dissertacao daniela de freitas ferreira
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DANIELA F. DE FREITAS FERREIRA
2 CICLO DE ESTUDOS EM ARQUEOLOGIA
MEMRIA COLETIVA E FORMAS
REPRESENTATIVAS DO (ESPAO) RELIGIOSO.
O contributo da epigrafia votiva para o entendimento das
manifestaes religiosas no contexto de ocupao romana da
Beira Interior.
2012
Orientador: Professor Doutor Armando Coelho Ferreira da Silva
Verso provisria.
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UNIVERSIDADE DO PORTO FACULDADE DE LETRAS
DANIELA FILIPA DE FREITAS FERREIRA
2 CICLO DE ESTUDOS EM ARQUEOLOGIA
MEMRIA COLETIVA E FORMAS
REPRESENTATIVAS DO (ESPAO) RELIGIOSO.
O contributo da epigrafia votiva para o entendimento das
manifestaes religiosas no contexto de ocupao romana da
Beira Interior.
Dissertao apresentada Faculdade de Letras da Universidade do Porto, para a obteno
do grau de mestre em Arqueologia. Realizada sob a orientao cientfica do professor Doutor
Armando Coelho Ferreira da Silva, presidente do Departamento de Cincias e Tcnicas do
Patrimnio e diretor de curso de Doutoramento do 3 Ciclo em Museologia
DEPARTAMENTO DE CINCIAS E TCNICAS DO PATRIMNIO
Porto
2012
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3
[] la religin est une chose minemment sociale. Les
reprsentations religieuses sont des reprsentations
collectives qui expriment des ralits collectives; les rites
sont des manires dagir qui ne prennent naissance quau
sein des groupes assembls et qui sont destins susciter,
entretenir ou refaire certains tats mentaux de ces
groupes. Mais alors, si les catgories sont dorigine
religieuse, elles doivent participer de la nature commune
tous les faits religieux: elles doivent tre, elles aussi, des
choses sociales, des produits de la pense collective.
(. Durkheim 1925)
O sabor que nos fica de continuidade pacfica. Vieram
colonos. Trouxeram deuses, trouxeram nomes, trouxeram
arte, poesia vinha tambm na bagagem. Aqui estavam
deuses, habitantes de santurios e penedias; as gentes
usavam nomes antigos, estranhos mas foneticamente
identificveis. E o casamento deu-se. As famlias
cresceram. As villae tambm. Os deuses foram honrados.
Os mausolus fizeram-se. Ritual de morte, ritual de vida.
Indgenas e colonos lavraram perenemente na pedra o
sinal duma coexistncia exemplar.
(J. dEncarnao 1989: 319)
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AGRADECIMENTOS
O meu sincero agradecimento constitui um preito de justia e de homenagem sentida a
todos os que me acolheram, guiaram e apoiaram, permitindo a concretizao da presente
dissertao e a minha realizao pessoal.
Cumpre-me distinguir, em primeiro lugar, o contributo de todos os museus,
organizaes locais e demais instituies culturais que possibilitaram a investigao e o estudo
dos monumentos epigrficos revelando uma imediata disponibilidade e um notvel esprito de
cooperao cientfica. A sua importncia assume, no caso presente, uma valia to significativa
que, sem eles, teria sido impraticvel chegar a qualquer resultado digno de meno. Por
conseguinte, destacamos a colaborao do Museu Regional da Guarda, na pessoa da Dra.
Dulce Helena Pires Borges, o contributo do Museu Arqueolgico Municipal Jos Monteiro, do
Museu Municipal de Penamacor, do Grupo de Estudos e Defesa do Patrimnio Cultural e
Natural da Gardunha, e, por ltimo, do Museu Etnogrfico Egitaniense. As referidas
instituies disponibilizaram o acesso s suas colees epigrficas assim como o registo
fotogrfico dos monumentos mencionados no presente estudo. Sublinho igualmente a
colaborao do Museu Tavares Proena Jnior na pessoa da Doutora Aida Rechena pela
recetividade demonstrada na visita s reservas e estudos das suas epgrafes. Por ltimo,
acentuo a colaborao do Museu Municipal do Sabugal, na pessoa da Dra. Carla Augusto,
expressa na cedncia de informao relativa aos monumentos, na cedncia de fotografias dos
mesmos e na colaborao prestada. A todas as instituies, ficam aqui expressos os meus
sinceros agradecimentos pela colaborao e pela amabilidade de me receber.
Sublinho igualmente a cooperao do Instituto de Arqueologia da Universidade de
Coimbra e do Departamento de Cincias e Tcnicas do Patrimnio da Universidade do Porto
pelo apoio que sempre me disponibilizaram. Ressalvo ainda a colaborao da Casa do Castelo
do Sabugal, na pessoa da D. Natlia Bispo, pela recetividade demonstrada no acesso ao
monumento epigrfico que se encontra sua guarda. Acrescente-se o contributo do Dr. Marcos
Osrio expresso na cedncia de imagens dos monumentos a seu cargo, na orientao prestada e
na profunda recetividade demonstrada.
Por ltimo, desejo expressar o profundo reconhecimento pelo contributo do orientador
cientfico da presente dissertao, Prof. Doutor Armando Coelho Ferreira da Silva, pelos
fecundos ensinamentos e princpios de integridade cientfica que sempre me soube transmitir
desde os primeiros momentos, e pela disponibilidade demonstrada na partilha da sua larga
experincia como notvel investigador.
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RESUMO
O entendimento das manifestaes religiosas assume-se como uma
das ticas de estudo mais relevantes na abordagem das dinmicas inerentes
ao processo de aculturao verificado entre indgenas e romanos em
territrio nacional. A fonte primordial para este entendimento cabe
epigrafia votiva, compreendida como provedora de nomes divinos, de rituais
de culto, de modelos de dedicantes e de frmulas organizativas de
pensamento.
A Beira Interior portuguesa, detentora de um avultado nmero de
testemunhos epigrficos e depositria de uma notvel diversidade de
tenimos de leitura segura e de meno exclusiva na regio, afigura-se como
um espao mpar para o estudo das expresses religiosas indgenas e, por
conseguinte, para o estudo das comunidades pr-romanas. Tomando em
considerao esta singularidade, e partindo da anlise conjunta do somatrio
de monumentos votivos consagrados a divindades indgenas; formulamos
uma proposta de ordenao do panteo religioso pr-romano baseado no
grau de exclusividade dos tenimos registados, relativamente regio em
estudo. A finalidade ltima compreendeu a verificao de regionalismos
religiosos e o entendimento das relaes que se estabelecem entre as
diferentes divindades, organizando-se, por conseguinte, a aparente desordem
subsequente de uma to marcada diversidade teonmica.
O resultado desta interpretao expressou-se na individualizao de
tenimos de meno exclusiva da Beira Interior portuguesa, na
particularizao de tenimos regionais que atestam a possibilidade de um
panteo votivo alargado s regies adjacentes, e na distino destas
especificaes relativamente aos tenimos de mbito geogrfico alargado,
i.e., em relao s designaes divinas amplamente representadas no
restante territrio hispnico. A proposta organizativa apresentada permitiu
percecionar mbitos geogrficos especficos de cada um destes grupos;
contribuindo assim para a definio do campo de ao de cada uma das
divindades evocadas e para a consequente definio dos seus atributos.
***
Palavras-Chave: Religio; epigrafia; aculturao; indgena; panteo.
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6
ABSTRACT
The understanding of religious manifestations is assumed as one of
the most relevant studies in the dynamics inherent to the process of
acculturation occurred between indigenous and Romans in the Portuguese
territory. The primary source for this view lies with the votive epigraphy,
understood as a provider of divine names, rituals of worship, models of
worshiping and forms of thought organization.
The Portuguese Beira Interior, possessor a large number of epigraphic
testimonies and repository of a remarkable diversity of theonyms and unique
words in the region, appears as a singular area for the study of indigenous
religious expressions and, consequently, for the study of pre-Roman
communities. Taking into account this singularity, and based on the joint
analysis of the sum of votive monuments dedicated to indigenous deities; we
have formulated a proposal of organization of the pre-Roman religious
pantheon based on the degree of exclusivity from the theonyms recorded in
the region under study. The ultimate goal focused the understanding of
regionalism and religious thought established between the different deities,
and the organization, in consequence, of the apparent disorder subsequent to
such a marked diversity of theonyms.
The result of this interpretation has expressed in the individualization of
theonyms only mentioning in Beira Interior, in the particularization of
regional theonyms which confirm to the possibility of a votive pantheon
extended to adjacent regions, and in the distinction of these specifications in
relation to a wider geographical scope of theonyms, i.e., in relation to the
designations of the divine, widely represented in the rest of Hispanic
territory. The proposed organization allowed us to perceive specific
geographical areas of each of these groups, thus contributing to the
definition of the fields of action of each evoked deities and the consequent
definition of their attributes.
***
Keywords: Religion; epigraphy; acculturation; indigenous; pantheon.
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7
NDICE
NOTA INTRODUTRIA
PARTE I. Enquadramento
CAPTULO I. Definio e natureza dos conceitos utilizados.
Problematizao dos conceitos e aplicabilidade ao contexto estudado.
1.1. O conceito ocidental de religio como uma noo culturalmente
determinada. Projeo da mentalidade religiosa moderna na
interpretao da organizao religiosa indgena e romana.
1.2. Conceito de Panteo aplicado s expresses religiosas pr-romanas.
1.3. Esclarecimento e problematizao dos conceitos de romanizao;
etnia e indgena.
CAPTULO II. Resenha histrica dos estudos alusivos epigrafia votiva da
Beira Interior portuguesa.
CAPTULO III. Contextualizao. Delimitao e caracterizao
geogrfica. Introduo sucinta ao processo de aculturao dos cultos
indgenas.
PARTE II. Interpretao e concluses.
CAPTULO IV. Anlise epigrfica. Interpretao individual dos tenimos
registados na Beira Interior portuguesa.
1.1. Tenimos exclusivos da Beira Interior portuguesa (grupo I).
1.1.1. Inscries consagradas a Aelua.
1.1.2. Inscries consagradas a Aetio.
1.1.3. Inscries consagradas a Aratibro.
1.1.4. Inscries consagradas a Asdia.
1.1.5. Inscries consagradas a Collovesei Caieloni Cosigo.
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1.1.6. Inscries consagradas a Corua.
