazerem suas próprias necessidades”. este paralelo entre a função social da empresa e o conceito de desenvolvimento sustentável é um argumento ine-quívoco a favor do bom negócio da sustentabilidade (business case for sustainable de-velopment).36
Considerando a mobilização mundial, como acima relatado, percebe-se a desconsideração
ao bem comum, trazendo à reflexão as condições indispensáveis ao cumprimento das pautas
referentes a um desenvolvimento econômico sustentável, como conceituado, tendo por norte o
presente e o futuro do que se convencionou denominar “bom negócio da sustentabilidade”. o
momento presente reflete a negação do business case for sustainable development ironicamente,
concebido pelo modelo americano.
A intenção louvável e suspensa temporariamente pela crise econômica apontava para “a
responsabilidade de cada empresa com as pessoas e o planeta é, em última análise, responsabi-
lidade para com os interesses de seus acionistas e sua comunidade. o caminho da sustentabili-
dade corporativa é inevitável, mas também promissor.”37
As advertências acerca dos limites e possibilidades mercadológicos não foram observadas
por aqueles que ditam modelos econômicos para o mundo, esquecendo-se das próprias orienta-
ções onde “as oportunidades – e também os riscos – estão dispersos num ambiente de negócios
fluído, imprevisível e desafiador e as empresas precisam desenvolver a capacidade de enxergar
além dos sinais de mercado, percebendo as implicações também de questões políticas, sociais e
ecológicas nos seus negócios.”38. Cabe acrescentar com relação as estas questões a necessidade
imperiosa do cumprimento das tarefas do estado em relação a atuação do mercado.
A teia negocial, conforme o sistema jurídico brasileiro e por conta da intervenção estatal
saudável, sofre menos desgastes que as economias mais abertas, mantendo íntegras as ativida-
des das empresas nas relações de produção, circulação de bens e serviços, atendendo, ainda, a
própria função social.
As possibilidades da economia brasileira, ancorada no forte lastro jurídico, possibilita-
ram, em passado recente, a redução da dívida externa, por via de consequência a redução do
passivo externo, zerando a dívida, permitindo investimentos e conseguindo uma situação mais
privilegiada, mantendo a previsão de crescimento econômico atrelado aos planos governamen-
36 empresa e desenvolvimento sustentável. in: Sustentável 2006 – Ciclo de encontros sobre sustentabilidade e gestão responsável. op. Cit., p. 10.37 idem, ibidem38 idem, ibidem.
159
tais de desenvolvimento econômico sustentável, evidentemente em percentuais mais modestos,
porém, bem distante do crescimento negativo anunciado pelos países mais ricos, integrantes
do g7.
DEFESA DO MEIO AMBIENTE, IMPACTO AMBIENTAL E ECONôMICO
As principais discussões, debates e análises críticas mais intensas em sede de desenvolvi-
mento econômico sustentável estiveram, sem dúvida, capitaneadas pela temática da proteção
ambiental. Para fins de estudo, a observação de conjunto passa por um certo deslocamento para
focar o viés negocial envolvendo atividades empresariais e tutela do meio ambiente.
inegável a importância e a dimensão da proteção ambiental como elaborada pelos mais
diversos segmentos, quando destacam o meio ambiente como patrimônio da presente e das
futuras gerações, vinculado diretamente às estruturas de base, representadas pelo desenvolvi-
mento sustentável.
A definição mais comumente aceita é a criada em 1987, na Comissão Brundtland, que determina que o desenvolvimento sustentável é aquele que “satisfaz as necessida-des do presente sem comprometer a capacidade de as futuras gerações satisfazerem suas próprias necessidades”. Já a sustentabilidade empresarial, segundo o instituto ethos, consiste em “assegurar o sucesso do negócio a longo prazo e ao mesmo tempo contribuir para o desenvolvimento econômico e social da comunidade, um meio ambiente saudável e uma sociedade estável.39
As atividades empresariais40, dependendo da natureza e ramo de atuação, não raro esbar-
ram nos limites definidos pela proteção ao meio ambiente, o desenvolvimento sustentável como
concebido para albergar a tutela do meio ambiente de par com a responsabilidade social.
A questão da responsabilidade social tem sido tema recorrente no mundo dos negó-cios. há uma crescente preocupação por parte das empresas brasileiras em compreen-der seu conceito e dimensões e incorporá-los à sua realidade. muitas empresas já se mobilizaram para a questão e estruturaram projetos voltados para uma gestão social-
39 idem, ibidem.40 o conceito de responsabilidade social empresarial traz, ainda, a questão da relação da empresa com seus diversos públicos de interesse, conforme expresso na definição do instituto ethos: “responsabilidade social empresarial é a forma de gestão que se define pela relação ética e transparente da empresa com todos os públicos com os quais ela se relaciona e pelo estabelecimento de metas empresariais compatíveis com o desenvolvimento sustentável da socie-dade, preservando recursos ambientais e culturais para as gerações futuras, respeitando a diversidade e promovendo a redução das desigualdades sociais”. dito de outra maneira, espera-se cada vez mais que as organizações sejam capazes de reconhecer seus impactos ambientais, econômicos e sociais e, a partir desse pano de fundo, construam relacionamentos de valor com os seus diferentes públicos de interesse, os chamados stakeholders – público interno, fornecedores, clientes, acionistas, comunidade, governo e sociedade, meio ambiente, entre outros. ursini, t.r.; Bruno, g o. A gestão para a responsabilidade social e o desenvolvimento sustentável. disponível em: < http://www.ethos.org.br/_uniethos/documents/revistaFAt03_ethos.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2008.
160
mente responsável, investindo na relação ética, transparente e de qualidade com to-
dos os seus públicos de relacionamento.41
na teoria, as concepções acerca da sustentabilidade são delineadas com a apropriação de
um contexto ideal, a espera da materialização empírica, residindo aí distâncias e obstáculos a
serem vencidos.
o conceito de sustentabilidade empresarial pressupõe, então, que a empresa cresça, seja rentável e gere resultados econômicos, mas também contribua para o desenvolvi-mento da sociedade e para a preservação do planeta. trata-se do conceito do tripple Bottom line, que determina que a empresa deve gerir seus resultados, focando não só no resultado econômico adicionado, mas também no resultado ambiental e social adicionado.42
vez mais, a crise lança seus tentáculos, alcançando o desempenho empresarial também
na dimensão do desenvolvimento sustentável referente à proteção ambiental. A escassez de
recursos econômicos vincula a preservação ambiental para colocá-la em um plano de distancia-
mento, quando o centro das angústias e atenções está voltado para a sustentabilidade do ser hu-
mano na figura do empregador, do fornecedor, produtor de bens e serviços que não conseguem
dar conta de atender às necessidades primárias e, por eleição, escolham, a cada dia, a direção de
suas ações, divididos entre manter ou cortar para sobreviver.
o meio ambiente relegado pelos plantonistas do lucro exacerbado acaba sendo alcançado
pela onda de arrochos, redução de custos e despesas, deixando de ser atendido até mesmo por
aqueles defensores e cumpridores das obrigações referentes à defesa e proteção do meio am-
biente.
o abalo sísmico negocial, tão intenso em escalas tantas, alcança, na contramão do desen-
volvimento, do crescimento, da sustentabilidade, a tutela do meio ambiente, restringindo in-
vestimentos e, quiçá, ampliando o rol de violações, tão próprios das empresas irresponsáveis.
A empresa ambientalmente correta, sufocada pela crise econômica dirige seus esforços
para o meio ambiente do trabalho, cuja vocação e necessidade mais imperiosas residem na
manutenção dos empregos. Como exemplo, cabe citar o segmento de energias sustentáveis,
em especial, energia limpa, que sofre os impactos da crise, com restrição direta no consumo de
painéis solares.
em tempos normais, as ações empresariais dirigidas ao meio ambiente ainda são carece-
doras de um melhor redimensionamento, devendo ser consideradas com reservas.
41 ursini, t. r., Bruno, g. o. A gestão para a responsabilidade social e o desenvolvimento sustentável. disponí-vel em: http://www.ethos.org.br/_uniethos/documents/revistaFAt03_ethos.pdf>. p. 1. Acesso em: 15 dez. 2008.42 idem, ibidem.
161
essas iniciativas, apesar de apresentarem resultados positivos, representam, na maio-ria das vezes, ações pontuais e desconectadas da missão, visão, planejamento estraté-gico e posicionamento da empresa e, consequentemente, não expressam um compro-misso efetivo para o desenvolvimento sustentável. em muitos casos, as empresas brasileiras acabaram por associar responsabilidade social à ação social, seja pela via do investimento social privado, seja pela via do estímulo ao voluntariado.43
o desenvolvimento de um conjunto de ações, pautadas pela relevância da tutela ambien-
tal no contexto nacional, sofre os impactos da crise desacelerando o ritmo do crescimento.
esse viés de contribuição, embora relevante, quando tratado de maneira isolada, co-loca o foco da ação fora da empresa e não tem alcance para influenciar a comunidade empresarial a um outro tipo de contribuição, extremamente importante para a socie-dade: a gestão dos impactos ambientais, econômicos e sociais provocados por deci-sões estratégicas, práticas de negócio e processos operacionais.44
na prática, percebe-se o significativo esmorecimento da economia, uma vez que as pautas
voltadas para a proteção do meio ambiente são substituídas por pautas emergenciais, preocu-
padas com os recursos indispensáveis ao aquecimento do mercado. As atenções voltam-se para
a manutenção do emprego, repita-se, adotando velhas formas conhecidas em tempo de crise,
como redução de jornada de trabalho, redução de salários, concessão de férias coletivas. neces-
sariamente, a proteção ao meio ambiente do trabalho se sobrepõe na esfera negocial, focando a
relação trabalhista em detrimento do meio ambiente natural.
inegavelmente, a sustentabilidade negocial, presente em todos os contextos analisados,
resta abalada para dar espaço e vez às considerações referentes às causas e consequências condu-
toras da economia globalizada, a mais insustentável de todas as condições negociais. vale dizer,
a inadimplência generalizada da iniciativa privada, especialmente aquela praticada nos países
ricos, conduzindo ao avesso das buscas incansáveis para realizar o oposto das metas, lança na
vala infinita da insustentabilidade a economia, empresas, consumidores, trabalhadores e de-
mais fatores contidos nas franjas de uma ordem econômica revirada em suas entranhas, fazendo
com que os fortes sejam socorridos, enquanto os fracos vão sendo demitidos.
no caso brasileiro, em decorrência de uma política econômica intervencionista, orientada
pelos preceitos constitucionais referentes à ordem econômica, a repercussão da crise pode ser
considerada, até o momento, sob controle, mas, ainda assim, gerando desemprego nos setores
que dependem de uma linha de crédito e financiamento maiores, como as montadoras e fabri-
cantes de peças automotivas.
43 idem, ibidem.44 idem, ibidem.
162
As políticas e ações referentes ao meio ambiente permanecem inalteradas em relação às
propostas de desenvolvimento sustentável, de par com a responsabilidade social, recepcionada,
em passado recente, pelas empresas nacionais.
A economia brasileira desempenhou seus afazeres, na perspectiva da macroeconomia de
forma muito competente, apresentando superávit primário e um crescimento do PiB satisfató-
rios. em relação à microeconomia, será preciso mais empenho.
SUSTENTABILIDADE NEGOCIAL: IMPACTO INTERNACIONAL E PROTECIONISMO
Com o agravamento da crise econômica e os fortes impactos internacionais, surge, como
discussão própria de momentos que tais, a questão atinente ao protecionismo45. As pressões ad-
vindas da zona do euro indicam que a economia europeia é, por tradição, mais protecionista.
Bem por isto e diante da situação se deteriorando rapidamente, os países apegam-se à possibili-
dade protecionista, visando resguardar, principalmente, empregos e salários.
o protecionismo é vantajoso, em tese, pelo fato de proteger a economia nacional da concorrência externa, garantir a criação de empregos e incentivar o desenvolvimento de novas tecnologias no país. no entanto, essas políticas podem, em alguns casos, fazer com que o país perca espaço no mercado externo; provocar o atraso tecnológico e a acomodação por parte das empresas nacionais, já que essas medidas tendem a protegê-las; além de aumentar os preços internos. Além disso, vale ressaltar que a di-minuição do comércio, consequência natural do protecionismo, enfraquece políticas de combate à forme e ao desenvolvimento de países pobres.46
o protecionismo, em uma sociedade globalizada, representa mais um obstáculo em re-
lação à superação da crise, tanto é que os americanos insistiram, no início, em medidas desta
natureza, recuando, posteriormente, para honrar todos os negócios e avenças comerciais cele-
brados com os países signatários de tratados internacionais.
Para os novos economistas a era da globalização encontra-se esgotada, porém, uma análise
mais atenta continua indicando os benefícios trazidos para todas as nações com ganhos agre-
gados que podem não ser para todos. As crises econômicas localizadas, como a do méxico, da
ásia, do Brasil, onde a globalização, interferiu positivamente, as cadeias produtivas interligadas
asseguram ganhos com a globalização apesar dos riscos. de toda sorte, os riscos sempre fizeram
parte do mercado.
45 Protecionismo é uma doutrina, uma teoria que prega um conjunto de medidas a serem tomadas no sentido de favorecer as atividades econômicas internas, reduzindo e dificultando ao máximo, a importação de produtos exter-nos e a concorrência estrangeira. tal teoria é utilizada por praticamente todos os países, em maior ou menor grau. (dAntAs, t. Protecionismo. Brasil Escola. disponível em: < http://www.brasilescola.com/economia/protecionis-mo.htm>. Acesso em: 13. dez. 2008.46 idem, ibidem.
163
A globalização é positiva quando considerada em redes e cadeias, como no caso da cadeia
alimentar que fomenta a cadeia de consumo, aliás, motivadora de uma expressão de origem
filosófica, cunhada a partir do “consumo, logo existo”. na globalização, a própria revolução da
informática reafirma a manutenção do modelo global, não sendo possível afirmar que a era da
globalização está ultrapassada.
Assim, a globalização imposta pela liberalização do comércio e circulação da informa-ção implica a liberdade individual, o que conduz a uma liberdade econômica. este é um objetivo amplamente atingido nas economias de mercado livre, verificando-se aí um nível de bem-estar geral mais elevado e menor quantidade da população a viver em condições econômicas precárias.47
As maiores medidas protecionistas permanecem atreladas à luta dos trabalhadores e sindi-
catos que veem seus empregos ameaçados, causando os primeiros protestos de rua. Alemanha
e França assumiram um compromisso público de não adotar medidas protecionistas e, sim,
empregar todos os esforços no combate à crise com ações relativas à seguridade, aceitando um
crescimento menor, disponibilizando recursos, portantointervindo na economia de maneira
direta, para evitar a insolvência e quebra de empresas e socorrendo, em específico, os bancos.
CoNSideraçÕeS FiNaiS
os fundamentos da ordem econômica definidos pelos princípios-fins e princípios de fun-
cionamento da atividade permitem estabelecer a correlação indissociável com a sustentabili-
dade. Cabe observar que o estado democrático de direito e social, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvi-
mento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna e pluralista,
tem seus fundamentos estabelecidos no Preâmbulo da Carta magna.
o conjunto de valores e princípios assegura a harmonia em relação à ordem econômica
fundada no rol de princípios, como estudados. A valorização dos direitos sociais, assegurada
pela ordem econômica no trabalho humano e na busca do pleno emprego, mantém a defesa da
liberdade, contextualizada na atividade econômica através da livre iniciativa. o desenvolvimen-
to econômico representa o eixo das reflexões da ordem econômica, observando os princípios
da propriedade privada, função social da propriedade, a livre concorrência, a defesa do consu-
midor e do meio ambiente.
A soberania nacional, eleita como primeiro dos princípios dessa ordem, refere-se à con-
cepção ideológica de soberania, distinta da concepção de soberania popular. trata-se da sobe-
rania indispensável à regência do desenvolvimento econômico sustentável, devendo o estado
47 nunes, C. B. A ética empresarial e os fundos socialmente responsáveis. Porto: vida económica, 2004, p. 19.
164
adequar as regras necessárias à regulação e supervisão de um sistema econômico contemplativo
de todos os princípios regentes das atividades econômicas.
A crise econômica mundial expôs, de forma drástica, a sustentabilidade das diversas or-
dens econômicas consideradas em suas estruturas nacionais e nas correlações internacionais,
aviltando, de início, a própria soberania nacional dos diversos estados atingidos.
A reflexão possível aponta para uma queda livre, fazendo estremecer os segmentos mais
significativos da organização econômica, fortemente abalada pela crise dos mercados interna-
cionais. Por essa condição, formou-se um círculo perverso de insustentabilidade, como uma
cadeia de efeito dominó, onde, ao cair o primeiro, todos os demais cairão.
A insustentabilidade no universo das relações trabalhistas, por se a mais próxima e vulne-
rável, foi a primeira, atingindo a estabilidade do emprego, impossibilitando assegurar o traba-
lho humano e o pleno emprego.
o estado de insolvência, criado pela crise, acarreta no mercado consequências expressivas
para a propriedade privada, especialmente àquela destinada à moradia,e a propriedade empre-
sarial. neste contorno de dificuldades, a perspectiva social da propriedade fica preterida diante
dos interesses individuais. o consumidor sofre impacto direto, passando a consumir menos,
limitando-se ao consumo indispensável à sobrevivência, tentando poupar para superar a crise.
Com o comprometimento da rede de trabalho e de consumo, há o agravamento da crise.
A produção de bens e serviços sofre diminuições significativas, pois não há no mercado a possi-
bilidade de consumo. A retração do consumo gera a retração de empregos e, por consequência,
causa desemprego, evidenciando a crise do sistema econômico.
A tutela do meio ambiente, absolutamente relevante, enfrenta, também, retração motiva-
da pela crise econômica, devendo ser considerado que a prioridade deve ser voltada para o meio
ambiente do trabalho. os investimentos para o segmento devem ser revistos tanto pelo setor
público como pelo setor privado.
o círculo perverso da insustentabilidade amplia seu espectro para zombar do livre exercí-
cio da atividade econômica, restando sequestrado pela impossibilidade econômica de exercício.
A livre concorrência permanece assegurada, porém, no mais das vezes, limitada a promover
apenas redução de preços e realinhamento de produção, numa tentativa de sobreviver em um
mercado em tempo de crise.
A cadeia estabelecida pelo livre mercado e designada pela ordem normativa de cada sis-
tema vivencia perplexa, a experiência da insustentabilidade da ordem econômica mundial, até
porque os grandes debates foram sempre travados em relação às dimensões das sustentabilida-
des plurais.
A grande crise econômica mundial é de um espectro tão avassalador que até mesmo os
países mais ricos do planeta buscam, estarrecidos, o caminho de saída, convictos de que os
tempos próximos serão de grandes dificuldades.
165
Assiste-se à mais grave crise econômica dos últimos 70 anos, superando até mesmo as
crises pós-guerras mundiais. desta feita, não houve guerras, a não ser aquela travada ironica-
mente em nome do livre mercado pelos gigantes da economia mundial, vale dizer, as potencias
trilhardárias conseguiram arrastar a maior economia do planeta para a mais inimaginável in-
sustentabilidade, causada pela exposição excessiva ao risco, pela ganância do lucro desmedido,
pela irresponsabilidade empresarial, pela falta de responsabilidade social e, principalmente, pela
ausência de uma competente política econômica intervencionista por parte dos estados unidos
da América.reFerÊNCiaS
AltenFelder, J. P., AlmeidA, F. Função social da empresa e o desenvolvimento sustentável. dis-ponível em: < http://4good.wordpress.com/>. Acesso em: 13. dez. 2008.
BAndeirA de mello, C. A. liberdade indevida. intromissão estatal indevida no domínio econômico Apud BArroso, l. r. A ordem econômica constitucional e os limites a atuação estatal no controle de preços. disponível em: <http://www.direitopublico.com.br/pdf_14/diAlogo-Ju-ridiCo-14-Junho-Agosto-2002-luis-roBerto-BArroso.pdf>. Acesso em: 04 nov. 2008.
BArACho, J. A. o. o princípio de subsidiariedade: conceito e evolução. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. n. 19, p. 11.
BrAsil. Código Civil (2002). Código Civil Brasileiro. Brasília, dF, 2002.
BrAsil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, dF, 1988.
CAnotilho, J. J. g. Direito constitucional e teoria da constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998.
ConstituiÇão dA união euroPeiA. disponível em: http://www.fd.uc.pt/Ci/Cee/pm/tratados/Constituicao/Constituicao_pdf/index.html. Acesso em: 15 dez. 2008.
dAntAs, t. Protecionismo. Brasil Escola. disponível em: http://www.brasilescola.com/economia/protecionismo.htm. Acesso em 13. dez. 2008.
FerreirA, J. s. A. B. n. teoria crítica do negócio jurídico. in: Diritto & Diritti – Rivista Giuridi-ca on line. disponível em: http://www.diritto.it/all.php?file=27048.pdf. Acesso em: 18 dez. 2008.
______. Função social e função ética da empresa. Revista Jurídica da UNIFIL. Ano ii, n. 2. lon-drina: uniFil, 2005, p. 67-85.
FerreirA, J. s. A. B. n.; mAzeto, C. s. Constitucionalização do negócio Jurídico e ordem econômica. Argumentum - revista de direito da Faculdade de direito da unimAr. v. 5. marília: unimAr, 2005, p. 86-87.
Filomeno, J. B. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 6. ed. rio de Janeiro: Forense, 2000.
grAu, e. r. O direito posto e o direito pressuposto. são Paulo: malheiros, 1996.
irti, n. in: sztAJn, r. Teoria jurídica da empresa: atividade empresária e mercados. são Paulo: Atlas, 2004, p. 40.
166
JohAnnPeter, J g. As empresas e a sustentabilidade, p. 7. in: Sustentável 2006 – Ciclo de en-contros sobre sustentabilidade e gestão responsável. disponível em: http://www.sustentavel.org.br/arquivos/sustentavel_2006.pdf. Acesso em: 15 dez. 2008.
mArques, C. l.; BenJAmin, A. h. v.; mirAgem, B. Comentários ao código de defesa do con-sumidor: aspectos materiais. 2. ed. rev. atual. ampl. são Paulo: revista dos tribunais, 2005. p. 60.
morAes, A. Direito constitucional. 22. ed. são Paulo: Atlas, 2007.
moreirA, e. B. o direito Administrativo Contemporâneo e a intervenção do estado na ordem econômica. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico. salvador, instituto de direito Público da Bahia, n° 1, fevereiro, 2005. disponível em: < http://www.direitodoestado.com/revista/redAe-1-Fevereiro-2005-egon%20BoCkmAnn.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2008.
nunes, C. B. A ética empresarial e os fundos socialmente responsáveis. Porto: vida económica, 2004, p. 19.
PAssos, J. J. C. Função social do processo. Jus Navigandi, teresina, ano 6, n. 58, ago. 2002. dis-ponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3198>. Acesso em: 14 dez. 2008.
sztAJn, r. Teoria jurídica da empresa: atividade empresária e mercados. são Paulo: Atlas, 2004.
troster, r. l. & moChón, F. Introdução à economia. são Paulo: editora makron Books, 1999.
ursini, t. r., Bruno, g. o. A gestão para a responsabilidade social e o desenvolvimento sustentá-vel. disponível em: <http://www.ethos.org.br/_uniethos/documents/revistaFAt03_ethos.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2008.
167
ATuAL CENário DoS iNCENTiVoS FiSCAiS No BrASiL: umA ComPArAÇÃo A PArTir DoS CoNCEiToS DE State aid NA
EuroPA E DE CommerCe ClauSe NoS ESTADoS uNiDoS1
Marcos andré vinhas Catãoantonio henrique Pereira de Noronha
oS reGiMeS de iNCeNtivoS FiSCaiS. o trataMeNto NaCioNal VIS-A-VIS a iNterNaCioNalização
em que pese a impossibilidade de se obter uma acurada definição dogmática (universal)
do conceito de “incentivo fiscal”, fato é que todos os ordenamentos jurídicos, nacionais ou
comunitários2, deparam-se com a necessidade de instituição de um regime legal através do qual
se perfaz a desoneração da imposição fiscal genérica ou específica, sob o cotejo do princípio da
autonomia com a manutenção da função regulatória do tributo.3
1 trabalho realizado no âmbito do grupo de Pesquisas da cadeira Finanças Públicas e tributação ii da Faculdade de direito da Fundação getúlio vargas (Fgv/rJ), constituído por thaíssa vale, érico sussekind, litza sester, luiz Carlos valente loureiro, Camila noronha e luisa di Pietro.2 não faremos referência, neste trabalho, às normas do sistema multilateral de comércio (gAtt/gAts) aplicáveis direta ou indiretamente à concessão de incentivos fiscais, muito embora essas constituam em relevante componente ao tratamento dos incentivos nos âmbitos interno e/ou comunitário. A exemplo de como os ordenamentos podem possuir tratos distintos, vemos que, ao passo que o Brasil observa respeito às orientações do gAtt/gAts, tendo se produzido inclusive iterativa jurisprudência (vg. súmula 71 do stJ), a europa dá primazia à normativa comuni-tária. Atualmente, vige na união europeia o conceito de que as normas do gAtt/gAts, inclusive as relativas aos incentivos fiscais, não são self executing, sobre essa temática (ponderação entre regras da ordem comunitária versus gAtt/gAts) vide susana Czar de zalduendo, Las reglas multilaterales de comercio, in: Temas de Derecho Industrial y de la competência, Buenos Aires/madrid: Ciudad Argentina, 2.004, p. 143-187. 3 sobre a extrafiscalidade no estabelecimento de políticas fiscais privilegiadas, soler roch: “al amparo da la llamada ‘doc-trina del incentivo’ que se inscribe, como hemos vistos, en el fenômeno de utilización del tributo com fines extrafiscales. En este contexto, aquel fundamento participa de la necessidad de someter el interes jurídico-tributário a um interes distinto, generalmente indentificado com objetivos de política econômica o social, juridicamente indeterminado e definido, em ocasiones, em términos ideológicos. Así, dicho interes suele coincidir com la consecución de objetivos tales como ‘el fomento de la inversión y la iniciativa privada’, ‘el desarrollo econômico’ o ‘el bienestar y progreso sociales’, cuando no el más genérico ‘bien común’.” Incentivos a la Inversión y Justicia Tributaria, madrid: Civitas, 1.994, p. 105.
capítulo 9
168
dessa feita, as espécies gerais de incentivos tributários (subsídios, isenções, diferimentos,
benefícios, subvenções, remissões e anistias)4 passam, em muitas vezes, a dispor de um rito pró-
prio que deve ser seguido para que as mesmas surjam com validade legal nos seus respectivos
ordenamentos.
o fenômeno adquire ainda maior relevância e pertinência quando se observam as recentes
restrições deontológicas da doutrina internacional à concessão de políticas fiscais beneficiadas,
a partir das décadas de setenta e oitenta do século passado5 e a progressiva intensificação do pro-
cesso de globalização entre as nações, fato último que faz com que a instituição indiscriminada
de incentivos fiscais por parte dos estados altere os rumos da livre-concorrência internacional
e torne instável a integração econômica.
logo, nesse contexto amplo e internacional, a análise dos regimes de incentivos fiscais não
se torna unívoca. Pode ou não se ater primeiramente ao plano interno, instituidor do benefício,
sendo posteriormente ou previamente transladada para o âmbito comunitário6 ou vice-versa.
em suma, mais do que nunca, a temática dos incentivos fiscais deixa de ser uma questão
meramente interna para se ajustar a um conceito de mundialização ou de harmonização fiscal,
baseada na liberdade do comércio internacional.
Ante esse contexto o presente artigo aborda as divergências e similitudes do modelo bra-
sileiro, malgradas suas idiossincrasias, face aos dois principais modelos no mundo, quais sejam
os dos estados unidos da América e o atualmente vigente na união europeia.
o Modelo Norte-aMeriCaNo
diferentemente de europa, os estados unidos adotam uma postura de relativa flexibi-
lidade no que se refere à concessão de incentivos fiscais apesar da atual preocupação com a
geração de déficits primários.
essa postura se projeta tanto no âmbito interno (incentivos estaduais e municipais) quan-
to no plano internacional. no plano internacional a atuação americana pode ser comprovada
4 Para uma rápida referencia as espécies desonerativas que possam ser catalogadas como incentivos fiscais, vide o nosso Regime jurídico dos incentivos fiscais. rio de Janeiro: renovar, 20045 surgido na década de setenta, quando os estados unidos repensavam suas políticas de auxílio fiscal, o conceito de tax expenditure do Professor stanley s. surrey, da universidade de harvard, instituiu a obrigatória ponderação entre os benefícios obtidos com políticas fiscais privilegiadas e a manutenção da arrecadação. As teorias do Professor surrey reforçam a necessidade da gestão fiscal responsável no planejamento de modelos econômicos posteriores ao sistema keynesiano e redundaram em controles do gasto fiscal através de leis gerais orçamentárias (a exemplo de nossa lei de responsabilidade Fiscal) ao lado de leis de concreção (leis anuais orçamentárias). 6 reuven Avi-yonah traça um interessante caso hipotético. Partindo do precedente Cuno vs Daimler-Crysler (vide item ii abaixo), ocorrido em setembro de 2005, quando a justiça americana legitimou parcialmente incentivos fiscais concedidos por um estado americano (ohio), o professor americano cogita sobre a transferência da mesma situação da cidade de toledo (nos estados unidos) para a europa. A partir dessa translação de uma situação de fato, o autor faz uma comparação entre o que seria a orientação a ser dada pelo tribunal da união europeia em comparação a decisão da suprema Corte Americana. Passport to Toledo: Cuno, the WTO and the ECJ. michigan law review, 2.006, pg. 46
169
pelos sucessivos casos de painéis junto à organização mundial do Comércio – omC, seja em
relação a incentivos fiscais seja em relação a subsídios. no que tange aos incentivos fiscais fede-
rais, o principal caso se refere as Foreign Sales Corporations (FSC)7. o regime das FsC envolve
incentivos que passam desde o diferimento do imposto sobre a renda sobre receitas apropria-
das por subsidiárias americanas até a dedutibilidade de aportes de capital, à semelhança de
nosso regime de “Juros sobre o Capital Próprio” de que trata o art. 9º da lei 9.249/95. desde
a década de 1980 os estados unidos vem modificando o regime das FsC a partir das sucessivas
condenações que sofreram na omC.8
A causa dessa aparente liberdade que viceja naquele País pode ser encontrada, a nosso ver,
pela incidência de três aspectos fundamentais.
o primeiro desses reside no fato de a política comercial americana estar apoiada na au-
sência de barreiras fiscais, na livre conversibilidade da totalidade das transações e na preferência
da assinatura de acordos bilaterais, em detrimento de acordos regionais. Com isso, os euA, de
fato, não se encontram integrados a nenhum bloco regional. mesmo em relação ao tratado de
livre Comercia da América do norte - nAFtA, não é este mais que uma zona de livre comér-
cio, o que o afasta de uma possível aproximação à construção de um mercado comum efetivo.
o segundo aspecto diz respeito à força institucional da Federação Americana. nenhum
outro país, no mundo, possui a eficácia e harmonia de um ordenamento que se construiu pela
união de estados-federados. nesse particular, o sentido de autonomia americana parte de uma
competência fiscal federal residual e não o inverso, a exemplo do que ocorre no Brasil e na
europa.
o terceiro aspecto diz respeito à forma de controle, como será visto abaixo. trata-se
de um controle principiológico e, a posteriori, não baseado em regras jurídico-formais, como
ocorre no Brasil (legalidade, convênios entre estados etc..). Por óbvio que essa ausência de
controle jurídico-formal não redunda na ausência de controle, quando muito, pelo contrário,
este é efetuado de forma dissipada, mas ativa, sendo a principal delas, a baseada na “Commerce
Clause”.
A “cláusula de comércio” é uma afirmação constitucional que outorga ao Congresso na-
cional, sem prejuízo da apreciação jurisdicional, poderes para que o legislativo da Federação
venha a regular, entre outros, o comércio entre os estados Americanos (interstate commerce).
visa, pois, manter a neutralidade enquanto princípio de não discriminação interna. essa re-
gulação todavia não é a priori, implicando, na prática, na intervenção casuística do Congresso
nacional, isto é, somente quando surgirem casos atentatórios ao comércio interno.
7 vide www.oecd.org8 Para uma análise mais aprofundada do caso FsC, Welber Barral e gilson Wessler. Sistemas tributários e normas da OMC: lições do caso Foreign sales Corporations. Comércio internacional e tributação (Coord. heleno taveira torres), são Paulo: quartier latin, 2.005,pgs. 29 a 57.
170
esse instrumento de controle objetiva evitar que os estados possam manipular seus tri-
butos de forma a distorcer a alocação de investimentos pelo território americano9. mais uma
vez, aqui a aplicação da cláusula não implica em limites mínimos de alíquotas ou até mesmo na
ausência de imposição, ou seja, não afeta a liberdade que os estados possuem para dispor sobre
seus respectivos subsistemas. Prova disso é a diversidade de alíquotas tanto no sales tax quanto
nos impostos sobre a renda e impostos específicos de competência dos estados.
A forma de controle, ao lado da possível atuação do Congresso, e na ausência de uma
norma nacional para o controle dos incentivos, é preeminentemente jurisdicional, legitimando
tanto particulares quanto os próprios estados a pedirem a anulação de incentivos que venham
a ser contrários à Cláusula (uniformidade dos tributos). segundo o Juiz marshall da suprema
Corte, a Cláusula de Comércio
became central to our whole constitutional scheme: the doctrine that the Commerce Clause, by its own force and without national legislation, puts it into the power of the [U.S. Supreme] Court to place limits upon state authority.10
o Professor da universidade de geórgia, Walter hellerstein11 menciona o objeto princi-
pal da cláusula, em alusão a decisões da suprema Corte:
One of the fundamental tenets that the Court articulated under the dormant Commerce was that no state may impose a tax that discriminates against interstate commerce. Although the concept of discrimination is not self-defining and the scope of the doctrine forbidding discriminatory taxes has never been precisely delineated by the Court, the central mean-ing of discrimination as a criterion for adjudicating the constitutionality of state taxes on interstate business emerges unmistakably from the Court’s numerous decisions addressing the issue: a tax which by its terms or operation imposes greater burdens on out-of-state goods, activities, or enterprises than on competing in-state goods, activities, or enterprises will be struck down as discriminatory under the Commerce Clause. The application of this doctrine to state tax incentives has created a palpable tension in the U.S. Supreme Court’s Commerce Clause jurisprudence. On the one hand, the Court has declared that its decisions “do not prevent the States from structuring their tax systems to encourage the growth and development of intrastate commerce and industry.”12 On the other hand, the Court has disapproved state tax measures designed to achieve that very objective on the ground that they “foreclose[ ] tax-neutral decisions” and “‘provid[e] a direct commercial advantage to local business.’”
9 Constituição Americana, art i, § 8º, cláusula 3ª. será da competência do Congresso: lançar e arrecadar taxas, direitos, impostos e tributos, pagar dividas e prover a defesa comum e o bem-estar geral dos estados unidos; mas todos os direitos, impostos e tributos serão uniformes em todos os estados unidos. 10 Felix Frankfurter, The Commerce Clause Under Marshall, Taney and Waite 18–19, quadrangle Paperback, 1.964. 11 Walter hellerstein e dan t. Coenen, Commerce Clause Restraints on State Business Development Incentives, Cornell law review, n. 789, 1.986. 12 Boston Stock Exchange v. State Tax Commission, 429 u.s. 318, 336, 1.977.
171
vários casos relativos a incentivos editados em afronta à Cláusula vieram a ser analisados
na suprema Corte, além de outros precedentes oriundos da US Tax Court. mas foi um caso
analisado pelo tribunal da 6ª região Federal13 e mantido pela suprema Corte Americana, em
setembro de 200514, o que vem causando maiores dissensões doutrinárias ante a construção
pretoriana e ao procedimento que deve ser adotado pelo Congresso nacional.
