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CONHECIMENTO ECOLÓGICO
TRADICIONAL DE AVES DA COMUNIDADE
CUIABÁ MIRIM, PANTANAL DE MATO GROSSO
RUTH ALBERNAZ SILVEIRA
Dissertação apresentada à Universidade do Estado de Mato Grosso, como parte das exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais para a obtenção do título de Mestre.
CÁCERES
MATO GROSSO, BRASIL
2010
1
RUTH ALBERNAZ SILVEIRA
CONHECIMENTO ECOLÓGICO
TRADICIONAL DE AVES DA COMUNIDADE
CUIABÁ MIRIM, PANTANAL DE MATO GROSSO
Dissertação apresentada à Universidade do Estado de Mato Grosso, como parte das exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais para a obtenção do título de Mestre.
Orientadora: Profª Drª Carolina Joana da Silva
CÁCERES
MATO GROSSO, BRASIL
2010
2
Ruth Albernaz Silveira
CONHECIMENTO ECOLÓGICO TRADICIONAL DE AVES
DA COMUNIDADE CUIABÁ MIRIM, PANTANAL DE MATO
GROSSO
Essa dissertação foi julgada e aprovada como parte dos requisitos para a
obtenção do título de Mestre em Ciências Ambientais.
Cáceres-MT, 20 de março de 2010.
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________
Profª Drª Carolina Joana da Silva
Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT
Orientadora
_________________________________________________________
Profª. Drª. Joana Aparecida Fernandes Silva
Universidade Federal de Goiás - UFG
_________________________________________________________
Prof. Dr. Waldir José Gaspar
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
_________________________________________________________
Prof. Dr. Heitor Queiroz de Medeiros
Universidade do Estado de Mato Grosso
3
DEDICATÓRIA
Aos ribeirinhos de Cuiabá Mirim, que me ensinaram a olhar os pássaros
com a poética de Manoel de Barros...
A todas as pessoas que amo, que me inspiram a ser o que sou...
Ao Félix e Reinaldo, com a alegria do nosso amor.
4
AGRADECIMENTO ESPECIAL
Sou grata a minha orientadora e amiga, professora Carolina Joana da Silva, pelos
bons ensinamentos e amizade ao longo de todos esses anos...
5
AGRADECIMENTOS
À Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT, pelo espaço
acadêmico oferecido e pela oportunidade de crescimento intelectual.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -
CAPES, pela bolsa de estudos concedida.
Ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais - PPGCA e ao
Centro de Estudos de Limnologia, Biodiversidade e Ecologia - CELBE pela
estrutura ofertada ao programa.
À Profª. Drª. Carolina Joana Da Silva, pelo apoio intelectual e
encorajamento contínuo, por seu exemplo de dedicação, organização e
competência em Ecologia e atenção especial à pesquisa em Etnoecologia.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Ambientais - UNEMAT: Carolina Joana Da Silva, Heitor Medeiros de Queiroz,
Aumeri Bampi, Stela França, Manoel dos Santos Filho, Carlos Teodoro Irigaray,
Germano Guarim Neto, Carla Galbiati, Mônica Josene, Elias Renato da Silva
Januário, Maria Aparecida, pela consideração e ensinamentos.
Aos professores Dr. Elias Renato da Silva Januário, Dr. Heitor Queiroz
de Medeiros pelas contribuições na aula de Qualificação.
Aos amigos queridos da ciranda do Mestrado, Wilkinson Lopes Lázaro,
Rosália Valençoela, Hilton Marcelo Souza, Everaldo Soares, Mairo Camargo,
João Severino, Korotowi Ikpeng, Ângela Pinheiro, Arlene Alcântara, Lilian
Machado, Hébia de Paula, Laura Justiniano, Maiuá Txicão Ikpeng e Marcos
Arruda, pelas discussões valiosas em sala de aula, pelo convívio e amizade.
À professora Carla Galbiati, pela coordenação do Mestrado. À Ediléia e
Ricardo, pela presteza na Secretaria do Programa.
6
Aos meus pais: Iracema Albernaz e Simondes Fraga Silveira, por toda
energia ancestral ancorada no meu sistema e pelos ensinamentos da vida.
Aos meus irmãos consangüíneos, Keila, Simondes e Nelson, pela
oportunidade de nos relacionarmos como família.
Ao meu companheiro Reinaldo Gaspar Mota, pelo amor que nos nutre,
amizade, companheirismo e apoio ao meu crescimento profissional.
Ao Félix, meu filho amado, que me ensina todos os dias que é
necessário aprender a arte de conviver e “aceitar a vida como ela é”.
À Acelina Rondon minha prima-irmã, aqui representando todos meus
parentes, pelo amor que nos une.
Ao Pedro Paulo e Carolina pelo amor, amizade e por serem um porto
seguro na minha vida.
À minha amiga-irmazona do coração Imara Quadros, que estamos
sempre de mãos dadas nessa caminhada, pela amizade sincera e carinho para
comigo.
Aos queridos amigos Heitor e Cely pelo apoio, amizade e animadas
conversas em Cáceres.
