do interculturalismo
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CULTURA E JUSTIÇA NO PENSAMENTO DE TAYLOR E KYMLICK A: SOBRE A
NECESSIDADE DE UMA CONSTRUÇÃO PLURALISTA DE JUSTIÇA ATRAVÉS
DO INTERCULTURALISMO
Mateus de Oliveira Fornasier1
Resumo
O presente artigo visa analisar o conceito de cultura, bem realizar um diálogo entre as teorias de justiça de Charles Taylor (multiculturalista) e Will Kymlicka (liberal). Num momento posterior, é analisada a noção de interculturalismo, para que se possa ter uma possibilidade de diálogo diversa das teorias multiculturalistas e liberais. Palavras-chave: Cultura; multiculturalismo; liberalismo; interculturalismo.
Abstract This article aims to examine the concept of culture, and to conduct a dialogue between the theories of Charles Taylor to justice (multiculturalism) and Will Kymlicka (liberal). In a later moment, it reviews the concept of interculturalism, in order to take a chance for dialogue of that is different of both theories. Keywords: culture, multiculturalism, liberalism, interculturalism.
INTRODUÇÃO
O fenômeno da globalização gerou transformações em várias áreas das
relações humanas. A redução (ou relativização) do tempo e das distâncias faz com
que a economia seja realizada sob parâmetros que ultrapassam as fronteiras do
Estado-nação, o qual, por sua vez, passa a ter de se submeter ao capital
transnacional para atraí-lo (principalmente ao se tratar dos países em
desenvolvimento) e gerar prosperidade econômica. A subserviência do direito
nacional àquilo que for mais adequado aos interesses do mercado, fazendo com que
se desumanize cada vez mais a justiça, tornando-a um instrumento ligado à
funcionalidade econômica é o resultado dessa submissão.
O direito aos poucos se esvazia de condições adequadas à dignidade
humana, e o interesse econômico das transnacionais faz com que território e
pessoas sejam apenas mais um recurso para a lucratividade: quando a conjuntura
econômica se altera, estabelecimentos produtivos transnacionais mudam suas
1 Bacharel em Direito e especialista em Direito Ambiental pela UNIJUI. Mestrando em Desenvolvimento – linha de pesquisa: Direito, Cidadania e Desenvolvimento. Bolsista CAPES. E-mai: mateus_fornasier@hotmail.com.
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bases de operação, levando consigo a possibilidade econômica de viver com
dignidade nesse território abandonado, deixado apenas com a desesperança em
miríades de excluídos do mercado de trabalho. Decorrência desse fenômeno, fluxos
migratórios oriundos de locais abandonados pelo capital internacional (e também de
outros onde não há mais a possibilidade de um mínimo de sobrevivência proveitosa
por causa da situação econômica) partem com destino a países onde as
possibilidades de emprego (subempregos na maioria dos casos) se apresentam
mais esperançosas à continuidade dos projetos de vida.
Além da questão econômica, os diversos conflitos bélicos (muitas vezes
decorrentes da economia, outras de questões culturais e/ou religiosas e étnicas) ao
redor do globo também originam levas de refugiados desejosos por viabilizarem o
mínimo de condições necessárias à sobrevivência. Tanto os fluxos migratórios
relatados antes quanto estes fazem com que problemas de ordem cultural surjam:
os imigrantes trazem até o seu destino suas próprias concepções culturais de vida,
justiça, religião, etc. – as quais são muito diferentes das consolidadas nesses países
em que terminam suas jornadas, ocasionando choques culturais.
Outra conseqüência cultural no tocante à compressão temporal-espacial são
os encontros culturais virtuais cada vez mais intensos e freqüentes, realizados pelas
comunicações e pela indústria de entretenimento, resultando em influência (muitas
vezes nefasta) de umas culturas sobre outras, entendimentos errôneos acerca dos
valores de uma cultura por outras (o que pode ser facilmente manipulado através da
distorção da mídia), ou depreciações de certas culturas no contexto geral – enfim,
outras formas de choques.
Além da influência da globalização no tocante às transformações culturais,
nota-se também a existência de minorias culturais no interior dos Estados-nação e
diferentes da cultura predominante em seu interior, reivindicando maior poder
político e/ou maior autonomia. A população do Quebec no Canadá, bascos na
Espanha e as nações flamenca e francófona na Bélgica são exemplos desse
fenômeno no “primeiro mundo”.
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Decorre desse novo fenômeno que emana da globalização a importância de
se estudar o que é cultura, e como liberais e comunitaristas interpretam a sua
importância para a idéia de justiça. Isso exposto, o presente trabalho tem como
objetivo analisar as relações entre cultura e justiça sob o enfoque do debate entre
liberais e comunitaristas, sendo tomados os discursos de dois dos mais importantes
representantes de cada uma dessas correntes filosóficas, do liberal Will Kymlicka e
do comunitarista Charles Taylor.
Num primeiro momento, busca-se situar o significado do termo cultura, bem
como situar a sua relação com o fenômeno da mundialização e como essa relação
pode levar a um imperialismo jurídico. A seguir, parte-se para o entendimento das
principais características dos pensamentos de Will Kymlicka e Charles Taylor acerca
de cultura e justiça. Por fim, pretende-se apresentar a proposta do interculturalismo,
visto serem ambas as visões insuficientes, possibilitando-se assim o diálogo entre
culturas.
1. Cultura, mundialização e imperialismo jurídico
Os significados do termo “cultura” são muitos, porém é notável que se refira
àquilo que é mantido como importante para um grupo humano, e que deriva do seu
trabalho. Sugere uma dialética entre ação e passividade, artificial e natural – sendo a
atitude de regular o natural, bem como transformá-lo no humanamente significativo,
o que a define.
A análise do sentido inverso dessa dialética permite observar que os
dispositivos usados pelo homem para transformar a natureza também derivam dela
– de acordo com Terry Eagleton (2005, p. 12), “[...] a natureza produz a cultura que
transforma a natureza”. O homem que trabalha e constrói a cultura também faz parte
do natural, e o disciplinar o entorno para a auto-satisfação pressupõe a auto-
regulação, o jugo da própria liberdade que se pretende ilimitada, numa atitude
ascética em relação às pulsões internas. Desse modo, a regulação interna e externa
é a marca do ser culto.
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Esse poder disciplinar não é necessariamente realizado pelo próprio
indivíduo. Instituições externas em relação a ele (Estado, religião, comunidade, etc.)
produzem imperativos definidores da cultura, perpassando a idéia de cultura como
pedagogia ética fornecedora da aptidão à cidadania política ao pregar a forma ideal
do ser para o Estado, que transforma indivíduos em homens aptos a viverem no
espírito político, demonstrando haver uma importante dimensão social constante da
noção de cultura, a promoção da civilidade e da ética.
Civilidade e sociabilidade não são, todavia, dados estáticos, imutáveis.
Valores se alteram não apenas no espaço (de um povo a outro), mas também cada
época possui um determinado conjunto tido como importante: grupos que se
encontram num estágio civilizatório essencialmente rural possuem valores
substancialmente diversos daqueles de sociedades fundamentadas no comércio e
na indústria, que por sua vez são diferentes da sociedade da informação.
Independentemente da discussão acerca do intuito que move esforços tidos como
“civilizatórios”, tem-se que levar os valores da civilização a outros povos – ou seja,
aculturar outros povos – apresenta conotações imperialistas, supressoras de um
conjunto de valores construído ao longo da história de um povo em prol de outros
que se julgam mais avançados. Tal atitude é conflituosa, visto que os valores de um
povo podem ser totalmente incompatíveis aqueles tidos como importantes para
outro.
