crônicas de raul pompéia: um olhar sobre o jornalismo ... · leitor, sua produção e...
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS
HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E
VERNCULAS PROGRAMA DE LITERATURA BRASILEIRA
CRNICAS DE RAUL POMPIA: UM OLHAR SOBRE O JORNALISMO
LITERRIO DO SCULO XIX Mrcia Aparecida Barbosa Vianna
So Paulo
2008
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA BRASILEIRA
CRNICAS DE RAUL POMPIA: UM OLHAR SOBRE O JORNALISMO LITERRIO DO
SCULO XIX Mrcia Aparecida Barbosa Vianna
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Literatura Brasileira, do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor em Letras .
Orientador: Prof. Dr. Flvio Wolf Aguiar
So Paulo
2008
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DEDICATRIA
Dedico este trabalho aos meus pais, Suzano e Zizi, que
em um ato de amor e coragem, me deram oportunidade
de chegar at aqui.
(Saudades)
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AGRADECIMENTOS
professora Nelyse, por sua dedicao incondicional.
Ao professor Flvio, por seu profissionalismo e
providencial orientao.
queles que iniciaram comigo esta caminhada, mas hoje
dormem, profundamente: Jos Luiz, Meire, Me e
Paulo.
queles a quem amo, por todos os momentos de
tristezas e alegrias, lutas e glrias: Val, Suzano,
Guilherme e Juliana.
E quele que me fortaleceu em todos os momentos, me
guiando e conduzindo cada passo dessa conquista:
Deus.
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SUMRIO
ndice ndice de Figuras
Resumo / Abstract Introduo ....................................................................01
Captulo I .......................................................................13 Captulo II ......................................................................46
Captulo III .....................................................................93 Consideraes Finais ................................................141 Referncias Bibliogrficas ........................................145 Anexos.........................................................................152
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NDICE
INTRODUO .................. ................. ........................... ........01
CAPTULO I.......... .................. .......... ........................... ........13
1 TECENDO UM OLHAR SOBRE O SCULO XIX. .................. .13
1.1 Um perodo marcante na histria brasileira: o contexto
de Raul Pompia ..................... ......... ..........................15
1.2 A imprensa efervescente de seu tempo ......................16
1.2.1 O despertar do leitor pompeiano ...... ..................25
1.2.2 Um novo tempero jornalstico: a crnica ............30
1.2.2.1 Tipologia: Histrica? Literria?
Jornalstica? ................. .................. . ......... 37
CAPTULO II......... .................. .......... ........................... ........46
2 O ENCONTRO COM O TEXTO: O CORPUS................ ........46
2.1 As crnicas de Pompia apresentadas por Afrnio
Coutinho ............... .................. ......... ........................48
2.1.1 Apresentao da obra: as particularidades do
texto verificadas atravs da catalogao das
crnicas ......... .................. ................ ................59
2.1.2 ndice Onomstico ............... ........................... .71
2.1.3 Aspectos visuais e grficos caractersticos das
publicaes contemporneas a Raul
Pompia ................. .................. ........ ................81
-
CAPTULO III........ .................. .......... ........................... ........92
3 UM OLHAR SOBRE RAUL POMPIA ........................... .......92
3.1 Uma personalidade mpar...... .... ........................... ....100
3.1.1 As particularidades de um estilo inovador....115
A) A Potica: Glria Latente ................. .....................117
B) A Crtica: Imprensa e Suicdios..... ....................125
C) O Impressionismo: O Carnaval do Recife...........130
D) A Poltica: Cu e Inferno............... .....................134
CONSIDERAES FINAIS.......................................................................141
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS...... ........................... ......145
ANEXOS.............................................................................................................152
Crnica 01 ... .................. .................. . ........................... ......152
Crnica 02 ... .................. .................. . ........................... ......153
Crnica 03 ... .................. .................. . ........................... ......154
Crnica 04 ... .................. .................. . ........................... ......155
Crnica 06 ... .................. .................. . ........................... ......155
Crnica 07 ... .................. .................. . ........................... ......156
Crnica 08 ... .................. .................. . ........................... ......157
Crnica 09 (a) ......... .................. ....... ........................... .....158
Crnica 09 (b) .............. .................. .. ........................... ......159
Crnica 09 (c) .......... .................. ....... ........................... .....162
Crnica 10 (a) .......... .................. ....... ........................... .....165
Crnica 10 (b) .............. .................. .. ........................... ......166
Crnica 10 (c) .......... .................. ....... ........................... .....168
-
Crnica 10 (d) .............. .................. .. ........................... ......170
Crnica 11 ... .................. .................. . ........................... ......171
CRNICA 12 (a) ......................... ....... ........................... ......175
CRNICA 13 (b) .............................. .. ........................... ......178
CRNICA 14 ................... .................. ........................... ......180
CRONICA 15 ................... .................. ........................... ......181
CRNICA 16 ................... .................. ........................... ......182
CRNICA 17 ................... .................. ........................... ......184
CRNICA 18 ................... .................. ........................... ......186
CRNICA 19 ................... .................. ........................... ......186
CRNICA 20 ................... .................. ........................... ......187
CRNICA 22 Glria Latente ........... ........................... ......190
CRNICA 23 - Imprensa e Suicdios ............................. .....194
CRNICA 24 .- O Carnaval no Recife . ........................... ......198
CRNICA 25 - Cu e Inferno ............ ........................... ......200
TEXTOS DE OLAVO BILAC....... ......... ........................... ......204
TEXTOS DE MACHADO DE ASSIS...... ........................... .....208
TEXTO DE MRIO DE ANDRADE....... ........................... ......211
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NDICE DE FIGURAS
Ilustrao 1 - Jornal O Estado de So Paulo, 18 de outubro de
1890, ano XVI, n. 4.696................ ..... ........................... .......88
Ilustrao 2 Jornal O Estado de So Paulo, 25 de maro de
1891, ano XVII, n. 4.822............... ..... ........................... .......89
Ilustrao 3 - Jornal O Estado de So Paulo, 30 de agosto de
1892, ano XVIII, n. i legvel ........................................... ........90
Ilustrao 4 - Jornal O Estado de So Paulo, 31 de janeiro de
1893, ano XIX, n. 6.841................ ..... ........................... .......91
-
RESUMO
Este trabalho acadmico prope um olhar sobre as
crnicas do autor Raul Pompia, jornalista pol t ico, conhecido
por seu romance O Ateneu, clssico da Li teratura Brasi leira,
entretanto pouco reconhecido por suas publicaes na imprensa
peridica nacional do sculo XIX, principalmente nos folhetins,
durante os anos de 1880-1894, poca em que contribuiu
intensamente com a publ icao de seus escri tos, como
observador dos fatos e dos acontecimentos do cotidiano do povo
brasileiro. Faremos uma anl ise da potica vigente em suas
crnicas, cuja r iqueza da linguagem reflete o autor l i terrio,
jornal ista e consequentemente historiador, uma vez que o ato da
escri ta fez parte da vida do cronista, e tornou-se um espelho da
sociedade brasileira do final do sculo XIX, nas pginas da
Revista I lustrada, do Dir io de Minas, do jornal O Farol, do
O Estado de So Paulo, do Jornal do Comrcio, da Gazeta
de Notc ias e da Gazeta da Tarde.
ABSTRACT
This paper proposes an academic look at the chronicles of
Raul Pompia , a poli t ical journalist, famous for his novel O
Ateneu, classic of Brazil ian li terature, but l i t tle known by i ts
national periodical publications in the press of the 19 th century,
especially in serials, during the years of 1880-1894, when he
contributed constantly to the pol i tical though of his t ime with the
publication of his wri t ings, as an observer of facts and events of
everyday l i fe of the Brazi l ian people. We wil l perform an analysis
of the poetic force in his i ts chronicles, which reflect the richness
-
of the li terary language of this author. He was a journal ist but
became also a historian consequently, since his wri t ings became
a mirror of Brazil ian society at the end of the 19 th century, in the
pages of Revista Fluminense, O Estado de So Paulo, Jornal
do Comrcio, A Provncia do Esprito Santo, Gazeta de
Notc ias and Gazeta da Tarde.
PALAVRAS-CHAVE
Crnicas - imprensa brasi leira do sculo XIX cotidiano -
potica - discursos jornal sticos / l i terrios
KEY WORDS
Chronicles; the Brazi l ian press of 19 t h century; dai ly l i fe; poetic;
journal istic and l i terary discourses
-
[...] assim como venho, eu me apresento melhor.
Se viesse significar-vos alguma cousa mais do que
meus prprios sentimentos, tenho para mim que traduziria
alguma cousa menos do que a minha sinceridade. Aprecio
mais o voluntrio que o soldado, prefiro o francs ao suo.
Respeito a quem marcha por obedincia; a quem marcha por
entusiasmo eu admiro. A obedincia produz os bravos, mas
o entusiasmo faz os heris.[...]
Raul dvila Pompia
(1863-1895)
-
1
INTRODUO
. . . ele, que em matria de armas s manejava
bem a pena.. 1
(Bri to Broca)
Nossa inteno, neste trabalho acadmico, efetuarmos
um olhar sobre o domnio l i terrio surgido com o consumismo
burgus do sculo XIX, via folhetins, caracterizado por suas
publicaes, entre elas a crnica, incorporada aos hbitos da
imprensa brasi leira, atravs de Raul Pompia.
Esse olhar se ater a pontos especficos: prestaremos
ateno na retrica, na erudio, na linguagem, no subjetivismo
e nas particularidades do texto pompeiano, conjugados com o
contexto geral em que as crnicas se inseriram.
Tal anl ise impl ica nas relaes assimtricas entre texto /
lei tor, sua produo e atualizao, revelando o universo de
Pompia - sua vida, suas particularidades, seus ideais, suas
inovaes, suas lutas e os reflexos em seus lei tores.
Esta hiptese de pesquisa basear-se- na exposio de
uma problemtica especial o confl i to da criao e da inovao
potica de do autor, cujos aspectos adquiri ram uma
particularidade dentro do estilo da poca real ismo,
parnasianismo, simbol ismo, impressionismo - resul tando em
produes nicas, eclticas, de valor mpar diante do contexto
do sculo estudado, tempo em que os grupos sociais
desenvolveram di ferentes l inguagens, mas criaram um senso
comum, uma referncia coletiva. Esse modelo textual instaurou o
movimento da comunicao, mas dependeu do repertrio do
lei tor e das estratgias de lei tura propostas para que houvesse
1 Brito Broca, Raul Pompia, So Paulo, Ed. Melhoramentos, s/d, pg. 61.
-
2
uma atual izao dos sentidos e tornasse os textos correlatos
conscincia de seu intrprete.