À Michèle Sato, amiga querida, que tanto me ensina a respeito de
inúmeras coisas, como a caminhada na Educação Ambiental, sou grata por
participar do Grupo Pesquisador em Educação Ambiental-GPEA/UFMT.
À Yara Galdino pelos toques dado na escrita científica e pela amizade.
À lika - Liete Alves pela bela amizade que tecemos sempre por meio de
horas e horas de conversas na nossa fome por cultura, diversão, arte e
ecologismo...
À Regina Silva e Michelle Jaber, nossos corações estão sempre ligados.
7
À Cris Campos, por estar sempre me lembrando que é necessário
sermos excelentes quando nos propomos fazer algo.
À Iris Viana, por me apresentar a comunidade Cuiabá Mirim e pela
oportunidade de conhecê-la melhor e poder construir uma boa amizade.
Ao Jaime Rufino, amigo querido, que sempre me incentivou a estudar
desde quando começamos a graduação em Biologia em 1990.
Aos amigos Teodoro e Maria Irigaray, Marília e Pierre Girard, Cristiane
Façanha e Everton, Ana Hein, Josué Ribeiro, Maria Antônia Carnielo, Shirley
Marcato e todos os amigos que sempre estiveram comigo.
Ao Rodrigo Morais pelos ensinamentos do ANTROPAC e por ter me
mostrado que “é necessário superar os limites metodológicos para realizar a
escrita”.
Às pessoas de Cuiabá Mirim, em especial, Dona Ursolina e Seu
Salvador, Seu Biró e Dona Benedita, Seu Lúcio e Dona Ana Rosa, Seu
Sebastião e Dona Maria, Seu Flávio, Seu Bic e Dona Ana Gonçalina, Dona
Escolástica, irmã Benta e Seu Tote, Seu Martinho, Dona Adelina, Dona Maria
Aparecida e Seu Ivan, Nhô Gon, Domingos e Nega, Maria e Angela. E a toda a
comunidade de CUIABÁ MIRIM.
Às crianças de Cuiabá Mirim, aqui representadas por Milaine e Darlan,
que me ensinaram os caminhos daquele espaço de “con-vivência”.
Aos amigos do curso da Universidade da Flórida, Robert Buschbacher,
Wendy-lin Bartels, Simone Athayde, Renato Farias, Francisco Stuchi, Elineide
Marques, Maria do Socorro, Walterlina Brasil, André Baby, Mônica Grabert,
Taravy Kaiabi, Kátia, Isabela, Thaissa, Frederico e Paula Bernasconi.
À Deus – fonte de Luz, Amor e Vida e aos meus Guias Espirituais.
8
SOBRE A AUTORA
Deixei uma ave me amanhecer.
Manoel de Barros
Ruth Albernaz Silveira, nascida sob o signo de câncer, é nativa de
Chapada dos Guimarães-MT, Bioma Cerrado, onde nascem águas que
alimentam o Pantanal.
Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Mato
Grosso - UFMT. Integrante da Rede Mato-grossense de Educação Ambiental -
REMTEA. Compõe a equipe do Instituto de Ecologia e Populações Tradicionais
do Pantanal - ECOPANTANAL. Possui experiência principalmente nos
seguintes temas: arte-educação ambiental, sustentabilidade, conservação da
biodiversidade, saúde e ecologia. Desenvolve trabalhos de arte a partir de
fibras vegetais da Amazônia, cerrado e Pantanal e elaboração de papéis
artesanais.
Foto: Reinaldo Mota
9
Ninho que aninha
Sonhos
Esperança de continuidade
No canto do beija-flor
(Ruth Albernaz)
10
ÍNDICE
Lista de abreviaturas, siglas e símbolos 14
Lista de tabelas 15
Lista de figuras 16
Resumo 18
Abstract 20
1. Introdução Geral 21
1.1. Referências bibliográficas geral
2. Capítulo I - Conhecimento ecológico tradicional de aves
28
32
Resumo 33
Abstract 34
2.1. Introdução 35
2.2. Material e Métodos
O Pantanal
Métodos
Pesquisa de campo
Pré-teste
Entrevista estruturada
Quem come quem
Observação Participante
Processamento dos dados
37
37
41
41
42
43
44
45
45
2.3. Resultados
Perfil dos informantes
Rede Social
Conhecimento ecológico tradicional de aves
Etnocategorias de aves
Conexões com a paisagem
Conexões de sobrevivência humana
Conexões de comportamento
Conexões estéticas
Conexões de sobrevivência
48
48
50
52
54
55
59
60
61
63
11
Rede alimentar das aves 68
2.4. Discussão
2.5. Considerações Finais
73
78
2.6. Referências bibliográficas 79
3.0. Capítulo II - Etnoindicadores climáticos 83
Resumo
Abstract
84
85
3.1. Introdução 86
3.2. Material e Métodos
Área de estudo
Pantanal: aspectos físicos e biológicos
Pantanal de Cuiabá Mirim
Métodos
90
90
90
94
95
3.3. Resultados e Discussão
Significações culturais e ecológicas de Cuiabá Mirim