Renato Ortiz (2000) enuncia que a mundialização (globalização), processo em
constante construção, pode ser entendida de vários pontos de vista: econômico,
social, político, ideológico, etc. Mas não se pode deixar de lado o caráter imperialista
que ela pode ter, visto que defendê-la a partir de um ponto de vista particularista
pode fazer com que mundializar signifique subjugar os valores de outras culturas
aos relativos àquela que se propõe hegemônica.
O advento das idéias de nação e modernidade foi essencial para a
mundialização. A nação surge como uma estrutura social mais condizente com a
industrialização, que substitui as formas basicamente rurais de sociabilidades. Ela
vem a se relacionar diretamente com o Estado – que passa a representar uma
suposta confluência de interesses, em virtude da qual se origina a cidadania, e não
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mais apenas o aparelhamento administrativo detentor do monopólio da violência –
através do qual se criará a unidade cultural dos súditos, que pressupõe mitos
fundadores, idioma, educação e imprensa oficiais, enfim, os símbolos culturais
supressores de todas as culturas diversas da nacional, dentro do território onde o
Estado é soberano. Desenraizam-se assim os indivíduos de suas pertenças
geográficas imediatas para torná-los integrantes de uma entidade mais abrangente e
poderosa.
Toda essa gama de transformações é possibilitada pela modernidade, que
representa uma nova forma de ser revolucionada pela técnica, mote maior da
industrialização que assume a centralidade da vida européia nos idos do século XIX.
Com a técnica o tempo e o espaço são comprimidos – fenômeno que se inicia com a
tecnologia a vapor e se estende e intensifica até a tecnologia da informação – o que
possibilita a circulação de pessoas, mercadorias e objetos. Isso também permite que
uma cultura possa influenciar outras distantes. Esse movimento de expansão faz
com que se crie uma padronização escalar, na qual o grau civilizatório de uma
sociedade irá corresponder ao quão assimilado se encontra o paradigma moderno
no seio da sociedade: surgem assim escalas de classificação de desenvolvimento –
centro e periferia; primeiro, segundo, terceiro e quarto mundos; bando, tribo,
senhorio e Estado.
Esse sistema escalar se refere justamente a uma dicotomia entre o “nós”
desenvolvido, dominante, e o “eles” atrasado, dominado, que os cientistas sociais
têm assumido desde os idos do século XIX, de acordo com Jonathan Friedman
(1994). A adoção desses sistemas classificatórios baseados em tal dicotomia pela
ciência expressa o imperialismo dos que se intitulam modernos face à alteridade de
outros povos, que são tachados de subdesenvolvidos. À primeira vista, tal pecha
pode parecer significar que fazem parte de outro sistema, do qual sairão à medida
que se modernizem. Claude Lévi-Strauss (1975), no entanto, as identifica como
integrantes do próprio sistema que possibilitou o desenvolvimento da Europa, visto
ter a colonização precedido o capitalismo, cujo regime consiste em tratar aos povos
ocidentais tal como estes haviam tratado previamente às povoações nativas.
Sociedades hoje tidas como “subdesenvolvidas” não o são por sua própria ação,
sendo equivocada sua concepção como externas ao desenvolvimento ocidental ou a
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ele indiferentes. A destruição direta ou indireta dessas sociedades entre os séculos
XVI e XIX tornou possível o desenvolvimento do mundo ocidental, havendo uma
relação complementar entre eles.
O conceito de imperialismo origina uma ampla gama de interpretações, mas
apresenta, segundo Ramón Soriano (2004), a característica da imposição de idéias
e comportamentos através de meios instrumentais (entre eles o direito) a culturas
consideradas inferiores por outras autoconcebidas como superiores. Sua prática
eleva à esfera supra-estatal a grande massa de minorias de pequenos grupos
dependentes do pequeno grupo hegemônico. O imperialismo jurídico seria, assim, a
imposição do direito de uma cultura a outra em conseqüência do domínio político,
destruindo a formulação jurídica autóctone dos dominados.
Dois modos de imperialismo (que podem ser concomitantes) ocorrem, o direto
e o indireto2, ambos fundamentados no sistema de hierarquia cultural. O primeiro é
próprio dos povos colonizadores, que fazem tabula rasa das identidades culturais
dos povos conquistados (ideologia, política e jurisdição principalmente), que ficam
esvaziados de suas raízes históricas e separados das culturas dominantes. Já o
modo indireto (ou encoberto) ocorre quando grandes potências interferem no direito
de outros países para que as elites internas (a quem se aliam) dominem as culturas
de grupos sociais internos com potencial para contrariar seus interesses
(considerados rebeldes) – tendo como subterfúgio “humanitarianismo”, combatendo
fatores a ele antagônicos. Dessa forma, cria-se um “direito do benfeitor” para os
dominados, ou se suprime o direito adverso.
Qualquer que seja o modo pelo qual venha a se manifestar, o imperialismo
corresponde sempre a uma simplificação cultural, que pode ocorrer em dois níveis:
temporal e espacial. A primeira dessas simplificações limita o desenvolvimento das
culturas dominadas (que apesar disso também são culturas dinâmicas, naturalmente
mutáveis) no tempo através da reificação, sendo delas captados elementos que
melhor atendam aos interesses dos dominantes, ou que a estes representem menos
2 Grandes potências justificam a conversão do imperialismo indireto em direto usando como
argumento agressões sofridas. As práticas dos EUA antes e depois dos atentados de 11 de setembro o demonstram.
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obstáculos – elementos que passarão a constituir o que os dominantes estipulam
como a “verdadeira cultura” dos dominados, folclorizando-os.
Já a simplificação cultural espacial se dá através da realização de um
processo em duas fases: a primeira corresponde a uma simplificação social, pela
qual é reduzida a multiplicidade cultural a critérios afins à cultura hegemônica para
que não haja risco de choques entre tal pluralidade e a hegemonia; a segunda é
correspondente a uma simplificação legal, que faz com que apenas padrões
previamente selecionados entrem no raio de ação das normas jurídicas, relegando o
que não for interessante à desconsideração.
2. O reconhecimento de outras culturas e a modernid ade homogeneizadora
Elencar entre os direitos universais do homem o direito à diferença parece
contraditório à primeira vista, se for considerado o fato de que os direitos universais
à igualdade, liberdade, dignidade, justiça e educação (entre outros) são integrantes
de um conjunto ético historicamente conquistado e reconhecido que representa
aquilo que é universal e inerente ao homem. Segundo Victoria Camps (2003), não
há como considerar que alguém seja diferente da universalidade humana sem
desrespeitar a ética – a qual tem suas noções construídas a partir do conflito entre a
lei imposta ao indivíduo e este, que se sente maltratado por ela.
A defesa da igualdade decorre da necessidade de ser mantida a liberdade a
todos. Esses teriam sido os ideais da Revolução Francesa quando da Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789, visto haver a necessidade política
de se evitar a intervenção arbitrária estatal a certas camadas sociais. Todavia,
elevar à importância universal os valores ocidentais utilizando-se do progresso e da
modernização como subterfúgios transmite as idéias questionáveis (pois errôneas)
de que há apenas uma forma de se progredir e de que progresso e modernização
são sinônimos.
A história demonstra que a técnica, tão prezada e desenvolvida pelos
modernos, não traz necessariamente a felicidade. O progresso baseado na idéia do
avanço técnico pode não ser, assim, afirmado como universalmente bom justamente
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pelo fato de que não são comprovados resultados positivos em todas as situações
nas quais os paradigmas ocidentais foram aplicados a outros povos. Daí a
constatação de que uma gama de direitos ocidentalmente concebidos pode não ser
aconselhável a todos os grupos humanos, e de que o direito à diferença pode sim
ser benéfico: Norberto Bobbio (2004) já afirmava que a busca dos fundamentos dos
direitos deve ser relativa a cada realidade, que fornecerão as condições necessárias
para a efetivação dos direitos, já que a busca por um fundamento único e absoluto é
ilusória, visto ser tão diversa a natureza do homem. E mesmo que fosse possível o
sucesso na busca pelo fundamento justificativo absoluto dos direitos humanos, é
questionável essa aspiração, já que isso depende do estágio de desenvolvimento
sociopolítico e tecnológico dos países.
