dissertação - atividade sensível e emancipação humana nos grundrisse de karl marx
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ZAIRA RODRIGUES VIEIRA
ATIVIDADE SENSÍVEL E EMANCIPAÇÃO HUMANA NOS GRUNDRISSE DE KARL MARX
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da UFMG, como requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre.
Linha de Pesquisa: Filosofia Social e Política
Orientadora: Profª. Drª. Ester Vaisman
BELO HORIZONTEUNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
2004
FICHA CATALOGRÁFICA
2
Vieira, Zaira RodriguesAtividade Sensível e Emancipação Humana nos Grundrisse
de Karl Marx. Belo Horizonte: UFMG/FAFICH, 2004.
147 p. (Dissertação de Mestrado)1. Filosofia; 2. Marxologia; 3. Ontologia; 4. Trabalho ; 5.Produção; 6. Emancipação;
À minha mãe
e
à memória de José Chasin, por sua lucidez e pela possibilidade
deste trabalho.
"DUAS VEZES JÁ VI, DO MESMO MODO, DESERTAREM AS MASSAS A SUA BANDEIRA:
DEPOIS DO ESMAGAMENTO DA REVOLUÇÃO DE 1905 E NO COMEÇO DA GUERRA
MUNDIAL.
SEI, POR ISSO, DE PERTO, POR EXPERIÊNCIA, O QUE SÃO OS FLUXOS E REFLUXOS DA
HISTÓRIA. SÃO SUJEITOS A CERTAS LEIS. NÃO BASTA MOSTRAR-SE IMPACIENTE PARA
TRANSFORMÁ-LOS MAIS DEPRESSA. ACOSTUMEI-ME A TOMAR A PERSPECTIVA DA HISTÓRIA
DE OUTRO PONTO DE VISTA QUE NÃO O DA MINHA SORTE PESSOAL. CONHECER AS CAUSAS
RACIONAIS DO QUE ACONTECE E ENCONTRAR O SEU PRÓPRIO LUGAR, TAL É A PRIMEIRA
OBRIGAÇÃO DE UM REVOLUCIONÁRIO. TAMBÉM É A MAIS ALTA SATISFAÇÃO PESSOAL A
QUE POSSA ASPIRAR AQUELE QUE NÃO CONFUNDE A SUA TAREFA COM OS INTERESSES DO
DIA QUE PASSA."
(L. TROTSKY, MINHA VIDA)
3
AGRADECIMENTOS
À professora Ester Vaisman, minha sincera gratidão pelo que houve de melhor
em minha vida acadêmica e por sua orientação que, extrapolando o campo da
pesquisa, sempre foi uma orientação, também, para a vida, sobretudo nos momentos
mais difíceis.
Ao grupo de marxologia, em especial, ao Fred, pela profícua interlocução.
Ao Léo, que dividiu comigo, de forma ainda mais próxima e carinhosa, este
último ano.
A Alex e Patrícia, pelo aconchego humano que me proporcionaram durante
este período.
A Joaquim, Marcos, Rejane, Mírian e "Bechano", pela sustentação afetiva.
Ao Milney, por possibilitar, com seu apoio, o término deste trabalho.
A Michelle, Lúcia, Alex, Taís, Sérgio e Fátima, pela amizade e o apoio que,
cada um a sua maneira, souberam me dar.
E, finalmente, ao CNPq, pela bolsa de estudos sem a qual esta dissertação não
teria se viabilizado.
4
ÍNDICE
RESUMO...........................................................................................................................................07
INTRODUÇÃO .........................................................................................................08
CAP. I - DETERMINAÇÕES GERAIS DA ATIVIDADE SENSÍVEL..............20
A- Sociabilidade......................................................................................................... 26
B- Transitividade entre sujeito e objeto......................................................................36
C- Produção de objetividades sociais..........................................................................41
D- Efetivação de potencialidades humanas.................................................................45
CAP. II – A ATIVIDADE SENSÍVEL NA SOCIABILIDADE MODERNA..... 52
A- Caráter universal.....................................................................................................52
B - Produção sob a forma do estranhamento...............................................................61
C - Atividade como negação de vida...........................................................................80
CAP. III- A EMANCIPAÇÃO HUMANO-SOCIETÁRIA...................................95
A- Superação da atividade sensível
estranhada..........................................................95
B- A livre individualidade efetiva............................................................................116
CONCLUSÃO.........................................................................................................123
BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................145
5
RESUMO
Objetivando apreender o significado e o modo como a emancipação humana é
entendida por Marx nos Grundrisse (1857-1858), este trabalho empreende a tarefa de,
em primeiro lugar, explicitar e esmiuçar o significado da categoria atividade sensível
neste mesmo texto. Isto porque, de um lado, esta categoria é central no entendimento
do autor acerca do ser social. De outro lado, porque, entendida como complexo
categorial ou conjunto de múltiplas determinações, ela é precisamente o objeto dos
manuscritos em foco.
Termina-se por concluir que a atividade sensível, o trabalho, está, em todas as
suas formas - seja enquanto complexo de determinações mais gerais, presente, de
alguma maneira, nas várias formas sociais; seja enquanto configuração específica à
sociabilidade moderna; seja, sobretudo, numa possível forma superior, livre do
estranhamento - diretamente relacionada com a auto-efetivação e emancipação
humana. Mesmo que de maneira contraditória, é pelo trabalho que os homens se
constituem como seres sociais mais ou menos livres em seu processo histórico efetivo
de engendramento de si e de seu mundo.
6
INTRODUÇÃO
O trabalho que se apresenta tem por objetivo percorrer as malhas
determinativas que perfazem o complexo categorial da atividade sensível nos
Grundrisse, tendo em vista a dilucidação deste complexo e da forma como, no
interior mesmo dele, se engendra a perspectiva de emancipação humana presente
neste texto.
Os Grundrisse, que assim tornaram-se conhecidos pelo título que lhes foi
dado em sua primeira publicação - Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie
(Rohentwurf) 1857-18581 - foram redigidos por Marx entre julho de 1857 e junho de
1858 e constituem um grande balanço das conquistas de quinze anos de estudos deste
autor. Balanço ou síntese com a qual visava à publicação, que acreditava podê-lo
fazer logo em seguida, da obra Economia - como era, então, designado o que veio a
ser O Capital e todo o inconcluso plano de sua obra madura. A forma rápida como
são escritos - sobretudo se se tem em conta as condições física e financeiramente
deploráveis em que Marx se encontra naquele momento - e a decisão de fazê-lo
explicam-se, em grande medida, pela crise econômica que se abate sobre os Estados
Unidos e o mundo em 1857 - pois, nunca é demais lembrar que, em 1853, Marx
interrompera, a contragosto, seus estudos econômicos e adiara a decisão de elaborar
uma obra em vários volumes. Assim, dirá o mesmo, numa carta de dezembro de
1857, a Lassalle: "A crise comercial atual me incitou a me pôr, enfim, seriamente a
1 Título da edição publicada pelo Instituto Marx-Engels-Lenin (IMEL) de Moscou, em 1939, que, por sua vez, adota o termo usado por Marx - Grundrisse - para referir tais manuscritos em suas cartas.
7
elaborar meus traços fundamentais da economia política e a preparar também alguma
coisa sobre a crise presente."2
A crise prevista e aguardada por Marx - como também por Engels, fortemente
au courant e profissionalmente envolvido com o que se passava à Bolsa - faz
renascer, em ambos, as esperanças de um grande evento na Europa: "Trabalho como
um louco, noites inteiras, fazendo a síntese de meus estudos econômicos para ter ao
claro ao menos os lineamentos essenciais [ Grundrisse ] antes do dilúvio."3 Numa
sucinta descrição do momento, dirá Rubel: "O jornalismo o desgosta e, durante o
outono de 1857, a ameaça de crise financeira reanima suas esperanças revolucionárias
(...) além disso, ele sente como uma nova provocação o Manual do Especulador na
Bolsa de Proudhon e o escrito do proudoniano Darimon sobre a Reforma dos Bancos.
(...)Alguns meses mais tarde, ele prevê a crise e suas manifestações prováveis."4
Entretanto, mais que o momento ou contexto histórico em que foi escrito, o
texto, ele próprio, faz aflorar a temática da emancipação, mesmo não sendo este o seu
mote principal. É preciso ressaltar que, embora tais "esperanças revolucionárias"
pudessem efetivamente ter servido de pretexto ou motivação imediata para que Marx
finalmente começasse a pôr no papel sua antiga promessa de uma "Economia", o
objetivo desta última e de seus escritos preparatórios era não uma análise ou
prospectiva da revolução, mas o desvelamento e a crítica das categorias da economia.
Mesmo estando, isto, patente nos Grundrisse e, inclusive, declarado por seu autor
quando diz,
2 MARX, K. Correspondance - K. Marx, F. Engels, tomo V, p. 903 Id., p. 784 In MARX, K., Oeuvres, Vol. II, p. LXXXVI
8
logo no início da introdução conhecida como Introdução de 1857 que "O objeto deste
estudo é, antes de tudo, a produção material"5, vale mencionar, ainda, a seguinte
passagem do epistolário do período: "O trabalho de que se trata é uma crítica das
categorias econômicas ou, if you like, o sistema da economia burguesa apresentado
sob uma forma crítica. É uma descrição do sistema e, ao mesmo tempo, sua crítica."6
Publicados pela primeira vez apenas às vésperas da segunda guerra mundial,
ou seja, quase um século após terem sido escritos, os Grundrisse permanecem senão
desconhecidos - como foi o caso para muitas das gerações posteriores a Marx -
grandemente inexplorados por parte dos estudiosos deste autor da segunda metade do
século XX. Martin Nicolaus, em seu prólogo à primeira edição em espanhol,
intitulado "El Marx Desconocido", é quem atenta para o fato de que tais manuscritos
apontavam para uma questão que teria sido objeto de muitas dúvidas e polêmicas ao
longo de todo o século XX: o tema da emancipação ou revolução nos escritos de
maturidade de Marx. Segundo ele, as polêmicas em torno deste tema7 dever-se-iam
precisamente ao alheamento de seus personagens em relação aos Grundrisse, já que
muito do que Marx aí aponta não teria sido retomado no que pôde concluir para
publicação. O tema da "revolução", que constará de uma passagem do Prefácio de
1859, não fica, segundo Nicolaus, totalmente elucidado nos volumes do Capital nem
5 MARX, K., Manuscrit de 1857-1858, "Grundrisse", tomo I, p. 176 Carta de Marx a Lassalle, de 22 de fevereiro de 1858, in BADIA, G., op. cit., p. 1437 Veja-se, por exemplo, o livro A Acumulação do Capital, no qual Rosa Luxemburgo busca "preencher esta importante lacuna nos escritos inconclusos de Marx e conseguiu, com isto, avivar a fogueira de uma inflamada disputa que, todavia, hoje, arde dentro do partido." (NICOLAUS, M. Elementos Fundamentales..., p. XII)
9
tampouco nos dois capítulos que chegaram ao público da Crítica da Economia
Política. Assim, "O problema de como é possível esperar que seja precisamente esta
contradição [o fato de que a "relação social de produção fundamental" no capital seja
a troca de equivalentes e a "força fundamental da produção", a extração de não-
equivalentes] o que conduz à queda do sistema capitalista tem obcecado os estudiosos
de Marx durante pelo menos meio século. Os volumes d'O Capital não proporcionam
uma resposta clara. Esta deficiência está na raiz da controvérsia sobre a queda [
derrumbe ] que inquietou a social-democracia alemã e que, ainda hoje, continua se
pondo intermitentemente. Verdadeiros rios de tinta foram gastos no intento de
preencher esta lacuna no sistema teórico de Marx. Porém, a lacuna existe não devido
a que o problema fosse insolúvel para Marx, não porque não houvesse encontrado sua
resposta, mas porque as conclusões a que havia chegado nos Grundrisse se
mantiveram soterradas e inacessíveis para os eruditos até 20 anos após a primeira
guerra mundial. (...) Quanto a isto, é fácil advertir que teriam sido necessários vários
volumes a mais do Capital para que Marx pudesse chegar ao ponto que havia
alcançado no esboço de seu sistema nos Grundrisse. O Capital está sofridamente
inconcluso, como uma novela de mistério que termina antes que se decifre o enigma.
Porém, os Grundrisse contêm as linhas gerais do argumento, anotadas pelo autor."8
As questões que se buscará tratar e que constituem, por assim dizer, o objetivo
último do presente trabalho não vêm sendo, portanto, descobertas e debatidas, pelos
estudiosos de Marx em geral, senão nos últimos anos. Naquele que é talvez o mais
8 NICOLAUS, M., Elementos Fundamentales..., p. XXXI
10
clássico estudo sobre os Grundrisse, o livro de Rosdolsky intitulado Génesis y
Estructura de El Capital de Marx (estudios sobre los Grundrisse), o tratamento deste
tema pauta-se, no entanto, por uma leitura demasiadamente hegeliana do assunto,
como veremos no final deste trabalho. Atente-se, porém, sucintamente, que a análise
de Marx possui um caráter peculiar que a difere radicalmente tanto da filosofia de
Hegel, quanto da economia de Ricardo, muito embora ambos tenham sido, mesmo aí,
grandes mestres para ele.
Se Marx voltara a folhear a Lógica de Hegel, que casualmente caíra em suas
mãos no momento em que escrevia os Grundrisse, e se efetivamente há, como ele
próprio o confessa, a contribuição de Hegel no "método de elaboração"9, tal
contribuição não desfigura, porém, a determinação central de seu pensamento,
originária já do rompimento juvenil com aquele autor. O fato de que tal reencontro
ocasional o tenha "ajudado muito" "no método de elaboração do tema" não significa
que Marx tenha aderido ao método de Hegel. Tanto assim que ele, aí, explicitará, pela
primeira vez, o seu próprio método e o porá em obra na consecução de sua Economia.
Fazendo nossas as palavras de Chasin, ao recusar a tese do vínculo lógico entre Marx
e Hegel, não se quer, aqui, negar as influências ou "Assimilações de maior ou menor
monta, porém, sempre integradas à ruptura de fundo levada a cabo na própria
instauração do pensamento marxiano e jamais reconsiderada. (...) A diferença
diametral - 'meu método dialético não só difere do hegeliano, mas é também a sua
antítese direta' (Posfácio da Segunda Edição de O Capital, 1873) - sabemos qual é: no
mesmo lugar é
9 Cf. a carta a Engels, de 16 de janeiro de 1858, in BADIA, G., Op. Cit., p. 116
11
declarado que o processo do pensamento é hegelianamente transformado num
demiurgo do real, enquanto que na concepção marxiana o ideal não é nada mais do
que o material transposto e traduzido na cabeça do homem. Ou seja, a diferença
antitética é de caráter ontológico: o ser é prioritário em relação ao pensamento e este
é um concreto pensado, não um produto autônomo."10 Para que não se delongue mais
que o necessário e cabível numa introdução - mesmo porque o método de Marx será
exposto a seguir, no início do primeiro capítulo - deixemos, entretanto, para retornar a
este importante tema quando a exposição dos resultados desta pesquisa já houver sido
feita.
Por outro lado, é preciso observar, ainda, que, embora se trate, nos
Grundrisse, de uma análise das categorias econômicas, estas últimas não são
entendidas, por Marx, como uma ordem de categorias cindidas em relação aos demais
aspectos da realidade humana. Tal análise foge totalmente, portanto, ao padrão de
cientificidade tradicional, mesmo daquele que Marx reconhece como sendo o
"economista por excelência da produção"11 - Ricardo. Como tivemos oportunidade de
mostrar em outro trabalho, "As categorias econômicas marxianas expressam não uma
dada ordem de efetividades cindidas que caracterizariam o ser social e em cujo seio a
economia seria fator preponderante. Ao contrário, a abstração e unilateralização dos
conceitos é exatamente o que Marx ferrenhamente combateu em sua crítica à
economia política. Já nos Manuscritos de 1844, mostra que os economistas que, como
Smith, reconheceram o trabalho como princípio, como essência da propriedade
privada - superando, pois, a visão de exterioridade desta última - deixaram, no
entanto, de ver a outra metade da realidade: a essência do homem transmudada em
10 CHASIN, J. Estatuto Ontológico..., in TEIXEIRA, F.S. Pensando com Marx, p. 50211 MARX, K., Manuscrit de 1857-1858, "Grundrisse", tomo I, p. 31
12
propriedade privada, ou seja, o fato da alienação. (...) E isto porque 'A economia
política parte do fato da propriedade privada. Ela não o explica-nos. Ela exprime o
processo material que descreve, em realidade, a propriedade privada em fórmulas
gerais e abstratas, que, em seguida, têm para ela valor de leis. Ela não compreende
estas leis, isto é, ela não mostra como elas resultam da essência da propriedade
privada'. Marx, portanto, denuncia na economia política o fato de que ela oblitera não
apenas 'a questão das origens históricas da formação do capital, mas também o
caráter histórico e transitório das próprias categorias econômicas. Já em A Miséria
da Filosofia, Marx se posicionara a respeito, afirmando que: 'As categorias
econômicas são expressões teóricas das relações sociais de produção /.../ Os mesmos
homens que estabelecem as relações sociais de acordo com a sua produtividade
material, produzem também os princípios, as idéias, as categorias, de acordo com
suas relações sociais. Assim estas categorias são tão pouco eternas quanto as
relações que exprimem(...)' ."12 Como alertara Lukács, em Marx, "pela primeira vez
na história da filosofia, as categorias econômicas aparecem como as categorias da
produção e reprodução da vida humana"13, ou seja, como categorias que expressam
não uma dada ordem de efetividades cindidas do ser social, mas a efetividade
complexa e não cindível senão em pensamento do ser social.
A análise e crítica marxiana do modo de produção capitalista alcança, nos
Grundrisse, uma forma se não totalmente peremptória - já que ainda continuaria se
aperfeiçoando nas Teorias da Mais-Valia e provavelmente mesmo até a morte de
Marx - grandemente burilada em seus pontos fundamentais. É nestes manuscritos que
12 VIEIRA, Z.R., Perspectiva Sociológica...., monografia defendida no depto. de Sociologia e Antropologia da Fafich, UFMG, 1999, p. 3813 Apud CHASIN, op. cit., p. 378
13
sua crítica ganha definitivamente a forma de uma crítica a um modo de produção que
possui como determinação intrínseca a não-troca ou exploração. O pensamento de
Marx - até então ainda muito voltado para as relações de troca ou de mercado, isto é,
ainda muito influenciado pela teoria da oferta e da procura14 - perfaz, aí, como
resultado de um longo percurso, a alteração pela qual a produção vem a ser
efetivamente o centro de sua análise. É precisamente neste momento que ele faz a
descoberta da diferença fundamental entre trabalho e força de trabalho. Em outros
termos, verifica-se, nos Grundrisse, "a descoberta da 'categoria essencialmente
diferente': Arbeitskraft - não uma mercadoria entre outras, mas uma mercadoria
única, produtora de valor."15 Descoberta que permitirá, de uma vez por todas, a
compreensão da questão do excedente no interior do processo de produção do capital
e a completa elaboração da teoria da mais-valia.
Sob a forma de sua descoberta considerada mais importante no plano da
economia, a mais-valia passa a ocupar, então, aquele que será o seu lugar em todas as
demais obras de Marx. Sendo - como fica genuinamente demonstrado nos Grundrisse
- a determinação central, o eixo sobre o qual efetiva-se a produção capitalista, ela
terá, assim, papel central também na análise desta última por Marx.
É importante observar, neste ponto, que, segundo Rosdolsky, muito embora na
etapa anterior aos Grundrisse - constituída pela obra A Miséria da Filosofia, pelo
Manifesto do Partido Comunista e pelo escrito intitulado Trabalho Assalariado e
Capital - não tivesse Marx efetivamente, ainda, elaborado "sua teoria específica do
lucro, 'até 1848 estavam traçadas as linhas fundamentais de sua teoria da mais-valia',
14 Cf. Chasin, J., "Marx no Tempo da Nova Gazeta Renana" in MARX, K. A Burguesia e a Contra-Revolução, p. 2515 Idem
14
pedra angular de sua doutrina econômica, e só restava a tarefa de desenvolver tal
teoria em detalhe - processo que podemos estudar minuciosamente nos Grundrisse."16
Efetivamente, a importante descoberta de Marx não se deu num apagar ou acender
das luzes ou entre uma crise e outra de fígado que lhe acomete no momento em que
escreve os manuscritos em questão. De forma não diferente de todas as descobertas
importantes no plano da ciência, sua apreensão da categoria da mais-valia resulta de
vários anos de labuta intelectual voltados para a crítica da economia política e, por
conseguinte, para a dilucidação das determinações fundamentais do modo de
produção do capital. Labuta esta que, segundo Nicolaus, enfrentara, de maneiras
diversas a cada etapa da construção deste pensamento, a teoria ricardiana do
excedente, para vir a desaguar nesta sua elaboração própria. O que se quer ressaltar,
pois, é que, embora os Grundrisse representem um salto qualitativo fundamental na
elaboração do pensamento maduro de Marx, não apresentam, porém, uma ruptura
com a trajetória anterior deste pensamento. Muito ao contrário, como o diz Chasin, "a
ontologia dos Grundrisse adensa e ultrapassa, mas não nega a ontologia composta ao
longo do período 42-47; mais do que isso, adensamento e ultrapassagem são
precisamente demanda e virtualidade postas pela antecedente."17 Demanda, esta,
concreta se se considera, sobretudo, a afirmação dos editores russos dos Grundrisse
de que "até 1848 estavam traçadas as linhas fundamentais de sua teoria da mais-
valia"18 - o que, embora fuja à presente pesquisa confirmar ou não, é, neste particular,
respaldado por outros autores, como transluz, por exemplo, da passagem de
16 ROSDOLSKY, R. Génesis y Estructura de El Capital de Marx, p. 2817 CHASIN, J. "Marx no Tempo da Nova Gazeta Renana" in MARX, K. A Burguesia e a Contra-Revolução, p. 27.18 IMEL, "Prólogo da Primeira Edição em Alemão", in MARX, K. Elementos Fundamentales...,vol. I, p XLI
15
Rosdolsky acima aludida.
Com o objetivo de trazer à luz o texto mesmo de Marx, com todas as suas
possíveis lacunas ou irresoluções e de poder, assim, contribuir na redescoberta deste
autor por ele mesmo19, esta dissertação concentra-se de forma praticamente exclusiva
sobre os Grundrisse. Com esparsas referências a outros textos de Marx ou de
comentadores - que se fazem apenas no intuito de apoio, quando necessário e
plenamente cabível este - procede-se, aqui, a uma análise imanente dos referidos
manuscritos no que diz respeito ao tema proposto. Trata-se, em outras palavras, de
uma escavação por meio da qual se busca apreender o complexo da atividade sensível
em suas determinações centrais e sua intrínseca relação com o tema da emancipação a
partir do próprio objeto-texto e da articulação das categorias na forma como ela, ali,
se encontra.
Em consonância com este objetivo, o cotejamento dos resultados alcançados
com a análise de outros autores que trataram do tema perfaz-se somente à conclusão.
Tal confronto analítico possui, assim, um caráter apenas inicial e busca
exclusivamente levantar algumas questões. Longe de pretender proceder a uma crítica
a tais autores, o recurso a eles tem o propósito único de trazer para o trabalho, ainda
que de forma incipiente, algumas das discussões existentes sobre o assunto.
Nossa dissertação estrutura-se em três capítulos. No primeiro deles, o
complexo da atividade sensível ou, em outras palavras, a produção ou produção
material é analisada em suas determinações gerais, ou seja, naquelas presentes em
toda formação social: a sociabilidade, a transitividade entre sujeito e objeto, a
19 Propósito sobre o qual se funda o grupo de pesquisa no qual nos inserimos.
16
produção de objetividades sociais e a efetivação de potencialidades humanas.
Ressalte-se de antemão, porém, que as determinações gerais ou "abstrações
razoáveis" não constituem, em Marx, um conjunto ou sistema estanque de conceitos,
mas tratam-se, ao contrário, de traços gerais, eles próprios, complexos: "Esse
Universal, contudo, ou este caráter comum, que se destaca através da comparação,
é ,ele próprio, um conjunto articulado complexo, cujos membros divergem em
determinações diferentes. Alguns destes elementos pertencem a todas as épocas,
outros são comuns apenas a algumas. [Outras] determinações serão comuns à época
mais moderna e à mais antiga. Sem elas, não se pode conceber nenhuma produção."20
No segundo capítulo, o mesmo complexo é perquirido em suas particularidades
modernas da universalidade, do estranhamento e do aspecto de negação ou
desapropriação de vida; as quais constituem, por sua vez, as determinações mais
gerais que caracterizam a atividade na sociabilidade burguesa. Traços ou
determinações que se depreende do entrelaçamento de categorias ainda mais abstratas
ou precisas. As quais, por sua vez, apenas articuladas entre si permitem o
delineamento efetivo do "complexo de complexos" que é a atividade sensível em sua
forma moderna.
Se o primeiro capítulo encontra-se justificado a seguir, logo no seu início - o
que nos exime de fazê-lo aqui - digamos, entretanto, antes de prosseguir, as razões
pelas quais nosso segundo capítulo volta-se para a produção específica da
sociabilidade moderna. Se, de um lado, a forma assumida pelo trabalho nesta última é
aquela que traz em si os componentes de uma nova forma de sociabilidade, isto é, de
uma forma emancipada do trabalho - o que, por si só, já justificaria, portanto, sua
análise - por outro lado, segundo Marx, a "produção em geral" - esta "abstração
20 MARX, K. Manuscrit de 1857-1858, "Grundrisse", tomo I, p. 19
17
razoável" que destaca os traços comuns à produção material nas diferentes formas
históricas por ela assumidas - apenas nos poupa da repetição destes mesmos traços,
mas "as pretensas condições universais de toda produção não são nada mais que estes
momentos abstratos que não apreendem nenhum estágio histórico real da produção."21
Motivo pelo qual Marx, ele próprio, nos Grundrisse, se volta primordialmente para a
produção em sua forma moderna, isto é, para o desvelamento de suas determinações
específicas nesta sociabilidade.
No terceiro capítulo, traceja-se, por fim, aquilo que é entendido, por Marx, no
texto em questão, como sendo a emancipação humano-societária: a superação da
atividade sensível estranhada e o que corresponderia, para ele, à livre individualidade
efetiva.
Como último aspecto a aclarar nesta introdução, mencionemos, pois, a edição
dos Grundrisse por nós adotada. Tendo em vista não existir, no momento em que
realizamos a pesquisa, uma tradução deste texto em língua portuguesa - à exceção da
passagem intitulada Formas Anteriores [Vorhergehen] à Produção Capitalista"22 -
adotamos a tradução francesa publicada, em dois volumes, pelas Editions Sociales de
Paris, em 1980, com o título Manuscrit de 1857-1858, "Grundrisse" - à qual todas as
citações estão referidas. Apenas quando estritamente necessário, para precisar melhor
alguns termos ou expressões, recorremos ao cotejamento daquela com o original
21 Idem, p. 2222 A tradução de E. Hobsbawm desta pequena passagem dos Grundrisse foi vertida para o português e publicada, com o mesmo título - Formações Econômicas Pré-Capitalistas, pela editora Paz e Terra. Texto que, no entanto, não utilizamos, nesta pesquisa, devido a sua incompletude.
18
alemão publicado pela Dietz Verlag de Berlim.
CAPÍTULO I
DETERMINAÇÕES GERAIS DA ATIVIDADE SENSÍVEL
Para tratar da produção ou atividade humana sensível nos Grundrisse é
preciso, em primeiro lugar, destacar - como Marx o faz, embora mais no sentido
negativo, isto é, para ressaltar aquilo que há de específico na forma de produção
moderna - as determinações gerais deste complexo categorial. E, isto, por duas razões
principais. De um lado, porque não apenas os economistas da época de nosso autor,
mas toda uma série de interlocutores posteriores do marxismo também representam a
produção "diferentemente da distribuição, etc., como fechada em leis naturais eternas,
independentes da história (...). [Sendo que] Na distribuição, ao contrário, os homens
se permitiriam, efetivamente, agir com todo tipo de arbitrariedade"23. Neste sentido, a
exposição científica, para usar uma expressão de Marx, das determinações gerais ou
universais da produção é necessária para que a unidade não oculte o que há de
específico, isto é, para que as determinações específicas da produção na sociabilidade
moderna não sejam obnubiladas em suas particularidades ontológicas - procedimento
do qual decorre a generalização abstrata de tais determinações para todo tipo de
sociedade. De outro lado - o que se coloca apenas como complemento ou apêndice do
objetivo anterior - tal exposição faz-se necessária no sentido mesmo do objetivo final
desta dissertação, o qual consiste precisamente no desvelamento daquilo que
23 MARX, K., Manuscrit de 1857-58 , “Grundrisse”, Tomo I, p. 21.
19
corresponderia, para Marx, neste texto, a um metabolismo humano societário
emancipado. Neste sentido, a compreensão daquilo que há de específico ao complexo
da produção na sociabilidade do capital - e, portanto, daquilo que é particular a este
metabolismo social e não, determinação a-histórica da produção enquanto tal - é de
fundamental interesse na medida em que seja efetivamente compreendido como traço
histórico da produção e, portanto, sujeito a alterações.
É preciso, inicialmente, salientar que mesmo as determinações gerais ou
abstratas (como Marx também as nomeia) não são entendidas por este autor como
determinações a-históricas. Para Marx, "a produção em geral é uma abstração, mas
uma abstração razoável na medida em que ela destaca e precisa efetivamente os
traços comuns, nos poupando, assim, da repetição. No entanto, este Universal, ou este
caractere comum, isolado por comparação é, ele próprio, um conjunto articulado
complexo cujos membros divergem em determinações diferentes. Certos elementos
pertencem a todas as épocas, outros são comuns apenas a algumas. Certas
determinações serão comuns à época mais moderna e à mais antiga. Sem elas não
podemos conceber nenhuma produção".24
As determinações gerais da produção não são concebidas como sendo uma
substância ou essência única. Ao contrário, enquanto complexo, são diversas.