Etnocalendário social: tempo de escola e tempo de festas
Etnocalendário sócio-ecológico: tempo de pescar, plantar e colher
Etocalendário sócio-ecológico: tempo de enchente-cheia-vazante
Etnoindicadores climáticos
Fauna
Flora
Indicadores de alterações climáticas
99
99
100
104
107
108
112
113
116
3.4. Considerações Finais 121
2.6. Referências bibliográficas
Webliografia consultada
122
128
4.0. Capítulo III – As aves na Cosmologia Pantaneira 129
Resumo 130
Abstract 131
4.1. Introdução 132
4.2. Material e Métodos
A comunidade de Cuiabá Mirim
Métodos
135
135
136
12
Percursos sobrevoados 136
4.3. Resultados e Discussão 138
4.4. Considerações Finais 147
4.5. Referências bibliográficas 147
Considerações Finais Gerais 150
Anexos 153
13
LISTA DE ABREVIATURAS, SIGLAS E SÍMBOLOS
BAP: Bacia do Alto Paraguai
CAPES: Coordenação de Aperfeiçoamento de Profissionais do Ensino Superior
CET: Conhecimento Ecológico Tradicional
EMBRAPA: Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
IPCC: Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas
MT: Mato Grosso
ODM: Objetivos do Milênio
OMM: Organização Meteorológica Mundial
ONU: Organização das Nações Unidas
PNUMA: Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente
PNUD: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PPGCA: Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais
UNEMAT: Universidade do Estado de Mato Grosso
UNESCO: Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura
WWF: World Wildlife Fund
14
LISTA DE TABELAS
Tabela 1. Modelo de entrevista semi-estruturada 44
Tabela 2. Origem dos informantes e tempo de residência em Cuiabá
Mirim
48
Tabela 3. Fragmento do anexo I. Análise de lista livre do conhecimento
das aves
53
Tabela 4. Análise de Consenso Cultural das etnoespécies de aves 54
Tabela 5. Tabela geral: Etnocategorias e quantidade de espécies 55
Tabela 6. Etnocategoria quanto ao vôo 56
Tabela 7. Etnocategoria quanto ao habitat 58
Tabela 8. Etnocategoria de aves que servem como alimento 60
Tabela 9. Etnocategoria quanto ao comportamento 60
Tabela 10. Etnocategoria quanto à aparência 62
Tabela 11. Etnocategoria de aves que podem ser criadas em casa 62
Tabela 12. Etnocategoria quanto ao hábito alimentar 65
Tabela 13. Lista associada de aves e peixes 72
Tabela 14. Avifauna etnoindicadora de mudanças temporais 111
Tabela 15. Etnoindicadores climáticos 115
Tabela 16. Percepção das mudanças climáticas do Pantanal 117
Tabela 17. Etnoindicadores simbólicos 142
15
LISTA DE FIGURAS
Figura 1. Arte do Chão. Série Imagética Pantaneira 32
Figura 2. Imagem da área de estudo no Pantanal 39
Figura 3. Vista da Baía Siá Mariana, próximo à comunidade 40
Figura 4. Leito antigo do Rio Cuiabá 40
Figura 5. Observação participante na comunidade 47
Figura 6. Distribuição das profissões dos informantes 49
Figura 7. Rede social dos informantes 51
Figura 8. Urubu alimentando 61
Figura 9. Cabecinha vermelha e bem-te-vi 64
Figura 10. Rede alimentar: interação aves-plantas-bichos-terra-água 69
Figura 11. Cadeia alimentar com fluxo de energia direcional 70
Figura 12. Cadeia alimentar, interação animal-planta-mineral 70
Figura 13. Cadeia alimentar envolvendo organismos aquáticos, áreas
úmidas e terrestres
71
Figura 14. Etnoespécies ocupando o mesmo nicho interação animal-
vegetal-mineral
71
Figura 15. Rede alimentar envolvendo mineral-vegetal-animal-ser
humano
71
Figura 16. Entardecer no inverno, baia de Siá Mariana 84
Figura 17. Ninhos de Japuíra 95
Figura 18. Menino com pássaro e menina limpando lambari 102
Figura 19. Festa no Pantanal 104
Figura 20. Categoria de sinais-chave das aves 110
16
Figura 21. Arte do chão I. Série Imagética Pantaneira 129
Figura 22. Interconexões do universo cosmológico dos ribeirinhos
pantaneiros de Cuiabá Mirim
139
Figura 23. Sinais-chave das aves etno-indicadoras simbólicas 141
Figura 24. Imagem de Sebastião Mendes 145
17
RESUMO
ALBERNAZ-SILVEIRA, Ruth. Conhecimento Ecológico Tradicional de aves da
Comunidade Cuiabá Mirim, Pantanal de Mato Grosso. Cáceres: UNEMAT, 2010.
163 p. (Dissertação – Mestrado em Ciências Ambientais).