Na verdade, há certos valores éticos universais, mas também há valores
culturais, que valem apenas por si mesmos, mas devem assim mesmo ser
considerados (CAMPS, 2004). A justiça é um bem transcultural, inerente a todos,
que significa o reconhecimento e o respeito à dignidade e integridade de todos, bem
como o rechaço à situação de domínio e violência – portando no seu cerne a
sinonímia à própria ética. Mas a própria história demonstra que o valor ético altera-
se no tempo e no espaço. Há e deve haver uma idéia universal de justiça construída
a partir da colaboração de todos os povos, pois a pluralidade cultural é
enriquecedora; mas esse processo deve ser seletivo, já que há certos valores
imorais, repudiáveis, em cada cultura (excisão clitoridiana, violência à mulher, prática
da tortura e infanticídio, por exemplo).
Tem-se que a defesa a determinado bem decorre da cultura de uma
determinada coletividade. Mas a recíproca dessa afirmação é verdadeira, visto que o
ato de defender o dito bem (através da normatividade) também influencia a cultura.
A defesa do direito à propriedade como fundamental, por exemplo, fundamenta
sobremaneira a cultura ocidental, assim como a defesa da fé islâmica perpassa
todos os meandros da vida da maioria dos povos relativos a ela. A justiça é um valor
diverso da felicidade, mas ambas são complementares, visto que a primeira visa à
segunda, que faz parte também da idéia de ética. No entanto, proteger a
humanidade e o indivíduo tem sido uma máxima da ética, e a diferença (individuais e
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grupais) deve ser salva do intervencionismo e da alienação sempre que sejam
preservadas conjuntamente a justiça e a dignidade.
Por outro lado, a eleição de uma concepção universal de justiça pode também
ser indesejável, o que se pode comprovar no dano cultural realizado pela difusão da
cultura de massas. A modernidade espraiou a idéia de que a homogeneização
cultural através das idéias de progresso e mobilidade social – consistindo no
combate à diversidade a metodologia do processo. Zygmunt Bauman (1999)
determinou a importância, para a modernidade, do fim da diversidade em prol de
uma visão única e controlável pelo Estado. Dessa forma, uma concepção universal
de justiça possibilita uma via dupla: a ética embasada no pluralismo cultural ou a
visão imperialista pregando a homogeneidade em prol de uma única cultura.
A modernização não deve significar, necessariamente, modelo único. Apesar
da tendência à homogeneização encontrada em todo processo de modernização
cultural ocidental, não se verificou o cumprimento da promessa de progresso como
aumento da felicidade. Várias culturas foram simplesmente destruídas, como
retratam tão competentemente Darcy Ribeiro (2006) na conquista do Brasil pelo
europeu em O povo brasileiro – processo que acabou simultaneamente com o índio
no homem e com a própria vida no índio, significando necessariamente o contato
entre brancos e nativos o desgaste físico, a morte pela doença e pela fome e a
aculturação deste último através da pregação da inferioridade de seu modo de viver
em relação ao digno europeu. A colonização representou necessariamente o
massacre em qualquer local que se verificou ter sido a causa propulsora a
exploração econômica, mas também é importante citar o trabalho do frei Bartolomé
de Las Casas (2001) em O paraíso destruído apresenta uma visão detalhada do que
foi o massacre do ameríndio pelo europeu na tentativa de se implantar uma cultura
superior e o progresso dentre nativos.
A resistência de certas culturas ao processo de homogeneização através da
preservação das diferenças culturais é expressão de forças que têm corretamente
como incompreensíveis as necessidades modernas de se viver sob a lógica do
consumo, da tecnicização facilitadora da vida e da intervenção estatal. Esses
processos separam cada vez mais o produto do ânimo do seu produtor através da
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máquina – retirando assim todo o significado que o trabalho transformador da
natureza outrora teve à cultura. O reconhecimento à diversidade cultural poderia
corrigir as falhas do processo modernizador, em virtude do fato de que as diferenças
culturais se encontram em condições mais favoráveis ao cultivo de relações mais
pessoais, bem como de promover a solidariedade e a participação tão necessárias a
uma cultura autenticamente democrática, num terreno atual do individualismo, do
predomínio da técnica sobre a humanidade e da massificação degradante (CAMPS,
2004).
Obviamente não se podem negar certos benefícios resultantes do advento da
cultura moderna ocidental, muito menos repudiá-la em uma provável pluralização da
noção de modernização cultural. Papel importante seria a ela reservado, porém sem
o prejuízo de outras culturas verificado desde o início de sua supremacia.
3. Comunitaristas e justiça: Charles Taylor
A principal característica do pensamento comunitarista, segundo Soriano
(2004), é a defesa de cada cultura em seu próprio âmbito, independentemente da
influência de outras, sendo cada cultura valiosa em si mesma – valor esse que é
igual a todas as culturas, tornando-as singularizadas, mas ao mesmo tempo
refratárias.
Relativamente à importância dos direitos individuais, tem-se que estes
assumem posição secundária em relação à cultura, sendo prioritária a concepção de
bem para a comunidade. Na verdade, comunitaristas negam a autonomia pessoal
prévia e independente, visto que a pessoa tem seus fins definidos pela cultura da
sua comunidade de pertença. Conseqüentemente, o Estado deve proteger valores,
fins e sinais identitários de cada cultura, não havendo descontinuidade entre esferas
pública e privada.
A concepção de bens da comunidade é defensora das minorias a princípio,
tendo em vista estarem estas caracterizadas por uma definição de bem – sendo tal
princípio, no entanto, perigoso para outras minorias que não compartilham da
mesma idéia de bem. Dessa forma, o comunitarismo não é defensor dos direitos das
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culturas, detendo-se em seu processo de defesa de apenas uma cultura,
desamparando outros subgrupos internos.
Daniel Bonilla Maldonado (2006) ensina que Charles Taylor define o
individualismo como o ideal moral da autodeterminação do indivíduo, sem que
qualquer outro ente tenha o poder de intervir nesse processo. Mas este ideal
historicamente se transformou em uma moral que valora decisões apenas por
decorrerem da vontade do sujeito – resultando em indivíduos sem compromissos
além da satisfação do egoísmo, que vêem na esfera pública e nos outros meros
instrumentos para tal operação – empobrecendo o debate racional acerca da
moralidade, já que o único critério válido para o julgamento do valor moral das ações
e idéias é a consecução da vontade individual.
A confluência entre os interesses do sujeito autodeterminado e da
coletividade a que pertence, bem como dos seus pares se dá através da
autenticidade – ideal segundo o qual os sujeitos construiriam um viver superior ao
atual a partir de critérios normativos livremente escolhidos, que refletem, além de
seus desejos egoístas, os interesses da coletividade, da natureza e da alteridade –
que é oculta pelas formas degradadas de individualismo. Esse ideal permite valorar,
além da forma pela qual a escolha de projetos de vida é realizada (através do
exercício da liberdade dos sujeitos), o seu conteúdo como algo incorporável ao
interesse da comunidade, de outrem e da natureza.