Encontram-se diversamente articuladas - às vezes mesmo ausentes algumas delas -
em cada forma particular da produção. Embora concebida por Marx como sendo uma
abstração razoável - isto é, como uma categoria ou complexo de determinações que
reflete, sob a forma de pensamento, a síntese de determinações diversas, o concreto
enquanto tal - a produção em geral é sempre uma abstração, serve apenas para efeito
da coerente apreensão intelectiva das formas de produção. É preciso ter sempre
24 Id., Tomo I, p.19.
20
presente que tais determinações não existem, enquanto tais, articuladas num mesmo
conjunto. Por outro lado, ressalta Marx, "a produção também não é unicamente uma
produção particular: não é nunca apenas um certo corpo social, um sujeito social que
exerce sua atividade numa totalidade de ramos da produção, mais ou menos grande
ou rica".25
O que deve, portanto, ser apreendido, e que Marx nos deixa apontado em suas
anotações, é que se, por um lado, a produção universal em si não existe senão como
complexo de determinações que o pensamento apreende como universais, como
válidas, no sentido já assinalado, para todas as formas da produção; por outro lado, a
produção também não é apenas a pura empiria: uma produção particular no interior
de uma certa totalidade da produção ou, ainda, uma totalidade concreta de ramos da
produção. Depreende-se, pois, o caráter ontológico da análise marxiana.
A análise da produção levada a cabo por Marx e reconhecida por ele como
sendo o objeto de tais manuscritos, não é nem um estudo de caráter sociológico ou
econômico - no sentido em que têm sido desenvolvidas estas ciências na atualidade -
que tome a produção apenas em seu aspecto particular ou enquanto totalidade
específica de ramos da produção, nem tampouco desenvolvimento abstrato de
determinações concretas tendo como veio determinativo uma dialética concebida in
mente ou ante res. Não sendo objeto específico desta dissertação discorrer sobre tal
questão, é preciso, porém, salientar que o trabalho empreendido pelo autor, no texto
do qual tratamos, tem o caráter de um reconhecimento do ser-precisamente-assim da
forma de produção do capital. Sem a pretensão de esgotar em poucas linhas o assunto,
invocamos, aqui, a própria definição de categoria dada por ele neste mesmo texto: "as
categorias são, pois, formas de existência [Daseinformen], determinações da
25 Id., Tomo I, p. 20.
21
existência [Existenzbestimmungen]"26. São, portanto, determinações concretas, muitas
vezes, aspectos determinados de uma determinada realidade.
Marx entende as determinações gerais as mais abstratas como resultado de
relações históricas. Tais determinações ou categorias mais abstratas são, elas próprias,
produzidas no interior de relações sociais determinadas, são frutos de
desenvolvimentos específicos ao longo da história concreta dos homens. Não se trata,
portanto, de determinações abstratas no sentido de originadas de um auto-
desenvolvimento de conceitos ou que dão origem a um tal desenvolvimento, mas de
forma totalmente autônoma em relação ao movimento real. Ou seja, nem como ponto
de partida, nem como ponto de chegada, em nenhuma modalidade de
desenvolvimento, tratam-se de categorias abstratas no sentido de descoladas da
realidade efetiva das coisas, formas autônomas do pensamento, que se engendrariam
por si mesmas. Ao contrário, para Marx, tais determinações são "formas de
existência", são formas abstraídas, pelo pensamento, de uma determinada realidade
social, para que, em seguida, este mesmo pensamento possa reproduzir, em conceitos,
tal realidade como um todo. Pois, segundo Marx, esta é a única forma que possui o
pensamento de se apropriar do mundo, qual seja: aquela que vai das abstrações mais
simples à reprodução do mais complexo - isto é, do concreto - no pensamento. Esta é
a forma que o pensamento tem de se apropriar do concreto, "de reproduzi-lo enquanto
concreto do espírito. Mas, não é, de forma alguma, o processo de gênese do próprio
concreto. (...)A totalidade concreta, enquanto totalidade de pensamento, enquanto
concreto de pensamento, é, de fato, um produto do ato de pensar, de conceber; não é,
26 Id., Tomo I, p. 40.
22
porém, de forma alguma, o produto do conceito que se engendraria a si mesmo e
pensaria fora e acima da intuição e da representação (...)."27
As abstrações são, para Marx, o ponto de partida da elaboração teorética. No
entanto, este mesmo ponto de partida é, ele também, Daseinformen, ou seja, é, ele
também, aspecto desta mesma realidade que ele pretende explicar. Não se tratam,
pois, de abstrações produzidas pelo cérebro de forma totalmente independente,
descolada, do todo mais complexo ao qual elas se referem. Mas, é deste todo que elas
se originam. São desenvolvimentos alcançados a partir de abstrações parciais deste
todo - o que Marx chama de abstrações razoáveis.
O trabalho científico é entendido por Marx como sendo precisamente a
apreensão mental e o desvelamento da concretude em sua multiplicidade e articulação
efetivas. Neste sentido, nos alinhamos com Alves, em sua análise dos Grundrisse,
quando diz: "A categoria é, então, complexo ideal que exprime o complexo real.
Neste sentido, o concreto marxiano não é assimilado à mera percepção imediata,
direta, não é a mera empiria, ainda que ela seja o material do qual se parte. Assim, a
complexidade do real, apreendida numa categoria, é, para Marx, expressão das
determinações ontológicas do próprio real, real este que permanece sendo o que é
independente, fora, do pensar."28
A categoria ou o trabalho categorial não é, em Marx, mera repetição da forma
imediata pela qual a realidade se nos apresenta nem, por outro lado, articulação
autônoma do pensar que não tem como fundamento próprio e constantemente
presente tal articulação sob a forma do ser. Que uma categoria ou abstração razoável
seja, ela mesma, um complexo de determinações que apreende, na forma do pensar, a
27 Id., tomo I, p. 35.28 ALVES, A. L., "A Individualidade nos Grundrisse de Karl Marx", p. 10.
23
realidade em sua articulação efetiva e não como abstração, isto fica ainda mais claro
quando Marx se refere ao método da economia política - a qual também parte do
concreto mas, exatamente por não apreender e esgotar este concreto em seus nexos
efetivos, acaba por incorrer numa apreensão caótica desta mesma realidade.
Após este longo, mas necessário esclarecimento quanto ao caráter
das determinações abstratas nos Grundrisse, passemos, pois, à análise daquelas que
dizem respeito ao trabalho ou produção em geral. Antes, porém, é preciso atentar
que, neste texto de Marx, tal categoria é referida tanto como atividade, quanto como
produção ou produção material, como também sob a denominação de trabalho.
Sendo a atividade ou atividade sensível referida sempre como sinônimo de trabalho,
é preciso observar que já o termo produção significa trabalho - neste sentido de
atividade - apenas numa de suas acepções. Produção é trabalho apenas enquanto
produção estrito senso, ou seja, a produção pode ser entendida tanto como atividade
do indivíduo singular - tal qual a definimos, a partir de Marx, como sendo trabalho -
como também num sentido mais amplo de metabolismo social que englobaria em si o
trabalho, bem como as demais relações travadas pelos indivíduos produtores no
interior de seu processo de produção e reprodução de suas vidas. O termo produção
pode ter, pois, tanto esta acepção mais geral - a qual não deixa de corresponder à
atividade sensível dos indivíduos mas, antes, engloba, no interior desta, todo o
processo global da produção societária (como, por exemplo, no sistema metabólico
do capital, englobando como próprio a si todo o processo da circulação do capital,
todo este processo como aspecto mesmo do processo de produção estrito senso).
Como pode, também, produção referir, no texto de Marx, estritamente atividade
sensível, o que denominamos "produção estrito senso". Tal diferenciação será,
24
entretanto, dispensável, nesta dissertação, na medida em que se objetiva apreender a
atividade sensível enquanto totalidade, ou seja, precisamente enquanto complexo de
nexos e relações travadas pelos indivíduos sociais em seu metabolismo vital - mesmo
porque é também esta a forma pela qual Marx apreende tal categoria no presente
texto, não deixando, para isso, de reconhecer a diversidade com a qual ela se
apresenta no plano real.
Desta forma, embora todas estas denominações, acima referidas, sejam
também usadas, aqui, para referir o mesmo complexo categorial, será justamente
aquela que é mais ampla em sua denotação - ou seja, produção - a que predominará -
como ocorre, também, nos Grundrisse precisamente pelo motivo que viemos de
referir, qual seja, a própria concepção abrangente que se tem da categoria atividade
sensível.
A) SOCIABILIDADE
A produção humana é, para Marx, um complexo que tem por determinação
fundamental - ineliminável - seu caráter social. A sociabilidade é característica
inseparável do ato humano de produzir, do trabalho, não só pela natureza em si deste
ato, mas pela própria constituição do indivíduo que o leva a cabo. Para Marx, o ser do
homem é um ser social. "O viver em comum dos indivíduos é, em Marx, não um
momento ou um elemento, o qual definiria a humanidade dos indivíduos ao lado de
outros mas, diferentemente, constitui-se como a substância concreta dos indivíduos, a
qual delimita, como o dissemos, toda a série de expressões e atividades dos
indivíduos."29
29 ALVES, A. L., op. cit., p. 21. Grifos nossos.
25
O conjunto específico de relações pretéritas e presentes travadas pelos
indivíduos ativos é aquilo que eles são, ou seja, é precisamente o que configura o
conjunto de determinações que estes mesmos indivíduos possuem enquanto tais. A
sociabilidade é determinação fundamental do ser dos indivíduos humanos porque
é aquela que dá forma específica ao modo de ser destes como um todo, isto é, tanto ao
modo de ser objetivo dos indivíduos - ao conjunto de suas manifestações e criações -
como, também, àquele de sua subjetividade - às potencialidades, capacidades e
desejos dos indivíduos enquanto tais. Como o diz Marx, os indivíduos só são escravos
ou cidadãos porque e enquanto estão em sociedade e não enquanto indivíduos
tomados abstratamente. Esta disjunção entre indivíduo e sociedade não só é estranha
ao pensamento de Marx, como é precisamente combatida por ele como sendo um dos
equívocos em que incorrem, de um lado, Proudhon mas, por outro lado, também, as
filosofias do séc. XVIII chamadas por ele de "robinsonadas" - ou seja, que tinham
como ponto de partida o indivíduo isolado - e que acabaram por influenciar A. Smith.
O fato de que o modo de existência, a forma de ser, particular dos indivíduos
só possa configurar-se na e pela sociedade, ou seja, no interior das relações
estabelecidas por eles enquanto indivíduos ativos não tem, em Marx, o sentido de
uma sobredeterminação de uma esfera sobre outra. Sociedade e indivíduo não se
constituem em elementos externos, um em relação ao outro, mas em momentos
distintos de uma mesma realidade, qual seja, aquela dos nexos e interações que os
homens mantêm entre si na produção e manifestação de suas vidas. O primeiro - a
sociedade - consistindo no momento mais geral ou universal daquele modo de ser
configurado pelas interações dos indivíduos entre si e o segundo - o indivíduo -
consistindo neste mesmo modo de ser, mas em sua expressão particular, "como
26
síntese concreta, empírica, material, do conjunto da sociabilidade como entificação
relacional".30
Assim é que Marx, refutando a concepção abstrata de sociedade apresentada
por Proudhon, nos deixa inequívoca sua concepção de sociedade: "A sociedade não é
constituída de indivíduos, mas exprime a soma dos nexos, das relações nas quais estes
indivíduos situam-se uns em relação aos outros. É como se alguém dissesse: do ponto
de vista da sociedade, não há nem escravos, nem cidadãos, são todos homens. É, ao
contrário, fora da sociedade que eles o são. Ser escravo e cidadão são determinações
sociais, relações que implicam os homens A e B. O homem A não é, enquanto tal,
escravo. Ele é escravo na e pela sociedade."31
A sociabilidade é, portanto, determinação especificadora, delimitante, como
vimos. Mas, ela só o é enquanto uma série de relações estabelecidas e renovadas por
estes mesmos indivíduos em seus atos particulares. Como o diz Alves, a partir de
Marx, "Os indivíduos, então, realizariam e renovariam, através de cada um de seus
atos produtivos, toda a malha societária que os define e os faz humanos"32. São os
indivíduos mesmo que estabelecem - mantendo e renovando cada um de seus elos -
tal ou tal forma de sociabilidade entre si. Não sendo esta última, portanto, uma
essência que paira acima deles, por mais cindida e externa que ela possa lhes parecer
e que o seja efetivamente.
Chegamos, assim, por meio da exposição do caráter fundante da determinação
da sociabilidade, àquela que, juntamente com esta última, é determinação constitutiva
do ser dos indivíduos: a atividade sensível. A nosso ver, o reconhecimento, em Marx,
do caráter fundante da sociabilidade no ser dos homens passa precisamente pelo - isto
30 Id., p. 22.31 MARX, K., Manuscrit de 1857-58 , “Grundrisse”, tomo I, p. 205.32 ALVES, A. L., op. cit., p. 20.
27
é, é simultâneo ao - reconhecimento do homem como ser ativo. Extrapolando, porém,
nosso intento apontar a gênese deste reconhecimento neste autor, o que deve ficar
claro é a relação intrínseca entre estas duas determinações essenciais do ser concreto
dos indivíduos.
Para Marx, o homem é ser social precisamente porque se auto-constitui,
produzindo sua vida própria ao produzir outros seres, e, ainda, porque o faz sempre
por meio e no interior de uma dada sociabilidade: "Toda produção é apropriação da
natureza pelos indivíduos por intermédio e de dentro de uma sociedade
determinada"33. A sociedade é o conjunto de interações que necessariamente se
posiciona na relação entre o homem e o mundo, possibilitando que esta última se
efetive e, ao mesmo tempo, lhe dando sua forma específica. Ou seja, ela é a condição
de possibilidade da produção e auto-produção dos homens e, portanto, da própria
existência humana - já que esta última só é, para Marx, enquanto vida de indivíduos
ativos. Por outro lado, os indivíduos se realizam enquanto seres sociais, são seres
humanos, pelo próprio fato de se efetivarem como seres ativos, que produzem suas
próprias condições de vida. É sempre útil lembrar que, segundo Marx, "Pode-se
distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou por tudo que se
queira. Mas, eles próprios começam a se distinguir dos animais tão logo começam a
produzir seus meios de vida (...). Produzindo seus meios de vida, os homens
produzem, indiretamente, sua própria vida material"34.
A determinação da atividade sensível é exatamente aquela que constitui os
indivíduos humanos como indivíduos genéricos. Pelo trabalho, o homem se reproduz
e produz outros seres se auto-superando em sua particularidade. Ou seja, não apenas
33 MARX, K., Manuscrit de 1857-58 (“Grundrisse”), Tomo I, p.21.34 MARX, K., A Ideologia Alemã I, p. 19.
28
produz e reproduz a si mesmo enquanto individualidade, produzindo sua própria vida
material ( o que já seria, por si só, um avanço considerável sobre outras formas de ser,
na medida em que esta produção tem como base a superação crescente das
determinações naturais, como o veremos), como também, e pelo mesmo ato, produz e
reproduz sua própria espécie. A produção humana tem como uma de suas
características fundamentais o fato de ser produção para outro. Como o diz Marx, em
aditamento ao reconhecimento da reciprocidade como sendo uma característica da
produção humana, não se vê em nenhuma outra modalidade de ser que um indivíduo
X produza para um outro indivíduo diferente dele. "Que esta necessidade de um possa
ser satisfeita pelo produto do outro e vice-versa, que um seja capaz de produzir o
objeto da necessidade do outro e que cada um se apresente ao outro como o
proprietário do objeto de sua necessidade, isto prova que cada um supera, enquanto
homem, sua própria necessidade particular, etc. e que eles se comportam, um em
relação ao outro, como homens (...). Aliás, não acontece que elefantes produzam para
tigres, ou que animais produzam para outros animais. Um exemplo. Um enxame de
abelhas forma, no fundo, apenas uma só abelha e todos produzem a mesma coisa".35
A diversidade de necessidades e produção revela-se, por sua vez, condição
fundamental da existência sob a forma de reciprocidade. É exatamente devido a suas
diferenças ou singularidades que os indivíduos sociais são capazes de se porem em
relação. Como bem o expressa Marx, a igualdade natural de necessidades - como a
necessidade de respirar, por exemplo - não cria entre eles nenhum tipo de relação. É
enquanto diversos que os indivíduos têm necessidade uns dos outros. Diversidade,
esta, que, assim como todas as demais determinações humanas, é produzida e
ampliada pelo próprio intercâmbio produtivo na medida em que ocorre, de forma
35 MARX, K., Manuscrit de 1857-58 (“Grundrisse”), Tomo I, p. 184.
29
simultânea e como resultado deste, o afastamento cada vez maior em relação às
determinações naturais e a ampliação dos objetos e necessidades sociais produzidos -
o que veremos nas próximas seções.
O que deve ficar claro, aqui, quanto à reciprocidade intrínseca ao agir humano
- quanto ao fato de que um indivíduo possa satisfazer a necessidade do outro e de que
também possa ter satisfeita a sua necessidade própria com o objeto da produção do
outro - é que a especificidade do homem é dada em sua prática, em seu agir próprio.
Para Marx, o homem só se constitui efetivamente como ser genérico, como ser social,
com o desenvolvimento histórico real de sua atividade.
Os homens, como vimos, são e sempre foram seres sociais. Nas formações
sociais que antecedem aquela da modernidade - e, segundo Marx, quanto mais se
afasta desta, mais isto se patenteia - a sociabilidade não só é pressuposto fundamental
da produção dos indivíduos, como ela aparece mesmo como um dado natural e
imediato, no interior e exclusivamente no interior do qual é possível a existência do
indivíduo ativo. "Quanto mais voltamos no curso da história, mais o indivíduo - e,
em seguida, o indivíduo produtor também - aparece num estado de dependência,
membro de um conjunto maior: este estado se manifesta, primeiro, de forma natural,
na família e na família ampliada em tribo, em seguida, nas diferentes formas da
comunidade que resulta da oposição e da fusão das tribos."36 Quanto mais se afasta do
período moderno, menos o indivíduo existe enquanto tal - com relativa autonomia -
mais ele é elemento de um todo maior e mais ele está imediatamente a este
subsumido. A individualização é resultado de todo um desenvolvimento do modo de
produção dos homens. Desenvolvimento este que permite certa desvinculação do
indivíduo singular com as condições originárias de existência, as quais, por sua vez,
36 Id., Tomo I, p. 18.
30
estão, neste momento, ainda vinculadas à comunidade. O surgimento do indivíduo, tal
como o conhecemos na modernidade, resulta da distinção do homem em relação às
demais condições objetivas do trabalho. O indivíduo deixa de ser mero elemento do
processo de produção, para tornar-se trabalhador livre, fim em si do trabalho - o que
veremos melhor em outro momento.
Enquanto, nas formas anteriores da produção, o indivíduo ativo não só
dependia para sua produção de uma comunidade natural, como só existia como
indivíduo ativo exclusivamente no interior daquela comunidade - em relação à qual
ele não tinha a menor chance de escolha - na forma moderna da produção, este
indivíduo encontra-se desprendido em relação a todos os laços de propriedade natural
anteriores. Encontra-se livre em relação a todas as condições inorgânicas de
existência consideradas como condição natural de produção - por exemplo, a terra - e,
ao mesmo tempo, em relação à forma de comunidade pressuposta por todas estas
relações de propriedade anteriores. O processo pelo qual o homem deixa de ser
apenas uma dentre as demais condições objetivas de produção, consiste, portanto, na
dissolução de todas estas formas sociais em que tal existência subjetiva - enquanto
condição objetiva de produção - supõe as comunidades como condição de produção.
"O homem começa a individualizar-se apenas pelo processo histórico. Ele aparece,
originalmente, como ser genérico, ser tribal, animal de rebanho (...). A própria troca
é um meio essencial desta individualização. Ela torna supérfluo o sistema de rebanho
e o dissolve. Desde que a coisa tomou uma tal configuração, que o homem, enquanto
indivíduo singularizado, se relaciona apenas consigo mesmo, mas que, ao mesmo
tempo, os meios de se pôr como indivíduo singularizado tornaram-se o ato pelo qual
ele se torna universal e comum".37
37 Id., Tomo I, p. 434.
31
Muito embora os homens sempre tenham sido seres sociais e a sociabilidade
seja uma característica intrínseca a sua existência e, portanto, a sua atividade. Muito
embora, de outro lado, a produção, sob sua forma moderna, seja aquela onde os
indivíduos apareçam, como vimos, da forma a mais livre em relação à comunidade e
apareçam mesmo como indivíduos isolados - indiferentes e independentes em relação
à sociedade; a forma moderna da produção é aquela na qual a determinação humana
da sociabilidade ganha traços ainda mais efetivos. Este modo de produção possui
como um de seus traços fundamentais aquele pelo qual necessariamente o indivíduo
não produz visando à satisfação de suas necessidades pessoais, mas unicamente
visando satisfazer necessidades sociais. O valor de troca sendo o que, aí, predomina,
não se tem em vista outra coisa que não a realização social do objeto produzido, ou
seja, sua realização para outro, sua trocabilidade. Esta forma assumida pelo trabalho
possui como mediação necessária a sociedade em geral.
Portanto, a forma moderna da produção humana sendo, ao mesmo tempo,
aquela em que os indivíduos ativos encontram-se mais isolados uns em relação aos
outros e possuindo, como o veremos, suas relações e modos de interdependência
como algo que lhes é externo - apenas como meio para realizarem seus próprios fins -
é, na verdade, aquela em que tais formas de interdependência desenvolveram-se,
intensa e extensivamente, mais que nas formas históricas antecedentes do trabalho.
Ou seja, mesmo na sociabilidade do capital, onde os indivíduos produtores são
trabalhadores livres e aparecem como indivíduos à busca exclusivamente de seus
interesses privados, tais indivíduos são, ao contrário, aí mesmo, mais dependentes uns
dos outros que nas formas antecedentes de produção. A interdependência é a base
mesmo de sua atividade. "Esta dependência recíproca se exprime na necessidade
32
constante da troca e no valor de troca enquanto mediador multilateral"38. A produção
e o próprio ser ativo não se realizam aí sem a mediação da troca. O indivíduo
produtor é totalmente dependente do outro, das relações cada vez mais universais,
para a realização de si mesmo - tanto em sua produção, quanto em seu consumo.
Marx mostra que o que aparece aos economistas como interesses unicamente
privados - de cujo confronto resultaria, como num passe mágico ou por obra do
acaso, o interesse coletivo - que tais interesses são, na verdade, postos, definidos, pela
sociedade - pelos indivíduos, sim, mas em determinadas relações, em determinada
forma do agir: "A astúcia suprema é, ao contrário, que o interesse privado, ele
próprio, já é um interesse determinado socialmente e que só podemos alcançá-lo no
quadro das condições postas pela sociedade e com os meios que ela dá; portanto, está
ligado à reprodução destas condições e meios. É o interesse dos indivíduos privados,
mas seu conteúdo, bem como a forma e os meios de sua realização são dados por
condições sociais independentes de todos"39. A sociedade, a forma como os
indivíduos encontram-se relacionados - a qual possui certa independência em relação
a cada um deles, ao mesmo tempo que é o produto de sua interação com os demais - é
que fornece a estes últimos as condições, os meios e os próprios fins de sua atividade.
Como vimos, a interatividade é a condição de possibilidade do ser dos homens
precisamente porque é a condição de possibilidade de sua efetivação, de sua auto-
posição como ser efetivo, concreto. Ela circunscreve, dá forma específica a todos os
elementos da atividade sensível: seus objetos e meios, como, também, ao trabalho do
indivíduo enquanto tal, ou seja, enquanto atividade com vistas a um fim. Daí porque
38 Id., Tomo I, p. 91.39 Idem
33
"Quando falamos, pois, de produção, trata-se sempre da produção em um estágio
determinado do desenvolvimento social, da produção de indivíduos sociais".40
A decorrência necessária do reconhecimento da produção humana como
sendo, antes de mais nada, atividade social é o fato de que tal relação, a relação de
produção, só pode ser corretamente apreendida, para Marx, no interior de sua gênese
histórica, de sua particularidade social. E a apreensão das determinações gerais da
produção - denominadas, por Marx, quando subjacentes ao processo de produção do
capital, como "determinidade material do processo" ou, ainda, "simples processo de
produção" (em oposição ao processo enquanto "processo de auto-valorização", ou
seja, enquanto posto em sua determinidade formal) - confirma-se como apoio
necessário, como já começamos a testemunhar, no sentido de permitir o desvelamento
concreto da formação social moderna em suas determinações específicas.
B) TRANSITIVIDADE ENTRE SUJEITO E OBJETO
Como antecipamos no final da seção anterior, os elementos essenciais,
constitutivos da atividade sensível ou, ainda, seus "elementos simples", como Marx
os nomeia em O Capital, são a atividade direcionada a um fim, seu objeto e seus
meios. "O trabalho supõe a existência de um instrumento que facilita o trabalho e de
um material que o trabalho forma, no qual ele se representa."41 Matéria e instrumento
40 Id., Tomo I, p. 19.41 Id., Tomo I, p. 280.
34
são os modos de existência material do trabalho vivo: seus meio e objeto de
efetivação. O trabalho, enquanto atividade formadora, de apropriação humana da
natureza, se utiliza desta natureza tanto como objeto - sobre o qual inscreverá seus
objetivos - quanto sob a forma de meio - ele próprio, já natureza formatada, como
veremos - que lhe facilita alcançar tais resultados. Ou seja, no que diz respeito a suas
condições objetivas, o trabalho possui, de um lado, a matéria ou objeto sobre o qual
realiza seus fins e, de outro lado, a matéria sob a forma de instrumento facilitador.
Mas, além de objetos e meios, o trabalho constitui-se, também, de um fim.
Marx entende o trabalho como sendo atividade orientada e adequada a um fim: "O
trabalho é uma atividade adaptada a um fim e é por isto que, do lado material,
pressupõe-se que, no processo de produção, o instrumento de trabalho foi
efetivamente utilizado como meio em vista de um fim e que o material bruto recebeu,
enquanto produto, (...) um valor de uso superior àquele que ele possuía antes."42 A
determinação do sujeito aparece fundamentalmente como teleologia e atividade
adequada a ela. Como aparecerá nas seções seguintes, uma série de outras
determinações são envolvidas e desenvolvidas neste complexo categorial. Trata-se,
porém, aqui, de considerar este último, em seus elementos básicos, em seu ponto de
partida e não ainda em toda sua processualidade.
Para Marx, a teleologia - o fato do sujeito ativo possuir em mente o que deve
alcançar com sua ação - é característica distintiva da atividade humana, é aquilo que,
juntamente com a reciprocidade, a distingue da atividade dos animais. Mas, o que
deve ser apreendido, neste ponto, é que o trabalho, enquanto atividade adequada a um
fim, é apenas um dos elementos da atividade sensível. Ou seja, que esta última não é
simplesmente atividade subjetiva: "a atividade sem objeto não é nada ou, no melhor
42 Id., Tomo I, p. 250.
35
dos casos, é atividade intelectual, da qual não nos ocupamos aqui."43 Não se trata,
pois, de exteriorização do sujeito a qual ocorreria independentemente do mundo
objetivo. Ao contrário, este último é condição intrínseca desta exteriorização. Não
apenas os sujeitos ativos são, eles próprios, seres objetivos, concretos, como também
a manifestação de suas vidas é manifestação efetiva, que ocorre em e por meio de
condições objetivas.
O desvelamento, por Marx, do complexo categorial da atividade sensível
pressupõe sua crítica primeva à filosofia hegeliana e a instauração de seu pensamento
próprio. Pressupõe o reconhecimento, por ele, da objetividade como determinação
fundamental do homem e de suas condições de vida. "O discurso marxiano reconhece
o multiverso sensível enquanto fato objetivo, pois, trata-se de uma reflexão que visa
estabelecer o núcleo substancial dos seres enquanto objetividade sensível, em
oposição às determinações especulativas da abstração enquanto ser." Em decorrência,
continua o mesmo autor, "quando Marx demanda o reconhecimento do ato histórico
fundamental que é a produção da própria vida, é necessário compreender que esta se
manifesta no interior das articulações e interações dinâmicas da objetividade."44 A
produção da própria vida - ou seja, o trabalho - é, para Marx, produção efetiva de
seres objetivos a partir de sujeitos e objetos eles próprios objetivos. Isto porque "O ser
objetivo cria e põe apenas objetos porque ele próprio é posto por objetos, porque é
originariamente natureza. No ato de pôr, não cai, pois, de sua atividade pura em
criação do objeto, senão que seu produto objetivo apenas confirma sua atividade
objetiva, sua atividade como atividade de um ser natural e objetivo."45
43 Id., tomo I, p.44 CHASIN, M. "O Complexo Categorial da Objetividade...", p. 107.45 MARX, K., Manuscritos Econômico-Filosóficos, Col. Os Pensadores, p. 46.
36
Feita esta consideração que, embora não seja mais objeto de tratamento
específico nos Grundrisse - na medida em que a determinação da objetividade é,
como o dissemos, já pressuposta como ponto de partida mesmo de tais manuscritos -
julgamos prudente reforçá-la aqui, voltemos a nos moutons. Os elementos essenciais
da produção, presentes em todas as formas sociais desta são, em suma, o sujeito que
produz - a humanidade - e o objeto que sofre as alterações na produção - a natureza.
Tais elementos não aparecem, porém, cada qual de forma isolada: como pura
subjetividade ou subjetividade dada, de um lado, e pura objetividade ou objetividade
dada, de outro. Pois, sujeito e objeto são configurados na atividade sensível, isto é,
resultam da interação que ocorre a partir da relação apropriativa. A transitividade
entre subjetividade e objetividade é a segunda característica fundamental de toda
atividade sensível e de seus resultados objetivos e subjetivos. Nem o sujeito da ação,
suas potencialidades e fins, é subjetividade no recesso de toda e qualquer
determinação concreta e objetiva, nem seu objeto, a natureza, é pura objetividade ou
natureza inerte.
Para Marx, o homem apenas parte, "originalmente", de condições naturais
inorgânicas não produzidas ou modificadas por ele; já que "As condições originais da
produção (...) não podem, originalmente, ser elas mesmas produzidas, ser resultados
da produção."46 O homem parte de uma base que, assim como ele próprio, não é
resultado de sua ação. Mas, no momento mesmo em que começa a se reproduzir, é
acionado ou desencadeado, por ele, todo um processo de produção / transformação de
seres, o qual se inicia pela produção daqueles que lhe servem de meios de ação.
Desde o momento em que ele inicia seu processo de produção propriamente dito, qual
seja, aquele descrito por estas determinações gerais; desde o momento em que ele não
46 MARX, K., Manuscrit de 1857-58 (“Grundrisse”), Tomo I, p. 426.
37
se reproduz mais apenas sob a forma da caça, da coleta e da criação de animais - as
quais se constituem, segundo Marx, como situações transitórias "e, em nenhum caso,
como situações normais e ainda menos como situações primitivas normais"47 -
rapidamente superadas na medida em que vai se tornando necessária a elaboração de
instrumentos para mediar a relação do homem com tais condições originais de
existência. Desde este momento muito tenro da existência humana, as condições da
auto-produção desta tornam-se, mais e mais, condições sociais de existência,
resultados da elaboração humana. "As formas de objetividade do ser social se
desenvolvem à medida que surge e se explicita a praxis social, a partir do ser natural,
tornando-se cada vez mais claramente sociais"48, como precisa Lukács a este respeito.