O conhecimento ecológico tradicional é um sistema de conhecimento que
reflete a adaptação das populações humanas em seu ambiente. Este trabalho
apresenta o Conhecimento ecológico tradicional – CET de aves pelos
pantaneiros da Comunidade Cuiabá Mirim, Pantanal de Mato Grosso, Brasil. A
área de estudo localiza-se no Município de Barão de Melgaço, próximo ao
sistema das baías de Chacororé e Siá Mariana. Os conhecimentos tradicionais
de comunidades do Pantanal desenhados pela intrínseca relação com o ciclo
das águas trazem no seu bojo a forte expressão da cultura local, onde o modo
de vida expressa importantes informações para a construção de sociedades
sustentáveis. O conhecimento ecológico tradicional de 22 pantaneiros foi
desvelado num processo dialógico, por meio de uma abordagem metodológica
híbrida de cunho qualitativo e quantitativo pelo viés da gestão e educação
ambiental. Para a coleta de dados foi utilizado técnicas como Listas Livres,
Observação Participante, Entrevistas Estruturadas e Semi-estruturadas. Os
informantes identificaram cento e oitenta e oito (188) etnoespécies de aves e
as etnocategorizaram de acordo com o hábito alimentar, hábitat, a aparência,
comportamento, as que podem ser criadas em casa e as que servem para
alimentação humana. No cotidiano da comunidade foi observado os
etnocalendários ligados ao sistema sócioecológico, evidenciando atividades
sociais como: o tempo de escola e tempo de festas e as atividades de
sobrevivência como pesca e roça, moldados pelo tempo das águas, nas fases:
enchente-cheia-vazante-estiagem. Foram levantadas as aves etnoindicadoras
climáticas e outros componentes bióticos e abióticos e a percepção dos
informantes em relação às alterações climáticas. A comunidade estudada
demonstrou amplo conhecimento a respeito das aves, com riqueza de detalhes
e percepção ecossistêmica, onde o fazer e o saber fazer são moldados pela
18
relação com a natureza, contornados pela capacidade de adaptação e pelos
processos de resiliência ao longo do tempo. Estudo a respeito do
conhecimento Ecológico Tradicional das comunidades do Pantanal sobre as
aves e suas relações com o clima são importantes ferramentas para o acesso
às informações, de modo rápido, seguro, eficiente e de baixo custo. O enfoque
de pesquisas que contempla o saber ecológico das comunidades tradicionais
vem sendo reconhecido e valorizado por se tratar de conhecimento de longo
prazo, que se perpetua através da transmissão oral entre gerações.
Palavras-chave: Pantanal, Conhecimento Ecológico Tradicional, aves.
Orientadora: Profª. Drª. Carolina Joana da Silva, UNEMAT;
19
ABSTRACT
ALBERNAZ-SILVEIRA, R. Traditional Ecological Knowledge of birds in the Cuiabá
Mirim Community, Pantanal of Mato Grosso. Cáceres: UNEMAT, 2010. 163 p.
(Dissertation – Master in Environmental Science).
The traditional ecological knowledge is a knowledge system that reflects the
adaptation of human population at their environment. This work presents the
Traditional Ecological Knowledge – TEK of birds by the pantaneiros of Cuiabá
Mirim Community, Pantanal of Mato Grosso, Brazil. The studied area is located
in the city of Barão de Melgaço, near Siá Mariana and Chocororé bays. The
traditional knowledge of Pantanal communities pictured by the intrinsic
relationship with the water cycle, bring along a strong expression of the local
culture, where the way of life expresses important information to build a
sustainable society. The traditional ecological knowledge of 22 pantaneiros1
were revealed through a dialogic process, by a hybrid methodological approach,
with a qualitative and quantitative character, by the environmental education
and management bias. For the data collection it was used techniques like free
lists, Participant observation, structured and semi structured interviews. The
informers identified a hundred and eighty eight bird ethno species and ethno
classified them according to feeding habit, habitat, appearance, behavior, those
that can be home breed and those that work as human food. In the community
quotidian it was observed an ethno calendar linked to the socio-ecological
system, becoming evident activities as: school time and party time and the
survive activities like fish and agriculture molded by the water time, in the
phases: filling - flood – receding – dry. Ethoindicator birds weather, biotic and
abiotic components and the informers perception concerning to the climate
changes were raised up. The community studied showed up a wide knowledge
1 Pantaneiros is a term that refers to all those who live in Pantanal.
20
about birds, with a lot of details and an ecosystemic perception, where knowing
and doing are molded by the relationship with the nature, outlined by the
capacity of adaption and by the capacity of readaptation of the environment
after being through a stressing situation. Studies about the traditional ecological
knowledge of Pantanal communities about birds and their relation with the
weather are important tools to the access to informations, rapidly, safely, and on
a low cost. Researches with an approach that contemplates the ecological
known of the traditional communities are being recognized and valorized
because it concerns to a long term knowledge that is perpetuated through the
oral transmission among generations.
Key - words: Pantanal, traditional ecological knowledge, birds.
Advisor: Teacher Carolina Joana da Silva, UNEMAT;
21
1. INTRODUÇÃO GERAL
Eu queria crescer pra passarinho...