1.1.7. Inscries consagradas a Iccona Loimina.
1.1.8. Inscries consagradas a Igaedo.
1.1.9. Inscries consagradas a Laepo.
1.1.10. Inscries consagradas a Oipaengia.
1.1.11. Inscries consagradas a Trebopala.
1.2. Tenimos regionais (grupo II).
1.2.1. Inscries consagradas a Arentio.
1.2.2. Inscries consagradas a Erbina.
1.2.3. Inscries consagradas a Laneana.
1.2.4. Inscries consagradas a Quangeio.
1.2.5. Inscries consagradas a Trebaruna.
1.3. Tenimos de mbito geral (grupo III).
1.3.1. Inscries consagradas a Ama Aracelene.
1.3.2. Inscries consagradas a Bandi.
1.3.3. Inscries consagradas a Munidi.
1.3.4. Inscries consagradas a Nabia.
1.3.5. Inscries consagradas a Reve.
1.4. Tenimos Indefinidos
CAPTULO V. Concluses. Anlise global do panteo religioso da Beira
Interior.
PARTE III. Bibliografia
1. ndice de siglas e smbolos
2. Bibliografia geral
PARTE III. Anexos
1. ANEXO I. Inventrio dos monumentos epigrficos votivos da Beira
Interior portuguesa.
2. ANEXO II. Mapas de localizao e cartografia (suporte digital).
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MEMRIA COLETIVA E FORMAS REPRESENTATIVAS DO (ESPAO) RELIGIOSO)
O contributo da epigrafia votiva para o entendimento das
manifestaes religiosas no contexto de ocupao romana na
regio da Beira Interior portuguesa.
NOTA INTRODUTRIA
s estudos epigrficos proporcionam indcios essenciais compreenso dos
processos de aculturao verificados entre indgenas e romanos no territrio
correspondente Beira Interior portuguesa, revelando-nos o resultado do
confronto dos diferentes universos culturais e o efeito que a influncia de um e outro
representaram no cmputo geral do entendimento dos fenmenos religiosos e da conceo e
organizao do seu panteo votivo. Considerando a importncia deste processo de adaptao
mtua e as carncias no conhecimento da realidade que lhe era prvia (relativamente s
manifestaes religiosas indgenas), procuramos, atravs do presente estudo, reunir os
conhecimentos essenciais sobre epigrafia votiva procedente da Beira Interior e, atravs deles,
traar o panorama religioso da proto-histria e aculturao da regio. Neste sentido,
procuramos compilar o conhecimento total dos abundantes testemunhos epigrficos atribudos
rea em apreo e o cotejo dos dados arqueolgicos disponveis relativos aos contextos de
provenincia dos monumentos votivos, nele incluindo, sempre que possvel, avaliaes crticas
dos dados com vista ao lanamento de novas hipteses que possam dinamizar a investigao1.
A finalidade ltima passa pela adoo de uma perspetiva interpretativa dos fundamentos da
religiosidade pr-romana considerando, para tal, a relevncia da anlise das repercusses da
religio na organizao das sociedades, i.e., aquilo que Max Weber designa de efeitos
prticos das religies2.
Efetivamente, as determinaes religiosas exercem um importante papel enquanto
reguladores da vida e da conduta quotidiana dos indivduos. Este aspeto particularmente
pertinente se nos referirmos ao mbito sociocultural do mundo clssico, com o qual a regio
em estudo toma contato pelo processo tradicionalmente designado de romanizao, e se
atendermos ao papel do sagrado enquanto sistema de regulamentao da vida neste particular
1Este objetivo pressupe o entendimento do monumento epigrfico como produto de uma escolha consciente
e intencional de ideias, expressas nas palavras gravadas; e de formas estticas concebidas para serem
transmitidas. Tomando em considerao esta premissa, atravs da anlise da grafia, da componente
gramatical e lexical dos vocbulos, do formulrio votivo e da antroponmia, -nos possvel, sob algumas
limitaes, e considerando a especificidade de cada monumento, estabelecer cronologias aproximadas,
inquirir sobre nveis de aculturao, e determinar correspondncias etimolgicas que permitem, por sua vez,
determinar possveis significados e contedos. 2 Weber 2006.
O
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10
contexto3. De fato, as determinaes ou servides religiosas apresentam-se como um dos mais
relevantes e interessantes fomentadores da ao dos indivduos e a forma como estas incitam
ou desmotivam determinados comportamentos , pois, um elemento fundamental para abordar
a religio a partir do seu interior (e no apenas nos seus contextos polticos, econmicos, etc.)
assim como para a compreenso da sua funo cultural.4
Para tal, recorremos elaborao de um inventrio epigrfico dos testemunhos votivos
da regio, atravs da recolha e compilao dos estudos atribudos aos diferentes autores que se
dedicaram anlise de cada um dos monumentos, procedendo sua organizao rigorosa, a
retificaes de leitura e incluso de informaes que consideramos pertinentes para a
compreenso das epgrafes5. Excluram-se do inventrio todos os monumentos para os quais
no se atribuem leituras fiveis, elemento fundamental para lanar hipteses interpretativas
com bases slidas 6 . As retificaes levadas a cabo resultaram da visualizao direta (e
3 [O panteo religioso] () no seria a mera soma dos deuses, mas uma totalidade organizada que, para os indgenas, explicava o mundo e a sociedade, ao mesmo tempo que pretendia reg-los. Alarco 2009. 4 O interesse do estudo de componentes da religio indgena ou romana no exclusivamente histrico ou
arqueolgico! Os conhecimentos obtidos atravs do estudo da epigrafia votiva, e, em consequncia, os
conhecimentos obtidos sobre determinados parmetros da histria, morfologia ou ainda da fenomenologia da
religio romana, no nos falam apenas de um passado morto h muito, como tambm desenvolvem
problemticas existenciais fundamentais e diretamente relevantes para o Homem contemporneo. Diz-nos
Mircea Eliade (1969: 11-17): do esforo hermenutico de decifrar o sentido dos mitos, smbolos e outras estruturas religiosas tradicionais [s quais acrescento a epigrafia votiva] resulta um considervel
enriquecimento da conscincia: em certo sentido pode falar-se at da transformao interior do
investigador. Sobre esta temtica refere ainda o autor() atravs de uma compreenso de tais situaes exticas [entenda-se: atravs do estudo das manifestaes religiosas concebidas como espelhos de realidades sociais] () que o provincianismo cultural transcendido. Mas h mais implicaes do que um alargamento do horizonte, um aumento esttico, quantitativo, do nosso conhecimento do homem. o
encontro com os outros - com seres humanos pertencentes a vrios tipos de sociedades arcaicas e exticas
que culturalmente estimulante e frtil. Promovendo assim a experincia criativa atravs do contato com aquilo que no nos familiar. Efetivamente, numa poca em que se discute o interesse da arqueologia
enquanto atividade profissional, como forma de conhecimento vivel num mundo cada vez mais pautado por
interesses economicistas imediatos, o esclarecimento dos propsitos e do contributo dos estudos
arqueolgicos deve ser, desde logo, considerado e explanado. Simultaneamente, nenhuma dissertao deve
ser elaborada sem que se estabelea, de antemo, o seu objetivo geral, o seu contributo para o conhecimento,
nem os princpios pelos quais se rege. As sucintas consideraes tecidas permitem anunciar esse contributo e,
nesse sentido, demonstrar a necessidade de uma reflexo sobre a forma como se encara o estudo da epigrafia
votiva, e, de uma maneira geral, sobre a forma como se encara o estudo de aspetos que dizem respeito aos contextos religiosos. De fato, [os] estudiosos limitam-se a analisar dados religiosos e esquecem-se, por vezes, de estudar o seu significado. Ora, esses dados representam a expresso de vrias experincias
religiosas, em ltima anlise, representam posies e situaes assumidas pelos homens no decurso da
histria. Quer queiramos quer no, o estudioso no terminou o seu trabalho aps ter reconstitudo a histria
de uma forma religiosa ou apresentado os seus contextos sociolgicos, econmicos ou polticos. Alm disso,
tem de compreender o seu sentido-isto , identificar e elucidar as situaes e posies que originaram ou
tornaram possvel o seu aparecimento ou o seu triunfo num momento histrico particular. Ibid.: 16-17. 5 Vide anexo I. A explanao da metodologia sob a qual se baseou a elaborao do inventrio, assim como
aspectos da sua organizao e contedos sero apresentados no incio do referido anexo. 6 Os monumentos excludos, apesar de no constarem do inventrio (anexo I), sero referidos ao longo do
corpo textual do presente estudo sempre que se justifique a sua meno, apresentando-se a sua leitura e informaes que consideramos pertinentes.
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decalque sempre que possvel) dos monumentos votivos7, compondo-se o referido inventrio
de informaes relativas provenincia e paradeiro das epgrafes, da anlise e caracterizao
do suporte onde se inscreve o voto e da meno pormenorizada do local de achado e respetivo
contexto arqueolgico 8 . Acrescente-se igualmente a incluso de informaes de mbito
paleogrfico, da transcrio, leitura e traduo da inscrio, da meno dos principais autores
consultados que fazem aluso a cada uma das epgrafes referidas, e, por ltimo, da
interpretao pessoal do monumento e inscrio, e da compilao das consideraes mais
relevantes dos principais estudos que recaem sobre cada uma das peas votivas9.
Simultaneamente, procedeu-se criao de uma base cartogrfica informatizada
referente aos locais de provenincia dos monumentos analisados no inventrio epigrfico,
possibilitando, de forma facilitada, o estabelecimento de possveis relaes geogrficas entre as
diferentes inscries atravs da visualizao, de forma isolada ou em conjunto, dos diferentes
tenimos e eptetos atestados epigraficamente. Sublinhe-se, no entanto, as limitaes
resultantes do desconhecimento dos locais exatos de provenincia e, considere-se igualmente,
que os locais referidos no traduzem, na generalidade dos casos, um contexto arqueolgico
original, mas antes contextos de reutilizao. Em consequncia, a informao que resulta da
anlise da distribuio geogrfica das epgrafes deve ser entendida sob grandes reservas,
utilizando-se somente, no presente estudo, como elemento auxiliar de confirmao do mbito
geogrfico de um dado tenimo10. A meno da provenincia, sempre que a mesma no seja
exata, ser remetida para o lugar, freguesia ou concelho conhecido de procedncia do
monumento.