Embora o homem parta de condições não postas por ele, é preciso lembrar,
porém, que mesmo a habilidade adquirida pela mão do primitivo é, também ela, num
certo sentido, instrumento, meio de produção. "Não há produção possível sem
47 Id., Tomo I, p. 430.48 LUKÁCS, G., Ontologia do Ser Social - Os Princípios.., p. 17.
38
trabalho passado, acumulado - seja ele a habilidade que o exercício repetido
armazenou e concentrou na mão do selvagem."49 As formas as mais primitivas de
produção são, portanto, elas próprias, produção ou modelagem de suas próprias
condições de produção, sejam, estas, as habilidades ou capacidades do sujeito.
O que Marx pretende explicar não são as condições ou base original
encontradas pelo homem, mas, ao contrário, a forma pela qual ele se reproduz a partir
desta base: "Não é a unidade dos homens vivos e ativos com as condições naturais
inorgânicas de sua troca de substância (Stoffwechsel) com a natureza nem, por
conseguinte, sua apropriação da natureza que pede para ser explicada ou que é o
resultado de um processo histórico, mas a separação entre estas condições
inorgânicas da existência humana e esta existência ativa."50 De outro lado, não se
trata, também, de percorrer o processo de desenvolvimento histórico em suas
diferentes etapas - procedimento explicitamente refutado, já no início dos Grundrisse,
como não sendo o adotado por ele. O que interessa a Marx é, ao contrário do
estabelecimento de uma genealogia dos modos de produção, esclarecer as
determinações mais desenvolvidas do complexo da produção humana, quais sejam,
aquelas que se nos apresentam em sua forma mais abstrata porque
resultadas do desenvolvimento último; unicamente a partir das quais, inclusive, é
possível, segundo este autor, delinear aquelas mais gerais, de que tratamos neste
capítulo. Em outras palavras, concordamos com Lukács quando ele diz que Marx não
está olhando "para trás (...) mas, sim, para a frente, para uma sociedade na qual tem
lugar uma divisão do trabalho desenvolvida (...)"51.
49 MARX, K., Manuscrit de 1857-58 (“Grundrisse”), Tomo I, p. 19.50 Id., tomo I, p. 426. 51 LUKÁCS, G., op. cit., p. 141.
39
Voltando, pois, novamente a nos moutons, sujeito e objeto estão em
permanente simbiose em todos os momentos da produção, tanto naqueles subjetivos,
quanto nos objetivos. As condições objetivas da atividade só vêm a ser o que são
quando correspondem aos desejos e objetivos do ser ativo e são efetivamente
acionadas por ele. Por outro lado, o próprio sujeito da ação se efetiva enquanto sujeito
apenas na medida em que dá vida a suas potencialidades e desejos na relação
apropriativa que estabelece com sua mundaneidade. Aspectos que examinamos nas
seções que seguem.
C) PRODUÇÃO DE OBJETIVIDADES SOCIAIS
A atividade humana sensível não é apenas ato pelo qual os sujeitos se
reproduzem na medida em que se mantêm vivos pela apropriação, pela incorporação
em si, da objetividade demandada por sua constituição física objetiva. Ela é, também,
ato de formatação, ato pelo qual o homem torna apropriado a si seu mundo objetivo.
Através dela, os indivíduos não apenas tomam para si a natureza - a qual, justamente
pelas razões que se tenta demonstrar aqui, nunca é, para Marx, natureza pura, em
oposição ao mundo humano - mas, a transformam, adequando-a a si mesmos. O
material ou objeto recebe, no trabalho, "um valor de uso superior àquele que ele
possuía antes"52, isto é, torna-se ainda mais útil ou adequado aos homens que em sua
forma anterior. A atividade de trabalho é precisamente aquela da valorização, do
aumento do valor das coisas, pela dação de forma nova e criação de objetividades
adaptadas a fins humanos.
52 MARX, K., Manuscrit de 1857-58 (“Grundrisse”), Tomo I, p. 250.
40
A terceira característica da categoria 'trabalho' em geral é, portanto, a de ser
atividade produtora de objetividade social. Como vimos, o homem faz-se ser social na
medida em que é capaz de produzir para outro e de satisfazer sua necessidade com o
objeto da produção de outrem. E, isto, na exata medida em que, em sua produção, é
capaz não apenas de transcender sua necessidade particular, produzindo o objeto da
necessidade de outro, mas também e, antes de tudo, porque é capaz de produzir
objetos da necessidade humana. Ele parte da materialidade sensível, de objetos
existentes, para dar a estes objetos uma forma previamente idealizada por ele. "É
importante destacar que, conforme Marx, graças ao aspecto subjetivo do trabalho, a
teleologia, é possível chegar à condição de seres determinados objetos que não
poderiam ser produzidos pela natureza, sendo esta uma das propriedades objetivas do
trabalho humano: criar novas objetividades, objetividades não-naturais, portanto,
objetividades humano-sociais"53.
A prévia ideação, no entanto, traz consigo, também, a atividade cognitiva
pela qual o sujeito, por sua vez, se apropria idealmente do ser dos objetos respeitando
sua legalidade material, para só então poder afeiçoá-los a sua vontade. Como atesta
Alves, a partir dos Grundrisse, "Não é a atividade humana uma realização auto-
suficiente, uma criação de coisas ex-nihilo, mas, ao contrário, é um ato no qual os
indivíduos plasmam a matéria determinados pela realidade da matéria mesma."54 A
finalidade que orienta as ações do indivíduo ativo não é estabelecida a partir do nada
ou de um atributo exclusivo do sujeito. Também em seu momento ideal, a atividade
sensível é pautada pela transitividade entre sujeito e objeto. Ela só se realiza enquanto
53 VILASSANTI, E. C., "O Complexo Categorial da `Atividade Humana` na Obra Marxiana", p. 93.54 ALVES, A.L., op. cit., p. 31.
41
pôr teleológico na medida em que toma em consideração as características intrínsecas
à objetividade com a qual se relaciona, na medida em que a conhece.
A atividade cognitiva é condição mesmo para o estabelecimento, pelo sujeito,
dos objetivos adequados e factíveis na condução de sua ação. Ela não implica,
portanto, uma subsunção passiva do sujeito ao objeto de sua ação: "a apropriação dos
objetos pelos sujeitos, aparece da mesma forma, de outro lado, como modelagem,
submissão dos objetos a um fim subjetivo; transformação dos objetos em resultados e
reservatórios da atividade subjetiva"55. O conhecimento da conformação material
específica do objeto da ação é importante justamente no sentido de conduzir a bom
termo a "atividade formadora e conforme a um fim"56.
Para Marx, trabalho é atividade que dá forma, aquela pela qual é promovida a
humanização da natureza pelos indivíduos: "A natureza não constrói nem máquinas,
nem locomotivas, nem caminhos de ferro, nem telégrafos elétricos, nem máquinas de
fiar automáticas, etc. Trata-se de produtos da indústria humana: material natural
transformado em órgãos da vontade humana sobre a natureza ou de seu exercício na
natureza."57 Resultado da ação humana sobre a natureza, é a sociabilidade que se
estabelece, ela mesma, como objetividade, como realidade cada vez mais concreta.
E como, para Marx, tal objetividade posta pelo homem, a partir da
objetividade pré-existente, não é objetividade abstrata - "O objeto não é um objeto em
geral, mas um objeto determinado, que deve ser consumido de uma maneira
determinada"58 - da criação de objetos cada vez mais sociais, cada vez mais afastados
da legalidade objetiva natural, resulta, por sua vez, a ampliação, também, das
55 MARX, K., Manuscrit de 1857-58 (“Grundrisse”), Tomo I, p. 426.56 Id., tomo I, p. 237.57 Id., tomo II, p. 194.58 Id., tomo I, p. 26.
42
necessidades. Estas tornam-se, simultaneamente, cada vez mais diversas e
determinadas. Pois, produção e consumo - assim como os demais momentos da
produção social - estão em relação de recíproca determinação.
Em termos bastante sintéticos59, a produção determina o consumo - o objeto e
a forma específica deste - e o consumo determina a produção - o objeto desta sob a
forma de representação. Mas, a produção também põe o consumo enquanto tal (e não
apenas seu objeto): "Por outro lado, a produção produz o consumo criando o modo
determinado do consumo e, em seguida, fazendo nascer o apetite do consumo, a
faculdade de consumo, sob a forma de necessidade"60. As necessidades dos
indivíduos resultam, são postas por sua própria produção. Aquilo que eles produzem
delimita a forma de seu consumo: "a fome é a fome, mas a fome que se satisfaz com
carne cozida, comida com garfo e faca, não é a mesma que engole carne crua com a
ajuda das mãos, das unhas e dos dentes."61 Forma, esta, que define o próprio consumo
enquanto tal, aquilo que ele é enquanto apetite, enquanto carência. Ou seja, a
produção determina não apenas materialmente o consumo mas, também, idealmente,
produzindo tais objetos também sob a forma de necessidade nos indivíduos. "A
produção não fornece, portanto, apenas um material à necessidade, ela fornece,
também, uma necessidade a este material. Quando o consumo se afasta de sua
rusticidade natural e perde seu caráter imediato - e o fato mesmo de nela se deter seria
ainda o resultado de uma produção assentada na rusticidade natural - tem, ele mesmo,
enquanto pulsão, o objeto por mediador."62
59 Não se trata, aqui, de expor todas as determinações em que cada momento da produção em geral - no caso, o da produção propriamente dita e o do consumo - aparece frente ao outro, mas de enfocar sucintamente a relação entre eles no que diz respeito especialmente à determinação da necessidade.60 Id., tomo I, p. 28.61 Id., tomo I, p. 26.62 Idem.
43
Através do trabalho, portanto, os indivíduos não somente adequam às suas
necessidades a objetividade existente, como também modificam e ampliam o
gradiente destas necessidades. Resultando de sua produção objetividades e
necessidades cada vez mais específicas e diversas em relação às anteriormente postas.
D) EFETIVAÇÃO DE POTENCIALIDADES HUMANAS
Se, por um lado, trabalho é subjetivação de objetividades - no sentido que
acabamos de ver, qual seja, de "submissão dos objetos a um fim subjetivo"63 - por
outro, ele é, também, objetivação de potencialidades humanas, expressão de vida. A
relação apropriativa que os indivíduos estabelecem com a natureza é aquela mesma
que promove entre eles sua humanização, ou seja, que os constitui efetivamente como
seres sociais. Isto porque, nesta relação, eles não só se diferenciam objetivamente das
demais ordens de seres por se mostrarem capazes de produzir para outro e de realizar,
com sua produção, um progressivo afastamento em relação às determinações naturais
objetivas - construindo um mundo que lhes é próprio - como, também, é por ela, por
sua relação com a natureza, que os indivíduos se objetivam, tornando efetivas suas
forças essenciais.
A relação do homem com a natureza, em Marx, está muito longe de ser aquela
de uma oposição ou de um compartilhar indiferente de cadeias causais (de ordem
biológica) ou de mero proveito físico para o homem. O indivíduo social não apenas é
natureza objetiva orgânica e inorgânica - sendo, a natureza exterior a ele, sua própria
natureza inorgânica, resultado mesmo de sua ação - como só existe e se desenvolve
63 Id., tomo I, p. 426
44
objetivando-se por meio de sua exteriorização. Para Marx, "Toda produção é uma
objetivação do indivíduo".64
A exteriorização humana por meio da atividade vital não é apenas negação ou
consumo de forças. Para Marx, ela é, sobretudo, ato positivo, consumo produtivo.
Consumo objetivo e subjetivo mas, acima de tudo, criação, produção do novo, através
da efetivação de potencialidades. "Assim, pois, a matéria-prima é consumida sendo
modificada, formatada pelo trabalho; e o instrumento é consumido por seu uso, sendo
usado neste processo. De um outro lado, o trabalho também é consumido na medida
em que ele é empregado, posto em movimento e na medida em que, assim, é
despendida uma certa quantidade de força muscular, etc. do trabalhador - dispêndio
no qual ele se esgota. No entanto, o trabalho não é apenas consumido, mas ele passa,
ao mesmo tempo, da forma de atividade àquela de objeto, de repouso, em que ele é
fixado, materializado; modificação inscrita no objeto, ele modifica sua própria
configuração e, de atividade, torna-se ser."65 A modificação que aparece como
modificação do objeto é, também, alteração na ordem do próprio sujeito.
Objetivando-se, por meio da atividade, este último resulta, ele próprio, transformado.
Aquilo que, antes, nele, se configurava apenas como potência, mera possibilidade,
torna-se realidade efetiva.
"No próprio ato da reprodução, não são apenas as condições objetivas que
mudam - por exemplo, o vilarejo torna-se uma cidade, a natureza selvagem, terra
destrinchada, etc. - mas, os produtores também mudam, extraindo de si mesmos
qualidades novas, se desenvolvendo, se transformando a si mesmos por meio da
produção, constituindo forças novas e idéias, novos meios de comunicação, novas
64 Id., tomo I, p.164.65 Id., tomo I, p. 239.
45
necessidades e uma nova linguagem."66 É na relação que os indivíduos estabelecem
entre si, em sua atividade apropriativa em relação à natureza, que estes mesmos
indivíduos se desenvolvem como seres diferenciados, portadores de capacidades e
potencialidades específicas. Manifestando suas vidas, ou seja, produzindo de uma
determinada forma, vêem se desenvolverem a si mesmos como sujeitos específicos,
determinados - capazes ou não de determinada linguagem, de expressar e desenvolver
determinados sentimentos ou valores, etc. Subjetividade e objetividade configuram-
se, pois, efetivamente, como dois lados de um mesmo ser - diferenças no interior de
uma mesma unidade - que se desenvolve objetivamente por meio da atividade.
Sobretudo, o que é importante apreender, quanto a esta determinação do
trabalho, é que a relação do indivíduo com suas próprias disposições dá-se, para
Marx, exatamente através desta exteriorização, através de sua relação com o mundo
pela atividade. A relação do sujeito com suas capacidades e potências não ocorre no
recesso de uma subjetividade interior, isolada, mas, ao contrário, na relação que ele
estabelece, enquanto sujeito ativo, com o mundo, com as propriedades da
objetividade com a qual ele interage. Relação na qual ele terá ou não realizados seus
fins.
Marx explicita isto numa de suas críticas a Smith: "É verdade que a medida do
trabalho aparece dada pelo exterior, pela finalidade proposta e pelos estorvos que o
trabalho deve suplantar para a sua consecução. Mas, A. Smith, assim, não suspeita
que superar obstáculos possa ser, em si, uma atividade de liberdade e que, por outro
lado, de resto, as finalidades exteriores mantêm, sob uma forma desnudada, a
aparência de uma necessidade natural simplesmente externa, mas são postas como
finalidades que o indivíduo fixa, ele mesmo, de antemão - possa ser, pois, a auto-
66 Id., tomo I, p. 431.
46
efetivação, a objetivação do sujeito e, por aí mesmo, a liberdade real cuja ação é
precisamente o trabalho."67
Há, para Marx, uma relação intrínseca entre o esforço, o dispêndio de energia
por parte do sujeito e o desenvolvimento de suas capacidades e potencialidades.
Como referimos acima, pelo ato de apropriação da natureza, ele não apenas se
objetiva como, também, se consome: "o indivíduo que desenvolve suas faculdades
produzindo, também as despende, as consome, no ato de produção."68 A produção é,
também, consumo de forças, de vitalidade. Ela só se confirma como objetivação,
como pôr teleológico do sujeito, na relação deste com os obstáculos postos pela
materialidade69. Portanto, um dos aspectos da crítica de Marx a Smith é o fato de que,
para o primeiro, a atividade de superar, na efetividade, obstáculos concretos, reais - o
trabalho - é, em si, uma "atividade de liberdade". É por ela que pode ou não se
verificar a realização dos fins pretendidos pelos indivíduos ativos.
A finalidade e medida do trabalho, os parâmetros que definem a forma e o
conteúdo deste, aparecem como postos pelo exterior, ou seja, como algo que coage
unilateralmente o indivíduo e a que ele deve necessariamente se submeter em sua
ação. Isto se deve, em primeiro lugar, ao fato de que se tratam de finalidade e medida
adequadas, conformes, a uma objetividade efetivamente externa, independente do
indivíduo enquanto tal. Como vimos, tratam-se de fins estabelecidos pelos próprios
67 Id., tomo II, p. 101.68 Id., tomo I, p. 24.69 É importante observar que, ao revelar a produção como sendo, em todos os seus momentos, também consumo, Marx refuta a concepção corrente entre os economistas pela qual a cada momento do processo global da produção - produção stricto sensu, distribuição, troca e consumo - corresponderia um aspecto totalmente distinto e específico. No interior do silogismo estabelecido por tal concepção, o consumo estaria posicionado apenas no final do processo, quando a produção entra como insumo para cada indivíduo singular. A análise de Marx revela, ao contrário, que todos estes momentos - objetivação do sujeito e subjetivação de objetos - estão postos no interior da própria produção, são momentos desta.
47
sujeitos da ação, os quais devem, porém, para serem efetivados, se adequar à
materialidade a ser trabalhada. Marx revela, no entanto, que o fato de tal teleologia
não ser estabelecida sobre parâmetros exclusivamente ideais, não se mostrar como
finalidade estabelecida única e exclusivamente pela cabeça do sujeito, não anula mas,
antes, confirma o caráter de auto-efetivação do sujeito. Superar obstáculos reais é
precisamente o que constitui a liberdade real. Mesmo porque a necessidade de superá-
los é, na verdade, estabelecida pelos próprios sujeitos da ação. Por meio desta ação -
na qual se estabelece, portanto, uma dialética efetiva entre os objetivos do agente e a
legalidade material que os coage numa certa direção - eles se põem como sujeitos
reais, efetivos, capazes de terem seus fins efetivados.
Desta importante passagem dos Grundrisse, concluímos, assim, que: 1) os
estorvos a serem superados pela ação não são estorvos que recaem inexoravelmente,
do exterior, sobre os sujeitos, mas só se põem como obstáculos ou limites a serem
superados por decisão dos próprios sujeitos; 2) liberdade não significa absoluta
independência ou oposição à materialidade ou natureza externa, mas, ao contrário, é
liberdade real precisamente quando se realiza na ação. Mas, isto não é tudo.
Além das barreiras ou limites externos intrínsecos à atividade sensível, pode
haver, ainda, aqueles postos pela sociabilidade específica em que a mesma se situa.
As condições sociais, o modo como estão organizadas as relações sociais, podem
configurar-se como coações ou limites impostos à atividade humana sensível.
Tratam-se, porém, de constrangimentos estabelecidos, fixados, pela forma
apropriativa vigente em cada formação social específica. São, pois, limites
contingentes, diferentemente daqueles que viemos de referir, os quais são parte
constitutiva, são intrínsecos ao trabalho em geral. Assim, se, nas sociabilidades
48
primitivas, o indivíduo tinha sua vida ativa contida no interior de uma relação de
dependência imediata tanto com a comunidade, quanto com a natureza, a
sociabilidade moderna circunscreve a atividade sensível dos indivíduos no interior de
limites que lhe são próprios. E desta forma é que Smith vê o trabalho não como
atividade de efetivação do indivíduo mas, ao contrário, como submissão total deste a
condições e finalidades externas e hostis a ele.
Smith confunde, pois, aquilo que Marx distingue: a coação intrínseca ao
trabalho - posta na forma de um auto-controle do sujeito em relação a uma legalidade
dada, objetiva, que opõe àquele limites concretos a serem suplantados, subvertidos -
e, de outro lado, a forma social sob a qual o trabalho se apresenta, ele próprio, como
estorvo ao indivíduo. Segundo Marx, olhando-se apenas o aspecto da negatividade do
trabalho, não se alcança o ser-precisamente-assim - fazendo nossa uma expressão
lukacsiana - desta atividade nem mesmo sob o modo de produção do capital - que,
segundo ele, é o único em que Smith está pensando. Pois, aí também, ele é
positividade, é posição / produção de ser: "Considerar o trabalho unicamente como
sacrifício e como instância que põe valores porque é sacrifício; como preço que é
pago pelos objetos e lhes dá, por sua vez, preço, segundo eles custem mais ou menos
trabalho, é uma determinação puramente negativa. (...) Uma coisa puramente
negativa não produz nada."70
A distinção destas duas formas de limite ou coação é fundamental em Marx.
Como se sabe, trabalho não é, para ele, necessariamente trabalho alienado. Seu
texto releva, a todo momento, considerações que não dizem respeito apenas a uma ou
outra forma histórica assumida pelo trabalho, mas que enfocam suas características
gerais, essenciais. Características, estas, que se, por um lado, não foram plenamente
70 Id., tomo II, p. 102.
49
realizadas nas formas efetivas assumidas pelo trabalho - precisamente devido às
contradições que as marcam em cada um destes momentos históricos - por outro lado,
encontram-se pontualmente, em maior ou menor grau, subjacentes a todas estas
formas históricas. Continuando a passagem em que critica Smith, Marx diz: "Sem
dúvida, ele tem razão de dizer que o trabalho, em suas formas históricas: escravidão,
servidão, assalariado, aparece sempre como um trabalho repulsivo, como um
trabalho forçado, imposto pelo exterior, frente ao qual o não-trabalho representa a
liberdade e a felicidade. Isto vale duplamente: para este trabalho contraditório e, o
que a ele está ligado, para o trabalho que ainda não se deu as condições, subjetivas e
objetivas, (ou, ainda, que as perdeu em relação ao estado pastoril ou a outros, etc.)
para que o trabalho seja travail attractif, auto-efetivação do indivíduo - o que não
significa, de forma alguma, que ele seja puro prazer, pura diversão, como o pensa
Fourier, com suas concepções ingênuas e suas visões embriagadas. Trabalhos
efetivamente livres - a composição de uma obra musical, por exemplo - requerem
justamente, ao mesmo tempo, uma enorme seriedade e o esforço o mais intenso."71
Assim, mesmo as formas "efetivamente livres" do trabalho não são sinônimas
de entretenimento ou puro prazer, ou seja, não estão livres de limites externos e,
portanto, da atenção e do esforço necessários a toda atividade sensível. Como vimos,
disciplina e esforço são, para Marx, a condição mesmo da auto-efetivação humana.
Como bem o observa Alves: "(...) este momento de negação de si está compreendido
como afirmação de uma necessidade exterior à volição ou à afetividade do indivíduo
ativo. (...) Este preço, a negação de certas dimensões de si, aparece como um tributo
que os indivíduos pagam na exata medida em que se afirmam no mundo."72
71 Id., tomo II, p. 101.72 ALVES, A. L., op. cit., p. 38.
50
CAPÍTULO II
A ATIVIDADE SENSÍVEL NA SOCIABILIDADE MODERNA
A) CARÁTER UNIVERSAL
Se, para Marx, a sociabilidade é determinação fundamental da vida ativa, não
se trata, porém, digamo-lo novamente, de uma essência única que, de forma imutável,
subsistisse em todas as formas assumidas pela atividade humana. Tal determinação
possui, ao contrário, a forma de relações historicamente suscitadas com o evolver da
atividade sensível dos indivíduos. A sociabilidade é, como vimos no capítulo anterior,
resultado deste processo de apropriação humana do mundo, ela só assume o aspecto
de relações efetivas de interdependência entre os indivíduos sociais com o
desenvolvimento destas formas de apropriação.
Na primígena de tais formas - aquela que tem como pressuposto a relação dos
indivíduos com a terra como seu laboratório natural - tais indivíduos encontram-se no
interior de laços de dependência pessoais. Tratam-se de sociabilidades nas quais não
se tem desenvolvida a independência relativa dos indivíduos, ou seja, em que estes
não se constituem efetivamente como indivíduos, mas são meros elementos, elos
naturais, do todo social ao qual pertencem. Os laços de dependência do indivíduo, aí,
são tanto em relação a este todo como, enquanto membro do todo, em relação às
condições naturais de produção sobre as quais este último se sustenta. Tratam-se de
relações naturais de dependência, que não têm como base o desenvolvimento ou a
51
produção humana enquanto tal, mas que são, ao contrário, pressupostas à produção:
"essa relação ao terreno - à terra considerada como propriedade do indivíduo que
trabalha - passa por uma mediação: o indivíduo não aparece a priori como simples
indivíduo trabalhando, nesta abstração, mas ele tem, por sua propriedade da terra, um
modo objetivo de existência pressuposto a sua atividade e que não aparece como um
simples resultado desta última, mas é, igualmente, um pressuposto de sua atividade
(...). Sua relação com a terra passa, pois, também pela mediação da existência natural
(mais ou menos desenvolvida historicamente, mais ou menos modificada) do
indivíduo enquanto membro de uma comuna; de sua existência natural enquanto
membro de uma tribo, etc. Um indivíduo isolado não poderia ser proprietário de uma
terra, não mais que falar."73
Tal aspecto diz respeito não apenas a estas formações sociais com base na
propriedade fundiária, mas encontra-se, em maior ou menor grau, difundido em todas
as demais formas de apropriação que antecedem aquela da modernidade. Em todas
estas formações sociais tem-se a dependência do indivíduo ativo em relação a
determinado grupo ou pessoa como pressuposto básico da atividade. Os trabalhadores
têm, de um lado, uma relação de proprietário ou possuidor com suas condições
objetivas de trabalho, relaciona-se com estas - em parte ou em sua totalidade, a
depender da forma histórica assumida por sua atividade - como sendo suas. E, em
contrapartida e como condição mesmo de sua relação de apropriação com as
condições inorgânicas de produção, pertencem, eles próprios, a uma determinada
comunidade ou chefe. Encontram-se, sob diversas formas, inseridos numa relação de
dependência pessoal. Relações, estas, que - tanto no que diz respeito às condições
objetivas de trabalho, quanto aos vínculos pessoais - embora mantidas e mesmo
73 MARX, K., Manuscrit de 1857-58 (“Grundrisse”), tomo I, p. 422
52
desenvolvidas pela atividade, se posicionam como condições que subjazem, que
precedem a atividade e não como relações que dela resultam. "As formas primitivas
da propriedade reduzem-se necessariamente na relação com os diferentes momentos
objetivos que condicionam a produção enquanto objetos de propriedade; eles tanto
formam a base econômica de diferentes formas de comunidade, como têm, por seu
lado, como pressuposto, formas determinadas de comunidade."74
Do progressivo desenvolvimento pelo homem de seus próprios meios de
produção, resulta, porém, que a própria comunidade - suas inter-relações enquanto
indivíduo social - passa a ser, também ela, engendrada, produzida e não mais
comunidade natural, com fulcro em laços de consangüinidade ou autoridade. Como
vimos no capítulo anterior, o homem apenas parte de condições não postas por ele -
"Apenas começa-se a trabalhar a partir de uma certa base inicialmente natural, a qual
torna-se, porém, em seguida, um dado histórico."75. Na medida mesmo em que
começa a produzir - ou seja, já nos primeiros momentos de sua existência enquanto
caçador ou na própria coleta de frutos - aciona, com sua produção, um processo que
dará origem à criação de suas próprias condições de produção. Processo, este, que
consiste em alterar a ordem de todo o multiverso sensível e, portanto, da totalidade
das determinações da existência humano-societária. "Dado que o instrumento, ele
próprio, é já produto do trabalho, portanto, que o elemento que constitui a
propriedade é já posto pelo trabalho, a comunidade não pode mais aparecer, aqui, sob
sua forma natural, como no primeiro caso (a comunidade sobre a qual está fundado
este tipo de propriedade), mas enquanto comunidade ela própria já produzida,
engendrada, segunda - já produzida pelo próprio trabalhador."76
74 Id., tomo I, p. 43875 Id., tomo I, p. 43476 Id., tomo I, p. 437.
53
A produção com base na propriedade privada é o desenvolvimento deste
processo propulsionado, sobretudo, pelo desenvolvimento artesanal e urbano do
trabalho - o qual é, porém, elevado a processo de desenvolvimento universal de forças
objetivas e subjetivas e não mais desenvolvimento adstringido de habilidades do
produtor enquanto sujeito singular. As relações engendradas com a forma moderna da
produção implicam não "uma supressão das 'relações de dependência', elas são, aliás,
apenas a resolução destas mesmas relações em uma forma universal; elas são, ao
contrário, a elaboração do fundamento universal das relações pessoais de
dependência."77
A sociabilidade do capital tem como característica fundamental o
engendramento de relações multilaterais de dependência entre os indivíduos através
de uma produção voltada exclusivamente para a troca. Relações estas que são, de um
lado, produto exclusivo do ato de produção e, em decorrência, um produto cada vez
mais universal ou geral na medida em que não possui como limites formas naturais
ou pré-estabelecidas, mas se fundamenta exclusivamente sobre si mesmo enquanto
processo que põe suas próprias condições. Vejamos, pois, inicialmente, o primeiro
destes aspectos.
"No mundo moderno, as relações pessoais surgem como uma simples
emanação das relações de produção e de troca"78 e não mais - como nas formas
anteriores de propriedade - as relações de produção como derivadas das
relações pessoais. A produção é, agora, central, é ela que determina as demais
relações dos indivíduos. As relações pessoais - ou melhor, o que eram, antes, laços
pessoais - são, agora, relações sociais; têm como mediação as relações de produção e
77 Id., tomo I, p. 100.78 Id., tomo I, p. 101.
54
de troca. Não se tratam de laços unilaterais de dependência, mas de relações
múltiplas, de laços de interdependência necessariamente estabelecidos pelos
indivíduos, ou seja, no interior e apenas no interior dos quais os indivíduos se
reproduzem. É a atividade produtiva, ela própria, que coloca os indivíduos em relação
uns com os outros e não, ao contrário, os indivíduos já dependentes de determinado
grupo ou senhor que, apenas e exclusivamente nesta condição, se poriam em
condições de produzir. "Para que todos os produtos e atividades se reduzam a valores
de troca é necessário que todas as relações fixas (históricas) - as relações de
dependência pessoal - se reduzam à produção, bem como a dependência multilateral
dos produtores entre eles. A produção de cada indivíduo singular é dependente da
produção de todos os outros, assim como a transformação de seu produto em meios
de subsistência para si mesmo tornou-se dependente do consumo de todos os
outros."79
Na modernidade, a produção é posta sob a égide do valor de troca. O que
predomina é não a produção voltada para atender às necessidades do indivíduo
produtor ou de sua família, mas aquela que tem em vista precisamente a superação
destas. A mais-valia, do lado do capital, ou mais-trabalho, do lado do trabalhador, é,
como o diz Marx, o grande fato histórico do capital na medida em que ele é a
existência necessária deste mais-trabalho. Sob esta forma, a produção tem como
objetivo não mais a subsistência ou outro limite qualquer baseado no valor de uso.