(Manoel de Barros)
É desafiador pensar e praticar o processo de aprendizagem e pesquisa
numa perspectiva inter/multidisciplinar como o Programa de Pós-Graduação
em Ciências Ambientais da Universidade do Estado de Mato Grosso -
UNEMAT vem corajosamente se propondo. O mesmo Programa organizou
sua primeira publicação coletiva intitulada “Gestão e Educação Ambiental:
água, biodiversidade e cultura” organizada por Santos e Galbiati (2008) onde
foi apresentada a estrutura conceitual e experiencial, objetivando a formação
de profissionais direcionados ao manejo e planejamento ambiental e à
incorporação efetiva da dimensão social ao lado da ecológica no tratamento da
questão ambiental.
Desconstruir-se para (re)construir novos paradigmas, na busca de
superar uma concepção positivista de ciência, de educação e de trabalho
acadêmico, lançando um olhar particular sobre o meio ambiente e a
sustentabilidade enquanto abordagem holística que entrelaça-se pelo viés da
Gestão e Educação Ambiental onde somos sujeitos históricos, cognoscentes e
ecológicos no processo de aprendizagem o qual está sempre em construção.
Primeiramente buscou-se uma reflexão em Carvalho (1992), que coloca
que o diálogo entre saberes de várias ordens, não apenas no âmbito
disciplinar, mas com outras formas de conhecimento dotadas de lógicas
culturais próprias, incitam a hibridização de conhecimentos, entendendo-se que
uma “nova cientificidade implica uma profunda reflexão sobre a ciência
tradicional.”
No texto “O vôo da águia: reflexões sobre método, interdisciplinaridade e
meio ambiente,” Brügger (2006) discute a construção do conhecimento e cita
Hanna Arendt a qual argumenta que a “mudança do „por que‟ e do „o que‟ para
22
o „como‟ implica que os verdadeiros objetos do conhecimento já não são coisas
ou movimentos eternos, mas processos e, portanto o objeto da ciência já não é
a natureza ou o universo, mas a história de como vieram a existir a natureza, a
vida ou o universo”.
Na abordagem multidisciplinar, é necessário estabelecer um estado
permanente e constante de Educação Ambiental, para que possa ser
provocado um diálogo – debate generalizado. Wallace (2002), quando nos
alerta que todos nós devemos reconhecer que as questões ambientais são
também questões sociais, e que tais abordagens ainda não se encontram nas
principais pautas de discussões.
A Educação Ambiental é uma necessidade educacional contemporânea,
na perspectiva de viabilizar a compreensão da necessidade de uma nova
relação com o ambiente. É com ela que se pode ter a possibilidade de
conhecer e reconhecer a diversidade e a interação do mundo vivo, e assim
desenvolver uma relação, outra, do indivíduo com o ambiente. Sato (2004)
indica que a Educação Ambiental deve levar a uma formação mais cidadã.
Por sua vez, a Gestão Ambiental é entendida essencialmente como um
processo de mediação de conflitos de interesses. Reflexão sobre a construção
de comunidades com sustentabilidade ecológica nos remete a Capra em
Conexões Ocultas (2003, pág. 58) que coloca:
[...] não precisamos inventar comunidades humanas
sustentáveis a partir do zero, mas podemos modelá-las
seguindo os ecossistemas da natureza, que são as
comunidades sustentáveis de plantas, animais e micro-
organismos. Uma vez que a característica notável da biosfera
consiste em sua habilidade para sustentar a vida, uma
comunidade humana sustentável deve ser planejada de forma
que, suas formas de vida, negócios, economia, estruturas
físicas e tecnologias não venham a interferir com a habilidade
inerente à Natureza ou à sustentação da vida.
23
No campo da sustentabilidade esta pesquisa está em consonância com
o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, a Declaração
do Milênio, aprovada pelas Nações Unidas, em 2000, onde seus países
membros assumiram metas como a erradicação da pobreza e o compromisso
com sustentabilidade do Planeta.
Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) são um conjunto de
8 macro-objetivos, com metas e indicadores precisos, a serem atingidos pelos
países até 2015, por meio de ações concretas dos governos e da sociedade na
busca pela solução de alguns graves problemas da humanidade. Dentre esses
objetivos está o de garantir a sustentabilidade ambiental. O documento
constitui o maior estudo internacional realizado envolvendo as interações entre
os ecossistemas e o bem-estar humano, em escala regional a global,
reconhecendo que pessoas e ecossistemas interagem no tempo e no espaço.
Neste contexto, este trabalho foi desenhado no tempo e no espaço dos
pantaneiros na perspectiva da etnoecologia, ancorado no conceito de
Conhecimento Ecológico Tradicional (CET) que foi definido por Berkes e Folke
(1998), como um corpo cumulativo de conhecimento, práticas e crenças sobre
as relações dos seres vivos com seu ambiente, evoluído através de processos
adaptativos e repassado através das gerações por transmissão cultural. Este
conhecimento ecológico tradicional difere do conhecimento ecológico científico,
por ser amplamente dependente de mecanismos sociais locais (BERKES et al.,
2000), podendo complementar o conhecimento científico através de
experiências práticas da vivência dentro do ecossistema e das repostas às
mudanças ambientais (BERKES et al., 1998).