A situação envolvia incentivos concedidos pelo estado de ohio e pelo município de to-
ledo (ohio) com base, essencialmente, na depreciação acelerada do imposto de renda estadual
e na isenção de imposto sobre a Propriedade para novas fábricas que viessem ali a se instalar.
A decisão da 6ª região do tribunal de Apelação referendou o incentivo fiscal relativo ao
imposto sobre a Propriedade, rechaçando, todavia, o benefício da depreciação acelerada nos
seguintes termos:
Any corporation currently doing business in Ohio, and therefore paying the state’s cor-porate franchise tax in Ohio, can reduce its existing tax liability by locating significant new machinery and equipment within the state, but it will receive no such reduction in tax liability if it locates a comparable plant and equipment elsewhere. Moreover, as be-tween two businesses, otherwise similarly situated and each subject to Ohio taxation, the business that chooses to expand its local presence will enjoy a reduced tax burden, based directly on its new in-state investment, while a competitor that invests out-of-state will face a comparatively higher tax burden because it will be ineligible for any credit against its Ohio tax.
Além de a posição adotada pelo tribunal ser relativamente contraditória a outros prece-
dentes da suprema Corte15, dando ensejo a uma posição mais liberal no manejo de incentivos
fiscais ao se sustentar a legitimidade de parte dos incentivos porque eles seriam uma atração
para desenvolvimento de atividades locais já instaladas (intrastate e não interstate), o que de
mais importante vem sendo identificado pela doutrina no caso Cuno é a incapacidade que teria
o Congresso nacional, ou o próprio Judiciário, de elencar todos os possíveis incentivos fiscais
que viessem a ser violatórios à Cláusula.
dessa forma, a exemplo de outros ordenamentos, se reconhecem as limitações quanto à
forma de controle e, até mesmo, à capacidade de os tribunais avaliarem o que pode ou não ser
discriminatório, sob a alcunha de um posicionamento que envolve critérios altamente subjeti-
vos diante do sem número de incentivos que são concedidos pelos estados. suscita-se, assim,
uma antiga discussão no modelo americano de controle dos incentivos fiscais sob a seguinte
13 Court of Appeals for the sixth Circuit caso Cuno v. Daimler Chrysler, Inc.14 n.04-1407, registrado em 20.04.2.005.15 entre outros Boston Stock Exchange, Baccus e Westinghouse.
172
indagação: qual deve ser o papel do Judiciário e do Congresso e se esses devem atuar de forma
persecutória.16
explica-se essa situação a partir do quanto aduzimos acima, ao mencionarmos que o
controle se forma preferencialmente através da tutela jurisdicional. de forma complementar,
a doutrina da commerce clause se aperfeiçoa com a atuação do Congresso nacional que pode
editar uma resolução revogando um determinado incentivo. todavia, esse exercício por parte
do Congresso não é obrigatório, o que traz à tona a questão da efetividade do sistema ante a
impossibilidade de se controlar um volume intenso de incentivos vis-a-vis o longo iter proce-
dimental para que se declare um incentivo inconstitucional nos estados unidos.
Aqui quer nos parecer, então, que, a par das críticas que possam ser feitas, o modelo ame-
ricano incorpora um influxo ideológico baseado na tradição liberal e de autonomia aos estados,
apesar das distorções que possam surgir.
Como se vê, não há praticamente, seja de um ponto de vista formal, seja do ponto de vista
procedimental, um controle a priori dos incentivos.
essa liberdade se constitui em uma das principais facetas do modelo americano e em uma
das principais diferenças em relação ao modelo europeu de “ajudas ou auxílios de estado” (state
aids), baseado essencialmente em um controle a priori exercido pela Comissão europeia em
colaboração com os próprios estados europeus interessados, sem prejuízo da legitimação ativa
conjunta dos particulares, como será adiante comentado.
o Modelo euroPeu de “aJuda ou auxílio de eStado” (STATE AID)
sem nenhum padrão de referencia similar em qualquer outro ordenamento, os incentivos
fiscais na europa são extremamente regulados e controlados, sob o gênero de “ajudas ou auxí-
lios de estado”. Com isso queremos deixar claro que, no atual estágio europeu, o controle dos
incentivos se insere dentro de uma esfera mais ampla de controle de qualquer outros subsídios
ou vantagens concedidas por qualquer um dos estados-membro. Conforme aduz Antonio
Carlos dos santos,
os incentivos ou benefícios de natureza fiscal ou parafiscal, na medida em que se traduzam em vantagens econômicas atribuídas pelos poderes públicos a certas em-presas ou produções, configuram auxílios de estado (auxílios sob forma tributária ou auxílios tributários) que, como tal podem ser, caso satisfaçam as condições previstas no artigo 87 do tratado, sujeitos ao princípio da incompatibilidade com o mercado comum, e, eventualmente, usufruir das derrogações existentes na lei comunitária.17
16 Conforme Peter d. enrich, saving the states From themselves: Commerce Clause restraints on state tax incentives for Business, 110 Harvard Law. Review n. 377, 1996.17 Auxílios de Estado e fiscalidade, Coimbra: Almedina, 2.003, p. 311.
173
de se ver então que, mais do que associado a um tema fiscal, o controle dos incentivos
tributários faz parte integrante da política comunitária da concorrência, visando à manutenção
das liberdades de movimento de bens e capitais dentro da europa18. uma rápida digressão so-
bre o regime de controle dos auxílios fiscais permite saltar aos olhos a extensa regulamentação
da questão. essa regulação excessiva nos traz imediatamente o influxo ideológico de uma região
preocupada com as diferenças culturais e sociais e que saiu de uma regime de welfare do século
passado para um modelo baseado na competição e na eliminação dos monopólios19. A base
para o controle dos incentivos fiscais é, por conseguinte, o art. 87, 1 do tratado de roma que
prevê: salvo disposição em contrário do presente tratado, são incompatíveis com o mercado comum, na medida em que afetem as trocas comerciais entre os estados-membros, os auxílios concedidos pelos estados ou provenientes de recursos estatais, indepen-dentemente da forma que assumam, que falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas ou certas produções.
Por sua vez, o mesmo dispositivo não condena todo e qualquer incentivo de natureza fis-
cal, dividindo-os essencialmente em incentivos compatíveis ou incompatíveis com o mercado
comum. Aliás é dessa dialética quanto à compatibilidade dos incentivos que exsurge intensa
produção doutrinária e jurisprudencial acerca de cada um dos benefícios em concreto. dis-
põem os apartados 2 e 3 do artigo 87.
2. são compatíveis com o mercado comum:a) os auxílios de natureza social atribuídos a consumidores individuais com a condi-ção de serem concedidos sem qualquer discriminação relacionada com a origem dos produtos;b) os auxílios destinados a remediar os danos causados por calamidades naturais ou por outros acontecimentos extraordinários;c) os auxílios atribuídos à economia de certas regiões da república Federal da Alema-nha afetadas pela divisão da Alemanha, desde que sejam necessários para compensar as desvantagens econômicas causadas por esta divisão.
3. Podem ser considerados compatíveis com o mercado comum:a) os auxílios destinados a promover o desenvolvimento econômico de regiões em que o nível de vida seja anormalmente baixo ou em que exista grave situação de su-bemprego;b) os auxílios destinados a fomentar a realização de um projeto importante de inte-resse europeu comum, ou a sanar uma perturbação grave da economia de um estado-membro;c) os auxílios destinados a facilitar o desenvolvimento de certas actividades ou regiões econômicas, quando não alterem as condições das trocas comerciais de maneira que contrariem o interesse comum;
18 não por outra razão impera no tJ da união de há muito a denominada doutrina dos efeitos (vide proc. 173/73 itália) onde o incentivo fiscal é considerado ilegítimo quando causar distorções na competitividade das empresas.19 vide g. majone, La Communauté Européene: um état regulateur, Paris: montchestien, 1996.
174
d) os auxílios destinados a promover a cultura e a conservação do património, quan-do não alterem as condições das trocas comerciais e da concorrência na Comunidade num sentido contrário ao interesse comum;e) As outras categorias de auxílios determinadas por decisão do Conselho, deliberan-do por maioria qualificada, sob proposta da Comissão.
dessa feita, o tratado que institui a Comunidade europeia e que até hoje é a norma su-
perior do direito Comunitário europeu até que seja ratificada a Constituição europeia, proíbe
os incentivos fiscais que falseiem ou ameacem falsear a concorrência no mercado comum de
fato, os incentivos fiscais em qualquer sistema contemporâneo são susceptíveis de provocar
distorções da concorrência favorecendo certas empresas ou certas produções. Por conseguinte,
segundo a visão europeia, o seu controle visa garantir condições de concorrência equivalentes
para o conjunto das empresas que operam no mercado interno.no entanto, o tratado permite
certas derrogações quando os auxílios possam apresentar efeitos benéficos para a união euro-
peia em geral. na verdade, por mais paradoxal que possa aparentar, a própria ue tem se valido
de auxílios que se revelam por vezes muito úteis para a realização dos objetivos de interesse
comum e para corrigir certas distorções entre os ordenamentos nacionais20. Por diversas razões
(externalidades, existência de um poder de mercado, problemas de coordenação entre os opera-
dores do mercado etc.), um mercado não funciona por vezes de maneira eficiente de um ponto
de vista econômico. os estados-membros podem então intervir mediante a concessão de au-
xílios estatais, entre os quais incentivos fiscais. Por conseguinte, os auxílios podem ser compa-
tíveis com o tratado se responderem a objetivos de interesse comum claramente definidos e
não falsearem a concorrência em medida contrária ao interesse comum. Portanto, o controle
dos auxílios estatais consiste em encontrar um equilíbrio entre os seus efeitos negativos sobre a
concorrência e os seus efeitos positivos em termos de interesse comum, devendo as vantagens
presumidas para o interesse comum ser superiores às distorções da concorrência.
mais uma vez aqui apresenta-se um pacto federativo não somente decorrente do sistema
europeu, mas baseado principalmente na integração das instituições. tomem-se como exemplo
as decisões submetidas pelos tribunais de cada País ao tribunal de Justiça de luxemburgo21,
onde há uma delegação jurisdicional dos órgãos judicantes, em detrimento, muita das vezes, do
próprio exercício de suas competências hierárquicas.
Contudo, o lado perverso de um mercado extremamente regulado leva à indisfarçável
sensação de que as regras relativas aos auxílios estatais se tornam cada vez mais complexas e cada
vez mais numerosas. o alargamento da união europeia a novos estados-membros sublinha
20 Como no caso da decisão Lankhorst, em que se pretendeu unificar as regras de subcapitalização que eram tratadas unilateralmente pelos países. 21 sobre o procedimento de submissão ao tribunal de Justiça da eu em casos de incentivos fiscais, vide Juan Arpio santacruz, Las ayudas publicas ante el derecho europeo de la competência. Pamplona: Aranzadi, 2.000.
175
a necessidade de racionalizar a política dos auxílios estatais e de clarificar os seus princípios
fundamentais.22
mas é como acima mencionado, na forma de controle que se destaca a questão dos in-
centivos fiscais na europa. nesse ponto, a prioridade é dada ao controle prévio e não posterior,
devendo cada país, no momento em que deliberar sobre a concessão um novo incentivo, sub-
metê-lo previamente à Comissão europeia.
em consequência, além dos casos do artigo 92 do tratado de roma23, todos os projetos
de concessão de novos incentivos (auxílios) devem ser antecipadamente notificados à Comis-
são pelo estado-membro em causa, que deve fornecer todas as informações necessárias para
que a Comissão possa tomar uma decisão. quando a Comissão considerar que as informações
fornecidas pelo estado-membro não estiverem completas solicitará as informações adicionais
necessárias. A questão é temperada pela circunstância de que os auxílios que devem ser noti-
ficados só são aplicados se a Comissão tiver tomado, ou tiver de tomar, uma decisão que os
autorize (cláusula de suspensão). A atenção com a questão do controle prévio, regida pelo
regulamento nº 794/2004, levou a possibilidade, desde janeiro de 2006, que essa notificação
possa ser feita por cada um dos países de forma eletrônica. quanto ao processo de exame de
um incentivo entendido como auxílio, quando a Comissão, após uma análise preliminar, con-
siderar que a medida notificada suscita dúvidas quanto à sua compatibilidade com o mercado
comum, decidirá dar início ao processo formal de investigação nos termos do apartado 2 do
artigo 8824 do tratado. esta decisão resumirá os elementos relevantes em matéria de direito e
de fato, incluirá uma apreciação preliminar da Comissão, quanto à medida proposta e indicará
os elementos que suscitam dúvidas quanto à sua compatibilidade com o mercado comum. o
estado-membro em causa, bem como as partes interessadas, podem apresentar as suas obser-
22 nos últimos anos é realmente de impressionar a vertente assumida especialmente pelo tJ da união europeia em classificar como auxílio de estado toda e qualquer vantagem. vide como exemplo o caso Air France em que se considerou como auxílio ou ajuda de estado o fato de caixas de assistência ligadas a empresa terem custos reduzidos para se utilizarem dos serviços da empresa. Acórdão do tribunal de Primeira instância t 358/94. 23 relativamente às imposições que não sejam os impostos sobre o volume de negócios, sobre consumos específicos e outros impostos indiretos, só podem ser concedidas exonerações e reembolsos à exportação para outros estados-membros, ou lançados direitos de compensação às importações provenientes de estados-membros, desde que as medidas projetadas tenham sido previamente aprovadas pelo Conselho, deliberando por maioria qualificada, sob proposta da Comissão, para vigorarem por um período de tempo limitado.24 se a Comissão, depois de ter notificado os interessados para apresentarem as suas observações, verificar que um auxílio concedido por um estado ou proveniente de recursos estatais não é compatível com o mercado comum nos termos do artigo 87.o, ou que esse auxílio está a ser aplicado de forma abusiva, decidirá que o estado em causa deve suprimir ou modificar esse auxílio no prazo que ela fixar. se o estado em causa não der cumprimento a esta decisão no prazo fixado, a Comissão ou qualquer outro estado interessado podem recorrer diretamente ao tribunal de Justiça, em derrogação do disposto nos artigos 226 e 227. A pedido de qualquer estado-membro, o Conselho, deliberando por unanimidade, pode decidir que um auxílio, instituído ou a instituir por esse estado, deve conside-rar-se compatível com o mercado comum, em derrogação do disposto no artigo 87.o ou nos regulamentos previstos no artigo 89, se circunstâncias excepcionais justificarem tal decisão. se, em relação a este auxílio, a Comissão tiver dado início ao procedimento previsto no primeiro parágrafo deste número. o pedido do estado interessado dirigido ao Conselho terá por efeito suspender o referido procedimento até que o Conselho se pronuncie sobre a questão. todavia, se o Conselho não se pronunciar no prazo de três meses a contar da data do pedido, a Comissão decidirá.
176
vações num prazo não superior a um mês, que pode ser alargado pela Comissão. o processo
formal de investigação será encerrado por via de decisão, podendo a Comissão considerar,
resumidamente, uma das três hipóteses: (i) que a medida notificada não constitui um auxílio;
(ii) que deixaram de existir dúvidas quanto à compatibilidade da medida notificada com o mer-
cado comum e que o auxílio é compatível com o mercado comum (decisão positiva). essa decisão
pode ser acompanhada de condições que lhe permitam reconhecer essa compatibilidade, bem como
de obrigações que lhe permitam verificar o cumprimento da sua decisão (decisão condicional); (iii)
que a medida notificada não é compatível com o mercado comum e que não pode ser posta em
vigor (decisão negativa). se o respectivo estado-membro não respeitar uma decisão condicional ou
negativa, a Comissão pode apresentar o caso diretamente ao tribunal de Justiça. o estado-membro
em causa pode retirar a sua notificação antes de a Comissão ter tomado uma decisão definitiva. Pode
igualmente introduzir alterações a um auxílio já notificado e aprovado. essas alterações não devem
ser susceptíveis de influenciar a apreciação da compatibilidade da medida de auxílio com o mercado
comum. o aumento decorrente da alteração não pode exceder 20% do orçamento inicial de um
regime de auxílio existente. quando a Comissão dispuser de informações relativas a um incentivo
eventualmente ilegítimo, qualquer que seja a sua fonte25, examinará essas informações imediata-
mente. Pode, então, solicitar ao estado-membro em causa que lhe forneça esclarecimentos. entre
outras salvaguardas, a Comissão pode autorizar o estado-membro a acompanhar o reembolso do
auxílio concedido ilegalmente de um pagamento de auxílio de emergência à empresa em questão. se
o estado-membro não der cumprimento a uma das injunções acima referidas, a Comissão tem po-
deres para recorrer diretamente ao tribunal de Justiça para que esse declare que tal incumprimento
constitui uma violação do tratado. Por outro lado, e a par do exame prévio, o prazo prescricional
para que a Comissão (e consequentemente a união europeia) possa recuperar o auxílio ilegal do
país envolvido é de dez anos. Por último, cabe apontar que a Comissão será assistida por um Comitê
Consultivo em matéria de Auxílios estatais, composto por representantes dos estados-membros e
presidido pelo representante da Comissão. este Comitê deve, nomeadamente, ser consultado antes
da adoção de qualquer medida de execução respeitante à forma, do conteúdo e a outros aspectos das
notificações e dos relatórios anuais.
em síntese, podemos ver que, indubitavelmente, o tratamento atual dos incentivos fiscais na
europa não apresenta similar próximo no que se refere ao seu controle, sendo uma das principais
ferramentas de delegação legislativa em que se sustentam as instituições comunitárias, e que vem
contribuindo, ao longo dos anos, para uma excepcionalização à concessão dos incentivos fiscais,
em um cenário muito distante do se passa atualmente no Brasil, como será visto adiante.
25 na união europeia como alhures, sem embargo de toda a regulação sobre o tema, nem sempre é simples a tarefa mesmo de identificar um possível incentivo fiscal, notadamente quando a questão é afeta à tributação sobre a renda. A exemplo, vide o caso Philips-rabobank que envolvia taxas de amortização sobre ativos intangíveis. Para uma análise desse caso, vide kelyn Bacon, Differential taxes, state aid and the Lunn Poly Case, european Community of law review, n 7 , 1.999.
177
o Modelo braSileiro
iniciando a análise do modelo brasileiro, parâmetro do presente estudo, observa-se logo
de início que o legislador constitucional restringiu a concessão de benefícios fiscais à existência
de legislação específica, destinada a regulamentar o instrumento de política fiscal a ser concedi-
do (artigo 150, parágrafo 6º, da Constituição Federal de 1988).26
de inicio, vislumbramos que a abordagem constitucional é claramente jurídico-formal.
não sobram aqui espaços para uma avaliação valorativa, a exemplo do que ocorre nos euA e
na europa, como vimos acima, o que contribui para a massificação de contornos que possam
burlar as restrições formais.
esse menosprezo valorativo pelas causas dos incentivos fiscais aguça sem dúvida a assiste-
mia do quadro que hoje se encontra. verificando que o Brasil possui como forma de estado a
Federação entre união, estados e municípios27, observa-se que a pouca eficácia de disposições
constitucionais e legais acerca da instituição de incentivos fiscais torna o quadro atual um cam-
po profícuo para que qualquer ente político conceda incentivos de natureza fiscal.
em outras palavras, a concessão de benefícios fiscais entre os entes federados gera um
intenso processo de competição tributária, que recebeu da doutrina jurídica e econômica a
denominação de “guerra fiscal”, a qual põe em xeque não somente o princípio federativo, mas
a própria eficiência do estado.
Considerando os atuais contornos, as políticas agressivas de competição tributária tam-
bém atingem os municípios28 e, até mesmo, a união Federal.29
Contudo, é no âmbito estadual, especialmente quanto ao imposto sobre Circulação
de mercadorias e serviços e transporte interestadual e intermunicipal e de Comunicação
(iCms), que as concessões de incentivos fiscais sofrem verdadeira regulamentação jurídica
específica, considerando, primariamente, o disposto no artigo 155, § 2º, inciso Xii, alínea “g”,
da Constituição Federal de 1988.
Conferindo eficácia ao dispositivo constitucional supracitado, a legislação infraconstitu-
cional brasileira determina, através da lei Complementar nº. 24, de 07 de janeiro de 1975,
26 redação dada pela emenda Constitucional nº 3, de 17 de março de 1993.27 Artigo 18 e seguintes, da Constituição Federal de 1988.28 segundo o entendimento de guilherme Bueno de Camargo: “A guerra fiscal entre municípios tem sido travada em duas frentes principais. de um lado há os municípios periféricos às grandes cidades, geralmente localizados nas regiões metropolitanas, que logram atrair empresas prestadoras de serviços para o seu território em troca de alíquotas menores do imposto sobre serviços – iss. uma segunda frente de batalha está em obter a alocação de investimentos produtivos mediante a concessão de benefícios não tributários, tais como a doação de terrenos, instalação de infra-estrutura, além de benefícios tributários, como isenção de iPtu e amortização dos investimentos com a devolução integral ou parcial das parcelas relativas ao incremento gerado pela empresa beneficiada nos montantes recebidos pelo município do Fundo de Participação – FPm.” A guerra fiscal e seus efeitos: autonomia x centralização. in: Conti, J. m. (org.) Federalismo Fiscal. Barueri: manole, 2004, p. 205.29 Caso dos incentivos regionais das regiões norte e nordeste, ainda passíveis de reordenamento após o fim da sudene e sudAm.
178
que, em sede de iCms, as isenções do imposto sobre operações relativas à circulação de mer-
cadorias serão concedidas ou revogadas nos termos de convênios celebrados e ratificados pelos
estados e pelo distrito Federal.
tais Convênios são tomados administrativamente no âmbito do Conselho nacional de
Política Fazendária (ConFAz), o qual tem por finalidade promover ações necessárias à elabo-
ração de políticas e harmonização de procedimentos e normas inerentes ao exercício da com-
petência tributária dos estados e do distrito Federal, bem como colaborar com o Conselho
monetário nacional (Cmn) na fixação da política de dívida Pública interna e externa dos
estados e do distrito Federal e na orientação às instituições financeiras públicas estaduais.30
Por ora, verifica-se que o ConFAz foi criado com a intenção de harmonizar os incenti-
vos fiscais em sede de iCms através de deliberação de representantes das secretarias de estado
de Fazenda das vinte e sete unidades da Federação. o quorum para aprovação de incentivos
fiscais deve ser unânime, ao passo que o quorum31 para revogação total ou parcial de incentivos
fiscais é obtido através dos votos de quatro quintos dos representantes presentes.32
em breve síntese, pode-se dizer que o incentivo fiscal concedido unilateralmente pelo
estado-membro em relação ao principal tributo da Federação, de maneira estranha às delibe-
rações do ConFAz, far-se-ia ilegítimo, sujeitando sua validade ao controle de constituciona-
lidade pelo supremo tribunal Federal.
some-se, ainda, que, para a legal criação de benefício fiscal, devem ser observadas, no
âmbito interno de cada estado-membro, as disposições financeiras do artigo 14, da lei de
responsabilidade Fiscal - lei Complementar nº 101/00.
DA CONCESSãO UNILATERAL E DO PAPEL JUDICANTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – ANáLISE DE SUA JURISPRUDêNCIA E DOS EFEITOS DE SUAS DECISõES
Como se observa, a concessão unilateral de incentivo fiscal33 – especialmente as comuns
adoções de alíquotas privilegiadas e a instituição de créditos presumidos – violam, a princípio,
30 Artigo 1º do Anexo do Convênio iCms 133/97 (regimento interno do ConFAz), publicado no diário ofi-cial da união em 02 de Janeiro de 1998.31 Artigo 2º, § 1º e § 2º, da lei Complementar nº 24/7532 em face da dificuldade de se obter um consenso unânime, existem projetos no Congresso nacional de reforma desse quorum: “o Projeto de lei Complementar 373/06, do deputado Anivaldo vale (PsdB-PA), estabelece que a concessão de isenções do iCms dependerá da aprovação de pelo menos 4/5 dos representantes dos estados presentes à reunião do Conselho nacional de Política Fazendária (Confaz) em que houver a deliberação” (Agência Câmara, 17 de novembro de 2006).33 nas palavras de voto-condutor do ministro Celso de mello: “[...] parece questionável a possibilidade de o es-tado-membro, sem prévia deliberação favorável constante de convênio interestadual (CF, art. 155, § 2º, Xii, g), conceder, em tema de iCms, vantagens de caráter tributário (isenção, incentivos ou benefícios fiscais)” (medida Cautelar na Ação direta de inconstitucionalidade nº 1.247/PA, Plenário, relator ministro Celso de mello, publi-cado no diário de Justiça da união em 08 de setembro de 1995).
179
o disposto no artigo 155, § 2º, inciso Xii, alínea “g”, da Constituição Federal, possibilitando o
controle da constitucionalidade do ato concessivo pelo supremo tribunal Federal.
Considerando seu importante papel como tribunal Constitucional, apaziguador dos
conflitos entre os estados-membros34, o supremo tem reiterada e sistematicamente se mani-
festado contra a política de competição tributária adotada pelos estados-membros, declarando
a inconstitucionalidade dos benefícios fiscais concedidos unilateralmente que chegam ao seu
conhecimento, em especial, através de Ações diretas de inconstitucionalidade (Adis).35
em análise dos inúmeros precedentes sobre o tema elaborados por nossa suprema Corte, verifica-se consolidada posição jurisprudencial compreendendo que:
(i) “os princípios fundamentais consagrados pela Constituição da república, em tema de iCms, (a) realçam o perfil nacional de que se reveste esse tributo, (b) legiti-mam a instituição, pelo poder central, de regramento normativo unitário destinado a disciplinar, de modo uniforme, essa espécie tributária, notadamente em face de seu caráter não-cumulativo, (c) justificam a edição de lei complementar nacional voca-cionada a regular o modo e a forma como os estados-membros e o distrito Federal, sempre após deliberação conjunta, poderão, por ato próprio, conceder e/ou revogar isenções, incentivos e benefícios fiscais”36; (ii) “as regras constitucionais que impõem um tratamento federativamente uniforme em matéria de iCms não representam desrespeito à autonomia dos estados-membros e do distrito Federal. isto porque o próprio artigo constitucional de nº 18, que veicula o princípio da autonomia dos entes da Federação, de logo aclara que esse princípio da autonomia já nasce balizado por ela própria, Constituição”37, e; (iii) “não se argumente, igualmente, o fato de o estado [impugnante] [...] conceder benefícios de iCms semelhantes”, uma vez que “tal fato não se mostra apto a afastar o vício da inconstitucionalidade [...]. trata-se de argumento que supõe uma ‘igualdade no ilícito’, que não pode ser aceito pela ordem jurídica.”38
34 Constituição da república Federativa do Brasil de 1988:Art. 102. Compete ao supremo tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:i - processar e julgar, originariamente:a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de consti-tucionalidade de lei ou ato normativo federal; [...] f) as causas e os conflitos entre a união e os estados, a união e o distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta;.35 segundo marciano seabra de godoi, a “autonomia de cada estado-membro para a instituição do iCms é limita-da pela Constituição Federal de 1988, que busca assegurar um caráter nacional para tal imposto. nos últimos anos, por diversas vezes o stF foi provocado a pronunciar-se sobre normas estaduais que, sem respaldo em Convênios interestaduais firmados pela unanimidade das unidades federativas, concediam unilateralmente diversos tipos de incentivos fiscais com vistas à atração de investimentos para o respectivo território, prática que tomou o nome de ‘guerra fiscal’.” Sistema tributário nacional na jurisprudência do STF. são Paulo: dialética, 2002, p. 160.36 medida Cautelar na Ação direta de inconstitucionalidade nº 1.247/PA, Plenário, relator ministro Celso de mello, publicado no diário de Justiça da união em 08 de setembro de 1995.37 Ação direta de inconstitucionalidade nº 3.246/PA, Plenário, relator ministro Carlos Britto, publicado no di-ário de Justiça da união em 1º de setembro de 2006.38 trechos do voto-condutor proferido pelo ministro gilmar mendes na Ação direta de inconstitucionalidade nº 3.422/PA (Plenário, relator ministro gilmar mendes) e na Ação direta de inconstitucionalidade nº 2.548/PA (Plenário, relator ministro gilmar mendes) durante sessão plenária realizada em 10 de novembro de corrente ano; acórdão ainda sem publicação integral na imprensa oficial (Agência de notícias do supremo tribunal Federal, 10 de novembro de 2006).
180
suscita-se, entretanto, a discussão relativa aos efeitos gerados pela declaração de incons-
titucionalidade em razão da ausência de convênio para a concessão de incentivos fiscais. em
outras palavras, se a referida declaração acarretará em efeitos retroativos (ex tunc) ou prospec-
tivos (ex nunc).
Convém esclarecer no que consiste a definição desse e daquele conceito, respectivamente.
Para o primeiro, consideram-se os efeitos gerados pela norma declarada inconstitucional nulos,
ou seja, todos os atos configurados sob a égide da mesma retroagirão desde a data de sua cons-
tituição, não tendo, portanto, nunca surtido efeitos. no que concerne ao segundo, os efeitos
da norma serão apenas anuláveis, sendo a lei ineficaz a partir do momento de reconhecimento
de sua inconstitucionalidade.
A posição do supremo tribunal Federal, por um grande período de tempo, foi a de de-
clarar a inconstitucionalidade com efeitos ex nunc, muito embora não houvesse nenhum docu-
mento legal que consolidasse esse entendimento, visto que apenas caberiam efeitos ex tunc.39
tal singular posicionamento, que refugia ao efeito retrooperante genérico das declarações
de inconstitucionalidade, tinha suas razões na manutenção da segurança jurídica40 protetora
dos direitos dos contribuintes legítimos do iCms, a qual determinava que o stF deveria res-
peitar (i) o princípio da confiança legítima do contribuinte e (ii) o sistema constitucional da
não cumulatividade em sede de iCms.
especificamente quanto à confiança legítima, verifica-se que, sendo a segurança jurídica caracte-
rística elementar de qualquer ordenamento jurídico, pode ser dito que ela consiste em princípio geral
de direito que garante que o administrado (contribuinte) de boa-fé, que fez jus a benefícios fiscais
aparentemente concedidos de maneira legal, não possa ser prejudicado pela posterior declaração de
inconstitucionalidade da norma legal.
ora, o contribuinte que se guia por uma norma da Administração ou editada por um ente
político, deve ser salvaguardado pela presunção de constitucionalidade e legalidade. Conside-
rando que seus questionamentos jurídicos devem estar única e fundamentalmente vinculados
ao exercício de sua atividade empresarial (vg, tratamento jurídico de seu corpo de empregados,
análise das relações contratuais com seus fornecedores e clientes), inclusive os de índole tributá-
ria, se faz deveras irrazoável puni-lo pelo acatamento de uma legislação tributária que não segue
os parâmetros legais de concessão de benefícios fiscais.
39 nesse sentido, vide as medidas Cautelares nas Ações diretas de inconstitucionalidade nºs 1.522/rJ (Plenário, relator ministro sdyney sanches, publicada no Diário de Justiça da União em 22 de agosto de 1997), 1.577/rJ (Plenário, relator ministro néri da silveira, publicada no Diário de Justiça da União em 28 de abril de 1997) e 1.648/mg (Plenário, relator ministro néri da silveira, publicada no diário de Justiça da união em 22 de agosto de 1997).40 segundo as lições de sainz de Bujanda: “Es claro que ningún ordenamento jurídico puede abandonar el principio de seguridad, porque el Derecho, por esencia, es seguridad.” Apud Borges, José souto maior. Teoria geral da isenção tributária. 3. ed. são Paulo: malheiros, 2001, p. 77.
181
Complementando tal entendimento, registram ives gandra da silva martins e José ruben
marone decisão judicial do supremo tribunal Federal (recurso extraordinário nº 197.917-
8/sP, Plenário, relator ministro maurício Corrêa, publicado no Diário de Justiça da União em
07 de maio de 2004)41 favorável a presente tese, comentando que, nessa decisão, o supremo
tribunal tratou de hipótese análoga à discutida no presente artigo, ou seja, decidiu sobre a
proteção dos efeitos dos atos administrativos, mesmo que eivados de nulidade por afronta à lei
maior como, no caso, as determinações inconstitucionais que trazem o desprezo à ratificação
do ConFAz aos estímulos dos estados.42
Com o advento da lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, que veio a regular as ações
de constitucionalidade, surge, de fato, o referido permissivo legal para que o supremo defira
efeitos prospectivos a tais casos (artigo 27, da lei nº 9.868/99), tornando a possibilidade de
modulação temporal ainda mais concreta e legítima.
Contudo, deve ser ressaltado que, em 2006, em decisão sobre o tema43, o tribunal deci-
diu pela eficácia retrooperante da declaração de inconstitucionalidade, determinando o estorno
de qualquer crédito de iCms tomado sob fundamento da norma estadual inconstitucional,
alterando momentaneamente sua jurisprudência tradicional.
A despeito do precedente acima citado, não há razões para que se vislumbre uma ime-
diata modificação na jurisprudência majoritária da Corte, considerando inclusive que as razões
jurídicas para a manutenção de decisões com eficácia ex nunc são mais fortes, mais sólidas e
superiormente reconhecidas pelo supremo tribunal Federal.
DA INSERçãO DO MODELO BRASILEIRO NO CONTEXTO INTERNACIONAL DO MERCADO COMUM DO SUL (MERCOSUL) – DA AUSêNCIA DE DISPOSIçõES
ESPECíFICAS NO DIREITO COMUNITáRIO DO CONE SUL
Ao contrário da legislação interna, quando se translada o enfoque para o âmbito regional
do mercosul, pode-se afirmar que o trato normativo da política de incentivos fiscais encontra-se
praticamente silente, sendo tímidas e quase inexistentes as normas comunitárias sobre o tema.
no mercosul, o tema relativo à limitação da concessão de benefícios fiscais permanece
disciplinado de maneira esparsa (como, por exemplo, no tratamento das zonas Francas), ou
sob a rúbrica genérica da concessão de subsídios e normas antidumping e atinentes aos princí-
41 de cuja ementa se extrai: “[...] 4. Princípio da razoabilidade. restrição legislativa. A aprovação de norma mu-nicipal que estabelece a composição da Câmara de vereadores sem observância da relação cogente de proporção com a respectiva população configura excesso do poder de legislar, não encontrando eco no sistema constitucional vigente.”.42 o Perfil Jurídico da guerra Fiscal e das variações das relações Jurídicas dos estímulos de iCms, Revista Dialé-tica de Direito Tributário nº. 134, são Paulo: dialética, 2.006. 43 Ação direta de inconstitucionalidade nº. 3.246/PA, Plenário, relator ministro Carlos Britto, publicada no diário de Justiça da união em 1º de novembro de 2006.
182
pios da não discriminação de nação mais favorecida, mencionadas nos artigos 4º, 7º e 8º, do
tratado de Assunção.
Ademais, como um todo é manifesta a carência legislativa no direito Comunitário do
Cone sul, não tendo o importante tema da política de incentivos fiscais dentro do bloco me-
lhor tratamento normativo.
e, por último, cumpre ressaltar a fragilidade institucional do bloco vasada na incipiência
dos casos submetidos ao tribunal Arbitral, e na constituição de um tribunal Permanente
apenas recentemente, sem que o mesmo tenha servido de estímulo para a consolidação de um
entendimento mais razoável aos conflitos entre os Países que acabam sendo resolvidos pela via
diplomática tradicional.
CoNSideraçÕeS FiNaiS
Como se demonstrou, enquanto no Brasil o tema dos incentivos fiscais carece de trato
institucional e de valoração, a questão avança através da jurisprudência e da regulação na união
europeia, fato que facilmente se explica pela evolução daquele bloco econômico.
Pela comparação dos modelos americano e europeu podemos observar que nosso atual regime
de incentivos se situa mais proximamente ao modelo americano, onde viceja a competitividade entre
os entes da Federação e a ausência de um controle a priori.
mas tanto do modelo europeu quanto do modelo americano nos distanciamos pela au-
sência de uma valoração dos incentivos, de modo a ter por legítimos ou ilegítimos, desejados
ou não. tanto na europa, com o conceito de “Auxílios de estado” (state aid), quanto nos euA
- com o conceito constitucional de “Cláusula de Comércio”, sobeja a vertente de bens jurídicos
a serem protegidos: a livre concorrência e a igualdade dos agentes econômicos.