Esperamos contribuir assim para o estudo dos cnones da
Li teratura Brasileira, que ainda precisam ser lapidados, como
veremos ao longo desta pesquisa, que visa apresentar, no a
total idade da produo do autor, por ser ampla, mas uma
amostragem da originalidade da escri ta e da potica dele,
expressas e publ icadas por um perodo de quinze anos nas
pginas dos mais variados meios de comunicao; e que hoje,
mais de um sculo da data de produo, so o nosso foco de
estudos, por sua plural idade temtica, abrangendo vrios
gneros: o histrico, o l i terrio e o jornal stico.
Observaremos o discurso das crnicas de Pompia, a f im
de v-lo como reflexo do meio social em que esteve inserido,
consti tuindo a realidade de seu tempo, mostrando sua opinio
sobre os acontecimentos pessoais e contemporneos. Ele
apresentou toda uma ideologia das classes sociais de ento,
presente no contexto da produo, que i lustrou os fatos e as
notcias do cotidiano, alm de focar os principais
acontecimentos do Brasi l .
O conhecimento e a interpretao das crnicas
jornal sticas de Raul Pompia traaram um plano coincidente,
portanto, tentaram, anal isar simultaneamente o ponto de
aplicao li terria, em que importou mais como o escritor d isse
(a particularidade da escri ta) a um ponto de apl icao
jornal stica, onde o fator principal foi o que o jornal ista d isse (a
notcia, a sua funo referencial na clssica definio de Roman
Jakobson).
O autor representou os ideais de sua poca, um retrato
histrico do estilo de vida e da l i teratura do pas, cujos autores
lutaram com palavras, sentimentos e posicionamentos i rnicos
para combater as desigualdades em um momento de
-
3
transformao pol t ica, religiosa e econmica que configuraria
em um Brasi l menos aptico, mais at ivo nas revolues scio-
cul turais internas.
Ele contraps alguns requisi tos convencionais do formato
da crnica, j que esta geralmente possua uma l inguagem mais
leve, clara e de fcil entendimento ao lei tor. Os textos do autor
eram mais densos e em algumas ocasies, extensos, com um
vocabulrio r ico, uma crt ica velada ao academicismo, como
checaremos em Glr ia Latente. Nela ele revelou uma
maturidade esttica como autor.
Anotem-se, ainda, a presena da base da potica da
cul tura clssica, muita lei tura e experincias pessoais adquir idas
nos mais variados acontecimentos que particularizaram o final
do sculo, principalmente na crnica Cu e Inferno,
focal izando os aspectos pol t icos e os jogos de interesse de um
perodo de transio e construo de uma nova real idade para o
crescimento e desenvolvimento intelectual do Brasil , a
conturbada passagem do Imprio para a Repbl ica.
A crt ica desmedida, faci lmente poderia lhe dar o apelido
de boca do inferno do sculo XIX. Esta esteve sempre presente
em suas l inhas. Um exemplo disso pode ser visto na crnica
Imprensa e Suicd io, onde apresentou sua opinio sobre o
jornal ismo sensacional ista em vigor na poca, com ci taes em
latim, um amplo domnio do pensamento medieval ,
demonstrando uma plural idade cul tural e sua posio pessoal
sobre o tema desenvolvido.
Outro aspecto, talvez a caracterstica mais evidente do
autor, se apresentou no relacionamento e na plasticidade de sua
produo li terria. O cromatismo e o impressionismo
configuraram as l inhas de O Carnaval no Recife, um misto de
recursos lingsticos aplicados com perfeio, e a sensibil idade
-
4
exposta em um jogo de smbolos, imagens e cores, revelando a
sua apreciao da cul tura popular do povo brasi leiro.
Nos textos de Raul Pompia os lei tores encontraram
relaes confl i tuosas relacionadas subjetividade e i ronia. A
subjetividade deveria ser interpretada de acordo com o contexto
cul tural do receptor; j a i ronia formou a configurao,
permitindo ao lei tor identi ficar a relao entre os signos que
surgiram no decorrer da lei tura. Essa configurao fragmentou-
se numa multiplicidade de associaes imaginrias, nem sempre
esgotveis, servindo de pano de fundo da i ronia
problematizada, agindo sobre o jogo individual criado pela
imaginao, visando identi ficar as correlaes entre os signos e
fazendo aparecer o ato de compreenso como um encadeamento
de reaes indispensveis ao entendimento.
Conseqentemente, compreenderemos a escri ta do autor,
num paralelo de antecipao estil stica, como muito simi lar aos
ideais modernos de transgresso l i terria e formal, de inegvel
autenticidade, na busca de uma nova criao esttica, ao inserir
di ferentes tendncias que configuraram um processo de
crescimento profissional inigualvel ao longo de seus quinze
anos de atividade na imprensa.
A crnica do sculo XIX, os romances, os contos, os
poemas em prosa, apresentados por ele, se encontram em uma
coletnea de 10 exemplares das obras completas, organizada
por Afrnio Coutinho2, antologia de sua produo l i terria,
localizada nos volumes VI,VII,VIII e IX, bem como os cotidianos
folhetinescos produzidos ao longo de sua carreira.
Por ser extenso o nmero de crnicas apesar do curto
perodo de produo do autor, para esta anl ise, faremos um
recorte e selecionaremos o volume VII (Crnicas 02), como
2 Afrnio Coutinho, Obras / Raul Pompia: organizao e notas de Afrnio Coutinho e assistncia tcnica de Eduardo de faria Coutinho, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, Oficina Literria Afrnio Coutinho, FENAME, 1981-1983.
-
5
nosso corpus, por ter sido o primeiro exemplar da coleo a que
tivemos acesso e dele ter surgido esta proposta de pesquisa.
Nessa produo encontram-se 300 textos publ icados nos
seguintes meios de comunicao: Revista I lustrada, Dir io de
Minas, O Farol, O Estado de So Paulo, Jornal do
Comrcio, Gazeta de Notc ias e Gazeta da Tarde, durante o
perodo de 24 de abril de 1880 at 03 de outubro de 1894, cujos
originais podem ser encontrados no acervo da Bibl ioteca
Nacional, no CEDAP3 e no CEAC4. Deste modo enxugaremos e
delimitaremos o corpus em um perodo de grande signi ficao
para a histria pol tica, social , jornalstica, artstica e l i terria
brasileira.
Atravs de um perfi l de modernizao, a crnica
enriqueceu as pginas dos noticirios com o espri to da
inteligncia e da expresso dos escri tores. No Brasil , nesta
modal idade textual nomes da nossa li teratura revelaram-se,
como Machado de Assis em A Semana publ icada na Gazeta
Mercanti l , Jos de Alencar, na seco Ao correr da pena, do
Correio Mercanti l , Olavo Bilac, na seo Vida Fluminense, no
Combate e vrios outros autores do sculo XIX.
Para alguns estudiosos, como S (1999)5, MEYER (1996)6
CNDIDO (1992)7 e MELO (1987)8, esse formato, com todas as
suas particularidades, despertou interesse. Porm, por muito
tempo foi classi ficado como um gnero de carter menor,
pejorativamente recebendo a denominao de - ao rsdo-cho .
O foco de discusso desta pesquisa acadmica nos levar
aos seguintes questionamentos: Quando um texto deixa de ser
3 CEDAP Centro de Documentao e Apoio Pesquisa, UNESP Assis/SP. 4 CEAC Centro de Estudos Afrnio Coutinho, localizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, que mantm um espao reservado para os documentos coletados pelo pesquisador. 5 Jorge de S, A Crnica, So Paulo, Editora tica, 1999. 6 Marlyse Meyer, Folhetim: uma histria, So Paulo, Companhia das Letras, 1996. 7 Antnio Cndido et al, A vida ao rs-do-cho, in A Crnica: o gnero, sua fixao e suas transformaes no Brasil, Rio de Janeiro, Fundao Casa de Rui Barbosa, 1992, pp.13-22. 8 Jos Marques de Melo, A crnica, in Jornalismo e Literatura, Actas do II Encontro Luso-Afro-Brasileiro, Lisboa, Ed. Vega, 1987.
-
6
objeto da imprensa, sintonizado no real imediato, e passa
condio de arte atemporal? O que di fere uma atividade da
outra? Como eram tratadas as notcias veiculadas nos folhetins?
Por qu? O que di fere Raul Pompia dos outros autores da
poca, como Olavo Bi lac e Machado de Assis? O que h em
seus escri tos que apontam uma nova esttica denunciadora da
si tuao pol tica, do cotidiano? A crt ica? A i ronia? A linguagem?
O formato? Qual a sua contribuio para a crnica histrica /
jornal stica / l i terria da poca?
Estudaremos na crnica, fazendo a relao entre os textos
histricos, jornal sticos e l i terrios, propondo um entrelaamento
entre eles, em um processo transdisciplinar, apresentando uma
tr ipla face bastante suscetvel de aperfeioar a concepo de
gnero em uma estrutura pr-determinada por cada modal idade.
Veremos que as di ferentes possibi l idades de lei tura da
representao do passado confundiram-se, pois reconsti turam
os acontecimentos histricos no contexto da imprensa do sculo
XIX. Essas crnicas apresentaram impl icaes mais amplas do
que apenas a evocao da realidade ou mesmo do que a sua
esttica, mas tambm envolveram questes ticas, ideolgicas,
valorativas ou mesmo as l imitaes impostas ao cronista, por
questes pessoais ou tcnicas.
Os tericos facil i taro o entendimento do contedo
jornal stico, histrico e l i terrio do autor, formador de um jogo de
palavras e idias, possibi l i tando visualizar a fora i rnica
contida em sua retrica, alm de podermos observar a
legibil idade e a visibi l idade nas crnicas caricaturais criadas
para ci tar pessoas e si tuaes, muitas vezes formando um vis
de conceitos e crt icas sociais coerentes com o perodo
abordado, mas sempre com parmetros de construo bem mais
avanados do que os da esttica que era sua contempornea.