Trata-se de um trabalho voltado para uma produção que supere as simples
necessidades do trabalhador singular, para uma produção de excedente - o qual acaba
por se transformar em necessidade universal. O capital - apreendido, de forma
79 Id., tomo I, p. 91.
55
sumaríssima, aqui, como "dinheiro que se produz a si mesmo"80 ou valor que gera
valor - constitui a base de uma produção sem limite, de uma produção universal, que
só tem a si mesma como limite. Nas palavras de Marx, "O capital, enquanto
representa a forma universal da riqueza, o dinheiro, é a tendência sem limites, nem
medida, a ultrapassar seu próprio limite. Todo limite é e só pode ser limitado por
ele."81 Os limites da forma social moderna são aqueles postos pela produção mesma e
não mais parâmetros pré-estabelecidos, pré-existentes. Tratam-se de limites
genuinamente sociais, postos e renovados exclusivamente pelas relações que os
indivíduos estabelecem entre si no evolver de sua atividade vital.
A sociabilidade moderna tem como ponto de partida precisamente a liberação
do homem em relação às suas condições objetivas de ação, bem como em relação aos
laços sociais aos quais o indivíduo estava submetido e reduzido a meio para a
realização de fins que lhe eram externos. Nesta nova formação social, o indivíduo e
sua atividade têm frente a si tais condições e não estão a elas submetidos numa
determinação natural. Os indivíduos ativos não são mais apenas um elemento dentre
outros da produção material mas, ao contrário, tornam-se fim em si desta atividade. É,
portanto, uma forma de atividade através da qual ocorre a criação de nexos sociais
efetivos, livres de toda determinação natural e, por conseguinte, a possibilidade de
ligações efetivas mais amplas entre os indivíduos, de modos de interdependência mais
desenvolvidos. Daí porque, para Marx, a sociabilidade moderna, dada pela nova
forma alcançada pela atividade sensível, é aquela na qual as relações entre os
indivíduos atingem uma universalidade até então desconhecida. Universalidade
80 Id., tomo I, p. 273.81 Idem
56
entendida, porém, "não como universalidade pensada ou imaginada, mas como
universalidade de suas relações reais e ideais".82
A forma de produção do capital possui como característica própria uma
preponderância da troca sobre todas as relações de produção. A dependência
recíproca entre os indivíduos é expressa na necessidade constante da troca e do valor
de troca como mediador das relações entre eles e as determinações de seu trabalho.
Esta preponderância da troca sobre as demais relações possui, segundo Marx, dois
aspectos; sendo, o primeiro deles, o fato de que: "é apenas no valor de troca que a
atividade própria de cada indivíduo ou seu produto tornam-se uma atividade e um
produto para ele."83
Embora, nesta forma social, o indivíduo pareça encontrar-se livre e
independente em relação aos demais indivíduos singulares - já que "os laços de
dependência pessoal, as diferenças do sangue, as diferenças de cultura, etc. são, na
verdade, rompidos, dilacerados"84 e o trabalho do indivíduo singular é posto como
trabalho autônomo, independente dos demais - esta independência é, segundo Marx,
82 Id., tomo II, p. 34.83 Id., tomo I, p. 92.84 Id., tomo I, p. 100
57
mera "ilusão". Os indivíduos são, aí, indiferentes entre si mas, de forma
alguma, independentes. A conexão social tendo tomado a forma de uma conexão
entre valores de troca ou, mais precisamente, a forma do dinheiro, não se trata de uma
independência do indivíduo singular em relação ao todo social mas, sim, que esta
dependência recíproca dos indivíduos produtores e de sua produção entre si é posta
como algo externo e abstrato em relação aos indivíduos singulares - como o veremos
na próxima seção. Nas palavras de Marx: "esta relação objetiva de dependência, esta
relação de coisas, não é outra coisa senão o conjunto das relações sociais que fazem
face, de forma autônoma, aos indivíduos aparentemente independentes, isto é, o
conjunto de suas relações de produção recíprocas, promovidas à autonomia face a
eles mesmos."85
Na realidade, a produção é, aqui, efetivamente uma produção social. Não
apenas a troca enquanto momento específico - isto é, enquanto circulação de
mercadorias - traz em si o aspecto da reciprocidade, como tal aspecto resulta de
determinações postas pela produção stricto sensu. A produção é já em si mesma uma
produção social, muito embora o seja apenas em si e não para si, isto é, muito
embora, aos indivíduos singulares, esta conexão só apareça na troca, já que, como o
veremos, eles não têm o controle sobre tal produção enquanto indivíduos sociais e
estão postos como indivíduos isolados e submissos ao processo como um todo. O
mundo das mercadorias - que, na sociedade capitalista, se apresenta como sendo o
próprio mundo das coisas, o mundo real - tem, no entanto, como fundamento, como
base de si mesmo, relações de produção. Não se trata de simples troca entre coisas. A
troca entre mercadorias é um aspecto ou uma forma do processo social de produção -
aquele que é mais visível, que aparece à superfície. "A circulação, que aparece, pois,
85 Idem.
58
como dado imediato à superfície da sociedade burguesa, existe apenas na medida em
que ela é, sem cessar, mediatizada. Considerada nela mesma, ela é a mediação de dois
extremos pressupostos. Mas, não é ela que põe estes extremos."86
O trabalho é, aqui, "universalmente produtor de valores de troca". Não se trata
mais, como na idade média, do trabalho como privilégio, voltado ao atendimento de
determinadas necessidades, "realizado com vistas a uma comunidade que se apresenta
como uma entidade superior (corporações)" 87. Ele deixa de ser trabalho para
determinado grupo, deixa de ser trabalho particular, para tornar-se trabalho produtor
de objetividade social. O segundo aspecto, portanto, deste modo de produção calcado
sobre a troca de valores de troca é o de que a atividade e seu produto não estão mais
ligados a uma forma determinada. Sendo, ambos, valores de troca, são "algo universal
no qual é negada e apagada toda individualidade, toda propriedade particular."88
O trabalho assalariado, que é a base universal deste modo de produção, ou
seja, o trabalho que é, em si mesmo, valor de troca, é aquele que também produz
valor de troca, isto é, riqueza universal: “A indústria universal só é possível lá onde
qualquer trabalho produz a riqueza universal (...) e, portanto, lá onde o salário do
indivíduo é dinheiro”89. A indústria universal, a universalidade das relações reais,
significa precisamente a liberação da atividade com relação a suas formas
particulares. O dinheiro – que, enquanto equivalente geral, ou seja, mercadoria à qual
os produtos do trabalho, enquanto mercadorias particulares, são equiparados antes de
serem trocados e que, com o desenvolvimento social, torna-se autônoma frente a tais
mercadorias específicas - é que vem a ser a comunidade, as relações sociais, que,
86 Id., tomo I, p. 19587 Id., tomo I, p. 18588 Id., tomo I, p. 9289 Id, tomo I, p. 62.
59
nesta sociabilidade, possuem um aspecto ampliado, universal. O dinheiro é
precisamente a forma universal da riqueza. E é apenas nele que, segundo Marx, a
riqueza deixa de ser somente uma forma para ser o próprio conteúdo. Nele, “o
conceito de riqueza é, por assim dizer, realizado, ‘individualizado’ em um objeto
particular”. Ou seja, deixa de ser apenas forma ideal, não efetivada - como quando tal
riqueza está posta apenas nas coisas particulares: “na medida em que a mercadoria
tem um valor de uso determinado, ela representa apenas um aspecto bem
singularizado da riqueza” 90.
Nesta formação social, portanto, a universalidade das relações entre os
indivíduos ativos e entre os resultados objetivos de sua atividade alcança uma
efetividade real. Mas, para Marx, tal universalidade da riqueza em sua forma concreta
não se realiza plenamente nesta sociabilidade na medida em que esta riqueza
universal encontra-se, aí, estranhada em relação aos indivíduos particulares.
B) PRODUÇÃO SOB A FORMA DO ESTRANHAMENTO
A produção efetiva-se, assim, como produção sob a forma de reciprocidade,
de relações de interdependência entre os indivíduos produtores. No entanto, esta
reciprocidade, a posição de si como meio para outro tendo em vista a realização de
seu próprio fim ou a posição do outro como meio para si apenas enquanto este outro
assim também se realiza como fim para si mesmo - "O indivíduo A serve à
necessidade do indivíduo B por meio da mercadoria a apenas na medida em que e
porque o indivíduo B serve à necessidade do indivíduo A por meio da mercadoria b e
vice-versa. Cada um serve ao outro para se servir a si mesmo; cada um se serve do
90 Id., tomo I, p. 159.
60
outro reciprocamente como de seu meio."91 - esta relação social, tornada efetiva e
necessária, não se apresenta a cada um dos indivíduos singulares enquanto tal. Os
indivíduos encontram-se, contraditoriamente, postos, aí, como indiferentes uns em
relação aos outros e voltados, cada qual, exclusivamente para seus interesses
egoístas: "(...) esta reciprocidade é um fato necessário, pressuposto como condição
natural da troca, mas (...) ela é, enquanto tal, indiferente a cada um dos dois sujeitos
da troca e (...) esta reciprocidade tem interesse para ele apenas na medida em que ela
satisfaz seu interesse enquanto, este, exclui aquele do outro e não o leva em conta. O
que quer dizer que o interesse coletivo - que aparece como motivo do ato de conjunto
- é, certo, reconhecido, pelas duas partes, como um fato, mas não é, enquanto tal,
motivo; faz, por assim dizer, seu caminho às costas dos interesses particulares
refletidos sobre si mesmos, às costas do interesse individual que se opõe àquele de
outro."92
Este modo de produção - produção sob a forma da troca - é, portanto, aquele
que realiza efetivamente a atividade sensível como atividade social, mas que o faz de
forma estranhada em relação aos indivíduos singulares, às suas costas - como o
expressa Marx. E esta é a segunda característica mais geral da atividade sensível na
sociabilidade moderna, qual seja: a objetividade social dela resultante confronta-se-
lhe, ou seja, termina por ganhar uma força que se defronta com os próprios
indivíduos enquanto potência que lhes é estranha. Isto porque, tanto a objetividade
resultante, quanto a própria atividade enquanto tal, apenas adquirem este caráter
social ou de universalidade ao se submeterem a uma relação de troca que lhes é
exterior, ou seja, que independe do trabalho individual.
91 Id., tomo I, p. 18592 Idem
61
O trabalho do indivíduo não é imediatamente trabalho social, assim como seu
produto também não é imediatamente um produto universal. Ao contrário,
imediatamente o trabalho do indivíduo singular é trabalho autônomo, independente
dos demais. A troca é o médium que permite sua participação à produção universal.
Seu trabalho compra imediatamente o produto - "o objeto de sua atividade particular"
- mas compra apenas este produto determinado, particular; "seu tempo de trabalho
particular não pode ser trocado imediatamente por qualquer outro tempo de trabalho
particular; a trocabilidade universal deste tempo de trabalho deve, primeiro, ser
mediatizada, tomar uma forma de objeto diferente dele para que ele acesse esta
trocabilidade universal."93
Na modernidade, a produção só se efetiva como produção para o indivíduo
ativo singular quando assume a forma universal do valor de troca, como referimos, "é
apenas no valor de troca que a atividade própria de cada indivíduo singular ou seu
produto tornam-se uma atividade e um produto para ele."94 A atividade só é efetivada
por um ato de perda, de alienação, isto é, de troca; apenas quando transformada em
algo distinto dela própria. Troca esta que se põe, como veremos, no próprio ato da
produção e não apenas na circulação de mercadorias enquanto tal. "O caráter social
da atividade, a forma social do produto, bem como a parte que o indivíduo toma na
produção, aparecem, aqui [no dinheiro], frente aos indivíduos, como algo estranho
(Fremdes), como coisa objetiva (Sachliches); não como seu comportamento
recíproco, mas como submissão a relações existentes independente deles e nascidas
dos embates dos indivíduos indiferentes entre si. A troca universal das atividades e
produtos torna-se condição vital para todo indivíduo singular, sua conexão recíproca
93 Id., tomo I, p. 10894 Id., tomo I, p. 92
62
lhes aparece como estranha, independente, como uma coisa. No valor de troca, a
relação social é transformada em relação de coisas”95.
A atividade característica da formação social capitalista é fundamentalmente,
portanto, atividade estranhada. Suas condições objetivas e, portanto, também, seu
resultado, estão não apenas cindidos em relação aos indivíduos, numa relação de
exterioridade, mas, também, de oposição. Os indivíduos e suas atividades encontram-
se subordinados às determinações do valor, nas palavras de Alves, "passam a ter
plena existência apenas na medida em que se coloquem como momento deste
processo de produção e troca de valores”96. As determinações materiais resultantes de
sua objetivação ativa e esta mesma objetivação enquanto processo estão subsumidas,
todas, à formatação própria do valor. Estão subsumidas a uma universalidade ou
generalidade objetiva que subsiste por si, fora delas enquanto determinações e
atividades de indivíduos singulares.
A produção sob a forma moderna possui, assim, estes dois aspectos
contraditórios: ao mesmo tempo em que universaliza a atividade dos indivíduos, em
que a coloca numa relação de dependência recíproca, ela, por outro lado, não conclui
efetivamente esta transformação já que o aspecto social ou universal desta atividade
situa-se estranhado com relação aos indivíduos ativos efetivos, em outras palavras, já
que o resultado de suas próprias atividades – a riqueza universal concretamente posta
– não é imediatamente um resultado para eles. Os indivíduos produtores não são, aí,
indivíduos sociais genéricos que possuem poder efetivo sobre sua produção
universal. Sua dependência multilateral e recíproca é, ao mesmo tempo, "o
isolamento completo de seus interesses privados."97 A produção efetiva-se pela cisão
95 Id., Tomo I, p. 93 e 94.96 ALVES, A. L., op. cit., p. 99.97 MARX, K., Manuscrit de 1857-58 (“Grundrisse”), tomo I, p. 94
63
concreta, real, de suas determinações universais em relação às particulares. Cisão,
esta, que possui sua forma primígena na contradição da mercadoria particular com o
valor de troca enquanto existência singular, ou seja, enquanto forma universal do
dinheiro.
Quanto a este ponto, é importante observar, mesmo que de forma sucinta, a
gênese do dinheiro, reiterada várias vezes por Marx. É de necessidades engendradas
pela produção que tem origem a troca e de necessidades próprias a esta última, que
tem origem o valor de troca e, portanto, o dinheiro. E não o contrário: "Não é o
dinheiro que suscita estas oposições e estas contradições mas, ao contrário, é o
desenvolvimento destas contradições e destas oposições que suscita o poder
aparentemente transcendental do dinheiro."98 O dinheiro, assim como a troca que lhe
suscita, é resultado de necessidades engendradas no interior do processo de
produção. Ele não é senão resultado de contradições postas pelo e no evolver
histórico deste último. Na medida mesmo em que progride o caráter social da
produção, em que esta última se desenvolve cada vez mais enquanto relação social
não mais submetida a qualquer forma pré-estabelecida, amplia-se também o poder do
dinheiro: o poder das mercadorias colocadas enquanto terceiro elemento, enquanto
valor de troca tornado autônomo. "A relação de troca se fixa enquanto poder externo
em relação aos produtores e independente deles"99, ganha uma força que submete os
indivíduos produtores a ela. É ela que passa a dirigir, a dar forma `a produção. "O
98 Id., tomo I, p. 8199 Idem
64
produto torna-se mercadoria; a mercadoria torna-se valor de troca; o valor de
troca da mercadoria é sua qualidade monetária imanente; esta qualidade monetária se
destaca dela enquanto dinheiro, adquire uma existência social universal, distinta de
todas as mercadorias particulares e de seu modo de existência natural. A relação do
produto a si mesmo enquanto valor de troca torna-se sua relação a um dinheiro que
existe ao lado dele ou, ainda, relação de todos os produtos ao dinheiro que existe fora
de todos eles. Assim como a troca efetiva dos produtos engendra o valor de troca
deles, assim também o valor de troca deles engendra o dinheiro."100
A contradição entre a forma particular da mercadoria e sua forma universal
coloca-se, pois, de imediato, ou seja, no momento mesmo da cisão entre a mercadoria
e seu valor de troca ou, o que vem a ser o mesmo, no momento mesmo do surgimento
do valor de troca como existência efetiva, como "coisa exterior ao lado da
mercadoria"101. Pois, esta cisão implica em que "estas duas formas de existência da
mercadoria não sejam conversíveis uma na outra (...). Desde que o dinheiro é uma
coisa exterior ao lado da mercadoria, a trocabilidade da mercadoria por dinheiro está
também ligada a condições externas, que podem intervir ou não; está submetida a
condições externas"102, a condições que não dizem respeito à mercadoria enquanto
existência particular, não dependem de suas propriedades naturais.
A forma universal ou valor de troca é a mercadoria enquanto relação social,
são suas propriedades sociais, não naturais. O valor de troca da mercadoria é a
expressão de sua trocabilidade por qualquer outra mercadoria. No capital, o trabalho
universal, esta propriedade social do trabalho, aparece apenas no valor de troca. O
100 Ibidem101 Id., tomo I, p. 82102 Idem
65
valor de troca é a determinação principal da mercadoria, é aquela que
representa trabalho universal, o trabalho enquanto tal. Daí porque Marx diz que
trabalho universal, neste modo de produção, é "trabalho apenas privado transmitido à
coletividade"103 e, portanto, trabalho universal apenas em si, em potência; trabalho
universal abstrato, realizado apenas parcialmente como trabalho universal: apenas na
troca.
Esta cisão entre as determinações universais ou sociais do trabalho e aquelas
particulares diz, portanto, respeito não apenas à relação do trabalho enquanto trabalho
objetivado, ou seja, à relação entre as mercadorias mas, também, à relação do
indivíduo ativo com sua própria produção. Esta última encontra-se parcialmente
incluída naquela primeira na medida em que a relação do trabalhador com sua
atividade, nesta forma social da produção, é também uma relação de troca - muito
embora, como será visto, não se trate, aqui, de uma troca de equivalentes. O
trabalhador oferece, em troca do quantum de mercadorias necessário à reposição de
sua força de trabalho, o uso desta última durante certo período de tempo. Troca, esta,
também intermediada pelo dinheiro. Mas, a cisão ou contradição aparece, aqui, de
forma ainda mais clara na medida em que não apenas a atividade do indivíduo só se
torna atividade para ele quando transformada, como vimos, na forma universal do
dinheiro, como também sua relação ou poder social - ou seja, sua relação com a
atividade ou o produto dos outros - se expressa de forma cindida, como propriedade
de algo que lhe é externo. O meio de troca é quem possui o poder sobre todas as
atividades e bens. Como vimos, é ele quem possui a força social. Todo este rico
evolver da produtividade humana - com tudo o que ele implica em desenvolvimento
objetivo e subjetivo - é propriedade apenas do dinheiro. Apenas o dinheiro é capaz de
103 Id., tomo I, p. 154
66
dele se apropriar, apenas ele tem este poder consigo. "O poder que todo indivíduo
exerce sobre a atividade dos outros ou sobre as riquezas sociais existe, nele, enquanto
ele possui valores de troca, dinheiro. Seu poder social, bem como sua conexão com a
sociedade, ele os traz consigo em seu bolso."104 A relação do indivíduo tanto com sua
própria produção, quanto com a produção alheia - objetivada ou não - é relação ou
poder do indivíduo apenas enquanto mediada pelo dinheiro.
A produção não consiste, porém, aqui, num processo de troca simples - como
a entendem, segundo Marx, os socialistas - nem tampouco no que ele chama de
processo de produção simples ou produção material. Esta última subjaz, bem
entendido, todo o processo. A produção, no capital, pressupõe, como toda forma
social de produção, aquelas determinações gerais: o instrumento, como algo que faz a
mediação entre o sujeito ativo e os fins por ele almejados; o trabalho, como atividade
adaptada a um fim e o material sobre o qual ele se realiza. Instrumento, trabalho e
matéria são, também, elementos ou componentes do valor do capital - pois, como
veremos à frente, "do ponto de vista da forma, o capital não consiste em objetos de
trabalho e em trabalho, mas em valores"105 e, enquanto valores, suas respectivas
substâncias, bem como aquela substância alterada que consiste no produto, lhes são
indiferentes. O que não significa, porém, que tal processo de transformação material
não ocorra aqui. Ao contrário, ele não apenas está pressuposto, como "O processo de
valorização do capital efetua-se pelo e no processo de produção simples - no fato de
que o trabalho vivo, nele, é posto em sua relação natural com seus momentos
materiais de existência"106.
104 Id., tomo I, p. 92105 Id., tomo I, p. 251106 Id., tomo I, p. 304
67
Mas, para além desta propriedade do trabalho que Marx chama, aqui, de
'natural', de conservar e mesmo objetivar ainda mais tempo de trabalho em seus
momentos objetivos; para além deste primeiro aspecto da relação intrínseca e
necessária da produção simples com o processo de valorização, é preciso atentar que
a produção material ou simples subsiste, também, em todos os seus aspectos gerais de
produção de valor de uso. O material recebe, pela transformação sofrida com o
trabalho, "um valor de uso superior àquele que ele possuía antes."107 A atividade ainda
é atividade sensível e confirma-se também, aqui, como sendo atividade de impressão
de forma nova, de criação de objetividades adaptadas a fins humanos. Para Marx, o
valor de uso - embora esteja posto como determinação secundária, subjugada pelo
valor de troca - não deixa de subsistir como determinação material sobre a qual se
sustenta a relação econômica específica da modernidade. O valor de uso não deixa de
subsistir na mercadoria, mas passa a ser valor de uso para outros. O que passa a
interessar é não o valor de uso que a mercadoria tem para o indivíduo produtor,
mas seu valor de uso para a sociedade. Mudança esta que não implica, de forma
alguma, porém, um atestado de óbito ao valor de uso, sua colocação como simples
base sem importância. Muito embora ele deixe de existir no produto, ou melhor, na
mercadoria - na medida em que o produto não é mais posto como produto, mas como
mercadoria - enquanto valor de uso para o indivíduo ativo, ele não apenas está sempre
presente: " já vimos que a diferença entre valor de uso e valor de troca faz parte da
própria economia e que, contrariamente ao que faz Ricardo, o valor de uso não se
encontra morto como simples pressuposto"108, como constitui-se, como pode ser visto
ao longo deste capítulo, em todos os momentos deste modo de produção, num ponto
107 Id., tomo I, p. 250108 Id., tomo I, p. 259
68
de tensão fundamental. "Embora imediatamente reunidos na mercadoria, valor de uso
e valor de troca se dissociam de forma também imediata. Não apenas o valor de troca
não aparece determinado pelo valor de uso, como também, ao contrário, a mercadoria
só se torna mercadoria, só se realiza enquanto valor de troca na medida em que aquele
que a possui não se relaciona com ela como um valor de uso. É apenas alienando-os,
trocando-os por outras mercadorias, que ele se apropria dos valores de uso. A
apropriação pela alienação é a forma fundamental do sistema social de produção cujo
valor de troca se apresenta como a expressão mais simples e mais abstrata. O valor de
uso da mercadoria é, certo, pressuposto, mas não por seu proprietário: ele o é apenas
para a sociedade em geral."109
Como dizíamos anteriormente, a produção sob sua forma moderna não
consiste nem em um processo de troca simples nem, por outro lado, exclusivamente
no que Marx chama de produção material. A esta última se sobrepõe o processo de
valorização, a determinação formal, ou seja, aquilo que constitui precisamente a
forma determinada deste modo de produção. É preciso dilucidar melhor, portanto, a
categoria que perfaz a espinha dorsal da forma moderna da produção: o valor.
Para tanto, partamos da determinação mais simples do valor de troca, o qual -
assim como o valor - é, antes de mais nada, "produto do trabalho, é tempo de trabalho
objetivado, materializado."110 Se, na circulação simples, o valor de troca das
mercadorias encontra-se numa relação de estranhamento com relação às mercadorias
109 Id., tomo II, p. 376110 Id., tomo I, p. 204
69
mesmas, ou seja, encontra-se sob a forma dinheiro; da mesma maneira, sob a
forma de capital - ou seja, de valor reinserido no processo como condição objetiva de
produção e que se põe de forma independente frente ao trabalhador - relaciona-se, ele,
com o trabalho vivo, com o trabalho enquanto valor de uso. "Se, na moeda, o valor de
troca - isto é, todas as relações das mercadorias enquanto valores de troca - aparece
como uma coisa, o mesmo acontece, no capital, com todas as determinações da
atividade criadora de valores de troca, com o trabalho."111 Pois, o capital não é a
simples circulação de dinheiro, não é apenas moeda. Esta é apenas uma de suas
formas e, como vimos, aquela que se apresenta à superfície ou na qual ele ainda não
se tornou a base da produção, mas é apenas capital comercial. Por outro lado, o
capital também não é apenas trabalho objetivado que serve de base a uma nova
produção, como o concebe Ricardo: "Quando se diz que o capital 'é trabalho
acumulado (realizado) (melhor dizendo, trabalho objetivado) que serve de meio a um
trabalho novo (produção)', se considera apenas a matéria do capital, fazendo
abstração da determinação formal sem a qual ele não é capital."112 Se o capital é
trabalho objetivado, isto é apenas uma de suas determinações - não menor, mas que
deve ser analisada no interior do processo de valorização e, portanto, no interior
da determinação pela qual ele é uma relação social determinada: "A diferença entre
produto e capital é justamente que o produto tomado enquanto capital exprime uma
relação característica de uma certa forma histórica de sociedade."113
O produto do trabalho só é valor de troca sob certas condições sociais: aquelas
pelas quais o trabalhador encontra-se separado de suas condições de trabalho e que,
111 Id., tomo I, p. 194112 Id., tomo I, p. 197113 Id., tomo I, p. 205
70
por outro lado, o produto de seu trabalho não tem nenhum valor para ele, mas
possui apenas um valor para outros, um valor de troca. O modo de produção do
capital possui como pressuposto ontológico - como pressuposto que se põe como
condição histórica fundamental de seu surgimento, mas que permanece
necessariamente presente, isto é, que constitui o ser-precisamente-assim deste modo
de produção - a existência cindida do trabalho vivo em relação a suas condições
objetivas de efetivação ou, o que é o mesmo, a existência meramente subjetiva da
potência de trabalho. Nas formas anteriores de produção e, portanto, de apropriação, o
trabalhador possuía, em geral, uma relação de propriedade com tais condições,
relacionava-se com elas como constituindo parte de si mesmo: "Propriedade
significa, pois, na origem (e, isto, sob sua forma asiática, eslava, antiga, germânica)
que o sujeito que trabalha (que produz) (ou se reproduz) se relaciona com as
condições de sua produção ou de sua reprodução como com condições que são as
suas. A propriedade terá, portanto, também, formas diferentes segundo as condições
desta produção. A produção, ela mesma, tem por objetivo a reprodução do produtor
em e com suas próprias condições objetivas de existência."114 A existência do
trabalhador, nestas formações sociais, possui, assim, a forma de uma existência
objetiva, que se põe juntamente com a reprodução de suas condições inorgânicas de
atividade - na maioria dos casos; ou que se põe como existência meramente objetiva,
como existência ou condição, ela própria, inorgânica da produção - nos regimes de
escravidão ou servidão.
Mas, em todos estes casos, a reprodução do indivíduo que trabalha é posta
como reprodução "em e com suas próprias condições objetivas de existência". Tais
formas de produção pressupõem, portanto, a apropriação efetiva e prévia à própria
114 Id., tomo I, p. 433
71
produção, pelo trabalhador, de suas condições de produção - seja destas sob a forma
de laboratório natural, isto é, sob a forma da terra, que representava, nos diferentes
tipos de propriedade fundiária, em si mesma todas as condições inorgânicas
necessárias à produção; seja na forma do instrumento, no trabalho artesanal urbano;
seja sob a forma de meios de subsistência, a qual subsiste em todas estas formas de
apropriação, inclusive na escravidão e na servidão.
"O comportamento do trabalho em relação ao capital, ou às condições
objetivas do trabalho enquanto capital, pressupõe um processo histórico que dissolve
as diferentes formas nas quais o trabalhador é proprietário ou o proprietário,
trabalhador."115 A relação do trabalhador com suas condições objetivas de trabalho
enquanto capital, ou seja, enquanto valor autônomo frente a ele, pressupõe, pois, a
dissolução de todas estas formas anteriores de propriedade. As condições históricas
pré-burguesas foram condições que conduziram progressivamente a esta separação
onde o trabalhador - posto como trabalhador livre - será totalmente desprovido de
suas condições de produção. "No capital, a associação dos operários não é obtida pela
coação da violência física direta, do trabalho forçado, das corvéias, da escravidão,
mas por esta outra coação que se apoia no fato de que as condições da produção
sejam propriedade de outrem e estejam presentes, elas próprias, como associação
objetiva - que é a mesma coisa que a acumulação e a concentração das condições de
produção."116
O modo de produção burguês tem suas formas iniciais com o desenvolvimento
do comércio, da troca. Esta, no entanto, não é suficiente para fazer surgir o capital.
Para que este surja enquanto tal - enquanto valor auto-subsistente, posto pela mas,
115 Id., tomo I, p. 434116 Id., tomo II, p. 81
72
também, pressuposto à circulação - todo um processo sócio-histórico é pressuposto.
Processo, este, que consiste no progressivo afastamento do produtor em relação a suas
condições de produção, de um lado e, de outro lado, na existência destas condições
objetivas de produção como apropriáveis pelo dinheiro, isto é, como condições não
mais atadas àqueles que com elas trabalham. Da mesma forma que os indivíduos
encontram-se "potencialmente" livres de suas condições de produção e dos laços
políticos que os ligava a elas, também estas encontram-se, agora, como "fundo livre"
frente a tais indivíduos ativos: "elas só fazem face a estes indivíduos separados e
privados de propriedade sob a forma de valores, de valores fielmente ligados a si
mesmos. O mesmo processo que opõe a massa, isto é, os trabalhadores livres às
condições objetivas do trabalho opôs, igualmente, aos trabalhadores livres estas
mesmas condições sob a forma de capital."117
A acumulação primitiva não se dá pelo simples meio da troca de equivalentes.