Assim o enfrentamento da questão no Brasil sob uma ótica estritamente jurídico-formal
impede uma evolução quanto ao discernimento entre incentivos legítimos e ilegítimos. Passar
para a adoção de um modelo do tipo europeu, de alta complexidade, com a multiplicidade
de suas instituições e acobertado por uma união econômica devidamente estruturada, soa
utópico.
Assim, uma forma possível, sem prejuízo do urgente e necessário regramento normativo
uniforme quanto ao iCms – com a fixação de um certo número de alíquotas, como se passa
hoje na europa - seria a de se estabelecer no Capítulo relativo aos “Princípios gerais da Ativida-
de econômica” regras restritivas que viessem a tratar da concessão de incentivos e que pudes-
sem estimular a livre-concorrência, legitimando particulares a acessarem a tutela jurisdicional
sempre que um incentivo ilegítimo venha a causar distorção.
183
desde já, somos de opinião que a introdução do art. 149-A44 da Constituição pouco con-
tribuiu para um novo cenário, até pela ausência de sua regulamentação.
Apressar esse processo se apresenta como medida urgente diante da necessidade de com-
pensar o tempo perdido na configuração de um novo regime jurídico dos incentivos fiscais em
nosso País, extraindo os melhores elementos dos modelos existentes nos principais ordenamentos
contemporâneos.
reFerÊnCiAs
Avi-yonAh, reuven. Cuno vs Daimler-Crysler. Passport to toledo: Cuno, the Wto and the eCJ. michigan: law review, 2.006.
BACon, kelyn, differential taxes, state aid and the lunn Poly Case, european Community. Law Review, n 7 , 1.999.
CAmArgo, guilherme Bueno de. A guerra fiscal e seus efeitos: autonomia x centralização. in: Conti, José maurício (org.) Federalismo fiscal. Barueri: manole, 2004.
CAtão, marcos André vinhas. Regime jurídico dos incentivos fiscais. rio de Janeiro: renovar, 2004.
enriCh, Peter d. saving the states From themselves: Commerce Clause restraints on state tax incentives for Business, 110 harvard. Law Review n. 377, 1.996.
roCh, soler. Incentivos a la Inversión y Justicia Tributaria. madrid: Civitas, 1.994.
zAlduendo, susana Czar de. las reglas multilaterales de comercio. in: Temas de Derecho Indus-trial y de la competência. Buenos Aires/madrid: Ciudad Argentina, 2.004.
BArrAl, Welber; Wessler, gilson. sistemas tributários e normas da omC: lições do caso Foreign sales Corporations. Comércio internacional e tributação (coord. heleno taveira torres), são Paulo: quartier latin, 2.005.
Borges, José souto maior. Teoria geral da isenção tributária. 3. ed. são Paulo: malheiros, 2001.
FrAnkFurter, Felix. the Commerce Clause under marshall. Taney and Waite 18–19, qua-drangle Paperback, 1.964.
godoi, marciano seabra de godoi. Sistema Tributário Nacional na Jurisprudência do STF. são Paulo: dialética, 2002.
hellerstein, Walter; Coenen, dan t. Coenen. Commerce Clause restraints on state Business development incentives, Cornell. Law Review, n. 789, 1.986.
mAJone, g. la Communauté européene: um état regulateur, Paris: montchestien, 1.996.
mArtins, ives gandra da silva; mArone, José ruben. o perfil jurídico da guerra fiscal e das variações das relações jurídicas dos estímulos de iCms. Revista Dialética de Direito Tributário. são Paulo: dialética, n. 134, p. 48-58, nov. 2006.
44 Art. 146 - A. lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a união, por lei, estabelecer normas de igual ob-jetivo.
184
sAntACruz, Juan Arpio santacruz. Las ayudas publicas ante el derecho europeo de la competência.Pamplona: Aranzadi, 2000.
sAntos, António Carlos dos. Auxílios de Estado e fiscalidade. Coimbra: Almedina, 2003.
185
PoLÍTiCAS PÚBLiCAS TriBuTáriAS, DESENVoLVimENTo E CriSE ECoNÔmiCA
Maria de Fátima ribeiro
Suely Fadul villbor Flory
A análise passa pela discussão do papel do estado contemporâneo no desenvolvimento
econômico e de sua posição intervencionista, estimulando ou desestimulando determinadas
condutas ou atividades, com vistas ao equilíbrio das atividades econômicas e seus reflexos. vale
destacar as lições de Aliomar Baleeiro1, quando afirma que uma política tributária, para ser
racional, há de manter o equilíbrio ótimo entre o consumo, a produção, a poupança, o inves-
timento e o pleno emprego.
diante da crise econômica atual, que assumiu dimensões globais, os sistemas contempo-
râneos estão a exigir medidas tributárias interventivas, fundamentando uma política fiscal de
desoneração em tempos de crise. tais medidas embora, em um primeiro momento, possam re-
presentar uma diminuição da receita pública, demonstram também quando há a possibilidade
de restabelecer o equilíbrio orçamentário em períodos posteriores, no momento da recuperação
econômica. no entanto, tais iniciativas devem ser tratadas à luz da lei de responsabilidade
Fiscal (lei Complementar 101/2000), considerando-se a renúncia da receita.
dessa forma, o sistema tributário deve ter como objetivos o desenvolvimento econômico
e social, sem que se comprometam a criação de empregos, a redução da dependência de capi-
tais externos, a eliminação da pobreza, as justiças fiscal e social, e a diminuição das desigualda-
des regionais, citando esses como referências. nesse sentido, pode ser observado até que ponto
o sistema tributário brasileiro permite a alteração da política fiscal para intervenção no setor
econômico. em seguida, serão tecidas considerações sobre os efeitos fiscais produzidos pela cri-
se econômica de 2008 e as principais ações do governo federal como medidas anticíclicas. Para
tanto, fica demonstrada a necessidade de constante criação e de implementação de políticas
1 BAleeiro, A. Uma introdução à ciência das finanças. 14. ed. rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 171.
capítulo 10
186
públicas preventivas em matéria tributária, com destaque para questões essenciais previstas no
PAC – Programa de Aceleração do Crescimento.2
PolítiCaS tributáriaS e o PaPel do eStado No deSeNvolviMeNto SoCial e eCoNôMiCo
Atualmente, a maioria dos estados utiliza-se do direito tributário para alcançar a fina-
lidade fiscal, bem como a finalidade extrafiscal, para garantir o equilíbrio econômico, tutelar
o meio ambiente, reduzir as desigualdades sociais, entre outros objetivos sociais e econômicos,
impondo à tributação o desempenho de um papel que vai além da mera arrecadação de receita
pública. esse papel do estado demonstra sua atuação direta com vistas às realidades social e
econômica. Pode-se, então, afirmar que, além de o sistema tributário sujeitar-se aos limites
constitucionais e legais do poder de tributar, ultrapassa as fronteiras dessas imposições, quando
considera tais realidades por meio da extrafiscalidade.
durante muito tempo, a tributação foi vista apenas como um instrumento de receita do
estado. Apesar de essa missão ser, por si só, relevante, na medida em que garante os recursos
financeiros para que o Poder Público bem exerça suas funções, verifica-se que atualmente com
a predominância do modelo do estado social, não se pode abrir mão do uso dos tributos como
eficazes instrumentos de política e de atuação estatais, nas mais diversas áreas, sobretudo na
social e na econômica.
As necessidades públicas devem ser atendidas diretamente pelo estado. essa sociedade
inserida no contexto econômico-social deve ser relacionada também com o contexto interna-
cional, cujos reflexos podem gerar encadeamentos diretos que repercutem nessa mesma socie-
dade. dentro dessas necessidades sociais, merece destacar os ditames da Constituição Federal
de 1988, que dispõe, em seu art. 1º, os principais fundamentos que motivaram a sua criação,
destacando-se a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da
livre iniciativa. verifica-se que os princípios inseridos nesse dispositivo devem fundamentar
toda a produção de normas no ordenamento jurídico, uma vez que os fundamentos de todo o
estado democrático de direito, necessariamente, precisam ser respeitados por todas as normas
do ordenamento jurídico.
em conjunto com esses fundamentos, a Carta Constitucional ressalta, em seu art. 3º, os
seus principais objetivos, isto é, as principais metas e finalidades de sua criação. traz como fina-
lidades primordiais do estado a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia
do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização, além de reduzir as
2 o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC foi lançado em 28 de janeiro de 2007, pelo governo brasileiro; engloba um conjunto de políticas econômicas planejadas para os quatro anos seguintes, e tem como objetivo acelerar o crescimento econômico do Brasil.
187
desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, entre outros. Para tanto, elenca,
em seu Capítulo vii (art. 170), uma série de normas referentes à ordem econômica.
o capitalismo sofreu mudanças ao longo de toda a sua história e, no atual estado Con-
temporâneo, sofreu mutações em sua forma, uma vez que esse não está livre para gerir as
relações econômicas, mas sim, é regulado por normas emanadas do ente estatal no intuito
de estabelecer limites a essas práticas comerciais. normas estas compreendidas, inclusive, na
própria Carta Constitucional, no título referente à ordem econômica (art. 170 e segs.), como
bem observa Afonso insuela Pereira: “o que o mundo moderno nos apresenta, hoje, é o que se
denomina de democracia econômica, diversa da tese de abstenção do sistema liberal, que não
punia excessos ou abusos, mas sim um sistema que procura formar nova mentalidade nas elites
administrativas, instrumentando-as para que se sobreponham os ideais de um melhor rendi-
mento em favor do homem.”3
o art. 170 da Carta Constitucional, traz uma série de princípios referentes à ordem eco-
nômica, mas que, na verdade, são instrumentos de persecução dos objetivos e de cumprimento
dos fundamentos do estado brasileiro, como bem observa João Bosco leopoldino da Fonseca:
“para que os fundamentos sejam concretizados e para que os fins sejam alcançados, necessário
se faz adotar alguns princípios norteadores da atividade da ação do estado.”4. desse modo, os
princípios norteadores da ordem econômica determinam quais deverão ser as condutas dos
particulares em suas práticas comerciais, sempre no intuito de se preservarem os valores inseri-
dos no texto Constitucional e que representam os anseios de toda a sociedade.
é preciso, inicialmente, determinar o conceito de política tributária, justificando-se a de-
nominação escolhida. A política econômica, que compreende toda a atividade produtiva, cedeu
lugar à política financeira, que se ocupa do direito público, e esta, por sua vez, já deu origem
à política tributária, que passou a se ocupar exclusivamente das atividades estatais relativas aos
tributos5. o professor Alfredo Augusto Becker ensina que a política fiscal discrimina diferentes
espécies econômicas de renda e de capital para sofrerem diferentes incidências econômicas de
tributação, no intuito de alcançar seus objetivos econômicos-sociais6. A política fiscal deve ser
entendida, ainda, como o conjunto de medidas relativas ao regime tributário, gastos públicos
que se desdobram em diversos seguimentos. ou seja, a política fiscal pode utilizar-se dos tribu-
tos e dos gastos do governo para regular a atividade econômica sem desconsiderar os ditames
da política monetária, vez que são políticas complementares.
A nova ordem econômica mundial destaca-se pela valorização do trabalho em relação ao
desenvolvimento econômico. o Professor Paz Ferreira ensina que a
3 PereirA, Af. i. O direito econômico na ordem jurídica. 2. ed. são Paulo: José Bushatsky, 1980. p. 200.4 FonseCA. J. B. l. Direito econômico. 2. ed. rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 87-88.5 rodrigues, r. m. Intributabilidade dos Gêneros Alimentícios Básicos. são Paulo: resenha tributária, 1981, p 7.6 BeCker, A. A. Teoria Geraldo Direito Tributário. são Paulo: saraiva, 1963, p. 458.
188
proclamação do direito ao desenvolvimento, com a consequente definição de obri-gações para o estado, fez a sua entrada em alguns textos constitucionais no segundo pós-guerra, na sequência dos dolorosos problemas económicos e sociais resultantes do conflito e de uma nova avaliação dos direitos do homem, que implicou a garantia da criação de condições para o pleno desenvolvimento da personalidade.7
desenvolvimento econômico não é apenas crescimento econômico, nem distribuição de
riqueza. Pressupõe a distribuição dessa riqueza em favor do bem-estar social e a participação
da sociedade. A Constituição Federal propõe a busca pelo desenvolvimento econômico, sendo
esse uma efetiva mudança na situação atual da economia nacional. o desenvolvimento deve
ser entendido como um estado de equilíbrio na produção, distribuição e consumo de riquezas.
nenhum estado pode ser considerado desenvolvido se mantiver uma estrutura social caracte-
rizada por vertentes simultâneas de riqueza e pobreza. o estado desenvolvido é marcado pela
estrutura harmônica entre o padrão de modernização e a proteção dos valores coletivos. Assim,
busca-se, ao mesmo tempo, o crescimento com a liberdade das atividades econômicas, desde
que tal conviva com a proteção do consumidor e do meio ambiente. um estado que enfatiza
“apenas a vertente da modernização, desprezando a sua harmonia com os demais elementos,
não pode se configurar como desenvolvido; pode, no máximo, ser um estado modernizado.”8
uma política tributária orientada para o desenvolvimento econômico e a justiça social,
que não tiver, na sua essência, o estímulo ao trabalho e à produção, “compensando a redução
de encargos pela tributação sobre acréscimos patrimoniais, termina por não provocar desenvol-
vimento econômico nem justiça social e gera insatisfações de tal ordem que qualquer processo
de pleno exercício dos direitos e garantias democráticas fica comprometido.”9
gustavo miguez de mello10 assevera que a política tributária deve ser analisada pelos seus
fins, pela sua causa última, pela sua essência, na medida em que o poder impositivo deve ques-
tionar: Por que tributar? o que tributar? qual o grau de tributação? Atendendo as perspectivas
e finalidades do estado estar-se-á executando política tributária.
deve ser ressaltado que a política tributária, embora consista em instrumento de arreca-
dação tributária, necessariamente não precisa resultar em imposição. o governo pode fazer po-
lítica tributária utilizando-se de mecanismos fiscais através de incentivos fiscais, e de isenções,
7 PAz FerreirA, e. Valores e interesses – Desenvolvimento económico e política comunitária de cooperação. Coimbra: Almedina, 2004, p. 193.8 elAli, A. um exame da desigualdade da tributação em face dos Princípios da ordem econômica, p. 4, www.idtl.com.br/artigos/242.pdf, Acesso em: 20 jan. 2012.9 mArtins, i. g. s. Direito econômico e tributário: comentários e pareceres. são Paulo: resenha tributária, 1992, p. 6-7.10 mello, g. m. uma visão interdisciplinar dos problemas jurídicos, econômicos, sociais, políticos e adminis-trativos relacionados com uma reforma tributária. in: Temas para uma nova estrutura tributária no Brasil. rio de Janeiro: mapa Fiscal editora, 1978, p. 5. (sup. esp. i Congresso Bras. de direito Financeiro, rJ,)
189
entre outros mecanismos que devem ser considerados com o objetivo de conter-se o aumento
ou a estabilidade da arrecadação de tributos.
Assim, a política tributária poderá ter caráter fiscal e extrafiscal. entende-se como política
fiscal a atividade de tributação desenvolvida com a finalidade de arrecadar, ou seja, transferir o
dinheiro do setor privado para os cofres públicos. o estado quer apenas obter recursos finan-
ceiros. A finalidade da tributação “não é apenas a de proporcionar receita ao estado, mas a de
proporcionar receita para que o estado possa fazer frente às necessidades públicas.”11
Por meio da política extrafiscal, o legislador fiscal poderá estimular ou desestimular com-
portamentos, de acordo com os interesses da sociedade, por meio de uma tributação regressiva
ou progressiva, ou quanto à concessão de incentivos fiscais. Pode-se dizer que, através dessa
política, a atividade de tributação tem a finalidade de interferir na economia, ou seja, nas re-
lações de produção e de circulação de riquezas.12 Assim, para Becker, a principal finalidade de
muitos tributos “não será a de instrumento de arrecadação de recursos para o custeio das des-
pesas públicas, mas a de um instrumento de intervenção estatal no meio social e na economia
privada”.13
A política fiscal poderá ser dirigida no sentido de propiciar a evolução do país para objetivos
puramente econômicos, como seu desenvolvimento e industrialização, ou também para alvos po-
líticos e sociais, como maior intervenção do estado no setor privado. A determinação do objeto da
política fiscal integra as políticas governamentais. é ponto pacífico que cabe à política tributária se
ocupar do planejamento e da análise dos tributos que devem ser instituídos e cobrados e determinar
que eles devem ser instrumentos indicados para alcançar a arrecadação preconizada pela política fi-
nanceira, sem contrariar os objetivos maiores da política econômica e social que orientam o destino
do país.
de igual modo, o estado poderá atender às suas finalidades através da distribuição de
riqueza, da satisfação das necessidades sociais, e de políticas de investimentos, entre outras, que
podem ser alcançadas por meio de uma política tributária e não necessariamente pela imposi-
ção tributária.
Por isso, referida tributação deve privilegiar as necessidades essenciais da população, des-
tacando-se a alimentação, saúde, vestuário, moradia, educação, acesso ao trabalho, livre ini-
ciativa e livre concorrência, entre outros pontos. na prática, tais posições devem ser efetivadas
através de leis isentivas ou com tributações simbólicas.
nesse diapasão, tem-se que o Poder tributante, ao elaborar sua política tributária, deve
levar em conta se o sistema tributário é justo, ou seja, se ele trata, de maneira igual todos os
11 vAnoni, e. Natureza e interpretação das leis tributárias. tradução rubens gomes de souza. rio de Janeiro: Financeiras, 1932, p. 126.12 vinhA, t. d.; riBeiro, m. F. efeitos socioeconômicos dos tributos e sua utilização como instrumento de polí-ticas governamentais. in: PeiXoto, m. m. Tributação, justiça e liberdade. Curitiba: editora Juruá, 2005, p. 659.13 BeCker, A. A. Teoria geral do direito tributário. são Paulo: saraiva, 1963, p. 536.
190
contribuintes que se encontram em situação idêntica, e também se está adequado à distribuição
de rendas e ao desenvolvimento econômico. e mais, se favorece a política de estabilização da
economia, o combate ao desemprego e à inflação.
o fator econômico é preponderante para a adequada política tributária, não podendo o
estado interferir através da tributação, com medidas que provoquem instabilidade na econo-
mia. A estabilidade econômica é mantida quando o estado controla a inflação, e a política de
juros, possibilita a capacidade produtiva da sociedade, controla o orçamento público e os gastos
públicos, garantindo a propriedade, e propiciando a livre iniciativa e a livre concorrência. A
política tributária deverá se adequar ao ordenamento jurídico vigente, sob pena de tornar-se
ineficaz e nula.
A política tributária deve ser proposta como instrumento para a correção de desequilí-
brios da diminuição das desigualdades, do crescimento e do desenvolvimento econômico. Por
isso, os tributos devem ser avaliados com relação à sua eficiência econômica, e, de um ponto de
vista mais amplo, à sua adequação aos objetivos da política fiscal. sob a ótica de sua eficiência,
dois princípios norteiam a teoria da tributação: neutralidade e equidade. num sentido mais
amplo, ou seja, adequar os tributos aos princípios da Política Fiscal, a teoria da tributação tenta
aproximar-se de um sistema tributário ideal através dos princípios da equidade, progressivida-
de, neutralidade e simplicidade.14
de certa forma, para o desenvolvimento econômico nacional, nesse contexto de globa-
lização, deve-se salientar a redução dos gastos públicos, com um processo de diminuição da
carga tributária capaz de permitir uma maior disponibilidade de recursos para a poupança,
investimento ou consumo. A justa repartição do total da carga tributária entre os cidadãos é
imperativo ético para o estado democrático de direito.
A arrecadação de tributos é importante para a economia nacional e internacional, não
apenas como fonte de riqueza para o estado, mas também como elemento regulador da ativida-
de econômica e social. desenvolvimento econômico “significa mudança de estrutura, como o
crescimento da participação do produto industrializado no produto total, e melhoria dos indi-
cadores sociais e da distribuição de renda.”15 Pode-se, com isso, afirmar que o desenvolvimento
econômico deve corresponder à melhoria do padrão de vida da sociedade. diferentemente
pode ser observado no Brasil, onde ocorre representativo crescimento econômico, industria-
lização e modernização, mas, ao mesmo tempo, se registram profundas desigualdades sociais
e regionais, podendo ocorrer novos registros positivos com os investimentos do Programa de
Aceleração de Crescimento - PAC. Para que haja desenvolvimento, o sistema jurídico deve ser
14 mAtiAs-PereirA, J. gestão das políticas fiscal e monetária: os efeitos colaterais da crise mundial no cresci-mento da economia brasileira. in: Observatorio de la economía latinoamericana, n. 148, 2010.15 souzA, n. J. Curso de economia. são Paulo: Atlas, 2003, p. 318.
191
capaz de assegurar liberdades políticas aos seus cidadãos, uma vez que é somente através delas
que metas sociais e econômicas são legitimamente estabelecidas.
segundo Celso Furtado, o desenvolvimento se realiza sob a ação conjunta de fatores
responsáveis por transformações nas formas de produção e de forças sociais que condicionam
o perfil da procura.16 Por sua vez, Amartya sen pondera que o desenvolvimento pode ser visto
como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam17. Assim, o de-
senvolvimento seria fruto de transformações sociais.
Conforme destaca gilberto Bercovici18, o desenvolvimento é condição necessária para
o bem-estar social, sendo o estado seu principal condutor por meio de programas e ações, “o
qual envolve a ampliação de oportunidades individuais e coletivas geradas pelo crescimento
econômico, pela observância de valores fundamentais balizados constitucionalmente, como a
justiça e a redução da pobreza e das desigualdades.”
As normas jurídicas tributárias, quando utilizadas como incentivos para determinados
comportamentos econômicos, revelam-se instrumentos potencialmente aptos para alcançar fi-
nalidades do estado, por meio de políticas fiscais.
enfim, no tocante às implicações da tributação com o desenvolvimento econômico, é
patente que a questão essencial não reside, somente, na menor ou na maior carga tributária,
mas no modo pelo qual a carga tributária é distribuída. todo tributo incide, em última análise,
sobre a riqueza. daí os dizeres de Aliomar Baleeiro:
uma política tributária, para ser racional, há de manter o equilíbrio ótimo entre o consumo, a produção, a poupança, o investimento e o pleno emprego. se houver hipertrofia de qualquer desses aspectos em detrimento dos outros, várias perturbações podem suceder com penosas consequências para a coletividade.19
e neste patamar o Poder Público deverá verificar se é possível aumentar ou diminuir a
carga tributária e a possibilidade de redistribuir a renda sem prejuízo do desenvolvimento eco-
nômico. nessa feita, sustenta hugo de Brito machado20 que o estado deve intervir no processo
de desenvolvimento econômico, pela tributação, não para conceder incentivos fiscais à forma-
ção de riqueza individual, mas para ensejar a formação de empresas cujo capital seja dividido
por número significativo de pessoas, de sorte que a concentração de capital se faça sem que,,
necessariamente, isto signifique concentração individual de riqueza.
16 FurtAdo, C. Teoria e política do desenvolvimento econômico. são Paulo: Paz e terra, 2000, p. 106.17 sen, A. Desenvolvimento como liberdade. tradução laura teixeira motta. são Paulo: Companhia das letras, 2000, p 17.18 BerCoviCi, g. Desigualdades regionais, estado e constituição. são Paulo: max limonad, 2003, p. 58.19 BAleeiro, A. Uma Introdução à ciência das finanças. 14. ed. rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 171. i20 mAChAdo, h. B. A Função do tributo nas ordens econômica, social e Política. Revista da Faculdade de Direito de Fortaleza, 28, n.2, julh-dez, 1987, p.28.
192
Ao lado das medidas de natureza tributária, são indispensáveis medidas no plano da des-
pesa pública. isto requer que o produto da arrecadação de tributos seja empregado preferente-
mente nos setores sociais, de saúde pública, por exemplo, entre outros interesses da sociedade.
FuNção FiSCal e FiNalidade extraFiSCal doS tributoS No CoNtexto da ordeM eCoNôMiCa
o desenvolvimento econômico está aliado à atuação do estado. Assim, o estado poderá
atuar através da política fiscal e extrafiscal, conforme já apresentado anteriormente. José Casalta
nabais, ao tratar sobre a extrafiscalidade, apresenta o direito econômico fiscal, como sendo o
conjunto de normas jurídicas que regula a utilização dos instrumentos fiscais com o principal
objetivo de obter resultados extrafiscais, em sede de políticas econômicas e sociais, “ou por ou-
tras palavras, a disciplina jurídica da extrafiscalidade.”21 Assim, o autor sustenta dois grandes
domínios ou setores do direito econômico fiscal: o setor dos impostos extrafiscais ou os agrava-
mentos com função extrafiscal e o setor dos benefícios fiscais.22
A extrafiscalidade caracteriza-se “quando o legislador, em nome do interesse coletivo, au-
menta ou diminui as alíquotas e/ou as bases de cálculo dos tributos, com o objetivo principal
de induzir contribuintes a fazer ou deixar de fazer alguma coisa.”23
Por sua vez, destaca geraldo Ataliba, que a extrafiscalidade configura-se pelo “emprego
deliberado do instrumento tributário para finalidades não financeiras, mas regulatórias de com-
portamentos sociais, em matéria econômica, social e política.”24
desse modo, raimundo Bezerra Falcão aponta que a extrafiscalidade é a atividade fi-
nanceira que o estado exercita sem o fim precípuo de obter recursos para o seu erário, para o
fisco, mas sim com vistas a ordenar ou reordenar a economia e as relações sociais.25 José Casalta
nabais afirma que a extrafiscalidade pode ser traduzida como um conjunto de normas que tem
por finalidade dominante a consecução de resultados econômicos ou sociais, por meio da utili-
zação do instrumento fiscal, e não a obtenção de receitas para fazer face às despesas públicas.26
o contribuinte brasileiro questiona constantemente o aumento da carga tributária. Afi-
nal, vem pagando a expansão do gasto público, sobretudo o custo do endividamento. tem-se,
então, que a carga tributária é elevada e que a contraprestação de serviços precisa ser qualifica-
da. A transferência de expressivos recursos da economia para as contas públicas enfraquece o
21 nABAis, J. C. Direito Fiscal. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2010, p. 425.22 idem, p. 426.23 CArrAzzA, r. A. Curso de direito constitucional tributário. 21. ed. são Paulo: malheiros, 2005, p. 106-7, nota 66.24 AtAliBA, g. Sistema constitucional tributário brasileiro. são Paulo: revista dos tribunais, 1966, p. 15125 FAlCão, r. B. Tributação e mudança social. rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 196.26 nABAis, J. C. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. reimpressão. Coimbra: Almedina, 2009, p. 629.
193
investimento e reduz o consumo. rogério vidal martins27 ressalta que a aplicação do tributo
tão somente na sua função arrecadatória tem como consequências a inibição da produção de
bens e serviços, em razão da diminuição da capacidade econômica advinda do aumento da tri-
butação; a diminuição dos níveis de emprego; a redução do poder aquisitivo do cidadão-contri-
buinte; a redução do consumo e, também, a diminuição da competitividade do país em relação
ao mercado externo. ou seja, pode causar um enorme prejuízo econômico e social para o país,
do que decorre a necessidade de, novamente, se promover um aumento da carga tributária. Ao
adotar o tributo como instrumento de intervenção na economia, o legislador atua através da
extrafiscalidade com a aplicação dos incentivos fiscais.
Com vistas ao desenvolvimento, no Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988, o
estado investiu em setores considerados estratégicos para o desenvolvimento industrial, com
destaque para a infraestrutura, especialmente, nas estradas, na energia e telecomunicações.
tais medidas de intervenção estatal, direcionadas ao desenvolvimento nacional, não po-
dem resumir-se a aspectos econômicos conjunturais. Para sustentarem-se constitucionalmente,
essas medidas precisam guardar consonância com o real significado da expressão desenvolvi-
mento, que envolve tanto a ideia de crescimento econômico quanto a de melhorias no bem-es-
tar social. A conjuntura econômica pode servir apenas de amparo para medidas interventivas de
caráter temporário, com objetivos de curto prazo bem delimitados, conforme destaca matheus
Assunção.28
Afirma António Carlos dos santos, com razão, que a intervenção estatal na vida econômi-
ca é, apesar dos tempos de neoliberalismo, uma realidade incontornável.29 Assim, a intervenção
do estado, com a finalidade extrafiscal, poderá se dar com vistas às perspectivas de crescimento
da economia brasileira nos próximos anos, bem como para situações atuais, considerando-se
a crise econômica mundial e a política econômica proposta pelo governo Federal Brasileiro
com o PAC. nesse contexto, é importante considerar a necessidade de conciliar-se crescimento
econômico com juros altos que podem comprometer o desempenho da economia.
aSPeCtoS relevaNteS Sobre aS MedidaS FiSCaiS CoMo eFetivação de PolítiCaS PúbliCaS diaNte daS CriSeS eCoNôMiCaS
As crises econômicas e financeiras podem ocorrer frequentemente no mundo atual e são
de difícil previsão. seu custo repercute com perda de empregos, queda no investimento e
na produção. A crise financeira iniciada em 2008 continua a preocupar os países e blocos
econômicos, principalmente com os reflexos que podem ser observados nos estados unidos
27 mArtins, r. v. g. s. A política tributária como instrumento de defesa do contribuinte. A defesa do contribuinte no direito brasileiro. são Paulo: ioB, 2002, p. 33.28 AssunÇão, m. C. Política fiscal e a crise econômica internacional. Finanças Públicas (Xv Prêmio tesouro nacional) 2010, p. 13.29 sAntos, A. C. Auxílios de Estado e fiscalidade. Coimbra: Almedina, 2003, p. 27.
194
e, atualmente, na união europeia. isso demonstra a necessidade de uma maior regulação go-
vernamental no sistema financeiro e fiscal e seus desdobramentos na busca da estabilidade
econômica, tributária e financeira.
Apesar de, no século XX, ter ocorrido representativo crescimento econômico com inova-
ções tecnológicas e de produtividade, permitindo uma representativa melhora na diminuição
da pobreza, existem, ainda, muitas regiões em situação crítica. kemal dervis e Ceren Özer
defendem a importância da criação de mecanismos globais de governança para evitar crises de
ordem política e econômica.30
no entanto, esse desenvolvimento é bem-vindo quando aliado com a qualidade vida da
população envolvida, tais como saúde, educação, infraestrutura básica, entre outros pontos im-
portantes. embora os governos locais ou regionais tenham que atuar como gestores de medidas
para reduzir a pobreza e dispor de condições para atender às demandas sociais e econômicas
internas, deve ser destacado o fortalecimento das instituições internacionais como o Fundo
monetário internacional e o Banco mundial.
os sistemas tributários estão em profunda mudança, vez que não vivem fechados em
si mesmos, alheios à vontade soberana dos demais estados e agentes econômicos, no cenário
internacional. A globalização econômica e a consequente abertura dos mecanismos de troca de
informação, pessoas e bens ditaram uma exposição inusitada do poder de tributar.31
nos últimos anos, com a crise econômica mundial, os sistemas tributários de diversos
países precisaram ser reajustados para retomar ou estimular o crescimento econômico, desesti-
mulando uns ou estimulando outros segmentos importantes da economia. Pode-se afirmar que
a tributação moderna não está mais vinculada ao orçamento, com o objetivo exclusivamente de
angariar recursos para o Poder Público. Constitui, atualmente, um dos principais instrumentos
caracterizados do desenvolvimento econômico com a distribuição da riqueza.
no caso da europa, desde 2009, as políticas de arrocho fiscal têm sido privilegiadas,
mesmo em um quadro de desempenho muito diferenciado entre os países do bloco. embora
tivessem relativa liberdade para gerirem suas políticas fiscais, os países ficaram limitados às po-
líticas cambiais e monetárias impostas pelo Banco Central europeu.
um dos traços da dificuldade de a união europeia encarar a atual crise é a ausência de
reflexão teórica consistente sobre o tema. o Professor António Carlos dos santos, da universi-
dade Autônoma de lisboa, dedica um estudo sobre a crise financeira e a questão da fiscalidade
na união europeia, demonstrando que
30 os autores fazem tal destaque na obra A better globalization: lefitimacy, gogernance and reform, citados por Pe-dro C. de mello & humberto spolador em Crises Financeiras: do século Xvii à crise do subprime da zona do euro.são Paulo: editora saint Paul, 2010, p. 250.31 CAtArino, J r. Os novos contextos das finanças públicas: Parte ii desafios da tributação no ímpeto de uma maior codificação fiscal mundial. in: Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal.n. 4, ano iii, 2011, p. 10
195
a crise, cujo principal desafio no plano financeiro é hoje o cerceamento do crédito e, no plano económico, o aumento do desemprego decorrente da redução da atividade económica, é quase sempre vista como resultante da crescente falta de confiança dos agentes económicos dos mercados financeiros.32
A crise econômica global, em 2008, teve como principal referência o abalo do crédito,
com a negociação de subprimes, empréstimos de alto risco a pessoas que não ofereciam tanta
garantia de adimplemento aos bancos. A constante elevação da taxa de juros e a recessão no
mercado como um todo levaram ao não pagamento de inúmeros empréstimos dessa natureza.33
depois dessa crise, o que se viu em vários países foi a interferência do governo na economia,
com a injeção de dinheiro e concessão de benefícios fiscais, na tentativa de restabelecer o cré-
dito.
Pode-se afirmar que a tributação é um fenômeno econômico, no sentido de que produz
efeitos no mercado. tais efeitos econômicos repercutem para além das fronteiras dos entes
públicos tributantes. nesse sentido, “a tributação não pode ser compreendida sem que sejam
consideradas as questões de mercado”34. As situações econômicas e financeiras nos estados
unidos e na europa mostram como está e como será a economia internacional e os seus reflexos
fiscais nos estados nacionais, na atualidade e no futuro.
no auge da crise econômica (2008), o governo brasileiro reduziu as alíquotas de alguns
tributos, sobretudo impostos flexíveis, para tentar diminuir custos e garantir alguma lucra-
tividade a setores importantes da economia. evidentemente, que a finalidade dessa medida
era manter equilíbrio econômico, ante a esperança de prosperidade. o que ocorreu, porém,
em relação a algumas dessas empresas? Apesar do auxílio recebido do governo, mantiveram
cortes significativos de mão de obra, afirma raquel ramos machado35. dando seguimento ao
32 sAntos, A. C. A crise financeira e a resposta da união europeia: que papel para a fiscalidade? in: mon-teiro, s.; CostA, s.; PereirA, l. (Coord.)A fiscalidade como instrumento de recuperação económica. Porto: editora vida económica, 2010, p. 23. o autor faz análise retroativa das crises anteriores e da atual com estudo paralelo da situação econômica na união europeia e outros países. Clotilde Palma por sua vez apresenta estudo sobre a Crise económica e o regime fiscal do centro internacional de negócios da madeira que integra a mesma coletânea supra citada.33 Podem ser destacados dois importantes fatores que contribuíram para tal situação: a) a falta de um disciplina-mento mais severo quanto à negociação do crédito por instituições financeiras, b) uma política fiscal irresponsável por parte do governo americano, em período de elevados custos com guerras desencadeadas a partir de 11 de se-tembro. o cenário, apesar de semelhante ao pós-quebra da bolsa de 1929, é diferente, pois o perfil do estado e da sociedade agora é outro. importa, a essa altura, observar, de toda forma, que a nova intervenção não tem diretamente natureza social, mas econômica. A interferência deveria ocorrer apenas para a preservação global do equilíbrio eco-nômico, ressalta raquel Cavalcanti. mAChAdo, raquel Cavalcanti ramos. tributação após a crise econômica de 2008: limites ligados à legitimação e à finalidade da intervenção estatal.trabalho publicado nos Anais do XVIII Con-gresso Nacional do CONPEDI , sP. de 04 a 07/11/2009. www.conpedi.org.br, p. 5153. Acesso em: 20 jan. 2012. 34 mArtins, g. A. mercado e tributação: os tributos, suas relações com a ordem econômica ...in: domin-gues, J. m.Direito pributário e politicas públicas. são Paulo: mP editora, 2008, p. 144. 35 mAChAdo, r. C. r. tributação após a crise econômica de 2008: limites ligados à legitimação e à finalidade da intervenção estatal.trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI , são Paulo. de 04 a 07/11/2009.p. 5.153. disponível em: www.conpedi.org.br, Acesso em: 20 jan. 2012.