-
7
Citamos ISER (1979)9 ao apresentar seus conceitos sobre
o efei to do texto no lei tor, trazendo um exemplo da mobi lidade
do ponto de vista da lei tura, fator de suma importncia anlise
do texto jornal stico, pois este di feriu do ficcional ,
principalmente na abordagem dada pelo autor:
[ . . . ] o prprio do texto l i terrio concentrar-se nos vazios comuns a todas as relaes humanas, explor-los, torn-los sistemticos. Diante do texto f iccional, o leitor forosamente convidado a se comportar como um estrangeiro, que a todo instante se pergunta se a formao de sentido que est fazendo adequada leitura que est cumprindo. Pois s mediante esta condio, a assimetria entre o texto e leitor poder dar lugar ao campo comum de uma situao comunicacional.
A teoria iseriana mostra ser na memria que o lei tor
encontrou liberdade suficiente para harmonizar a multiplicidade
desordenada da vida cotidiana, dando-lhe uma coerncia formal
do fato, possibil i tando, talvez, a nica maneira de reter os
sentimentos das experincias vividas.
Nesse fundamento terico veri ficaremos a crnica como
gnero histrico, vista pela crt ica em geral , assim como pela
crt ica l i terria em particular, baseada na questo da recepo,
da esttica, do ponto de vista do lei tor - diacrnico e sincrnico
propostos pelo terico dentro dos horizontes de expectativas
de cada momento mencionado.
Na concepo iseriana, senti r o texto um acontecimento
correlacionado ao conhecimento e sensibil idade de quem l. A
forma de expresso articulou no lei tor pompeiano um processo
de realizao que se desenvolveu em sua mente, surgindo a
certas ambigidades, estimulando a formao de obras opostas,
9 Wolfgang Iser, O ato da leitura: uma teoria do efeito esttico, Trad. Johanes Kretcmer, So Paulo, Editora 34, 1996, pg. 24.
-
8
construindo uma configurao compensatria e desfazendo as
di f iculdades encontradas no decorrer da lei tura.
Por isso, para o estudioso, essas relaes estabeleceram
um processo de desenvolvimento da compreenso que no pde
ser desfei to, pois signi ficou o envolvimento do lei tor com a obra.
Esse fez o texto estar presente no ser e colocou o ser presente
no texto. Consti tuiu um momento decisivo da lei tura, onde
numerosos fenmenos ocorreram simultaneamente,
desempenhando importantes funes no ato de compreenso da
crnica e de seu signi f icado.
Ento, segundo a teoria iseriana, medida que leu as
crnicas de Raul Pompia, surgiu uma interao entre o
pensamento do lei tor e suas experincias passadas, medida
que essa interao colocou em jogo dois processos sol idrios: a
desordem do status da experincia antiga e a formao de uma
nova experincia, se observou a compreenso do texto, vista
no como um processo pacfico de acei tao, mas sim como a
resposta produtiva a uma si tuao vivida. Era a soma das
experincias e idias diretivas do lei tor.
Com a teoria de JAUSS10, nos inteiraremos da funo de
lei tores, ou seja, pessoas preparadas para a lei tura e a anlise
crt ica da produo li terria, dialogando com o efei to da
recepo encontrada na mesma. Procuraremos saber o que os
textos de Pompia provocaram, e ainda provocam (por sua
atual izao), de acordo com a capacidade de cada um em ler,
interpretar e compreender a mensagem, resul tando em mltiplas
vises sobre o mesmo texto, bem como entender as motivaes
que levaram uma determinada obra a ser produzida sob certo
enfoque, a f im de encontrar coerncia com o acontecido, para
perceber os sentidos dos mecanismos al i presentes.
10 Hans Robert Jauss, Pour Une Esthtique de la rception, Traduit de lAllemand par Claude Mailiard, Paris, Gallimard, 1994.
-
9
Assim sendo, visaremos no apenas a representao das
crnicas em si e seu signi ficado histrico, mas sim o contexto
em que elas foram produzidas. O nosso interesse encontra-se na
grandiosidade da obra em seus diversos momentos. No entanto,
seria pretensioso imaginarmos a possibil idade de se fazer uma
anlise total (mesmo que isso fosse possvel) na abrangncia
que se prope esta tese.
Portanto faremos anl ise de algumas crnicas, atravs de
amostragem, pr-selecionadas, focal izando as idias e
posicionamentos do autor a respeito de seu mundo, como um
objeto de denncia de problemas da vida contempornea.
Levantando os dados jornal sticos contextuais da produo
de Raul Pompia atravs de pesquisa na imprensa peridica da
poca, teceremos o texto com uma anl ise descri t iva /
argumentativa, aps termos em mos uma parte do acervo das
publicaes em peridicos, e meios onde foram publ icados;
aval iaremos a comunicao dos textos, atravs do
posicionamento terico sugerido por GENETTE11, da concepo
de peri textos, observando aspectos do projeto grfico da
publicao e da tecnologia oi tocentista, in loco , do texto
pompeiano no jornal O Estado de So Paulo12, com o auxl io
terico de COLLARO13 (1996); conjuntamente s crnicas -
co.textos (a produo histrica, jornal stica e l i terria),
conhecendo o universo do veculo de comunicao - contexto (o
momento pol t ico, social e econmico).
Em face disso, o primeiro captulo visar compreenso
do olhar do lei tor sobre o momento vivido pelo escri tor Raul
Pompia, a imprensa vigente e a arte da escri ta desenvolvida
nos folhetins, caracterizados como veculos informativos e
11 Gerard Gennette, Palimpsestes, Paris, Editions du Seuil, 1982. 12 Estas edies so uma excees, pois no se encontram no volume citado, mas em posse do material to rico e concreto, e devido raridade de encontrarmos as publicaes originais, as utilizamos na pesquisa. 13 Antonio Celso Collaro, Projeto grfico: teoria e prtica da diagramao, So Paulo, Summus, 1996.
-
10
cul turais de uma poca muito importante para a formao e
consol idao da Li teratura Brasileira, o sculo XIX.
Tal anlise impl icar nas relaes autor / obra / lei tor,
revelando o universo de Pompia. Procederemos pesquisa do
meio contextual , observando as ideologias e as caractersticas
brasileiras vigentes, onde se esboam as relaes intelectuais
entre o escri tor e a sociedade.
Por ser a anlise inicial , o enfoque scio-histrico
observar as formas simbl icas transmitidas e recebidas em
momentos e condies especficas, dentro do processo de
produo, circulao e recepo das crnicas.
Dando seqncia, veri ficaremos a recepo do lei tor ante
esses textos e sua pluralidade de gneros - o sentido do
histrico, do li terrio e do jornal stico, e a conjuno entre eles
(ato transdisciplinar), atravs do aparato terico apoiado na
esttica da recepo, segundo ISER14 e JAUSS15 .
Discuti remos ainda, a problemtica da esttica e da crt ica
artstica dentro de um determinado perodo, observando e
expondo o contexto como uma relao em comum, de onde
surgiram as produes l i terrias, suas estruturas, seus
signi ficados e o seu papel social .
No segundo captulo, relataremos o minucioso trabalho de
pesquisa e a dedicao, ao longo de 20 anos, do mestre Afrnio
Coutinho na coleta de documentos, publ icaes e materiais,
resul tando na coleo Obras Raul Pompia , por ser nico e
raro levantamento de toda a produo do autor.
Para exempl i f icar a temtica ecltica, as personal idades
ci tadas, perodos histricos e particularidades da escri ta,
catalogaremos uma seo do autor, publ icada na Revista
I lustrada, no ano de 1880, que consta no volume anal isado, com
14 Wolfgang Iser,ob. citada, 1996. 15 Hans Robert Jauss, ob. citada, 1994.
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11
enfoque especfico para este trabalho acadmico, de suma
importncia em todos os mbitos analt icos.
Apresentaremos recortes da produo original para
analisarmos os veculos de comunicao onde foram publ icados
os textos, como fontes de pesquisas documentais. Efetuaremos
tambm o ndice onomstico de todas as crnicas nele
publicadas16, para determinarmos as personalidades presentes
na obra, alm de possibi l i tarmos eventuais estudos e pesquisas.
No captulo posterior, o terceiro, conheceremos Raul
Pompia, mostraremos o elo entre o autor e sua escri ta,
resul tando em sua personal idade mpar, revelada em sua
extensa produo cul tural e nas particularidades de seu estilo
inovador. Desse modo, vol taremos ao nosso objetivo nesta
pesquisa, s anl ises da potica expressa nas narrativas
cotidianas do autor.
A inteno si tu-los como informativos / f iccionais
caractersticos do sculo XIX, tendo como foco o modelo l i terrio
da poca, configurado em folhetins, com o auxl io de LIMA 17
(2003), MELO18 (1987) e VIVALDI19 (1979) teremos a
possibil idade de veri ficar a t ipologia dos escri tos, para
classi fic-los como histricos / noticiosos ou histricos /
l i terrios, os relacionando com os de outros escri tores
contemporneos.
Mas afinal , por que i r s crnicas de Raul Pompia? Por
que l-las? O que buscar no trabalho de Afrnio Coutinho? Ser
que essas indagaes, se resolvidas mostraro a importncia de
Raul Pompia cronista?
16 Esta pesquisa encontra-se na tese, sendo organizada pela prpria doutoranda durante o perodo de estudos. 17 Alceu Amoroso Lima, O jornalismo como gnero literrio, So Paulo, Editora da Universidade de So Paulo, 2003. 18 Jos Marques de Melo, ob. citada, 1987. 19 Gonzalo Martin Vivaldi, Gneros periodsticos, 2 ed., Madrid, Paraninfo, 1979.
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Esperamos no desenvolvimento desta pesquisa chegar a
essas respostas, alm de criarmos um vnculo entre
pesquisador, lei tor e autor, para que todos entrem em sintonia
com to interessante trabalho.
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CAPTULO I
Vais encontrar o mundo.. .