7 Sublinhe-se, no entanto, a impossibilidade de acesso e estudo direto dos monumentos: EB.AL1; EB.C1;
EB.CR1; EB.I1; EB.O2; EB.AS1; EB:AS2; RA.A5; RA.E1; RA.E2; RA.Q1; RA.L1; AG.AM1; AG.B1;
AG.B4; AG.B9; AG.B12; AG.B14; AG.B15; AG.B16; AG.B17; AG.N2; AG.M1 e AG.R7. 8 [] apenas num adequado conhecimento do contexto arqueolgico [], poder oferecer-nos as chaves mnimas para termos acesso s caractersticas funcionais dos deuses da antiga Lusitnia[]. Trata-se de uma via de trabalho interdisciplinar necessria para superar ou corrigir o simples recurso comparao,
sobre as movedias bases da etimologia () Marco Simn 2002: 17-19. 9 Note-se que os tenimos conhecidos atravs dos monumentos votivos se apresentam, regra geral, em dativo.
Contudo, ao longo do trabalho, e com destaque particular para o inventrio epigrfico, procuraremos
reconstitui-los em nominativo, excetuando os casos em que os tenimos suscitem demasiadas dvidas,
preferindo-se, nessas circunstncias, apresentar as vrias formas adotadas pelos diversos investigadores que a
eles se referem, ou, a forma do nome tal como ele se apresenta na inscrio. As excees sero devidamente
explanadas ao longo do presente estudo. 10 Relembre-se que, quando nos referimos interpretao da realidade indgena, o estudo parte de
monumentos votivos realizados durante o perodo de ocupao romana, o que poder representar mbitos de
culto distintos das suas reas originais. Relembre-se igualmente o entendimento da religio como um
fenmeno mutvel. A identificao dos lugares de culto (atravs da anlise do contexto de achado) poder,
no entanto, e ainda que de forma indireta, conceber-se como um importante elemento para o esclarecimento dos atributos das deidades cultuadas.
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Partindo destes dois elementos (inventrio e cartografia), e da recolha e anlise dos
principais estudos que, ao longo do tempo, tm sido levados a cabo sobre cada um dos
tenimos, eptetos, e antropnimos, procedeu-se ao exame das designaes de deidades
registadas na rea de anlise em apreo, elaborando-se, para cada monumento, uma sntese dos
estudos que sobre eles recaem e uma anlise da sua expresso na regio especfica da Beira
Interior portuguesa11. Entendeu-se igualmente a necessidade de incluir no presente estudo uma
contextualizao geogrfica e histrica fundamental compreenso da anlise que ser
desenvolvida, assim como um esclarecimento e uma reflexo inicial de alguns dos conceitos e
problemticas mais relevantes no estudo de temticas to complexas como o so as expresses
religiosas.
Por ltimo, procederemos interpretao conjunta dos tenimos, sublinhando a sua
relao com o mbito territorial, e sempre que possvel, com os grupos culturais conhecidos,
concedendo, deste modo, uma paisagem ou um contexto social aos vislumbres possibilitados
pela componente religiosa, i.e., concedendo uma viso cultural de conjunto das comunidades
da Beira Interior durante o perodo de ocupao romana. No captulo final, procuramos
igualmente estabelecer um perfil regional de culto de cada uma das divindades recorrendo,
para tal, incluso de dados extra-hispnicos que permitem a sua caracterizao12 e destacando
a sua representao especfica na Beira Interior portuguesa. A finalidade ltima traduz-se na
procura de um esquema organizativo e interpretativo de todos os tenimos no seu conjunto,
passvel de fornecer um esboo do panteo religioso da rea em estudo durante o perodo de
ocupao romana, salientando-se exclusivamente, a componente religiosa indgena subsistente.
Refira-se igualmente, como apontamento final da presente nota introdutria, que a
seleo da Beira Interior portuguesa como objeto de estudo e a delimitao geogrfica proposta
baseia-se na suposio da existncia de um conjunto de tenimos representados na regio que
11 O que se pretende no passa pelo estudo exaustivo de cada um dos tenimos considerando que a grande extenso de tal anlise no permitiria desenvolver uma perspetiva aprofundada de todas as expresses de
culto indgena da regio da Beira Interior. Pretende-se, ao invs, a focalizao na especificidade de cada um
dos tenimos registados, e o estudo da sua organizao e estruturao conjunta. Excluiu-se igualmente do
presente estudo, os testemunhos votivos consagrados a tenimos que testemunham formas de culto clssico e
os testemunhos de assimilao das divindades indgenas nos cultos romanos (i.e., as divindades clssicas com
eptetos indgenas). Apesar de sublinharmos a importncia de um estudo conjunto do panteo religioso da
regio enquanto reflexo das influncias simultaneamente indgenas e romanas, consideramos que a
profundidade necessria ao estudo exclusivo das divindades pr-romanas impossibilitaria tal abordagem,
focando-nos, exclusivamente, no presente estudo, na singularidade das expresses de culto indgena durante
o perodo de romanizao da Beira Interior. Sobre esta temtica destaque-se a abordagem integral sobre as
deidades clssicas e indgenas da regio em estudo levada a cabo, em 2001, por Fernanda Cristina Repas. 12 Atravs da meno das diferentes interpretaes etimolgicas apresentadas.
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13
no encontram expresso no restante territrio peninsular13, apresentando-se esta regio como
um exemplo, e um panteo nico e distinto das regies que a delimitam.
13 Aos quais atribumos a designao de exclusivos.
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14
Definio e natureza do conceito utilizados.
Introduo contextualizao histrica.
A arbitrariedade da extenso do termo est na pretenso declarada ou tcita,
de individualizar em outras realidades culturais os mesmos elementos distintivos
que pertencem ao mundo ocidental cristo no qual a noo se formou.
(A. Di Nola 1987: 107)
1.1. O conceito ocidental de religio como uma noo culturalmente determinada. Projeo da mentalidade religiosa moderna na interpretao da organizao
religiosa indgena e romana.
O estudo da religio romana exerceu um profundo fascnio no mundo que se seguiu ao
fim do imprio clssico e, em consequncia, variadssimas consideraes, perspetivas e
reflexes sobre este tema foram levadas a cabo, elaborando-se uma vasta gama de obras que
incidem sobre estas temticas. No que diz respeito particularidade dos estudos epigrficos
afetos religio, os avanos feitos nesta rea focam-se na interpretao da significncia das
inscries votivas e na identificao de tenimos e dinmicas ligadas aos atributos e funes
das divindades consagradas, deixando de parte, na maioria dos casos, consideraes mais
abrangentes sobre o entendimento da vertente religiosa do mundo indgena. A complexidade
deste tema torna os esforos de reconstituio religiosa, ou at mesmo de reconstituio social
e poltica, insuficientes. Por conseguinte, torna-se necessrio abordar esta componente sob
variados pontos de vista e, sobretudo, refletir sobre a forma como at ento se tem olhado para
estas questes. Torna-se necessrio levar em conta o contexto do investigador! Efetivamente,
partindo da contemporaneidade que se debatem estes temas, e portanto, partindo de uma
plataforma temporal distante do mundo e das concees do territrio nacional durante o
perodo de ocupao romana. Paralelamente, esta contemporaneidade apresenta-se marcada
por um contexto prprio e por preocupaes, objetivos e pensamentos diferentes dos perodos
histricos que a antecederam. As diferentes concees e formas de ver o mundo impem
distintos entendimentos de um mesmo conceito, assim sendo, naturalmente, a forma como a
sociedade contempornea e a sociedade romana peninsular entendem o significado de religio
difere (pois esto inseridas em distintos contextos). Apesar desta condio fundamental ao
entendimento destas problemticas, os estudos que ao longo do tempo foram elaborados sobre
a componente religiosa romana peninsular nem sempre tornaram clara esta premissa14.
14A conscincia destes pressupostos e a necessidade de esclarecimento retm, atualmente, toda a minha ateno e sobre eles que me debruo no presente captulo que ter como objetivo no s a reflexo sobre a
Captulo I
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Efetivamente, todo o investigador encontra-se integrado num contexto prprio que lhe
intrnseco. Esse contexto (constitudo pela sua cultura, mentalidade e concees) apresenta-se
traumatizado pela evoluo natural dos tempos 15 , impossibilita-o de compreender, na sua
totalidade, realidades que vo para alm da sua, uma vez que no lhe possvel desapossar-se
por completo do seu contexto, e, simultaneamente, inteirar-se de uma realidade que lhe
alheia. Por conseguinte, as suas concees conferem interpretao que o investigador leva a
cabo, umas lentes previamente desfocadas pela cultura e mentalidade prpria da sua realidade.