Autodeterminação individual e autenticidade são intimamente relacionadas,
visto que ao realizar a primeira, os indivíduos buscam respostas a questões sobre
suas origens e aspirações de maneira dialógica e contextual que fornece um
horizonte de compreensão, sendo tais escolhas influenciadas por uma hierarquia de
valores que os permite escolherem certas opções e rejeitar outras. Sem esse
horizonte de compreensão os indivíduos não podem exercer sua liberdade: sem o
contexto histórico, a liberdade individual é um vazio – o contexto oferece conteúdo
para que as escolhas possam ser feitas.
Apenas através da aquisição da linguagem (em sentido amplo) no interior do
horizonte de perspectivas em que vivem os indivíduos podem se converter em seres
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humanos. Sendo a linguagem derivada e dependente essencialmente da relação
com o outro, tem-se que é dialógico o processo pelo qual o indivíduo constitui sua
própria identidade, a partir do reconhecimento correto, do reconhecimento incorreto
e do falso reconhecimento do outro – que constituem a fórmula para o auto-
reconhecimento.
Para Taylor (1994), monólogo e diálogo se intercalam e sobrepõem na
existência individual, visto que a todo momento o ser humano busca formar opinião,
mas mantém-se em diálogo constante com a influência daqueles que são (ou foram)
importantes para a sua formação. A identidade pressupõe rompimentos monológicos
para com a dependência dialógica, consubstanciando-se num desejo de libertação
de si mesmo através da negação aberta para com os outros (diálogo). Assim, a
dimensão monológica também depende da dialógica, pois tem como escopo a sua
negação.
É prática dos dominantes causarem a autodepreciação dos dominados ao
fazerem com que estes absorvam o reconhecimento incorreto em relação a si
próprios (por exemplo, a imagem negativa que negros – a partir do racismo – e
mulheres – em decorrência do chauvinismo – fazem de si próprios). Por isso se deve
prezar a política de reconhecimento correto.
A autenticidade é do indivíduo e dos povos, contudo. Sendo ela expressa na
idéia de que o modus vivendi só pode ser encontrado dentro de si próprio, tem-se
que os povos também não podem se deixar influenciarem pelo papel social
hierárquico que venham a desempenhar. Taylor defende a igual dignidade entre
culturas, visto que o indivíduo é definido pela sua cultura de pertença (e não o
contrário) – enquanto critica o liberalismo, que reconhece apenas a igualdade entre
indivíduos (SORIANO, 2004). Diante disso, propõe o reconhecimento das culturas,
haja posto que a problemática acerca do reconhecimento não reside no interior das
culturas em si, mas nos indivíduos que não reconhecem a cultura como digna de
dferenciação (julgando, assim, que o Estado deva tratar indistintamente a todos).
A política de reconhecimento evolui a partir do ideal moderno de dignidade
universal necessário ao exercício da democracia, que ocasiona o desaparecimento
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da hierarquia social que tinha na honra o valor fundamental – o que expressava uma
relação de desigualdade, já que o bem honra é desfrutável apenas pelos seus
poucos detentores. Essa relação de substituição da desigualdade pela igualdade
permite aflorar historicamente, em seguida, a idéia de autenticidade (identidade
individualizada, fidelidade para consigo próprio), em oposição à anterior identidade
como algo proveniente da ordem divina.
Com a passagem moderna do paradigma de honra ao paradigma de
dignidade surge uma política de universalismo (igual dignidade a todos os cidadãos),
cujo conteúdo visa a igualdade de direitos – ficando restrita aos direitos civis e
políticos em algumas situações, ou estendida até os direitos sócio-econômicos em
outras. Após essa mudança, surge a noção moderna de identidade, a qual origina
uma política de diferença, na qual se opera o igual reconhecimento das identidades
únicas de todos. O não-reconhecimento das singularidades em prol da identidade
dominante majoritária é justamente, porém, a maior ofensa contra a autenticidade.
Quando novas condições sociais emergem, alterando o significado da
condição humana (pobreza socioeconômica, principalmente), as políticas de
igualdade universal e de diferença deixam de constituir uma unidade, originando
estatutos de “cidadania de segunda classe”, nos quais se afirma a diferença em
detrimento da dignidade universal. Com isso, a legitimação do direito das minorias
em se excluírem a si mesmas da universalidade a fim de preservarem suas
identidades culturais gera polêmica, e um “meio termo” é buscado como medida
temporária de correção de desigualdades históricas, a fim de que seja nivelado o
acesso à economia e/ou ao ensino (sendo exemplo disso o sistema brasileiro de
cotas universitárias para estudantes negros).
A política de reconhecimento igualitário é gerada a partir do reconhecimento
correto de todos os indivíduos e culturas na esfera pública, bem como através da
denúncia do não-reconhecimento e do reconhecimento falso como formas de
opressão. Ela seria encontrada no princípio de igual dignidade advindo da destruição
da hierarquia social do Antigo Regime. Como conseqüências principais da política
de reconhecimento, há a oposição a qualquer forma de imperialismo cultural e
etnocentrismo; além disso, se dá o convencimento de que todas as formas de
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cultura que enriquecem a vida em sociedade durante um período de tempo
considerável possuem algo importante a dizer a outras culturas e aos indivíduos que
as conformam – o que serve apenas de estímulo para o estudo de outras culturas, e
não uma proposição que defenda a igualdade de todas as culturas como ponto de
partida, já que tal premissa é desrespeitosa porque confere determinado valor às
culturas sem saber inicialmente o que é considerado importante para elas. O que o
autor exige é, assim, a inclusão das culturas na abordagem dos estudos, e não
conferir a mesma importância valorativa a todas (o que julga absurdo).
Mesmo que tais medidas se baseiem na dignidade universal, no fundo servem
apenas para a perpetração da diferença, demonstrando que mesmo que uma
política resulte de outra, ambas continuam a divergir. As políticas de igual dignidade
concedem aos cidadãos uma gama limitada de direitos de igualdade, sem
reconhecerem qualquer diferenciação: liberalismos, baseados apenas na liberdade
igualitária, permitem uma diferenciação cultural extremamente restrita. Mas políticas
de diferenciação que buscam a proteção cultural (como no caso da proteção da
língua francesa no Quebec) são polêmicas, visto que nem sempre todos os cidadãos
vivendo sob a jurisdição diferenciada são portadores da condição especial por ela
contemplada.
O princípio igualitário de dignidade produziu historicamente o liberalismo
procedimental, que defende a separação entre público e privado como medida
necessária à proteção da tolerância e da igual dignidade a todos os seres humanos.
Mas também faz com que haja descontinuidade entre moral e política, garantindo ao
Estado neutralidade no trato para com os seus cidadãos, com igualdade de
consideração e respeito. Ao assumir um determinado projeto de vida boa, o Estado
causa injustiças para com os cidadãos que não compartilham desse mesmo ideal de
bem, que não possuem igualdade de oportunidades para escolher e materializar
projetos diferenciados do estatal (MALDONADO, 2006).
Mas há em Taylor (1994) a possibilidade de formas diferenciadas de
liberalismo, que dêem importância substancial aos direitos relativos à sobrevivência
cultural (ocasionando formas subjetivas de liberalismo), e não apenas a igualdade
uniforme (liberalismo procedimental), visto que o caráter cada vez mais multicultural
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das sociedades torna impraticáveis os rigores do liberalismo procedimental.
Defende, assim, o liberalismo substancial (ou substantivo), de acordo com o qual
coletividades culturais podem pleitear frente ao Estado a proteção das suas
finalidades coletivas – impossibilitando a neutralidade do Estado, que passa a ter o
dever de defender/promover a cultura tradicional e os projetos de vida a ela
relacionados.