196
estudo, a autora destaca que a “prosperidade econômica não deve privilegiar um grupo especí-
fico, mas atingir o máximo de pessoas possível. Para evitar a frustração de condutas extrafiscais
dessa natureza, o governo deveria condicionar a concessão de algumas reduções e isenções a
manutenção de empregos”. nesse caso, não se trata da aplicação de uma teoria do bem-estar
social, “mas [de um] subsidiário contemporâneo, pois o estado não presta diretamente direitos
sociais, mas intervém na economia, reduzindo a carga tributária, possibilitando o desenvolvi-
mento econômico, mas com preocupações sociais.”36
em tempo de crise econômica, a política fiscal tende inevitavelmente a ter objetivos de
curto prazo, respondendo a necessidades inadiáveis de assegurar o emprego e ajudas sociais,
bem como de debater questões relacionadas com a tributação e seus modelos.
devido à incerteza global, no momento atual, os governos (principalmente o Brasil) de-
vem ser prudentes na condução de suas políticas públicas e reconhecer que, embora se vislum-
bre um período favorável à frente, tal cenário está também sujeito a riscos consideráveis na
política econômica.
A repercussão da crise no Brasil foi esperada com a exaustão dos créditos para o comércio
exterior, seguida da retração dos mercados externos e dos investimentos estrangeiros, paralela-
mente à queda brusca nos preços dos principais produtos de exportação, o que gerou desempre-
go setorial no Brasil e revisão completa dos planos de investimentos na base produtiva nacional,
opina Paulo roberto de Almeida.37
Já o ministro da Fazenda, guido mantega, responde ao questionamento: Por que o Bra-
sil está em melhores condições para resolver a crise? Porque o País se preparou e criou as
condições de enfrentá-la38. segundo o ministro, o Brasil constituiu um mercado interno que
estimula o investimento e dá um horizonte de longo prazo aos empresários, menos dependente
das turbulências do mercado internacional, afirmando que a solidez fiscal marca a atual política
econômica. em 2007, antes da crise, o governo brasileiro lançou um plano de desenvolvimen-
to, denominado Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), com investimentos de r$
503,9 bilhões até 2010, na melhoria e ampliação da infra-estrutura. no início de 2009, refe-
rido Plano foi reforçado em r$ 142,1 bilhões. ressaltou, também, outro fator que contribuiu
36 idem, ibidem.37 um dos momentos mais dramáticos foi a queda brutal da produção industrial no último trimestre de 2008, com o aumento concomitante do desemprego no setor, fazendo com que as estimativas dos analistas quanto aos indica-dores de crescimento passassem do pessimismo ao catastrófico. As respostas do governo, mais especificamente do Banco Central, foram adequadas ao momento, embora o lado monetário e financeiro tenha sido bem mais coerente do que o lado fiscal. no plano das autoridades monetárias, o que se fez foi classicamente keynesiano: injeção de liquidez na veia do sistema, com redução dos depósitos compulsórios; extensão dos créditos ao setor bancário; atu-ação na frente cambial e de comércio exterior, com a redução concomitante dos juros de referência, assegura Paulo roberto de Almeida www.viapolitica.com.br. Acesso em: 17 jan. 2012.38 mAntegA, g. o Brasil se preparou para enfrentar a crise mundial, Revista Brasil Economia Sustentável, mi-nistério da Fazenda, n. 4, p. 2, abril 2009. destaca o ministro que “o País esteve em 2008 entre os que mais aumentaram suas exportações, chegando a us$ 197,9 bilhões, e, neste ano o País atingiu o grau de investimento, e o equilíbrio das contas públicas não se alterou com o impacto da crise internacional".
197
para o país enfrentar a crise, que é a solidez do seu setor bancário. em função de sua solidez,
o Brasil pode adotar, desde 2008, diversas medidas anticíclicas. o País reduziu seus juros bá-
sicos, flexibilizou a política monetária e adotou medidas fiscais de desoneração e ampliação do
investimento público. destaca, ainda,
que o Brasil, portanto, tem um modelo de desenvolvimento que diminuiu as desi-gualdades e fortaleceu seu mercado interno e enfrenta a atual crise internacional de forma soberana, com crescente contribuição e participação nos fóruns internacionais, como o do g-20, adotou medidas anticíclicas e continuará adotando as que forem necessárias para manter o ciclo de crescimento sustentado que atingiu.39
na oportunidade, o Banco Central, quanto ao aspecto monetário e financeiro atuou com
a redução dos depósitos compulsórios, extensão dos créditos ao setor bancário, atuação na
frente cambial e de comércio exterior, com a redução concomitante dos juros de referência. no
tocante às medidas fiscais, o governo brasileiro promoveu a redução de impostos indiretos em
alguns setores, aumento de gastos públicos, remuneração de servidores públicos, entre outras
despesas, e pouco acréscimo nos investimentos de infraestrutura.40
segundo Paulo roberto de Almeida, o mérito do governo atual no plano econômico foi,
justamente, o de ter preservado o “núcleo essencial das políticas adotadas antes do seu início,
quais sejam: flutuação cambial, metas de inflação e responsabilidade fiscal, tanto pelo lado da
preservação do superávit primário como da vigência da lei de responsabilidade Fiscal.”41
observa-se que o processo de retomada do crescimento econômico no mundo continuará
lento nos próximos anos, com efeitos representativos sobre o emprego e a renda das populações
mundiais. no Brasil, no entanto, o governo deverá avaliar sua política fiscal para permitir que
o setor privado possa investir e criar riquezas, emprego e renda.
nesse sentido, há que se verificar a capacidade de recuperação dos países mais desen-
volvidos, em particular, dos euA e da união europeia. As crises são fenômenos inerentes ao
sistema capitalista, decorrentes de suas reconhecidas imperfeições, o que reforça a necessidade
de o estado atuar de maneira consistente como ente regulador. num contexto de provável
retomada do crescimento mundial, o Brasil está entre os emergentes, por isso é importante
salientar a necessidade de revisão do sistema tributário, com vistas aos ajustes das condições
dos mercados internacionais.
diante desse cenário, o Brasil adotou pacote de medidas fiscais, com finalidades extra-
fiscais para manter ou recuperar o desenvolvimento econômico. na oportunidade, o governo
39 mAntegA, g. o Brasil se preparou para enfrentar a crise mundial. Revista Brasil Economia Sustentável, mi-nistério da Fazenda, n. 4, p. 7, abr. 2009.40 sobre a indústria brasileira no mês de dezembro de 2008, foi registrada desaceleração de 12,4% ante o mês ante-rior, de acordo com dados do instituto Brasileiro de geografia e estatística (iBge), sendo o pior resultado da série histórica, iniciada em 1991, influenciado principalmente pelo setor automobilístico, cuja produção caiu 39,7%.41 AlmeidA, P. r. in www.viapolitica.com.br. Acesso em 17 jan.2012.
198
federal procedeu alguns ajustes na legislação do imposto de importação (ii), do imposto de
exportação (ie), do imposto sobre Produtos industrializados e do ioF (imposto sobre ope-
rações Financeiras), principalmente sobre o setor automobilístico, o financeiro, a construção
civil e o moveleiro.
uma das recomendações do Fundo monetário internacional (Fmi) no tocante ao con-
torno da crise deflagrada em 2008 foi a promoção de medidas de estímulo fiscal até determi-
nada data (como a redução de impostos sobre o consumo durante um certo período). instru-
mentos fiscais anticíclicos devem, a princípio, ter impacto transitório, sendo revistos tão logo a
economia apresente os sinais de recuperação esperados. Foi esse o principal caminho adotado
pelo Brasil por meio da redução das alíquotas de tributos com acento extrafiscal, notadamente
o iPi e o ioF42. tais impostos apresentam características especiais, porque o Poder executivo
federal pode alterar as alíquotas, atendendo situações excepcionais, conforme dispõe o artigo
153 no §1º da Constituição Federal.
Para aumentar a demanda interna, aumentar os investimentos e evitar maiores prejuízos
na produção industrial, as quais afetam o nível de emprego e o crescimento do país, foi pro-
movida redução por tempo determinado do iPi sobre veículos, eletrodomésticos da linha bran-
ca, materiais de construção e bens de capital. em termos fiscais, uma das primeiras medidas
implementadas foi a diminuição da alíquota do iPi – imposto sobre Produtos industrializados
para o setor automobilístico para os automóveis de passageiros e veículos, com motor a álcool
e gasolina, com redução em até 8%, bem como de eletrodomésticos da linha branca (decretos
nº 6.687, 6.825 e 6.890/2009). o setor dos automóveis de transporte de mercadorias teve a
redução da alíquota do iPi (decreto nº 7.016/2009). Com a lei nº. 12.096, de 24 de no-
vembro de 2009, o governo federal introduziu a redução a zero da alíquota da CoFins sobre
determinadas motocicletas, reduzindo a alíquota do ioF (decreto nº 6.707/2008). outro
setor beneficiado foi o de alimentos, contemplado com a redução a zero, até final de 2011, das
alíquotas da CoFins e da Contribuição ao Pis sobre a importação e o faturamento decorren-
te da comercialização de farinha de trigo, trigo e pré-misturas próprias para fabricação de pão
comum. do mesmo modo, o setor moveleiro, bem como o de eletrodomésticos tiveram redu-
ção do iPi, o que ocorreu a partir do decreto nº. 7.016/2009, especialmente sobre painéis de
partículas e de madeira, aglomeradas com resinas ou com outros aglutinantes orgânicos, dentre
outras mercadorias. outra ação fiscal para enfrentar a crise foi desonerar o iPi para o setor da
construção civil, com alíquotas reduzidas para cimentos, tintas e vernizes, massa de vidraceiro,
indutos utilizados em pintura, dentre outros, que tiveram a alíquota reduzida nos percentuais
4% para 5%. Além disso, foi modificado o regime de tributação para a construção civil, que
42 AssunÇão, m. C. Política fiscal e a crise econômica internacional in: Finanças públicas (Xv Prêmio te-souro nacional-2010), p. 6-4 disponível em: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/premio_tn/XvPremio/politica/mhpfceXvPtn/tema_3_mh.pdf Acesso em: 17 jan. 2012.
199
conjuga o ir, Csll, Pis e CoFins, inerentes às construtoras, com redução de 7% para 6%
e, caso a construtora esteja no programa de habitação do governo, seria reduzida a 1%.43
As medidas fiscais estabelecidas em 2008 no Brasil, conforme apresentado, considerando
o iPi no tocante ao estímulo à economia e à preservação de empregos, levam as seguintes re-
flexões: obtiveram os efeitos desejados? A escolha do setor automotivo seria o mais adequado
para tais medidas? os resultados da forte desoneração desse setor beneficiaram a toda socieda-
de? e sobre os produtos da linha Branca? e ainda: se o objetivo era estimular o emprego, não
poderia também ter sido reduzida a carga incidente sobre o trabalho (folha e salários), para
todos os setores que utilizam representativa mão de obra? Poderia ter sido reduzida a tribu-
tação de outros setores (alimentício, coureiro/calçadista ou têxtil) entre outros? são questões
cujas respostas dependem e dependerão da atuação do governo federal, que elegeu diversos
setores da economia, o que pode ensejar uma discussão em torno do atendimento dos princí-
pios da capacidade contributiva e da igualdade da tributação, itens esses que não são objetos
do presente estudo.
Paralelamente, o Programa de Aceleração do Crescimento alterou a tabela do irPF,
criando novas alíquotas, o que pragmaticamente implicou diminuições no valor final pago a
título do imposto. Ademais, reduziu-se a alíquota do ioF sobre crédito direto a pessoa física no
escopo de estimular sua concessão. se, por um lado, a redução de alíquotas do iPi apresenta
função típica contra a crise econômica, por exemplo, vez que foi concedida por tempo deter-
minado e com gradual retorno, após a verificação das condições econômicas que objetivavam
promover, o mesmo não se pode afirmar com relação à alteração das faixas de incidência e no-
vas alíquotas do irPF, que configura medida totalmente atípica devido aos efeitos permanentes
da respectiva alteração. no quesito da renúncia de receitas, a prorrogação por seis meses do iPi
reduzido para construção civil e a prorrogação por três meses do iPi reduzido de veículos com
recomposição gradual em três meses, tiveam uma estimativa de renúncia de receitas tributárias
43 no mercado financeiro, o pacote de medidas governamentais adotadas para o setor incluiu a redução do ioF nos empréstimos, bem como reduziu o prazo para apropriação de créditos de Pis/CoFins, na aquisição de bens de capital, de 24 para 12 meses. do mesmo modo, houve a redução a zero do ioF de 0,38% sobre as operações de crédito do Bndes e FineP. Com relação ao comércio exterior, é importante mencionar a abrangência do regime tributário para incentivo à modernização e Ampliação da estrutura Portuária para o segmento ferroviário, com a suspensão do Pis, da CoFins, do ii e do iPi. Paralelamente, o regime especial de incentivos para o desenvolvi-mento da infraestrutura abarcou os setores hidroviário e dutoviário com o pacote de redução dos mesmos tributos, o que ocorreu a partir do decreto nº 6.416, de 26 de março de 2008. outra medida levada a efeito para o comércio exterior diz respeito à redução da contribuição patronal sobre a folha de pagamento, bem como da contribuição para o sistema s para até zero, a depender da participação das exportações no faturamento total da empresa. no entanto, com a edição da lei Complementar 128/2008, houve aumento da carga tributária sobre empresas optantes pelo simples nacional com número reduzido de funcionários. de igual modo, a medida Provisória 449/2008 (art.29) impossibilita a compensação de créditos acumulados de Pis, CoFins e iPi, provenientes da aquisição de matérias-primas e insumos utilizados na elaboração de bens para o exterior, regra essa usada por pequenos exportadores, na medida em que arcam com o recolhimento de maior quantidade de irPJ e Csl. Confira no trabalho sobre A políti-ca fiscal no Brasil para enfrentamento da crise econômica global no biênio 2008-2009 de Ariane Costa guimarães. Publicado nos Anais do II Congresso Brasileiro de Carreiras Jurídicas de Estado – 2010, disponível em: http://www.carreirasjuridicas.com.br/downloads/dia08oficina01texto2.pdf Acesso em: 22 jan. 2012.
200
decorrente de ações desonerativas durante a crise, para o ano de 2009, que foi inicialmente
avaliada pelo governo em 3,342 bilhões.44
o Professor Celso ribeiro Bastos, ao dispor sobre a atuação do estado, afirma que “nos
momentos de grande demanda, e nos momentos de crise, atua incentivando, instigando o mer-
cado. é por isso que se tem, no nosso sistema, bem como na maior parte do mundo, o estado
como agente normativo e regulador da ordem econômica.”45
Com isso, as desonerações fiscais concedidas, destinadas a setores produtivos específicos e
a faixas de renda com capacidade de consumo, prorrogadas em 2009, embora tenham gerado
elevadas renúncias de receitas tributárias, contribuíram decisivamente para a frenagem dos
efeitos negativos da crise no Brasil. A redução do preço final ao consumidor, em decorrência da
aplicação de alíquotas menores do iPi (até zero), ocasionou um incremento nas vendas e, por
conseguinte, na produção, evitando quedas acentuadas no nível de emprego.46
Conforme estudos do dieese em 2011 existem condições melhores para uma reação do
Brasil, dado o volume de reservas maior e certa desaceleração do ritmo da atividade econômica
do país, que poderia abrir espaço para sua expansão. segundo o estudo, para viabilizar essa
reação, “o atual governo precisaria fazer uma forte inflexão no discurso do ajuste fiscal que tem
expressado desde o início desse ano, em linha com as políticas que, aplicadas na europa e euA,
têm empurrado o mundo para o acirramento da crise.” ou seja, “seria necessário retomar as
políticas de ampliação do crédito e do gasto público para impulsionar os investimentos.”47. e
deveria, principalmente, executar uma política industrial fortemente articulada com a gestão
macroeconômica e entre os vários elos da cadeia de produção, a fim de reduzir a elevada depen-
dência do setor primário e evitar a queda da produção, da renda e do emprego no país.48
Caberia, portanto, diferenciar a política fiscal em dois momentos distintos, quer seja, o
papel do estado é prevenir, bem como elevar gastos para tentar atenuar os efeitos cíclicos. As-
sim, em meio à crise, caberia lançar mão da política fiscal mais como um paliativo, para segurar
as expectativas do que como solução para reerguer a economia.49
44 dados do ministério da Fazenda: disponível em: http://www.fazenda.gov.br/portugues/documentos/2009/p290609. pdf. Acesso em: 20 jan. 2012.45 BAstos, C. r. Curso de Direito Econômico. são Paulo: Celso Bastos, 2003, p. 258.46 AssunÇão, m. C. Política Fiscal e a Crise econômica internacional in: Finanças públicas (Xv Prêmio tesouro nacional – 2010) , p. 6-41.disponível em: .http://www.tesouro.fazenda.gov.br/premio_tn/XvPremio/politica/mhpfceXvPtn/tema_3_mh.pdf Acesso em: 17 jan. 201247 dieese – departamento intersindical de estudos e estatísticas socioeconômicas. nota técnica 104 – Agosto 2011, p. 11.48 é importante destacar que em agosto de 2011 foi criado o Conselho de economia e Finanças da união de nações sul-Americanas (unAsul), como um importante espaço autônomo de articulação de políticas regionais de enfrentamento da crise sendo um instrumento no sentido de reagir à crise aprofundando a integração regional sul-americana.49 AFonso, J. r. keynes, investimento e política fiscal na crise. trabalho apresentado no III Encontro da Associa-ção Keynesiana Brasileira de 11 a 13 agosto 2010. disponível em: www.ppge.ufrgs.br/akb/encontros/2010/54.pdf.Acesso em: 20 jan. 2012.
201
CoNSideraçÕeS FiNaiS
o estado deve incentivar o desenvolvimento, em conformidade com o artigo 3º e 170
da Constituição Federal. deve ser observado que o conceito de desenvolvimento adotado pelo
constituinte é um conceito moderno (art. 225). referido conceito apresenta o desenvolvimen-
to como crescimento econômico; o desenvolvimento como desregulamentação e a redução
do papel do estado; o desenvolvimento com a globalização e o desenvolvimento como direito
humano inalienável e o meio ambiente equilibrado, como ressalta o artigo 170.
o Brasil apresenta desequilíbrios regionais expressivos, devendo criar instrumentos que
viabilizem a correção desse cenário, mediante mecanismos que promovam um novo equacio-
namento das vantagens comparativas para a realização de investimentos produtivos. o estado
é um ente criado para o atendimento do bem comum em prol de toda a sociedade que o cons-
tituiu. dentre os principais valores pretendidos pela sociedade brasileira, a cidadania, a digni-
dade da pessoa humana, a valorização do trabalho e a livre iniciativa encontram-se no topo da
hierarquia dos valores preconizados pelo estado.
uma legítima política tributária deve ser fundada em diversos fatores e não apenas ba-
seada na sua arrecadação procedida pelo estado. referida política deve atender os ditames
constitucionais, visando ao desenvolvimento econômico e social e garantindo os direitos do
contribuinte.
na busca do bem comum, os princípios constitucionais funcionam como fundamentos
de todo o sistema normativo e são de fundamental importância para a estruturação do estado
brasileiro, na medida em que traduzem quais são os fundamentos e principais objetivos do es-
tado e, consequentemente, orientam toda a política socioeconômica desenvolvida pelo Poder
executivo.
A intervenção do estado na economia é reflexo do novo processo pelo qual passa o capita-
lismo mundial, na medida em que esse sofre uma série de limitações em sua atuação, inserindo
novos conceitos sociais, como forma de se alcançar os valores sociais previstos no texto cons-
titucional. os princípios que regulam tanto a ordem econômica, quanto a ordem social são
instrumentos previstos no texto constitucionaparaa preservação dos direitos sociais do cidadão,
como forma de se alcançar a justiça social. de igual modo, o estado poderá atender a suas
finalidades através da distribuição de riqueza, satisfação das necessidades sociais, de políticas de
investimentos, entre outras, que podem ser alcançadas por meio de uma política tributária e
não necessariamente pela imposição tributária.
de certa forma, para impulsionar o desenvolvimento econômico nacional nesse contexto
de globalização, deve ser salientada a necessidade da redução dos gastos públicos, com um
processo de diminuição da carga tributária capaz de permitir uma maior disponibilidade de
recursos para a poupança, investimento ou consumo.
202
As normas tributárias extrafiscais estabelecidas durante a crise tiveram a importante fun-
ção de estimular o crescimento econômico por meio da redução de impostos incidentes sobre
o consumo, impulsionando a compra de bens de capital, automóveis e eletrodomésticos, com
a finalidade de incrementar a demanda doméstica. Contribuíram, assim, para equilibrar as
distorções provocadas no mercado em virtude da crise de crédito e da retração do consumo,
embora outros setores importantes da economia da indústria e serviços também poderiam ser
objeto de atuação de atuação do governo para minimizar a crise.
Percebe-se que, além de constituírem meios adequados para promover a promoção das
finalidades constitucionais que sustentam a intervenção do estado sobre o domínio econômi-
co, as normas isentivas pelo governo federal para conter a crise alcançaram os objetivos. nesse
patamar, é também considerado se houve afronta ao principio constitucional da igualdade com
a finalidade da promoção do desenvolvimento nacional, principalmente em se tratando das
medidas fiscais em tempos de crise. A condução da política econômica no Brasil se apresenta
bastante complexa, pois vai além da preocupação com a maximização do emprego e da esta-
bilidade do valor da moeda. Foram eleitas metas no Programa de Aceleração do Crescimento
– PAC para a retomada do crescimento e dos investimentos das empresas, provocando o cres-
cimento da demanda doméstica relacionada à indústria e o estímulo ao crédito a curto prazo.
devem ser consideradas, também, a proteção social, a diminuição do nível da pobreza, a redu-
ção das desigualdades de renda pessoais e a redução dos desequilíbrios regionais, entre outros.
o poder do estado de desonerar é amplo, mas não ilimitado, sujeitando-se às diretrizes
normativas e aos valores contidos no texto constitucional, que dão os contornos das normas
tributárias que dispõem de medidas extrafiscais à luz da proporcionalidade, da igualdade e dos
objetivos propostos. diante do atual contexto mundial e nacional, é essencial que o governo
brasileiro procure ajustar a política econômica em vigor, utilizando, com maior intensidade, a
política fiscal. devem ser considerados os cortes nos gastos públicos, priorizando-se os inves-
timentos em setores estratégicos, redução dos impostos indiretos entre outros tributos, em se
tratando de política tributária, sem desconsiderar a diminuição da dívida, controle da taxa de
juros, da inflação, entre outras medidas. tais medidas e ações devem ser consistentes na con-
dução da política econômica, sendo essenciais para que o Brasil enfrente, de maneira adequa-
da, os complexos problemas socioeconômicos, políticos e ambientais decorrentes dos efeitos
que ainda persistem da crise financeira e econômica mundial. é preciso estimular a produção
e o consumo com ações coordenadas de políticas públicas de desenvolvimento para os setores
industriais e agroindustriais. de igual modo, merece destaque o emprego como um elemen-
to fundamental no equilíbrio das relações econômicas, devendo o estado promover políticas
públicas adequadas para que o mercado absorva o máximo possível do trabalho disponível.
e essas políticas devem atender aos princípios constitucionais para garantir a competitividade
com igualdade de condições.
203
reFerÊNCiaS
AFonso, J. r. keynes, investimento e política fiscal na crise. trabalho apresentado no III En-contro da Associação Keynesiana Brasileira de 11 a 13.08.2010. disponível em: www.ppge.ufrgs.br/akb/encontros/2010/54.pdf .
AlmeidA, P. r. A crise econômica internacional e seu impacto no Brasil. disponível em: http://www.viapolitica.com.br/ Acesso em: 20 jan. 2012.
AssunÇão, m C. Política fiscal e a crise econômica internacional. in: Finanças Públicas – (Xv Prêmio tesouro nacional -2010), p. 6 -41. disponível em: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/premio_tn/XvPremio/politica/mhpfceXvPtn/tema_3_mh.pdf
AtAliBA, g. Sistema constitucional tributário brasileiro. são Paulo: rt, 1966.
BAleeiro, A. Uma introdução à Ciência das finanças. 14. ed., rio de Janeiro: Forense, 1981.
BAstos. C r. Curso de direito econômico. são Paulo: Celso Bastos, 2003 e 2004..
BeCker, A A. Teoria geral do direito tributário. são Paulo: saraiva, 1963.
BerCoviCi, g. Desigualdades regionais, estado e constituição. são Paulo: max limonad, 2003.
CArrAzzA, r. A. Curso de direito constitucional tributário. 21. ed. são Paulo: malheiros, 2005.
CAtArino, J. r. os novos contextos das finanças públicas: Parte ii desafios da tributação no ímpeto de uma maior codificação fiscal mundial. Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal n. 4, ano iii, 2011.
Conti, J. m.; sCAFF, F. F. (Coord). Orçamentos públicos e direito financeiro. são Paulo: revista dos tribunais, 2011.
dAllAzem, d. l.; limA Junior, J. g. tributação e ordem econômica. in: Revista Argumen-tum - revista de direito da universidade de marília, nº 9, ano 9, 2008, p. 36-60.
dieese – departamento intersindical de estudos e estatísticas socioeconômicas nota técnica 104 – Agosto 2011.
elAli, A. Um exame da desigualdade da tributação em face dos princípios da ordem econômica, dis-ponível em: www.idtl.com.br/artigos/242.pdf.
elAli, A. s. d. Tributação e regulação econômica: um exame da tributação como instrumento de regulação econômica na busca da redução das desigualdades regionais. são Paulo: mP, 2007.
elAli, A. Incentivos fiscais internacionais: concorrência fiscal, mobilidade financeira e crise do es-tado. são Paulo: quartier latin, 2010.
FAlCão, r B. Tributação e mudança social. rio de Janeiro: Forense, 1981.
FerrAz, r. F. (coord.). Princípios e Limites da Tributação 2: os princípios da ordem econômica e a tributação. são Paulo: quartier latin, 2009.
FerreirA, J. s. A. B. n. F.; riBeiro, m. F. (orgs.). Empreendimentos econômicos e desenvolvi-mento sustentável. são Paulo: Arte & Ciência, 2008.
Ferrer, g. r.; Cruz, P. m. A crise financeira mundial, o estado e a democracia econômica. Argumentum – revista de direito da universidade de marília, n. 10, ano 9, 2009, p. 117-136.
204
Ferrer, W. m. h.; oliveirA, l r. A crise financeira e a nova realidade criada pela dinâmica do mercado mundial. FerreirA, J. s. A. B. n. ;riBeiro, m. F. (orgs.) Empreendimentos econô-micos e desenvolvimento sustentável. são Paulo: editora Arte & Ciência, 2008.
Florido, i. o. A repercussão econômica dos impostos. rio de Janeiro: líber Júris, 1987.
FonseCA. J. B. l. Direito econômico. 2. ed. rio de Janeiro: Forense, 1998.
FurtAdo, C. Teoria e política do desenvolvimento econômico. são Paulo: Paz e terra, 2000.
giAmBiAgi, F; Além, A. C. Finanças públicas. 2. ed. rio de Janeiro: editora Campus, 2000.
grAu, e. r. A ordem econômica na Constituição de 1988. são Paulo: malheiros, 2005.
guimArães, A. C. A Política Fiscal no Brasil para enfrentamento da crise econômica global no biênio 2008-2009. Anais do II Congresso Brasileiro de Carreiras Jurídicas de Estado , 2010.
henriques, e. F. Os benefícios fiscais no direito financeiro e orçamentário. são Paulo: quartier latin, 2010.
lAngoni, C. g. Distribuição da renda e desenvolvimento econômico do Brasil. 3. ed. rio de Janei-ro: Fgv, 2005.
loPtreAto, F. l. O papel da política fiscal: um exame da visão convencional. texto para discus-são. ie/uniCAmP n. 119, fev. 2006.
mAChAdo, h. B. A função do tributo nas ordens econômica, social e politica. Revista da Facul-dade de Direito de Fortaleza, Fortaleza, v. 28 n.2, julh-dez, 1987.
______. ordem econômica e tributação. in: FerrAz, r. (Coord.) Princípios e limites da tribu-tação 2. são Paulo: quartier latin. 2009.
mAChAdo, r C. r. tributação após a crise econômica de 2008: limites ligados à legitimação e à finalidade da intervenção estatal. Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI , sP. de 04 a 07/11/2009. disponível em: www.conpedi.org.br
mAntegA, g. o Brasil se preparou para enfrentar a crise mundial. Revista Brasil Economia Sus-tentável, ministério da Fazenda, n. 4, abr. 2009.
mArtins, g. A. mercado e tributação: os tributos, suas relações com a ordem econômica. do-mingues: J. m. (Coord.) Direito Tributário e politicas públicas. são Paulo: mP editora, 2008.
mArtins, i. g. s. Sistema Tributário na Constituição de 1988. 15. ed. rev. atual. são Paulo: sa-raiva, 1998.
______. Direito econômico e tributário: comentários e pareceres. são Paulo: resenha tributária, 1992.
mArtins, r. v. g. s. A Política tributária como instrumento de defesa do Contribuinte. in:______. A defesa do contribuinte no direito brasileiro. são Paulo: ioB, 2002.
mAtiAs-PereirA, J. gestão das Políticas Fiscal e monetária: os efeitos colaterais da crise mun-dial no crescimento da economia brasileira. Observatorio de la economia lationoamericana, n. 148, 2010.
mello, g m. uma visão interdisciplinar dos problemas jurídicos, econômicos, sociais, políticos e administrativos relacionados com uma reforma tributária. in:Temas para uma nova estrutura tribu-tária no Brasil. i Congresso Bras. de direito Financeiro, rio de Janeiro: mapa Fiscal editora, 1978. (sup. esp.)
205
mello, P. C. de & sPolAdor, h. Crises financeiras. 3. ed. são Paulo: saint Paul editora, 2010.
monCAdA, l. s. C. Direito Económico. 5. ed. Coimbra: Coimbra editora, 2007.
monteiro, s.; CostA, s.; PereirA, l. (Coord.). A fiscalidade como instrumento de recupera-ção económica. Porto:vida económica, 2011.
nABAis, J. C. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão constitucio-nal do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2009.
______. Direito fiscal. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2010.
PAlmA, C. Crise económica e o regime fiscal do centro internacional de negócios da madeira in: monteiro, s.; CostA, s.; PereirA, l. (Coord.) A fiscalidade como instrumento de recupera-ção económica. Porto: editora vida económica, 2010.
PAz FerreirA, e. Valores e interesses, desenvolvimento económico e política comunitária de coopera-ção. Coimbra: Almedina, 2004.
PAz FerreirA, e.; tomAz, J. A.; sAntos; J. g.; CABrAl, n. C. Crise, justiça social e finan-ças públicas. lisboa: ideeF, 2009.
PereirA, A. i. O direito econômico na ordem jurídica. 2. ed. são Paulo: José Bushatsky, 1980.
sAlomão Filho, C. Regulação da atividade econômica. são Paulo: malheiros, 2001.
sAntos, A. C. Auxílios de estado e fiscalidade. Coimbra: Almedina, 2003,
______. A crise financeira e a resposta da união europeia: que papel para a fiscalidade? in: mon-teiro, s.; CostA, s.; PereirA, l. (Coord.) A fiscalidade como instrumento de recuperação económica. Porto: editora vida económica, 2010.
sAntos, A. C; gonÇAlves, m. e.; mArques, m. m. l. Direito Económico. 6. ed. atual.Coimbra: Almedina, 2011.
sen, A. Desenvolvimento como liberdade. tradução laura teixeira motta. são Paulo: Companhia das letras, 2000.
silvA, J. A. Aplicabilidade das normas constitucionais. 4. ed. são Paulo: malheiros, 2000.
souzA, n. J. Curso de economia. são Paulo: Atlas, 2003.
tAvAres, A. r. Direito constitucional econômico. 2. ed.. são Paulo: editora método, 2006.
tiPke, k. Moral tributaria del Estado y de los contribuintes. tradução Pedro m. herrera molina. marcial Pons. madrid. 2002.
torres, h.t. (Coord.). Direito tributário e ordem econômica. são Paulo: quartier latin, 2010.
vAnoni, e. Natureza e interpretação das leis tributárias. tradução rubens gomes de souza. rio de Janeiro: Financeiras, 1932.
vinhA, t. d.; riBeiro, m. F. efeitos sócio-econômicos dos tributos e sua utilização como instrumento de políticas governamentais. in: PeiXoto, m.; FernAndes, e. C. tributa-ção, justiça e liberdade. Curitiba: editora Juruá, Curitiba, 2005.
WAgner, J. C. g. Tributação social do trabalho e do capital. são Paulo: resenha tributária, 1982.
206
207
SuSTENTABiLiDADE E SoLiDAriEDADE Em ESTADo DE EmErGÊNCiA ECoNÓmiCo-FiNANCEirA1
Suzana Maria Calvo loureiro tavares da Silva
A lei, que foi feita para assegurar a minha preservação, quando não consegue interpor-se de imediato para proteger a minha vida da violência alheia, cuja perda é irreparável, concede-me a minha própria defesa e o direito de guerra, ou seja, a liberdade de matar o agressor.
John locke, Dois Tratados do Governo Civil. Carta sobre a tolerância, edições 70, 2008, p. 250
A situação económico-financeira a nível nacional atingiu um estado em que se tornou
iminente o risco de default, circunstância atestada por todas as instituições com responsabilida-
de política. neste contexto, a luta pela recuperação de um estado de normalidade económico-
financeira foi assumida como missão pela maioria absoluta das forças políticas com representa-
tividade democrática, tendo esse objectivo sobrevivido inclusivamente à sucessão governativa.
neste contexto, que é também de reacerto estrutural em razão das condicionalidades
impostas pelas entidades externas que promoveram o auxílio financeiro necessário para evitar a
insolvência, têm vindo a ser adoptadas diversas medidas urgentes para promover o ajustamento
económico-financeiro rápido que permita pôr termo à situação de emergência referida. todas
estas medidas, que constituem objectivamente um retrocesso social, vêm sendo adoptadas com
o cunho da inevitabilidade económica e financeira e em conformidade com um parâmetro de
1 este escrito corresponde a uma actualização do nosso texto «sustentabilidade e solidariedade em tempos de crise», publicado na obra José Casalta nabais e suzana tavares da silva (Coord.). Sustentabilidade fiscal em tempos de crise. Coimbra: Almedina, 2011, p. 61 e ss. o texto foi apresentado no Colóquio Comemorativo dos 10 anos do idet, realizado na Faculdade de direito da universidade de Coimbra, em 29 de outubro de 2011, e será publicado nas respectivas actas.
capítulo 11
208
controlo constitucional reduzido ou mitigado, sem que, todavia, tenha sido declarada juridica-
mente uma situação de estado de necessidade ou de emergência económico-financeira.
Assim, e apesar da conjuntura fáctica, aceite e reconhecida por todos, regista-se uma
enorme incerteza quanto aos critérios que o poder judicial pode vir a mobilizar no controlo
concreto dessas medidas, uma vez que, em termos jurídicos, trabalha-se, aparentemente, sob
uma fictícia situação de normalidade. é precisamente por não nos conformarmos com este
estado de coisas, e com o intuito de oferecer algumas propostas de subordinação da política ao
direito, que elaborámos as reflexões que se seguem.
o tema que escolhemos para este trabalho prende-se com a necessidade de apontar al-
guns parâmetros normativos à actuação do poder público (do poder político-legislativo, do
poder executivo, em especial quando actua na margem de livre conformação que o legislador
lhe confere, e do poder judicial) perante uma situação de estado de necessidade económico-
financeiro, em que o país se vê constringido pelas condicionalidades impostas por organizações
supranacionais que promovem o “apoio financeiro necessário à solvência”, em um contexto
onde também saem realçadas as consequências de ser membro da união europeia e da união
económica e monetária.