Quando falamos de religio estas questes destacam-se particularmente devido ao relevo que a
mesma assumiu no cmputo geral da sociedade desde o perodo medieval ao mundo
contemporneo. Torna-se ento particularmente difcil ao investigador abstrair-se do conceito
moderno, ocidental e cristo de religio no estudo de outras realidades histricas e,
efetivamente, uma abstraco total ser impraticvel, caso contrrio o investigador estaria
despojado das concees que lhe permitem operar na sua prpria realidade. Importa ento reter
duas questes fundamentais: se por um lado no se pode olhar a realidade do outro
(pertencendo o outro ao passado histrico) e aplicar sobre ela as concees do nosso contexto,
comparando e colocando no mesmo patamar sociedades diferentes16, sob pena de criar uma
influncia da viso moderna, crist e ocidental sobre outras realidades religiosas, como tambm a procura de
uma elucidao pessoal que contribua para a elaborao de uma dissertao de mestrado mais consciente e
atenta s grandes problemticas que dizem respeito ao papel do historiador e arquelogo no estudo de temas
to complexos como a religio. Para o desenvolvimento destas problemticas apresentou-se como fundamental o estudo de autores como Mircea Eliade, que, atravs das suas obras Origens (1969) e Aspectos do Mito (1963) me permitiu tomar contato com o percurso da histria das religies na sua constituio como cincia e, simultaneamente, me permitiu adquirir conscincia da relevncia cultural dos
estudos sobre este tema. Destaca-se igualmente o estudo de autores como mile Durkheim (1925) que,
baseando-se em exemplos da etnografia, estabelece a classificao dos ritos que preenchem a organizao
social e aborda a relao entre sagrado e profano (aspecto fundamental para a compreenso da significncia e
implicao destes trs termos: rito, sagrado e profano); e Alfonso Maria di Nola, que serve de ponto de
partida para a problematizao do conceito de religio, mostrando que se trata de um termo historicamente
datado. Destaco ainda a importncia da obra Sociologia das Religies e Consideraes Intermedirias de Max Weber (2006) que coloca o papel central do estudo das religies no indivduo em substituio da
personalidade colectiva, servindo assim de contraponto a Durkheim, e possibilitando um estudo assente em diferentes perspetivas. Por ltimo nesta breve sntese de explanao das principais bases deste estudo, refiro R. A. Rappaport (2001) com a sua obra Ritual y Religion en la formatin de la humanidad e o seu contributo para a construo (ou desconstruo) da definio de religio; assim como Filomena Silvano
(2010) e Maurice Halbwachs (1968) como bases fundamentais para as novas propostas de entendimento das
dinmicas religiosas, privilegiando a ligao das concepes religiosas ao espao fsico e geogrfico. 15 O advento do cristianismo e a nova mentalidade que em consequncia se desenvolve, apresenta-se como
um dos elementos mais importantes quando nos referimos a apreciaes sobre o conceito de religio. Do
mesmo modo, o processo de industrializao que, via da regra, marca a Europa moderna, e as concees
desenvolvidas com o capitalismo emergente, contribuem para a construo da sociedade contempornea e da
forma como esta v a (sua) realidade e as que lhe antecederam, impondo pr-conceitos e pressupostos
prprios s leituras que fazemos. 16 Julian Thomas, na sua obra Archaeology and Modernity desenvolve aprofundadamente esta temtica: () I have been making a case that modernity is a unique condition, which in some stands apart from other forms
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16
reconstruo desse mesmo passado absolutamente ilusria. Por outro lado, devemos ter em
mente, focando-nos na particularidade do conceito de religio e na sua transposio para
outras culturas, que este termo possui uma histria longa se bem que culturalmente
limitada17. Com efeito, o termo religio invoca um conjunto de preconceitos que pertencem
ao mundo cultural europeu, ocidental e cristo na medida em que implica, partida, e de forma
subentendida, a ntida separao entre fatos religiosos/ sagrados dos fatos laicos/ profanos (ao
determinar a reverncia ao que sagrado); implicando igualmente uma estrutura ideolgica
mtica e ritual organizada e regida por leis autnomas18, i.e., um conjunto de leis prprias,
uma obedincia a determinados preconceitos religiosos, um conjunto de normas morais e uma
ordem; aspectos que no se adequam ou aplicam realidade das sociedades peninsulares
romanizadas. Verifica-se assim o uso indevido de um termo que se encontra, partida,
corrompido por um quadro cultural muito prprio no se adequando s restantes realidades19.
Como foi referido, o termo religio apresenta uma origem etimolgica e semntica
marcadamente ocidental e moderna, mas, efetivamente, em que medida o conceito religio
inapropriado para caracterizar o contexto romano ou, inclusivamente, indgena? Para explicar
esta problemtica baseio-me em duas premissas fundamentais: falo concretamente da aparente
inexistncia do termo religio, ou de outro seu anlogo, entre o vocabulrio clssico latino 20e,
por outro lado, da inadequao do significado de religio realidade romana. Relativamente
ao segundo aspecto evocado, importa, antes de mais, definir um dos aspectos principais e
basilares do conceito moderno de religio: o facto de ele designar a experincia do sagrado21.
of human existence, it would be quite wrong to imagine that all pr-modern and non-modern communities
are broadly comparable with each other ()Thomas 2004: 239. 17 Eliade 1969: 9. 18 Nola 1987: 107. 19Segundo afirma Alfonso di Nola (1987: 107): A arbitrariedade da extenso do termo est na pretenso, declarada ou tcita, de individualizar em outras realidades culturais os mesmos elementos distintivos que
pertencem ao mundo ocidental no qual a noo se formou. 20 No que diz respeito primeira premissa, torna-se necessrio referir as desenvolvidas consideraes de
Dumzil (1966: 128) relativamente ao termo latino religio, presumivelmente o mais similar do actual conceito de religio. Afirma o autor que este termo no corresponde, na sua totalidade, ao conceito de
religio moderno, antes parece, pelo contrrio, designar um aspecto diferente deste campo da vida romana: ao
contrrio de religio que define, partida, a existncia de uma estrutura de aco implcita portanto o rito ou ritual -, religio no implica qualquer ato, designando somente a ligao que se estabelece entre o Homem e o sobre-humano. Sobre este assunto, Pierre Grimal, apresenta uma explicao mais detalhada: A prpria palavra religio obscura. Inicialmente no designa o culto prestado s divindades, mas um
sentimento bastante vago, de ordem instintiva, de ter de se abster de determinado acto, uma impresso
confusa de se estar perante um perigo de ordem sobrenatural. Grimal 1984: 73. 21Atendendo significncia moderna deste termo: sagrado designa () [uma] pluralidade de deuses ou () uma grandeza numinosa impessoal (Lexicoteca 1987: 46) , portanto, engloba aquilo que est para alm do que natural ao Homem e ao seu quotidiano, estabelecendo assim duas dimenses distintas: aquilo que uma grandeza impessoal, o sagrado, e, uma segunda dimenso que abarca a diminuda pessoal (por
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17
Esta vinculao com o sagrado implica, necessariamente, a conceo de uma dicotomia
entre o sagrado e o no-sagrado, i.e., profano. Contudo, esta mesma oposio no parece
aplicar-se ao entendimento religioso romano, que no separa o que do foro sagrado da sua
vida quotidiana22, como acontece, alis, em outras sociedades modernas23. Efetivamente, a
separao entre sagrado e profano surge imposta pela modernidade e pelas suas concees
prprias, apresentando-se esta dicotomia como prejudicial para o entendimento da realidade
religiosa romana que no obedece a esta condio, uma vez que pressupe a separao entre o
que religio (e o que inclui a componente do sagrado) e a laicidade, separando assim o
mundo do divino do mundo do quotidiano24. Esta conceo no se verifica no mundo romano,
que incorpora sagrado e profano de tal modo que deixa de fazer sentido o recurso a estas duas
designaes: o sagrado encontra-se presente em todas as facetas do Homem: ()viver como
um ser humano , em si, um acto religioso, pois a alimentao, vida sexual e trabalho possuem
um valor sacramental. Por outras palavras, ser ou antes, tornar-se um homem significa ser
religioso25. Sob este ponto de vista, se tudo sagrado deixa de fazer sentido falar de
sagrado pois este apresenta-se integrado e impercetvel () quase como se o homem vivesse
numa permanente imerso do sagrado26. Logo, se o sagrado se apresenta como componente
basilar do conceito religio: se tudo sagrado, tudo religio. Em consequncia deixa
igualmente de fazer sentido falar de religio pois esta no independente da restante realidade.
Apesar de considerarmos que no contexto religioso romano no se justifique
individualizar o foro sagrado e o foro religioso da restante realidade, isso no significa
que no existam diversos momentos no quotidiano dessas mesmas sociedades em que no se
destaque aes com um cariz particularmente vocacionado para o sagrado, seno vejamos: a
construo de um templo romano no mais do que a consagrao da vertente religiosa num
mundo emerso no sagrado. Assim, a vertente sagrada est particularmente destacada no
interior do templo (ou quando se olha para o edifcio; para um altar; para uma epigrafe votiva,
oposio), ou seja, tudo o que sai fora do foro divino (estando assim diminudo em relao ao divino) e, portanto, pertence a um mundo profano, des-consagrado, quotidiano (pessoal). 22 () a religio est longe de se encontrar ausente da vida moral Grimal 1984: 72. 23
() many other societies do not distinguish ritual from secular action Brck 1999: 313. 24 Sobre este assunto ngel Aguirre reafirma a necessidade de atender aos perigos do uso indevido do termo
religio: () los perigros que implicaba emplear categorias como sagrado/ profano que, adems de resultar muchas veces inasibles tanto fuera como dentro de nuestra propia cultura, resultaba obvio que
estaban directamente extradas del repertrio ideolgico de las teologias cristianas Aguirre 1988: 593. Sobre este tema Alfonso Di Nola tece desenvolvidas consideraes que do nfase ao cariz econmico na
anlise desta dicotomia, mostrando uma tendncia para associao daquilo que pertence ao mundo religioso e
sagrado a elementos no funcionais e, em contrapartida, apresenta o mundo profano (no religioso) como
economicamente til. Nola 1987: 108. 25 Eliade 1969: 10. 26 Nola 1987: 108-110.
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para uma esttua divina, etc.) mas est tambm presente fora do templo (nas actividades do
quotidiano: nos rituais de construo de um edifcio, na interpretao de sinais nos objectos
que pertencem ao mundo do natural, etc.). Por outro lado, uma permanente emerso no
sagrado no significa que no se possam individualizar aes que no possuem qualquer
componente ou pretenso divina ou sagrada. Como nos refere Alfonso Di Nola:
No acontece porm que em tais sociedades no se sinta a diversidade entre o momento
do laico-profano e o momento do sacro. Pelo contrrio, muito frequente que o grupo
individualize a dicotomia entre as duas dimenses, () Mas, mesmo estando as duas
dimenses separadas, continua a haver entre elas a pulso de uma dialctica uniforme
que se manifesta como histrica do grupo e do homem.27
Isto significa que existem, efetivamente, momentos particularmente religiosos e
momentos exclusivamente laicos, tal como j foi referido. Contudo, esta perceo no permite
distinguir um mundo sagrado de um mundo laico, na medida em que estas sociedades no
individualizam aquilo que sagrado daquilo que o no . Desta forma, o foro do sagrado no
independente ou diferente do foro do profano, nem to pouco pode ser considerado como
secundrio (comparativamente quilo que laico/ profano/ quotidiano) uma vez que passvel
de estar presente em todos os momentos e regulam a sociedade28.