20
(Raul Pompia)
1 TECENDO UM OLHAR SOBRE O SCULO XIX
Este captulo da pesquisa tem como objetivo consti tuir a
contextual izao temporal , de outro a sua presena na obra,
observando os fatores que influenciaram o ento ainda novo
gnero a crnica jornal stica. Esses pontos de referncia
trazem ngulos sociolgicos, psicolgicos, ideolgicos,
religiosos, l ingsticos e outros que agiram como um espelho e
influram na viso de Raul Pompia e nas l inhas das
publicaes, traando uma funo paralel stica entre a estrutura
l i terria e a histria oi tocentista, conforme expe
CNDIDO21(2006):
[ . . . ] a primeira tarefa investigar as inf luncias concretas exercidas pelos fatores socioculturais. dif ci l d iscrimin-los, na sua quantidade e variedade, mas pode-se dizer que os mais decisivos se l igam estrutura social, aos valores e ideologias, s tcnicas de comunicao. O grau e a maneira por que inf luem estes trs grupos de fatores variam conforme o aspecto considerado no processo artst ico. Assim, os primeiros se manifestam mais visivelmente na definio da posio social do art ista, ou na configurao de grupos receptores; os segundos, na forma e contedo da obra; os terceiros, na sua fatura e transmisso. Eles marcam, em todo caso, os quatro momentos de produo, pois, a) o art ista, sob o impulso de uma necessidade interior, orienta-o segundo os padres da sua poca, b) escolhe certos temas, c) usa certas formas e d) a sntese resultante age sobre o meio.
20 Raul Pompia, O Ateneu, Gazeta de Notcias, Rio de Janeiro, 1880. 21Antonio Cndido, Literatura e Sociedade, Rio de Janeiro, Ouro sobre azul, 2006, pg. 31.
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14
Ao longo da carreira jornal stica / l i terria do autor
percebemos o carter de denncia, de meditao e comentrios
dos acontecimentos pol t icos. Sua produo resgatou episdios
e automaticamente expressou os fei tos, os cenrios e
personagens observados pelo prprio cronista como testemunha
ocular, numa perspectiva pessoal de expor o seu tempo, para
ser l ido e anal isado pelos contemporneos e pela posteridade
como um produto social .
Independente do momento de vida do autor, convm
analisarmos o conjunto de informaes disponveis, das fontes
para atualizao do fazer histrico, como especi fica
HOBSBAWM22(1998):
[ . . . ] O passado uma dimenso da conscincia humana, um componente inevitvel das inst ituies, valores e outros padres da sociedade humana. O importante analisar a natureza desse sentido do passado na sociedade e localizar suas mudanas e transformaes.
Assim sendo as duas l timas dcadas do sculo XIX
consti turam um marco na histria brasileira, por encerrar um
perodo de intensas contradies e mudanas, revelando um
momento conturbado, principalmente na Corte, com a
urbanizao, a escravido, a abolio, a crise do sistema
imperial , a formao de novos partidos pol ticos, o movimento
republicano e o princpio do novo regime, dividindo as opinies
da populao entre poder estar nas mos de um presidente civi l
ou mi l i tar. Todos estes pontos fazem parte do processo de
modernizao pelo qual o pas passou em meio s redes de
poder e configuraes partidrias.
Os reflexos dos acontecimentos acima ci tados atr iburam
aspectos importantes para a compreenso dos textos publ icados
22 Eric Hobsbawm, Sobre a Histria, So Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg. 22.
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15
na imprensa desse perodo, pois esta pode ser considerada um
cone da modernidade, vista como ferramenta decisiva para
romper o provincianismo, instalar o debate pbl ico, o desejo de
mudanas, de progresso e as rupturas l igadas a horizontes
tericos e ideolgicos consti tudos no Brasi l .
A imprensa e seus profissionais estavam evoluindo, em
termos de participao e influncia. Cada vez mais forte e
ousada, ela comeava a ganhar um novo formato e a ser porta-
voz da sociedade, refletindo as contradies sociais e pol ticas.
O enfoque e o tratamento dado s produes textuais
correspondiam ao entendimento e s concepes que a
sociedade configurava do presente imediato ou mesmo dos
indivduos, sobre quem a histria era escri ta, do meio cul tural
em que fruam as idias e pensamentos contemporneos, como
veremos nos contextos apresentados.
1.1 Um perodo marcante na histria brasileira: o contexto de Raul Pompia
Nos tempos de Raul Pompia o Brasi l passou por um
verdadeiro momento de turbulncia social . Em seu curto perodo
de vida, desde o nascimento em 1863, at a morte em 1895, o
pas foi marcado pelas importantes transformaes econmicas
e sociais do apogeu e fim do Segundo Reinado. Sua gerao
viveu uma revoluo do mundo material , repercutindo em
transformaes no mundo das idias.
Na dcada de 60, as fazendas de cana-de-acar davam
sinais de decadncia; o fim do trfico negreiro e a campanha
abolicionista criaram di f iculdades de mo de obra. Os cafezais
do Rio de Janeiro alongaram-se em direo ao planalto; e se
expandiram s terras paul istas e mineiras. Nesse perodo a
-
16
cul tura cafeeira passou a monopolizar as exportaes
brasileiras.
Confl i tos entre a Igreja Catl ica e a maonaria geraram a
chamada questo rel igiosa, em 1872, fazendo com que o
Imperador D. Pedro II perdesse um de seus pontos de
sustentao. Em meados de 1880, o s istema imperial entrou em
decl nio, minado por si tuaes que agi tavam os mais diversos
seguimentos da sociedade brasileira.
Outro aspecto agravante consti tuiu-se em problemas
mi l i tares, com o fim da Guerra do Paraguai, quando os
combatentes reivindicaram uma maior participao na vida
pol t ica brasileira e o regime republ icano descortinava-se como
cenrio ideal para essa participao.
Havia tambm a amargura dos infindveis trs sculos sob
os grilhes do regime escravista, consol idado no perodo
colonial e mantido depois da independncia. Possuir escravos
no signi f icava apenas ter braos para trabalhar na lavoura
cafeeira, mas sim um investimento financeiro al tamente lucrativo
para muitos fazendeiros. Este modelo de explorao da mo-de-
obra comeou a se consti tuir como um obstculo s idias de
progresso e civil izao que circulavam pelo pas na dcada de
1880.
Sob a orientao de Lus Gama e Antnio Bento, muitos
abolicionistas, entre eles Raul Pompia23, atuaram febri lmente
no incentivo fuga e contra o aoi tamento de escravos fugidos
das fazendas.
A abol io da escravatura no Brasi l , alm de ser produto
de um movimento social , se mostrou resul tado da ao de
homens de imprensa, que se engajaram na campanha,
23 Geralmente, quando o tema do abolicionismo vem tona, muitos nomes so citados, Raul Pompia, embora desconhecido atualmente pela histria escravocrata, participou ativamente ao lado de Lus Gama e seus seguidores, tanto na defesa intelectual, como na ajuda para a concretizao de fugas de escravos que sofriam abusos excessivos de seus donos, os encaminhando para o norte, onde primeiro a abolio foi declarada, no Cear e no Par.
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17
contribuindo para acelerar o processo de mudanas, rompendo
os paradigmas do conservadorismo, articulando o movimento
abolicionista, resul tando em uma vasta mobi l izao popular com
os intelectuais, as entidades antiescravistas, parlamentares e
grupos sociais que no dependiam diretamente do servio
escravo.
A administrao governamental era composta pelos
empregados pbl icos e a eli te pol t ica e intelectual . Os
sucessivos ministrios refletiam a si tuao de um pas onde, o
governo e a consti tuio eram compatveis com os parmetros
da ol igarquia rural e do trabalho escravo. Em virtude dos
desmandos e abusos de poder, as pautas extrapolavam os
espaos dos jornais e ganhavam discusso do Parlamento.
Contra esse pbl ico e o sistema de idias direcionadas aos
objetivos pol t icos deles, Pompia protestou, voci ferou, como na
seguinte crnica, o que documenta o seu envolvimento
contextual :
O projeto Pinhal, para honra da provncia de So Paulo, cair na Assemblia Provincial. o que consta imprensa.
Cair de ventas, arrastando consigo as pretenses dos dous nicos l iberais que, dizem, tero a audcia de votar por ele, o autor e um clebre Joo Silveira, Deputado do Parlamento pela bossorocas de Casa Branca..
Para que no adiantemos com muito entusiasmo os nossos aplausos oferecidos Provncia de So Paulo, chega-nos de Limeira, pelo Dirio Popular, a notcia de uma grande feira de carne humana naquela cidade. A examinar a mercadoria, havia at republicanos!
Desejaramos estar presentes tal feira, para ver que cara tem esta espcie de gente que embrulha na mesma confuso de idias a opinio republicana e o faro de mercador de escravos.
Enquanto na provncia das estradas de ferro e da iniciat iva part icular, no se houver acabado com esta vergonha dos mercados de carne humana, freqentados, para cmulo de ironia, por indivduos que se anunciam republicanos, enquanto o l iberalismo do Senhor de Pinhal t iver a coragem de fazer escndalos como o da lt ima
-
18
tentat iva, no h subveno provincial a companhias lr icas que consigam demosntrar em contrrio da m recomendao que valem tais misrias grande provncia.24
Em 13 de maio de 1888, o Imprio cedeu s manifestaes
l ibertrias e eliminou o escravismo. Comeava a a preocupao
com a construo de uma nova nao, com a reforma agrria e a
reintegrao dos ex-cativos sociedade.
Na dcada de 90, o pas vol tou-se para outro momento, os
confl i tos contra o trono e a luta pela Repbl ica. Ganho a causa,
republicanos dividiam-se entre a sucesso mi l i tar do Marechal
Floriano Peixoto, optando por um posicionamento mais rgido
devido fragil idade e insegurana do momento, e uma possvel
candidatura da autoridade civil . A sociedade viu-se em meio a
discusses e intrigas, que s se findaram aps o luto dos
florianistas, e a possibil idade de posse do primeiro presidente
civil brasi leiro, Prudente de Morais.
1.2 A imprensa efervescente de seu tempo
A imprensa escri ta contempornea a Raul Pompia,
associada desde o sculo XVIII na Europa com o surgimento da
opinio pblica, teve seu prestgio social afi rmado, ao
universalizar um novo modo de pensamento, valorizando a
presena da razo, da cincia e da tecnologia.
Aps a expanso do capital ismo, a unio entre as
di ferentes possibi l idades de ao e os meios de divulgao
permitiu o desenvolvimento da cul tura, apresentando outras
formas de relacionamento social com a sociedade, trazendo
cena pol tica a divulgao e o crescimento dos meios de
comunicao, agindo na di fuso de cultura e pol tica.
24 Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 2 abr. 1886, in Afrnio Coutinho, ob.citada, vol. VII, pg. 81.