Considera-se aqui o conceito de comunidade tradicional, o qual foi
definido por Diegues (2005) como:
No Brasil existem duas categorias de populações tradicionais:
os Povos Indígenas e as Populações Tradicionais não
Indígenas. Uma das características básicas dessas populações
é o fato de viverem em áreas rurais onde a dependência do
24
mundo natural, de seus ciclos e de seus produtos é
fundamental para a produção e reprodução de seu modo de
vida. A unidade familiar e/ou de vizinhança é também uma
característica importante no modo de vida dessas populações
que produzem para sua subsistência e para o mercado. O
conhecimento aprofundado sobre os ciclos naturais e a
oralidade na transmissão desse conhecimento.
No artigo 3º do Decreto Presidencial número 6.040, publicado no Diário
Oficial da União, no dia 07 de fevereiro, 2007, povos e comunidades
tradicionais são considerados como:
grupos culturalmente diferenciados, que se reconhecem como
tais, que possuem formas próprias de organização social, que
ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição
para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e
econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas
geradas e transmitidas pela tradição.
Segundo Colchester (2000) as comunidades tradicionais são grupos
étnicos que tem uma identidade diferente da nacional, tira sua subsistência do
uso dos recursos naturais e não é politicamente dominante. De maneira
complementar, Berkes et al (2000) coloca que são comunidades cujas vidas
dependem do manejo de recursos naturais e do seu conhecimento ecológico
tradicional.
Neste contexto, Arruda (2000) relaciona Cultura Rústica como à cultura
presente em populações localizadas em regiões menos povoadas, com
recursos naturais abundantes, o que possibilitou a sobrevivência e reprodução
desse modelo sociocultural de ocupação e exploração dos recursos naturais,
com especificidades de acordo com as características histórias e ambientais. O
autor afirma que as formas de manejo do ambiente nestas populações,
denominadas como “tradicionais”, adquirem maior visibilidade em meio à
valorização das questões ambientais.
25
Como construir um trabalho científico quanti-qualitativo onde os sujeitos
da pesquisa possam ser reconhecidos e poderão se expressar de fato, e não a
projeção do pesquisador? Inúmeras reflexões são fundamentais.
O estudo do conhecimento de comunidades tradicionais pode ser
abordado sob vários enfoques científicos, desde a etnobiologia, etnoecologia,
etnobotânica, etnozoologia, etnoornitologia, ecologia cultural, e ecologia
humana, como forma de adaptação dos grupos humanos ao ambiente ou a
antropologia, através de uma abordagem histórica (KOERDELL, 1983).
Segundo este autor é através da cultura que as populações mantêm-se nos
ecossistemas. Em consonância, Begossi (1993) também coloca que o conjunto
complexo de interações que as culturas humanas mantêm com os animais
pode ser abordado por meio de diferentes recortes científicos, a depender da
linha teórica considerada.
Pesquisas com comunidades tradicionais do Pantanal com abordagem
etnoecológica vêm sendo desenvolvidas desde 1995 (Da Silva e Silva) e mais
recentemente no grupo de pesquisa liderado pela primeira autora, com
conceitos de Ecologia e Etnoecologia aplicados ao Pantanal.
O Pantanal Mato-grossense é regulado pelo pulso de inundação que é
previsível e de longa duração, porém, sujeito as variações anuais da
pluviosidade (DA SILVA e ESTEVES, 1995). O conceito de pulso de inundação
ressalta que durante a cheia, as áreas alagáveis recebem águas e material
dissolvido e em suspensão dos rios e lagos conectados, da chuva, e da subida
temporária do lençol freático. Alguns organismos aquáticos migram ativamente
ou são transportados passivamente para as áreas alagáveis, outros
desenvolvem-se a partir de estágios de dormência. Mudanças naturais e
antrópicas do pulso de inundação têm efeitos grandes para a estrutura e
funcionamento do sistema, e afetam os serviços prestados pelos sistemas para
a paisagem e as populações humanas (JUNK e DA SILVA, 1999; JUNK e DA
SILVA, 2003).
26
É nesse ambiente moldado pelo ritmo das águas que as comunidades
tradicionais ribeirinhas da Bacia do Alto Paraguai vivem criando e recriando a
cultura pantaneira. Cada fase deste movimento – enchente, cheia, vazante e
estiagem – tem suas características próprias e traz para aqueles que lá vivem
um modo de pensar, sentir, olhar e agir único que, portanto, devem ser
considerados quando políticas de manejo e conservação desta bacia são
propostas (Da SILVA e SILVA, 1995).