Considerando as limitaes inerentes utilizao do conceito de religio isso significa
ento que no faz sentido o desenvolvimento de estudos sobre estas temticas ou o uso do
termo religio? No. Certamente que a eliminao do termo religio como referncia para o
mundo romano (objeto de estudo neste caso particular) no condio nica ou definitiva:
efetivamente, o termo religio, quando aplicado ao mundo romano refere-se a prticas,
estruturas sociais e conceitos que no cabem no mundo actual e para os quais no esto
estabelecidas designaes. Por conseguinte, trata-se, em grande parte, de um problema de
linguagem, na medida que no existe um termo que abarque mais fielmente a realidade
religiosa romana do que o termo religio apesar das suas limitaes e de como j vimos, ser
um termo corrompido por uma cultura que no a romana, impondo por conseguinte,
subentendidos, pr-ideias do seu significado e das suas implicaes. Sobre este assunto, Mircea
27 Nola 1987: 109-110. 28 Relembre-se novamente Os deuses romanos nunca promulgaram declogos, nem a sociedade aproveitou este subterfgio para estabelecer os seus imperativos. No entanto a religio est longe de se encontrar
ausente da vida moral: intervm como um alargamento da disciplina, como um prolongamento da
hierarquia Grimal 1984: 72. Neste mesmo sentido, diz-nos Max Weber: Atravs da religio, toda a vida quotidiana romana do Romano e cada acto do seu comportamento estavam rodeados por uma casustica jurdico-sagrada () Weber 2006: 52.
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Eliade considera ser demasiado tarde para procurar outra palavra e que religio pode ser
um termo til desde que o mesmo no implique, partida, a crena em Deus, deuses ou
fantasmas29, i.e., desde que o investigador tenha conscincia das suas implicaes30.
1.2. Conceito de Panteo aplicado s expresses religiosas pr-romanas.
semelhana do que se verifica com a conceo de religio, a ideia que construmos
da significao e interpretao deste conceito apresenta-se amplamente corrompida (neste caso
no pela atualidade mas sim) pela imagem rgida e ordenada, tradicionalmente atribuda ao
mundo clssico. Pensar em panteo implica pensarmos em Zeus; Atena, Hera, Apolo, e
simultaneamente, em Jpiter, Marte, Diana, etc., nos seus atributos, nas suas interligaes e na
sua hierarquia, i.e., no conjunto organizado de deuses de uma dada mitologia. Tomando
conscincia deste pressuposto, importa sublinhar que as dinmicas religiosas estruturadas e
organizadas so a exceo numa realidade religiosa caracterizada por uma desordenada
confuso de formas de culto e por uma mutvel desordem que se exprime sob as mais variadas
formas e expresses religiosas. Efetivamente, em muitas sociedades o panteo no formado
por entidades (ou divindades) concretas, determinadas e gerais a toda a sociedade: diz-nos Max
Weber Mas to-pouco os deuses ou os demnios so ainda algo pessoal ou permanente,
e nem sequer tm sempre uma denominao particular31. Os pantees que se formam a cada
passo e em cada sociedade, para alm de absolutamente mutveis, traduzem uma criao de
acaso imposta por um determinado contexto, que, quando muda, muda consigo o seu panteo,
i.e., a sua ordem religiosa. A tendncia desta aparente desordem ser, certamente, o
29 Eliade 1969: 9. 30 Efetivamente, a tentativa de compor uma definio de religio universal, independente da realidade a que se aplique, apresenta-se como uma tarefa impraticvel dada a variabilidade de entendimentos que a
mesma engloba. Em consequncia, o resultado de tal tarefa seria uma descrio generalista do termo -
demasiado abrangente para que seja aplicada a qualquer realidade. Isto no significa contudo, que no se
possa compor uma definio relevante e til (apesar de generalista) para a compreenso deste complexo
conceito, no sendo, no entanto esse o objectivo do presente estudo. 31Weber 2006: 45. A primeira considerao de Weber baseia-se na conceo das figuras sobre-humanas
como figuras mutveis, isto significa, por exemplo, que, um contexto diferente pode levar uma mesma
sociedade a conferir uma maior importncia a uma divindade (at ento menor) e, da mesma forma, diminuir a importncia de uma figura central do panteo. De forma similar, um indivduo, consoante a sua
condio de vida a cada momento, pode dar maior ou menor nfase a determinadas figuras religiosas. A
segunda considerao de Weber, amplamente relacionada com a primeira, baseia-se no fato de que cada
sociedade possui o seu prprio panteo (com as suas prprias hierarquias) de acordo com as suas
necessidades ou caractersticas. O autor sublinha inclusivamente, relativamente s concepes religiosas pr-
romanas: Ora aparecem deuses sem quaisquer nomes prprios, designados apenas em funo do fenmeno sobre o qual tm poder, e cuja designao s paulatinamente quando em termos lingusticos, j deixou de ser entendida vai adquirindo o carcter de nome prprio; ora, pelo contrrio, h nomes prprios de chefes poderosos ou de profetas que passaram a ser designados de foras divinas Ibid.: 45.
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progressivo ordenamento e estabilizao que, contudo, pode ser abalada a cada momento32. O
estudo destas dinmicas e das suas causas apresenta-se, acima de tudo, como um dos
indicadores mais importantes para compreender o Homem, as suas motivaes, as suas
necessidades, preocupaes, anseios, atividades, etc., apresentando-se portanto, o estudo destes
temas como crucial, desde que seja consciente da diversidade de expresses religiosas e da
diversidade de formas que estas assumem. Sublinhe-se: o que est para l da organizao
estruturada e ordenada das divindades revela dinmicas sociais importantes.
1.3 Esclarecimento e problematizao dos conceitos de romanizao; etnia e indgena.
Frequentemente, nos diversos estudos desenvolvidos sobre a temtica referente
ocupao romana da Pennsula Ibrica, se recorre ao termo romanizao como referncia ao
processo de aculturao sofrido pelas populaes indgenas 33 . Alguns investigadores
discordam do recurso a este conceito, baseando-se em duas premissas fundamentais: por um
lado o fato do termo se remeter a concees que se formam em consequncia do impacto
cultural da colonizao europeia verificada ao longo do sculo XIX; por outro lado, aludem
especificidade do processo de assimilao da cultura romana, baseado na aceitao e
conivncia com as formas de cultura indgenas. Atendendo a estas premissas, prope-se a
utilizao de conceitos como aculturao ou assimilao34 como substitutos mais fidedignos
ao termos romanizao, traduzindo o processo de adaptao resultante de dois universos
culturais distintos.
No que diz respeito ao conceito de Etnia, esta expressa-se numa comunidade humana
definida por afinidades culturais e lingusticas. Enquanto entidades culturais, as etnias so
instveis, readaptando-se no tempo 35 . Este aspecto torna-se particularmente relevante se
32 Desconhecemos at que ponto a romanizao destruturou o panteo indgena. Supe-se que a romanizao dos cultos tradicionais teria implicado uma hierarquizao pelo menos diferentes dos deuses na linha da maior concretizao e especificao que encontramos no panteo greco-romano. O
problema reside no facto dos deuses se distinguirem sobretudo pela funo que desempenham no contexto do
grupo cultural especfico que lhes presta culto Marco Simn 2002. 33 Sublinhe-se a importncia do artigo de Blzquez Martnez, Romanizacin o asimilacin in Symbolae Ludovico Mitxelena Septuagenario Oblatae (1985) para a compreenso desta problemtica. Sublinhe-se
igualmente a proposta alternativa de manifestaes culturais como substituto recomendado a
romanizao, proposta por Julin de Francisco Martn no seu artigo Conquista y Romanizacin de Lusitania, datado de 1996. 34 Sugerido desde logo por Blzquez Martnez (1985). 35 A questo das etnias impe-se sobretudo quando analisamos a obra de Jorge de Alarco (1990, id. 2001;
id. 2009) onde o referido autor estabelece uma relao entre divindades e os populi atribudos Beira Interior
portuguesa. Diz-nos Alarco: legtimo interrogarmo-nos sobre se tais etnias ou gentes so, ou no, criaes dos Romanos, sem qualquer correspondncia com as identidades que as populaes pr-romanas
assumiriam [...] diremos que nos parece excessiva qualquer generalizao sobre as etnias ou povos da
Hispnia pr-romana sustentando que tais foram criaes dos Romanos. Pretend-lo no demonstrar o erro da tese contrria isto , da tese de que algumas etnias correspondem (ou podem corresponder) a
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21
tivermos em considerao o trauma tnico que representou a aculturao romana e o processo
de mudana desencadeado (permanecendo, no entanto, indefinido, o grau de mudana e
considerando a inviabilidade de uma completa reformulao tnica). As expresses religiosas
expressam-se como importantes factores identitrios, contribuindo para o estabelecimento de
vnculos e diferenas e, em consequncia, para a distino tnica. A religio, no pode,
contudo, ser o nico elemento a considerar quando falamos de etnias.
No que se refere ao conceito de indgena realamos unicamente36 o trabalho de Mara
de Lourdes Albertos Firmat sobre organizaes suprafamiliares, onde a autora aperfeioa
esta designao, contribuindo para o progressivo abandono da definio genrica de indgena e
lanando bases para designaes mais especficas como divindades e/ ou religio asturianas,
clticas, ibricas, lusitanas, etc..
Por ltimo, esclarecemos, de forma sucinta, o conceito de tenimo e epteto, amplamente
utilizado no presente estudo. Entendemos tenimo como toda a componente onomstica pela
qual se designa uma divindade, independentemente do nmero e natureza dos seus componentes37
podendo o termo tenimo, por conseguinte, integrar diversas designaes e adjetivos
(denominados de eptetos). O termo epteto adquire assim uma natureza adjetival, comportando,
regra geral, a segunda (ou demais) designao atribudas a uma divindade. A distino entre
tenimo e epiteto implica, contudo, alguma complexidade. Se em alguns casos os investigadores
so consensuais na diferenciao, outros casos suscitam grandes dvidas. Considerando a
especificidade da epigrafia votiva da Beira Interior, pela generalizao dos exemplos, assume-se o
nome inicial da divindade exclusivamente como tenimo e os nomes secundrios (um ou mais)
como eptetos38
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populaes com identidades prprias; apenas contrapor a hiptese de que elas existiam, uma outra
hiptese no confirmada: a de que as etnias mencionadas pelos autores antigos foram criaes dos
Romanos Alarco 2009: 91-92. 36 Atendendo s desenvolvidas consideraes levadas a cabo por Jos dEncarnao, impulsor, em territrio nacional, do conceito de indgena na temtica da religio pr-romana. 37 Guerra 2002: 63-66. 38 As excees so devidamente apresentadas ao longo da anlise individual de cada designao divina.
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22
Resenha histrica dos estudos alusivos epigrafia votiva
da Beira Interior portuguesa.