O dinheiro acumulado através desta não se põe como riqueza a ponto de se
transformar em condições de produção: "Vimos que o dinheiro pode se acumular
parcialmente pelo simples meio da troca de equivalentes; no entanto, isto constitui
uma fonte tão insignificante que ela não é digna historicamente de ser mencionada,
uma vez pressuposto que o dinheiro é ganho pelo homem por meio da troca de seu
próprio trabalho."118 Como faz questão de enfatizar Marx, o capital é resultado de um
processo histórico envolvendo vários fatores, dentre os quais, o desenvolvimento da
fortuna em dinheiro, o acúmulo de dinheiro pelo corpo de comerciantes, é apenas um
deles. Visivelmente não se trata de uma criação, pelo dinheiro, das condições
objetivas do trabalho, tais quais estas são oferecidas ao trabalhador que delas está
117 Id., tomo I, p. 441118 Id., tomo I, p. 442
73
desprovido para a efetivação do processo de trabalho. Mas, ao contrário, "a fortuna
em dinheiro contribuiu em parte para desprover as forças de trabalho dos indivíduos
aptos a trabalhar destas condições de trabalho."119
O que o capital, enquanto sujeito, faz é "comprar umas por meio das outras",
isto é, forças de trabalho já objetivadas ou condições objetivas de trabalho por meio
de força de trabalho viva e vice-versa. Forças ou existências, estas, que se
encontravam, naquele momento, já divorciadas ou divorciando-se umas das outras.
"Nada tinha mudado, não fosse o fato de que, agora, estes meios de subsistência
estavam lançados no mercado de troca, estavam cortados de suas relações diretas
com as bocas dos retainers, etc. e transformados - de valores de uso que eram - em
valores de troca; caindo, assim, no domínio e sob a soberania da fortuna em dinheiro.
O mesmo ocorrendo com os instrumentos de trabalho. A fortuna em dinheiro não
inventou, nem fabricou a roldana e a máquina de tecer. Mas, separados de seu terreno,
os fiandeiros e os tecelões caíram sob seu domínio com suas máquinas e suas
roldanas, etc. O que é próprio do capital é, simplesmente, unir as massas de braços e
de instrumentos que ele encontra tais quais. Ele as aglomera sob seu comando
[Botmässigkeit]. Aí está sua verdadeira forma de acumular; ele acumula
trabalhadores em certos pontos com seus instrumentos."120
Tal processo de surgimento do capital possui, assim, também, a forma de um
progressivo afastamento em relação às propriedades naturais das coisas e à utilidade
imediata destas para o indivíduo produtor: "O desenvolvimento do valor de troca
(favorecido pelo dinheiro existente sob a forma do corpo de comerciantes) dissolve a
produção orientada de preferência para o valor de uso imediato e as formas de
119 Id., tomo I, p. 447120 Id., tomo I, p. 446
74
propriedade que lhe correspondem (relações do trabalho com suas condições
objetivas) e impele, assim, ao estabelecimento do mercado de trabalho." 121 Com o
afastamento do trabalhador em relação à terra como fonte principal de apropriação e
reprodução tem-se, de outro lado, o estabelecimento de uma relação de dependência
daquele em relação à troca, ou seja, em relação à apropriação por outrem do produto
de seu trabalho. O divórcio do trabalhador em relação às suas condições de produção
assume, do lado do trabalhador, em primeiro lugar, a forma da venda do produto de
seu trabalho, ou seja, a forma da troca de equivalentes. Troca esta, que mostra,
progressivamente, sua face principal, qual seja: a da venda do próprio trabalho.
A troca compulsória de seu produto, por um lado, e a apropriação de mais-
trabalho pelo capitalista, por outro, dá a este último o poder de se apropriar não mais
apenas do produto mas, também, dos próprios meios de produção, de colocar também
estes sob seu comando e não apenas os trabalhadores artesãos enquanto tais. O que já
era venda de trabalho - mascarada de venda de produto e, portanto, de troca de
equivalentes: de trabalho objetivado por trabalho objetivado, do valor de troca da
mercadoria pelo valor de troca correspondente - passa a ser, pois, cessão necessária
de trabalho vivo por trabalho objetivado: "Originalmente, ele comprou o trabalho
deles apenas pela compra de seu produto; desde que eles se limitam à produção deste
valor de troca - e são obrigados, consequentemente, a produzir imediatamente valores
de troca, a trocar completamente seu trabalho por dinheiro para poderem continuar a
existir - eles caem sob sua dominação e, finalmente, vê-se desaparecer até a aparência
que levava a crer que eles lhe vendiam produtos. Ele compra o trabalho deles e lhes
121 Id., tomo I, p. 447
75
retira, primeiro, a propriedade sobre o produto, logo, também sobre o instrumento
(...)"122.
A relação do trabalho com seus pressupostos materiais tornados valores
autônomos, tornados capital, passa, assim, de uma relação de troca de equivalentes - a
qual permanece enquanto aparência - para uma apropriação sem troca do trabalho de
outro, do lado do capital, e uma cessão da propriedade do trabalho - tanto como
atividade presente no tempo, quanto como trabalho objetivado - pelo trabalhador. "O
fato, por exemplo, de que o mais-trabalho seja posto como mais-valia do capital
significa que o operário não se apropria do produto de seu próprio trabalho; que ele
lhe aparece como propriedade de outro e, ao contrário, que o trabalho de outro
aparece como a propriedade do capital. Esta segunda lei da propriedade burguesa, na
qual a primeira se torna (e à qual o direito de herança, etc., dá uma existência
independente do acaso e da caduquez dos capitalistas tomados individualmente) é
erigida em lei, assim como a primeira. A primeira é a identidade entre o trabalho e a
propriedade; a segunda é o trabalho como propriedade negada ou negação do caráter
estranho do trabalho de outro."123
A produção de mais-valia - condição ou pressuposto sobre o qual a produção
moderna se funda - implica que o trabalhador necessariamente não se aproprie do
valor de uso de seu trabalho, mas apenas de seu valor de troca. O valor efetivamente
produzido por ele, ou seja, aquilo que o uso efetivo de sua força proporciona ou
produz não é apropriado por ele próprio mas, sim, pelo trabalho objetivado já
apropriado por outrem e que se põe, agora, frente a ele, como outro, como
determinação ou domínio de outrem. O mais-trabalho aparece no capital enquanto tal
122 Id., tomo I, p. 448123 Id., tomo I, p. 409
76
- ou seja, no capital já acabado e se realizando enquanto processo que põe suas
próprias condições e, portanto, enquanto processo de valorização que se realiza não
apenas na produção propriamente dita mas, também, na circulação e na troca - como
mais-produto, isto é, como capital - seja em sua forma de meios de produção, seja
como meios de subsistência do trabalhador. No entanto, afirma Marx, "A mais-valia
ou mais-produto não é senão uma soma determinada de trabalho vivo objetivado - a
soma do mais-trabalho. Este valor novo - que faz face ao trabalho vivo enquanto
valor autônomo, trocando-se por ele enquanto capital - é o produto do trabalho. Ele
não é outra coisa senão o excedente de trabalho em geral em relação ao trabalho
necessário e, isto, sob forma objetiva e, portanto, enquanto valor"124. Antes de
prosseguir, é imperioso esclarecer que, tendo em vista os limites de uma dissertação
de mestrado e o recorte que se objetiva com esta, não será tal assunto abordado
enquanto desenvolvimento preciso do conceito de capital com tudo o que isto
implicaria, como, por exemplo, a diferenciação detalhada do valor de troca em sua
determinação de capital em relação ao valor de troca posto na circulação simples.
Neste novo modo de produção - no qual, as condições objetivas da atividade
sensível encontram-se, portanto, totalmente cindidas em relação aos indivíduos ativos
- o trabalhador produz, pois, para além daquilo que é necessário a sua reposição
enquanto potência de trabalho viva, ou seja, ele produz necessariamente um surplus
ou mais-valia da qual ele, porém, não se apropria. Melhor dizendo, o indivíduo que
trabalha apropria-se, aí, apenas daquilo que Marx denomina de "trabalho necessário"
por oposição a este excedente. A ele é pago o valor de troca efetivo de seu trabalho,
ou seja, o tempo de trabalho necessário a sua reposição como trabalho vivo, o que ele
efetivamente a apporté à produção, mas não, seu valor de uso, aquilo que ele
124 Id., tomo I, p. 390
77
efetivamente produziu. O trabalhador não recebe uma parte determinada do produto
nem, muito menos, o produto integral de seu trabalho, mas uma parte do tempo que
trabalhou sob a forma de dinheiro - o que veremos de forma mais detalhada na seção
seguinte.
Por outro lado, o excedente produzido do qual o indivíduo ativo não se
apropria põe-se, aí, como condições ou valores para si, como valores que se mantêm
multiplicando-se por meio da troca sempre renovada com o trabalhador, como "O ser-
para-si autônomo do valor frente à potência de trabalho viva - e, portanto, sua
existência enquanto capital - a indiferença objetiva (sustentando-se em si) das
condições objetivas do trabalho em relação à potência de trabalho viva, esta
estranheza que chega ao ponto em que estas condições se apresentam, frente ao
operário, na pessoa do capitalista (enquanto personificação que possui uma vontade e
um interesse próprios), esta dissociação, separação, absolutas entre a propriedade -
isto é, as condições de trabalho que dizem respeito ao domínio das coisas - e a
potência de trabalho viva ou, ainda, o fato de que estas condições se põem frente a
elas [às potências de trabalho vivas] como propriedade de outro, como a realidade de
uma outra pessoa jurídica, o domínio absoluto da vontade desta pessoa e que,
consequentemente, o trabalho aparece como trabalho de outro, em relação ao valor
personificado na pessoa do capitalista ou em relação às condições de trabalho; (...)
donde, aliás, o caráter estranho do conteúdo do trabalho para o próprio trabalhador
(...)."125
O capitalista representa, pois, a máxima separação, alienação, do produto do
trabalho e das condições objetivas deste em relação ao trabalho enquanto sujeito vivo
e ativo. Separação da qual resulta a autonomia máxima de tais condições na medida
125 Id., tomo I, p. 391
78
em que estas ganham a forma de sujeito, de "personificação que possui uma vontade e
um interesse próprios", ou seja, na medida em que ganham a forma do sujeito que se
contrapõe enquanto tal ao trabalho vivo e que o domina.
C) ATIVIDADE COMO NEGAÇÃO DE VIDA
Na sociabilidade do capital, a riqueza está posta não sob a forma de um ou
outro valor de uso particular, mas sob a forma de todos os valores de uso existentes,
sob a forma de dinheiro. O resultado objetivo da atividade sensível - aquele que é
posto, como também o refere Marx, sob a forma parada de objeto - é, neste modo de
produção, uma riqueza universal, vem a ser, valor de troca, trabalho universal e,
sobretudo, este em sua forma autônoma e concreta de dinheiro. O dinheiro incorpora
em si mesmo a forma universal da riqueza. Na medida em que ele não é mais apenas
meio de troca, mas representa, como vimos na seção A do presente capítulo, o próprio
conteúdo da riqueza, a riqueza enquanto tal - tanto em sua abstração, quanto em sua
totalidade - ele encarna não apenas a forma e o conteúdo da riqueza, ou seja, ele não
apenas é, ele próprio, a riqueza posta, concreta, realizada - riqueza que se põe não
enquanto forma apenas, enquanto abstração, como nas mercadorias particulares - mas
o dinheiro é também o representante universal da riqueza. E, enquanto tal, ele
também é a riqueza de forma geral, a riqueza que se põe como forma universal, acima
de suas substâncias particulares. Ele é "a forma encarnada da riqueza frente a todas as
substâncias particulares de que ela se compõe. E, portanto, se, de um lado, forma e
conteúdo da riqueza são idênticos no dinheiro - na medida em que o consideramos
por si mesmo - de um outro lado, ele é - em oposição a todas as outras mercadorias,
79
frente a elas - a forma universal da riqueza, enquanto a totalidade destas
particularidades forma sua substância. Se o dinheiro, segundo a primeira
determinação, é a própria riqueza, ele é, de acordo com a segunda, o representante
material universal dela. No dinheiro mesmo, esta totalidade existe como
quintessência imaginária das mercadorias. (...) O dinheiro é, pois, o Deus entre as
mercadorias."126
Neste sentido, o dinheiro assume a forma da riqueza por excelência. Ele, sim,
é a riqueza e não sua substância concreta: as mercadorias particulares. Pois, ele é que
é "1) o preço realizado"; enquanto, nas mercadorias, o preço - o valor de troca ainda
não realizado, posto como valor de troca na mercadoria mesma - é apenas enquanto
forma, abstração, depende, para se realizar, da realização efetiva da mercadoria na
circulação enquanto valor de troca, isto é, depende de sua venda; e, ainda, o dinheiro
"2) satisfaz toda necessidade na medida em que pode ser trocado pelo objeto de
qualquer necessidade, na medida em que é totalmente indiferente à particularidade,
qualquer que seja esta"; enquanto que "a mercadoria possui esta propriedade apenas
pelo intermédio do dinheiro."127 A mercadoria representa, ela mesma, apenas um
aspecto bem singularizado da riqueza - aquele relacionado com o valor de uso
específico dela, com a necessidade específica que ela satisfaz. Daí porque é, o
dinheiro, a realidade celeste das mercadorias, a realização mais perfeita da riqueza: a
riqueza universal enquanto existência efetiva e, ao mesmo tempo, o representante
material universal dela.
Disto decorre que a posse da riqueza não é mais, como nas formas precedentes
da produção, desenvolvimento determinado da individualidade. A produção
126 Id., tomo I, p. 159127 Idem
80
permanece sendo processo pelo qual ocorre a subjetivação de objetividades - por
meio da impressão de forma nova à materialidade existente - de um lado, e a
objetivação de potencialidades humanas, de outro. O sujeito que trabalha continua
sendo sujeito que, na relação que estabelece com a objetividade social, exterioriza,
objetiva e desenvolve suas próprias forças. Assumindo a produção, aqui, uma forma
cada vez mais social, trata-se, é verdade, de uma objetivação de forças sociais, de
objetivação e desenvolvimento da individualidade social, com todas as determinações
próprias a esta no momento da produção. A produção, mesmo sob a forma do
estranhamento - na qual, seus sujeitos não se reconhecem enquanto tais - permanece
sendo objetivação de forças e potencialidades humanas, só que, agora, destas
efetivamente desenvolvidas como potencialidades e forças sociais. "Toda produção é
uma objetivação do indivíduo. Mas, no dinheiro (valor de troca), a objetivação do
indivíduo não é aquela do indivíduo em sua determinidade natural, mas dele enquanto
posto em uma determinação (em uma relação) social que lhe é, ao mesmo tempo,
exterior."128
Se a produção permanece sendo ato pelo qual os indivíduos sociais se põem
no mundo, se objetivam, tornam efetivas e desenvolvem suas faculdades, há,
entretanto, nesta sua forma específica de ser, uma desvinculação entre apropriação e
atividade, entre propriedade e trabalho. De um lado, como vimos, a relação do
indivíduo enquanto indivíduo ativo pressupõe justamente que ele não se aproprie de
seu trabalho, de outro lado, a relação com esta riqueza torna-se fortuita, contingente,
torna-se relação que não diz respeito à apropriação pelo trabalho. A relação com a
riqueza enquanto dinheiro não supõe uma relação intrínseca do indivíduo com seu
objeto de exteriorização, de ação. Ao contrário, a posse do dinheiro é uma posse em
128 Id., tomo I, p. 164
81
que tal relação é apagada. Assim o explica Marx: "Toda forma da riqueza natural,
antes de ser relegada e substituída pelo valor de troca, supõe uma relação essencial do
indivíduo com o objeto: o indivíduo se objetiva ele mesmo, por um de seus lados, na
coisa [Sache] e, ao mesmo tempo, sua posse da coisa aparece como um
desenvolvimento determinado de sua individualidade - a riqueza em carneiros, como
desenvolvimento do indivíduo enquanto pastor; a riqueza em grãos, como
desenvolvimento enquanto agricultor, etc. Já o dinheiro - enquanto indivíduo da
riqueza universal, enquanto resultando, ele mesmo, da circulação e representando
apenas o universal, enquanto ele não é senão resultado social - não pressupõe
absolutamente nenhuma relação individual a seu possuidor. Sua posse não é o
desenvolvimento de nenhum dos lados essenciais de sua individualidade, mas, ao
contrário, é posse do que é sem individualidade, dado que esta relação social existe,
ao mesmo tempo, como objeto sensível, exterior, do qual se pode apoderar
mecanicamente e que pode também ser perdido."129
É importante ressaltar, porém, que, embora a posse do dinheiro, da forma
social da riqueza, não seja, ela própria, desenvolvimento determinado da
individualidade, isto não implica, seja dito novamente, que a produção não se efetive
enquanto objetivação e desenvolvimento do indivíduo social. O que queremos
enfatizar, e que fica claro da penúltima passagem de Marx citada por nós, é que o
estranhamento do indivíduo em relação à objetividade social posta por sua atividade
não nega ou anula o caráter efetivo de objetivação de tal atividade. Muito ao
contrário, não só este caráter é afirmado pelo fato mesmo de que o estranhamento
resulta, é posto, ele próprio, pela atividade: "esta separação absoluta entre
propriedade e trabalho; entre a potência de trabalho viva e as condições de sua
129 Id., tomo I, p. 160
82
realização; entre trabalho objetivado e trabalho vivo; entre o valor e a atividade
criadora de valor - donde, aliás, o caráter estranho do conteúdo do trabalho para o
próprio trabalhador - aparece, no presente, igualmente como produto do próprio
trabalho, como passagem ao estado objetivo, como objetivação de seus próprios
momentos"130. Como, também, o caráter de objetivação se afirma na medida em que a
relação do indivíduo com sua atividade é, somente aqui, posta como relação na qual a
determinação social, própria à forma de ser dos homens, torna-se efetiva e pode se
pôr plenamente, desenvolvendo-se como ciência e domínio total sobre a natureza.
Muito embora a riqueza produzida não apareça aos indivíduos como este rico
evolver de potencialidades sociais, mas esteja posta sob a forma abstrata de dinheiro,
como algo no qual eles não se reconhecem, a apropriação da riqueza torna-se, aí, uma
apropriação de forças sociais objetivadas, de universalidade posta sob forma objetiva,
concreta, ou seja, uma relação do indivíduo não apenas com suas próprias forças
essenciais objetivadas ou com as forças essenciais de um determinado grupo humano,
mas com todo o universo da riqueza social produzida. Neste sentido, significa a
possibilidade do desenvolvimento universal da individualidade humano-societária, a
possibilidade de que tal desenvolvimento se coloque como desenvolvimento para si e
não apenas em si. No entanto, a relação do indivíduo social com o produto total de
sua atividade não depende, aqui, desta mesma relação enquanto atividade criadora,
atividade que põe ser.
O fato de que o trabalhador possa, numa medida limitada, mas possa, ao
menos potencialmente, gozar da riqueza enquanto tal - e não apenas de uma
determinada forma da riqueza - ou seja, o fato de que seu círculo de fruições esteja
limitado apenas quantitativamente é um fato que "lhes dá, inclusive enquanto
130 Id., tomo I, p. 391
83
consumidores, (...) uma outra importância, enquanto agentes da produção, que aquela
que eles têm ou que eles tinham na antigüidade ou na idade média, ou, ainda, na
Ásia."131 O trabalhador recebe, em sua troca com o capitalista, o equivalente sob a
forma da riqueza universal, isto é, sob a forma de dinheiro. Neste sentido,
encontra-se em condições de igualdade com ele: não é, enquanto tal, sua propriedade,
não é mais propriedade de outrem - como na relação de escravidão - ou mero objeto,
dentre outros, na produção - como na servidão. O trabalhador encontra-se posto,
frente ao capitalista, como proprietário de sua potência de trabalho. Ele lha vende, ele
próprio: "Para o trabalhador livre, a potência de trabalho aparece, em sua totalidade
mesmo, como sua propriedade, como um de seus momentos sobre o qual ele tem
influência enquanto sujeito e que ele conserva alienando."132 No entanto, este
equivalente do qual ele se apropria aparece, em suas mãos, apenas como numerário,
como meio de troca em vista de bens de consumo. O trabalhador não recebe riqueza.
Ele recebe, na verdade, apenas valor de uso, apenas o estritamente necessário a sua
manutenção enquanto capacidade viva de trabalho. "Por mais que os trabalhadores
economizem, eles não podem obter riqueza"133, pois, seus salários certamente cairiam
e eles voltariam a sua condição normal, qual seja, a do uso do salário exclusivamente
para a sobrevivência.
Marx não nega que tenham existido formas sociais em que os proprietários
trabalham e trocam, eles próprios, entres eles. Apenas quer mostrar que o capital é
exatamente o aniquilamento destas formas, pois, para ele se pôr enquanto capital, "ele
só pode se pôr como tal, pondo o trabalho como não-capital, como puro valor de uso.
(Enquanto escravo, o trabalhador tem um valor de troca, um valor; como trabalhador
131 Id., tomo I, p. 226132 Id., tomo I, p. 403133 Id., tomo I, p. 228
84
livre ele não tem valor, tem um valor apenas a disposição de seu trabalho, obtida
graças à troca com ele. Não é ele que faz face ao capitalista como valor de troca, mas
o inverso. Sua falta de valor e sua desvalorização são o pressuposto do capital e a
condição sine qua non do trabalho livre."134
O capital é a relação do trabalho objetivado, do trabalho passado, com o
trabalho existente no tempo, com o trabalho vivo. Uma relação pela qual o primeiro
se põe, enquanto valor, de forma autônoma em relação a este último, mas não só. Tal
relação pressupõe, como vimos, a produção deste mesmo valor através da troca entre
um e outro, entre capital e trabalho. O trabalho vivo só tem existência efetiva, só se
objetiva, quando se põe, como atividade concreta, em relação com a materialidade
objetiva de suas condições - nesta forma social, quando se põe em relação de troca
com o trabalho enquanto capital. Troca, esta, que é exatamente a base deste modo de
produção que tem, como resultado, uma mais-valia, um valor superior àquele posto
inicialmente no processo. A mais-valia resulta precisamente desta troca que o
trabalho - enquanto valor de uso, enquanto atividade - realiza consigo mesmo
enquanto capital - isto é, enquanto valor de troca que tornou-se autônomo. Daí
porque, segundo Marx, a igualdade só é base desta relação num certo sentido. A troca
entre capital e trabalho é formalmente, economicamente, igual, pois, o trabalhador
recebe, em valor de troca, aquilo que corresponde precisamente ao valor de sua
mercadoria, ao custo de produção de sua força de trabalho. Neste sentido, encontra-se
numa relação de troca simples, onde cada um recebe o equivalente daquilo que pôs na
relação. Tal igualdade é, porém, exclusivamente formal na medida em que se
encontra assentada sobre uma base essencialmente desigual: a ampliação do valor do
capital com base no uso da força de trabalho. Trata-se de uma igualdade aparente
134 Id., tomo I, p. 230
85
porque o valor de uso do trabalho, o uso que o capitalista dele faz, não é indiferente
nesta relação. A mercadoria trabalho135 possui como determinação própria, e que lhe é
exclusiva, ser mercadoria que cria valor. Portanto, a relação que se encontra na
superfície, aquela da troca de equivalentes, repousa sobre esta outra, pela qual se
paga, ao trabalhador, o valor de troca de seu trabalho, mas se obtém, em
contrapartida, seu uso e, pois, um valor ampliado. Daí porque a troca entre capital e
trabalho não é uma troca simples. Se o primeiro ato em que ela se desdobra - a troca
do trabalho por salário - constitui-se, enquanto tal, numa troca simples, onde a
mercadoria trabalho é trocada, como qualquer outra, por seu preço; seu segundo
momento - aquele pelo qual o capitalista, então, se apropria do valor de uso do
trabalho, da atividade que põe valor - não pode, no entender de Marx, nem mesmo ser
chamado de troca, sob pena de se descaracterizar completamente tal relação: "Na
troca entre o capital e o trabalho, o primeiro ato é uma troca, ele entra totalmente na
circulação ordinária; o segundo, é um processo qualitativamente diferente da troca e é
apenas abusivamente que poderíamos qualificá-lo de troca de uma espécie qualquer.
Ele é diretamente oposto à troca, é uma categoria fundamentalmente diferente."136
Na circulação simples, o que caracteriza a troca entre as mercadorias, a troca
de equivalentes, é, segundo Marx, que a mercadoria objetivada em cada ato de troca,
aquela pela qual se efetua a transação, não possui nenhum interesse para a
135 Muito embora os Grundrisse inaugurem, segundo Chasin, nova fase na trajetória de Marx, precisamente devido à "distinção entre trabalho e força de trabalho" (CHASIN, J. "Marx no Tempo da Nova Gazeta Renana" in A Burguesia e a Contra-Revolução, p. 25); tal distinção não é necessariamente explicitada por Marx em todos os momentos - como não o é neste ao qual nos referimos. E, isto, provavelmente, pelo fato mesmo de que se trata do momento de gestação, do reconhecimento primeiro dela. Esta autora ficaria, por necessidade de precisão, naturalmente tentada a referir, nesta frase e nas que a ela seguem neste parágrafo, não à categoria trabalho, mas à de força de trabalho. Tendo em vista, porém, a proposta metodológica desta dissertação, houvemos por bem manter o termo usado por Marx no caso específico.136 Id., tomo I, p. 216
86
determinação formal da relação; tanto assim que ela sai, ao final, desta para entrar
para o âmbito da satisfação das necessidades do indivíduo singular. A mercadoria
pela qual se realiza, aí, a troca possui, pois, interesse apenas enquanto valor de uso, o
valor de troca dela está presente como determinação meramente formal. Já, na troca
do capital com o trabalho, a mercadoria trabalho - pela qual é trocado o valor ou
dinheiro - não possui um interesse apenas material. Ela é parte fundamental na
relação econômica. O valor de uso desta mercadoria não apenas não é algo indiferente
ou alheio à transação, como, na verdade, é o fim visado por ela. "No caso presente,
diz Marx, inversamente, o valor de uso do que foi trocado por dinheiro aparece como
relação econômica particular e é o uso determinado do que foi trocado por dinheiro
que constitui o objetivo último dos dois processos. Isto já distingue, pois, de um
ponto de vista formal, a troca entre o capital e o trabalho da troca simples: são dois
processos diferentes."137 Não sendo nosso objetivo, porém, a dilucidação específica da
diferença entre a troca que realizam entre si capital e trabalho e a troca simples, mas
apenas apreender, no momento, as razões fundamentais pelas quais o trabalho
aparece, no processo, como valor de uso - e não em condições de igualdade - não
entraremos nas demais determinações da diferença entre ambas as relações.
Assim, se, de um lado, o trabalhador não se põe em condições de igualdade
com o valor que se apresenta, frente a ele, como sujeito pelo fato de que este último
se apropria, sem troca, sem igual contrapartida, de um sobrevalor, por outro lado,
nem mesmo aquilo que o trabalhador recebe - a fração diminuída de sua força de
trabalho - configura-se, para ele, como sendo riqueza universal. O trabalhador recebe
seu equivalente em dinheiro, na forma da riqueza universal. Ele recebe, em potência,
riqueza universal, assim como o capitalista. No entanto, ele recebe tal riqueza apenas
137 Idem
87
em potência, já que, na realidade, o mesmo equivalente converte-se imediatamente,
para ele, apenas em meios de satisfazer suas necessidades. Na verdade, portanto, o
trabalhador não recebe riqueza, não participa da troca em condições efetivas de
igualdade, já que produz riqueza universal, valor, mas recebe, em troca, apenas valor
de uso. E esta é, segundo Marx, precisamente a condição para que o capital se ponha
como capital, como valor para si: "Enquanto o trabalhador, enquanto tal, tem um
valor de troca, o capital industrial não pode existir enquanto tal e, portanto, menos
ainda, a fortiori, o capital desenvolvido. Frente a este último, é preciso que o trabalho
exista unicamente como puro valor de uso que seu proprietário oferece, ele mesmo,
como mercadoria, em troca de capital, isto é, em troca de seu valor de troca (ou de
numerário) - o qual, de resto, torna-se efetivo, nas mãos do trabalhador, apenas em
sua determinação de meio de troca universal e que, senão, desaparece."138. O valor de
troca torna-se efetivo, para o trabalhador, apenas enquanto moeda - valor de troca
posto sob forma ideal, que se realiza na relação apenas quando desaparece, quando
deixa de ser valor de troca - e, portanto, não enquanto capital, enquanto valor de troca
objetivo, concreto. "A separação entre a propriedade e o trabalho aparece como lei
necessária desta troca entre capital e trabalho."139 O trabalho é posto, aí, exatamente
como a não riqueza efetiva, como a produção ou riqueza negada. Ele aparece, no
processo, como sendo precisamente aquilo que ele é: um não-valor; enquanto o
capital, com quem ele troca, é que se apresenta como valor, como incorporação de
tempo de trabalho.
Se, nos modos de produção em que os indivíduos possuem uma relação de
apropriação efetiva com suas condições objetivas de existência - nas diferentes
138 Id., tomo I, p. 231139 Id., tomo I, p. 234
88
formas da propriedade fundiária - "independentemente do trabalho, o trabalhador tem
uma existência objetiva"140, possui domínio sobre as condições de sua realidade; no
capital, o indivíduo ativo é existência objetiva negada. O trabalhador existe, aí, de
forma abstrata, abstraída de seus momentos efetivos. É posto como não-capital, ou
seja, como não-instrumento, não-matéria-prima, enfim, como não-riqueza em geral.
Ele existe apenas de forma separada, cindida, em relação à objetividade posta por ele
e é trabalho apenas enquanto trabalho não-objetivado.
Na sociabilidade em que todas as determinações da “atividade criadora do
valor de troca” aparecem coisificadas, o indivíduo que trabalha aparece, frente a
estas determinações, como mera faculdade: como potência de trabalho. Ele possui
uma existência meramente subjetiva frente ao processo de produção. A existência
ativa é, aqui, uma existência unilateral, que não pode efetivar-se por si mesma. A
individualidade ativa só pode efetivar-se como ser que se auto-põe desde que
intervenham, do exterior, as condições objetivas de sua atividade. “O valor de uso
que pode oferecer o trabalhador frente ao capital, portanto, aquilo que ele pode
oferecer aos outros de uma forma geral, não está materializado num produto, não
existe simplesmente fora dele, não existe realmente mas, apenas, potencialmente,
como faculdade. Ele só torna-se realidade efetiva a partir do momento em que é
solicitado, posto em movimento pelo capital – pois, uma atividade sem objeto nada é
(...)”.141 O trabalho presente como trabalho vivo só é presente como sujeito vivo, ou
seja, como possibilidade, como trabalhador. O indivíduo não se põe como momento
efetivo de um complexo de determinações que define a existência do ser social de sua
época, como momento singularizado, concreto, desta riqueza, mas única e
140 Id., tomo I, p. 411141 Id., tomo I, p. 207.
89
exclusivamente como valor de uso para o capital, como existência que só tem valor
como força de trabalho. Força esta, ela própria, desprovida – enquanto manifestação
singular – de qualificações particulares, isto é, que só interessa enquanto dispêndio de
certo quantum de tempo de trabalho.