-
19
Desde o incio a imprensa desempenhou papel fundamental
em todos os pases do ocidente ao longo dos sculos XVIII, XIX
e XX. Sem ela, nenhum desses seria o que de fato . Cada povo,
assim como cada pas, se tornou tambm o fruto de um longo
processo de sucessivas acul turaes de mudanas dramticas
no campo das comunicaes.
As pessoas passaram a ter a necessidade de se informar
ou de se inserirem no contexto social , consol idando uma forma
inovadora de di fundir a realidade, fazendo do lei tor, no o
sujei to dessa verdadeira nova indstria, mas sim seu objeto de
ao, com o aumento da informao e a divulgao de fatos do
cotidiano, paradoxalmente imortal izados pela efemeridade do
jornal impresso.
Foram assimi lando idias, princpios, sentimentos, criando
uma cul tura de transmisso e aperfeioamento dos
conhecimentos, alm da capacidade de intervir no destino
coletivo, fortalecendo uma relao entre obra, autor e lei tor,
como expl ica CNDIDO25 (2006):
[ . . . ] uma trade indissolvel. O pblico d sentido e a realidade obra e sem ele o autor no se realiza, pois ele de certo modo o espelho que ref lete a sua imagem enquanto criador [ . . . ].
A imagem social da imprensa, sempre esteve associada ao
seu poder de influenciar a sociedade, possibil i tando a parti lha
dos valores mais comuns, e tambm as di ferenas no papel
social da sua capacidade de moldar mentes, criar relaes e s
vezes gerar polmicas.
A Histria da Imprensa Brasi leira, retratada por SODR26
(1999) e MELO27 (2003), relata o incio tardio dessa em nossas
25 Antonio Cndido, ob. citada, 2006, pg. 48. 26 Nelson W. Sodr, Histria da imprensa no Brasil, So Paulo, Martins Fontes, 1999. 27 Jos Marques de Melo, Histria Social da Imprensa: fatores socioculturais que retardaram a implantao da imprensa no Brasil, Porto Alegre, EDIPUCRS, 2003.
-
20
terras, como conseqncia da condio colonial , o desinteresse
de Portugal em trazer o desenvolvimento cul tural para o futuro
pas, alm do controle das idias dos lei tores.
Com um pbl ico lei tor restri to, mesmo depois da vinda da
faml ia real e da independncia boa parte da populao vivia em
reas rurais e t inha pouco acesso aos jornais. As matrias
chegavam atravs de uma lei tura oral e coletiva nas praas ou
em outros locais de social izao, caracterizando a real idade de
um pas em que boa parte da populao era formada por
escravos. Como o analfabetismo chegava a extremos, por isso a
oralidade exercia a importante funo de comunicao, seno a
principal .
Como conseqncia, apesar das tentativas de implantao,
os jornais surgiam e desapareciam com faci l idade. A estrutura
deles muitas vezes resumia-se a um tablide de folha nica, com
impresso na frente e no verso. Alguns circularam poucas vezes
e tiveram fama temporria.
Os primeiros passos da imprensa em terri trio brasileiro
foram concomitantes com a instalao do Liceu de Artes, da
Academia da Marinha e a Biblioteca Real, quando ento Dom
Joo VI fez circular o primeiro jornal na Corte, produzido pela
Tipografia Real, A Gazeta do Rio de Janeiro. Em 1808 ele saa
duas vezes por semana. Em julho de 1821, passou a sair trs
vezes; teve seu nome al terado, para Gazeta do Rio, tornando-
se, j em 1824, Dir io do Governo e, posteriormente, Dir io
Fluminense. Sete anos depois, tornou-se Correio Of ic ia l e,
mais tarde Gazeta Of ic ial do Imprio do Brasil e Dir io
Ofic ial, aps a proclamao da Repbl ica do Brasi l .
Com a evoluo tecnolgica dos meios de transporte, de
comunicao e dos avanos industriais; em especial , dos
processos de impresso, a parti r de meados do sculo XIX,
-
21
houve o crescimento do volume e consequentemente da
importncia da imprensa nacional.
Nos primeiros jornais, que circularam no pas, havia total
predominncia de noticirios, conduzindo a pol t ica no Imprio
destacando a vida na Corte, as celebraes palacianas, a
l i teratura, as artes e amenidades, j que a censura oficial era
notria.
Pouco a pouco, a imprensa ampl iou a abrangncia das
notcias. Ela representava tambm o nico meio para as notas
oficiais chegarem ao conhecimento de todos. Das pginas dos
jornais surgiu um prisma que ref letia mais e melhor a
complexidade do universo social : informaes mart imas, sadas
dos correios, vendas de l ivros e peridicos, mapas, vendas de
escravos e leiles etc.
Com a proclamao da maioridade de D. Pedro II, em
1840, se iniciou o Segundo Reinado. Neste momento o Rio de
Janeiro contava com 226 mi l habi tantes.
Os jornais acompanhavam o desenvolvimento, a expresso
dos lei tores ganhou as pginas do impresso, os peridicos e
revistas incluam artigos li terrios e acadmicos devido
influncia de escri tores como Machado de Assis, Quintino
Bocaiva, Joaquim Nabuco, Joaquim Manuel de Macedo e
Bernardo Guimares.
Surgiu pela primeira vez a gravura, quase toda base de
desenhos e traos satr icos, como a caricatura, dando impulso
crt ica pol tica e social . Nasceram, logo aps, os artigos de
fundo, onde se misturavam comentrios, edi toriais, com
l i teratura e notas variadas. O maior exemplo dessa nova fase, A
Provncia, edi tado em So Paulo (1875), se transformou, mais
tarde, no jornal O Estado de So Paulo.
As tcnicas de impresso modernizaram-se, favorecendo a
produo em maior escala. A di fuso cada vez maior do jornal
-
22
como meio de comunicao social , o aumento do nmero de
pessoas al fabetizadas e a consolidao da classe burguesa
propiciaram a formao de um grande e novo pblico, que
passou a buscar na imprensa a representao de si tuaes com
as quais pudesse identi ficar-se ou lhe fossem famil iares. A
Gazeta de Notc ias tornou-se um dos grandes jornais da Corte,
seu contedo vol tava-se para a el ite intelectual do pas (a
advocacia, a medicina, o sacerdcio).
Aos poucos a imprensa se modernizou ainda mais, isso
veio acabar com os pequenos pasquins edi tados com apenas
quatro pginas. Os pequenos jornais foram desaparecendo,
cedendo lugar a outros rgos, que util izavam tcnicas que
vinham de fora: O Dir io de Notc ias, Gazeta da Tarde, O
Paiz, A Repbl ica, Jornal do Brasil, Tribuna Liberal, A
Revista, O Malho, Fon-Fon, Careta, Correio da Manh, O
Correio do Povo e A Gazeta. Isto consti tua uma real idade
contradi tria, nem sempre vista com bons olhos, para o
desenvolvimento cul tural do pas, como relata Raul Pompia em
uma de suas crnicas:
Dos quatro jornais que prenunciei sbado
passado, j dois saram e um a Notcia morreu. E Notcia, ela viveu. O que vivem as notcias! o espao de um dia, coitada! Ficou porm ao
Combate que promete viver a vida feliz dos combatentes afeitos luta.
No Combate escreve, alm de muitos outros, Artur de Oliveira, uma verdadeira organizao l i terria.. . ou uma desorganizao se querem; mas veemente, sincera, robusta e fortalecida por longa camaradagem com a boa l i teratura. Natureza ardente, imaginao rdega, uma onomatopia ascendendo as espirais do entusiasmo para ir viver dans ces mondes de l ideial e ages heroiques ou saimaint dieux et deesses, desirant ou premier regard, jouissant au premier desir28, mas entusiasma-se pelo que bom e j nos deu um bom folhetim
Felizmente! os bons folhetins vo sendo raros.. .29 28 Grifo nosso. 29 Afrnio Coutinho, ob.citada, vol. VII, pg. 16.
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23
Outras modal idades de comunicao surgiram com o
passar dos tempos; na fase logo anterior proclamao da
Repbl ica marcou o nascimento das sentinelas, apareceram
vrios jornais com o mesmo t tulo, todos originrios de
Sent inela da Liberdade na Guar ita de Pernambuco, fundado
por Cipriano Barata.
O jornal passou a ser um meio de debate mais do que de
notcia, parti lhando com o lei tor alm da cobertura do dia-a-dia,
trazendo os acontecimentos de acordo com os pontos de vista
dos autores, que ao escreverem suas crnicas pressupunham
um lei tor informado, conhecedor das notcias da semana nos
informativos e apreciador dos comentaristas.
Com a modernizao, o Brasi l tambm recebeu influncias
e alguns atrativos de sucesso na Frana, como o feui l leton,
que chegou at aqui e foi moldado para a nossa real idade.
Chamado de folhetim, suas pginas continham novelas,
conversas e amenidades divulgadas nos rodaps das pginas
dos jornais, como expl ica MEYER30 (1992):
De incio comeos do sculo XIX le feuil leton designa um lugar preciso do jornal: o rez-de chausse r-do-cho, rodap, geralmente da primeira pgina. Tem uma f inalidade precisa: o espao vazio destinado ao entreteniment. E j se pode dizer que tudo o que haver de constituir a matria e o modo da crnica brasileira j , desde a origem, a vocao primeira desse espao geogrf ico do jornal, deliberadamente frvolo, que oferecido como chamariz aos leitores afugentados pela modorra cinza que obrigada a forte censura napolenica.31
O processo de acul turao e recebimento de influncia
estrangeira mexeu consideravelmente com os escri tores, pois
viram a imprensa como espao de manifestao e abertura
30 Marlyse Meyer, ob.citada, pg. 96. 31 Grifo nosso.
-
24
l i terria. Muitos autores comearam a escrever regularmente em
revistas e peridicos, profissional izando-se posteriormente.
Sobre esse aspecto SODR32 (1999) completa: os homens
buscavam encontrar no jornal o que no encontravam no l ivro:
notoriedade, em pr imeiro lugar, um pouco de dinheiro, se
possvel.
A l i teratura, enfim, comeava a ser consumida tambm fora
dos crculos aristocratas, popularizando-se. Essa di fuso macia
e a tentativa de profissionalizao dos escri tores foram dois dos
principais aspectos que marcaram a cul tura brasi leira durante a
implantao do jornal ismo em nossa terra no sculo XIX.