No Pantanal de Mato Grosso, estudos de natureza etnobiológica
contemplam ainda: relações ambientais e educativas no cotidiano da
Comunidade Ribeirinha de Porto Brandão, Pantanal de Barão de Melgaço –
MT (REIS, 1996); Aspectos Comportamentais da Arara Azul (Anodorhynchus
Hyacinthinus) na Localidade de Pirizal, Município de Nossa Senhora do
Livramento, Pantanal de Poconé (PINHO, 1998); Impactos das Políticas
Públicas sobre os Pescadores Profissionais do Pantanal de Cáceres - Mato
Grosso (MEDEIROS, 1999); Tradição e Ruptura: cultura e ambiente
pantaneiro (CAMPOS FILHO, 2002); Percepção das mudanças naturais e
antrópicas no sistema hídrico do Rio Cuiabá na comunidade de Sitio Santa
Rita (SIMONI, 2004); Análise de Stakeholder no Sistema de Baías
Chacororé-Siá Mariana, caracterizando e identificando os principais grupos
de interesse que operam neste sistema (SILVEIRA, 2004); Educação
Ambiental e Etnoconhecimento: parceiros para a conservação da diversidade
de aves pantaneiras (OLIVEIRA JÚNIOR e SATO, 2006); Água na gente e
gente na água: o caminho das águas em São Pedro da Joselândia
(PIGNATTI et al., 2007); Práticas de cura de benzedores em comunidade
tradicional do Pantanal de Mato Grosso (MOTA, 2008);
Na comunidade de Cuiabá Mirim o grupo de pesquisa “Conceitos em
Ecologia e Etnoecologia do Pantanal” liderado por Da Silva vem realizando
amplas pesquisas como: A casa e a paisagem pantaneira percebida pela
comunidade tradicional Cuiabá Mirim, Pantanal de Mato Grosso (GALDINO,
2006; GALDINO e DA SILVA, 2009); Conhecimento Ecológico Tradicional da
27
pesca pela comunidade Cuiabá Mirim – Barão de Melgaço, Pantanal Mato-
Grossense (MORAIS, 2006); Rio Cuiabá: espaço de vida da comunidade de
Cuiabá Mirim, Pantanal Mato- Grossense (VIANA, 2008).
No cenário atual, pesquisas abordando o Conhecimento Ecológico
Tradicional - CET das comunidades do Pantanal sobre as aves e suas relações
com o clima e com o ciclo hidrológico são importantes ferramentas para o
acesso ao conhecimento, de modo rápido, seguro, eficiente e de baixo custo,
sabendo-se que ainda existe uma carência de pesquisas consolidadas nesse
viés.
Esta pesquisa tem a intenção de verificar o Conhecimento Ecológico
Tradicional da comunidade Cuiabá Mirim sobre as aves – a riqueza de
etnoespécies e etnocategorias – e os etnoindicadores climáticos. O desenho
deste trabalho será apresentado em forma de Capítulos.
O primeiro Capítulo contempla a rede social dos informantes, a lista de
etnoespécies de aves, bem como, as etnocategorias e a rede alimentar das
espécies mais citadas. O segundo apresenta as aves etnoindicadoras
climáticas e outros componentes bióticos e abióticos que a comunidade
reconhece como etnoindicadores climáticos naturais e de alterações no clima
do Pantanal. O terceiro Capítulo aborda a simbologia da comunidade ligada às
aves, tecendo um diálogo com o imaginário local visando contribuir com a
identidade Pantaneira dos que vivem em Cuiabá Mirim. O formato da
dissertação, onde são colocados resumos e referências bibliográficas em todos
os capítulos atende as normais atuais do Programa de Mestrado da UNEMAT.
Este trabalho recebeu o apoio por meio de bolsa de estudos da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.
28
1.1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS GERAL
ARRUDA, R. S. V. Populações tradicionais e a proteção de recursos naturais
em unidades de conservação. Rev. Ambiente e Sociedade, São Paulo: ano II
no. 5. 2000.
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1998.
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para proteção da natureza nos trópicos. São Paulo: NUPAUB-USP. 2000.
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lagoas Porto de Fora e Acurizal em função da variação do nível de água. In:
ESTEVES, F. A. (ed.) Estrutura e Manejo de Ecossistemas Brasileiros. 1995.
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nacional de recursos hídricos - MMA, 2005.
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comunidade tradicional Cuiabá Mirim, Pantanal de Mato Grosso. Dissertação
de Mestrado. UFMT. 2006.
GALDINO, Y. S. N.; DA SILVA, C. J. . A casa e a paisagem pantaneira:
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vista y uma perspectiva. Xalapa. Inst.Nac. de Investigaciones sobre Recursos
Bióticos, 1983.
30
MEDEIROS, H. Q. Impactos das Políticas Públicas sobre os Pescadores
Profissionais do Pantanal de Cáceres - Mato Grosso. Dissertação de Mestrado.
São Paulo. USP. 1999.
MORAIS, R. Conhecimento Ecológico Tradicional da pesca pela comunidade
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Mestrado. UFMT. 2006.
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Pantanal de Mato Grosso. Dissertação de Mestrado. Cuiabá. UFMT, 2008.
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PIGNATTI, M. G.; CASTRO, S. P.; QUADROS, I. P.; ALBERNAZ-SILVEIRA,
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Joselândia, Mato Grosso – Brasil. Cuiabá: EdUFMT, 2007.
PINHO, J.B. Aspectos ecológicos e comportamentais da Arara-azul
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Senhora do Livramento, Pantanal de Poconé. Cuiabá: UFMT, Dissertação
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REIS, S. L. A. As Relações Ambientais e Educativas no Cotidiano da
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MT. Dissertação apresentada ao Programa Integrado de Pós Graduação do
Instituto de Educação da UFMT, Cuiabá – MT. 1996.
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água,biodiversidade e cultura. Ed.Rima, São Carlos, 2008.