Apesar da importância do estudo de Taylor, restam algumas deficiências nas
perspectivas por ele defendidas. Em primeiro lugar, as categorias por ele
apresentadas são insuficientes para compreender aspectos fundamentais da
identidade cultural, bem como para elencar quais seriam os interesses das culturas
minoritárias que os Estados deveriam defender, discorrer acerca da suficiência (ou
insuficiência) dos direitos individuais para a defesa dos interesses dessas culturas e
apresentarem outros tipos de direitos para tal defesa e justificá-los (MALDONADO,
2006).
Em segundo lugar, tem-se que tanto o liberalismo procedimental quanto o
substantivo têm o objetivo principal incluir as diferenças culturais, porém ambos
acabam excluindo todas as concepções que não aceitem os valores centrais do
liberalismo: concepções totalmente diversas (como seriam as relativas aos povos
muçulmanos, por exemplo) não encontrariam espaço no interior da tolerância
limitada do liberalismo substantivo. O modelo político do liberalismo substancial
proposto por Taylor, apesar de ser mais sensível do que o liberalismo procedimental,
apresenta limitações no tocante à justa inclusão das diferenças culturais, tendo em
vista que mesmo quando aceita a defesa de uma meta coletiva pelo Estado, isso
teria aplicabilidade apenas no tocante às que defendem e promovem os direitos
individuais liberais: o Estado tem o direito de priorizar as metas coletivas de seus
cidadãos sobre seus privilégios e imunidades, mas nuca sobre seus direitos
fundamentais.
Não há resposta no modelo do liberalismo substantivo sobre o que ocorre
quando a cultura hegemônica de um Estado multicultural não-liberal intenta proteger
e promover sua cultura através do Estado, ou o que ocorre se uma minoria não-
liberal no interior de um Estado liberal pretende proteger sua cultura através de
16
formas próprias de governo, ou ainda como dirimir o conflito entre direitos individuais
e decisões jurídicas ou políticas que visam promover uma cultura em particular. “A
única resposta que este modelo pode oferecer é que qualquer ação executada por
um Estado ou por uma comunidade cultural que viole os direitos fundamentais de
suas minorias pode se questionar do ponto de vista moral e proscrever-se do ponto
de vista jurídico” (MALDONADO, 2006, p. 64).
Em terceiro lugar, a possibilidade de se contemplar a realização de metas
coletivas através do Estado levanta dúvidas acerca da validade de se denominar
liberal o modelo de Taylor, visto que isso viola o princípio da igualdade essencial ao
liberalismo, diferenciando injustamente os cidadãos em duas categorias: cidadãos
que compartilham da meta coletiva promovida pelo Estado e cidadãos que não o
fazem. Mesmo que ambas as categorias possuam direitos fundamentais idênticos, a
primeira possuiria o direito adicional de ter sua cultura como prioritária.
O liberalismo substantivo de Taylor não é suficiente para a compreensão das
dinâmicas e necessidades de comunidades culturalmente diversas, nem para a
satisfação de comunidades que não são liberais. Essa posição normativa é
comprometida com os direitos liberais e com a democracia (mesmo que não seja
uma teoria liberal propriamente dita), valores nos quais deveriam se apoiar
encontros inter e intraculturais.
4. Liberais e justiça: Will Kymlicka
O liberalismo, em sua versão mais ortodoxa, tem como princípios a defesa da
autonomia pessoal (liberdades individuais contra o arbítrio estatal) e o
abstencionismo do Estado (que deve ser mero vigilante das relações entre
cidadãos). A autonomia pessoal possui o critério teórico de que a própria pessoa é o
melhor definidor de seu projeto de vida, e o critério pragmático de que há várias
concepções acerca de bem e moral, as quais não deduzem um acordo geral
conjuntamente – havendo posições incomensuráveis em muitas ocasiões. Já o
abstencionismo pessoal respeita os pressupostos de que o Estado não deve se
ocupar dos direitos das minorias, e de que a cultura não é questão de Estado
(SORIANO, 2004).
17
Deve-se diferenciar a visão clássica da visão moderna do liberalismo, visto
haverem conceituações plurais e diversas, além de matização no seu interior.
Tomando por caminho as diferenças quanto à matéria abordada no presente artigo,
os direitos das culturas, notam-se semelhanças e diferenças fundamentais entre os
dois tipos de liberalismo citados.
Liberalismo clássico e liberalismo moderno confluem na mesma visão de que
as liberdades são universais (podendo ser assumidas por qualquer cultura),
irresistíveis (incontestáveis) e transplantáveis às culturas que não praticam nenhum
tipo de liberdade. Também concordam quanto ao fato de que liberdades e direitos
das culturas não podem ser discutidos nas relações interculturais. Mas as duas
correntes diferenciam-se quanto a um ponto importante, ao menos. Enquanto o
clássico nega os direitos das culturas (que seriam desnecessários e discriminatórios)
– negação meramente retórica, visto aceitarem o direito coletivo à autodeterminação
dos povos –, o liberalismo moderno defende certos direitos coletivos, por serem
complementares às liberdades, assegurando-se estas quando são defendidos. Em
síntese, defende que os direitos das culturas são aceitáveis se forem sujeitados à
prioridade das liberdades e supuserem o aprofundamento destas.
Will Kymlicka (2004) considera a teoria liberal tradicional insuficiente por sua
incapacidade no tratamento às demandas culturais, bem como à importância destas
para a democracia liberal. O projeto liberal ainda estaria sendo construído, podendo
haver meios de incorporar novos direitos coletivos de culturas e minorias – fazendo
com que se estenda a proteção dos tradicionais direitos individuais também para
novos direitos coletivos, necessários nos Estados multiculturais para a satisfação de
demandas justas das minorias.
Dois erros afetam a capacidade de compreensão e avaliação dos
nacionalismos: absorção da identidade nacional e relação conflituosa entre liberdade
e identidade cultural. O silêncio dos teóricos liberais quanto ao tema se deve ao
convencimento por parte destes que a Modernidade acaba com a identidade
nacional, que é absorvida por uma identidade supranacional cosmopolita ou por uma
identidade pós-nacional cívica ou constitucional, enunciando que, da mesma
18
maneira que a Modernidade operou a separação entre Estado e religião, teria
também separado o Estado de grupos etnoculturais – o que é errôneo, já que o
Estado é sujeito responsável pelo reconhecimento e pela reprodução desses grupos,
significando sua politização.
Para muitos teóricos, o liberalismo teve por função separar o Estado da
etnicidade, tendo em vista que o principal traço distintivo entre Estados etnicamente
plurais liberais e Estados étnicos antiliberais seria justamente a ocorrência de tal
afastamento – da mesma forma que se rechaçou, no passado, a religião oficial a fim
de se estabelecer o liberalismo. Esse argumento se verifica incorreto, no entanto,
visto que mesmo nações liberais promovem e exigem legalmente a assimilação de
uma cultura societal (instituições oficiais) geograficamente delimitada, centrada na
língua oficial. Isso revela que mesmo os Estados liberais não foram e não são
neutros em relação à língua e à cultura (apesar de o serem a respeito de muitas
manifestações importantes – como a religião – que consideram reservadas à esfera
privada).
[...] é muito difícil que línguas sobrevivam nas sociedades industriais atuais se não são de uso na vida pública. Dado o avanço da educação padronizada, a alta demanda de qualificação para alcançar postos de trabalho e a interação cada vez maior dos cidadãos com as distintas Administrações, toda língua que não seja a [...] utilizada para [isso] está condenada a se converter em um resíduo marginal que [...] nunca [sobreviverá] como a língua de uma florescente cultura societal. As decisões governamentais sobre a língua a utilizar nos centros de ensino e nos serviços públicos são efeitos de decisões sobre as quais as culturas societais poderão existir no país. (KYMLICKA, 2004, p. 54).