Para o estudo das dinmicas religiosas dos cultos indgenas e dos processos de
assimilao por parte das comunidades autctones da conceo religiosa romana, os dados que
dispomos apresentam-se, simultaneamente, escassos e confusos. Contrariamente ao que se
verifica em diversos territrios integrantes do antigo Imprio Romano, onde que se regista uma
manifesta correspondncia entre as divindades clssicas, de caratersticas amplamente
conhecidas, e as divindades indgenas (permitindo assim um entendimento mais facilitado
destas ltimas); em oposio, na Hispnia, esse vnculo menos evidente e intenso, e, por
conseguinte, a informao que possumos e o conhecimento desta realidade religiosa
apresenta-se claramente incipiente. Por outro lado, as fontes que dispomos para o estudo das
dinmicas religiosas peninsulares, quer iconogrficas, quer literrias, revelam-se diminutas
restando, por conseguinte, as fontes epigrficas como nico recurso possvel para a
compreenso de uma temtica de to grande complexidade. Saliente-se igualmente, o fato dos
testemunhos epigrficos atribudos ao territrio nacional, apesar de abundantes, se encontram
frequentemente deteriorados (impossibilitando a sua leitura); mal interpretados ou, no raras
vezes, desaparecidos. Em consequncia desta escassez de informao, o estudo das
caratersticas e mbitos das divindades indgenas da Hispnia e da organizao do panteo
religioso pr-romano e romanizado em territrio nacional, releva-se assente em estudos que se
baseiam ora em anlises lingusticas e etimolgicas de tenimos e eptetos, ora na explorao
do contexto geogrfico, cultural, social e econmico do perodo em causa com o intuito de,
atravs dele, estabelecer o campo de movimentao religioso, i.e., compreender as motivaes,
preocupaes e solicitudes das populaes que executavam e consagravam monumentos
votivos.
***
A antiguidade dos estudos sobre esta temtica clara, revelando que, desde cedo,
religio e epigrafia se aliaram suscitando um profundo fascnio entre investigadores39. Andr
de Resende, telogo e um profundo adepto dos estudos referentes Grcia e Roma Antiga,
publica em 1593 um ensaio sobre a Antiguidade da Lusitnia noticiando diversos achados
epigrficos. Escassos anos depois, Bernardo de Brito anuncia os primeiros volumes da sua
monumental obra referente histria de Portugal onde constam transcries epigrficas
39 Sobre este assunto veja-se o importante artigo de Helena Gimeno Pascual (2002). No qual a autora enceta
uma breve sntese da histria dos estudos sobre a religio indgena peninsular desde a Idade Mdia at s novas linhas metodolgicas impostas por Leite Vasconcelos, em finais do sculo XIX, incio do sculo XX.
Captulo II
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23
alusivas s formas de culto testemunhadas em territrio nacional durante a poca de ocupao
romana. Tratam-se, efetivamente, de estudos genricos, abrangentes e amplamente
influenciados pelo contexto em que foram produzidos revelando as suas teses, de grande
insipincia, lances das preocupaes da poca e influncias do cristianismo emergente.
Sculos passados, e o panorama dos estudos de religio romana no se altera. De facto,
apesar da solidez das observaes de Jernimo Contador de Argote, autor da histria
eclesistica de Portugal, de Jos Diogo Mascarenhos Neto e Frei. Manuel do Cenculo,
responsveis pela inventariao de um grande manancial de inscries; e de investigadores
como J.M. Huerta, dedicada epigrafia da Galiza; J. Prez Bayer e J. Cornide, conhecedores
da particularidade do fenmeno religioso indgena na regio da Estremadura portuguesa; os
progressos eram lentos e ignoravam os conceitos e a metodologia que, j no sculo XX, vai
pautar a Histria das Religies enquanto cincia. A importncia deste percurso de
investigao e dos ensaios iniciais produzidos por intelectuais e eruditos no deve, no entanto,
ser desconsiderado. De fato, as compilaes de testemunhos epigrficos ensaiadas constituram
a base fundamental e a matria-prima necessria para que, aquando o despoletar da
problemtica ligada ao indo-europeu, se adotasse uma nova metodologia de investigao
baseada nos estudos de lingustica comparada, abrindo assim um novo caminho e novos
campos de possibilidades para a informao passvel de ser veiculada atravs dos estudos
epigrficos. Este novo estmulo para o conhecimento foi naturalmente acompanhado de um
ressurgimento da poltica nacionalista baseada na procura das origens da nacionalidade, e
resulta igualmente do impulso dado pelo desenvolvimento de novas reas de conhecimento
como a antropologia e etnografia. S assim, considerando todo este conjunto de fatores, se
explica o profundo impacto que desencadeou na forma como se passa a abordar as
problemticas ligadas religio pr-romana peninsular.
A repercusso desta nova janela de oportunidades para a epigrafia e o grande passo nos
estudos da religio romana em territrio nacional ocorre, no incio do sculo XX, pela mo de
Jos Leite Vasconcelos que, partindo do inventrio epigrfico de Emlio Hbner, Corpus
Inscriptionum Latinarum40; dos estudos de Francisco Martins Sarmento e Gabriel Pereira, e
40 E. Hbner, por iniciativa da Academia de Cincias de Berlim, visita a Pennsula Ibrica por um perodo de
vinte meses que decorre entre 1860 e 1861, compilando informaes epigrficas recolhidas em museus,
arquivos e junto de eruditos e investigadores nacional um pouco por todo o territrio correspondente
Lusitnia, Hispania e Baetica, dando assim origem publicao em 1891 e 1892 aos dois volumes do CIL
(incluindo o volume de Suplementos e ndices) referente Pennsula Ibrica. Sobre a ao de E. Hbner,
sublinhe-se igualmente o artigo da autoria de Jos de Encarnao, A Escola Alem e os estudos de epigrafia romana em Portugal, datado de 2011, onde se elabora uma sntese do impato da interveno da Escola alem no conhecimento da epigrafia votiva em territrio nacional.
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24
fazendo eco das influncias de Adolfo Coelho e Tlio Espanca; empreende os primeiros
estudos sistemticos e metdicos sobre a religio indgena e romanizao na Pennsula41. Os
seus primeiros artigos, datados dos finais do sculo XIX 42 , concorrem como ensaios
preparatrios da sua obra fundamental Religies da Lusitnia 43 , que permitiu conferir o
impulso necessrio nos estudos e no entendimento da religio indgena na Hispania Antiga
atravs da aplicao de novos mtodos arqueolgicos, lingusticos, e simultaneamente
antropolgicos e etnogrficos, permitindo, simultaneamente, a libertao dos estudos relativos
a estas problemticas dos conceitos e instituies modernas, abordando o tema da religio
indgena estritamente como um fenmeno histrico.
Merecedor de um lugar privilegiado no panorama geral da histria antiga, e atestado
pelo grande nmero de investigadores que sobre ele incidem os seus estudos, o tema da
religio indgena renova-se com o contributo de diversos autores que prosseguem as pesquisas
de Leite Vasconcelos, reconhecendo as limitaes da sua obra; retomando a sua perspetiva de
anlise ou sugerindo novas e alternativas vias de investigao. Assim, os desenvolvimentos
referentes religiosidade romana peninsular so, no incio da segunda metade do sculo XX,
marcados por investigadores como D. Fernando de Almeida, protagonista da divulgao,
leitura, descrio e bibliografia de um grande nmero de epgrafes; Joaquim M. de Navasqus
e Antnio Tovar, Fidel Fita; Maria de Lourdes Albertos, Firmin Bouza-Brey e Antnio Garcia
y Bellido. Sublinhe-se igualmente Francisco Tavares Proena Jnior, Francisco Manuel Alves,
abade de Baal44, Flix Alves Pereira45, Albano Bellino46, J. Toutain47 e Jos Maria Blzquez
41 Realce-se igualmente, como antecessores de Jos Leite Vasconcelos, A. Freire de Carvalho; J. S. Pereira
Caldas; e Joaqun Costa. Os referidos autores desenvolveram relevantes obras sobre a religiosidade indgena
peninsular, abordando, no entanto a referida temtica, de forma parcial. 42 Dos quais se destaca O deus lusitano Endovellico publicado em 1890 no Jornal O dia; Novas Inscries de Endovellico de 1890; e Sur les Religions de la Lusitanie datado de 1892. So diversos os artigos publicados sobre a importncia de Leite Vasconcelos e da sua obra nos estudos das formas de cultos
indgenas peninsulares, sublinhe-se o relevante artigo sobre esta temtica da autoria de Carlos Fabio, Leite
de Vasconcelos e a gnese de Religies da Lusitnia Fabio 2002: 341-346. 43 Elaborada em trs volumes datados de 1897 (data da concluso de Religies da Lusitnia I) e finalizada a 1913. Leite Vasconcelos foi o primeiro investigador que desenvolveu o estudo da religio indgena na Hispania de um modo amplo e aprofundado, contudo, no proporcionou uma ordenao sistemtica dos seus
dados em resultado das grandes dvidas que esses mesmos dados ofereciam na poca em que levou a cabo os
seus estudos iniciais. Com Vasconcelos, pela primeira vez de forma metdica, as caratersticas das
divindades que pontualmente surgiam registadas em fontes epigrficas, e a sua funo no cmputo religioso
geral, i.e., o seu enquadramento no panteo, passam a estar (em grande medida) dependentes da interpretao
do prprio nome da divindade, conjuntamente, em alguns casos excecionais, com a interpretao do local
onde a divindade aparece epigraficamente referida. Esta opo pela etimologia reflete em grande medida as
lacunas do conhecimento relativo aos contextos em que as inscries so encontradas. 44 Dando este autor especial realce aos testemunhos epigrficos da regio de Trs-os-Montes, com relevo
para Bragana. Destacam-se a sua obra Memrias Archaeologico-Historicas do Distrito de Bragana,
editada no Porto, com particular ateno para o volume I de 1909 e para o volume IX de 1934, onde se refere os tenimos Aernus, Bandua, Laesus, Viboris, Genium Civitatis Baniensium e Laroucus.
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Martnez. Os ensaios deste ltimo investigador marcam a difuso da nova corrente de estudos
sobre esta temtica em Espanha, concretizando-se na sua obra fundamental Religiones
Primitivas de Hispnia I Fuentes Literrias y Epigrficas datada de 1962, onde apresenta
uma perspetiva Ibrica sobre a religiosidade romana, associando as formas de culto da
Pennsula Ibrica a um profundo politesmo e animismo em consequncia de registarem um
grande nmero de divindades diferentes entre si e associadas a elementos fsicos do territrio
onde aparecem mencionadas48, semelhana do que j fora anunciado com Leite Vasconcelos.