A mercanti l izao da imprensa passou a ser inevi tvel , ao
mesmo tempo desenvolveu-se a publ icidade, primeiramente de
remdios e bebidas. Surgiram os jornaleiros, as bancas e os
pontos de vendas.
Os jornais e os intelectuais ganharam nova temtica,
passaram a discuti r a Repblica, alguns ocupavam posies
dspares, os grupos parti ram-se, digladiavam-se, agrediam-se e
at duelavam. Enfrentou-se uma verdadeira doena pol tica
desunindo os jovens ideal istas. Com a proclamao, e a
formao dos dois grupos adversrios - f lorianistas e
anti f lorianistas, Raul Pompia posicionou-se e apoiou Floriano
Peixoto como Presidente da Repblica, por ver nele segurana
que o novo sistema pol t ico precisava, dada sua condio de
mi l i tar.
Os meios de comunicao tornaram-se armas: artigos
ofensivos, manifestos, panfletos, notcias injuriosas abundavam
as pginas da imprensa nacional, um verdadeiro campo de
guerra frua atravs das publ icaes, efetivando assim, o poder
e a importncia do jornal ismo para a sociedade brasileira.
32 Nelson Werneck Sodr, ob. citada, pg.292.
-
25
Fortaleceu-se um lei tor nos moldes de uma sociedade com sede
de conhecimento, como veremos a seguir.
1.2.1 O despertar do leitor pompeiano
Sob o ponto de vista atual , a recepo textual anal isa a
val idade dos paradigmas em outras correntes l i terrias, levando
em conta o corpus esttico dentro do seu limite de produo, de
acordo com a experincia de criao contempornea poca da
produo textual , e cria uma nova teoria para conferi r as
inferncias estabelecidas nesses textos (temporal / esti l stica /
esttica).
Percebemos, nas teorias das l i teraturas contemporneas,
indicaes de que a fico e a esttica jornal stica encontram-se
igualmente dentro dos feixes das estruturas e das tipologias que
envolvem a recepo textual. Esta l t ima reside dentro da
tomada de conscincia dos conhecimentos do homem sobre o
texto, em um puro misticismo compreensivo das intenes do
mesmo, ou a um s objetivo dependente do seu ponto de vista
como lei tor.
O processo de recepo textual do sculo XIX tem, para
ns, grande valia no desenvolvimento desta pesquisa, definindo
e mostrando caminhos para a descoberta do pensamento do
lei tor, sempre atrelado criao verbal , agindo com sua
interpretao pessoal e global, de acordo com o seu horizonte
de expectativas.
Sobre o verbal , sabemos que as frases eram l igadas umas
s outras com vistas a formar unidades semnticas de um nvel
superior e que apresentavam estruturas muito di ferentes, pois
engendraram conjuntos tais como: narrativa, romance, esti lo,
conversao, drama, teoria cientfica, confl i tos, expectativas etc.
-
26
Tudo isso fez parte da percepo crtica e criativa do autor, Raul
Pompia, que seguiu normas estruturais, porm acrescentou a
elas particularidades, criando assim um jei to pompeiano de
escrever.
Ele participou do texto, se envolvendo em uma narrao.
Isso provocou uma interao fazendo-o senti r-se parte
integrante do momento, de modo que o ponto de vista mvel
desdobrou-se sobre o texto e, conseqentemente, cria uma rede
de operaes na conscincia do lei tor.
A lei tura dos folhetins provocou sensaes confl i tantes;
primeira vista houve um encontro do fato com o prazer, resul tado
das surpresas causadas pelas expectativas das crnicas. Este
paradoxo fundiu-se entre a surpresa e frustrao; efei tos que se
exerceram algo sobre o lei tor, uma vez que a frustrao podia
reter ou bloquear o desenvolvimento da compreenso, causando
um impasse.
Dessa forma, a necessidade da configurao apresentou-
se como condio prvia compreenso do texto. Ou seja, o
lei tor interessou-se em receber toda a informao necessria
sobre o que leu e suas tendncias, mas para isso muitas vezes
teve a inteno de despender o mnimo esforo intelectual para
realizar esse fei to.
Quando o autor aumentou o nmero de sistemas
codificados (devemos lembrar ser esta uma forma constante do
subjetivismo de Pompia), tornando a estrutura do texto mais
complexa e deixou o lei tor inclinado a reduzir-lhes, ao reunir o
mnimo de informaes que podia decodificar, tudo isso
envolveu o seu entendimento pleno, tornando o trabalho de
decodificao mais interessante e amplo.
A necessidade de selecionar certas relaes na rede
daquelas j estabelecidas provinha do fato de que, no decorrer
da lei tura, o ato de escrever desenvolvia os pensamentos de
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27
uma pessoa, no caso o cronista. Quaisquer que forem esses
pensamentos, no caso da crnica eles no deixaram de
representar o cotidiano. Por definio, este mundo foi alm das
prprias experincias pessoais apresentando,
conseqentemente, certos elementos que no eram diretamente
acessveis.
A essncia textual no residia nas expectativas, nas
surpresas ou decepes, menos ainda nas frustraes
encontradas no decorrer do processo de lei tura. Ela incorporou
as reaes do sentido, formadas no ato de ler, e provocadas
pelo movimento (ao), perturbao (confl i tos) ou interferncia
(momentos ou si tuaes antagnicas). Isto quer dizer que ao ler,
houve uma reao qui lo que est sendo produzido no prprio
lei tor, formando, assim, um mundo de reaes e fazendo com
que se pudesse viver a crnica e os acontecimentos reais que
ela forneceu.
Definimos aqui lei tura como uma integrao dinmica
entre o texto e o le itor, j que os signos l ingsticos do texto e
suas combinaes puseram em movimento a transposio do
texto para a conscincia do lei tor. Os atos provocados pelo
processo de ler escaparam a um controle externo do mesmo,
instaurando a criatividade da recepo, e resul tando em algo
novo e criativo, dependente da ao efetuada.
Os conhecimentos anteriores que o lei tor trouxe consigo,
eram sempre revestidos de valores, e toda experincia esttica
tendia a mostrar uma interao continuada entre operao
dedutiva e indutiva.
Conseqentemente, encontramos o lei tor pretendido ou o
lei tor visado, isto , aquele que o Raul Pompia teve em
mente, ao escrever um texto ou um fragmento deste. Porm o
pblico a quem o autor endereou sua escri ta, com o qual
dialogou implci ta ou expl ici tamente, nunca fora, nem poderia
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28
ser um auditrio intemporal e universal , pois toda estratgia
textual do escri tor encontrou-se estabelecida e executada em
considerao, de modo idealizado, a um pecul iar t ipo de
receptor caracterizado por algumas marcas cul turais, psquicas,
morais, ideolgicas, etrias etc.
O sculo em que viveu o autor trouxe um momento
histrico Li teratura Brasi leira, pois a nossa imprensa
apresentou aos lei tores uma smi le da produo li terria,
efetivamente destinada aos amantes das letras e das notcias,
viabil izando, ento, a arte da escri ta atravs da lei tura dos
textos l i terrios e informativos direcionados a um pbl ico
pequeno e de nvel scio-cul tural cul to.
O imprio do texto l i terrio condicionou o lei tor s obras
ficcionais, valorizando seu status social , em relao dimenso
da sua recepo e aos efei tos provocados por ela. Essa esttica,
de certa forma tradicional, se tornou produto de uma poca,
por isso seguiu um arsenal de regras e tcnicas prprias do
texto ficcional .
Se levarmos em considerao que a li teratura do sculo
estudado teve como efetivo o embate da realidade (o texto
jornal stico) contra a f ico, pois esta teve seu valor
reconhecido e a outra era considerada uma l i teratura menor,
veremos que o texto jornal stico desse momento a crnica,
com seus relatos dirios, retratou a pura funo de uma rea
desprezada, porm conseguiu quebrar muitos paradigmas das
disposies recepcionais do lei tor diante das condies
histricas at ento conhecidas.
Por ser trabalhada de forma ficcional , a l i teratura perdeu a
referncia do mundo real , o que no ocorreu com a crnica, pois
o seu carter de comunicao, cujos conceitos foram al terados e
se contrapuseram fico, no tiveram tendncias previsveis e
sua organizao dependeu mais do autor do que das normas.
-
29
Houve neste caso, uma autonomia e esti lo na criao, e esse
poder se encontrou na criatividade de quem redigiu o texto, para
quem o texto foi redigido (lei tor implci to), sendo este um fator
importante.
Sabemos que as crnicas no se reduziram s estruturas
psicolgicas de seu autor, aos dados sociais e histricos, ou a
um sistema mecnico de formas, deveria ele na poca estar
al iado adaptao ao gosto do consumo da burguesia, fato de
profundo conhecimento dos autores e conseqentemente,
refletidos nas palavras, na forma, no fino trato, no tema proposto
e no vocabulrio r iqussimo.
A qual idade de um texto no teve sua medida no prazer
por ele provocado, e nem perdeu a sua qualidade a cada nova
criao; ao contrrio, a osci lao, ou seja, o estranhamento de
uma nova lei tura que rompeu com os objetos de sua
cotidianidade criou um novo conjunto de expectativas, rompendo
com o universo preestabelecido, trazendo uma l i teratura
inovadora, em um processo de comunicao onde o prprio texto
condisse o lei tor mudana de suas representaes
projetivas33 habi tuais, resul tando possibil idades diversas
inseridas no prprio texto, o levando a se fami l iarizar com outras
projees.
Entendemos que a estrutura textual apresentou um papel
de regulamentao dos cri trios da recepo, ou seja, daqui lo
que se esperou do texto, as constantes do texto e o texto em si ,
uma vez que toda obra l i terria teve seu destinatrio concreto,
historicamente determinado.
Desse modo compreendemos que o esti lo da escri ta
sempre se encontrou entrelaado s normas, s presses e s
instncias sociais, tornando o horizonte de expectativas dos
lei tores ajustados ao horizonte possibi l i tado pelo texto, em uma
33 Luiz Costa Lima, ob. citada, pg. 23.
-
30
espcie de contrato natural , vivenciando uma nova experincia
esttica, com outros conceitos motores, conseqentes da
histria social e das relaes com as instncias que presidiam a
sua configurao: no caso de Pompia, o conhecimento do
Real ismo brasi leiro, a denncia social , a luta contra a
escravido, o contexto intelectual dominado pela ascenso do
posi t ivismo, o momento pol t ico de embate entre a Repbl ica e a
Monarquia, a revol ta frente ao poder da sociedade vigente, a
insatisfao com os padres estticos dominantes.