Mesmo que um Estado não seja confessional, não se pode, portanto, afirmar
que não estabeleça uma cultura, ainda que de maneira parcial. A diferença entre
nações pluralistas e nações étnicas não estaria no fato de serem liberais ou não,
mas sim a maneira pela qual definem a pertença: nações étnicas o realizam a partir,
por exemplo, da descendência, fazendo com que aqueles que não sejam
descendentes dos nacionais tenham dificuldades ao adquirirem a cidadania (não
importando o tempo de permanência no país); já as nações pluralistas aceitam
todos, a princípio, que se integrem em sua cultura societal.
19
Também é errada a relação necessariamente conflituosa entre identidade
cultural e liberdade individual dos teóricos da Modernidade, argumentando que as
grandes pressões que as minorias nacionais culturais sofreriam no processo de
integração a todos estatais maiores já seriam dispendiosas demais, obstando o
esforço para a conservação da identidade cultural ou tornando-o irracional e
antiliberal. Porém, quem valoriza sua própria autonomia o faz igualmente com sua
cultura nacional, a qual oferece um contexto mais importante para o exercício e
desenvolvimento de sua autonomia.
Soriano e José Jesús Mora (2004) julgam que, apesar da insuficiência do
liberalismo, é necessário continuar pelo seu caminho, recriando o liberalismo a partir
da elaboração de uma nova linguagem para a integração da diversidade étnica ao
liberalismo (a qual denomina “novo vocabulário operativo”). Nesse novo tipo de
liberalismo, dois princípios tradicionais seus não mais caberiam: a neutralidade do
Estado frente às doutrinas e idéias de bem de cada cultura e a exclusividade da
conceituação da liberdade a partir da individualidade. O novo liberalismo tem os
princípios do Estado protetor dos direitos das culturas e minorias, bem como o
conceito da liberdade nacional (diferente da individual).
O Estado abstencionista resulta da necessidade política do fim do Estado
arbitrário absolutista e possibilidade de autonomia individual para o exercício das
liberdades, surgindo assim uma neutralidade favorável a esse exercício. Já o Estado
social, posterior, age positivamente em prol dos direitos sociais, não sendo
meramente neutro.
Muitos liberais sustentam que a cultura não pode ser matéria de ações
positivas do Estado, posicionando-se a favor da manutenção apenas dos direitos
individuais pelo Estado. Mas Kymlicka (2004) tem no Estado um possível defensor
da pluralidade de concepções acerca de bem, e não apenas da tradicional
concepção estatal como defensor de uma só cultura (a cultura ocidental
individualista moderna e liberal).
A nação deve ser um marco para a liberdade do indivíduo, visto que este se
considera livre na sua inserção em uma nação. A participação em uma cultura
20
nacional dá significância à liberdade individual, não a inibe. Assim, nacionalismo e
liberalismo têm o convívio possível, pois uma sociedade pode ao mesmo tempo
defender as idéias liberais e sua identidade cultural, bem como crescer em ambas
as dimensões.
Há vários tipos de minorias: nacionais, étnicas e movimentos sociais. As
primeiras são distintas e autogovernadas potencialmente, incorporadas a um Estado
mais amplo. As segundas se formam por migrantes que buscam sua incorporação
numa sociedade diferente de sua comunidade nacional de origem. Os movimentos
sociais dizem respeito a associações, grupos definidos por seu gênero, sexualidade,
condição física ou social, marginalizados dentro de sua própria sociedade nacional
ou grupo étnico (KYMLICKA, 2004).
Há correlação entre minorias e direitos, visto que cada minoria busca um
estatuto próprio, ou enfatiza mais alguns direitos do que outros. Minorias nacionais e
étnicas são as mais problemáticas para a sociedade na qual se inserem, pois as
primeiras buscam o autogoverno (autonomia política ou jurisdicional em seu
território, com vistas ao seu livre desenvolvimento cultural e dos interesses de seus
integrantes) ou de representação política especial (discriminação política positiva
que expressa superação de desvantagens e interditos sistêmicos que obstruem a
devida representação do grupo em questão no sistema político); as segundas
buscam melhores condições no país de destino do que aquelas que abandonaram
em seus países de origem, reivindicando o respeito aos seus sinais identitários pelo
Estado acolhedor – direitos denominados poliétnicos (que permitem ao grupo em
questão manifestarem livremente sua particularidade e orgulho cultural – direitos de
diferenciação cultural combinados a direitos de igualdade de status com os
nacionais do Estado acolhedor). Direitos de autogoverno e de representação
especial podem ser abarcados num gênero comum, de autonomia política.
Nota-se, em decorrência disso, que são minorias com aspirações distintas,
tendo em vista que as nacionais buscam distanciamento da maioria nacional,
enquanto as étnicas buscam aproximação. Porém, pode acontecer de minorias que
buscam direitos de autonomia reivindicar direitos poliétnicos e vice-versa (já que
minorias nacionais podem querer conservar seus sinais identitários culturais, bem
21
como minorias étnicas podem querer conservar práticas públicas que os identificam).
Também pode ocorrer a transformação de minorias de um tipo em outro: grande
número de emigrados pode vir a tornar-se minoria nacional, da mesma forma que
uma minoria nacional pode ser atacada pelo Estado com políticas que estimulem a
emigração dentro do seu território, a fim de desestimulá-la. Não se pode, ainda,
descartar a possibilidade de conflitos entre ambos os tipos de minorias em
decorrência de políticas estatais – o que pode ocorrer quando o Estado usa uma
contra a outra a fim de conter ímpetos.
A partir da análise dos ímpetos das minorias, os nacionalismos são
classificados em dois tipos: nacionalismos étnicos excludentes (que exigem pré-
requisitos naturais especiais, como o sangue) e nacionalismos liberais includentes
(tem como requisitos a voluntariedade e comportamentos – como tempo de estadia
no território e aprendizado de uma língua). Esses últimos não podem ser
confundidos com xenofobia, pois nacionalismos minoritários não-violentos,
contextualizados em democracias liberais, desafiam diariamente a política dos
Estados onde se encontram por causa de suas demandas por reconhecimento
cultural e por reforço de representação política, ameaçando a estabilidade –
demandas essas que não encontram respostas claras na tradição liberal silenciosa
quanto à matéria.
Para Estados multinacionais, é defendida a fórmula dos federalismos
multinacionais ou de povos autogovernados. Nesse caso confluem a nação
majoritária/estatal e outras minoritárias. Assim, acomodam-se as minorias nacionais
dentro da maioria estatal, num federalismo diferente do simplesmente territorial, o
qual atende apenas aos interesses regionais de comunidades da mesma nação
homogênea.
Segundo e Mora (2004), Kymlicka trata de adaptar os direitos das minorias ao
liberalismo, pois entende que este e seus direitos são indiscutivelmente prioritários.
O liberalismo deve limitar as práticas das minorias, bem como intervir para a
anulação de práticas não-liberais que porventura possam ter.
22
A perspectiva liberal acerca dos direitos das minorias exige liberdade no
interior do grupo minoritário e igualdade entre maiorias e minorias – o que significa
direitos de restrição interna e direitos de proteção externa. Os critérios para a
aplicação da restrição interna de práticas não-liberais devem ser contextualizados,
ponderando-se o que deve ser restringido de acordo com o contexto em que tal
prática ocorra. Segundo Daniel Bonilla Maldonado (2006), a única exceção a esse
princípio se daria quando do perigo iminente de desaparecimento de uma minoria
cultural se restrições internas não forem praticadas.