As inquietações que mais nos têm atormentado e que presidem às considerações subse-
quentes, prendem-se com a “aceitação generalizada” da prevalência de critérios económicos
– os denominados critérios de ajuste financeiro – sobre a juridicidade das medidas adoptadas
pelo poder público, como se os critérios jurídicos fossem “coisa non grata em tempos de escas-
sez de recursos económicos” ou consubstanciassem parâmetros incapazes de originar soluções
eficientes e adequadas a contextos de austeridade.
e a preocupação agudizou-se quando depreendemos de algumas decisões judiciais que
existe o risco sério de os tribunais – e em especial o tribunal Constitucional – poderem vir a
“colocar entre parêntesis o direito”, escudando-se no contexto económico-financeiro difícil,
para justificar a ineficácia dos parâmetros normativos positivados na Constituição e nas leis.
Com efeito, a propósito da apreciação da conformidade constitucional da nova redacção
dada ao art. 68.º do Código do irs, que provocou um aumento das taxas daquele imposto
durante o período de formação do facto tributário, pode ler-se no acórdão do tribunal cons-
titucional n.º 399/2010, de 27 de outubro de 2010, o seguinte: “as leis n.ºs 11/2010 e 12-
A/2010 prosseguem um fim constitucionalmente legítimo, isto é, a obtenção de receita fiscal
para fins de equilíbrio das contas públicas, têm carácter urgente e premente e no contexto de
anúncio das medidas conjuntas de combate ao défice e à dívida pública acumulada, não são
susceptíveis de afectar o princípio da confiança ínsito no estado de direito, pelo que não é
possível formular um juízo de inconstitucionalidade”. uma jurisprudência que embora longe
da unanimidade – como se percebe da leitura dos votos de vencido que a acompanham, onde
avultam argumentos sobre a necessidade de ponderação das medidas mesmo quando o fim in-
209
vocado é relevantíssimo, como seria o caso de acorrer a necessidades financeiras prementes do
estado – conseguiu a anuência da maioria dos juízes daquele tribunal. o exemplo não podia
ser mais ajustado para demonstrar a primeira premissa fundamental: a proporcionalidade das
medidas continua a ser o melhor critério para uma boa decisão, mesmo em situações de anor-
malidade, como a do presente contexto de crise económico-financeira.
Caminho que continuou a ser trilhado no acórdão do tribunal Constitucional n.º
396/2011, de 21 de setembro de 2011, quando, em sede de fiscalização abstracta sucessiva,
conclui pela não inconstitucionalidade dos artigos 19.º, 20.º e 21.º da lei n.º 55-A/2010, de
31 de dezembro (lei do orçamento de estado para 2011), que haviam aprovado um “corte
dos salários” dos trabalhadores em funções públicas, justificando a conformidade constitucio-
nal da medida com os seguintes argumentos: “a norma que opera a redução remuneratória tem
natureza orçamental”, “a regra [da irredutibilidade dos salários] não é absoluta…admite-se
que a lei possa prever reduções remuneratórias…o que se proíbe em termos absolutos é que a
redução seja arbitrária e sem adequado suporte normativo”, a protecção da confiança neste caso
cede perante “a conjuntura de excepcionalidade” e “dentro do contexto vigente de reduzir o
peso da despesa do estado… e tendo em conta que quem recebe por verbas públicas não está
em posição de igualdade com os restantes cidadãos, pelo que o sacrifício adicional que é exigido
a essa categoria de pessoas não consubstancia um tratamento injustificadamente desigual”.
é precisamente a pensar na operatividade prática (ou na falta dela) dos critérios norma-
tivos gerais (legais e regulamentares) que limitam a actuação do poder público em um estado
de emergência económico-financeiro, e qual ou quais os instrumentos de controlo que podem
ser utilizados para medidas como a redução dos salários ou o agravamento contínuo da carga
fiscal sobre alguns tipos de rendimento e sobre o consumo, que decidimos procurar no actual
contexto normativo, em que a Constituição cede parcialmente a sua primazia por força da inte-
gração em organizações supranacionais, pistas para um regime jurídico-normativo do estado de
necessidade económico-financeiro motivado por uma crise cujas causas são também resultantes
de circunstâncias internacionais.2
2 o actual processo de condução das políticas públicas, em especial a concepção e aplicação das medidas que se destinam a concretizar os critérios de ajuste financeiro para que o país possa recuperar a situação de normalidade económico-financeira, tornou ainda mais patente os efeitos da europeização e da globalização do sistema jurídico na-cional que já se vinham sentido entre nós. Com efeito, algumas das iniquidades a que assistimos devem-se em grande medida à falta de sintónia no método pelo qual se pautam as actuações de cada uma das instituições, num processo que torna evidente a necessidade de o estado português (e em particular as entidades públicas com poderes de go-vernação e administração) se adaptar aos parâmetros do novo direito público ou do novo método do direito público. sobre as diferenças metodológica nesta nova era, por todos e por último, v. Ausberg, «methoden des europäischen verwaltungsrecht», in: terheChte (org.), Verwaltungsrechte der Europäischen Union, nomos. Baden-Baden, 2011, p. 147 e ss (em especial, p. 166).
210
eStado de NeCeSSidade eCoNóMiCo-FiNaNCeiro: CoNCeito e realidadeS PróxiMaS
Comecemos pela origem dos conceitos.
Ao percorrer as diversas leis fiscais, em especial a lei geral tributária e o Código do Pro-
cedimento e Processo tributário, percebemos de imediato que o conceito de estado de necessi-
dade fiscal é inexistente. o que bem se compreende pelo próprio recorte dogmático do direito
fiscal, que embora erigido sobre o dever fundamental de contribuir para a sustentação finan-
ceira do estado3, assente no princípio da igualdade na contribuição para os encargos públicos,
não deixa de consubstanciar uma restrição (legítima e constitucionalmente fundamentada) a
direitos e liberdades fundamentais como a propriedade e a livre iniciativa económica privada4.
uma conformação que acaba por centrar a disciplina jurídica fiscal sobre as garantias dos con-
tribuintes, mas que, como a experiência e os dados estatísticos bem demonstram, à medida que
o sistema se internacionaliza e europeiza, acaba por se revelar descompensado5.
Com efeito, a relação jurídica que se constitui entre a comunidade (destinatária da receita
fiscal) e cada um dos membros que contribui financeiramente para suportar os custos de orga-
nização e funcionamento do estado, bem como para promover a solidariedade e a coesão social
através das despesas sociais, desconhece, de parte a parte, os instrumentos típicos do direito
de necessidade. Assenta, por conseguinte, sobre uma estrutura aparentemente rígida: nem os
destinatários da receita podem exigir impostos que não sejam criados nos termos da Constitui-
ção (art. 103.º/3 da Constituição da república Portuguesa)6, nem os sujeitos passivos podem
invocar motivos de força maior para evitar o pagamento (coercivo) das dívidas tributárias ou
3 v. José Casalta nabais, O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 2004, p. 185-187. 4 entre nós o tribunal Constitucional tende a considerar que os impostos são limites imanentes e não verdadeiras restrições aos direitos fundamentais – no mesmo sentido v. Jose Casalta nabais, «Jurisprudência do tribunal Cons-titucional em matéria Fiscal», in Estudos de Direito Fiscal I, Coimbra: Almedina, 2005, p. 469. todavia, trata-se, em nosso entender, de uma construção que aquele tribunal utiliza para, como é típico da sua jurisprudência, não analisar materialmente o conteúdo das leis fiscais, entendendo, provavelmente, que esta é uma questão política. Pela nossa parte, parece-nos mais acertado falar em restrição e com isso permitir a ponderação material das medidas político-legislativas fiscais, pois só assim será possível, desde logo, dar operatividade real a um princípio jurídico de capacidade contributiva como medida do imposto. 5 sobre a dificuldade em construir um sistema fiscal justo e as iniquidades que o contexto mais recente vem gerando, fazendo incidir a carga fiscal fundamentalmente sobre o trabalho dependente e o consumo v., por todos, José luís saldanha sanches Justiça Fiscal, Lisboa: Fundação Francisco manuel dos santos, lisboa, 2010.6 no que respeita à “rigidez” decorrente do princípio da tipicidade da lei fiscal, vem sendo defendido pela doutri-na a sua flexibilização, quer por razões de praticabilidade – Ana Paul a dourado, O princípio da tipicidade fiscal, Coimbra: Almedina, 2007, quer por razões de justiça, José luís saldanha snaches, Os limites do planeamento fiscal, Coimbra editora, 2006. e estudos mais recentes mostram a relevância dos principios materiais na gestão dos impos-tos – mauro trivellin, Il principio di buona fede nel rapporto tributario. milano: giuffrè, 2009.
211
pedir a sua redução7, estando-lhe apenas reconhecida a possibilidade de solicitar o pagamento
em prestações nos casos e nos termos expressamente previstos na lei8.
veremos, contudo, que a rigidez da relação jurídica fiscal, estribada no princípio da legali-
dade fiscal, constitui afinal uma “falsa aparência”, pois o que se verifica é uma clara “disponibi-
lidade permanente” do direito fiscal para “acudir” a situações de emergência no financiamento
público, como o primeiro dos acórdãos do tribunal Constitucional referidos no início deste
texto nos dá conta de forma expressa. não se trata, contudo, de situações disciplinadas por
um regime especial de necessidade económico-financeira, o qual não tem, como vimos, aco-
lhimento no ordenamento jurídico fiscal, mas antes do funcionamento normal de um sistema
fiscal como instrumento de política económica e financeira. uma situação que tende mesmo a
agudizar-se com a perda de soberania nacional em matéria de política económica e monetária.
vejamos, então, os regimes jurídicos do estado de necessidade consagrados no ordena-
mento jurídico nacional.
o artigo 19.º da CrP consagra entre nós o regime jurídico aplicável às situações defini-
das pela doutrina como de “necessidade pública do estado”, identificadas com as “situações
constitucionais excepcionais de crise ou de emergência que constituam uma ameaça para a
organização da vida da comunidade a cargo do estado”, disciplinadas pelo “direito de ne-
cessidade constitucional”9. trata-se, contudo, de um direito excepcional aplicado a situações
aí expressamente tipificadas – estado de sítio e estado de emergência – que, no entender do
legislador constituinte, esgotariam as situações em que deveria valer um regime excepcional em
matéria de protecção de direitos, liberdades e garantias para fazer face a perigos graves para a
subsistência da organização comunitária na forma estadual.
segundo o n.º 2 do mencionado artigo 19.º da CrP, o estado de sítio ou o estado de
emergência só podem ser declarados, no todo ou em parte do território nacional, nos casos
de “agressão efectiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da
ordem constitucional democrática ou de calamidade pública”, verificando-se apenas uma dife-
rença de grau entre um conceito e outro (artigo 19.º/3 da CrP). registamos, por isso, que o
conteúdo deste regime constitucional de excepção se revela hoje inoperativo perante a situação
de emergência económica em que nos encontramos, pois as preocupações acolhidas no precei-
7 Cf. art. 36/2 da lei geral tributária (de ora em diante lgt), que consagra o princípio da indisponibilidade do crédito tributário.8 Cf. art. 42. da lgt e arts. 196. e ss do Código do Procedimento e Processo tributário – de ora em diante CPPt. não são admitidas entre nós “medidas equitativas” para neutralizar situações de iniquidade. sobre este tema, v. José Casalta nabais, O dever fundamental de pagar impostos, p. 337 e 377. 9 Cf. gomes CAnotilho; VitAl moreirA, Constituição da república portuguesa anotada. 4. ed. Coimbra: Coimbra editora, 2007, pp. 399 e ss. sobre o estado de excepção no direito constitucional.
212
to prendem-se essencialmente com a densificação de uma blindagem constitucional perante a
ameaça da ditadura que paira sobre os estados em situações de anormalidade.10
na verdade, não se afigura (ainda!) sensato propor um recorte dogmático do conceito
de agressão efectiva ou iminente por forças estrangeiras que permita aí incluir a especulação
financeira sobre a dívida pública por parte das “forças” económicas internacionais. um exer-
cício que poderia deparar-se com uma dificuldade – estas “forças” são muitas vezes anónimas
– e até com uma perplexidade – essas “forças económicas” revelarem-se afinal nacionais. Como
também não parece (ainda!) viável considerar que se assiste a uma ameaça ou perturbação da
ordem constitucional democrática por força das medidas de retrocesso social que vêm sendo
aprovadas e que terão de continuar a sê-lo até que se alcance uma situação de estabilização
económico-financeira a nível nacional coincidente com as directrizes decorrentes do princípio
da sustentabilidade financeira.
os regimes jurídicos dos estados de excepção e de emergência constituem uma necessi-
dade sistémica, ou seja, garantem a subsistência do sistema normativo quando este não pode
ser aplicado por razões de anormalidade do contexto11. é assim que, em termos gerais, os
constitucionalistas12, administrativistas13, penalistas14 e civilistas15 caracterizam “os respectivos”
regimes de excepcionalidade, sem prejuízo das diferenças que uns e outros propõem em ma-
téria de eliminação dos resultados lesivos provocados pelas medidas adoptadas em estado de
necessidade.
quanto a este último ponto vale a pena sublinhar a proposta da doutrina civilista de
ponderação da internalização dos resultados lesivos pelos sacrificados com fundamento num
princípio de solidariedade que suportaria o dever de cidadania institucionalizado, segundo o
10 sobre o tema, por último, v. gabriel Prado leal, «exceção económica e governo de crise nas democracias», Sus-tentabilidade Fiscal em tempos de crise, Coimbra: Almedina, 2011, p. 93 e ss.11 embora seja um “tema non grato”, o regime do estado de emergência e de excepção voltou a ser discutido pela dou-trina a propósito do terrorismo, pondo em evidência uma questão recorrente: as normas criadas para situações de normalidade não são aptas a solucionar problemas em estados de anormalidade. locke já nos dava conta da questão ao abordar o tema do “estado de guerra” – John locke, Dois Tratados do Governo Civil. Carta sobre a tolerância, lisboa: edições 70, 2008, p. 247 e ess. – e ramraj volta a fazer uma síntese do problema a propósito do terrorismo
– victor ramaj, «no doctrine more pernicious? emergencies and the limits of legality», in ramraj (ed.), Emergencies and the Limits of Legality, Cambridge university Press, 2008, p. 3 e ess. A conclusão geral aponta para as perversida-des que um regime jurídico constituído para a normalidade pode ocasionar se aplicado sem alterações em situações de anormalidade, do mesmo modo que a reacção através da anomia em estados de anormalidade tende a revelar-se perversa. A solução radica, por isso, na convocação dos princípios jurídicos fundamentais como suporte normativo para a escolha das medidas neste tipo de situações.
12 v., por todos, Jorge Bacelar gouveia, O estado de excepção do direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1998.13 v. a propósito do sentido e alcance do art. 3.º/2 do Código do Procedimento Administrativo, por todos, FreitAs do AmArAl / maria da glória dias garcia, «o estado de necessidade em direito administrativo», Revista da Ordem dos Advogados, 1999/59, p. 447 e ss, e, por último, sévulo Correia, «revisitando o estado de necessidade», in: Em Homenagem ao Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral, Coimbra: Almedina, 2010, p. 719 e ss.14 v. sobre o regime do art. 34 do Código Penal, por todos, eduardo Correia. Direito Criminal II (reimpp.), Coim-bra: Almedina, 1993, p. 82 e ss.15 v. a propósito do sentido e alcance do art. 339 do Código Civil, por todos, menezes Cordeiro, Tratado de direito civil português I, Parte geral, tomo iv, Coimbra: Almedina, 2005, p. 439 e ss.
213
qual cada um deve aceitar o sacrifício quando este se fundamenta na prossecução de um bem
superior que a todos aproveita16. não deixa de ser curioso notar que esta proposta se encontre
apenas na doutrina civilista, ou seja, no âmbito das relações intersubjectivas concretas, e dela
não existam quaisquer vestígios no direito público, em especial no direito administrativo, que
cuida da prossecução do interesse geral, ou seja, no que aqui nos interessa destacar, das relações
entre o exercício do poder que prossegue esse interesse geral e os direitos subjectivos, interesses
legalmente protegidos e demais posições jurídicas daqueles cuja esfera jurídica é atingida por essas
actuações17. Para as actuações do poder público em estado de necessidade, os cultores do direito
administrativo destacam antes que a legitimidade das medidas pressupõe que as mesmas sejam
acompanhadas de uma compensação no âmbito da responsabilidade pelo sacrifício18. uma dife-
rença que se deve eventualmente à circunstância de o suportador económico da compensação ser
anónimo, uma vez que a sustentação em concreto se dilui na mediação do “povo fiscal”.
em suma, existindo uma situação reconduzível a um estado de necessidade, as medidas
adoptadas nesse contexto pautam-se por critérios especiais quanto à sua conformidade com o
ordenamento jurídico-legal, podendo justificar uma eliminação da ilicitude e/ou da culpa se
estivermos perante uma actuação que origine responsabilidade, ou mesmo uma redução signi-
ficativa dos montantes das compensações atendendo ao acréscimo de situações reconduzíveis a
“custos próprios da vida em sociedade”19. isto significa, portanto, que o ordenamento jurídico
acolhe um direito da necessidade, reconhecendo que o direito também constitui um parâ-
metro de actuação em situações de anormalidade. o que nos permite questionar o seguinte:
não estando expressamente consagrado na Constituição ou na lei um direito de necessidade
económico-financeiro20, a escassez de recursos financeiros pelo estado pode fundamentar um
16 menezes Cordeiro, Tratado de direito civil português I..., p. 446.17 sobre as relações jurídicas administrativas v., por todos, José Carlos vieira de Andrade. Lições de direito adminis-trativo, Coimbra: imprensa da universidade de Coimbra, 2010, p. 54 e ss.18 Assim, Freitas do Amaral; maria da glória dias garcía, «o estado de necessidade em direito administrativo»…, p. 462 e sérvulo Correira, «revisitando o estado de necessidade»…, p. 739-740. um domínio onde, em nosso entender, se desenham hoje importantes cláusulas-travão ao montante das compen-sações decorrentes da generalização das situações de risco permitido, típicas da sociedade de risco descrita por Beck – cf. suzanatavares da silva, «A “linha maginot” da sustentabilidade financeira. Perigo, risco, responsabilidade, e compensação de sacrifícios: uma revisão da dogmática a pretexto da gestão do litoral», RevCEDOUA, 2010/23, p. 29 e ss. Com efeito, mesmo a doutrina penalista alerta para a divulgação dos casos de risco permitido, uma margem na qual o comportamento dos agentes não é susceptível de influenciar o resultado lesivo e, por essa razão, consubstancia um limite à imputação objectiva dos resultados – cf. Faria Costa. Noções Fundamentais de direito penal, 2. ed. Coimbra: Coimbra editora, 2009, p. 236. 19 As compensações pelo sacrifício de direitos previstas no art. 16. do regime da responsabilidade Civil extra-contratual do estado e demais entidades Públicas (aprovado em anexo à lei n.º. 67/2007, de 31 de dezembro) circunscrevem-se aos danos ou encargos especiais e anormais (art. 2.º).20 na verdade, embora adoptemos a expressão tradicional de estado de emergência ou necessidade económico-fi-nanceira, parece-nos que actualmente, no rigor dos conceitos, se poderia falar em direito de necessidade económico-financeiro e fiscal para expressar bem a diferença entre os instumentos típicos do direito de necessidade económico-financeiro, que no Estado regulador incluem necessariamente uma restrição mais intensa das liberdades económicas e empresariais, em si já fortemente coarctadas neste novo modelo de intervenção do estado na economia – cf. oliver lepsius, «verfassungsrechtlicher rahmen der regulierung», Fehling ; ruffert (org.), Regulierungsrecht, mohr sie-beck, tubingen, 2010, p. 176 e ss. – e o Estado fiscal que hoje se apresenta como um instrumento importante do
214
regime de estado de necessidade e justificar a aplicação de um direito de necessidade económi-
co-financeiro? quais as consequências práticas?
em nosso entender é isso precisamente que se verifica quando os estados se encontram
em situações de escassez de recursos financeiros que comprometem ou correm o risco de vir a
comprometer a capacidade de cumprir as obrigações, ou seja, quando se torna iminente um
caso de default21. estamos perante uma situação anormal, a existência de um perigo iminente
e actual para o interesse da comunidade, causado por circunstâncias excepcionais e factores
externos à vontade do estado22, que reclamam uma actuação rápida para evitar a verificação do
resultado lesivo e permitir a recuperação da normalidade – o mesmo é dizer que estão verifica-
dos todos os pressupostos de uma situação de estado de necessidade económico-financeiro.
o facto de o legislador constituinte não prever expressamente este instituto nem remeter
para o legislador a sua consagração não prejudica o seu reconhecimento na prática, se o re-
conduzirmos, como propõe a doutrina, “a um princípio geral de direito prévio à formulação
legislativa”23. mas se com ele pretendermos excepcionar a aplicação das regras e dos princípios
financiamento público, mas necessariamente complementado por novos tributos que acompanham o modelo de Estado regulador. 21 o default é a designação dada ao incumprimento pelo devedor (no caso de dívida soberana, pelo governo de um estado) de um empréstimo emitido sob jurisdição de outro estado (default externo), usualmente por credores es-trangeiros, e também tipicamente, em moeda estrangeira. no caso de os credores serem domésticos estamos perante dívida soberana interna (e incumprimento ou default soberano interno). Até hoje o maior default soberano externo foi o da Argentina, em 2001, e o seu montante ascendeu a 95 biliões de dólares. As consequências são em regras dramáticas, e prolongam-se no tempo, o default da grécia em 1826 fechou-lhe as portas ao capital externo durante 53 anos consecutivos – v. emanuel KolsCheen, «Why Are there serial defaults? evidence From Constitutions», Journal of Law and Econmics, 2007/50 (nov), p. 713-729.22 sobre a capacidade de contágio das crises económico-financeiras na actualidade v. Andrew Felton; Carmen reinhardt (ed.), The First Global Financial Crisis of the 21st Century. Part. 2 (Jul-dez), voxeu (CePr), london, 2008. sublinhe-se que em 1999 já o Fmi alertava para as consequências da liberalização do mercado de capitais, uma escolha política que seria responsável pela volatilidade internacional dos fluxos de capitais – v. Liberalizing Capital Movements (on-line, acesso em 17/10/2011). embora o procedimento estivesse já iniciado, acabando por se revelar irreversível, e embora permitisse investimentos mais avultados, o aumento do crescimento e a melhoria dos standards de bem-estar em muitos estados, acabaria igualmente por originar importantes crises financeiras, motiva-das em grande medida pela opacidade dos instrumentos e dos agentes financeiros que “cresceram” desreguladamente na globalização, beneficiando da confiança que os mecanismos de estabilização financeira desenvolvidos no sistema pós-guerra (sistemas de garantia dos depósitos bancários, requisitos de capital para a banca, apuramento de critérios de corporate governance) haviam conseguido granjear – v. FilosA, r.; mArottA, g., Stabilità finanziaria e crisi, il mulino, Bologna, 2011. 23 Assim,sérvulo Correia, «revisitando o estado de necessidade»…, p. 720. embora compreendendo a importância das “premissas jurídico-constitucionais” formuladas por gomes Ca-notilho para o reconhecimento dos “regimes de «excepção»” que inviabilizariam a conclusão a que chegamos, uma vez que nenhum regime de excepção seria admissível sem estar expressamente previsto na Constituição – cf. Direito constitucional e teoria da Constituição, 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1089 – não podemos deixar de discordar delas, porque a rigidez que pressupõem não se adequa à capacidade de previsão de estados de anormalidade amea-çadores da estrutura económico-social que garante a paz, sobretudo quando as previsões fundamentais foram feitas para um horizonte de tempo incerto e não linear, como o mesmo autor bem sintetiza em outro texto ao referir que “o tempo da Constituição e do Estado curva-se sobre eles próprios e aprisiona-os na temporalidade”, tornando a “Cons-tituição uma modesta reserva de justiça quanto a problemas nucleares da comunidade” – in: O Tempo curvo de uma carta (fundamental) ou o direito constitucional interiorizado, instituto da Conferência, Conselho distrital do Porto da ordem dos Advogados, Porto, 2006, p. 23 e 28 – que dificilmente se ajusta ao “tempo das crises” do modelo de capitalismo financeiro.
215
constitucionais respeitantes à criação de impostos e ao sistema fiscal ou à restrição de direitos
fundamentais com expressão económica individual e concreta constitucionalmente protegida
deparamo-nos com um problema jurídico: é necessário que a situação possa ser reconduzida a
um dos tipos de estado de necessidade constitucional consagrado no artigo 19.º da CrP para
que as medidas fiscais consideradas necessárias e adequadas ao restabelecimento da normali-
dade possam ser adoptadas sem a observância total dos mencionados princípios e regras cons-
titucionais, que aqui funcionam como garantias constitucionais. se assim não for, todas estas
medidas serão ilícitas e inconstitucionais por terem natureza confiscatória e/ou arbitrária.
todavia, veremos que o trunfo dos contribuintes e dos cidadãos assim extrinsecado do
texto da lei fundamental – a Constituição não inclui no âmbito do estado de sítio e do esta-
do de emergência as situações de necessidade económico-financeira e fiscal e, por essa razão,
nenhuma das garantias fundamentais pode ser suspensa – se transforma na prática em uma
“garantia de Pirro”. A inflexibilidade neste caso transmuta-se, primeiramente, em fonte de in-
certeza como os acórdãos do tribunal Constitucional vêm demonstrar, pois a excepção acaba
por prevalecer (tem de prevalecer – a facticidade impõe-se à validade, com perda para o sistema
democrático24), mas a argumentação deixa de ancorar-se nos princípios jurídicos fundamentais
que informam o direito de necessidade, maxime, o princípio da proporcionalidade, e toma
rumos incertos com base em razões autojustificativas. em segundo lugar, e esse é o ponto de
que nos ocuparemos em seguida, a inflexibilidade transforma-se em injustiça e iniquidade,
avolumando o rol das situações em que a prevalência de uma legalidade formal não garante a
juridicidade material das decisões.
GaraNtiaS Para o PerCurSo eNtre o eStado de eMerGÊNCia
e a SuSteNtabilidade FiNaNCeira
em regra, os regimes jurídico-normativos do estado de necessidade e de emergência têm
um prazo limitado, sem prejuízo de, mantendo-se as condições que levaram ao seu decreta-
mento, os mesmos poderem ser prorrogados. no caso actual, não tendo sido accionado (nem
podendo sê-lo de modo formal por não se achar previsto na Constituição) o estado de emer-
gência económico-financeiro, não existe um prazo para a validade das medidas excepcionais,
sobretudo as de carácter fiscal, cuja adopção seja adequada e necessária para permitir pôr termo
à situação de anormalidade que atravessamos.
na verdade, em termos formais, tudo se passa como se as medidas adoptadas cumprissem
os parâmetros de juridicidade de uma situação de normalidade ou, não menos preocupante,
como se às medidas orçamentais, porque anualizadas, tudo fosse permitido. o mesmo é dizer
que em termos gerais assistimos, teoricamente, à adopção de medidas político-legislativas que
24 Cf. hABermAs, J. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso (tradução). madrid: editorial trotta, 2001.
216
procuram orientar a situação económica nacional para o cumprimento das directrizes macroe-
conómicas gerais das políticas públicas de crescimento25. mas na prática percebemos que o que
está em causa é a aplicação de um conjunto de medidas de “retrocesso social”, cujo objectivo é
alcançar um ajustamento rápido (urgente) entre o nível de riqueza produzida e o gasto público
e privado realizado.
ora, este ajustamento rápido com o propósito de neutralizar o risco iminente do default
exige, como dissemos, a adopção de um conjunto de medidas de “retrocesso social” e nada
menos adequado para a sua implementação do que trabalhar com um quadro jurídico de nor-
malidade fictícia, que deixa as garantias dos contribuintes e dos cidadãos à mercê de restrições
perversas e abre a porta a diversas iniquidades stiglitz quando nada é disponível e os factos
triunfam sobre os parâmetros jurídicos e tudo se torna possível.
muitos economistas nacionais denunciam a existência de erros nas políticas económicas
que nos conduziram à situação actual26, outros no plano internacional apontam o dedo às ins-
tâncias da governance económica global para explicar os motivos da crise e as insuficiências das
respostas aliadas à incapacidade de criação de uma resposta coordenada e solidária27.
desconhecemos para já o mundo que nos espera à chegada, embora os autores alertem
que não será igual ao que conhecemos nas últimas duas décadas, pois “a economia [que] mode-
la a sociedade” 28 terá de ser reestruturada para que a existência colectiva se torne sustentável29,
o que significa que também esta (a sociedade) terá de transformar-se para se acomodar à mu-
dança económica. mas neste momento o mais preocupante é a forma como vamos percorrer o
caminho e os instrumentos que irão ser utilizados para o trilhar, porquanto caminhemos para
25 sobre o conteúdo das políticas macroeconómicas de crescimento v. Fernando Araujo. Introdução à economia, 3. ed.Coimbra: Almedina, 2005, p. 791 e ss; sAmuelson; nordAhus, Economia, 18. ed. london: mc graw hill, 2005, p. 709 e ss; neves Cruz, Economia e política: uma abordagem dialéctica da escolha pública. Coim-bra: Coimbra editora, 2008, p. 209 e ss.26 Cf. entre outros, vitor Bento, O nó cego da economia: como resolver o principal bloqueio do crescimento eco-nómico. lisboa: Bnomics, 2010 e luciano Amaral, Economia portuguesa, as últimas décadas. lisboa: Fundação Francisco manuel dos santos, 2010.27 Joseph e. stiglitz, Caída Libre. el libre mercado y el hundimiento de la economía mundial (tradução). madrid: taurus, 2010, p. 255 e ss.28 Joseph e. stiglitz, Caída Libre…, p. 322 e ss; renato Filosa; giuseppe marotta, Stabilità finanziaria e crisi, il Bologna: mulino, 2011.29 e a sustentabilidade comporta três dimensões ligadas umbilicalmente entre si: a ambiental, a económico-finan-ceira e a social. na obra colectiva dirigida pelo jurista alemão Wolfgang kahl é possível encontrar uma reunião de trabalhos sobre as três vertentes, onde os juristas analisam o que é necessário fazer no plano normativo para alcançar os objectivos em cada uma das áreas, e o coordenador explica-nos, no primeiro texto dessa obra, que sustentabilidade não é apenas uma “palavra da moda”, é um conceito interdisciplinar que hoje serve de esteio às políticas públicas (europeias e nacionais) e que tem de ser “absorvido” pelo ordenamento jurídico ao mais alto nível, precisamente para poder garantir a sua efectividade em todos os domínios. “nachhaltigkeit als verbundsbegriff”, in Nachhalti-gkeit als Verbundsbegriff, mohr siebeck, tubingen, 2008.em registo muito diverso, mas com um conteúdo igualmente importante, thomas Friedman, depois do trabalho sobre a globalização (“O mundo é plano”) apresenta-nos uma nova obra com exemplos quotidianos dos excessos cometidos no planeta, e descreve uma realidade imbrincada, onde os “mitos urbanos” se juntam aos “mitos selva-gens” para um grito que desperte a humanidade quanto ao valor da sustentabilidade. Quente, plano e cheio. Porque precisamos de uma revolução verde (tradução). lisboa: editora Actual, 2008.
217
a frente, será inevitável que no quotidiano se assista a um retrocesso social, ou a um retrocesso
do bem-estar30. As “loucuras colectivas” têm de terminar imediatamente31 e este terminus tem
consequências muito diversas para os diferentes cidadãos. é isto que deve preocupar o jurista e
o direito, a começar pela garantia da dignidade da pessoa humana neste contexto arriscado.
Chegada a hora de repartir os sacrifícios para permitir recuperar o estado de normalida-
de económico-financeira, as questões são imensas: conseguem as democracias governar neste
contexto? A quem se deve exigir o quê? Até onde está o estado legitimado a restringir direitos
para evitar o default? quem controla a proporcionalidade das medidas e quem pode controlar a
proporcionalidade em sentido restrito, dizendo se os prejuízos provocados pela restrição ainda
são inferiores ao benefício preconizado pelo fim (evitar o default)? Como, quem e de queforma
deve controlar a justiça das medidas?
o primeiro ponto para responder às questões é saber qual o papel que cabe a cada um dos
agentes no processo, em especial aos economistas, aos políticos e aos juristas. Com efeito, não é
nosso propósito num trabalho jurídico como o presente tecer considerações sobre a orientação
a seguir pelas políticas públicas, onde é que deve haver maior ou menor investimento com o
rendimento disponível, nem sequer emitir juízos de opinião quanto às vantagens ou desvanta-
gens da regra do orçamento equilibrado para a retoma económica.
o objectivo do texto é tão só o de alertar para os parâmetros normativos aplicáveis a
medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias, seja quando a medida é de redução dos
salários, redução de contraprestações financeiras fixadas em contratos públicos, aumento dos
impostos ou aumento de contraprestações financeiras por serviços de transportes colectivos ou
de saúde. e a análise que fazemos é baseada no pressuposto de que estas medidas são adoptadas
30 neste sentido, entre nós, a propósito das debilidades actuais e no futuro próximo de um pilar estruturante da socialidade como a temos conhecido desde a segunda metade do século XX: a segurança social – v. João Carlos loureiro, Adeus ao Estado Social? A segurança social entre o corcodilo da economia e a medusa da ideologia dos “direitos adquiridos”, Wolters kluwer-Coimbra editora, 2010.31 o termo “loucuras colectivas” é a designação dada por vitor bento à forma de financiamento que particulares, agentes económicos e estados têm adoptado para satisfazer as suas necessidades no actual modelo. se as gerações das décadas de 1930 e 1940 foram educadas pelos progenitores a “transportar recursos económicos do presente para períodos futuros” (fazer poupanças), as gerações seguintes foram educadas a “transportar recursos económicos do futuro para o presente” (endividarem-se). este endividamento fez-se através da utilização de activos financeiros, ou seja, transferências presentes entre os agentes aforradores, aos quais se prometiam remunerações atractivas pelo investimento das suas poupanças, e os agentes deficitários, que assim conseguiam obter de forma imediata bens que de outra forma só poderiam alcançar no futuro. A somar a isto, cada agente deficitário recorria ao crédito baseado na capacidade de pagar que previa ou presumia vir a dispor durante o seu “ciclo de vida” e não com base nas suas capacidades reais actuais, e o mesmo fizeram os estados, acreditando em ciclos contínuos de crescimento económico da economia global. A este cenário de risco acresceu o papel das instituições financeiras, responsáveis por criar e gerir os activos financeiros, ou seja, os instrumentos que permitiam transferir os recursos financeiros entre interessados e entre períodos económicos, as quais entraram em concorrência, e estimuladas pela pouca regulação a que foram sujeitas e pelos erros que cometeram na avaliação do risco, fizeram perigar todo o sistema. hoje, a braços com um problema gigante, a culpa parece ser repartida entre todos, os miopes dos particulares que consumiram mais do que podiam pagar; os gananciosos investidores que emprestaram recursos a risco elevado, em troca de ganhos importan-tes; as entidades financeiras que crentes nos benefícios infalíveis da teoria do jogo na autorregulação se enganaram a elas próprias; e os estados e os políticos que, a seu modo, permitiram que os cidadãos enveredassem nesta loucura em troca de votos – in Economia, moral e política. lisboa: Fundação Francisco manuel dos santos, 2011.