1.2.2 Um novo tempero jornalstico: a crnica
Como resul tado da comunicao entre autor e lei tor, se
pode dizer que a crnica marcou presena em nosso pas desde
o descobrimento, mas primeiramente no eram as notcias os
principais focos delas, mas sim os fei tos histricos, quer em
forma epistolar, quer nas narrativas de viagens dos muitos
visi tantes que aqui estiveram.
No sculo XIX surgiu a crnica jornal stica propriamente
di ta, passando a espelhar e comentar acontecimentos sociais do
dia-a-dia, permeando a real idade de uma sociedade
contradi tria, diversi ficada e di ferenciada, em que as classes
sociais se distinguiram cada vez mais e a nova onda l i terria,
vinda com o jornal ismo impresso, ganhou fora.
O verbete teve sua origem na l ngua grega kronos
(tempo), posteriormente derivado do latim chronica , e
atualmente nas l nguas modernas: chronique (francs), cronica
(espanhol), chronica ( i taliano, chronic le ( ingls), chronik
(alemo) e crnica (portugus). Etimologicamente, veio do mito
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31
de Cronus34, oportunamente se atr ibuiu a ela a temporal idade, a
rapidez das idias e a traduo do cotidiano.
Sua forma foi uti l izada na Idade Mdia e permaneceu de
acordo com cada poca de produo, se apresentando primeiro
em latim e depois nas l nguas vulgares, envolvendo em suas
l inhas desde os escribas at nossos atuais cronistas. O
Dicionr io de la l iteratura35, os descreve como:
Se llama tambin cronista al escritor que en diarios y revistas comenta o interpreta sucesos o cosas, ut i l izando unicamente su cultura y sus proprias fuentes de conocimiento por la redaccin de sus art iculos, en los que, generalmente, se delatam la agudeza, la experiencia, el est i lo del cronista.
Apesar de no ser f ruto especf ico dos jornais, entretanto f ixou-
se, no Brasil, nas pginas dos folhetins e revistas h
aproximadamente 150 anos . O surgimento da crnica,
efetivamente, como um processo de escri ta jornal stica /
l i terria, coincidiu com a ascenso burguesa e as idias da
revoluo da imprensa, ponto principal para o fortalecimento de
um novo cenrio de comunicao.
A funo da crnica si tuou-se entre o entretenimento e a
informao, com o objetivo de apresentar comentrios,
divagaes e reflexes sobre fatores histricos, econmicos,
pol t icos, artsticos ou amenidades com caractersticas prprias
ao expor fatos importantes sob a tica da subjetividade.
Formava ela assim um espao de compreenso da real idade
para os lei tores, tendo como meio de comunicao o jornal
impresso e a l inguagem caracterstica desse veculo: simples,
abrangente, comunicativa, transparente.
34 Cronus a personificao do tempo, sua lenda pode ser lida como uma alegoria a de que o tempo, em sua passagem fatal, engole tudo que criado ..., in Flora Bender & Ilka Laurito, Crnica: histria, teoria e prtica, So Paulo, Scipione, 1993, pg. 10. 35 Dicionrio de la literatura, In Afrnio Coutinho, ob. citada, 1982, vol. VI, pg. 14.
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32
Inicialmente abrangeu temas como pol tica, sociedade,
artes, l i teratura entre outros, sempre com a inteno de informar
e comentar as questes do dia-a-dia. Os espaos ao rs-do-cho
parti lharam amenidades, se destinaram ao entretenimento para a
maioria dos lei tores brasileiros.
Al i , as donas de casa encontraram as novelas e os homens
buscaram uma outra viso sobre os fatos do cotidiano, revelados
nas escri tas de autores como Raul Pompia, Olavo Bilac,
Machado de Assis e Jos de Alencar, entre outros.
A lei tura desse gnero jornal stico propagou-se, e se
tornou hbito fami l iar, nos seres, com lei tura em voz al ta,
criando um incentivo ao hbito de ler jornais. Criou tambm, um
elo fami l iar e cordial entre autor e lei tor, sobre os
acontecimentos sociais e pessoais do momento vivido, sempre
coerente com a formao intelectual do escri tor, que util izou
suas reas de conhecimento e interagiu com outros discursos
presentes em sua formao cul tural .
O Grand Larousse Il lustr36, a definiu assim:
Les chroniques sont des rcits historiques dont l auteur est au moins pour part ie contemporain. Histoire das laquelle ls faits sont simplesment enregistrs dans l ordre de leur sucession.
Esse texto encontrou-se l ivre das amarras do discurso da
imprensa contempornea, assumindo um papel di ferenciado,
ntimo, proporcionando um dilogo coloquial entre o lei tor e o
autor. Seu contedo tendeu a ser cur to e efmero, com carter
opinativo, da qual muitas vezes chegou a influenciar o receptor,
de maneira rpida e invasiva. Para SEVCENKO37(1999),
36 Grand Larousse Illustr, In Afrnio Coutinho, ob. citada, 1982, vol. VI, pg. 14. 37 Nicolau Sevcenko, Literatura como misso: tenses sociais e criao cultural na primeira Repblica, So Paulo, Brasiliense, 1999, pg. 20.
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33
. . . todo escritor possui uma espcie de l iberdade condicional de criao, uma vez que os seus temas, motivos, valores, normas ou revoltas so fornecidos ou sugeridos pela sua sociedade e seu tempo e destes que eles falam.
O curto tempo atribudo ao consumo da crnica fez com
que se produzissem textos para serem l idos informalmente,
apesar de trazerem em si os anseios, amarguras e alegrias do
momento. Para isso apresentaram um leque muito amplo de
recursos l ingsticos, transpondo o referencial quase
inteiramente para o plano da subjetividade, expresso pelo tom
de conversa adquirido, conduzindo afinidade, uma marca da
relao entre temporal idade e periodicidade do texto, presentes
no momento e na histria, sob a viso do cronista-narrador,
traando um relato pelo olhar do escri tor que testemunhou os
fatos de seu tempo, de sua real idade e passou ao texto uma
recriao com a sua prpria argumentao. Como argumentou
COUTINHO38 (1982):
Crnica e cronista passaram a ser usados com o sentido atualmente generalizado em l iteratura, um gnero especf ico, estritamente l igado ao jornalismo. Ao que parece, a transformao operou-se no sculo XIX, no havendo certeza se em Portugal ou no Brasil. [ . . . ] O uso da palavra para indicar relato e comentrio dos fatos em pequena seo de jornais acabou por estender-se definio da prpria seo e do t ipo de l i teratura que nela se produzia. Assim, crnica passou a signif icar outra coisa: um gnero l i terrio de prosa, ao qual menos importa o assunto, em geral efmero, do que as qualidades de est i lo, a variedade, a f inura e argcia na apreciao, a graa na anlise de fatos midos e sem importncia, ou na crt ica de pessoas. Crnicas so pequenas produes em prosa, com essas caracterst icas aparecidas em jornais ou revistas. A princpio no sculo XIX, chamavam-se as crnicas folhetins, estampados nos rodaps dos jornais.
38 Afrnio Coutinho, ob. citada, 1982, vol. VI, pg. 21.
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34
A crnica empregou a l inguagem da atualidade, para
refleti r o espri to da poca, uma vez que a l ngua corrente
consti tuiu a mais viva expresso da sociedade humana, no
tempo. A l inguagem coloquial assumiu um carter
importantssimo na confeco dos textos, pois, l igada vida
cotidiana, ela teve nfase no coloquial , no contato imediato com
o lei tor e sua realidade da vida diria.
Por isso, no sculo XIX, o peridico exerceu, no apenas a
funo de levar a um pbl ico lei tor informado, algo interessante,
sugestivo, mas sim a audcia de afetar a sensibil idade deste
pblico lei tor; ento a misso intelectual tornou-se mais ampla
que a palavra, se exigiu da sua palavra uma elegncia carregada
de sentido, em que no sobrasse nem fal tasse nada, sob o ar de
aparente descontrao.
O pbl ico lei tor pediu algo mais que a notcia, um texto
que valorizasse a lei tura (retrica) e fosse orientador de
opinies Houve ento a necessidade de no apenas ser
noticioso, mas de abranger tambm comentrios informativos,
cul turais e sociais no mbito analt ico e di ferencial . E a
encontramos o fazer l i terrio de Raul Pompia a inovao
esttica e estil stica presentes no jogo de palavras, di ferindo da
objetividade e concretizando o maior alcance do texto.
Esse tipo textual trouxe o relato na ordem em que
ocorreram os fatos, cronologicamente, escri tos de acordo com a
estrutura textual em vigncia, narrou episdios, contou os
principais acontecimentos sob a tica do da subjetividade
pompeiana.
Consideremos o exemplo a seguir, de uma crnica onde
existia a publ icao tpica de fatos cotidianos, com um suti l tom
de humor, mas de carter verbal expl icavelmente superior, no
apenas devido ao teor l i terrio, retrico ou produo do texto,
mas considerando sobre quem a pauta se referia. Era nada mais,
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35
nada menos que o escri tor Machado de Assis, ento recm
nomeado para um importante cargo pbl ico:
O governo vai absorvendo os poetas. O Sr. Pedro Luiz est Ministro, o Sr. Machado de
Assis Oficial de Gabinete.. . justamente quando encetou na Revista Brasileira a publicao do seu romance Memrias Pstumas de Brs Cubas, muito interessante para que todos desejem a sua continuao.
l igeiro, alegre, espirituoso, mesmo mais alguma cousa: leiam com ateno, com clama; h muita cr t ica f ina e frases to bem subscritas que mesmo pelo nosso correio, ho de chegar ao seu destinatrio.
portanto um romance mais nosso, uma resposta talvez, e de mestre uma e outra cousa; e ser um desastre se o Oficial de Gabinete absorver o l i terato.
Esperemos que no.