Para Marx, como não poderia ser diferente, mesmo esta forma puramente
subjetiva do trabalho é, em si, objetividade, é concreta, existe de forma independente
do pensamento, como objetividade real: O “trabalho não objetivado [Nicht
vergegenständlichte Arbeit] apreendido negativamente (ele mesmo ainda objetivo; o
não-objetivo, ele mesmo, sob forma objetiva) (...). O trabalho como a pobreza
absoluta: a pobreza não como falta, mas como exclusão total da riqueza objetiva. Ou,
ainda, enquanto ela é o não-valor existente – e, pois, o valor de uso puramente
objetivo, existindo sem mediação – esta objetividade só pode ser uma objetividade
coincidindo com a corporeidade imediata desta última. Sendo puramente imediata, a
objetividade é, de forma tão imediata quanto, não-objetividade. Em outros termos, ela
não é uma objetividade que sai para fora da existência imediata do indivíduo ele
mesmo.”142 O trabalho existe, aqui, exclusivamente como trabalhador, como riqueza
em potência, como possibilidade universal da riqueza “se verificando como tal na
ação”143 e não como riqueza efetiva.
A forma moderna da sociabilidade revela-se, contudo, superior àquelas nas
quais o trabalho é mero objeto. Nela, o trabalhador encontra-se formalmente como
pessoa – “’fora de seu trabalho’ ele é, ainda, algo para si mesmo” – ou seja, ele não é,
ele próprio, um valor de troca ou objeto de outrem, mas encontra-se livre para poder
alienar ou não sua atividade; a qual, esta, sim, é que é, aqui, apenas valor: “a
142 Id., tomo I, p. 234143 Idem
90
alienação das manifestações exteriores de seu ser vivo é apenas um meio de sua
própria vida”144.
Ser potência de trabalho para si é ser proprietário da totalidade de sua
manifestação própria de força, ser proprietário de si mesmo enquanto potência de
trabalho; é ser sujeito em relação às manifestações exteriores de seu ser vivo - o que
constitui um avanço em relação às formas inferiores do trabalho vivo, como Marx
denomina o trabalho servil e o trabalho escravo: “Na relação de escravidão, ele
pertence ao proprietário singular, particular; ele é sua máquina de trabalho.
Enquanto totalidade de manifestação de força, enquanto potência de trabalho, ele é
uma coisa que pertence a outro e, portanto, não se comporta como sujeito em relação
à manifestação de sua força particular ou a seu ato de trabalho vivo. Na relação de
servidão, ele aparece como momento da propriedade fundiária, ele é um acessório da
144 Id., tomo I, p. 231.
91
terra, assim como o gado de lavoura. Na relação de escravidão, o trabalhador
não é outra coisa que não uma máquina de trabalho viva, que tem, por aí mesmo, um
valor para outros, ou melhor, é um valor. Para o trabalhador livre, a potência de
trabalho aparece, em sua totalidade mesmo, como sua propriedade, como um de seus
momentos sobre o qual ele tem influência enquanto sujeito e que ele conserva
alienando.”145
A forma moderna da produção possui, assim, este aspecto positivo no que diz
respeito à condição do trabalho vivo. Marx diz ser preciso distinguir o mercado de
trabalho do mercado de escravos justamente porque se trata, no presente caso, não
da compra do trabalhador enquanto tal – como no mercado de escravos – mas, sim,
da compra, por dinheiro, do trabalho, da atividade. O que o trabalhador vende ao
capitalista não é sua pessoa, mas a manifestação de sua força de trabalho. Muito
embora o indivíduo que trabalha seja, na verdade, mera potência de trabalho, seja
algo que é desprovido de toda e qualquer condição de subsistência fora,
independentemente, do trabalho, ele possui, neste modo de produção, uma liberdade
formal. Apresenta-se, frente ao capitalista, como pessoa, como ser que possui certa
liberdade de escolha. Liberdade que se revela, porém, uma liberdade aparente, já que,
se o indivíduo, enquanto tal, não é mais mero objeto, dentre outros, do processo de
trabalho, se ele não é mais, enquanto indivíduo singular, escravo ou servo, suas
condições sociais de existência o atam necessariamente ao capital. O trabalhador
moderno está, como vimos, necessariamente atado, não livre, em relação às
condições de trabalho postas sob a forma objetiva de capital. Trata-se, portanto, de
um avanço que - na medida em que o trabalhador só se efetiva, se objetiva, se
alienando – não significa, porém, a verdadeira realização do trabalho livre.
145 Id., tomo I, p. 403
92
A sociabilidade engendrada pelos indivíduos ativos, suas condições objetivas
de vida, não são “realizadas como condições de sua realização no processo de
produção, mas, ao contrário, a potência de trabalho sai desse processo como uma
simples condição da valorização e conservação delas enquanto valor para si em face
dela”146. Os trabalhadores vêm a ser, portanto, meras condições de valorização de
suas condições objetivas de trabalho, tornando-se, desta forma, totalmente
dependente delas, já que não se auto-sustentam nem enquanto seres vivos, enquanto
força de trabalho viva, muito menos em sua manifestação de vida. Dependem tanto
de meios de subsistência – aqueles que mantêm acesa sua chama de vida enquanto
potência de trabalho – como de condições objetivas para a realização de si enquanto
atividade, os quais lhe são, ambos, externos, independentes deles.
Nesta forma social da produção, os valores que resultam da própria
atividade dos indivíduos é que são seres para si. Eles é que são efetividades postas,
que se auto-sustentam. Para os indivíduos ativos, o resultado desta forma de
apropriação de mundo é, ao mesmo tempo, uma desapropriação na medida em que se
põe por um ato de negação mesmo de suas potencialidades: “Este processo de
realização do trabalho é, ao mesmo tempo, processo de sua desrealização. Ele se põe
objetivamente, mas põe sua objetividade como seu próprio não-ser ou como o ser de
seu não-ser: capital"147. A atividade estranhada configura-se como processo de
efetivação e, ao mesmo tempo, desefetivação, negação, do sujeito que a pratica
porque, embora constituindo-se em objetivação - em ato pelo qual um ser se põe no
mundo a partir da criação de uma nova materialidade, toda esta objetivação é
"regulada, medida e dirigida por algo que se coloca ante ao indivíduo ativo e sua
146 Id., tomo I, p. 401.147 Id., tomo I, p. 393.
93
própria atividade enquanto uma potência alheia"148. Potência esta que é, na verdade,
sua própria despotencialização, sua própria potência voltada contra si. Pois, o
trabalho aparece "como um simples meio de valorizar o trabalho morto, objetivado,
para impregná-lo de uma lama vivificante e para perder sua alma em proveito
daquele (tendo por resultado ter produzido a riqueza criada como algo estranho, e de
produzir para si apenas a indigência da força de trabalho viva)"149. Ele deveio
atividade, por um lado, produtora de uma riqueza que lhe é estranha e que a submete
a si enquanto valor e, por outro lado, reduz-se a mero meio de reprodução da
capacidade produtiva dos indivíduos.
A atividade estranhada é, portanto, apropriação humana na sua forma mais
universal e autônoma e, ao mesmo tempo, desapropriação ou desefetivação de vida.
CAPÍTULO III
A EMANCIPAÇÃO HUMANO-SOCIETÁRIA
A) SUPERAÇÃO DA ATIVIDADE SENSÍVEL ESTRANHADA
O tornar-se estranho não é, em Marx, porém, uma necessidade absoluta do
processo de objetivação dos homens. A atividade sensível é atividade estranhada na
forma social moderna porque, nesta, "O acento está colocado não sobre o fato de ser
objetivado, mas no de ser estranhado (Entfremdet), alienado (Entäuert), ser
vendável (Veräuertsein), de não ser do trabalhador, mas ser das condições de
148 ALVES, A., Op. Cit., p. 109.149 MARX, K., Manuscrit de 1857-58, tomo I, p. 225.
94
produção personificadas, isto é, sobre o pertencimento ao capital desta prodigiosa
potência objetiva, a qual confronta o trabalhador como um dos seus momentos"150.
Ao entender a atividade estranhada e a inversão ou desefetivação humana por
ela estabelecida como objetividades, Marx não deixa de entender seu caráter finito e,
portanto, superável, dado ser, segundo o mesmo autor, uma necessidade ‘histórica’ e
não uma necessidade ‘absoluta’ do devir da atividade151. Junto à identificação das
necessidades históricas colocadas à atividade humano-sensível, Marx identifica,
também, as possibilidades do seu devir real.
Os elementos presentes nos Grundrisse que apontam para a possibilidade de
uma emancipação humana são precisamente aqueles que dão forma à
sociabilidade moderna. Tal afirmação não possui um sentido puramente lógico ou
cronológico, mas está calcada no desvelamento da legalidade ontológica intrínseca a
esta formação sócio-histórica. Segundo Marx, esta última traz em si mesma os
componentes de uma forma superior de atividade. A forma social da atividade
humana sensível em seu grau extremo de estranhamento “representa um ponto de
passagem necessário; e isto porque esta forma invertida simplesmente apresenta em
si a dissolução de todos os pressupostos limitados da produção e, mesmo, ao
contrário, cria e produz os pressupostos não-condicionados da produção e, portanto,
as condições materiais plenas para o desenvolvimento total, universal, das forças
produtivas do indivíduo”152.
O conjunto das possibilidades/necessidades de uma emancipação humano-
societária está calcado, para Marx, fundamentalmente no desenvolvimento livre das
potencialidades humano-produtivas. Desenvolvimento este possibilitado na
150 Id., tomo II, p. 323.151 Idem152 Id., tomo II, p. 8
95
modernidade porque, nela, tais potencialidades constituem-se em pressupostos
ilimitados da produção, livres de toda determinação natural. Segundo o mesmo
autor, "(...) em todas as formas anteriores da produção, não é o desenvolvimento das
forças produtivas que constitui a base da apropriação, mas uma relação determinada
com as condições de produção (formas de propriedade) que aparece como limite
previamente posto pelas forças produtivas; relação que só deve ser reproduzida
(...)"153
Muito embora os modos de produção com base no valor de uso estivessem
sempre assentados sobre o desenvolvimento das forças produtivas, este último
constituía-se, neles, em fator problematizante. A partir de determinado limite - aquele
que definia precisamente a forma específica da produção - o desenvolvimento das
forças produtivas dos indivíduos colocava em risco os pilares fundamentais do modo
de apropriação vigente e o suplantava, na efetividade, para dar origem a uma nova
forma apropriativa mais adequada a si. Assim, "Todas as formas anteriores de
sociedade são mortas com o desenvolvimento da riqueza ou, o que dá no mesmo, das
forças produtivas sociais. Fato pelo qual, entre os antigos, que disto tinham
consciência, a riqueza é diretamente denunciada como o que dissolve a comunidade.
A constituição feudal, quanto a ela, é morta pela indústria urbana, pelo comércio,
pela agricultura moderna (e, ainda, pelas invenções isoladas, como a pólvora e a
imprensa tipográfica). Com o desenvolvimento da riqueza - e, pois, ao mesmo tempo,
de forças novas e de um tráfico ampliado entre os indivíduos - houve dissolução das
condições econômicas sobre as quais repousava a comunidade e dissolução das
153 Id., tomo II, p. 96
96
relações políticas dos diferentes componentes da comunidade que correspondiam a
esta última (...)"154.
A produção com base na criação de mais-valia, de mais-tempo de trabalho,
implica, ao contrário, um desenvolvimento cada vez mais pujante das forças
produtivas. O pleno desenvolvimento destas últimas é, aqui, a própria condição da
valorização e, portanto, do modo de produção. A produção não é mais limitada por
condições específicas que lhe antecedem, mas se pôs precisamente como processo de
constante e contínuo superar de condições. O livre desenvolvimento das forças
apropriativas, da riqueza social, é que se constitui como sendo o pressuposto do
capital. O pressuposto deste é seu próprio produto e não algo que lhe antecede e
determina a priori: "O capital põe como pressuposto de sua reprodução a própria
produção da riqueza e, pois, o desenvolvimento universal das forças produtivas, o
transtorno constante de seus pressupostos existentes. O valor não exclui nenhum
valor de uso; ele não inclui, portanto, nenhum tipo particular de consumo, etc., de
tráfico, etc., como condição absoluta. (...) Seu pressuposto, ele próprio - o valor - é
posto como produto e não como um pressuposto superior que pairaria sobre a
produção."155 Pela primeira vez, o desenvolvimento da riqueza e da potência social
vem a ser a condição e o fator determinante da produção - posto não como
desenvolvimento adstringido à reprodução de determinadas relações, mas, ao
contrário, como desenvolvimento que é e deve ser ilimitado e que se supera
continuamente a si próprio.
No entanto, como vimos, tais pressupostos ilimitados da produção tornam-se,
aí, forças ou potências coisificadas, autônomas em relação aos indivíduos ativos. Daí
154 Id., tomo II, p. 33155 Id., tomo II, p. 34
97
porque Marx diz ser esta forma assumida pela atividade uma forma a ser superada,
pois, a mesma tendência que possui de uma constante auto-superação de limites – na
medida em que se tratam de limites postos por ela própria – esta mesma tendência a
leva, enquanto forma de apropriação ou produção limitada, a sua própria dissolução.
Pois, constitui-se ela própria - a atividade estranhada - num obstáculo à plena
efetivação do desenvolvimento livre das capacidades apropriativas dos indivíduos.
A emancipação humana consiste precisamente na superação do estranhamento
ao qual encontram-se submetidos os indivíduos ativos na sociabilidade moderna.
Significa, pois, que o aspecto predominante da interatividade social não seja o
pertencimento a outrem – ao próprio não-ser dos homens – das condições de
produção, “desta prodigiosa potência objetiva”, mas que esta última seja recobrada
como potência própria aos sujeitos da objetivação. Uma tal configuração da atividade
sensível, não calcada no estranhamento, pressupõe que os meios de objetivação,
todos os resultados objetivos e subjetivos desta, percam, portanto, seu caráter de
potência dominadora e que existam, na verdade, enquanto extensão efetiva das
potências sociais dos indivíduos mesmos. As potências sociais objetivadas pela
atividade sensível seriam, elas próprias, o pressuposto da atividade. Enquanto, no
mundo do capital, é na alienação de tais potências que se encontra assentada a
atividade, nesta sociabilidade por vir, “é o caráter social da produção que está
pressuposto; e a participação no mundo dos produtos, no consumo, não é mediatizada
pela troca de trabalhos ou de produtos do trabalho independentes uns dos outros. Ela
é mediatizada pelas condições sociais de produção no quadro das quais o indivíduo
exerce sua atividade”. “O trabalho do indivíduo singular é posto, de início, como
trabalho social”156 e não mais como trabalho isolado e estranhamento em relação à
156 Id., tomo I, p. 109.
98
sociabilidade. A malha societária é sua própria substância, apropriada e reposta por
ele num processo infinito de transformação no qual ele está inserido como indivíduo
social ativo.
Como vimos, na forma de produção moderna, o processo universalizado das
relações entre os homens a partir de suas interações efetivas é apenas inicializado, ou
seja, trata-se de uma universalização unilateral, na medida em que tal determinação
da atividade permanece posta de forma estranhada em relação aos indivíduos ativos
singulares. O trabalho emancipado consistiria, para Marx, na efetiva realização deste
processo pelo qual a universalização ou autonomização das relações humanas se
efetivasse como sendo para os indivíduos no interior mesmo do ato pelo qual eles se
auto-põem. O trabalho viria a ser, em si mesmo, trabalho universal, não mais
dependendo de uma mediação externa para o pôr enquanto tal.
A reconciliação entre as forças sociais objetivadas e os indivíduos ativos
singulares; entre as determinações do trabalho postas, de um lado, sob a forma de
valores de troca e, de outro, como valores de uso; a superação desta imensa cissura
ou estranhamento que caracteriza todas as determinações do trabalho na sociabilidade
moderna, é vista, por Marx, como processo que desponta no interior do próprio modo
de produção atual.
Como forma de produção de riqueza baseada na quantidade de tempo de
99
trabalho imediato extorquida ao trabalhador157, o capital desenvolve-se
progressivamente como processo contraditório, que se põe e que, por este mesmo ato,
põe, também, aquilo que o nega. Pois, o desenvolvimento das forças produtivas -
posto como uma sua necessidade - se faz como desenvolvimento de forças produtivas
cada vez mais sociais ou gerais, frente às quais, o tempo de trabalho vivo ou imediato
aparece como algo cada vez mais ínfimo e sem importância. O desenvolvimento do
capital perfaz-se sob condições nas quais sua valorização torna-se crescentemente
dificultada já que "à medida em que se desenvolve a grande indústria, a criação da
riqueza real depende menos do tempo de trabalho e do quantum de trabalho
empregado do que da potência dos agentes postos em movimento no curso do tempo
de trabalho - a qual, por sua vez, (a potência eficaz deles) não tem, ela mesma,
nenhuma relação com o tempo de trabalho imediatamente dispensado para produzi-
los, mas depende, sim, do nível geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou seja,
da aplicação desta ciência na produção. ( O desenvolvimento desta ciência (...) está,
ele mesmo, por sua vez, em relação com o desenvolvimento da produção
material)"158.
O processo de trabalho ganha, na indústria, uma feição automatizada. E, isto,
como resultado do próprio desenvolvimento do modo de produção moderno. Como o
diz Marx, a divisão do trabalho chegou a um ponto tal de mecanização que pôde ser
substituída por um sistema automatizado de seus elementos. O processo de trabalho,
enquanto aplicação e desenvolvimento da ciência natural - a qual se volta, a partir
157 Muito embora se trate de uma 'extorsão' consentida e entendida exclusivamente desta forma, como visto no capítulo anterior, julgamos perfeitamente cabível e coerente com o pensamento de Marx, o uso deste termo, que, ademais, tem o mérito de evidenciar o aspecto fundamental sobre o qual repousa tal relação: o aspecto de não-troca ou troca sem contrapartida para o trabalhador.158 Id, tomo II, p. 192
100
de então, mais e mais para o desenvolvimento da produção material - enquanto
desenvolvimento das forças sociais gerais, aparece, assim, como processo autômato,
como processo natural frente aos indivíduos. "Não é mais o operário que intercala um
objeto natural modificado como meio termo entre o objeto e ele, mas é o processo
natural - processo que ele transforma em um processo industrial - que ele intercala
como meio entre ele e a natureza inorgânica da qual ele se torna mestre. Ele acaba
por se pôr ao lado do processo de produção, ao invés de ser seu agente essencial.
Nesta mutação, não é nem o trabalho imediato efetuado pelo homem, nem seu tempo
de trabalho, mas a apropriação de sua própria força produtiva geral, sua compreensão
e sua dominação da natureza por sua existência enquanto corpo social ou, numa
palavra, o desenvolvimento do indivíduo social que aparece como o grande pilar
fundamental da produção e da riqueza. O roubo do tempo de trabalho de outrem,
sobre o qual repousa a riqueza atual, aparece como uma base miserável comparada
àquela, recentemente desenvolvida, que foi criada pela grande indústria ela
mesma."159
Na indústria moderna, a base principal da produção da riqueza, dos valores de
uso, não é o trabalho imediato nela dispendido. A base e medida da riqueza deixa de
ser o tempo de trabalho excedente sobre o tempo de trabalho necessário à reposição
da potência de trabalho para tornar-se a própria desproporção entre a riqueza e o
poderio das forças produtivas objetivadas e aquela potência. Em outras palavras, o
parâmetro da riqueza não é mais a pobreza do tempo dispendido em trabalho
imediato, mas a própria potência e pujança de toda a força e ciência humanas
objetivadas. Não é mais o trabalho vivo aquilo que fundamentalmente produz, o
sujeito efetivo, neste novo modo de produção, mas, sim, toda a força produtiva dos
159 Id., tomo II, p. 193
101
indivíduos já objetivada, esta imensa potência concreta tornada, em grande medida -
mas não totalmente - autônoma em relação ao trabalho do indivíduo singular. É, esta
potência social, aquilo que deveio a força produtiva principal do processo de
produção. Desta forma, "Na exata medida em que o tempo de trabalho - o simples
quantum de trabalho - é posto, pelo capital, como o único elemento determinante, o
trabalho imediato e sua quantidade desaparecem enquanto princípio determinante da
produção - da criação de valores de uso - e encontram-se rebaixados tanto
quantitativamente a uma proporção reduzida, quanto qualitativamente a um momento
certamente indispensável, mas subalterno em relação ao trabalho científico em geral -
de aplicação tecnológica das ciências físicas e matemáticas - de um lado, assim como
em relação à força produtiva geral que se libera da articulação social na produção
global (...)"160.
Tal fato não abole ou descaracteriza, portanto, a condição geral e necessária
da existência do capital: o tempo de trabalho imediato não pago ao trabalhador. Este
último permanece sendo a única fonte da mais-valia. O capital, por si mesmo, não
cria valor. Como reitera Marx, em várias oportunidades ao longo dos Grundrisse,
valor é tempo de trabalho objetivado. Desta forma, se as condições objetivas de
trabalho são, elas próprias, valores - tempo de trabalho objetivado, materializado, não
pago aos trabalhadores - não são, tais condições, porém, fonte de valor, elas não
põem valor: "A transformação da mais-valia na forma de lucro - esta forma que o
160 Id., tomo II, p. 188. Grifos nossos.
102
capital tem de calcular a mais-valia161 - repousa sobre uma ilusão quanto à
natureza da mais-valia e, mais ainda, oculta, de alguma forma, esta última. No
entanto, isto não impede que, do ponto de vista do capital, ela seja necessária. (É
fácil imaginar que a máquina enquanto tal, pelo fato de que ela age como força
produtiva do trabalho, põe valor. Ora, se a máquina não tivesse necessidade de
trabalho algum, ela poderia aumentar o valor de uso, mas o valor de troca que ela
criaria não seria nunca maior que seu próprio custo de produção, seu próprio valor - o
trabalho objetivado nela. Não é porque ela substitui trabalho que ela cria valor, mas
apenas na medida em que ela é um meio de aumentar o mais-trabalho; e apenas este
mais-trabalho é, ao mesmo tempo, a medida e a substância da mais-valia que é posta
com a ajuda da máquina e, portanto, do trabalho)"162. O tempo de trabalho imediato
não pago ao trabalhador ou, em outras palavras, o trabalho excedente dos indivíduos,
embora não seja mais o parâmetro ou fator determinante da riqueza produzida,
continua sendo, porém, aquele do valor. As máquinas agem na produção do valor
apenas na medida em que são, elas próprias, valores, trabalho objetivado, e na
medida em que contribuem para o aumento do tempo de trabalho excedente ou não
pago.
A produção do valor pressupõe, como vimos no capítulo II, a troca do capital,
do valor objetivado, com o trabalho vivo. Tal relação foi, entretanto, restringida a
uma parte insignificante do capital existente, já que o trabalho vivo ocupa, agora,
161 Nota desta autora: Não sendo nosso objetivo entrar na diferenciação pormenorizada entre taxa de lucro e mais-valia, se faz premente ressaltar, no entanto, que, nos Grundrisse, tal diferença é consideravelmente tratada por Marx e que, de forma extremamente sucinta, consiste em explicar que o capital - os vários e diferentes capitais postos na circulação - ao atingir certo desenvolvimento, toma a si mesmo como referência para o cálculo do valor novo posto e não mais sua troca efetiva com o trabalho vivo. O lucro é precisamente esta diferença entre o valor novo produzido e aquele pressuposto à produção.162 Id., tomo II, p. 256
103
lugar periférico e desprezível na forma automatizada da produção. A extinção do
trabalho vivo como força predominante na produção de objetividades coincidiria,
para Marx, com o fim da produção com base no valor de troca. A fonte e medida da
riqueza não sendo mais o tempo de trabalho imediato, mas a potência social concreta,
é a própria condição de existência do capital, da produção de valor, que se põe como
condição ameaçada e em processo de extinção.
Descreve, nosso autor, este processo como sendo aquele do "livre
desenvolvimento das individualidades; no qual, não se reduz, portanto, o tempo de
trabalho necessário para se pôr mais-trabalho, mas se reduz o trabalho necessário da
sociedade a um mínimo, ao qual corresponde a formação artística, científica, etc., dos
indivíduos, graças ao tempo liberado e aos meios criados por todos eles."163 O modo
pelo qual o capital mantém acesa sua chama, aquele pelo qual ele é capaz de não ver
secar sua fonte de valor, ou seja, a contínua e crescente redução do tempo de trabalho
necessário, tal mecanismo torna-se cada vez mais ineficaz. A redução do tempo de
trabalho necessário implica, como conseqüência, a posição de mais capital sob a
forma de capital fixo e, portanto, a diminuição do próprio tempo de trabalho vivo
necessário. E quanto mais reduzido o tempo de trabalho vivo aplicado no processo de
produção, mais reduzido torna-se, também, o montante de valor criado em relação
àquele já existente.
O ponto alcançado com este processo, seu resultado último, é que a redução
do tempo de trabalho necessário não implica mais seu antigo par: a criação de mais-
tempo ou trabalho excedente para outrem, mas, simplesmente, redução do tempo de
trabalho necessário. De mecanismo ou mecanismo para, a redução do tempo de
trabalho necessário torna-se fim. Redução do tempo de trabalho necessário tout court
163 Id., tomo II, p. 193
104
ou, ainda, criação de tempo social livre. Se, por um lado, tal redução não dá mais
origem ao valor, por outro, ela também não implica redução do tempo necessário
apenas para produzir as condições absolutas de existência do indivíduo ativo. O que
se tem como resultado é a redução do tempo de trabalho necessário em geral, do
tempo de trabalho necessário à produção do próprio indivíduo social. Extintas as
condições de existência e de reprodução do capital, o que surge são aquelas para um
trabalho emancipado, pois, a redução do trabalho, do "dispêndio de força, a um
mínimo (...) é a condição de sua emancipação."164
Ao pôr o tempo de trabalho supérfluo ou excedente como condição cada vez
mais fundamental e necessária da produção, o capital, ao mesmo tempo em que
cavou sua própria ruína, criou, por outro lado, as condições para o desenvolvimento
geral do indivíduo social. E assim é que Marx descreve tal fenômeno: "A criação de
muito tempo disponível, para além do tempo necessário, para a sociedade em geral e
para cada um de seus membros (isto é, de lazer, para que se desenvolvam plenamente
as forças produtivas dos indivíduos e, portanto, também, da sociedade) (...). Ele [ o
capital ] contribui, assim, malgrado ele, ativamente para a criação dos meios do
tempo social disponível, tendendo a reduzir o tempo de trabalho para a sociedade
inteira a um mínimo decrescente e a liberar, assim, o tempo de todos para os fins do
desenvolvimento deles próprios."165
O que foi reduzido, em geral, foi não apenas o tempo de trabalho necessário à
reprodução da capacidade viva de trabalho, mas aquele pelo qual se reproduz o
indivíduo ativo e todas as suas capacidades e necessidades postas pelo estágio efetivo
do desenvolvimento de suas forças objetivas. Resultam postas, por conseguinte, as
164 Id., tomo II, p. 190165 Id., tomo II, p. 195
105
condições de uma reapropriação, pelos indivíduos ativos, de toda a riqueza criada,
pois, a produção desta, o desenvolvimento pleno da individualidade humano-
societária, não depende mais da existência destes indivíduos como meras potências
de trabalho cindidas em relação a sua existência objetiva, concreta.
A contradição engendrada pelo capital, pela atividade sensível dos indivíduos,
não implicaria, entretanto, uma supressão imediata do modo de produção. Marx não
deixou de entrever certos desenvolvimentos pelos quais o capital buscaria,
entrementes, se manter como processo de valorização. Para não falar, aqui, das crises
e convulsões - as quais agiriam como mecanismos subversivos sobre a tendência de
desvalorização do capital, ou seja, como mecanismos pelos quais tal tendência seria,
até certo ponto, contida no interior mesmo da circulação do capital - Marx reconhece
que "o capital porá em obra tudo para emperrar a atrofia da relação do trabalho vivo
com a grandeza do capital em geral (e, portanto, também, da relação da mais-valia -
quando expressa como lucro - ao capital pressuposto)." Para manter o
desenvolvimento das forças produtivas no interior dos marcos da produção do valor,
mecanismos diversos seriam engendrados pelo capital, tais como processos em que
parte dele se desvalorize. Mecanismos dos quais, porém, o único efetivamente
coerente com sua lógica reprodutora é, continuando a passagem anterior, "reduzindo
a parte do trabalho necessário e desenvolvendo ainda mais a quantidade de mais-
trabalho em relação ao conjunto do trabalho empregado. O estado supremo de
desenvolvimento da potência produtiva, bem como o maior aumento de riqueza
jamais conhecido, coincidirão, pois, conclui Marx, com a depreciação do capital, a
degradação do trabalhador e o esgotamento sistemático de suas capacidades vitais."166
166 Id., tomo II, p. 237
106
O processo pelo qual as condições da reprodução do capital tornam-se cada
vez mais inexistentes é - assim como o foram todos aqueles que, na história humana,
negavam as relações de produção já estabelecidas e reproduzidas por longos períodos
- entendido, pelo autor dos Grundrisse, como um longo e difícil processo. Ao longo
do qual, crises, cataclismas ou catástrofes são postos como inevitáveis no interior da
insistente persistência de uma produção que se debate com suas contradições: "Estas
contradições conduzem certamente a explosões, a crises nas quais a supressão
momentânea de todo trabalho e a destruição de uma grande parte de capital
conduzem, este último, pela violência, a um ponto em que ele estará em condições de
explorar ao máximo suas capacidades produtivas sem ser conduzido ao suicídio. No
entanto, estas catástrofes periódicas são condenadas a se repetirem numa escala maior
e conduzem, finalmente, à derrubada violenta do capital."167
O que Marx mostra, nos manuscritos em questão, não é uma trajetória de
cunho epistêmico ou político que devesse ser ou que seria necessariamente seguida
pela ação dos homens visando alcançar uma existência efetivamente livre. O que
resulta de seus estudos sobre o capital é que este realiza, na prática, sua auto-
supressão na medida em que alcança, em seu desenvolvimento, a superação efetiva -
posta em suas próprias determinações constitutivas - da cisão entre o indivíduo
singular e as determinações de sua vida ativa. O capital, enquanto sendo, ele mesmo,
tais determinações, alcança uma forma tal em que a supressão do estranhamento se
põe como realidade, pois, "no processo de produção da grande indústria, assim como,
de um lado - na força produtiva do meio de trabalho desenvolvido em processo
automático - a sujeição das forças naturais ao entendimento social é uma condição
prévia, assim também, de um outro lado, o trabalho do indivíduo singular é posto, em
167 Id., tomo II, p. 238
107
sua existência imediata, como trabalho abolido em sua singularidade, isto é, como
trabalho social. Assim, desaba a outra base deste modo de produção."168
A forma alcançada pelas forças produtivas objetivadas, na grande indústria, é
uma forma que se, de um lado, adestrou e sujeitou definitivamente - isto é, da forma a
mais elaborada e rica até então já vista - a natureza à sociabilidade; de outro lado,
pôs esta sociabilidade como pressuposto efetivo da produção. O indivíduo ativo não
aparece mais, aí, de forma autônoma ou independente no processo de trabalho, mas
sob a forma de forças combinadas e entendimento social objetivado. Daí porque "A
concentração de provisões em uma só mão não é mais necessária."169 Pois, já foram
criadas as condições de total emancipação destas provisões tanto em relação à
natureza, quanto em relação à propriedade privada. As condições de produção são,
agora, condições sociais gerais e científicas de produção e não necessitam mais da
subsunção do trabalho a um capital para criá-las, ou seja, não precisam mais da
exploração de mais-trabalho para existirem.