218
em regime de emergência económica e não em situação de normalidade, o que significa que nos
atemos, fundamentalmente, aos critérios de proporcionalidade, justiça e equidade das mesmas
e não ao conteúdo actual dos preceitos constitucionais, dos quais resulta, essencialmente, uma
proibição expressa de as adoptar.
em primeiro lugar, deve prevalecer um critério de universalidade, o que significa que
todos devem ser afectados, e em igual medida, pelas decisões públicas de retrocesso social,
no que ao âmbito de actuação dos poderes públicos diz respeito. Pressuposto que não se tem
verificado32.
no que respeita à redução da contraprestação pública remuneratória nos contratos de
trabalho em funções públicas, ela deveria abranger todos os sectores e todos os tipos contra-
tuais que suportam a “aquisição de força de trabalho” em que “o dinheiro provenha do or-
çamento de estado”. isto significa que segundo o disposto nos artigos 19 e seguintes, da lei
nº. 55-A/2010, de 31 de dezembro, não só os titulares de cargos públicos e os trabalhadores
em funções públicas ou outros enquadrados em qualquer das situações previstas no nº. 9 deste
artigo 19.º seriam abrangidos, mas também todos os contratos de prestação de serviços em
vigor. Premissa que nos leva a discordar do disposto no artigo 22. da referida lei, onde apenas
de prevê a redução para esta segunda categoria de contratos quando os mesmos venham a ser
celebrados33 ou renovados no ano de 201134. trata-se de uma discriminação desrazoável e arbi-
trária dos primeiros relativamente aos contratos de prestação de serviços, como se uns devessem
beneficiar de maior estabilidade remuneratória do que outros, sem que o legislador esclareça os
motivos justificativos dessa diferença de tratamento35 e quando se sabe que hoje muitas catego-
32 recorde-se que sobre esta questão, ao analisar a conformidade constitucional da norma que previa o “corte dos salários dos trabalhadores em funções públicas”, o tribunal Constitucional, no já mencionado Ac. 396/2011, sustentou que o facto de a medida abranger apenas o universo dos trabalhadores em funções públicas não consubs-tanciava uma discriminação arbitrária, e, por essa razão, não existia violação do princípio da igualdade. Posição que sustentou, essencialmente, no argumento de que a solução adoptada consubstanciava juridicamente um “corte de despesa” e não um “aumento de receita”, e por isso apenas os trabalhadores em funções públicas (e não os trabalha-dores do sector privado) poderiam ser abrangidos por uma medida desta natureza – construção jurídica que refuta-mos, pois apesar de a técnica utilizada ter sido a redução remuneratória temporária (posição sufragada pelo tribunal ao sustentar que a norma que operava a redução tinha natureza orçamental), em termos jurídico-económicos o que se verifica é uma prestação pecuniária coactiva efectuada pelos trabalhadores em funções públicas, através de uma retenção definitiva na fonte de uma parcela do respectivo rendimento (de trabalho) anual tributável. 33 A incapacidade de distinguir entre a realidade e a ficção no que respeita à “aquisição de força de trabalho” pelas entidades públicas é de tal forma evidente que até se consagra na lei a possibilidade de “redução” da remuneração para contratos a celebrar. expressão que só se compreende se estivermos em presença de “contratos de aquisição de serviços” celebrados entre as mesmas partes com regularidade ou habitualidade, ou seja, “contratos de trabalho”.34 o art. 22. da lei nº. 55-A/2010 não integrava o pedido de apreciação de constitucionalidade junto do tribunal Constitucional, e, por força do disposto no art. 51./5 da lei do tribunal Constitucional (lei nº. 28/82, de 15 de novembro, na sua redacção actualizada) – princípio do pedido –, o tribunal não poderia ter-se pronunciado sobre a respectiva conformidade constitucional. todavia, como decorre do princípio da vinculação ao pedido (mas não à causa de pedir), o tribunal não estaria impedido de a convocar na respectiva fundamentação para aferir da confor-midade constitucional do art. 19.º com o princípio da universalidade da restrição.35 nem se alegue que o quadro da aparente normalidade fictícia em que se trabalha impõe esse resultado por os contratos de prestação de serviços terem uma duração limitada, pois os contratos de trabalho em funções públicas com prazo certo foram todos abrangidos pela redução remuneratória em 2011, independentemente de este ser ou
219
rias profissionais dentro dos serviços públicos foram substituídas por contratos de aquisição de
serviços (outsourcing) por determinação das orientações do new public management.
mais, o regime da redução da remuneração deveria igualmente ser “estendido”, com as
devidas adaptações, a todos os contratos públicos cuja fonte de financiamento seja o orçamen-
to de estado ou outros recursos financeiros suportados por tributos, prevendo-se nestes casos,
pelo menos, uma redução percentual da margem de lucro do co-contratante36. em regra esta
redução deve ser conseguida através da via fiscal ou tributária (ex. criação de uma contribuição
especial de solidariedade) para “contornar” as limitações impostas pelo art. 313 do CCP ou
mesmo um eventual direito à reposição do equilíbrio contratual nos termos do artigo 314 do
CCP. todavia, tratando-se de um estado de emergência económico-financeiro, estas normas
poderiam ser “suspensas”, uma vez que constituem uma concretização legal do princípio da
protecção da confiança e da garantia do direito de propriedade do co-contratante cuja restrição
é proporcionalmente permitida com fundamento no referido contexto de anormalidade. o
mesmo é válido para as situações em que o estado de emergência económico-financeiro im-
ponha uma resolução dos contratos em curso por razões de interesse público – caso em que a
“justa indemnização” prevista no artigo 334 do CCP deve ser igualmente limitada, em especial
no que respeita aos lucros cessantes – ou uma revogação da decisão de contratar nos termos dos
artigos 79 e 80 do CCP, em que qualquer compensação pelo sacrifício, que acresça ao disposto
no n.º 4 do art. 79 do CCP, deve ser especialmente reduzida.
sublinhe-se que a solução alternativa, concretizada na criação de um tributo, não se reve-
laria apta à prossecução do fim pretendido – que consiste na redução da remuneração de todos
aqueles que são “sustentados” pelas receitas públicas (em especial as receitas provenientes do
orçamento de estado) –, na medida em que não seria praticável criar um tributo com a base
tributária pretendida, pois o universo subjectivo em causa inclui diversas entidades não resi-
dentes em Portugal, e quase todas com a respectiva actividade económica organizada de forma
complexa, em conformidade com as “melhores práticas” de um planeamento fiscal eficiente,
capaz de elidir o aumento da tributação pelo critério da fonte ou da residência.
neste contexto, a solução proposta, apesar da “estranheza” que possa aparentemente
suscitar37, é uma manifestação da mais elementar justiça e proporcionalidade, pois permite
não o ano da renovação. trata-se de uma discriminação não fundamentada, e, nessa medida, arbitrária e violadora não só do princípio da universalidade, mas também do princípio da igualdade de tratamento.36 sem prejuízo, igualmente, de uma revisão para o futuro das remunerações acordadas, procedendo-se a um ajus-tamento unilateral das mesmas segundo um parâmetro de remuneração razoável, à semelhança, por exemplo, do que foi decidido em espanha em matéria de remunerações da produção de energia eléctrica em regime especial no real decreto-ley 14/2010, de 23 de diciembre.37 na verdade, a medida proposta torna-se necessária no actual quadro jurídico, porquanto o estado não dispõe já de poder para desvalorizar a moeda, que seria o instrumento normal para reduzir os custos das suas obrigações económico-financeiras em estado de emergência económico-financeiro. Caso o estado pudesse optar por esta solução, certamente que se estaria a discutir este mesmo resultado no quadro da justa e equilibrada partilha do risco entre os contraentes, matéria que a Comissão europeia vem tentando apurar nas diversas comunicações que coadjuvam a aplicação da legislação em matéria de contratos públicos e parcerias público privadas – cf., em especial, Com
220
“alargar a base subjectiva e objectiva da contribuição para o sacrifício”, num contexto em que
uma parte substancial da prossecução da actividade administrativa é hoje desenvolvida através
dos contratos públicos38. Com efeito, a universalidade dos sacrifícios deve abranger, em igual
medida, todos os contratos onde exista financiamento público, em especial aqueles celebrados
pela Administração Pública e pelo estado, não existindo razões justificativas para a sua limi-
tação ao universo do exercício de funções públicas e dos contratos de aquisição de “força de
trabalho”.39
Aliás, esta discriminação torna-se ainda mais patente se tomarmos em consideração a per-
da do carácter estatutário da relação jurídica de emprego público e a sua substituição por uma
relação jurídica de natureza puramente contratual, na qual o trabalhador em regime de contrato
de trabalho em funções públicas negoceia com a entidade empregadora o seu posicionamento
remuneratório, nos termos do artigo 55.º, da lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro.
de resto, atentando no carácter eminentemente contratual de ambas situações, podemos
até dizer que, se discriminações positivas devessem ser efectuadas, elas deveriam sê-lo a favor
do trabalhador em regime de contrato de trabalho em funções públicas, pois a admitir-se uma
hierarquização dos valores perante a inevitabilidade da aplicação de medidas de redução da
remuneração certamente que não poderia deixar de ordenar-se com primazia a remuneração da
força de trabalho em relação com a livre remuneração do investimento privado, uma vez que a
primeira consubstancia uma refracção directa da dignidade da pessoa humana40, protegida de
(2004) 327; Com (2005) 569 e 2008/C 91/02. sobre o tema v., ainda, por último, miguel ángel bernAl blAy, El Contrato de Concesión de Obras Públicas y Otras Técnicas “Paraconcesionales”. madrid: thomson reuters, 2010, p. 292 e ss.38 sobre a expansão das regulamentações dirigidas aos contratos da Administração Pública e a generalização do contrato nas relações administrativas a partir dos anos 1970, v., entre nós, por todos, Pedro gonçalves, Sumários desenvolvidos da disciplina de contratos públicos, (elementos policopiados), ano lectivo 2009/2010 (recurso on-line), p. 14 e ss. 39 A vulnerabilidade económica do “contraente privado” é idêntica, quer este seja um trabalhador em funções públicas, um prestador de serviços, um fornecedor de bens ou alguém que exerça uma tarefa ou função pública por delegação contratual, não existindo razões para discriminar os primeiros de forma negativa. se o estado de emergência económico-financeiro justifica e legitima a redução da remuneração dos primeiros, então esse mesmo circunstan-cialismo há-de justificar a restrição das margens de lucro do co-contratante nos restantes contratos (salvaguardada pela garantia da remuneração razoável mínima) em nome do princípio da igualdade na contribuição para os encargos públicos. os pressupostos são os mesmos: a situação de anormalidade decorrente da falta de capacidade financeira do estado em poder honrar os compromissos financeiros pré-determinados justifica a necessidade de adoptar medidas de retrocesso social que permitam regressar à normalidade. discordamos, por isso, de uma visão parcial que se cen-tre apenas na vulnerabilidade económica do contraente privado nos contratos tipificados no código dos contratos públicos, como parece resultar do texto de Pedro gonçalves, «gestão de contratos públicos em tempo de crise», Estudos de Contratação Pública III, Wolter kluwer-Coimbra editora, 2010, p. 5 e ss. A posição do autor parece-nos ainda mais desconcertante se aceitarmos que essa vulnerabilidade poderá ser reconhecida a empresas que operam em sectores não transaccionáveis, onde abundam entre nós “falhas de regulação” pública, que não só lhes permitiram alcançar posições privilegiadas no mercado na fase de normalidade económico-financeira, como ainda nos levam a poder corresponsabilizá-las pelo “nó cego” do nosso desacerto económico. 40 também no que respeita à compreensão do salário – remuneração da força de trabalho – como dimensão da dignidade da pessoa humana não acompanhamos a interpretação vertida no Ac. 396/2011 do tribunal Constitucio-nal, quando do mesmo decorre não só que o salário dos trabalhadores em funções públicas pode ser reduzido por lei, podendo essa lei ser uma lei orçamental, a qual pode, por razões financeiras, operar uma redução dos salários fundamentada na escassez de recursos financeiros, desde que não afecte o mínimo salarial, mas ainda quando distin-
221
forma mais intensa pelo regime especial dos direitos, liberdades e garantias, ao passo que a se-
gunda se reconduz, primeiramente, à Constituição económica, à qual o legislador constituinte
não quis reconhecer a mesma protecção41.
o critério de universalidade há-de aplicar-se igualmente no âmbito de todas as medidas
de agravamento fiscal: aumento de taxas do irs; criação de impostos acessórios em sede de
irC42; revogação de benefícios fiscais; aumento das taxas e revisão das tabelas de bens e serviços
sujeitos a ivA; ou mesmo na modificação dos critérios de determinação da base tributável nos
impostos sobre o património.
Assim, não se compreende, em primeiro lugar, a exclusão de certas categorias de rendi-
mentos no irs das medidas de agravamento da tributação, exclusões que, mais uma vez, se nos
afiguram violadoras do princípio da universalidade e, nessa medida, inconstitucionais.
Com efeito, um ponto importante a sublinhar é o de que estas medidas excepcionais de-
vem ser interpretadas e a sua validade analisada à luz dos princípios informadores do estado de
emergência económico-financeiro, o que significa que o critério da universalidade, nesta fase
em que o aumento das receitas fiscais se apresenta como uma exigência imperiosa em razão
das circunstâncias existentes, não pode ser beliscado por critérios gerais de política-económica.
estes critérios são válidos em situação de normalidade, mas não podem ser mobilizados em
situação de excepcionalidade. Assim, por exemplo, a não tributação de dividendos ou de ca-
pitais por razões de política económica constitui um fundamento inaceitável e desprovido de
validade no actual contexto e, por isso, insuficiente para sustentar a discriminação positiva e
neutralizar a inconstitucionalidade.
gue o “direito à retribuição” do “direito a um concreto montante dessa retribuição”, concluindo que apenas o primeiro consubstancia um direito de natureza análoga a direitos, liberdades e garantias. ora, em nosso entender, o direito ao salário, no quantitativo acordado entre a entidade empregadora e o trabalhador, goza de protecção jusfundamental não apenas na medida do mínimo salarial, mas em todo o valor acordado, sem prejuízo de poderem ser admitidas reduções fundamentadas e por acordo. o salário (remuneração da força de trabalho) é a garantia da liberdade do trabalhador (densifica o direito ao trabalho), libertando-o de todas e quaisquer formas de exploração económica, e, por essa razão, a sua indisponibilidade por decisão unilateral do empregador constitui um elemento inalienável e informador da dignidade da pessoa humana. 41 não desconhecemos, claro está, que muitos destes direitos económicos acabam por gozar igualmente do regime de protecção dos direitos, liberdades e garantias quando se apresentam como direitos análogos, embora seja neces-sário demonstrar, em concreto, a presença dos requisitos que habilitam aquele recorte dogmático. uma vulnerabi-lidade à qual acresce hoje o reconhecimento generalizado de que o modelo de economia social de mercado regulada pressupõe “limites imanentes” a estas liberdades económicas decorrentes da nova forma de intervenção do estado na economia, seja no contexto da aplicação do direito da concorrência – v. garcia Alcorta, La limitación de la libertad de empresa en la competencia. Barcelona: Atelier, 2008 –, seja no contexto mais técnico da regulação económica de actividades económicas tendencialmente monopolístas, como as indústrias de rede – v. martin lechke, «regulie-rungstheorie aus ökonomischer sicht», Fehling / ruffert, Regulierungsrecht, mohr siebeck, tubingen, 2010, p. 281 e ss. 42 veja-se o caso da derrama estadual instituída pelo artigo 87 - A do Código do irC, que mais não é do que uma sobretaxa de irC, aditada àquele Código pela lei n.º 12-A/2010, que aprovou um conjunto de medidas adicionais de consolidação orçamental para reforçar e acelerar a redução do défice excessivo e o controlo do crescimento da dívida pública previstos no Programa de estabilidade e Crescimento (PeC) 2010 – 2013.
222
A validade de medidas de agravamento da carga fiscal como as que estão a ser mobilizadas
em razão do estado de emergência económico-financeiro em que o país se encontra tem como
contraponto a obrigação da respectiva universalidade. As medidas diferenciadoras, baseadas
em critérios de política económica, devem ficar reservadas para uma fase posterior, quando a
actual situação de anormalidade estiver ultrapassada. o mesmo é válido para a restrição das
cláusulas remuneratórias dos contratos, o que significa que também os argumentos em matéria
de política económica, que hão-de presidir à diferenciação de tratamento das situações contra-
tuais na fase da retoma (promoção da captação do investimento estrangeiro), não podem ser
mobilizados enquanto durar o actual estado de emergência.
um ponto eventualmente problemático na aplicação do princípio da universalidade das
medidas de restrição de direitos com o objectivo de aumentar a receita pública e reduzir a
despesa no actual estado de emergência económico-financeiro prende-se com a respectiva pon-
deração com o princípio da autonomia dos poderes regional e local. Com efeito, seguindo os
ensinamentos de Alexy, apesar de os princípios se circunscreverem a um critério de optimiza-
ção, o que em princípio permite a sua harmonização de forma quase natural, isso não invalida
que possam surgir situações de colisão de princípios, as quais devem ser resolvidas através da
prevalência de um princípio relativamente a outros em razão das circunstâncias concretas43. é
com base neste critério que devem ser solucionados os diferendos entre o estado e as regiões
Autónomas, e entre este e as autarquias locais, sempre que se invoquem as respectivas esferas
de autonomia para instituir regimes especiais de não aplicação das medidas de restrição. A uni-
versalidade deve neste caso prevalecer sobre as autonomias em razão, precisamente, do estado
de emergência e da necessidade de garantir a igualdade na repartição dos encargos públicos.
igualdade que começa, justamente, pela universalidade.
mas o princípio da universalidade só dá resposta a uma parte (embora seja uma parte im-
portante) do problema em que se consubstancia a igualdade na contribuição para os encargos
públicos em estado de emergência económico-financeira, ficando por resolver a parte respei-
tante à igualdade material ou aos critérios substantivos das medidas, que há-de estribar-se no
princípio da justiça e da equidade.
não é esta a sede própria para discutir o problema da justiça tal como hoje a filosofia
política o vem equacionando. o mesmo é dizer que não se adequa à economia deste estudo
discorrer sobre os pressupostos da “justiça como equidade” de rawls44 ou à crítica que Amar-
tya sen faz ao relevo dado por rawls à liberdade e ao acesso aos bens primários, acentuando a
43 v. robert Alexy, Teoría de los derechos fundamentales.tradução Carlos Bernal Pulido. madrid: Centro de estu-dios Políticos y Constitucionales, 2007, p. 67-70.44 v. John rawls, La justicia como equidad: una reformulación.tradução Andrés de Franscico. Barcelona: Paidós, 2002.
223
necessidade de partir de uma imparcialidade aberta, coadunada com a sociedade global, a qual,
por seu turno, nos fará confluir em uma fragmentação da própria ideia de justiça45.
um problema que se liga neste contexto à legitimidade da desconstrução do modelo de
socialidade plasmado na Constituição, já não por medidas político-legislativas adoptadas em
estado de emergência económico-financeiro, mas sim numa fase posterior através de medidas
de reestruturação económico-financeira tendentes à implementação da sustentabilidade. um
tema que pela sua abrangência e complexidade também não é possível tratar nestas considera-
ções breves, mas sobre o qual não podemos deixar de questionar, é aquele, por exemplo, dos
pressupostos e do procedimento que devem comandar a reforma, de modo a garantir a conti-
nuidade da paz social pelo novo pacto fundante. não se trata apenas de saber se os preceitos da
lei fundamental que hoje consagram a saúde ou a educação como bens tendencialmente gra-
tuitos podem permanecer com esta redacção ou devem ser alterados. A discussão deve ser mais
profunda e começar pelo sentido actual do constitucionalismo46, ou seja, com o sopesamento
entre igualdade, democracia e constituição47 perante o contexto económico globalizado. em
suma, saber: como, quem e de que forma pode o quê e com que objectivo.
no essencial a discussão sobre a justiça centra-se na (re)construção jurídica estrutural que
é necessário fazer, mas isso não significa que as premissas fundamentais deste princípio não
tenham igualmente que estar presentes nas medidas de emergência económico-financeira. uma
presença que é exigida em duas acepções essenciais: no controlo do princípio da igualdade, exa-
minando as medidas segundo a “justiça do sistema” para evitar que sejam adoptadas soluções
“em contradição intrínseca com a concepção global”48 do mesmo; e no controlo do princípio
da imparcialidade para neutralizar a captura da decisão política por grupos de interesse49.
o controlo da justiça das medidas dificilmente se consegue juridicizar, mas isso não sig-
nifica que deva ficar inteiramente relegado para o plano do mero controlo político. Pelo con-
trário, a eficiência e eficácia das medidas para permitir alcançar os resultados necessários à
recuperação do estado de normalidade exigem a mobilização das novas formas de controlo
45 v. Amartya sen, A ideia de Justiça. tradução nuno Castello-Branco Bastos. Coimbra: Almedina, 2010.46 uma questão que enquadramos nos desafios mais prementes e cujos principais tópicos de reflexão procurámos sistematizar em suzana tavares da silva. Os direitos fundamentais na arena global. Coimbra: imprensa da universi-dade de Coimbra, 2011. 47 deve questionar-se, em primeiro lugar, se os quadros jurídicos tradicionais podem ser ajustados ao actual con-texto (económico-social) global ou se carecem de transformação – uma discussão que encontramos no texto de ma-nuel Atienza, «Constitucionalismo, globalización y derecho», in El canon neoconstitucional. madrid:trotta, 2010, p. 264 e ss – assim como adequar as premissas ao modelo social continental, onde a cidadania comunitária não tem a dinâmica anglosaxónica, tornando questionável a transposição de um modelo dúctil de constitucionalismo, como aquele que subjaz a algumas propostas de dworkin – ronald dworkin. «igualdad, democracia y Constitución: nosostros, el pueblo, en los tribunales», in El canon neoconstitucional. madrid: trotta, 2010, p. 117 e ss. 48 v. gomes Canotilho. op. cit, p. 1296.49 neste sentido, por todos, vieira de Andrade, «A imparcialidade da Administração como princípio constitucio-nal», Separata do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1974, p. 5 e ss.; e «grupos de interes-se, pluralismo e unidade política», Suplemento do Boletim da Faculdade de Direito Universidade de Coimbra, 1977.
224
do poder público50, para além dos mecanismos típicos da “gestão da conflitualidade social”51,
os quais servem inclusivamente como elementos de prevenção perante assomos dirigistas dos
“gestores da crise” – como neutralização do “paradigma schmittiano” da actuação em estado de
emergência. uma gestão que deve contar não apenas com a motivação das estruturas típicas da
mediação e concertação social, mas também com o aprofundamento de novos instrumentos da
sociedade de informação e da cidadania activa.
de entre estes novos instrumentos de controlo, que constituem igualmente um esteio
importante da nova realidade que há-de sobrevir, destacamos a “gestão da informação sobre
matéria de cidadania”, em áreas como a cooperação supranacional no intercâmbio de informa-
ções fiscais ou a implementação de esquemas de soft law em matéria de transparência fiscal52.
mas não se trata apenas de divulgar as medidas, o que, embora relevante para o controlo não
garante a respectiva conformidade material com os princípios antes enunciados. Para o efeito
será importante contar com instrumentos de programação estratégica53, ou seja, com um rotei-
ro orientador da acção54 a partir do qual se torna mais fácil apreender a conformidade com os
princípios da igualdade e da justiça no contexto de um controlo sistémico da acção55.
o controlo sistémico não pode ser realizado pelos tribunais. não se trata de analisar a validade
de medidas individuais e concretas ou de regimes normativos, mas sim de acompanhar a execução
do programa, bem como de avaliar a sua aptidão para a realização das metas propostas em função
dos resultados parciais obtidos e de orientar a sua reformulação se for o caso. talvez por essa razão
a implementação do programa de ajustamento económico-financeiro tenha motivado a criação de
50 sobre as alterações do poder público e a necessidade de adaptação dos esquemas de controlo a esta realidade v., por todos, Wolfgang KAhl, «Begriff, Funktionen und konzepte von kontrolle», in hoffmann-riem / schmidt-Assmann / vosskuhle, Grundlagen des Verwaltungsrechts III, Beck, munchen, 2009, pp. 427 e ss.51 referimo-nos aos instrumentos de participação política e de cidadania de que o direito de manifestação e o di-reito de reunião constituem os principais exemplos, a par do direito à greve, liberdade de expressão e comunicação social. sublinhe-se que estas formas de intervenção têm também revelado alguma actualização, surgindo sobretudo associados a movimentos fragmentários, tipícos da pós-modernidade, em que grupos espontâneos organizados a partir de “redes sociais” fazem protestos sem uma aparente base ideológica agregadora, o que os transforma em mo-vimentos para-anárquicos. 52 sobre estas temáticas v. raque gonçalves mota, «A cooperação internacional na operacionalização do inter-câmbio de informações fiscais» e marcelo rodrigues de siqueira, «os desafios do estado fiscal contemporâneo e a transparência fiscal», ambos em Sustentabilidade Fiscal em Tempos de Crise. Coimbra: Almedina, 2011, p. 167 e ss e p. 129 e ss, respectivamente.
53 sobre a importância da programação estratégica como instrumento de orientação política no contexto do novo quadro de organização e funcionamento dos poderes públicos, em especial do poder administrativo, v., por todos, Wolfgang KöCK, «Pläne», hoffmann-riem / schmidt-Assmann / vosskuhle, Grundlagen des Verwaltungsrechts II, Beck, munchen, 2008, p. 1319 e ss.54 Aparentemente esse roteiro consta do Memorando de Entendimento entre o Estado Português, UE, BCE e FMI, o que suscita problemas acrescidos de controlo por se tratar de um acordo com entidades supranacionais, mas não impede, até pela sua natureza aberta e negociável, típica dos programas, que possa ser adequado de forma a permitir alcançar os mesmos resultados em termos económico-financeiros sem pôr em causa os princípios fundamentais do Es-tado de direito democrático consagrados na Constituição da república Portuguesa (artigo 8.º/4 da CrP). Princípios que, por consubstanciarem a matriz cultural nacional, podem e devem ser mobilizados pelo tribunal Constitucional para controlar quaisquer medidas normativas, neutralizando de forma legítima a eficácia dos acordos supranacionais que vinculam o estado55 v. Wolfgang kahl, «Begriff, Funktionen und konzepte von kontrolle»..., op. cit., p. 447.
225
diversas entidades às quais se conferem missões de controlo, cuja análise encontramos no último tex-
to deste volume quando se analisam os problemas e algumas perplexidades em matéria de controlo
da eficiência. Apesar do impulso para a instituição de mecanismos deste tipo, não se percebe muito
bem se os mesmos irão funcionar como entidades independentes para garantir o controlo externo
ou como auxiliares técnicos dos decisores políticos, funcionando neste caso sobretudo como instru-
mentos de controlo interno e de interface entre as instituições subscritoras do acordo-programa.
a Solidariedade No eNtretaNto
Para além da necessidade de garantir a igualdade (universidade) e a justiça na contribuição
para os encargos públicos em situação de estado de emergência económico-financeira, importa
também encontrar algumas respostas para o problema da especial vulnerabilidade social de alguns
grupos. se no ponto anterior expusemos as nossas preocupações quanto à necessidade de repartir
de forma igual e equitativa os sacrifícios para garantir que o inevitável retrocesso social origina
um abaixamento generalizado do nível de bem-estar, mas não a “aniquilação” da estrutura eco-
nómico-social que suporta os estados industrializados, ou seja, a sua classe média, interessa-nos
agora enunciar algumas questões sobre medidas de emergência social em estado de emergência
económico-financeira. em poucas palavras, trata-se de responder à questão de saber como é que
o estado comunidade pode continuar a cumprir objectivos como a coesão económico-social e
a garantia do mínimo para uma existência condigna quando escasseiam os recursos económicos
para as prestações sociais.
Com efeito, ninguém sabe ao certo quanto tempo pode durar o estado de emergência eco-
nómico-financeira e, neste entretanto, é imprescindível ter também um programa de acção social
que não seja um mero manifesto assistencialista56, mas sim um programa estruturado capaz de
refrear o impulso de “brasilianização”57 social a que inevitavelmente se tenderá a assistir.
56 Ao estado não compete substituir-se às instituições que asseguram a acção social, nem mimetizar a sua actuação com acções de solidariedade da sociedade civil.57 Beck utilizou a expressão “brasilianização do ocidente” para descrever o possível impacto que as políticas neoli-berais do emprego teriam sobre a sociedade ocidental, em que a passagem de uma sociedade do emprego a uma sociedade do conhecimento, cuja implementação requeria precariedade e flexibilidade, geraria exércitos de desem-pregados – ulrich beCK, The Brave New Wolrd of Work. (tradução). Cambridge: oxford Press, 2000, p. 1 e ss. também a habermas se atribui recorrentemente a expressão “brasilianização”, para caracterizar a situação que o autor descreve em que os direitos fundamentais se transformam em meros preceitos constitucionais sem realização prática. na sua obra “o discurso filosófico da modernidade”, o autor permite-nos compreender, a partir da análise da evolução da base filosófica da organização social, algumas perversidades que o sistema foi assimilando e que ar-ruinaram o seu suporte ético – Cf. Jugen habermas. O discurso filosófico da modernidade (tradução). lisboa: dom quixote, 1990. se somarmos a esta quebra da base ética, a subsequente quebra da base económico-financeira que sustentava o “modelo social europeu”, encontramos razões sérias para nos preocuparmos.
226
A solução não é fácil e em grande medida percebemos que uma parte da socialidade
acabará por ficar inevitavelmente entre parêntesis, sem que possamos realizar uma transição
estruturada para o novo mAC social dinâmico58, como seria desejável.
mas alguma coisa é possível fazer no campo do refinanciamento promovendo e dinami-
zando esquemas de compensação intrasectorial no âmbito dos serviços de interesse económico
geral assentes em novos tributos, seja com finalidades regulatórias para tornar o sector mais
competitivo dentro das regras europeias em matéria de auxílios de estado, as quais servem
também uma finalidade económica de redução dos custos das empresas, tornando a economia
mais competitiva, seja com finalidades sociais de reduzir os custos que se reflectem nos preços
finais a suportar pelas famílias59.
o mesmo esquema de refinanciamento é parcialmente transponível para os serviços de in-
teresse geral, em especial para o ensino, segurança social e saúde, mas onde impera, em primeiro
lugar, a necessidade de ajustar os parâmetros das prestações públicas à realidade, começando por
apurar a juridicidade dos critérios de racionamento60, para que os direitos não percam a sua carga
valorativa no afã de se tornarem sustentáveis61. mas o caminho da sustentabilidade neste campo é
mais difícil de trilhar, como se percebe pelo exemplo da segurança social: o aumento da esperança
média de vida tornou insustentável o modelo de financiamento que fora concebido para o sistema
e exigiu um aumento da idade da reforma, mas esta medida, por seu turno, agravou o desemprego
entre os jovens, e com isso, novamente, a sustentabilidade do sistema.
Por último, cumpre destacar que é ainda possível conceber medidas de incentivo social a
custo zero no quadro típico da actuação dos poderes públicos, potenciadoras da acção social pri-
vada, sobretudo em matéria de simplificação procedimental e de critérios de regulamentação.
58 sobre o “MAC social” método aberto de coordenação na área da protecção social (cf. Com-2008/418) v. gerda Falk-ner, «european union», in Castles /leibfried / lewis /obinger / Pierson (ed.), The Welfare State, oxford university Press, new york, 2010 (p. 292-305) e suzana tavares da siva, Os direitos fundamentais na arena global, op. cit..59 os autores sublinham a importância de utilizar subvenções cruzadas dentro da margem permitida pelas directrizes europeias ou mesmo fundos de compensação como aqueles que têm vindo a ser erigidos entre nós no domínio do sector eléctrico e do abastecimento de água e saneamento para “reduzir custos” ou “nivelar preços”, respectivamente – v., por todos, markus krajewski, Grundstrukturen des Rechts öffentlicher Dienstleistungen, springer, 2011, p. 441 e ss (em especial p. 451-452). medidas que terão certamente um impacto social positivo mais relevante do que o alcançado com os esquemas de apoio a clientes vulneráveis como o da tarifa social no sector eléctrico e do gás natural, previstos no decreto-lei n.º 138-A/2010, de 28 de dezembro, complementado pela Portaria n.º 1334/2010, de 31 de dezembro, e no decreto-lei n.º 102/2011, de 30 de setembro, onde o tipo de apoio à vulnerabilidade é manifestamente insuficiente para compensar o impacto da subida dos preços finais a pagar pelos consumidores em resultado do aumento do ivA e da liberalização dos mercados na fileira do consumo doméstico. 60 sobre o racionamento na saúde v., por todos, luís meneses do vale. Racionamento e racionalização no acesso à saúde: contributo para uma perspectiva jurídico-constitucional, dissertação de mestrado (policopiado), Coimbra, 2007. 61 sobre a racionalização da teoria dos valores inscritos nos direitos fundamentais no novo contexto jurídico-políti-co v., por todos, Wolfgang kahl, «grundrechte», in: depenheuer / grabenwarter, Verfassungstheorie, mohr siebeck, tubingen, 2010, p. 807 e ss (em especial, p. 830).
227
eM Jeito de CoNCluSão: até QuaNdo? e até QuaNto?
os dois últimos tópicos que nos propomos tratar, embora sejam essenciais para fechar o
“círculo da justiça” que convocámos para este discurso, não conhecem nem podem conhecer
respostas claras no actual sistema, obrigando-nos uma vez mais a convocar os contributos da
nova governance pública.
A compreensão e a “domesticação jurídica” deste fenómeno (da governance) é essen-
cial, pois, em nosso entender, um dos problemas que conduziu ao actual “estado da arte”
foi, em certa medida, o alheamento dos juristas relativamente a ele, considerando, talvez,
que esta realidade estava confinada ao “mundo económico” e não alterava o status quo do
jurídico. As referências constantes que se ouviam, como a necessidade de recompreensão
da justiça para que alertava Amartya sen, a importância do diálogo na construção do
direito a que referia habermas ou mesmo a necessidade de integrar no espaço de decisão
do interesse geral actores diversos, públicos e privados, nacionais e internacionais, insti-
tucionais e empresariais, que proclamava teubner, eram apresentadas como interessantes
especulações sobre a “nova arrumação do social” e a “nova arrumação dos factores econó-
micos”, mas, genericamente, não alcançavam qualquer influência directa sobre o acquis
teorético e dogmático das fontes normativas. sobretudo um certo “desapreço” a que alguns
juristas votaram o soft law, o technical law e as posições jurídico-subjectivas que se foram
estabelecendo sob a influência destes domínios, considerando que dispunham de um grau
de normatividade ténue e por isso insuficiente para abalar o ethos jurídico geral, percebe-se
hoje que foi um pecado original.
A globalização económica teria de ter sido acompanhada de um aprofundamento da me-
tódica do direito comparado, como bem nos explica maria rosaria Ferrarese quando, no seu
primeiro estudo sobre as “instituições da globalização”, refere que “o direito” não é um conjun-
to de regras, mas antes “uma linguagem mais ampla que serve para enquadrar o mundo”62.
regressando ao “caso português”, cumpre, em primeiro lugar, questionar o seguinte: não
existindo uma declaração formal de reconhecimento do estado de emergência económico-finan-
ceiro, como poderemos identificar com um mínimo de certeza o seu termo? A questão é sobretu-
do pertinente se pensarmos que as medidas conjunturais de emergência que vêm sendo adoptadas
coexistem e serão sucedidas por medidas estruturais de ajustamento à redução geral do nível de
bem-estar, até que se atinja o adequado estádio de sustentabilidade. Por essa razão, é difícil per-
ceber quando é que se dá a passagem de uma fase para a outra. mas é do maior relevo fixar esse
momento, na medida em que, por exemplo, é a partir dele que as diferenciações de tratamento
62 maria rosaria FerrArese, Le istituzioni della globalizzazione. Bologna: mulino, 2000 e La governance tra politica e diritto. Bologna: mulino, 2010.