A conscincia das limitaes da organizao metodolgica aplicada imperativamente
aos estudos sobre a religio indgena peninsular na dcada de 60, e que tiveram a sua mxima
expresso com Leite Vasconcelos e Blzquez Martnez, rapidamente deram lugar conscincia
da necessidade de alternativas que se contrapusessem com o estudo etimolgico adotado
preferencialmente por estes dois autores. De fato, apesar de grande parte dos investigadores
seguirem as concees etimolgicas (como acontece com Antnio Tovar que se dedica ao
estuda da lingustica pr-romana e da aculturao onomstica, ou ainda Lourdes Albertos,
discpula de Tovar e igualmente seguidora da anlise etimolgica dos dedicantes e dos
tenimos), entre esta nova gerao de autores que se constata, pela primeira vez, as
limitaes dos estudos de Leite Vasconcelos, sobretudo no que diz respeito ao critrio
etimolgico utilizado como base da constituio de tipologias de divindades, cultos e crenas.
De fato, o escasso conhecimento que, poca de Vasconcelos, se possua sobre o panteo
religioso Hispnico no permitia sustentar tipologias to rgidas como as que este autor havia
45 Autor de um estudo bem fundamentado, datado de 1932 sobre a divindade Arentio. 46 Autor de importantes estudos e recolhas epigrficas de Bracara Augusta. 47 Toutain adopta um mtodo de classificao das divindades semelhante perspetiva j anteriormente
referida por Leite Vasconcelos, agrupando-as e associando-as a elementos orogrficos, hidrogrficos, a
mbitos indeterminados e a cultos individuais, domsticos e municipais. O autor reconheceu as limitaes
desta classificao justificando-a como preferencial simples enumerao dos tenimos, uma vez que
possibilita a organizao e simplificao da multiplicidade de divindades registadas (contabilizando o autor
aproximadamente 130 divindades indgenas atribudas Hispania). 48 Blzquez Martinez, atravs da sua tese de doutoramento, Religiones de Hispania (editada em Roma, em
1962), desenvolve a segunda tentativa de reunir numa nica obra todos os elementos que, poca, se dispunha para o estudo da religiosidade pr-romana, agrupando as divindades indgenas conhecidas de
acordo com os seus atributos. Em 1983 publica Religiones Prerromanas, uma obra dividida em cinco captulos que conta com o contributo de M. L. Albertos. semelhana do que j se havia verificado com
Leite Vasconcelos e com a sua obra anterior, Blzquez Martinez estabelece tipologias de culto, crenas e
divindades de acordo com a natureza e mbitos dos tenimos conhecidos. A sua grande inovao consistiu,
mais do que na classificao das divindades, no estudo concreto de cada uma das epgrafes conhecidas at ao
momento e na enumerao das hipteses que delas retirou. Os escassos e confusos dados que serviram de
base a estes trs autores (Leite Vasconcelos, Toutain e Blzquez Martnez), assim como erradas
interpretaes epigrficas a partir das quais lanaram os seus estudos, criaram a noo de um panteo
religioso constitudo por centenas de divindades. Esta noo foi, mais recentemente, revista, corrigindo-se
leituras erradas e estabelecendo-se a distino entre tenimos de divindades e os seus eptetos. Em consequncia, o nmero de divindades registadas foi amplamente reduzido.
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sugerido, pelo que esta classificao restringia a forma como se entendia a religio pr-romana
e romana peninsular, no permitindo uma viso realista dos dados e conduzindo, por
conseguinte, a leituras erradas. Torna-se pois imperativo que as concluses dos estudos
etimolgicos sejam comprovadas por fatores independentes ao prprio significado do nome e
que os estudos epigrficos se baseiem na necessidade de leituras e interpretaes rigorosas das
inscries, para, a partir delas, estabelecer o carter e mbito das divindades. Este processo de
implantao de um novo planeamento metodolgico foi inaugurado pelos trabalhos de Lpez
Cuevillas que, em 1989, rompeu com o mtodo etimolgico, defendendo que o nome das
divindades poderia conceber-se apenas como um nome, no possuindo qualquer aluso
funo ou caraterstica da mesma49. Este autor, apesar de defender a substituio do critrio
etimolgico por um outro amplamente limitado, marcou uma nova forma de pensar e abriu
caminho a diferentes e variados critrios de interpretao das dinmicas religiosas
peninsulares. A mudana ocorreu igualmente pela mo de J. C. Rivas, propondo o autor, em
1973, nova classificao segundo critrios primrios como a forma e composio como uma
divindade aparecia retratada na epgrafe50; e, igualmente, por Untermann que, j em 1980,
criou uma nova classificao baseada na forma como as divindades eram invocadas nos
monumentos51. Por ltimo, Tranoy, sobre as divindades da Gallaecia, separou as divindades de
49 Percebeu igualmente a importncia de ordenar a grande confuso de divindades, e conhecia,
simultaneamente, os problemas que as classificaes de Toutain e Vasconcelos levantavam. O sistema de
classificao de Cuevillas pretendia ser muito mais detalhado que o dos seus antecessores, baseando-se na perceo de que para a determinao dos atributos das divindades necessrio conhecer previamente o
carter das mesmas. 50 Em 1973 Rivas conduz um novo tipo de classificao cujo critrio metodolgico se baseava na forma e
composio da invocao da divindade tal como a mesma aparecia representada nas inscries. O resultado
desta metodologia conduziu diviso das invocaes em trs tipos: categorias religiosas, tenimos e eptetos
alusivos divindade. Anos mais tarde Rivas reconhece as limitaes da sua proposta de ordenao,
verificando que esta organizao no se realizou tendo em conta objetivos claros pelo que algumas das suas
divises ou subdivises podiam ser de muito escassa utilidade dependendo de qual fosse a sua aplicao
prtica. Apesar das limitaes desta tese, e de Rivas no pretender chegar a concluses mais profundas, a sua
sistematizao teve alguns elementos inovadores e de grande importncia. De fato, pela primeira vez se
evitava classificar os testemunhos utilizando como critrio a natureza da divindade em questo tendo em
considerao as fragilidades que essa classificao implicava. Uma segunda notvel inovao passou pela separao, pela primeira vez, de tenimos e eptetos, abrindo caminho a trabalhos de outros investigadores
que visem a simplificao e o aperfeioamento metodolgico. 51 Untermann iniciou os seus estudos sobre a temtica da religio pr-romana em 1980 publicando as suas
primeiras concluses em 1985. O referido investigador, depois de efetuar uma crtica muito rigorosa na
seleo dos dados, criou cinco categorias de classificao: invocaes bimembres, invocaes bimembres
e trimembres, cujas primeiras constituintes ocorram mais de trs vezes; tenimos sem eptetos indgenas;
eptetos sem tenimos; e invocaes compostas de um apelativo ou nome latino e um tenimo ou epteto
indgena. A vantagem deste mtodo assenta na simplificao da classificao (eliminando grupos
desnecessrios que colocavam algumas incoerncias ao sistema) e na fixao de critrios para tipificar as
invocaes como tenimos e eptetos. A metodologia sugerida, no est, no entanto livre de limitaes. A
indefinio dos testemunhos includos no ltimo grupo mencionado, onde se associavam tenimos e eptetos que so precedidos por um apelativo ou por um nome latino, disso exemplo.
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nomes indgenas das divindades clssicas com apelativos indgenas como forma de as
organizar e interpretar. Tranoy vai alm da mera classificao dos tenimos, apresentando
revises crticas de antigas leituras epigrficas e destacando o papel do contexto arqueolgico
para a interpretao das divindades. semelhana de Leite Vasconcelos, a relao que se
estabelece entre divindades e elementos do territrio (ou o prprio territrio) evidente,
distanciando-se de Vasconcelos, fundamentalmente, pela rejeio da classificao do panteo
religioso baseada na funo das divindades - presumvel atravs da interpretao da
significncia do tenimo52. Esta , desde logo, a grande inovao da sua obra.
Paralelamente a estas perspetivas, desenvolve-se com Georges Dumzil, o segundo
grande caminho no estudo da religiosidade peninsular baseado na mitologia comparada e na
afirmao da estrutura tripartida dos pantees indo-europeus. As opinies sobre este caminho
para o entendimento da organizao das divindades apresentam-se, desde logo, controversas.
Destacamos somente a proposta interpretativa de Bernejo Barrera53, que considera que no
existe um conhecimento suficiente aprofundado sobre a religiosidade galaico-romana que
permita estabelecer essa comparao; e a perspetiva contrria encabeada, entre muitos outros,
por Ferreira da Silva54 que enquadra as manifestaes religiosas do Noroeste peninsular no
esquema dumziliano.
Em territrio nacional, Jos dEncarnao apresenta, em 1969, uma tese de licenciatura
referente s divindades indgenas sob o domnio Romano em Portugal, onde recolheu esses
novos contributos internacionais, adicionando-os aos que j eram conhecidos pelas obras de
Vasconcelos, e propondo uma organizao teonmica segundo um critrio dicionarista 55 .
Muitos outros autores poderiam ser aqui citados assim como muito mtodos diferentes aos
quais se recorreu no sentido de compreender como se organizava o panteo religioso romano
peninsular, no se atingindo, no entanto um consenso quanto a esta temtica.
Os avanos decorridos do achamento de novas epgrafes votivas e o aumento
exponencial de conhecimento que da resulta, desencadearam a reviso dos critrios que, ao
longo do tempo, foram usados para o entendimento da religio romana em territrio nacional.
52 Refira-se igualmente Javier de Hoz que recorre a um critrio baseado na extenso maior e menor do culto
das divindades. A percepo da extenso de culto baseia-se fundamentalmente no nmero de vezes que os
tenimos so mencionados e na rea geogrfica onde estes se verificam. 53 Bermejo Barrera 1986. 54 Silva 1986: 286-302; Id. 2007. 55 J. dEncarnao, rejeitando o critrio de Vasconcelos, e aceitando o escasso conhecimento sobre a organizao do panteo religioso, ordenou as divindades peninsulares segundo um critrio alfabtico.
Simultaneamente, o autor assumiu a leitura correta e crtica das epgrafes votivas como o alicerce
fundamental de qualquer estudo que recaia sobre epigrafia votiva. O resultado desta metodologia foi a
atribuio de um carter local religio indgena e a noo de que pequenos grupos de populao teriam os seus prprios e exclusivos deuses que poderiam ser diferentes do das comunidades vizinhas.