Pelo movimento próprio da ação dos homens, o acento que se encontrava no
estranhamento, na apropriação por outrem das condições de produção, encontra-se,
agora, sobre a produção mesma, sobre o valor de uso criado e não mais no valor de
troca. Este último deixa de ser, pois, aquilo que determina a produção, o que
fundamentalmente lhe dá forma. A forma específica da produção desloca-se do valor
de troca desta para situar-se em seu caráter de produção de riqueza e potência social
universal. A produção e apropriação de riqueza não tem mais como condição
precípua a expropriação; pode aparecer sem esta mediação. A apropriação pode se
dar, agora, por meio de si mesma, ou seja, por meio da própria produção, da relação
168 Id., tomo II, p. 197169 Id., tomo II, p. 106
108
dos indivíduos com seu mundo efetivo. Para Marx, o vir-a-ser efetivo das condições e
do modo de produção é, ele próprio, um processo de auto-supressão, um processo
que, em suas próprias condições de reprodução, põe aquelas que são, ao mesmo
tempo, também, as condições de sua superação.
"A bem da verdade, o desenvolvimento não se produziu apenas sobre a antiga
base, mas houve desenvolvimento desta mesma base. O desenvolvimento máximo
desta base mesma (o desabrochar no qual ela se transforma, mas é sempre esta base,
esta mesma planta enquanto floração - daí porque ela murcha após e na seqüência de
seu desabrochar) é o ponto em que ela foi, ela própria, elaborada até tomar a forma
na qual ela é compatível com o desenvolvimento máximo das forças produtivas e,
portanto, também, com o desenvolvimento mais rico dos indivíduos. Desde que este
ponto é alcançado, a seqüência do desenvolvimento aparece como um declínio e o
novo desenvolvimento começa sobre uma nova base (...)"170.
Nesta passagem, Marx está se referindo ao desenvolvimento da base
societária que deu origem à sociedade moderna. Tal forma de desenvolvimento é, no
entanto, perfeitamente condizente com seu entendimento sobre o declínio desta
última. O modo de produção do capital também tenderia, a seu ver, a se desenvolver,
a se adaptar ao máximo às forças produtivas novas, crescentemente ampliadas. Mas,
o que vem a se constituir em entrave ou impedimento efetivo ao desenvolvimento das
forças produtivas universais ou gerais e, pois, ao desenvolvimento da própria
individualidade, neste modo de produção, é sua determinação mais fundamental,
aquela sem a qual ele deixa de ser o que é: o valor.
Tudo o que vemos ratifica, pois, a crítica de Marx aos economistas que, como
J. S. Mill, vêem a produção como pertencendo ao âmbito das verdades eternas,
170 Id., tomo II, p. 33
109
imutáveis, e exclusivamente a distribuição da riqueza como passível de mudança pela
mão humana. Segundo Marx, "As 'leis e condições' da produção da riqueza e as leis
da 'distribuição da riqueza' são as mesmas leis sob uma forma diferente e estas duas
séries alternam e se fundem no mesmo processo histórico. São simplesmente
momentos de um processo histórico."171 Embora a produção prevaleça sobre seus
demais momentos ou aspectos específicos - o consumo, a troca e a distribuição;
embora seja, ela, o ponto de partida ontológico, aquele a partir do qual retomam os
demais, a cada novo processo172; distribuição e produção são, na verdade, momentos
distintos de um mesmo processo, "diferenças no seio de uma unidade"173. A
distribuição não é momento independente, autônomo, em relação à produção, em
relação ao resultado ou à forma como esta se encontra organizada. Muito ao
contrário, seja enquanto distribuição do produto, seja enquanto distribuição das
condições de produção - que são, também, produto do trabalho - seja, ainda, enquanto
distribuição dos sujeitos no interior da produção, em qualquer uma de suas
modalidades, a distribuição é resultante e parte do processo de produção. Assim
como o consumo e a troca, ela não se identifica com a produção, mas, por outro lado,
não subsiste senão enquanto momento desta, como distribuição determinada, de
acordo tanto com a produção passada, quanto com a presente. O que implica em dizer
171 Id., tomo II, p. 324172 Cf. MARX, op. cit., tomo I, p. 28173 Id., tomo I, p. 33
110
que a mudança, o desenvolvimento, no quadro das forças produtivas dos
indivíduos aparece progressivamente como mudança também no interior dos demais
momentos da produção. Pois, a fonte, o loco, da mudança na vida social é
precisamente a produção, a organização do trabalho. A ação humana transformadora
e radicalmente transformadora, ou seja, aquela que faz mudar as coisas na própria
raiz destas, é, como transparece no decorrer mesmo desta dissertação, o trabalho.
Sendo a distribuição da riqueza regida pelas mesmas leis e condições que
regem a produção desta mesma riqueza, uma mudança naquela só pode existir
enquanto seja mudança também nesta última. Tendo, por outro lado, a produção,
prioridade ontológica sobre seus demais momentos, as mudanças ou transformações
teriam, para Marx, sua origem ou gênese precisamente na forma da produção. Pois,
"A articulação da distribuição é inteiramente determinada pela da produção. A
distribuição, ela própria, é um produto da produção; não apenas no que concerne o
objeto (...), mas, também, no que concerne a forma, o modo determinado de
participação na produção determinando as formas particulares da distribuição, a
forma de participação na distribuição."174 A mudança na distribuição só se põe como
condição e resultado de um novo modo de produção e, de forma alguma, como
resultado de leis ou instituições humanas autônomas, dissociadas da produção, como
chega a explicitá-lo nosso autor: "(...) a distribuição modificada proviria de uma base
nova de produção, 'modificada', oriunda apenas do processo histórico."175
Assim, as condições de reapropriação da riqueza produzida pelos indivíduos
ativos singulares são condições que surgem no interior do quadro mesmo da
produção, da forma alcançada pelas forças produtivas modernas. O fim do
174 Id., tomo I, p. 30175 Id., tomo II, p. 324
111
estranhamento como resultado do mesmo modo de produção que o originou e não
como algo advindo ou imposto do exterior. A forma genérica e científica da produção
resulta precisamente deste estranhamento - do modo como encontra-se organizada a
produção e, portanto, também, a distribuição, a troca e o consumo, na modernidade -
mas conduz, por outro lado, à sua abolição. O modo de produção do capital teria
criado as condições do desenvolvimento universal das forças e relações dos
indivíduos e este próprio desenvolvimento como realidade: "Mas, com a abolição do
caráter 'imediato' do trabalho vivo como pura 'singularidade' ou como universalidade
apenas interior ou exterior, pondo a atividade dos indivíduos como imediatamente
universal ou 'social', os momentos objetivos da produção são despojados desta forma
de alienação [Entfremdung], eles são, então, postos como propriedade, como corpo
social orgânico no qual os indivíduos se reproduzem enquanto indivíduos singulares,
mas indivíduos singulares sociais. As condições que os fazem o que são na
reprodução de sua vida, em seu processo vital produtivo, não foram postas senão pelo
próprio processo econômico histórico - tanto as condições objetivas, quanto as
subjetivas (as quais são apenas as duas formas diferentes destas mesmas
condições)."176
Na superação do estranhamento, da forma específica das relações sociais
modernas de produção, Marx não deixa de perceber o lugar da subjetividade. Este
lugar é, porém, como acabamos de ver, indissociável daquele da objetividade.
Condições objetivas e subjetivas "são apenas as duas formas diferentes destas
mesmas condições" postas "pelo processo econômico histórico". O primado da
objetividade, em Marx, não implica num entendimento unilateral deste processo mas,
ao contrário, na apreensão de que os aspectos ou momentos diferentes não são
176 Id., tomo II, p. 323
112
aspectos ou momentos dissociáveis, independentes um em relação ao outro e, sim,
aspectos de um mesmo processo histórico objetivo.
Tal entendimento, se reconhece o primado da objetividade - e, portanto, das
condições objetivas de existência do indivíduo social - só o faz apreendendo o
processo em toda a sua complexidade. Senão, vejamos a passagem seguinte na qual
isto se patenteia: "(...) no quadro da sociedade burguesa, da sociedade fundada sobre
o valor de troca, criam-se relações de troca e de produção que são, também, minas
para fazê-la explodir. (Uma massa de formas contraditórias da unidade social das
quais não se pode, porém, jamais fazer explodir o caráter contraditório por meio de
uma metamorfose silenciosa. De um outro lado, se, na sociedade tal como ela é, não
encontramos dissimuladas as condições materiais de produção de uma sociedade sem
classes e as relações de troca que lhes correspondam, todas as tentativas de fazê-la
explodir seriam apenas donquichotismo)"177. O autor não deixa de atentar para a
necessidade de uma explosão ou revolução – embora não utilize esta expressão -
como desfecho efetivo no processo de superação das relações sociais modernas. O
que o preocupa, nestes manuscritos, porém, é precisamente a urgência de mostrar que
tal explosão não ocorreria fora de condições objetivas e subjetivas muito concretas
que a possibilitasse. Mesmo porque são estas as condições que lhe dão origem
enquanto momento ideal. São as condições efetivas de superação das relações
estabelecidas que dão origem à consciência da necessidade desta superação.
O ato final do processo pelo qual a livre individualidade torna-se efetiva não
se diferencia da atividade sensível no parâmetro ou "media pela qual a objetivação do
sujeito se cifra". Como bem observa Alves a este respeito, tal parâmetro "não é, em
princípio, a qualidade de per se de sua idealização, do plano previamente traçado,
177 Id., tomo I, p. 95
113
etc., mas as condições efetivas existentes ou não para a sua realização. A
Donquichoterie da subjetividade residiria exatamente na proposição de um fim ou de
um ato que não levem em consideração aquelas condições efetivamente
existentes."178 A atividade que tem como objeto a materialidade ou realidade sensível
possui, em qualquer uma de suas formas, um caráter objetivante. A relação transitiva
entre objetividade e subjetividade tem como momento preponderante, aí, aquele da
objetividade: "Reconhecer os produtos como sendo seus produtos e julgar esta
separação em relação às condições de sua realização como algo inaceitável e imposto
pela força representa uma imensa consciência que é, ela própria, o produto do modo
de produção fundado sobre o capital e que anuncia o funeral de seu falecimento - da
mesma maneira que, quando o escravo tomou consciência de que ele não podia ser a
propriedade de um terceiro, quando ele tomou sua consciência de pessoa, a
escravidão viveu apenas parca e artificialmente e deixou de poder perdurar como
base da produção."179
O que é fortemente tematizado por Marx, nestes manuscritos, não é, porém,
tal momento necessariamente explosivo de superação do modo de produção
moderno, mas o fato de que as condições objetivas da superação do capital são,
também, as condições subjetivas de uma nova forma social. Tais condições objetivas
são apenas a forma mais concreta e visível do desenvolvimento do indivíduo social.
B) A LIVRE INDIVIDUALIDADE EFETIVA
178 ALVES, A. L., Op. Cit., p. 42.179 MARX, K., Op. Cit., tomo I, p. 402
114
A tessitura da sociabilidade, o desenvolvimento desta de modo geral - "isto é,
do próprio homem em suas relações sociais"180 - é o resultado efetivo de todo este
processo. Ao focar seus estudos sobre a produção, Marx não está tratando
exclusivamente das condições imediatas e do resultado, do produto objetivo imediato
do trabalho. Como ele mesmo o diz, "Se considerarmos a sociedade burguesa em seu
conjunto, há sempre, como resultado último do processo de produção social, a
aparição da sociedade, isto é, do próprio homem em suas relações sociais. Tudo o que
tem forma fixa - como o produto, etc. - aparece apenas como momento, momento
evanescente deste movimento. O próprio processo de produção imediato aparece,
aqui, apenas como momento. As condições [ Bedingungen ] e as objetivações
[ Vergegenständlichungen ] do processo são, elas mesmas, uniformemente
momentos deste processo e aparecem como sujeitos deste processo apenas os
indivíduos, mas os indivíduos nas relações mútuas que eles reproduzem, assim como
nas relações novas que eles produzem. É o processo de seu próprio movimento
perpétuo, processo no curso do qual eles se renovam, assim como renovam o mundo
da riqueza criado por eles."181
O processo de produção imediato é, ele próprio, processo de produção e
desenvolvimento dos indivíduos - os quais aparecem, agora, sobretudo nas relações
efetivas por eles estabelecidas. As condições objetivas, os meios de produção
desenvolvidos como meios sociais e científicos de produção, são, em si mesmos,
desenvolvimento objetivo e subjetivo dos indivíduos sociais. As forças produtivas
não são, no entender de Marx, objetividade distinta destes últimos, mas, ao contrário,
são suas próprias relações existindo de forma concreta, objetiva. Elas são objetivação
180 Id., tomo II, p. 200181 Idem
115
de tempo de trabalho excedente, "desenvolvimento de potência, de capacidades de
produção e, pois, tanto das capacidades, quanto dos meios de fruição. A capacidade
de fruição é a condição desta última - portanto, seu primeiro meio - e esta capacidade
é desenvolvimento de uma disposição individual, é força produtiva. Economia de
tempo de trabalho igual a aumento de tempo livre, isto é, de tempo para o pleno
desenvolvimento do indivíduo; desenvolvimento que age, por sua vez, como a maior
das forças produtivas sobre a força produtiva do trabalho."182
O desenvolvimento das forças produtivas é, em si mesmo, um ampliar das
forças e capacidades dos indivíduos e significa, também, liberação de tempo para o
desenvolvimento mais amplo destes últimos. Implica, pois, num desenvolvimento
geral da individualidade na medida em que é ampliação das capacidades produtivas
como, também, das capacidades de fruição (que são, elas próprias, capacidades
produtivas) e das próprias necessidades dos indivíduos.
Sendo a individualidade entendida por Marx como individualidade social,
como as relações pelas e nas quais os indivíduos são o que são - sobretudo e de forma
ainda mais efetiva no modo de produção do capital - ela vem a ser, aí, este rico
evolver de potencialidades e necessidades. O indivíduo que resulta deste processo é,
destarte, ele mesmo, um indivíduo alterado, rico em suas determinações. Como
disséramos anteriormente, a mudança ou desenvolvimento nas forças produtivas é
mudança em todos os momentos da produção e não apenas naquele da produção
imediata ou stricto sensu. Ela aparece como desenvolvimento também do consumo,
do conteúdo deste, bem como de sua forma e daquilo que ele é enquanto necessidade,
enquanto demanda. À nova materialidade produzida corresponde, assim, novos
indivíduos, novas necessidades, que são, por sua vez, os sujeitos de uma nova
182 Id., tomo II, p. 199
116
produção num processo em que se parte de determinações cada vez mais gerais ou
universais.
Não se tratando mais da produção de valor, a produção de riqueza universal -
que se põe, desde o início, como produção social e que se efetiva enquanto tal numa
forma de apropriação também, esta, social, coletiva - dá lugar, pois, a uma alteração
do conceito mesmo de riqueza. Esta última não é mais algo externo ou posto como
externo em relação aos indivíduos, mas vem a ser a própria individualidade rica. A
riqueza é, então, uma multiplicidade de determinações que delimita, que dá forma à
nova individualidade em permanente processo de vir a ser. Antes da superação do
capital, "Em todas as suas formas, ela [a riqueza] aparece como figura reificada - seja
como coisa ou como relação mediada pela coisa que se encontra fora do indivíduo e,
por acaso, ao lado dele. (...) Mas, na verdade, uma vez que a forma burguesa limitada
desapareceu, o que é a riqueza senão a universalidade das necessidades, das
capacidades, dos gozos, das forças produtivas dos indivíduos; universalidade
engendrada na troca universal ? Senão o pleno desenvolvimento da dominação
humana sobre as forças da natureza - tanto sobre aquelas do que se chama de
natureza, quanto sobre aquelas de sua própria natureza ? Senão a elaboração absoluta
de suas aptidões criadoras, sem outro pressuposto que aquele do desenvolvimento
histórico anterior que faz um fim em si desta totalidade do desenvolvimento, do
desenvolvimento de todas as forças humanas enquanto tais, sem que elas sejam
medidas por uma escala previamente fixada ? Senão um estado de coisas em que o
homem não se reproduz segundo uma determinidade particular, mas em que ele
produz sua totalidade; em que ele não procure permanecer como algo que tem seu
futuro atrás de si, mas onde ele é tomado no movimento absoluto do futuro ?"183
183 Id., tomo I, p. 424
117
A riqueza produzida veio a ser o pleno desenvolvimento das necessidades,
capacidades e potencialidades dos indivíduos. O desenvolvimento livre de todas as
determinações do indivíduo social, na medida em que tal desenvolvimento tem a si
próprio como fundamento e não algo externo. Desenvolvimento auto-sustentado do
ser social e, portanto, aberto, não mais limitado por nenhuma outra força ou forma de
ser. O ser da nova forma social - forma posta, engendrada, pela produção moderna - é
entendido, por Marx, como sendo fundamentalmente um ser que, de um lado, se
auto-engendra - sem que, para isso, tenha que se submeter a nenhum poder (social ou
natural) que lhe faça face - que tomou para si suas condições de produção, de criação
e que, por outro lado e como conseqüência, se caracteriza por ter precisamente uma
forma aberta, não acabada. Uma forma social em contínua e permanente
transformação.
"Enfim, a individualidade fundada sobre o desenvolvimento universal dos
indivíduos e a subordinação da produtividade coletiva, social, destes, enquanto esta
última é seu poder social, é o terceiro estágio. O segundo [ o "metabolismo social" do
capital ] cria as condições do terceiro."184
Marx chama de primeiras formas sociais da produtividade humana aquelas
formações caracterizadas, sobretudo, por relações pessoais de dependência - "naturais
[Naturwüchsig] num primeiro momento" - e "nas quais a produtividade humana se
desenvolve apenas debilmente e em pontos isolados.
Em seguida, independência pessoal fundada sobre uma dependência objetiva
[Sachlich]: é a segunda grande forma na qual se constitui, pela primeira vez, um
sistema de metabolismo social universal, de relações universais, de necessidades
184 Id., tomo I, p. 94
118
múltiplas e de capacidades universais."185 Na terceira forma da produtividade
humana, os indivíduos incorporaram em si estas relações, este desenvolvimento
universal. Possuem, eles próprios, estas necessidades múltiplas e capacidades
universais. Se apropriaram deste desenvolvimento na medida em que são eles,
enquanto indivíduos, que o dominam e não o contrário. Os indivíduos subordinaram
a si sua produtividade coletiva e esta última é, agora, seu poder social. Apropriação,
esta, que não poderia se dar em outro momento já que "os indivíduos não podem
submeter a si seus próprios laços sociais antes de lhes terem criado."186 Apenas com a
forma moderna da produção torna-se possível a apropriação, pelo homem, de si
mesmo, de sua objetivação e de seu desenvolvimento enquanto desenvolvimento
livre, pois, apenas aí este desenvolvimento social efetivo torna-se possível.
Na terceira forma social da produtividade humana, a dependência em relação
a uma produção tornada autônoma é abolida e o poder social, reapropriado pelos
indivíduos de uma produção coletiva. Não se trata mais do poder pessoal ou natural
nem tampouco do poder social estranhado, mas, sim, do poder efetivo dos indivíduos
sociais sobre si mesmos, sobre sua produção. Os indivíduos tornaram-se, aí,
efetivamente, indivíduos sociais. Constituem-se, cada um deles, numa multiplicidade
de necessidades e capacidades, ou seja, em momentos essenciais desta riqueza sócio-
humana construída.
Por último, last but not least, é preciso assinalar que, nesta possível forma
social do trabalho, este último resulta, também ele, alterado. O leque ampliado de
necessidades a serem satisfeitas e a forma cada vez mais social e cientificizada da
produção conduzem a que o trabalho deixe de ser, ele próprio, trabalho para dar lugar
185 Id., tomo I, p. 93186 Id., tomo I, p. 98
119
a uma forma mais rica e ampla de atividade: "Mas, aspirando, sem trégua, à forma
universal da riqueza, o capital impulsiona o trabalho para além das fronteiras de suas
necessidades naturais e cria, assim, os elementos materiais do desenvolvimento desta
rica individualidade, que é tão polivalente em sua produção, quanto em seu consumo
e cujo trabalho, conseqüentemente, também não aparece mais como trabalho, mas
como pleno desenvolvimento da própria atividade; onde a necessidade natural, sob
sua forma imediata, desapareceu, pois, uma necessidade produzida pela história veio
substituir uma necessidade natural."187
Livre desenvolvimento de aptidões e habilidades, desenvolvimento material e
espiritual188, esta é a nova forma de atividade engendrada pela economia de tempo
proporcionada pelo desenvolvimento das forças do trabalho. Economia, esta, que se
incorpora ao patrimônio social do ser ativo, pois, "Economia de tempo e distribuição
planificada do tempo de trabalho entre os diferentes ramos da produção permanecem
a primeira lei econômica sobre a base da produção coletiva. É mesmo uma lei que se
impõe a um grau bem mais alto"189. A atividade deixa de pautar-se sobre a produção
de tempo excedente para outrem e de tempo de mais-trabalho para si mesmo, para vir
a ser tempo de atividade livre para os indivíduos ativos. Desenvolve-se como tempo
187 Id., tomo I, p. 264188 "Quanto mais o tempo que a sociedade necessita para produzir trigo, gado, etc. é reduzido, mais ela ganha tempo para outras produções materiais ou espirituais." (Id., tomo I, p. 110)189 Id., tomo I, p. 110
120
para o livre desenvolvimento deste indivíduo social rico em determinações.
Daí porque não se trata de mero ócio ou lazer, pois, a multiplicidade de necessidades
e capacidades desenvolvidas e a satisfação das necessidades de todos são, agora, as
novas bases da produção.
121
CONCLUSÃO
Encaminhando-nos para o desfecho deste trabalho, impõe-se como uma de
suas conclusões o fato de que, seja em suas determinações mais gerais, seja naquelas
específicas, mais concretas, a categoria trabalho é efetivamente apreendida por Marx
como complexo no interior do qual interage uma multiplicidade de determinações.
Determinações das quais não se pode fazer abstração a não ser no pensamento.
Neste sentido, dentro dos limites, também concretos, tanto desta pesquisadora,
em particular, quanto das condições próprias a uma dissertação de mestrado, buscou-
se identificar, as principais destas determinações e interações, com a consciência
prévia da impossibilidade de uma abordagem que as abarcasse em sua totalidade
efetiva. Assim, se o objeto, sobretudo do capítulo II - que diz respeito a uma forma de
produção, por excelência, complexa - não pôde ser exaurido em todos os seus nexos,
é porque houvemos por bem, seja dito, nos concentrar naqueles que nos eram
prioritários e indispensáveis tendo em vista o tema desta dissertação.
Cientes de que o tratamento de tais resultados só pode se dar, no presente
trabalho, de forma aproximativa, vejamos, pois, alguns de seus pontos fundamentais e
a problemática a eles atinente. Um dos pontos a se destacar como resultado desta
pesquisa diz respeito ao papel da sociabilidade. Trabalho é, para Marx, relação social,
vale dizer, a categoria trabalho implica as relações efetivas que os indivíduos
estabelecem entre si e entre eles e seu mundo. Em relação a esse importantíssimo
ponto, vale aduzir que a sociabilidade é posta, sobretudo na modernidade, pelo
próprio trabalho, tornando-se, como vimos, indissociável deste último. Por via de
conseqüência, as categorias econômicas de Marx não são categorias unilaterais ou
122
conceitos abstratos, que dizem respeito apenas a um aspecto específico ou restrito da
sociabilidade, cindido em relação aos demais. Trata-se de categorias que,
historicamente engendradas, refletem relações sociais de produção nas quais tal cisão
inexiste - a não ser na imaginação. Mas, se assim o é, o mérito de Marx consiste
precisamente em tê-las apreendido enquanto tais. Pois, não apenas os economistas
clássicos e os socialistas que ele criticara demonstraram-se incapazes de tal
reconhecimento como, também, autores contemporâneos - dentre os quais, citemos
Habermas, que se interessara pelo tema - das mais diversas matizes, dele permanecem
distantes.
Tendo em vista os limites de uma dissertação de mestrado, não se tem, aqui,
nenhuma pretensão de abordar tais interpretações em seu conjunto, com o intuito de
estabelecer um definitivo “acerto de contas”, apesar de reconhecermos a necessidade
de tal empreitada. Muito ao contrário, trataremos apenas de indicar alguns limites do
tratamento habermasiano da questão, em obra determinada, tendo em vista as
repercussões que a abordagem do referido autor tem conquistado em nossos tempos.
Para Habermas, o mundo do trabalho é regido por normas e por uma
"racionalidade" que o afasta quase que diametralmente daquilo que ele entende como
sendo o plano da interação ou o mundo da prática. Como o reconhece o prefaciador
de uma de suas obras publicadas entre fins da década de 60 e princípio da de 70, "A
articulação antropológica opondo 'trabalho' e 'interação' está no princípio mesmo da
reflexão de J. Habermas: é ela que comanda a distinção entre atividade instrumental e
atividade comunicacional (...); esta dicotomia permite compreender porque J.
Habermas opõe o domínio da 'prática' - o qual corresponde muito proximamente ao
que podemos chamar de fator humano - à técnica. Este par está, pois, em ação por
123
toda parte e não apenas nem principalmente no artigo que o leva como título
('Trabalho e Interação', in A Técnica..., op. cit., p. 163 sqq.) (...)"190.
A categoria prática remete, em Habermas, a um plano do agir livre de
coerções "externas" ao mundo do homem, que tem como referência não a
correspondência com uma realidade empírica dada, mas a relação com normas
subjetivas interiorizadas. A Bildung [formação] racional tendo sido transferida, por
Marx, do plano da abstração, como era concebida até então, para o da prática
concreta, objetiva, é precisamente aí que residirá a divergência de Habermas:
"Habermas não aceita esta aproximação entre Bildung e trabalho alegando que tal
aproximação levou Marx a igualar a racionalização com o progresso científico e
tecnológico (...) e se volta para a filosofia do espírito do Hegel da fase de Iena, na
qual Geist [espírito, vida social] é visto como a interseção de família, língua e
trabalho."191
No entender de Habermas, as mudanças promovidas pelo desenvolvimento
das forças produtivas são "simples mudanças de legitimação", simples adequação do
quadro institucional às transformações dos "subsistemas de ação racional com relação
a um fim", ou seja, às transformações do mundo do trabalho. As mudanças
propugnáveis, passíveis de serem apreendidas como processo de racionalização, iriam
para além de tais mudanças adaptativas na medida em que seriam objeto de discussão,
de decisão, de escolhas políticas. Este autor entende a política como a esfera da
autonomia e, portanto, a única passível de possibilitar uma emancipação humana.
Pois, "o quadro institucional, enquanto conjunto de interações mediatizadas pela
190 LADMIRAL, Jean-René, "Le Programme Épistémologique de Jürgen Habermas" in HABERMAS, J. , Connaissance e Intérêt, p. 19.191 INGRAM, D., Habermas e a Dialética da Razão, p. 26.
124
linguagem corrente" é a dimensão "que é a única essencial porque suscetível de
humanização."192
Deste ponto de vista, verdadeiras mudanças nas instituições, no plano da
sociabilidade propriamente dita, não podem provir de transformações no mundo do
trabalho. Este último encontra-se, aí, cindido - como esfera fechada sobre si mesma -
em relação aos demais aspectos da sociabilidade. É regido por uma lógica que é, por
definição, diferente e incompatível com aquela que comanda as interações do quadro
institucional. Habermas promove, pois, esta delimitação das esferas do agir humano
de acordo com "lógicas" incompatíveis e, assim, a "racionalização própria aos
sistemas racionais com relação a um fim [conduz] a um aumento do poder de dispor
tecnicamente dos processos objetivados da natureza e da sociedade; ela não conduz,
nela mesma, a um melhor funcionamento dos sistemas sociais". Apenas uma
racionalização das "normas sociais", ou seja, no plano da interação comunicativa, é
que, prossegue ele, "daria aos membros da sociedade as possibilidades de uma
emancipação mais abrangente e de uma individuação crescente."193
Não sendo nosso propósito promover, nestas poucas linhas, uma crítica a este
autor, mas principiar o confronto de alguns dos resultados alcançados nesta pesquisa
com o tratamento dado ao assunto por intérpretes de Marx que se voltaram, de
alguma maneira, para ele, retornemos, pois, ao autor dos Grundrisse. Uma das
maiores divergências que subjazem as referências de Habermas a Marx, sobretudo no
texto Técnica e Ciência como Ideologia, está na compreensão peculiar de Marx no
que diz respeito à categoria prática, bem como em relação a vários outros aspectos
que se podem concluir desta dissertação, como seu ponto de partida não gnosiológico
192 HABERMAS, J., La Technique et la Science comme Idéologie, p. 68.193 Idem
125
de análise e sua compreensão onto-prática (para usar uma expressão cunhada por J.