A maior crítica à obra de Kymlicka se dá quanto à predeterminação do
conceito básico liberal de autonomia – conceito da cultura ocidental. Assim, diálogos
com culturas que não reconhecem o conceito de autonomia do indivíduo não são
possíveis. O autor, inclusive, sustém que o liberalismo não pode fazer concessões
no tocante à autonomia do indivíduo (SORIANO e MORA, 2004).
Maldonado (2006) também critica a teoria de Kymlicka em um ponto
fundamental: sua insuficiência em acomodar as diferenças radicais constantes da
imensa diversidade cultural do mundo contemporâneo. Justamente no tocante à
impossibilidade de se aceitarem restrições internas ao liberalismo – o que impede
que membros de minorias sofram limitações de seus direitos básicos para que a
integridade cultural seja respeitada. A autonomia e a auto-reflexão não seriam
valores tão importantes, para comunidades autoritárias, quanto a estabilidade, a
ordem e a obediência à autoridade. Os valores liberais teriam, para Kymlicka,
prioridade em relação aos que não o são – pondo à prova a utilidade de uma teoria
que busca a resolução dos conflitos entre os vários tipos de valores através da
prevalência absoluta dos valores liberais em todas as situações.
5. O debate entre liberais e comunitaristas e a sua importância para uma
construção pluralista de justiça através do intercu lturalismo
Costuma-se afirmar que há uma grande dicotomia no debate entre
comunitarismo e liberalismo, visto serem, segundo Bobbio (apud Ermanno Vitale,
2004), uma relação dilemática a que se apresenta, já que as principais
características dilemáticas são a não-verificação de um ponto de intersecção entre
23
ambas as esferas e a impossibilidade de se encontrar em um terceiro conjunto
exterior a qualquer delas, algo que se comprova a partir do diagnóstico obtido da
política dos últimos anos: ou se está em uma ou em outra.
Apesar dessa grande separação, tem-se verificado esforços no sentido de se
buscarem posições intermediárias ou terceiras vias – que, apesar de parecerem
contraditórias, são possíveis, já que há quem sustente que a parelha conceitual
liberalismo-comunitarismo seja, na verdade, não uma grande dicotomia em si
mesma, mas apenas expressão de uma dicotomia ainda maior, consistente entre
mecanicismo e organicismo– ou, como consideram outros (entre eles Mimi Bick,
1995), entre atomismo e holismo. Aliás, liberalismo e comunitarismo são categorias
analíticas muito genéricas e, muitas vezes, enganosas: o primeiro abarca desde
concepções da economia de mercado até o Welfare State, passando por direitos
individuais e procedimentos democráticos; já o segundo pressupõe coletividades
muito distintas, mas de maneira indiscriminada – comunidades naturais, associações
voluntárias, cidadania republicana, pertença cultural, diferenças de gênero e étnico-
raciais etc.
Ser liberal não implica necessariamente ser mecanicista, assim como ser
organicista não quer dizer necessariamente ser comunitarista. Bobbio (apud
VITALE, 2004) enuncia que o organicismo tem como função fazer predominar a
visão de bem do governante, sendo assim monocrático, enquanto o mecanicismo
justifica e desenvolve a concepção dos governados de maneira democrática. As
denominações de ambos os termos advêm, na verdade, dos modelos naturalista
aristotélico (no caso do organicismo) – que prega existir o membro apenas em
função da coletividade orgânica, sendo um dado natural a formação da sociedade –
e hobbesiano artificial (mecanicismo) – de tese oposta, segundo a qual o todo social
não é mais do que a soma das partes individuais, cuja disposição não é
necessariamente harmônica, ordenada e predisposta a um fim natural, mas sim a
uma finalidade artificial, para a qual se deve sopesar o quão integrado ao
funcionamento do todo criado para o cumprimento das relações artificiais de poder
que visam atender às necessidades individuais se encontra o indivíduo: o estado
natural em que o indivíduo se encontra seria insuficiente para o desenvolvimento
24
das plenas capacidades, daí o escopo da artificialidade coletiva da comunidade
organizada.
Um ótimo exemplo é citado por Vitale (2004) a fim de se compreender o
porquê de serem errôneas generalizações sinonímicas entre comunitarismo/
organicismo e liberalismo/mecanicismo: o Terceiro Reich combinava a exasperação
do organicismo – ao submeter todo indivíduo à chamada ideologia völkisch – a uma
máquina burocrática poderosíssima – elemento marcadamente mecanicista. Essa
situação também demonstra não ser o posicionamento entre liberalismo e
comunitarismo uma grande dicotomia por duas razões: é possível um meio-termo ou
intersecção entre ambas as conceituações e, por ser apoiada em outras dicotomias
– sociedade/comunidade, indivíduo/comunidade e Estado/comunidade –, não tem
característica “fundacional”, não constituindo uma grande dicotomia.
A possibilidade teórica de combinações de características comunitaristas e
liberais (visto não serem constitutivas duma grande dicotomia) torna possível
também um ponto de convergência, uma terceira via entre ambos, dando margem
ao chamado interculturalismo – que é definido por Soriano (2004) como um ponto de
chegada resultante das conquistas da tolerância e da solidariedade, sendo
superadas as concepções políticas liberais e comunitaristas.
A idéia de interculturalismo remete a uma coexistência igualitária entre
culturas. Não se confunde com o multiculturalismo, pois enquanto este possui várias
acepções e é mais identificado com a simples coexistência das culturas, o
interculturalismo tem pretensões para além da coexistência: há cunho de
normatividade e caráter também preventivo, aludindo à exigência de um tratamento
igualitário às culturas. Não significa a simples coexistência plural, pois representa
uma duplicidade de planos: no plano ético, as culturas devem participar
igualitariamente por terem o mesmo valor no intercâmbio cultural; no plano
sociológico, a igualdade intercultural deve ser mantida e estimulada para que se
facilite seus contatos na busca por pontos em comum.
A tolerância é um conceito variável no tempo e no espaço – ou seja, cada
época e cada coletividade têm a sua acepção própria. Juridicamente, ela significa a
25
não-interferência no comportamento alheio em respeito à sua dignidade. Nela
fundamentaram-se as liberdades (direitos de primeira geração), desenvolvendo
múltiplos desdobramentos do respeito e do reconhecimento dos demais em
igualdade. De maneira direta, ser tolerante é respeitar a liberdade alheia.
A variabilidade temporal do conceito de tolerância pode ser observada ao
analisarem-se suas três fases históricas: pré-liberal (séc. XVI), liberal (séc. XVIII) e
pós-moderna. A primeira dessas fases se caracteriza pelo fato de ser estritamente
ligada à religião, ou seja: tolerava-se a coexistência de grupos (visto que não se
fazia menção à religiosidade do indivíduo, mas de coletividades, como católicos,
puritanos, etc.) fiéis a uma religião diversa da oficial – daí também seu caráter
vertical, tendo em vista que se tratava de uma relação direta para com o Estado. A
segunda fase da tolerância, liberal, é horizontal, universal (reconhece a todos) e
pessoal, referindo-se diretamente ao indivíduo (não a agrupamentos). Por esse
motivo, pode-se afirmar que essa forma de tolerância é o princípio da autonomia
pessoal. A terceira forma temporal de tolerância, pós-liberal, é marcada pelo respeito
à diversidade (ou pluralismo) cultural. Daí tem-se que sua maior problemática é a
não-tolerância de minorias por parte de outrem, e sua maior luta é a defesa à
identidade contra os poderes superiores – que pretendem muito mais subjugá-las do
que proibir práticas não-liberais que porventura apresentem, conforme argumento
tão difundido por forças hegemônicas ocidentais – reclamando criação e aplicação
de legislação destinada à coexistência harmônica.