228
com base em critérios de política económica (desvios à universalidade) passam, em nosso enten-
der, a ser possíveis e legítimas.
o critério que permite identificar essa passagem é o afastamento do risco iminente de de-
fault, ou seja, a fase em que, embora exista ainda um desequilíbrio e continuem a ser necessárias
medidas de ajustamento económico estrutural, deixamos de estar em risco de incumprimento.
ora, trata-se de uma condicionante económico-financeira, tal como no estado de sítio ou de
guerra a condição para que a respectiva cessação venha a ser decretada, ou se torne impossível a
sua prorrogação (já que existe sempre um prazo), radica em condicionantes naturais ou políti-
cas. Assim, embora aparentemente um jurista positivista tenha dificuldade em aceitar esta plas-
ticidade dos critérios, os actores da nova governance percebem que a garantia que o positivista
alcançava através da regra se encontra hoje na interligação e balanceamento de interesses que
subjazem a cada decisão complexa para a qual têm de contribuir diversas entidades. o mesmo
é dizer que teremos de confiar na confluência dos diversos apports decisórios na governance
para fixar esse momento.
A segunda questão prende-se com a eventual decisão de qualificação de uma medida adop-
tada na vigência do estado de emergência económico-financeiro como desproporcionada, ou seja,
como adequada (apta à realização do fim, que é evitar o default), necessária (a medida menos
gravosa de entre as diversas alternativas que permitem alcançar o fim), mas desproporcionada
em sentido restrito, i. e., como uma medida cujas consequências seriam mais gravosas do que o
default e, nesse contexto, seria ilegítima. será esta uma decisão apenas política ou poderá prever-se
um controlo jurídico deste tipo?
em princípio nada obsta a que teoricamente este controlo seja efectuado, a questão é apenas a
de saber qual poderia ser o tribunal competente para o realizar. se pensarmos no tribunal Constitu-
cional e na sua jurisprudência mais recente (regressamos ao início do texto), percebemos claramente
que só com muita dificuldade poderíamos esperar uma decisão deste tipo. Circunstância que não
nos deixa tranquilos, pois é o mesmo que admitir que ,depois de tantos exemplos didácticos propor-
cionados pela história moderna, voltamos ao ponto de partida – a gestão dos conflitos económico-
financeiros é confiada ao bom senso dos políticos e à capacidade de gestão das forças sociais e dos
conflitos latentes pelas diversas instâncias.
A nossa convicção, como a de outros, é da que a complexidade e a globalização, da mes-
ma forma que nos deixaram desprotegidos da ordem jurídica nacional a que nos acomodámos,
permitiram construir, na teia invisível da governance, novas soluções e novos instrumentos de
resposta. só o futuro próximo nos poderá dizer se esta construção do “início da história”, que pôs
fim ao período tribal da humanidade na expressão de maalouf63 e Fukuyama64, nos possibilitará
63 Amin maalouf . Um Mundo sem Regras. quando as nossas civilizações se esgotam. tradução Carlos Aboim de Brito. lisboa: difel, 2009.64 Francis Fukuyama.The Origins of Political Order: From Prehuman times to the French revolution. Farrar, straus and giroux, 2011.
229
vencer “acidentes” como este em que estamos actualmente envolvidos, ou se, ao invés, a “tentação
do cume” que sobreveio ao fim do comunismo nos fez subir demasiado alto e agora não é possível
amparar o mundo, que a nossos olhos, e na expressão de Joseph stiglitz, está em “queda livre”.
230
231
A CriSE FiNANCEirA E A NoVA rEALiDADE CriADA PELA DiNÂmiCA Do mErCADo muNDiAL
walkiria Martinez heinrich Ferrer
laércio rodrigues de oliveira
Com o surgimento de uma nova crise financeira, que ameaça ser duradoura e atingir as
atividades da economia real envolvendo todo mundo capitalista, pergunta-se se a teoria neo-
liberal é a mais indicada para o momento.
Ao longo da história do capitalismo várias teorias econômicas foram colocadas em prática.
dentre as teorias desenvolvidas pelos cientistas econômicos podem-se destacar as teorias Clássi-
ca, neoclássica, marxista, keynesiana e a mais recente que domina o pensamento da economia
na atualidade, denominada de neoliberal.
A teoria Clássica, desenvolvida por Adam smith no início do desenvolvimento do pen-
samento econômico cientifico, fundamenta suas bases nas ações do mercado. os pressupostos
dessa teoria referem-se ao estado mínimo com atividades ligadas apenas na defesa da nação e
oferta de bens e serviços públicos. na sequência do desenvolvimento do pensamento cientifico,
surge a teoria neoclássica, cujo marco teórico confirma os pressupostos da teoria Clássica
com as teorias de mercado e doestado mínimo. A teoria marxista surge como uma alternativa
a estas ideias, propondo um estado totalitário e o abandono das teorias de mercado. Com o
surgimento da crise econômica dos anos 30 do século XX, uma nova teoria econômica sur-
ge com uma proposta diferente. naquela oportunidade, John maynard keynes propôs, com
muito sucesso, a convivência entre o estado e a iniciativa privada como solução das variações
dos ciclos econômicos. Passada a crise econômica e estando a economia mundial em franco
desenvolvimento, as teorias keynesianas foram abandonadas e surgiu a teoria neoliberal. essa
teoria tem como fundamento o ideário das teorias Clássicas e neoclássicas, isto é, visão de que
a participação do setor público nas atividades econômicas deveria ser reduzida, deixando as
mesmas para a iniciativa privada e com o mínimo de regulação.
capítulo 12
232
Busca-se, com esta pesquisa, fazer uma breve análise da evolução da crise financeira e eco-
nômica atual e suas relações com as teorias econômicas. inicialmente, buscou-se fazer a análise
das teorias econômicas clássica e marxista, em seguida aborda-se a evolução da crise financeira
mundial e suas ligações com a teoria keynesiana e apresentam-se as conclusões finais.
PreSSuPoStoS hiStóriCoS do NeoliberaliSMo
segundo o teórico alemão karl marx, a história da humanidade originou-se por meio de
um jogo de forças entre a base material, o plano físico, palpável e a base ideológica, ou seja, o
conjunto de ideias e as instituições políticas, econômicas ou sociais. marx afirma que todas
as transformações ocorridas em termos de desenvolvimento político-econômico partiram de
determinadas necessidades da realidade (infraestrutura), alterando o plano ideológico (superes-
trutura) para, posteriormente, retornar e transformar a realidade.
na produção social da própria existência, os homens entram em relações determina-das, necessárias, independentes de sua vontade; estas relações de produção correspon-dem a um grau determinado de desenvolvimento das forças produtivas materiais. o conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual corres-pondem formas sociais determinadas de consciência. o modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. não é a consciên-cia dos homens que determina a realidade; ao contrário, é a realidade social que de-termina sua consciência. em certa fase de seu desenvolvimento, as forças produtivas da sociedade entram em contradição com as relação de produção existentes ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade, no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. de formas evolutivas das forças produti-vas, que eram, essas relações convertem-se em seus entraves. Abre-se, então, uma era de revolução social. A transformação que se produziu na base econômica transtorna mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura.1
Com base na interpretação materialista da história, podemos analisar a origem e a evo-
lução da instituição estado, desde a Antiguidade Clássica, com os “tempos homéricos” da
civilização grega, a evolução das cidades-estado até a civilização romana, com as “civitas” perí-
odos determinados por novas exigências do plano físico, acarretando alterações nas formas de
estado.
seguindo a ordem evolutiva da instituição estado, essa instituição toma novas formas
na medida em que se fazem necessárias transformações em nível ideológico, como o estado
na idade média, período polêmico quanto à denominação “estado medieval”, como retrata
dallari:
1 mArX, karl. Contribuição à crítica da economia política. são Paulo: ática, 1987, p. 82. (Coleção grandes Cien-tistas sociais).
233
muita coisa já foi escrita sobre a idade média, classificada por alguns como a noite negra da humanidade e glorificada por outros como um extraordinário período de criação, que preparou os instrumentos e abriu os caminhos para que o mundo atin-gisse a verdadeira noção do universal. no plano de estado não há dúvida de que se trata de um dos períodos mais difíceis, tremendamente instável e heterogêneo, não sendo tarefa das mais simples a busca de características de um estado medieval. não obstante, é possível estabelecer a configuração e os princípios informativos das so-ciedades políticas que, integrando novos fatores, quebraram a rígida e bem definida organização romana, revelando novas possibilidades e novas aspirações, culminando no estado moderno.2 (grifos do autor)
o sistema de suserania e vassalagem e a consequente concessão de feudos, presentes du-
rante o período medieval, provocaram uma descentralização e uma disputa pelo poder político
entre o monarca, senhores feudais e a igreja. Foi umeríodo marcado pela instabilidade política,
econômica e social, que gerou uma necessidade de ordem e autoridade, ou seja, deficiências
ou necessidades do plano físico acarretaram transformação no nível ideológico, a criação do
estado moderno e a centralização do poder político no monarca absoluto.
As deficiências da sociedade política medieval determinaram as características fundamen-
tais do estado moderno. o sistema feudal, compreendendo uma estrutura econômica e social
de pequenos produtores individuais, constituída de unidades familiares voltadas para a produ-
ção de subsistência, ampliou o número de proprietários, tanto dos latifundiários quanto dos
que adquiriram o domínio de áreas menores. os senhores feudais já não toleraram as exigências
dos monarcas que impunham uma tributação indiscriminada e mantinham um estado de guer-
ra constante, que só causavam prejuízo à vida econômica e social. isso tudo foi despertando a
consciência para a busca da unidade, que, afinal, se concretizaria com a afirmação de um poder
soberano, no sentido de supremo, reconhecido como o mais alto de todos dentro de uma pre-
cisa delimitação territorial.3
sendo característica do estado moderno, neste momento surge o conceito de soberania,
como forma de distinguir o poder do estado dos demais poderes. o conceito de soberania, vis-
to como monopólio do poder político, foi empregado no século Xvi pelo francês Jean Bodin,
visando garantir o fortalecimento do poder real.
Com o conceito político de soberania, Jean Bodin sobrepõe o poder do monarca a qual-
quer outro existente, pois o poder das leis o coloca acima das leis precedentes, assim como não
pode estar submetido às suas próprias leis, pois não irá formular mecanismos que limitem seu
poder soberano. somente ao monarca soberano cabe o poder de criar e eliminar leis, a nenhum
outro indivíduo ou conjunto de indivíduos, nem mesmo aos funcionários do estado, cabe a
formulação das leis, pois o poder soberano deve ser absoluto e, para tal, não pode haver poder
similar.
2 dAllAri, dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 24. ed. são Paulo: saraiva, 2003, p. 66.3 op. cit. p. 70
234
o uNitariSMo do Poder PolítiCo
Com o final do período medieval e o surgimento do estado moderno, e consequente
centralização do poder político, a humanidade vivenciou uma outra forma de organização do
poder, ou seja, o estado centralista ou unitário.
segundo Paulo Bonavides, o unitarismo do poder constitui a forma mais simples e lógica
de organização do poder, pois todos os poderes derivam de um único centro decisório e as
determinações que partem dos centros periféricos são apenas delegações do poder central. o
estado unitário constitui uma unidade orgânica, com uma ordem jurídica, política e adminis-
trativa extensiva a um só povo, um só território e um só titular do poder público:
[...] Foi assim quando se deu a aparição do estado moderno, cujo aspecto centra-lizador e tendência unitarista ressalta desde logo em presença da vontade política soberana, que é a vontade do estado, congraçando, fundindo ou subordinando os ordenamentos sociais concorrentes, doravante convertidos em ordenamentos infe-riores e secundários. Corresponde este momento centralizador à plena afirmação do estado como organização do poder. todo um sistema de autoridade manifestamente absoluta assinala essa fase inicial e preparatória cujo unitarismo se define mercê de um centro de direção histórica, posto no poder da realeza absoluta, tendo por sustentácu-lo legitimador a doutrina coerente da soberania.4
do contexto unitário podem ser observadas algumas “vantagens” ou aspectos positivos,
como a existência de um corpo burocrático único, responsável por uma economia de recursos
públicos e racionalização dos serviços prestados, e tendo ainda como consequência uma pos-
sível impessoalidade e imparcialidade dos agentes que exercem o poder. mas, certamente, as
“desvantagens” são ainda mais visíveis, como o distanciamento entre o indivíduo e o estado,
restrições à liberdade humana e uma sobrecarga de responsabilidades de pouca importância ao
núcleo decisório, que poderiam ser resolvidas de forma mais rápida por esferas locais autôno-
mas, beneficiando, desta forma, os interesses coletivos.5
A centralidade excessiva do poder político gerou novamente um clima de instabilidade
política, econômica e social. Política em razão da própria natureza e inviabilidade administra-
tiva do poder absoluto; econômica em decorrência do entrave ao desenvolvimento econômico
gerado pelos “desmandos” do monarca. em termos sociais, não havia receptividade das cama-
das populares ao poder abusivo de uma monarquia ostensiva de riquezas em detrimento de
uma maioria desprovida de uma efetiva prestação de serviços públicos. nesse contexto soma-se
a atuação da incipiente classe burguesa, de certa forma detentora de poder econômico, em
razão do desenvolvimento do comércio, e de alguns expoentes da classe literária em sua luta
4 BonAvides, Paulo. Ciência Política. 11. ed., são Paulo: malheiros, 2005, p. 49-50.5 BonAvides, Paulo. Ciência Política. 11. ed., são Paulo: malheiros, 2005, p. 50-51.
235
contra o absolutismo, como John locke, que se destaca posteriormente como um dos grandes
nomes do liberalismo.
o eStado liberal
Conforme citado anteriormente, segundo a concepção marxista ou, da mesma forma,
a teoria materialista da história, deficiências ou necessidades da realidade material acarretam
transformação no nível das ideias, onde estão situadas as instituições políticas e dentre elas,
o próprio estado. novamente se faz necessária a reestruturação do poder político, ou seja, a
forma de estado unitário estava apresentando sinais de saturação.
o estado centralizador cede e decai historicamente quando prepara as modalidades descentralizadoras e até mesmo federativas; quando as concepções mais democráticas e menos autoritárias do poder, fundadas nos postulados do consentimento, de algu-mas doutrinas contratuais (não todas, porquanto hobbes constitui aqui exceção das mais conhecidas) abalam todo o eixo do autoritarismo estatal, contrapõem a supre-macia individual à hegemonia do ordenamento político, fazem o estado meio e não fim, rebaixam-lhe a valorização social, democratizam a concepção do poder, nas suas origens, no seu exercício e nos seus titulares, separam o estado da pessoa do soberano. graças a essa transpersonalização do princípio político, ou com mais propriedade, mediante essa exteriorização institucional – ou constitucional, segundo linguagem cara ao liberalismo –, acaba o estado por objetivar-se socialmente como produto do consenso das vontades individuais.6
durante a decadência do estado absolutista, a influência da burguesia foi imprescindível
para a instituição de outra forma histórica de estado: o estado liberal. Fortalecida economi-
camente e inicialmente apoiada pelo recém-constituído proletariado, a chamada “burguesia
revolucionária” alterou a estrutura política do estado ainda impregnado pelos resquícios feu-
dais. embora tendo início na monarquia absolutista, a burguesia aprofundou a separação entre
o público e o privado, extremamente necessária para sua consolidação na esfera política.
o liberalismo econômico instituído neste período retrata as razões da burguesia revolu-
cionária em minimizar a influência do estado na área econômica, noções presentes na obra de
Adam smith intitulada a A riqueza das Nações, onde este expoente do liberalismo desenvolveu
a teoria da “mão invisível”, afirmando existir uma lógica interna por trás da aparente com-
plexidade e desorganização do processo de produção de mercadorias, ou seja, a economia de
mercado se autorregula, sem a interferência estatal. segundo os postulados liberais somente o
indivíduo tem o poder natural de maximizar benefícios em seu proveito; o estado, de natureza
burocrática, não tem esse dom natural e, portanto, sua interferência prejudica o desenvolvi-
mento comercial e afeta o bem-estar dos indivíduos envolvidos no processo.
6 op. cit. p. 50.
236
de maneira geral, o que anteriormente era determinado pelo estado absolutista mercan-
tilista, no liberalismo econômico cabe ao consumidor, que responderia pelas questões centrais
do processo produtivo: o que produzir, como produzir, onde e como produzir. em outras
palavras, o mercado de compra e venda de mercadorias regularia a atividade produtiva, ou
seja, determinada mercadoria seria produzida somente se necessária. da mesma forma que
Adam smith, John locke exerceu papel de destaque ao expor a teoria do estado “vigia” ou
“guarda-noturno”, enaltecendo o papel da sociedade civil na regulação da atividade econô-
mica, enquanto que a instituição política permaneceria como um ente protetor que apenas
supervisiona o funcionamento do então denominado “livre-comércio”.
nesse contexto, a noção do contrato social foi fortalecida, com exceção do contrato abso-
lutista proposto por thomas hobbes, pois a racionalidade da revolução burguesa, pautada nos
postulados liberais, previa uma organização baseada no sistema de leis, o que, uma vez instituí-
do, facilitava até mesmo a tarefa do estado, pois poderia apenas verificar sua aplicabilidade.
o eStado liberal-deMoCrátiCo
o contexto liberal, desde sua implantação, caminhou ao lado do contexto democrático.
tanto que dificilmente seria possível uma separação temporal entre ambos. no estado liberal,
ou ainda, no estado liberal-democrático, a humanidade presenciou significativos avanços em
termos de direitos e garantias individuais. os direitos inalienáveis do homem deveriam ser
preservados e poderiam estar expressos na garantia à propriedade, entendida por locke como
a liberdade, a vida e os bens materiais. estas conquistas poderiam ser exemplificadas pelo sur-
gimento dos partidos políticos – a partir do século XiX, e o mecanismo para representação da
sociedade civil, o sufrágio universal.
mas a revolução burguesa e o liberalismo democrático, apesar das conquistas da sociedade
civil, não atingiram as expectativas em termos de emancipação humana, pois, tendo em vista o
caráter excludente do sistema capitalista agravado pelas consequências da livre-concorrência, a
disputa desenfreada e a acumulação desigual do capital provocaram um aprofundamento das
desigualdades sociais. Como consequência, o foco político desloca-se para a implementação
de algumas medidas de caráter popular, ou de bem-estar-social, por isso, se que denominou o
período do estado de Bem-estar social.
essa nova estrutura de estado foi se delineando na medida em que as crises se acirraram,
pois, segundo a concepção marxista da história do sistema capitalista, as crises econômicas são
geradas em seu próprio seio, ou seja, o sistema produz suas crises ou seus “grilhões”. A livre-
concorrência, instituída pela política liberal, provocou a eliminação daqueles que não sobrevi-
veram a uma espécie de “seleção natural” das indústrias, havendo o fechamento de pequenas
empresas que não se adequaram ao jogo de forças do livre mercado e a inauguração da fase
237
monopolista do capitalismo. tendo em vista o crescente desemprego, os trabalhadores das
indústrias, o que a teoria marxista denomina proletários, passam a se organizar em sindicatos,
que acabam se fortalecendo por meio de algumas conquistas trabalhistas, como a redução da
jornada de trabalho, descanso semanal e férias anuais remunerados, além de outras conquistas
obtidas por sucessivos embates entre a classe burguesa e a classe trabalhadora.
dentre outras determinações de cunho social, a chamada política protecionista do estado
de Bem-estar social visava ao resgate do emprego para a significativa massa de trabalhadores
que permaneciam à margem do mercado de trabalho. Para tanto, o poder público absorveu
parte desta mão de obra nas empresas estatais, além de oferecer subsídios às empresas para ga-
rantir a empregabilidade.
Contrariando os postulados da política- conômica liberal, essa postura do poder público
se fortalece, nas primeiras décadas do século XX, pela teoria do inglês John maynard keynes,
que prevê uma interferência direta do estado na política econômica, tanto no mercado quanto
na esfera social. A política financeira do estado “social” acarretou severas críticas ao custo dessa
orientação política, pois a manutenção da máquina administrativa, ampliada para atender às
novas determinações do estado provedor, advinha basicamente da cobrança de impostos da
classe burguesa e de alguns segmentos de posição financeira privilegiada.
Apesar das críticas quanto ao custo final da manutenção do estado de Bem-estar-social,
ou seja, agravamento dos déficits públicos e consequente elevação das taxas inflacionárias, essa
orientação política econômica esteve presente por quase todo século XX, principalmente nos
países centrais. todavia com o crescimento do sistema capitalista, em meados da década de
1970, e a necessidade de expansão do capital em busca de novos mercados no cenário interna-
cional, a economia de mercado volta a ganhar força com o pensamento neoliberal.
o FeNôMeNo “Globalização”
termos como “globalização”, “mundialização do capital”, “internacionalização da econo-
mia” e “sociedade global” podem ser utilizados para denominar esse processo constantemente
citado pela mídia, autoridades governamentais e estudiosos, principalmente nas décadas finais do
século passado. o fenômeno foi caracterizado por polêmicas desde sua origem e conceituação até
a viabilidade econômica, política e, principalmente, social do referido mercado mundial.
Alguns justificam esse clima de incertezas em que o processo de globalização está inse-
rido pela novidade que representa. outros argumentam que a internacionalização do capital,
obviamente não nas dimensões atuais, já é um processo bastante conhecido. segundo essa
concepção, a busca pelo caminho das índias pode ser considerada um indício da internacionali-
zação do capital. o comércio desenvolvido entre a metrópole portuguesa e a recém-descoberta
238
colônia do Brasil configurava relações comercias além território. os tratados de comércio entre
inglaterra e Portugal, da mesma forma, representavam a internacionalização da economia.
karl marx ao escrever “o manifesto Comunista”, em 1848 , já apontava sinais de uma
internacionalização do capital, com o avanço do capitalismo em diversas partes do globo.
Pela exploração do mercado mundial, a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para desespero dos reacionários, ela rou-bou da indústria sua base nacional. As velhas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a ser destruídas diariamente [...] no lugar do antigo isolamento de regiões e nações auto suficientes, desenvolvem-se um intercâmbio universal e uma universal in-terdependência das nações. e isto se refere tanto à produção material como à produção intelectual. As criações intelectuais de uma nação tornaram-se patrimônio comum [...] das numerosas literaturas nacionais e locais nasce uma literatura universal.7
mas o que presenciamos atualmente, precisamente desde o início da década de 1970, é
a mundialização do capital financeiro. A lógica do capital se manifesta de uma forma distinta
daquela observada após a revolução industrial, onde havia a reprodução dos meios materiais
de produção. A mundialização do capital se desenvolve através da reprodução do capital fi-
nanceiro, do capital rentista. neste novo contexto, há uma maior movimentação de capitais
no mercado financeiro, em detrimento do investimento produtivo, razão pela qual se discute
ainda o “fim do trabalho” ou da “sociedade do trabalho”.
o mais brutal resultado dessas transformações é a expansão, sem precedentes na era moderna, do desemprego estrutural, que atinge o mundo em escala global. Pode-se dizer, de maneira sintética, que há uma processualidade contraditória que, de um lado, reduz o operariado industrial e fabril; de outro, aumenta o subproletariado, o traba-lho precário e o assalariamento no setor de serviços [...] há, portanto, um processo de maior heterogeneização, fragmentação e complexificação da classe trabalhadora.8 (grifos do autor).
Alguns estudiosos ressaltam a inevitabilidade da chamada globalização. segundo esta
concepção, não há como permanecer alheio aos efeitos deste processo, pois são decorrentes de
uma determinada etapa de transformações do capitalismo:
o mundo mudou muito ao longo do século XX. não é mais apenas uma coleção de países agrários ou industrializados, pobres ou ricos, colônias ou metrópoles, depen-dentes ou dominantes, arcaicos ou modernos. A partir da segunda guerra mundial , desenvolveu-se um amplo processo de mundialização de relações, processos e estru-turas de dominação e apropriação, antagonismo e integração. Aos poucos, todas as
7 CoggliolA, osvaldo (org.). O manifesto comunista. são Paulo: Boitempo, 1998, p. 43.8 Antunes, ricardo. Adeus ao trabalho? ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. são Paulo: Cortez, 1999, p. 41-42.
239
esferas da vida social, coletiva e individual, são alcançadas pelos problemas e dilemas da globalização”.9
de acordo com esta concepção, as nações tornaram-se interdependentes, não há como as
sociedades nacionais desenvolverem projetos econômicos desvinculados do sistema mundial e
essa situação não se manifesta apenas no âmbito econômico, mas também em nível político,
social e cultural.
A intensificação do processo de mundialização do capital pode ser visualizada no início da
década de 1970, período em que o sistema capitalista começa a apresentar sinais de saturação.
os primeiros sinais desse período de recessão econômica puderam ser observados inicialmente
nas grandes potências, sobretudo nos estados unidos, Japão e europa ocidental. As economias
desses países sentiam os efeitos de um capitalismo instável, com elevações entre crescimento
e recessão na economia. essa instabilidade econômica se caracterizava por um capitalismo não
sustentado, em quea lógica do capital não se realizava de maneira completa.
nesse contexto, as grandes potências econômicas passaram a adotar medidas de con-
tenção de custos na produção, visando a um aumento na margem de lucro no produto final.
o resultado manifestou-se por um acirramento na concorrência entre as grandes empresas,
que procuravam expandir seus investimentos em outras partes do globo, principalmente em
regiões onde os custos de produção seriam minimizados com uma maior disponibilidade de
matéria-prima, isenções fiscais e facilidades, por parte dos governos nacionais, na instalação de
novas indústrias e pela exploração de mão de obra barata. As chamadas transnacionais tinham
como objetivo a recuperação da estabilidade do crescimento econômico, criando as condições
favoráveis para ampliação dos níveis de acumulação de capital anteriores à crise.
Além das reformas de cunho econômico, voltadas à reestruturação do capital, nas últimas
décadas, importantes acontecimentos mudaram o cenário político e econômico mundial, com
consequências favoráveis ao avanço do comumente chamado processo de globalização: a queda
do muro de Berlim, em 1989, com a unificação da Alemanha, a crise do socialismo no leste
europeu, que desembocou na expansão da economia de mercado em localidades até então
submetidas às premissas do socialismo, e o fim da Guerra Fria, iniciada em 1946.
Com a “revolução europeia de 1989”, a história sofreu grandes alterações e tomou um
novo rumo, dando início a um período em que se estabelecem novas correlações de forças. no
período da Guerra Fria, havia blocos antagônicos e consolidados: o capitalismo e o socialismo.
duas superpotências, estados unidos e união soviética, detinham um grande poderio militar
e nuclear. representavam dois blocos de poder, com sistemas econômicos e políticos opostos.
As reformas efetuadas pelo governo mikhail gorbachev foram o início de profundas al-
terações que refletiram diretamente no avanço do processo de globalização, com a introdução
9 iAnni, octavio. Teorias da globalização. 4. ed. rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, p. 35-6.
240
paulatina dos mecanismos de mercado, em substituição aos mecanismos de uma economia
centralmente planificada. da mesma forma, a queda do muro de Berlim, em 1989, a conse-
quente reunificação da Alemanha possibilitaram o desenvolvimento do capitalismo nos países
socialistas do leste europeu.
Países cujo poder político estava centralizado no estado-nação, que detinha total con-
trole sobre as esferas política, econômica e social, cederam à nova ordem mundial. economias
fechadas, voltadas à proteção das indústrias nacionais, com reservas de mercado para determi-
nados produtos, se submeteram à dinâmica do mercado internacional, abrindo suas fronteiras
para a entrada de um grande número de produtos estrangeiros.
dessa forma, o processo aqui denominado mundialização do capital pode ser definido
como uma reestruturação do capitalismo em novas bases econômicas, como um meio de recu-
perar as taxas de acumulação das décadas anteriores. esta reestruturação não se manteve apenas
na base econômica, mas se estendeu às esferas políticas e sociais das sociedades envolvidas pelo
processo de mundialização do capital. tendo em vista a viabilização das medidas adotadas
para a reestruturação capitalista, foram necessárias determinadas políticas que possibilitassem o
pleno desenvolvimento do processo.
integradas nesse contexto, surgem denominações como privatizações, desregulamentação
das economias, aberturas de mercado, desterritorialização, estado mínimo e exclusão social,
viabilizadas por um programa de governo específico, o neoliberalismo. o programa neoliberal
possibilita a implantação de reformas necessárias ao desenvolvimento e reprodução do capi-
talismo financeiro, podendo ser caracterizado como a expressão política da mundialização do
capital, especificamente, como foi salientado, do capital financeiro.
a exPreSSão PolítiCa do ProCeSSo: o NeoliberaliSMo
A partir da década de 1970 um movimento ideológico vem conquistando espaço em nível
mundial, o neo-liberalismo. esse modelo de orientação política e econômica, que constitui a
expressão política da globalização, se caracteriza por uma oposição ao estado intervencionista
e de Bem-estar social, tendo como consequência natural um elevado crescimento do modelo
econômico capitalista. inicialmente implementado pelo governo de margaret thatcher (1979)
e, posteriormente por ronald reagan (1981), o projeto neoliberal de governo adquiriu âmbito
mundial, tornando-se atualmente parte integrante do processo de mundialização do capital.
o neoliberalismo foi desenvolvido inicialmente por Friedrich hayek, em 1944. Pouco
depois, foi formada uma corrente neoliberal que contou com a participação de milton Fried-
man, karl Popper, Walter lipman, entre outros. na suíça foi fundada a sociedade de mont
Pèlerin, com o objetivo de: “[..] combater o keinesianismo e o solidarismo reinantes e preparar
241
as bases de um outro tipo de capitalismo, duro e livre de regras para o futuro”. 10 essa orienta-
ção ideológica não foi bem recebida de imediato, pois, seguindo orientação keynesiana, de forte
intervenção estatal na economia, o capitalismo demonstrou grande fase de crescimento durante
as décadas de 1950 e 1960. Por essa razão, os postulados neoliberais não representavam uma
orientação que pudesse trazer resultados ainda melhores.
no entanto, a partir do início da década de 1970, o modelo econômico capitalista come-
ça a apresentar sinais de instabilidade econômica e um acelerado processo inflacionário. esses
fatores propiciaram a ascensão do modelo teórico neoliberal, pois, segundo sua concepção, as
origens da crise estavam no controle excessivo do estado na economia.
de acordo com os postulados liberais, o homem é um ser dotado de elementos naturais
que induzem e regulam suas ações no plano da realidade, no âmbito econômico, político ou
cultural. também é naturalmente utilitarista e racional, dotado de razão suficiente para tomar
decisões que visem à maximização de seu bem-estar social. o estado, por ser uma instituição,
não tem os atributos naturais capazes de maximizar benefícios, pois interfere nas manifestações
naturais dos agentes econômicos. o mercado seria o responsável pela interação entre os diver-
sos interesses individuais, tendo como resultado não um caos na sociedade, mas uma harmonia
entre os interesses opostos.11
o todo social harmônico da teoria durkheiniana, com relação à divisão social do trabalho,
possibilita certa analogia com o ideário neoliberal. segundo durkheim, a divisão social do tra-
balho origina solidariedde se o todo permanecer em harmonia, porque, se houver interferência
de fatores externos, haverá uma divisão anômica do trabalho. Portanto, o problema não é a
divisão social do trabalho em si, mas o que possa prejudicar sua harmonia.
Com relação ao neoliberalismo, se o livre mercado regular a economia haverá um “todo
econômico harmônico”; havendo interferência externa, no caso, a regulação por parte do es-
tado, a interação entre os diferentes interesses particulares não se realiza e, com isso, haverá
uma sociedade anômica. segundo a concepção funcionalista, as elevadas e crescentes taxas de
desemprego e a exclusão social são ainda partes “doentes” de um organismo saudável, que
poderia ser visualizada pela política neoliberal. Portanto, um dos principais componentes do
ideário neoliberal é a desestatização da economia, pois, sem a regulamentação do poder estatal,
o mercado mantém a ordem natural do sistema.
essa determinação de desregulamentação não se manifesta apenas no plano econômico,
pois também consta no programa político neoliberal a flexibilização das relações trabalhistas, o
que significa uma oposição ao protecionismo estatal no mundo do trabalho. A livre negocia-
10 Anderson, P. Balanço do neoliberalismo. in : Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o estado demo-crático. são Paulo: Paz e terra, 1996, p. 9. 11 CArCAnholo, r.A. A globalização, o neoliberalismo e a síndrome da imunidade auto-atríbuída. in: mAlA-guti, m.; CArCAnholo,r. A.; CArCAnholo, m. d (orgs.), Neoliberalismo: a tragédia de nosso tempo.são Paulo: Cortez, 1988, p. 18.
242
ção entre patrões e empregadores traria benefícios não somente aos trabalhadores, pois teriam
maior liberdade de escolha, mas, principalmente, ao processo de reprodução e acumulação do
capital, que teria maior liberdade nas relações contratuais. estudiosos apontam possíveis con-
sequências da flexibilização trabalhista: desmonte do mundo do trabalho, perda de garantias
trabalhistas até então consolidadas, precarização e informalidade do trabalho.
A adoção destas medidas integra uma estratégia global de modernização liberal, que procu-
ra seguir as regras estabelecidas pelo “Consenso de Washington”. no final de 1989, membros
dos organismos de financiamento internacional (Fundo monetário internacional -- Fmi, Ban-
co interamericano de desenvolvimento -- Bid e Banco mundial), funcionários do governo
americano e economistas latino-americanos se reuniram para avaliar as reformas econômicas
implementadas na América latina. dessa reunião surgiram conclusões e recomendações que
acabaram funcionando como um “manual” da política neoliberal, conhecido como “Consenso
de Washington”.
As recomendações propostas pelo “Consenso de Washington” abrangem as seguintes áreas:
Disciplina fiscal. Altos e contínuos déficits fiscais contribuem para a inflação e fugas de capital.reforma tributária. A base de arrecadação tributária deve ser ampla [...]Taxas de juros. os mercados financeiros domésticos devem determinar as taxas de juros de um país. taxas de juros reais e positivas desfavorecem fugas de capitais e aumentam a poupança local.Taxas de câmbio. Países em desenvolvimento devem adotar uma taxa de câmbio com-petitiva que favoreça as exportações tornando-as mais baratas que no exterior.Abertura comercial. As tarifas devem ser minimizadas e não devem incidir sobre bens intermediários utilizados como insumos para as exportações.investimento direto estrangeiro. investimentos diretos estrangeiros podem intro-duzir o capital e as tecnologias que faltam no país, devendo, portanto, ser incenti-vados.Privatização. As indústrias privadas operam com mais eficiência porque os executivos possuem um ‘interesse pessoal’ direto nos ganhos de uma empresa ou respondem ‘àqueles que têm’. As estatais devem ser privatizadas. Desregulação. A regulação excessiva deve promover a corrupção e a discriminação contra empresas menores com pouco acesso aos maiores escalões da burocracia. os governos precisam desregular a economia.Direito de propriedade. os direitos de propriedade devem ser aplicados. sistemas ju-diciários pobres e leis fracas reduzem os incentivos para poupar e acumular riquezas.12 (grifos do autor).
em linhas gerais, o ideário neoliberal consiste em políticas voltadas à desestatização da
economia, com a minimização da interferência do estado; abertura dos mercados para desobs-
trução do comércio internacional, com o objetivo de estimular a concorrência com os produtos
12 AndrAde, Paulo roberto siqueira de. Economia política para o curso de Direito. rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2005, p. 29-30.
243
nacionais e propiciar o a modernização e desenvolvimento da estrutura produtiva; estabilização
monetária, a fim de atrair investimentos estrangeiros e um amplo processo de privatização.
Feita essas considerações sobre as várias teorias econômicas desenvolvidas ao longo da
história econômica mundial, buscar-se-á, a seguir, fazer uma análise da expansão e difusão do
capitalismo neste início de milênio e suas influência no sistema produtivo.