(Revista I lustrada. Rio de Janeiro, 1880, n.. 202)39
Temos ento neste exemplo de crnica, a estrutura, a
forma curta, o relato do cotidiano, um esti lo que flutuou entre o
srio e o cmico, provocando descontrao no lei tor, mas ao
mesmo tempo perpetuando a notcia, interpretada pessoalmente
sob a viso de seu autor, configurando a conotao de certo
sarcasmo quando evidenciou que os escri tores brasileiros no
puderam viver simplesmente de seus fei tos l i terrios, por isso
uti l izaram sua retrica, organizao de palavras e cul tura para
auxi l iar nos gabinetes governamentais, em troca de dinheiro.
( idia implci ta)
Sabemos, entretanto, que tais fatos eram comuns na poca
ci tada, porque a profisso de escri tor no proporcionava as
devidas condies de sobrevivncia, uma vez que muitos dos
nossos autores tornaram-se vt imas do capitalismo e passaram
por si tuaes de penria.
Percebemos claramente no fragmento apresentado a
expresso de uma personal idade li terria na uti l izao sensata
39 Afrnio Coutinho, ob. citada, 1983, vol. VII, pp. 21-22.
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36
da estil stica, colocando em um tom coloquial e discreto a ocul ta
queixa dos usurios da poca sobre o servio pblico - h muita
crt ica fina e frases to bem subscritas que mesmo pelo nosso
correio, ho de chegar ao seu destinatr io. Ou ento no
trocadilho final - e ser um desastre se o Of ic ial de Gabinete
absorver o l iterato.
O propsi to do cronista, evidentemente, se deu na
informao, principalmente neste enfoque sobre pessoas e
pol t ica (temas preferidos, na poca, pelo autor). Por isso
interagiu com a opinio pblica quando esboou conhecer as
expectativas do lei tor no s da sua crnica, mas tambm o
lei tor machadiano, indicando da seguinte forma na concluso:
Esperemos que no.
Estas e outras palavras marcantes sintetizam a viso do
contedo dos textos que aqui encontraremos. Mostram um
panorama indi to da Li teratura Brasi leira. Trilham um caminho
histrico de palavras, confli tos e expressividade, nas entrelinhas
das muitas pginas produzidas por Raul Pompia nos meios de
comunicao de seu tempo.
Historicamente, por chegar ao lei tor atravs dos folhetins,
com artigos de rodap relatando as questes do dia-a-dia, com
uma l inguagem lgica argumentativa ou crt ica pol tica, houve,
preconceito dos cri trios, que a consideraram de menor valor
cul tural , portanto no li terrio. Talvez por isto, somente
recentemente, os cronistas tenham conquistado espao dentro
da anlise li terria, com estudos profundos sobre: gnero,
t ipologia e retrica. Essas consideraes sero vistas no
prximo i tem.
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37
1.2.2.1 Tipologia: Histrica? Literria? Jornalstica?
Trabalhar com a crnica do sculo XIX impl ica em estar na
fronteira entre os gneros jornal stico / l i terrio e histrico.
Ento indagamos: Como classi f icaramos essas produes de
Raul Pompia? Jornal ismo e l i teratura foram expresses
antagnicas ou somaram-se? Quando um texto deixou de ser
objeto de imprensa, sintonizado no real imediato, e passou
condio de obra de arte atemporal , histrica?
Com relao s crnicas, os estudiosos uti l izaram vrias
nomenclaturas para definir as modal idades destes aspectos
dentro da concepo delas: ambgua, mista, hbrida etc.
Entretanto para respondermos temos que ajustar, alargar, al terar
as formas clssicas e nossa concepo de gnero, como denota
o posicionamento de BOSI40 (1997):
[ . . . ] teria chegado o momento de acabar com esta pesada e cannica tradio segundo a qual a l i teratura l i teratura, l inguagem de comunicao l inguagem de comunicao, e realizar, performaticamente, a identidade profunda de ambas as at ividades .. .
. . . ao fazer discurso histrico ou memoralista,a conscincia testemunhal f ica desperta o tempo todo...
. . . o memoralista e o historiador tm o pudor de inventar, pois espera-se que ele conte fatos como acontecera, pode interpret-los [ . . . ]
Numa viso estrutural ista, podemos igual-las dentro de
uma vertente expressiva, formal, mas elas foram di ferentes na
estrutura profunda, que foi a narratividade.
Esta discusso sobre gneros requer uma pesquisa sobre
o posicionamento diacrnico de fi lsofos e tericos, como os
clssicos Aristteles, Quintil iano, Horcio, cuja defesa consistiu
na construo de um modelo esttico a ser seguido em carter
40 Alfredo Bosi, in Gneros de Fronteira: cruzamentos entre o histrico e o literrio, So Paulo, Xam, 1997, pg. 14.
-
38
imperativo, anlogo, obedecendo s normas impostas por um
cdigo de construo esttica, onde imperou a trade: l r ico,
dramtico e pico.
Na l ngua portuguesa, o gnero histrico, iniciou-se por
meio de Ferno Lopes e teceu a histria de um povo, de uma
l ngua, apresentando a transio de idias e ideais presentes na
funo por ela exercida na sociedade, descrevendo fatos e
narrando os fei tos cronologicamente, como disse SOARES41:
No incio da era crist, chamava-se crnica a relao de acontecimentos organizados cronologicamente, sem nenhuma part icipao interpretat iva do cronista. Nessa forma, ela at inge o seu ponto alto na Idade Mdia, aps o sculo XII, quando j aparentava uma perspectiva individual da histria, como fez Ferno Lopez, no sculo XIV. As simples relaes dos fatos passam, ento, a chamar-se cronices. E no sculo XVI, o termo crnica comea a ser substitudo por histria.
No sculo XIX, Ferdinand Brunetire seguiu pensamentos
marxistas e darwinistas, e props a concepo dos gneros em
um processo de luta e sobrevivncia dos mais fortes, como
afi rmou LIMA42(2003):
O gnero passava assim a constituir uma entidade parte, qual se subordinavam tanto os autores como as obras, simples elementos secundrios de uma realidade substancial mais ampla, simples rgos efmeros de um organismo constante. Os autores e as obras se movem, mas os gneros que os conduzem.
Ao trabalharmos com o gnero histrico, relatamos os
acontecimentos dentro de uma seqncia temporal , observando
a produo pompeiana na imprensa brasileira, com sees
contando os fatos, as notcias da semana ou do dia, os rumores,
boatos e maledicncias, ou seja, um retrato do perodo de
41 Anglica Soares, Gneros literrios., So Paulo, tica, 1989, pg. 64. 42 Alceu Amoroso Lima, ob. citada, pg. 27.
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39
escri tura do autor, tendo como foco as l timas dcadas do
sculo XIX.
Poderamos dizer ento que a crnica no pertenceu
l i teratura e sim ao jornal ismo? No seria este um gnero capaz
de sobressair-se to bem tanto nas pginas de um l ivro, como
nas folhas dos noticirios?
No, o jornal ismo e a l i teratura aproximaram-se mais,
sobretudo por via da crnica, principalmente nesse perodo,
quando essa fronteira no era to ntida, j que praticamente
todos os nossos escri tores oi tocentistas estiveram l igados ao
jornal ismo.
Realmente existiu um relacionamento problemtico, desde
velhos tempos, entre as reas, pois o processo li terrio no
abandonou o ldico e a fruio, e conseqentemente,
encaminhou-se para os fatores essenciais do ser humano, dentro
de um espao e de um tempo definido o histrico.
Observando o perodo estudado, grande foco do jornal ismo
escri to, com o passar dos tempos, toda essa produo
transformou-se em histria. Compreendemos que a distino de
fronteiras no apareceu to ntida, porque, o jornal ismo, no
incio, recebeu exemplos e amparo da l i teratura, nesta l tima
descobriram-se sinais de espri to jornal stico, pelo menos em
gneros hbridos no caso as crnicas publ icadas nos folhetins.
A parti r do romantismo essa modal idade textual recebeu
um novo perfi l , assumiu a personalidade de gnero li terrio, com
caractersticas prprias da escri ta nacional. Houve
abrasileiramento no esti lo, na l ngua, nos assuntos, na tcnica, e
assim ganhou propores indi tas na l i teratura brasileira, pelo
seu desenvolvimento como categoria artstica, o valor esttico,
tornou-se um gnero autnomo e especfico.
A relao entre a l i teratura e o jornal ismo conheceu nesse
perodo um momento de esplendor, de muitas mudanas
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40
cul turais, poca em que grandes escri tores foram grandes
jornal istas, as figuras do escri tor e do jornal ista s vezes
coincidiam com a mesma pessoa.
exatamente a que se di ferenciaram as crnicas de
Alencar, Machado, Bi lac e Raul Pompia, ao criarem novas
tendncias quando possvel . Com eles surgiu uma nova
organizao ou estrutura que caracterizou o texto e outros
vindouros. Isso provocou uma mobi l idade dos gneros, um
deslocamento. Conseqentemente inovou e a crt ica adequou-
se a esse esquema.
Como sabemos o esse momento trouxe uma inovao ao
termo crnica. Esta modal idade textual , aos poucos, veio
sendo tecida, l inhas e linhas a fio, no decorrer dos sculos, e
conseqentemente adquirindo formas e estruturas di ferenciadas,
inclusive a jornal stica, di ferenciada atravs das mos de quem
a conduziu imprensa.
O esti lo do cronista que publicava seus textos em folhetins,
tendia para as formas simples, para o tom comunicativo, de
conversa, de bate-papo com o lei tor. Houve sempre a
possibil idade de um dilogo previsvel entre ele e o lei tor, sem
riscos de que seus comentrios e reflexes pudessem perder-se,
no encontrar um destinatrio apropriado. Isso refletia a
personalidade do autor, o seu estilo e suas idias.
Esse gnero cresceu e ganhou caractersticas l i terrias,
justamente pela evoluo da imprensa diria, ocorrendo
necessidade dos jornais terem sees de relatos e comentrios
dos acontecimentos, em um perodo de publ icao mais
contnuo, embora escri tos pelos autores, surgindo uma
l inguagem com esti lo e graa redacional. Sobre este aspecto
COUTINHO43 (1983) opinou:
43 Afrnio Coutinho, ob. citada, 1983, vol. VI, pg. 15.
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41
[ . . . ] Crnica e cronista44 passaram a ser usados com o sentido atualmente generalizado em literatura: um gnero especf ico, estreitamente l igado ao jornalismo.
[ . . . ] Assim, crnica passou a signif icar outra coisa:
um gnero l i terrio de prosa, ao qual men
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