O outro precedente do interculturalismo, a solidariedade, é um conceito que
conjuga o reconhecimento do outro e o apoio a ele. Isso porque apenas o
reconhecimento de outrem não basta, deve-se ser solidário ao bem da alteridade.
Juridicamente ela deve ser algo exigível (deixar de ser super-rogatória, norma
promocional para se tornar dever jurídico positivo) e a criação de deveres gerais
positivos, no sentido de proteger os indivíduos contra práticas culturais destrutivas
(como a excisão clitoridiana praticada por povos africanos islâmicos, por exemplo). A
solidariedade é, dessa forma, o valor jurídico que melhor protege as culturas, pois
estas demandam, além da não-interferência, a colaboração dos poderes públicos.
26
O interculturalismo é conseqüente da globalização, já que este fenômeno
aproxima as culturas antes distantes, fazendo com que se estudem possibilidades
de convívio entre elas. Mas é, concomitantemente, influenciador da globalização
pelos seguintes fatos: adiciona à agenda de resolução de problemáticas da
globalização a questão de como construir relações interculturais, opostas à
homogeneização cultural característica da globalização; e ter a intenção de superar
o imperialismo, o comunitarismo e o liberalismo.
Há três fundamentos do interculturalismo: epistemológico, ético e histórico. O
fundamento epistemológico consiste no uso da racionalidade para que se realize
dois tipos de crítica, a autocrítica (submissão dos próprios valores à reflexão
pessoal, reexaminando os próprios valores sob a influência da crítica alheia) e a
heterocrítica (aceitação da discussão alheia acerca dos valores culturais). Ambos os
tipos de exame levam a uma nova espécie de aceitação do estrangeiro, pois quando
se aceita a crítica por parte deste, colocando-se sob o ponto de vista alheio, se é
convertido em estrangeiro de si mesmo.
Ao lado do uso da razão para autocrítica e heterocrítica, deve-se também
reconhecer que o racionalismo não é a única maneira de se produzir conhecimento.
Isso leva à implementação de um câmbio aberto entre culturas, ou seja, não
direcionado dentro de uma tradição determinada, que permite a criação de um
patrimônio comum que pode desenvolver uma nova lógica, que combine as várias
lógicas das diversas culturas em contato.
O fundamento ético do interculturalismo se dá acerca do valor da inclusão, a
qual se traduz no direito à participação no direito, que pode se dar em dois níveis: no
estatal e no supra-estatal. No âmbito estatal, nota-se a importância da participação
na construção do direito por parte das culturas porque estas necessitam de um
direito a elas condizente para que haja possibilidade de prosperarem – em outras
palavras, para que não haja “cidadãos de segunda classe”. Há três possíveis formas
de inclusão das culturas no direito interno: pragmática, segundo a qual sociedade e
Estado hegemônicos incluem as novas culturas de acordo com seus interesses;
ética, que tem na inclusão a superação dos interesses hegemônicos, levando-se em
consideração a realização dos interesses particulares; e, por fim, moral, na qual
27
tanto grupos incluídos quanto excluídos devem ser beneficiados pelo alcance de
normas racionais e garantistas.
A inclusão moral conduz à busca de um ponto médio justo entre as culturas
hegemônicas e imigrantes, sopesando e valorando condições mínimas de aceitação
– já que compartilhar se torna um dever moral de justiça. Essa moralidade da justiça
deve atender a um princípio mínimo de moralidade, de acordo com o qual: deve-se
estabelecer o ponto médio entre as culturas dos locais de origem e destino dos
imigrantes; a naturalização (conversão do excluído em cidadão) demandaria um
período de residência não superior a dois anos no território de destino; e o processo
de entrada e saída de imigrantes deve ser internacionalizado, visto não terem os
Estados forças suficientes para evitar a xenofobia, muitas vezes.
Quanto ao âmbito supra-estatal, há duas maneiras para a expansão do ideal
de inclusão: o cosmopolitismo, sendo concedida a cidadania universal à lealdade
para com a humanidade – cidadania esta que não deve ser excludente em relação a
outras formas de cidadania; e o cosmoculturalismo, patrimônio comum de valores e
princípios (algo como uma versão cultural da cidadania universal), que pode resultar
do interculturalismo – assim como cidadãos podem vir a serem leais para com a
humanidade, culturas podem vir a se tornarem leais para com essa gama de valores
construída a partir da participação igualitária das culturas.
O fundamento histórico do interculturalismo se dá justamente ao se perceber
o fracasso dos projetos universalistas, principalmente dos iluministas. Esses projetos
revelaram uma característica de universalidade meramente retórica e dogmática,
que excluiu muitas grandes coletividades (como raças, gêneros e classes sociais)
por meio de sua rigidez – revelando serem os universalismos condizentes com os
interesses da cultura hegemônica de sua época, sem contar com a participação
relevante de outras culturas.
Assim, tem-se que o discurso intercultural no Ocidente pode ser o seguinte:
ter os direitos como projetos do interculturalismo, e não como resultados apenas;
esses direitos devem ser da humanidade, e não de uma cultura ou apanhado de
culturas que alcançaram um status ao qual todas as outras devem atingir; deve
28
haver pureza nesses direitos, para que não sejam tidos como imperialistas ou
negativamente comprometedores em relação a culturas diversas da Ocidental; e, por
fim, apresentação humilde, reconhecedora de falhas históricas dos direitos
resultantes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É fato notório e de impossível retrocesso a confrontação entre culturas
diferentes. A modernização trouxe essa possibilidade em decorrência principalmente
do progresso tecnológico, dando maior visibilidade real e virtual à alteridade cultural,
gerando influências (muitas vezes negativas, como no caso da homogeneização
cultural trazida pela cultura global de massa) e conflitos entre as formas de vivência.
Isso também traz à tona a importância que as minorias (nacionais e étnicas
principalmente) passam a atribuir crescentemente às suas pertenças e identidades
culturais, ocasionando relações conflituosas com a paradigmática concepção liberal
ocidental de justiça – a qual atribui importância máxima às liberdades individuais, em
sua conformação mais ortodoxa.
O interculturalismo é uma possibilidade de diálogo decorrente do
reconhecimento das falhas de todas as formas anteriores de interpretação dos
direitos, evitando-se o choque entre culturas e ocasionando a possibilidade de
convívio (não apenas coexistência) entre culturas. Constrói-se, a partir dele, o direito
de forma mais democrática, já que se passa a respeitar as várias formas de
entendimento do mundo, sendo possível uma concepção condizente à humanidade
como um todo, e não como apenas uma cultura dominante a compreende.
Nota-se na concepção comunitarista de Taylor uma tentativa de se respeitar
as concepções culturais coletivas, atribuindo a elas uma importância fundamental, já
que servem de fundamento para as concepções individuais. O entendimento liberal
de Kymlicka deve também ser citado como importante para esse processo de
aproximação, já que admite as concepções culturais dentro do próprio liberalismo,
visto tê-lo como ainda em construção, julgando a clássica visão puramente
individualista insuficiente para a problemática atual dos encontros culturais. Ambas
29
as visões, apesar de todas as críticas e limitações, demonstram esforços no sentido
de se aproximar o liberalismo e o multiculturalismo, acabando com o purismo de
concepções.
Como não se trata de uma grande dicotomia a parelha comunitarismo-
liberalismo, há a possibilidade de se conciliar elementos de ambas as visões. São
necessários mais estudos, mais interpretações nesse sentido, para que o errôneo
entendimento dicotômico liberal-comunitarista seja desvanecido, possibilitando, ao
menos no nível teórico, maior aproximação, para que uma concepção dialógica e
pluralista de direitos possa vir a substituir visões universalistas, homogeneizantes e
imperialistas.
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