CreSCiMeNto do CaPital FiNaCeiro e Sua Globalização
no final do ano de 2008, o mundo foi surpreendido com a notícia de uma grave crise eco-
nômica. inicialmente a notícia passou despercebida até que os primeiros bancos começaram a
fechar suas portas e os primeiros investidores começaram a ter prejuízos. A partir de então, a luz
amarela acedeu, o mundo econômico passou a se preocupar e os governos começaram a agir.
o crescimento e a difusão do capital no mundo não é um fenômeno novo, porém ganhou
novos aliados a partir da evolução das formas de comunicação e armazenamento de dados e
avançou de uma forma como nunca antes havia ocorrido. A informática, aliada aos sistemas de
transmissão de dados via satélite, permitiu a reformulação e mudança nas formas de alocação
do capital financeiro, simultaneamente, e em tempo real, em várias partes do mundo.
segundo kregel13, essa forma de investimento vem crescendo acentuadamente em razão
de que o capital produtivo, constituído principalmente pelas fábricas, cria certa ineficiência por
não poder ser deslocado de um local para outro sem custo elevado. A dificuldade apresentada
pela imobilidade no espaço físico e no temporal é uma das desvantagens do capital produtivo
em relação ao capital financeiro. no entanto, pode-se afirmar que o aumento na distribuição
do sistema de produção global com a evolução das grandes empresas transnacionais, principal-
mente através das networks14, favoreceu as mudanças nas taxas de juros e do câmbio, uma vez
que, essa forma de produção, fragmentada se beneficia da alocação internacional de recursos
de produção visando a redução de custos15. A produção transnacional não tem padrão de dis-
tribuição espacial muito definida. A localização de uma planta industrial depende, em muitos
casos, de fatores localizados nos países alvo que influenciam as decisões dos investidores. estes
fatores podem estar fundamentados na estabilidade política regional, na legislação ou no grau
de regulação sobre o sistema produtivo que, de certa forma, venha interferir nos custos relati-
vos ou na incerteza de remessas de lucros aos acionistas. na produção fragmentada, utilizada
principalmente em produtos com alta tecnologia, é comum a existência de empresa especiali-
zada em um único componente que será fornecido para o mundo todo. esses produtos, que
13 kreger. Jan A. riscos e implicações da globalização financeira para a autonomia de políticas nacionais. in: Globalização financeira: ensaios de macroeconomia aberta. rio de Janeiro: vozes. 2004, p.37-38. 14 netWorks ou redes de produção são formas de produção fragmentada onde partes de um produto são pro-duzidas em vários países, montadas em um outro e comercializadas nos demais. 15 sobre o assunto ver gilberto dupas. Economia global e exclusão social. rio de Janeiro: Paz e terra. 1999.
244
geralmente têm fortes inovações tecnológicas, normalmente são apresentados ao consumidor
em três fases. A primeira fase do lançamento do produto, denominada de inovação, é destinada
para determinada classe social denominada classe A dos países avançados que possuem alto
poder aquisitivo, que apreciam novidades e tem tendência ao consumo. A segunda fase do ciclo
de vida desses produtos ocorre com a maturação, isto é, uma vez aprovados na primeira fase, os
produtos são aperfeiçoados e produzidos em uma escala maior edestinados à classe B dos países
ricos e à classe A dos países emergentes. A terceira fase é a de produção em massa, produção em
grande escala, que reduzirá os custos e proporcionará a redução nos preços. nesse caso, o pro-
duto está consolidado e será acessível para as demais classes sociais. Atualmente, com a queda
das barreiras tarifárias e não tarifárias entres os países que vêm transformando o mundo em um
só mercado, favorece-se o aparecimento de novos bens que são ofertados constantemente aos
mercados consumidores, provocando o que schumpeter16 denominou de “destruição criadora”
quew impulsiona ainda mais a competição e a concorrência entre as empresas.
Por outro lado, o crescimento da produtividade em consequência da difusão tecnológica,
da diversificação das plantas de produção e da globalização dos mercados favoreceu o aumento
na liquidez das empresas, tornado-as capitalizadas financeiramente para reagirem rapidamente
às condições de mercado. dessa forma, a empresa poderá ter um portfólio diversificado, adap-
tando-se às variações de mercado que proporcione maior rentabilidade.
segundo Coutinho e Belluzzo17, a partir dos anos 1990 generalizaram-se a consciência a
respeito do peso e da influencia dos ativos financeiros nas economias modernas. o crescimento
dos ativos financeiros na composição da riqueza social privada teve avanços velozes em pouco
mais de uma década. nas economias capitalistas, principalmente nos países desenvolvidos, a
classe média passou a deter importantes carteiras de ações ou títulos, tanto diretamente quanto
através dos fundos de investimentos e de capitalização. esse processo de acumulação de ativos
financeiros tornou-se, em muitos casos, fonte permanente de geração da riqueza capitalista.
nos estados unidos, principalmente, tornou-se tradição, nas famílias de classe média, a com-
pra de ações visando acumular poupança para formação dos filhos e aposentadorias.
Como vem ocorrendo com as pessoas físicas em todo o mundo, as empresas também
em razão da existência de superávit de ativos financeiros, ainda que por tempo limitado, e da
facilidade de sua mobilização para investimentos no mercado financeiro torna-se um atrativo
para as estas aplicações. vários são os produtos ofertados pelo mercado financeiro são atraídas
por excedentes monetários contidos na liquidez global. As bolsas de valores18, em razão do
16 sChumPeter, Joseph Alois. Teoria do desenvolvimento econômico: uma investigação sobre lucros, capital, crédito, juro e o ciclo econômico. tradução maria silvia Possas. 3 ed. são Paulo: nova Cultural 1988, p.5017 Coutinho, luciano; Belluzzo, luiz gonzaga.“Financeirização” da riqueza, inflação de ativos e decisão de gastos em economias abertas. in Globalização financeira: ensaios de macroeconomia aberta. rio de Janeiro: vozes. 2004, p.59. 18 sobre este assunto ver Francisco silva Cavalcante Filho. Mercado de Capitais. CnBv. 1998.
245
fuso horário global, funcionam 24 horas por dia e quando uma fecha a outra está abrindo com
ofertas de ações e ganhos de curto, médio e longo prazo. há, também, as bolsas de merca-
dorias e mercado futuro que comercializam as safras de commodities e os contratos de opções.
este procedimento de comercialização das safras, que são realizadas várias vezes antes de sua
efetiva entrega, teve sua origem no segundo milênio desta era na europa, onde os mercadores
adquiriam o direito internacional de livre transito de suas mercadorias. nessa época, surgiram
os agentes dispostos a absorver riscos de preço através de operações a termo. A consolidação
desses procedimentos veio ocorrer no Japão com os recibos de arroz depositados em ozaka e
edo e foram sendo desenvolvidos ao longo do tempo, chegando aos nossos dias. o mesmo
ocorre com os contratos de opção. Atualmente na Bm&F no Brasil existem contratos futuros
para ouro, dólar comercial, dólar flutuante, depósitos interfinanceiros, títulos da divida exter-
na, café, boi, algodão, milho, açúcar e soja.
outro instrumento de acumulação financeira, que surgiu após a crise mundial iniciada
nos estados unidos nos anos 30 do século XX e que se alastrou pelo mundo levando à condi-
ção de miséria grande parte dos trabalhadores desempregados, são os fundos de capitalização de
previdência privada. os mutual funds, ou fundos mútuos foram criados no embalo das ideias
keynesianas e do wellfare states 19visando dar aos trabalhadores e a seus dependentes condições
de obter aposentadoria e/ou pensão. esses fundos, em razão de seus objetivos, ou seja, de
fornecer mensalmente aposentadoria e pensão aos seus participantes e dependentes, mantém
grande parte de seus ativos em moeda, aumentando ainda mais a liquidez mundial de ativos
financeiros.
esse processo de financeirização não ficou restrito às fronteiras nacionais. embora uma
grande parcela dos ativos financeiros pertença aos residentes, com a liberação dos mercados de
cambio e desregulação dos controles sobre os fluxos de capitais, cresceu a participação investi-
dora dos estrangeiros.
Com a liberação dos mercados e a rapidez de retorno do capital investido, embora os
investimentos estrangeiros diretos tenham alcançados, a partir dos anos 1970, altos volumes
nos paises emergentes o capital financeiro de curto prazo tem tido aplicações muito mais altas.
Baumann20 alerta que esses movimentos provocam temores de que as mobilidades crescentes
possam alimentar movimentos especulativos em grande escala, aumentando os riscos para as
diversas economias envolvidas.
em relação aos investimentos no setor produtivo no caso do Brasil, por exemplo, se-
gundo dados da soBeet - sociedade Brasileira de estudos de empresas transnacionais21,
19 Wellfare States o estado do bem-estar social, foi proposto por John mainardes keynes como forma de amenizar a crise econômica que atingiu os países capitalistas na década de 1930. 20 BAumAnn, renato (org.) O Brasil e a economia global. rio de Janeiro. Campus soBeet.1996.p.3421 dados apresentados no Boletim da SOBEET, ano vii, nº 52 , 28/01/2008.
246
os ingressos recentes de investimentos estrangeiros diretos (ide)22 atingiram o valor de us$
34,6 bilhões em 2007, tendo sido o maior valor já registrado em toda a série histórica do Banco
Central do Brasil, iniciada em 1947, superando os períodos das privatizações, ocorrido entre
1998 e 2000, quando a o ingresso de capital estrangeiro atingiu 32,8 bilhões de dólares. esses
valores colocam o Brasil entre os países que mais foram beneficiados por estes investimentos
ficando, abaixo apenas da China, incluído hong kong, méxico e Cingapura. dados da oCde
- organização para Cooperação e desenvolvimento econômico estimam que os investimentos
diretos estrangeiros no mundo foram de 1,8 trilhões de dólares em 2007. embora esses núme-
ros sejam significativos, representam muito pouco em relação ao capital financeiro que circula
diariamente em todas as bolsas de valores do mundo. somente durante a crise financeira ame-
ricana ocorrida recentemente, que colocou o sistema financeiro mundial no olho do furacão,
perdeu-se cerca de us$ 17 trilhões de dólares, isto é o equivalente a 13 vezes o PiB brasileiro e
quase 10 vezes o total de investimentos estrangeiros que circularam no mundo em 2007.
Ainda segundo kregel23 a engenharia financeira tem inovado os mercados financeiros,
construindo novos conceitos dos vencimentos de investimentos de curto ou longo prazo. se-
gundo ele, os títulos de vencimento de 30 anos eram considerados de longo prazo pelos investi-
dores, uma vez que permaneciam até seus vencimentos de posse dos mesmos. Atualmente estes
mesmos títulos são transformados em, no mínimo, 61 títulos derivativos com taxa de juros zero
e vencimentos variando de 6 meses a 30 anos. nestas circunstancias, esses derivativos podem
ser comercializados e repassados para qualquer parte do mundo através das varias formas de
investimentos que são ofertadas pelos bancos múltiplos. um outro mecanismo que permite ao
investidor de capital financeiro a garantia de redução de risco ao retorno de seu capital são hed-
ging, um tipo de seguro cambial que reduz as possibilidades de perdas. Foram esses derivativos
que deram origem à atual crise financeira americana que afetou o sistema financeiro de vários
países, dentre eles estados unidos, Japão e China. os principais interessados nestes tipos de
investimentos de curto prazo que oferecem ganhos fáceis são os capitais líquidos que compõem
o portfólio das empresas supervitárias, das pessoas físicas e dos fundos mútuos espalhados pelo
mundo.
mas, se os investimentos forem em ide, tornam-se mais interessantes para o país re-
ceptor, pois diferentemente do capital tomado como empréstimo, esses tipos de investimento
não afetam a dívida externa e não são afetados pela taxa de juro e a variação cambial. os ide
também são geradores de emprego e promovem a distribuição de renda, uma vez que são in-
vestimentos fixos em capital produtivos que não podem ser removidos com facilidade de um
país para outro.
22 investimentos diretos estrangeiros (ide) são capitais destinados ao setor produtivos. 23 op.cit. p. 40.
247
todavia, o crescimento dos investimentos tipo ide depende do grau de risco que o país
hospedeiro oferece, ou seja, quanto maior for a dificuldade apresentada para o retorno do ca-
pital a ser investido, menor será o portfólio das empresas. A regulação dos mercados com bar-
reiras tarifárias e não tarifárias, as instabilidades políticas e as inseguranças jurídicas são alguns
dos fatores que podem elevar os riscos de investimentos estrangeiros diretos (ide). então, se
cria um impasse entre os interesses dos países emergentes, que têm poupança insuficiente para
alavancar seu crescimento e, portanto, necessitam de ide, e os países detentores de capital e
tecnologia. se o recebedor de ide impõe políticas restritivas para contrabalançar a crise do
balanço de pagamento, os investimentos estrangeiros poderão irão embora.
a CriSe do CaPital FiNaNCeiro No MuNdo Globalizado
o veloz desenvolvimento das inovações financeiras nos últimos anos, principalmente
pela técnica de hedge através dos derivativos, técnicas de alavancagem, modelos matemáticos
para gestão de riscos associadas à intensa informatização dos mercados, permitiu um avanço
espantoso o volume das transações financeiras de curto prazo simultaneamente em todos os
mercados. Atualmente os mercados estão interligados 24 horas por dia na maioria das grandes
instituições financeiras que atuam no sistema. estima-se, que em meados de 2008, circulavam
cerca de 190 trilhões de dólares em ativos financeiros no mundo24. desses ativos cerca de 61
trilhões de dólares são no mercado acionários que circulam pelas bolsas de valores, os demais
ativos são derivativos originários de títulos com vencimentos de longo prazo que são fraciona-
dos em valores menores e comercializados em todo mundo.
Com a globalização e facilidade das comunicações, as blindagens e os isolamentos de
mercados tornaram-se impossíveis de serem realizados. Atualmente, a maiorias das economias
dinâmicas estão interligadas, principalmente, através dos sistemas de créditos e dos mercados
acionários.
dessa forma, os excedentes financeiros das empresas, dos fundos mútuos e das pessoas
físicas vão ser transformados em “papéis” oriundo de ativos como ações e derivativos que ren-
dem juros e dividendos para seus detentores.
o comércio exterior, através dos ACC (adiantamento de contratos de câmbio), também
é um dos grandes usuários do sistema internacional de créditos. As empresas exportadoras são
grandes usuárias desse mecanismo em razão do intervalo dos fluxos financeiros que ocorre
entre a fase de venda, produção, entrega e recebimento nas comercializações e dependendo do
produto, o intervalo entre a venda e o recebimento pode ser demeses e até anos. esses ativos
financeiros são fornecidos pelos grandes bancos internacionais, uma vez que as empresas com-
24 dados publicados na revista época n. 542 de 6/10/2008, p. 43
248
pradoras já possuem seus órgãos financiadores e, em muitos casos, como o Brasil, não possuem
bancos com capital suficiente para financiar a produção.
todavia toda esta engenharia financeira pode ter parte de sua estrutura fincada em bases
não muito sólidas e poderá comprometer todo o sistema, gerando uma crise que poderá afetar
toda economia. o sistema capitalista, historicamente, possui ciclos de crescimento que são
interrompidos por crises. esses “ciclos econômicos” foram estudados inicialmente por lord
overstone em 1857; centenas de economistas dos séculos XiX e XX também estudaram o
assunto, mas os estudos de maior destaque foram os de Joseph A. schumpeter 1939 (ciclos de
3 a 4 anos), simon kuznet em 1930 (ciclos de 15 a 20 anos), e nicolai kondrantieff 25 (ciclos
de 40 a 60 anos). Por definição, um ciclo é uma variação periódica para cima e para baixo nas
variáveis econômicas: produção, emprego, consumo, investimento etc. o ciclo é característica
inerente de mercados livres capitalistas, mas alguns autores marxistas e mesmo os liberais en-
quadram a teoria dos ciclos também nas economias planificadas26.
Certos autores abordam a questão de influências exógenas e endógenas no comportamen-
to dos ciclos, como aspectos culturais, sociais e institucionais, entre outros. um ciclo econômi-
co poderia ser simplesmente expansão, crescimento, contração, retração, recessão, ou depressão
com diversas causas, mas é óbvio que a teoria dos ciclos econômicos poderá ser confirmada
sempre com a máxima de que toda expansão será fatalmente seguida de uma retração e vice-
versa como se fosse uma lógica gravitacional.
na década de 1930, foram aplicados modelos econometricos e estatísticos, mas ainda as-
sim existem os céticos que bradam contra o empirismo, a falta de elementos e dados confiáveis
para confirmação das teorias e seu movimento cíclico.
os ciclos longos de kondrantieff são os mais aceitos academicamente e, por isso, mesmo
ele é o mais citado e famoso entre os economistas que estudaram os ciclos econômicos.
A pergunta entre os economistas é se o momento econômico que estamos vivendo seria
uma fase de um ciclo econômico?
um economista canadense chamado ian gordon, em 2007, criou uma forma de inter-
pretação dos ciclos econômicos de kondratieff introduzindo o conceito de estações do ano.
segundo ele, o momento que estamos vivendo seria o inverno. A primavera teve início com
o fim da segunda guerra mundial nos anos 50 do século passado, em que houve um “boom”
econômico. o verão ocorreu na década de 1960, com a euforia dos mercados, a criação e
expansão de formas de crédito e a prosperidade total e a interação dos novos mecanismos tec-
nológicos. Pela teoria de kondrantieff há uma recessão no meio de um ciclo, que nesse estudo,
25 nicolai kondrantieff, economista russo fundador da teoria do investimento de capital publicado no site www.cibergeo.org Acesso em: 2 jan. 2009.26 economias planificadas são economias socialistas ou comunistas que tiveram grande destaque até 1989 e atual-mente em uso apenas na ilha de Cuba.
249
é atribuída à inflação dos anos 70 e 80 do século XX, e um ajuste na prosperidade dos anos
anteriores.
Continuando a interpretação conforme as estações do ano, o outono ocorreu na década
de 90 com a explosão da internet, a confirmação da globalização, a apreciação27 dos ativos di-
versos e uma prosperidade nunca vista, principalmente nos países emergentes como a China e
a índia, adicionando combustíveis na fogueira econômica mundial. um exemplo desta apre-
ciação foi a explosão dos preços e demanda pelas commodities como ocorreu com o petróleo
chegou a us$ 120 o barril.
o inverno, que seria a recessão e, segundo kondrantieff, uma depressão, iniciou por volta
de 2000 com o excesso de liquidez e a riqueza gerada, alavancada pelos juros baixos e desregula-
mentação do mercado financeiro. Como consequência ocorreu o estouro da “bolha” financeira,
com quebra de grandes empresas e bancos.
Joseph Alois shumpeter28, um dos grandes economistas da escola austríaca, em sua te-
oria sobre a “destruição criativa”, criou uma nomenclatura para um ciclo, chamando as fases
de boom, recessão, depressão e recuperação, que também explica o momento que estamos
vivendo.
na verdade, desde o século Xvii, todas as crises financeiras são precedidas por bolhas.
no momento atual, a bolha de crédito começou a se formar no início do século XXi, isto é,
em 2001, logo após a crise das empresas de internet. naquela oportunidade, o Federal reserve,
banco central americano sob o comando de Alan greenspan, com objetivo de estimular a eco-
nomia reduziu a taxa de juro americana de 6% ao ano para 1% ao ano, durante dois anos se-
guidos. o dinheiro fácil, pelo crédito barato e em grande quantidade, fez o valor das moradias
nos estados unidos dobrarem de valor, estimulou os empréstimos sem critérios e garantias,
com base nos novos mecanismos de mercado. As bolsas de valores, lideradas pela Bolsa de nova
york, aprenderam a empacotar hipotecas imobiliárias e outros débitos dos consumidores em
papéis vendidos no mercado financeiros como títulos rentáveis e com garantia de resgate. essa
ficção financeira, liderada pelos derivativos, movimentou cerca de u$ 1,5 trilhão, ajudando
os bancos de investimentos a movimentar um volume de dinheiro de que, na realidade, não
tinham o controle. esses derivativos foram repassados para inúmeros bancos de diversos países
em todo mundo. quando os preços das casas hipotecadas começaram a cair e os endividados
deixaram de pagar as prestações dos imóveis, o processo todo começou a não dar certo. As ins-
tituições financeiras que estavam de posse dos títulos e não conseguiram recebe-los deixaram de
cumprir seus compromissos, provocando quebradeira geral e a crise de desconfiança em todo
sistema financeiro.
27 Apreciação refere-se a elevação dos preços dos ativos financeiros a um patamar muito alto denominado de “bolhas’. 28 op. cit. p. 141.
250
A avaliação dos economistas é de que a perda global no mercado acionário foi em torno de
17 trilhões de dólares, isto é, maior que o PiB dos estados unidos e 13 vezes o que produziu a
economia brasileira no ano passado29. As consequências foram o fechamento de vários bancos
de investimentos e prejuízos para varias empresas, principalmente as automobilísticas, que são
altamente globalizadas. empresas como a Ford, gm, toyota e honda tiveram quedas de apro-
ximadamente 50% em suas vendas nos estados unidos, outras empresas, como a general ele-
tric e a microsoft, não conseguiram rolar suas dívidas em razão da falta de crédito no mercado.
A crise chegou à europa, afetando a “zona do euro” e obrigando aos seus lideres a implementar
programas de urgência em socorro do sistema financeiros para evitar a falta de liquidez.
segundo lopes30, a recessão americana se propaga internacionalmente através dos seguin-
tes mecanismos: a) contração do crédito produzida pela redução da alavancagem no sistema
financeiro global e a fragilização dos bancos; b) destruição de riqueza em razão da queda dos
preços dos ativos (imóveis, ações e etc.); c) deterioração das expectativas sobre a evolução futura
da economia afetando as decisões das empresas; d) redução do crescimento das exportações
mundiais.
A contração do crédito deve afetar os países de maneira geral, principalmente os países
emergentes, que têm sua economia alavancada nas exportações e baixa poupança interna, como
é caso dos BriCs:Brasil, rússia, índia, China e outros países, como a Argentina e Chile.
segundo nouriel roubini (2010), os países emergentes, nos últimos anos, têm experi-
mentado algumas variações do tipo: pobreza-riqueza-pobreza. segundo ele, são muitas as razões
para que isso ocorra. Algumas são os déficit em conta corrente provocados, em grande parte,
pelos déficit fiscais. o estado, buscando realizar as funções alocativas dos recursos para ofere-
cer os serviços propostos, acaba se endividando e, em muitos casos, afetando sua soberania.
Pedro C. de mello e humberto spolador (2010) afirmam que, nos últimos cinco séculos,
vê-se que a história registrou um grande número de crises financeiras. Algumas de pequena
monta, mas outras de grande importância para o país que a sofreu e poucos reflexos para os
demais. todavia, aconteceram crises que marcaram a história econômica mundial.
CoNSidraçÕeS FiNaiS
A crise atual, até o momento, parece não ser tão grave quanto a crise de 1929, que abalou
a economia norte-americana e acabou atingido todo o mundo. na ocasião, os governantes
demoraram a agir e, como consequência, aconteceu o fechamento de grandes quantidades
de bancos, a redução do crescimento econômico e o aumento do desemprego. Além dos es-
tados unidos, a europa e o Brasil também foram atingidos pelo desemprego e desequilíbrio
no balanço de pagamentos. na ocasião, o mundo capitalista apoiava-se da teoria Clássica e
29 revista Exame edição 927, p. 2230 loPes, Francisco. Dimensão da crise. rio de Janeiro: iePe, 2008. disponível em: www.iedecdg.com
251
neoclássica, segundo o qual o mercado ditava as normas de condução da economia, sem a
intervenção do governo.
A solução para a crise veio, conforme já citado no presente artigo, através das ideias de
John maynard keynes, cuja tese central está na interferência do setor público na economia. A
adoção do ideário keynesiano levou o estado a intervir no setor econômico não apenas como
regulador, mas como também na produção direta de bens e serviços. Com o fim da crise eco-
nômica e a volta do crescimento mundial, as ideias de keynes foram abandonadas e a teoria de
mercado voltou com toda força através de uma nova ideologia conhecida como neoliberalismo.
As ideias centrais desta nova ideologia consistem na redução do setor público na economia e a
volta às leis de mercado.
Considerando as ações dos governos dos países atingidos pela atual crise, injetando gran-
des recursos financeiros no setor bancário, facilitando através da legislação a fusões de bancos,
adquirindo ações e títulos em poder do setor privado, não haveria uma volta às teorias keynesia-
nas e o abandono das teorias de mercado? Como exemplo de intervenção do setor público, ob-
serve-se que os estados unidos apresentou inicialmente um socorro de 700 bilhões de dólares
aos bancos e comprou “títulos podres”, oriundos dos financiamentos imobiliários não pagos.
em 2009, nos estados unidos, já sob administração do Presidente Barack obama, foi propos-
to um novo programa de salvamento, no valor de 819 bilhões de dólares, interferiu nos salários
dos altos dirigentes bancários e criando barreiras tarifárias ao comércio internacional. os países
europeus localizados na “zona do euro” também agiram rapidamente com o Banco Central
,financiando os bancos que estavam com dificuldade de liquidez. no caso brasileiro, o governo
federal reduziu os depósitos compulsórios dos bancos junto ao Banco Central como forma de
aumentar a liquidez; liberou parte das reservas cambiais para empresas exportadoras, para redu-
zir a falta de crédito provocado pela redução dos adiantamentos de contratos de câmbio (ACC)
e colocou recursos do Bndes à disposição das empresas para novos investimentos.
A questão da viabilidade desse modelo de condução política e econômica, como também
suas consequências, tem gerado muita polêmica. estudiosos favoráveis ao programa neoliberal
de governo e à inserção das economias no mercado mundial salientam a inevitabilidade do
chamado processo de globalização e sua expressão política, sob o risco de perder “o bonde da
história”, com um atraso irrecuperável no desenvolvimento das forças produtivas. Aqueles que
adotam uma posição contrária argumentam que globalização é sinônimo de “entreguismo”,
com a consequente acentuação da dependência econômica e agravamento dos problemas so-
ciais, retratado nas altas taxas de desemprego e aprofundamento das desigualdades sociais.
segundo a concepção teórica marxista, exposta inicialmente, necessidades geradas na in-
fraestrutura (realidade material) acarretam transformações na superestrutura (base ideológica),
exatamente onde estão as instituições políticas. Após quatro décadas de expansão dos postulados
neoliberais e do chamado processo de globalização e, principalmente, das questões sociais gera-
252
das durante seu curso, talvez a “sociedade global” aguarde uma nova transformação da orienta-
ção política econômica, exatamente em atendimento à nova realidade criada pela dinâmica do
mercado mundial
reFerÊNCiaS
Anderson, P. Balanço do neoliberalismo. in: Borón, A.; sAder, e.; gentili, P. (orgs.) Pós neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. são Paulo: Paz e terra, 1996.
AndrAde, P. r. s. Economia política para o curso de Direito. rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2005.
Antunes, r. Adeus ao trabalho? ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. são Paulo: Cortez, 1999.
BAumAnn, r. (org.) O Brasil e a economia global. rio de Janeiro. Campus soBeet.1996.
Boletim da soBeet, ano vii, edição 52, jan. 2008.
BonAvides, P. Ciência política. 11. ed. são Paulo: malheiros, 2005.
CArCAnholo, r. A. A globalização, o neoliberalismo e a síndrome da imunidade autoatrí-buída. in: CArCAnholo, m. Neoliberalismo: a tragédia de nosso tempo. são Paulo: Cortez, 1988.
CAvAlCAnte Filho, F. s. Mercado de capitais. CnBv. 1998.
ChevAllier, J.-J. As grandes obras políticas: de maquiavel a nossos dias. rio de janeiro: Agir, 2001.
CoggliolA, o. (org.). O manifesto comunista. são Paulo: Boitempo, 1998.
Coutinho, l.; Belluzzo, l. g.“Financeirização” da riqueza, inflação de ativos e decisão de gastos em economias abertas. in: FerrAri Filho, F.; PAulA, l. F. Globalização financeira: ensaios de macroeconomia aberta. rio de Janeiro: vozes. 2004.
dAllAri, d. A. Elementos de Teoria Geral do Estado. 24. ed. são Paulo: saraiva, 2003.
iAnni, octavio. Teorias da globalização. 4. ed. rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
kreger. J. A. riscos e implicações da globalização financeira para a autonomia de políticas na-cionais. FerrAri Filho, F.; PAulA, l. F. Globalização financeira: ensaios de macroeconomia aberta. rio de Janeiro: vozes. 2004.
loCke, J. Dois tratados sobre o governo. tradução Julio Fischer. são Paulo: martins Fontes, 1998.
loPes, F. Dimensão da crise. rio de Janeiro: iePe. 2008. disponível em: www.iedecdg.com.
mArX, k. Contribuição à crítica da economia política. são Paulo: ática, 1987. (Coleção grandes Cientistas sociais).
mello, P. C. de. Crise financeira: quebras, medos e especulações do mercado. 3. ed. são Paulo: saint Paul editora, 2010.
revistA éPoCA, rio de Janeiro: editora globo. rio de Janeiro edição 542, out. 2008.
revistA eXAme, são Paulo: editora Abril s/A. edição 927, set. 2008.
253
rouBini, n. Economia das crises: um curso relâmpago sobre o futuro do sistema financeiro inter-nacional. rio de Janeiro: intrínseca. 2010.
sChumPeter, J. A. Teoria do desenvolvimento econômico: uma investigação sobre lucros, capital, crédito, juro e o ciclo econômico. tradução maria silvia Possas. 3 ed. são Paulo: nova Cultural 1988.
254
255
SoBrE oS AuTorES
AS orGANiZADorAS
JuSSArA SuZi ASSiS BorGES NASSEr FErrEirA
doutora em direito pela Pontifícia universidade Católica de são Paulo (PuC-sP). Professora
do Programa de mestrado da universidade de marília – unimAr-sP. Professora da Funda-
ção escola superior do ministério Público de mato grosso. membro efetivo do instituto dos
Advogados Brasileiros – iAB. Consultora e Advogada.
e-mail: saraadv@sercomtel.com.br
mAriA DE FATimA riBEiro
doutora em direito tributário pela PuC-sP. Professora e Coordenadora do Programa de
mestrado em direito da unimAr – marilia-sP. vice-Presidente do instituto de direito tri-
butário de londrina.
e-mail : mfat@sercomtel.com.br
oS AuTorES
ANTÓNio CArLoS DoS SANToS
doutor em direito (lovaina-a-nova). Professor da universidade Autónoma de lisboa. mem-
bro do gabinete de estudos da ordem dos técnicos oficiais de Contas, do Centro de investi-
gação soCius/ iseg e do instituto de direito económico Financeiro e Fiscal da Faculdade
de direito de lisboa. Jurisconsulto e árbitro em matérias tributárias.
256
ANToNio HENriQuE PErEirA DE NoroNHA
Advogado no rio de Janeiro
e-mail: mavc@vradv.com.br
CLoTiLDE CELoriCo PALmA
doutora em Ciências Jurídico-económicas pela Faculdade de direito da universidade de lis-
boa. docente universitária. Advogada especialista em direito tributário
e-mail: clotilde.palma@sapo.pt
DANiELLE riEGErmANN rAmoS DAmiÃo
mestranda em direito pela universidade de marília (unimAr). Professora de direito da
Faculdade são luis. Professora da escola da magistratura do estado do rio grande do norte
e-mail: danielle.riegermann@gmail.com
DAViD FErrEirA LoPES SANToS
doutor em Administração de empresas pela universidade Presbiteriana mackenzie. Professor
Assistente doutor da universidade estadual Paulista – unesP
e-mail: david.lopes@fcav.unesp.br
DiNAurA GoDiNHo PimENTEL GomES
doutora em direito do trabalho e sindical pela universidade degli studi di roma la sapien-
za, com revalidação pela universidade de são Paulo – usP. Pós-doutora em direito junto à
Pontifícia universidade Católica - PuC-sP. Pós-graduada em economia do trabalho pela
universidade estadual de Campinas – uniCAmP. Juíza do trabalho (aposentada). Profes-
sora universitária.
e-mail: dinauragomes@sercomtel.com.br
GABriEL rEAL FErrEr
doutor em direito pela universidade de Alicante. diretor do Programa de doutorado em di-
reito Ambiental e primeiro diretor do mestrado em direito Ambiental e da sustentabilidade da
universidad de Alicante. Professor visitante da universite de limoges, na França, da universi-
dade do vale do itajaí – univAli, no Brasil, e da universidad Autônoma metropolitana do
méxico. membro da Academia de direito Ambiental e da Comissão de direito Ambiental da
uiCn. é vice-presidente da european environmental law Assotiation.
e-mail: pcruz@univali.br
257
JoÃo riCArDo CATAriNo
licenciado em direito pela Faculdade de direito da universidade Clássica de lisboa. Pós-
graduado em estudos europeus, mestre em Ciência Política e doutor pelo isCsP - universi-
dade técnica de lisboa. Professor auxiliar e coordenador científico da universidade técnica
de lisboa.
e-mail: jcatarino@iscsp.utl.pt
JoSÉ mATiAS-PErEirA
economista, advogado, doutor em ciência política (uCm-espanha), Pós-doutor em admi-
nistração pela FeA/us. Professor-pesquisador associado do programa de pós-graduação em
contabilidade da universidade de Brasília. Autor, entre outros, de Curso de Administração Pú-
blica, 3. ed. são Paulo: Atlas, 2010; Finanças Públicas, 5. ed. são Paulo: Atlas, 2010; e, Curso
de Administração Estratégica, são Paulo: Atlas, 2011.
e-mail: matias@unb.br
LAErCio roDriGuES DE oLiVEirA
mestre em economia pela Pontifícia universidade Católica de são Paulo (PuC-sP). Professor
dos cursos de Pós-graduação da universidade estadual de londrina (uel). Pesquisador inte-
grante do grupo de Pesquisas do CnPq e delegado do Conselho regional de economia.
e-mail: laercio@uel.br
LouriVAL JoSÉ DE oLiVEirA
doutor em direito das relações sociais pela Pontifícia universidade Católica de são Paulo –
PuC-sP. Professor do Programa de mestrado em direito universidade de marília (unimar) e
da uel. Coordenador do Curso de direito da Faculdade Paranense (FACCAr)
e-mail: lourival.oliveira40@hotmail.com
mArCoS ANDrÉ ViNHAS CATÃo
Professor de direito Financeiro e tributário da Faculdade de direito da Fundação getúlio
vargas (Fgv/rJ) e da universidade do estado do rio de Janeiro. mestre em direito tribu-
tário pela universidade Cândido mendes (uCAm/rJ) e doutor em direito pela universidad
san Pablo – Ceu. madri, espanha. Advogado no rio de Janeiro.
e-mail: mavc@vradv.com.br
258
PAuLo márCio CruZ
Pós-doutor em direito do estado pela universidade de Alicante, na espanha. doutor em
direito do estado pela universidade Federal de santa Catarina e mestre em instituições Jurídi-
co-Políticas e pela universidade Federal de santa Catarina – uFsC. Coordenador e professor
do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da universidade do vale do
itajaí – univAli. Professor visitante nas universidades de Alicante, na espanha e de Perugia,
na itália.
e-mail: pcruz@univali.br
SuELY FADuL ViLLiBor FLorY
livre-docente em literaturas de língua Portuguesa pela unesP – Assis-sP. doutora em le-
tras unesP – Assis-sP. Consultora Ad-hoc da CAPes, FAPesP, FAPerJ e CnPq. membro
das Comissões editoriais das universidades unesP, usP, uel, uFmg, eFJF, unimAr,
uniCsul, uninove, uniCAmP, uFrgs. Coordenadora do Programa de mestrado em
letras da unimAr. Pró-reitora de Pós-graduação da universidade de marília – unimAr
– marília-sP.
e-mail: suelyflory@unimar.br
SuZANA mAriA CALVo LourEiro TAVArES DA SiLVA
licenciada em direito pela Faculdade de direito da universidade de Coimbra. mestre em
direito (área de especialização em Ciências Jurídico-Políticas) pela Faculdade de direito da
universidade de Coimbra. doutora em direito (área de especialização em Ciências Jurídico-
Políticas) pela Faculdade de direito da universidade de Coimbra. Professora da Faculdade de
direito da universidade de Coimbra, jurisconsulto e advogada.
e-mail: stavares@fd.uc.pt
WALKiriA mArTiNEZ HEiNriCH FErrEr
doutora em educação pela universidade estadual Paulista Júlio mesquita (unesP). Pesqui-
sadora e professora dos cursos de graduação em direito e serviço social e do Programa de
mestrado em direito da universidade de marilia (unimAr). Coordenadora de grupos de
Pesquisas do CnPq.
e-mail: walkiriamf@terra.com.br
top related