Chasin) da relação entre sujeito e objeto, vem a ser, sua compreensão deste par
categorial sempre a partir de suas interações na vida efetiva e nunca do interior de
uma teoria do conhecimento ou de um ponto de vista epistêmico e/ou “politicista”
(empregando outra expressão de Chasin) - como parece ser, no entanto, o ponto de
partida de Habermas. Já que, este último autor, parece oscilar, em sua análise, de um
ponto de partida gnosiológico, em que a subjetividade é tomada isoladamente e, a
partir deste suposto isolamento, seu mundo próprio é posto. De outro lado, tal mundo,
entendido como aquele especificamente humano, tem suas fronteiras construídas em
torno da vida política, elevada à condição estruturante da vida social
Marx, entretanto, reconhece a práxis social como sendo exatamente a práxis
do trabalho, atividade sensível, determinação humana essencial e inseparável de seu
momento ideal, ou seja, da produção de idéias. Com o objetivo de esclarecer essa
importante questão, vale a pena referir aqui mais um argumento em que fica patente
esta unidade prática do ser social: "Não apenas, pois, a igualdade e a liberdade são
respeitadas, na troca que repousa sobre valores de troca, mas a troca de valores de
troca é a base real que produz toda igualdade e toda liberdade. Enquanto idéias puras,
elas são apenas expressões idealizadas daquela; enquanto se desenvolvem em
relações jurídicas, políticas e sociais, elas são apenas esta base elevada a uma outra
potência."194 Igualdade e liberdade, expressões que assumem, na modernidade, uma
conotação eminentemente política - a ponto de autores, como Habermas, entenderem
o princípio da equivalência, que ele chama, também, de reciprocidade, como "uma
relação própria à atividade de tipo comunicacional", um princípio de legitimação do
poder político, que, é bem verdade, no capitalismo, é subvertido em "princípio de
194 MARX, K., op. cit, tomo I, p. 185
126
organização do processo social de produção e reprodução"195 - são, enquanto tais,
expressões das relações concretas que as engendram. Pois, nas palavras de Marx, "a
abstração ou idéia não é senão a expressão teórica destas relações materiais que [no
capital] são mestres dos indivíduos. Relações, naturalmente, só podem exprimir-se
em idéias e é assim que filósofos conceberam a dominação por idéias como sendo o
caráter específico dos tempos modernos e identificaram o estabelecimento da
individualidade livre com a subversão desta dominação pelas idéias."196
A igualdade ou equivalência é desvelada, por Marx, como sendo um dos
fundamentos concretos – embora determinado, sobrepujado, pela sua antítese direta –
de uma forma social da produção que coloca os indivíduos, entre eles, bem como suas
objetivações, como indivíduos e objetivações equivalentes entre si, de igual valor. Ele
não a toma, portanto, como mera “ideologia” - que deixaria de existir a partir do
momento em que se deixasse de, nela, acreditar ou que seria abalada por mudanças na
ordem da distribuição da riqueza no capital. Trata-se, porém, de um aspecto efetivo
da organização social que também é transposto para o plano igualmente real das
idéias. Igualmente real, muito embora desigualmente determinante e coercitivo, como
fica claro na passagem em questão.
Da mesma forma, Marx entende o campo da liberdade enquanto relações mais
ou menos livres dos indivíduos frente às determinações naturais e aos obstáculos
concretos postos em sua atividade sensível, bem como em relação aos limites sociais
impostos a esta última. O campo definitório da autonomia dos indivíduos ou da maior
ou menor negação desta não é senão este mesmo em que tais relações se estabelecem
e objetivam. Como é evidente, liberdade não significa, aqui, independência ou
195 HABERMAS, J. op. cit., p. 30196 MARX, K., op. cit., tomo I, p. 100
127
oposição em relação à materialidade ou natureza “externa”, mas é, ao contrário,
liberdade real precisamente na relação com ela. Pois, como vimos, é em e através de
sua atividade que os indivíduos sociais se desenvolvem, no conjunto de suas
determinações objetivas e subjetivas, enquanto seres efetivos, capazes ou não de
realizarem seus próprios fins.
Assim, vimos que, para o autor dos Grundrisse, a liberação das forças
produtivas dos indivíduos em relação às formas de produção que as aprisionava no
interior de uma reprodução dada das relações foi precisamente aquilo que possibilitou
o avanço do modo de produção moderno em relação a uma emancipação humana.
Habermas, embora reconheça que a dominação, no plano da sociabilidade moderna,
não está mais relacionada à autoridade ou tradição (social ou de sangue) e que as
forças produtivas encontram-se, aí, não apenas livres como impulsionadas a se
desenvolverem contínua (se possível) e crescentemente, vê, nisso, não um fator
emancipatório, mas, ao contrário, uma descaracterização daquilo que constituiria,
para ele, tal fator. A dominação pela tradição, fundada precisamente sobre idéias
míticas, religiosas ou metafísicas, é que se constituiria numa “relação típica entre o
quadro institucional e os sub-sistemas de atividade racional com relação a um fim.”
Para o autor em tela, tal “relação típica” é aquela sustentada por uma racionalidade
própria à ação discursiva e, portanto, ao quadro institucional: “A expressão sociedade
tradicional refere-se ao fato de que o quadro institucional repousa sobre o
fundamento incontestado da legitimação dada por certas interpretações míticas,
religiosas ou metafísicas da realidade no seu conjunto, seja ela do cosmos ou da
sociedade. As sociedades tradicionais existem enquanto o desenvolvimento dos sub-
sistemas da atividade racional com relação a um fim se mantém no interior dos
128
limites da eficácia legitimadora das tradições culturais. Resulta disto uma
proeminência do quadro institucional (...). O que é próprio das instituições em
questão é que a validade, culturalmente determinada, de tradições que são objeto de
um acordo intersubjetivo (e que legitimam o estatuto existente da dominação) não é
explícita e sistematicamente posta em questão segundo os critérios de racionalidade
universal das relações, de natureza instrumental ou estratégica, entre o fim e os
meios.”197
O que é referência emancipatória, para Habermas, é justamente aquilo que a
sociedade moderna supera: “os limites tradicionais ao desenvolvimento das forças
produtivas”198. Superação, esta, sim, que constitui, em Marx, as condições de
possibilidade de uma efetiva emancipação humana na medida em que, apenas aí, o ser
social ativo ganha, enquanto tal, independência, adquirindo - enquanto forças e
relações sociais de produção - a condição de possuir exclusivamente a si próprio
como limite.
Tal referência de Habermas já fora, de alguma maneira, criticada por Marx na
seguinte passagem em que trata do “infantil mundo antigo” em contraposição ao
mundo moderno: “Nunca encontraremos, entre os antigos, o menor estudo
procurando saber que forma de propriedade fundiária é a mais produtiva, cria a maior
riqueza. A riqueza não aparece como o objetivo da produção – ainda que Catão saiba
muito bem investigar que cultivo do campo é o mais lucrativo ou que Brutus saiba
emprestar seu dinheiro às melhores taxas. O que se investiga, sempre, é o modo de
propriedade que cria os melhores cidadãos.”199 Muito distinto é o que acontece no
mundo moderno. Neste, a riqueza, “Em todas as suas formas, aparece como figura
197 HABERMAS, J., op. cit., p. 27198 Idem199 MARX, K., op. cit., tomo I, p. 424
129
reificada – seja como coisa ou como relação mediatizada pela coisa que se encontra
fora do indivíduo e, por acaso, ao lado dele. É assim que a opinião antiga, segundo a
qual o homem aparece sempre como a finalidade da produção - qualquer que seja o
caráter limitado de suas determinações nacionais, religiosas, políticas – parece muito
elevada frente ao mundo moderno, no qual a produção é que aparece como finalidade
do homem e a riqueza, como finalidade da produção. Mas, na verdade, uma vez
desaparecida a forma burguesa limitada, o que é a riqueza senão a universalidade das
necessidades, das capacidades, dos gozos, das forças produtivas dos indivíduos –
universalidade engendrada na troca universal? Senão o pleno desenvolvimento da
dominação humana sobre as forças da natureza – tanto sobre aquelas do que
chamamos por natureza, quanto sobre aquelas de sua própria natureza? Senão a
elaboração absoluta de suas aptidões criadoras, sem outro pressuposto que não o
desenvolvimento histórico anterior (...)?”200 Devido à alienação de toda esta
objetivação universal dos indivíduos, o “infantil mundo antigo aparece, por um lado,
como superior. Por outro, ele o é efetivamente em todos os domínios em que se
busque uma figura, uma forma fechada e uma delimitação acabada. O mundo antigo é
satisfatório se se atém a um ponto de vista limitado; enquanto que, tudo o que é
moderno deixa insatisfeito ou, ali onde aparece satisfeito consigo mesmo, é
vulgar.”201
Ao tomar os diferentes âmbitos da sociabilidade como separados e opostos
200 Idem201 Id., p. 425
130
pelo tipo de racionalidade que, em cada um deles, prevaleceria, Habermas, a
nosso ver, deixaria como secundário, ou não perceberia, o fato de que a dominação
estabelecida a partir do que ele nomeia sub-sistemas de ação racional com relação a
um fim, ou seja, a dominação social - e sua legitimação – de tipo moderno, também é
estabelecida não só a partir da interação dos indivíduos, como é, ela própria, uma
dominação destas mesmas relações ou interações efetivas, tornadas universais e
autônomas, sobre os indivíduos singulares. Pois, o que é mais importante, para ele,
nas formas sociais pré-capitalistas “evoluídas”, é que, nestas, não são tais sub-
sistemas de ação que produzem ou sustentam a legitimação do quadro da dominação,
mas as relações inter-subjetivas com base numa racionalidade de tipo não
instrumental. Ou seja, ao se deter numa perspectiva gnosio-epistêmica, que toma o
tipo de “racionalidade” como fator preponderante na análise da vida social, Habermas
não apreende a transitividade efetiva entre sujeito e objeto, também efetivos, presente
em todas as determinações constitutivas do ser social ativo e localiza, desta forma, “o
quadro institucional, enquanto conjunto de interações mediatizadas pela linguagem
corrente”, como “a única [dimensão] essencial porque suscetível de humanização.”202
Deixando de apreender, assim, que a atividade sensível longe de ser apenas uma
atividade de tipo “instrumental” - que tenha como referência de “sucesso” a realidade
empírica e não uma realidade querida, almejada, pelos indivíduos – é aquela pela qual
os indivíduos se efetivam humanizando, adequando a si, a realidade objetiva da qual
eles próprios são parte e tornando, ao mesmo tempo, concreta e possível uma nova
realidade.
Assim sendo, a própria interpretação que Habermas, em determinado
momento deste texto, faz de Marx fica comprometida ao dizer que: “Fazer a história
202 Id., p. 68
131
de forma voluntária e consciente – Marx tinha, com certeza, considerado que o
problema consistia em dominar, numa perspectiva propriamente prática, o processo
da evolução social até então incontrolado.”203 Segundo ele, seus intérpretes é que
compreenderam tal problema como sendo “de ordem técnica”. Marx, como podemos
concluir deste nosso trabalho, desvela um controle prático concreto cada vez maior
dos indivíduos sociais sobre seu processo societário de produção e auto-produção –
controle, este, potencializado (e não reduzido) com a modernidade – o qual,
efetivamente, constituir-se-ia em fator de emancipação. No entanto, a categoria
“prática” tem, nele, como vimos, um sentido bem diferente daquele que possui em
Habermas. Trata-se, como fica evidente, não de um controle prático enquanto externo
ou independente quanto às relações de produção. Como processo em que se configura
a possibilidade de um maior controle dos indivíduos sociais sobre sua produção
própria ou como controle efetivo vislumbrado como resultado de tal processo social,
em nenhuma de suas formas, ele é entendido como extrínseco ao trabalho. Antes, se
trata da conquista de um auto-controle ou de um domínio de si mesmos enquanto
seres sociais ativos obtido através da apropriação mesma, pelos indivíduos, de suas
forças produtivas objetivadas. Em outros termos, trata-se de um auto-controle
resultante de uma reconciliação de si, enquanto indivíduos singulares, com suas
forças produtivas sociais estranhadas e nunca, de uma subsunção externa destas
últimas a si – o que significaria manutenção do estranhamento e não sua superação.
O que se conclui desta dissertação é justamente que o domínio do homem
sobre si mesmo, sobre seu processo social, jamais é encarado, por Marx, como
domínio que se efetiva de forma externa à atividade sensível. As condições desta
auto-determinação, do controle sobre si mesmos dos indivíduos sociais, são
203 Id., p. 64
132
entendidas como condições de um trabalho emancipado, como criação de tempo
social livre e livre desenvolvimento do indivíduo social rico em determinações.
Condições, estas, engendradas pela ação própria dos homens na relação com sua
mundaneidade, pelo desenvolvimento efetivo de suas forças produtivas - mesmo se de
forma contraditória.
Uma “explosão”204 social - que talvez pudéssemos entender como ação social
de cunho político, embora Marx não qualifique tal ação transformadora radical - é
considerada como momento necessário no processo de superação da sociabilidade
moderna. Necessário, porém, não preponderante ou determinante. Pois, vale a pena
repetir: Marx quer mostrar, nestes manuscritos, precisamente que tal “explosão” não
ocorreria fora de condições objetivas e subjetivas muito concretas que a
possibilitasse. Mesmo porque são estas as condições que lhe dão origem enquanto
momento ideal. São as condições efetivas de superação das relações estabelecidas que
dão origem à consciência da necessidade desta superação.
Uma ação social ou prática, no sentido habermasiano, não é vista, por Marx,
como preponderante em nenhum momento do processo histórico do desenvolvimento
humano-societário nem tampouco propugnada, por ele, para que viesse a sê-lo. A
ausência, no texto em análise, de detalhes ou de um tratamento do tema da
emancipação de um ponto de vista político não se constitui numa possível falha ou
204 Reiteremos, aqui, que Marx não utiliza, nos Grundrisse, o termo revolução. A passagem em que faz alusão a um momento radical no contexto de superação do modo de produção capitalista apresenta-se, como fora visto, da seguinte forma: “(...) no quadro da sociedade burguesa, da sociedade fundada sobre o valor de troca, criam-se relações de troca e de produção que são, também, minas para fazê-la explodir. (Uma massa de formas contraditórias da unidade social das quais não se pode, porém, jamais fazer explodir o caráter contraditório por meio de uma metamorfose silenciosa. De um outro lado, se, na sociedade tal como ela é, não encontramos dissimuladas as condições materiais de produção de uma sociedade sem classes e as relações de troca que lhes correspondam, todas as tentativas de fazê-la explodir seriam apenas donquichotismo).” (tomo I, p. 95).
133
lacuna, mas está relacionada com o caráter mesmo do pensamento marxiano. Embora
as condições para uma produção livre sejam fartamente demonstradas por ele na
trama das determinações engendradas pela trajetória humana, Marx não faz do
trabalho emancipado um objeto exclusivo de atenção. Pois, fazê-lo infringiria sua
própria concepção da atividade humana, que tem, para ele, a forma de uma atividade
em permanente vir a ser, de atividade aberta. Como assevera Rosdolsky: “Sabe-se que
o fundador do marxismo rechaçava toda especulação acerca de um futuro socialista
na medida em que se tratava de inventar sistemas acabados, derivados dos ´princípios
eternos da justiça´ e das ´leis imutáveis da natureza humana´.”205 Seria, por outro
lado, logicamente impossível antecipar algo sobre o que só tem seu lugar no interior
de um desenvolvimento não totalmente realizado no momento em que Marx escrevia:
o momento ideal ou subjetivo do processo de superação da forma social moderna.
Há, portanto, nos Grundrisse, um elo de continuidade do pensamento de Marx
expresso em suas obras anteriores no que se refere especificamente à forma peculiar
de apreensão das determinações concretas da vida humano-societária206. O
pensamento de Marx, como demonstrara J. Chasin, possui um caráter “onto-prático”
205 ROSDOLSKY, R. Gênesis y Estructura de El Capital de Marx (estúdios sobre los Grundrisse), p. 457206 Não se desconhecendo, com isto, bem entendido, as importantes reformulações e conquistas alcançadas na trajetória intelectual marxiana, principalmente, na década de 50, quando os Grundrisse foram escritos.
134
ou, em outros termos, um estatuto ontológico na medida em que busca
apreender o concreto em suas determinações constitutivas e em sua dinâmica ativa
própria, tomando-o como existência social efetiva autônoma, independente, em
relação ao pensamento. Daí porque, embora reconheça, na efetividade do capital, as
condições necessárias de sua própria superação, Marx refere a produção e apropriação
coletivas como uma possibilidade, por conseguinte, uma hipótese a ser ou não
efetivada207.
Vale acrescentar, ainda, que nosso entendimento destoa da compreensão de
Rosdolsky em seu estudo sobre os Grundrisse. Para este autor, os apontamentos de
Marx em relação a uma sociabilidade emancipada têm sua razão de ser no método
materialista dialético: “(...) no Capital e nos trabalhos preliminares a ele
encontramos, vez ou outra, digressões e observações que se ocupam dos problemas da
ordem social socialista (...). Estas digressões se fazem necessárias em razão mesmo
do método materialista dialético de Marx, que aspira compreender toda manifestação
social no fluxo de seu vir a ser, de sua existência e de sua expiração. Por isto, este
método assinala, por si mesmo, ‘modos anteriores de produção’ e, de outro lado,
´pontos nos quais, prefigurando o movimento nascente do futuro, se insinua a
abolição da forma presente das relações de produção (...)”208.
Na visão deste autor, Marx se distancia dos socialistas utópicos na medida em
que entende o desenvolvimento histórico em suas leis próprias, em que entende o
futuro socialista como uma “fase necessária do desenvolvimento da humanidade” e
não “como um mero ideal”209. Mas, as leis próprias do desenvolvimento histórico, de
acordo com as quais Marx pautaria suas análises, são, na verdade, para Rosdolsky,
207 Cf. MARX, K., op. cit., p. 109 e 110208 ROSDOLSKY, R., op. cit, p. 458. Grifos nossos.209 Id., p. 457
135
leis deduzidas do método materialista dialético. Assim, dirá ainda: “A
consideração materialista-dialética das relações de produção capitalistas conduz, pois,
diretamente à contraposição entre este modo de produção e as formas sociais pré-
capitalistas, por um lado, e o ordenamento social socialista, que substitui este modo
de produção, por outro. ´A troca privada de todos os produtos do trabalho, das
capacidades e das atividades está em contraposição [antítesis] tanto com a
distribuição fundada sobre as relações de dominação e sujeição (...) dos indivíduos
entre si [...], quanto com a livre troca entre os indivíduos associados sobre a base da
apropriação e do controle comum dos meios de produção´. Deste modo, se produz
uma divisão de toda a história da humanidade que possui a forma de uma tríade
dialética em três etapas (...)”210.
Marx não divide a história humana numa “tríade dialética”, mas, a partir do
desvelamento efetivo do complexo da produção na formação social moderna, torna-
se-lhe possível dilucidar as formas anteriores da produção, bem como reconhecer o
novo posto como possibilidade pela mesma formação moderna já desenvolvida. Em
suas palavras: “A sociedade burguesa é a mais desenvolvida e a mais variada
organização histórica da produção. Por isto, as categorias que exprimem as relações
desta sociedade, a compreensão de sua articulação, permitem que se dê conta da
articulação e, ao mesmo tempo, das relações de produção de todas as formas de
sociedade desaparecidas – com os restos e os elementos das quais ela se edificou e
das quais certos vestígios, ainda não superados, subsistem (...). A anatomia do
homem é uma chave para a anatomia do macaco. Os indícios que anunciam uma
forma superior, nas espécies animais de ordem inferior, só podem, por seu lado, ser
compreendidos quando a forma superior é, ela própria, já conhecida. Assim, a
210 Id., p. 458. Grifos nossos.
136
economia burguesa nos dá a chave da economia antiga, etc. Mas, de forma alguma, à
maneira dos economistas que apagam todas as diferenças históricas e que vêem, em
todas as formas de sociedade, aquelas da sociedade burguesa.”211. Além disto, só se
pode entender as formas passadas da produção a partir do momento em que a atual
alcance fazer sua própria crítica: “O chamado desenvolvimento histórico repousa
sobre o fato de que a última forma considera as anteriores como etapas conduzindo a
ela; além do que ela é raramente capaz, apenas em condições muito determinadas, de
fazer sua própria crítica (...). Do mesmo modo, a economia burguesa só vem a
compreender as sociedades feudais, antigas e orientais a partir do momento em que se
iniciou a auto-crítica da sociedade burguesa.”212
Fica claro, a partir das passagens acima referidas, o significado da
determinação social do pensamento, vale dizer, o desvelamento das formas de
produção faz-se possível sob condições sócio-históricas precisas, determinadas. Desse
modo, ainda segundo Marx, “seria, portanto, inviável e errado seguir as categorias
econômicas na ordem em que elas foram historicamente determinantes. Sua ordem é,
ao contrário, determinada pelas relações que existem entre elas na sociedade burguesa
moderna e ela é precisamente o inverso do que parece ser a ordem natural delas ou
corresponder a sua sucessão no curso da evolução histórica. Não se trata da relação
que se estabelece historicamente entre as relações econômicas na sucessão das
diferentes formas de sociedade. Menos ainda, de sua ordem de sucessão ´na idéia´
(Proudhon) (concepção do movimento histórico que tende a se esvair). Trata-se de
sua articulação no quadro da sociedade burguesa moderna.”213 O desenvolvimento
sócio-histórico das forças e relações de produção só é apreendido, pois, como
211 MARX, K., op. cit., tomo I, p. 39212 Id., p. 40213 Id., p. 42
137
resultado, ou seja, a partir do rigoroso desvelamento das determinações próprias à
sociabilidade do capital.
Por outro lado, vimos que, em Marx, só se apreende realmente um objeto de
conhecimento – no caso, as relações sociais de produção – quando se o toma em suas
particularidades efetivas. As determinações gerais ou universais servem “para nos
evitar a repetição. (...) Mas, se é verdade que as línguas mais evoluídas têm em
comum com as menos evoluídas certas leis e determinações, o que as diferencia
destes caracteres gerais e comuns é precisamente aquilo que constitui sua evolução.
Também, é preciso distinguir as determinações que valem para a produção em geral,
para que a unidade (...) não faça esquecer a diferença essencial.”214
A forma de apreensão teórica pela qual prima Marx não é aquela que
reconhece, “por toda parte, as determinações do conceito lógico, mas que apreende a
lógica específica do objeto específico”, que “não se limita a indicar as contradições
existentes, mas as esclarece, compreende sua gênese, sua necessidade. Apreende-as
em seu significado próprio.”215 Forma de apreensão, esta, que, segundo Chasin, toma
– no reconhecimento ideal de sua constituição – o ser social por ele mesmo, em seus
complexos constituintes, e não como exemplar de cada um de seus momentos
constituídos como formas autônomas pela idealidade que se auto-sustenta.
Tal estatuto ou patamar de cientificidade não é alterado na obra marxiana
madura em questão. Ao contrário, é a partir dele que pode Marx afirmar, por outro
lado, que “(...) os indivíduos desenvolvidos universalmente (...) não são produtos da
natureza, mas da história. O grau e a universalidade do desenvolvimento das
capacidades, no seio das quais esta individualidade torna-se possível, pressupõem
214 Id., p. 19. Grifos nossos.215 MARX, K. (Crítica à Filosofia do Direito de Hegel) apud CHASIN, J. “Estatuto Ontológico...”, p. 376
138
justamente a produção sobre a base dos valores de troca; produção, esta, que começa
por produzir, com a universalidade, a alienação do indivíduo em relação a si mesmo e
aos outros, mas que produz, também, a universalidade e o caráter multilateral
[Allgemeinheit und Allseitigkeit] de suas relações e aptidões.”216
Os apontamentos de Marx em relação às três formas gerais da produção social
resultam, portanto, não de um conhecimento parametrado, conduzido, por um método
– entendido como construção a priori do intelecto – mas, de uma forma de apreensão
intelectiva instaurada já com o rompimento juvenil em relação a Hegel. Forma de
apreensão em que o conhecimento é construção que se viabiliza em seu fazer efetivo.
Fazer este, sim, que possibilita a Marx extrair considerações a seu respeito, as quais
encontram-se na Introdução de 1857 e foram objeto do capítulo I deste trabalho. Dito
de outro modo, o entendimento marxiano a respeito do procedimento analítico
correto, longe de se configurar num método que oriente o conhecimento por
parâmetros ou medidas pré-estabelecidas, anteriores e externas ao próprio objeto
investigado, é um entendimento que, ao contrário, resulta do caminho percorrido.
Como o próprio Rosdolsky reconhece, Marx só refere uma forma coletiva da
produção na medida em que as condições desta despontam, surgem como possíveis,
no interior da produção atual por ele dilucidada. Tal procedimento é, a nosso ver, por
si só incompatível com um proceder no qual tais elos ou “vinculações econômicas”
fossem “concebidas como leis dialéticas da evolução” e pelo qual “este método
assinala, por si mesmo, ´modos anteriores de produção´ e, de outro lado, ´pontos nos
quais, prefigurando o movimento nascente do futuro, se insinua a abolição da forma
presente das relações de produção (...)”217.
216 MARX, K. Manuscrit de 1857-1858 (Grundrisse), tomo I, p. 98217 ROSDOLSKY, R. op. cit, p. 458.
139
Para Rosdolsky, Marx deriva sua “imagem do futuro socialista do
conhecimento (...), da análise das relações de produção capitalistas.”218 No entanto, tal
conhecimento, embora não seja entendido por ele como algo de natureza metafísica, é
um conhecimento pautado e organizado por um método. Método, este, que não parece
coincidir, entretanto, com o procedimento analítico indicado por Marx em sua famosa
Introdução, mas, sim, com o método de Hegel de ponta cabeça, isto é, invertido.
Assim, é que, para o autor ora examinado, os Grundrisse são uma “grande remissão a
Hegel e, em especial, a sua Ciência da Lógica – demonstrando a forma radicalmente
materialista em que se converteu Hegel neste caso.”219 No entanto, o que seria esta
inversão materialista de Hegel ou um método materialista dialético?
Como não é nosso objetivo, expressêmo-lo novamente, realizar um acerto de
contas com este clássico comentador dos Grundrisse – mesmo porque, se assim o
fosse, seria preciso dizer que concordamos com ele em vários outros aspectos – o que
nos cumpre reafirmar é que, a análise de Marx, nestes manuscritos, mostra-se, por
tudo o que foi visto, livre de “cangas” metodológicas apriorísticas. As categorias as
mais abstratas pressupõem, sempre, aí, determinações mais concretas. Concretude da
qual Marx não se afasta em nenhum momento de seu proceder – nem quando dela
extrai suas relações mais gerais e abstratas nem quando realiza este movimento no
sentido de volta, isto é, quando realiza efetivamente o procedimento considerado, por
ele, correto; pois, “No primeiro passo, a plenitude da representação foi volatilizada
em uma determinação abstrata, no segundo, são as determinações abstratas que
conduzem à reprodução do concreto no curso do caminhar do pensamento. É por isto
que Hegel caiu na ilusão que consiste em conceber o real como resultado do
218 Id., p. 481219 Id., p. 13
140
pensamento que se reúne em si, se aprofunda em si, se move a partir de si mesmo;
enquanto o método que consiste em se elevar do abstrato ao concreto é apenas a
maneira que o pensamento tem de se apropriar do concreto, de reproduzi-lo enquanto
concreto do espírito, mas não é, de forma alguma, o processo de gênese do próprio
concreto.”220
Em suma, a posição de Rosdolsky acerca do importante problema da
emancipação, não obstante sua possível contribuição para a interpretação da obra de
maturidade de Marx - fato ou não, aqui não é o lugar para uma avaliação dessa
natureza –, foi referida na parte conclusiva da presente dissertação, na medida em que
exemplifica certa porção das abordagens mais ventiladas a respeito. Parece ter se
tornado quase consensual a idéia de que muito, para não dizer tudo, na obra de Marx,
inclusive a problemática em tela, decorre da utilização do método dialético. Embora
não se trate, aqui, de esgotar a questão, é necessário advertir para as deficiências do
metodologismo ou, mesmo, logicismo, quando se trata de analisar a obra marxiana.
Lukács, em obra publicada postumamente221, já havia assinalado que “todo
leitor sereno de Marx não pode deixar de notar que todos os seus enunciados
concretos, se interpretados corretamente, fora dos preconceitos da moda, em última
análise, são entendidos como enunciados diretos sobre algum tipo de ser, isto é, são
puras afirmações ontológicas”. Ademais, enfatiza, em diversos momentos de seu
livro, que a questão metodológica em Marx se encontra subordinada a fundamentos
de caráter ontológico, não podendo, portanto, ser devidamente compreendida de
modo autônomo.
220 MARX, K., op. cit., tomo I, p. 35221 Per l’Ontologia dell’essere sociale, “I princípi ontologci fondamentali di Marx”, Editori Riuniti, pp.261 e ss.
141
Chasin, em escrito datado de 1995, demonstrou a gravidade do quadro
herdado das querelas gnosio-epistêmicas, que dominaram os debates em torno da
obra de Marx. Segundo este autor, “sobre o ‘critério gnosiológico’, para usar uma
expressão lukacsiana, de abordagem do pensamento de Marx pesa um ônus muito
especial, designadamente porque a obra marxiana é a negação explícita daquele
parâmetro na identificação da cientificidade, tendo sua própria arquitetônica
reflexiva, por consonância, natureza completamente distinta daquela suposta pelo
epistemologismo. Donde, querer ‘legitimar’por meio de ‘fundamento gnosio-
epistêmico’ as elaborações marxianas é desrespeitar frontalmente seu caráter, e
entorpecer o novo patamar de racionalidade que sua posição facultou compreender e
tematizar, em proveito da apreensão do multiverso objetivo e subjetivo da
mundaneidade humana.”222
Identificar, portanto, no pensamento de Marx a existência de uma tríade à la
Hegel, bem como afirmar que a emancipação decorre de seu movimento interno de
superação é, a nosso ver, atribuir, ao autor em tela, um procedimento não
comprovado pelos textos. Cabendo acrescentar que, quanto à convicção de que seria
possível identificar a existência de uma lógica dialética na obra de Marx - hipótese
com a qual parece compartilhar Rosdolsky e que se afigura como tentativa de
estabelecer um dado vínculo lógico entre Marx e Hegel - os resultados deste trabalho
tendem a negar. Coadunam, estes, por tudo o que foi visto e analisado em passagens e
páginas anteriores, mais com a assertiva de Chasin de que: “não há como ligar esses
dois autores, no plano lógico, por meio de arrimos textuais diretos, não só porque eles
efetivamente inexistem, mas também porque os pronunciamentos marxianos a
222 CHASIN, J. “Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica” in Teixeira,F.J.S. Pensando Com Marx, p.338.
142
respeito desautorizam essa velha hipótese, bem como exponencialmente suas
declarações relativas à própria atividade científica apontam para rumos inteiramente
diversos.”223
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