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Em consequncia, a ligao entre religio e sacralizao do territrio, to sugerida pelos
primeiros autores que se dedicaram a este tema, nasce com uma nova fora e uma nova forma
de encarar este assunto56. Destaque-se as perspetivas e os trabalhos que so levados a cabo por
autores como Blanca Garca Fernndez-Albalat, Francisco Villar, Blanca Prsper, Carlos
Alberto Ferreira de Almeida, Jos Manuel Garcia, Domingos de Pinho Brando, Jos Coelho,
Octvio da Veiga Ferreira, Joo de Castro Nunes, Manuel de Paiva Pessoa, Adriano Vasco
Rodrigues, Moreira de Figueiredo, Augusto Vieira da Silva, e Jorge de Alarco. Este ltimo
autor explorou o mbito geogrfico de determinadas divindades procurando, atravs dos
resultados obtidos com a interpretao da maior ou menor amplitude geogrfica das mesmas,
estabelecer hierarquias de importncia e conceber, por conseguinte, um prottipo de
organizao do panteo religioso 57 . Mais recentemente, destaca-se Juan Carlos Olivares
Pedreo, que, atravs da sua obra, Los dioses de la Hispania cltica, elabora uma sntese das
dinmicas religiosas peninsulares considerando a distribuio territorial dos mesmos,
compondo grupos religiosos associados a grandes regies territoriais (Beira Baixa; Regio
Estremenha; Beira Litoral; Gallaecia [ocidental, central e oriental] e reas centrais e orientais
da Meseta norte)58. Em territrio nacional, e considerando o mbito mais restrito dos avanos
nas consideraes sobre a religiosidade indgena para a regio da Beira Interior portuguesa
acrescente-se aos autores j mencionados, Marcos Osrio, Fernando Patrcio Curado, Manuel
Leito, Pedro Salvado, Slvia Moreira, e Maria Lopes Tom como figuras principais na recolha
e interpretao dos monumentos votivos provenientes da referida regio. Destacamos
igualmente Fernanda Cristina Repas com a sua obra de sntese sobre a religio na Beira
56 O modelo de Vasconcelos e de Blzquez no deve, no entanto, ser retomado: a generalizao feita por
estes investigadores e as tentativas de encontrar para todas as divindades uma correspondncia funcional
(rejeitando os seus pontos de diferena) condicionaram a aceitao de diferentes critrios e diferentes formas
de conceber a dinmica religiosa. 57 Jorge Alarco, na terceira edio da sua obra Portugal Romano publicada em 1983, apresenta uma
relevante sntese dos dados conhecidos poca sobre as divindades pr-romanas em territrio nacional.
Paralelamente, este autor dedica particular ateno regio da Beira Baixa portuguesa, publicando, em 1988,
a sua primeira tentativa de relacionar os elementos conhecidos do panteo indgena com os populi ou etnias
atribudos regio da Beira Interior portuguesa (Alarco 1990). Este primeiro artigo vai constituir o ensaio preparatrio do seu trabalho de 2001 sobre as divindades dos Lusitani, onde procura estabelecer os limites
dos diferentes populi partindo da anlise do mapa de distribuio dos tenimos testemunhados no territrio
que, tradicionalmente, se atribui aos Lusitani. Esta sua proposta apresenta, no entanto, algumas limitaes
importantes. Destacamos, desde logo, o fato de se basear em testemunhos epigrficos realizados e
consagrados durante o perodo de ocupao romana, e, portanto reflexo de uma adaptao dos cultos
indgenas dos sculos I e II a.C. Acrescente-se a isto, o fato dos testemunhos epigrficos raras vezes estarem
associados aos seus contextos originais e a falsa conceo de que a religio se apresenta como um fator
identitrio capaz de, s por si, estabelecer e reflectir etnias. 58 O autor estabelece uma clara distino entre a Beira Baixa; a Beira Litoral e Beira Alta e o sul da
Lusitnia, sublinhando, no entanto, as semelhanas existentes entre o panteo religioso da Beira Baixa e da
regio Estremenha. O seu estudo baseia-se fundamentalmente nas investigaes iniciadas por autores como Rivas, Untermann e Tranoy, apresentando, no entanto, perspetivas alternativas a algumas das suas teses.
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Interior ao tempo dos romanos. Realce-se igualmente o importante papel dos peridicos e
revistas Ficheiro Epigrfico e Conmbriga na divulgao dos achados votivos.
Muitos outros autores poderiam ser referidos na presente sntese de estudos,
destacando-se somente as principais bases de apoio realizao do presente trabalho.
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Contextualizao. Delimitao e caraterizao
geogrfica. Introduo sucinta ao processo de
aculturao dos cultos indgenas.
A relao com o espao assim, poderamos dizer, universalmente garante
da particularidade das identidades [].
Franoise Paul-Lvy & Marion Segaud59
Durante a Idade do Bronze, em vrias fases, tero chegado Pennsula Ibrica grupos
populacionais procedentes de diferentes espaos europeus caraterizados por modelos culturais
e expresses religiosas prprias. Durante o processo de aculturao das populaes pr-
existentes, e como consequncia da verificao de condies favorveis a uma progressiva e
pacfica introduo da componente cultural 60 , tero ocorrido fenmenos de sincretismo,
continuados durante o perodo de ocupao romana61. Relembre-se, no entanto, que a realidade
sociopoltica, cultural e econmica da Pennsula Ibrica no correspondia a um modelo nico e
homogneo, no se verificando, no nosso territrio, uma unidade tnica, lingustica ou cultural.
Efetivamente, e considerando exclusivamente uma componente religiosa, verificamos,
numa primeira anlise e de forma bastante clara, uma compartimentao do territrio
hispnico, destacando-se a franja lusitano-galaica caraterizada por um grupo teonmico
especifico, de abundante representao epigrfica, e, nitidamente, distinto dos testemunhos
teonmicos da regio central e oriental da Meseta Norte 62 . Quando considerado
especificamente, este marco territorial congrega em si mesmo uma manifesta heterogeneidade
na distribuio teonmica, podendo, com relativa segurana constatar-se a presena de grupos
de divindades caratersticos de zonas concretas da rea lusitano-galaica, apresentando-se a
Beira Interior portuguesa como um dos vrios conjuntos a considerar.
Efectivamente, o territrio atualmente correspondente Beira Interior, delimitado a
norte pelo rio Douro, e sul, pelo vale do Tejo, e interiormente apartado da regio litoral pelas
59 Paul-Lvy & Segaud 1983: 30, apud Silvano 2010: 71. 60 Roma nunca pugnou abertamente pelo desaparecimento, na populao submetida, das crenas e dos cultos s divindades pr-romanas; esses cultos locais foram, em regra, respeitados nas suas caractersticas
de cultos privados Encarnao 1988: 262. 61 () os Romanos se deram conta de que tambm aqui existia um politesmo qui semelhante ao seu, porque brotara do mesmo fundo mitolgico dos Indo-europeus. To arreigadamente eram, alias, as crenas
que os invasores acabaram por, paulatinamente, a elas aderirem, levados pelo natural desejo de agradar
aos deuses, quaisquer que eles fossem, seduzidos pela novidade de uma crena insuspeitada. Alarco 1990a:
442. 62 Contrapondo-se assim tenimos dos quais Cosus, Nabia, Reve, Arentio/ Arentia, Quangeio, Trebaruna,
Munidi e Ataecina so exemplos, com deidades como Epona ou Matres, amplamente registadas na Meseta setentrional e na restante Europa Ocidental mas sem registos no territrio lusitano-galaico.
Captulo III
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cadeias montanhosas das quais se destaca a serra da Estrela e a serra da Gata; constitui um caso
de estudo singular no processo de aculturao e uma das reas chave para compreender a
religio indgena da Hispnia, constituindo, pela sua particularidade, o objeto de estudo e a
base das consideraes que sero tecidas sobre as expresses religiosas pr-romanas. De fato, a
regio parece testemunhar ndices de aculturao menos notrios comparativamente com a
generalidade do restante territrio nacional (em consequncia do prprio posicionamento
perifrico da Pennsula Ibrica, localizada na fronteira do imprio), refletidos, por exemplo,
nas aluses antroponmias dos diferentes monumentos epigrficos procedentes deste
territrio63 . Em consequncia, a anlise das expresses materiais das dinmicas religiosas
permite, sob uma abordagem inicial e exclusivamente terica, uma melhor leitura do panorama
religioso pr-romano. Simultaneamente, a Beira Interior regista testemunhos epigrficos
abundantes, com um conjunto de tenimos caratersticos e bem conhecidos, inscritos, via da
regra, em vrios monumentos, permitindo assim uma leitura e interpretao mais corretas. Em
consequncia -nos possvel estabelecer uma melhor definio dos territrios de influncia de
cada um dos tenimos e, simultaneamente, elaborar interpretaes mais seguras da natureza
das divindades. E que divindades? Vejamos.
Nesta regio esto representados um nmero muito considervel de tenimos: fala-nos
Jorge de Alarco de mais de cinquenta divindades indgenas registadas entre o Douro e o
Tejo 64 , apresentando-se uma abundante frao dos tenimos, exclusivos do territrio
correspondente Beira Interior portuguesa. Assim, e considerando o mbito especfico desta
regio, encontramos aqui referncia aos tenimos Bandi, Reve, Munidi e Nabia, atestados em
abundantes testemunhos provenientes de mbitos mais alargados e de regies externas ao
territrio e ao panteo exclusivo da Beira Interior; tenimos como Arentio, Quangeio,
Trebaruna, Erbina e Laneana registados simultaneamente na Beira Interior, Estremadura
Espanhola e, em raras excees, nas margens sul do vale do Tejo; e, por ltimo, tenimos
exclusivos da regio estudada como Igaedo, Aratibro, Aetio, Laepo, Oipaegia, Aelua, Asdia,
Trebopala e Iccona Loimina (atestados em um ou mais monumentos).
Reafirmando a singularidade da regio em anlise, e estabelecendo uma comparao e
analogia entre a Beira Interior e Beira Litoral, territrio que lhe contguo, verifica-se a
ausncia, nesta ltima regio, de tenimos como Arentio, Quangeio, Trebaruna, Munidi e
Reve. A regio da Estremadura portuguesa, Ribatejo e Alentejo, regista, por sua vez,
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