SATO, M. Educação Ambiental. São Carlos, Rima. 2004.
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SILVEIRA. J. M. F. Aplicação do Método Stakeholder Analysis no Sistema de
Baias Chacororé/Sinhá Mariana, Pantanal de Mato grosso, Brasil.
(Dissertação). Instituto de Biociências- UFMT. Cuiabá, MT. 2001.
SIMONI, J. Percepção das mudanças naturais e antrópicas por uma
comunidade ribeirinha, no sistema hídrico do Rio Cuiabá, Mato Grosso.
Dissertação (Mestrado em Ecologia e conservação da Biodiversidade) Instituto
de Biociências, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá. 2004.
VIANA, I. Rio Cuiabá: espaço de vida da comunidade de Cuiabá Mirim,
Pantanal Mato-Grossense. Dissertação de mestrado. UNEMAT. 2008.
32
CAPÍTULO I
CONHECIMENTO ECOLÓGICO TRADICIONAL DE AVES
“... Acho que as águas iniciam os pássaros
Acho que as águas iniciam as árvores e os peixes
E acho que as águas iniciam homens,
Nos iniciam,
E nos alimentam e nos dessedentam,
Louvo esta fonte de todos os seres, de todas as
Plantas, de todas as pedras,
Louvo as natências do homem do Pantanal...”
(Manoel de Barros)
Figura 01: Arte do Chão. Série Imagética Pantaneira. Imagem: Ruth Albernaz, 2009.
33
RESUMO
ALBERNAZ-SILVEIRA, Ruth. Conhecimento Ecológico Tradicional de aves da
Comunidade Cuiabá Mirim, Pantanal de Mato Grosso. Cáceres: UNEMAT, 2010.
163 p. (Dissertação – Mestrado em Ciências Ambientais)
Esta pesquisa apresenta o Conhecimento ecológico tradicional-CET de aves
pela comunidade Cuiabá Mirim, Pantanal de Mato Grosso-MT. A área de
estudo localiza-se no Município de Barão de Melgaço, com aproximadamente
97,5% de terras inundáveis no período das cheias. Para coleta de dados
utilizou-se de métodos como: entrevistas estruturadas e semi-estruturadas, lista
livre, observação participante e diário de campo. Foram entrevistados 22
moradores da comunidade. Os informantes citaram 188 etnoespécies de aves.
O grupo estudado mostrou amplo conhecimento ecológico tradicional a respeito
das aves, incluindo categorias relacionadas a morfologia, hábitos alimentares,
hábitats e comunicação. Esses conhecimentos são transmitidos oralmente ao
longo das gerações. A cultura pantaneira é rica em saberes sobre as aves, de
forma que a mesma poderá contribuir significativamente para a implementação
de políticas públicas que contemplem a gestão participativa do Pantanal e
ações em Educação Ambiental voltadas para a conservação do bioma.
Palavras-chave: Pantanal, Conhecimento Ecológico Tradicional, Aves.
Orientadora: Profª. Drª. Carolina Joana da Silva, UNEMAT;
34
ABSTRACT
ALBERNAZ-SILVEIRA, R. Tradicional Ecological Knowledge of birds in the Cuiabá
Mirim Community, Pantanal of Mato Grosso. Cáceres: UNEMAT, 2010. 163 p.
(Dissertation – Master in Environmental Science).
This research presents the birds Traditional Ecological knowledge in the
community of Cuiabá Mirim, Pantanal of Mato Grosso - MT - CET The studied
area is located in the city of Barão de Melgaço, with almost 97,5% of flooded área
during the flood period. The data collection used methods like: structured and
semi- structured interviews , free list, participant observation, camp dairy. Twenty
two people from the community were interviewed. The informers quoted 188 bird
ethno species. The studied group showed off a wide ecological traditional
knowledge about the birds, including concepts related to morphology, feeding
habits and communication. This knowledge is orally transmitted over the
generations. Pantanal‟s culture is rich in knowledge about birds, so that it can
contribute significantly to the implementation of public policies that include the
participatory management of Pantanal and environmental education focused on
the biome conservation.
Key - words: Pantanal, Traditional Ecological Knowdledge, Birds.
Advisor: Carolina Joana da Silva, UNEMAT;
35
2.1. INTRODUÇÃO
O conhecimento tradicional é definido por Diegues (2000) como saber e
o saber fazer, a respeito do mundo natural e sobrenatural, gerado no âmbito da
sociedade não urbana/industrial e transmitido oralmente de geração em
geração.
Alguns autores preferem designar como conhecimento local, colocando
como um conhecimento hibridizado com os novos discursos da globalização e
da sustentabilidade. Segundo Leff (2005, pág. 332-333):
Nas culturas tradicionais, o conhecimento, os saberes e os
costumes estão entrelaçados em cosmovisões, formações
simbólicas e sistemas taxonômicos, através das quais
classificam a natureza e ordenam os usos de seus recursos; a
cultura atribui desta maneira valores-significado à natureza,
através de suas formas de cognição, de seus modos de
nomeação e de suas estratégias de apropriação de recursos.
Com a intenção de compreender os conhecimentos ecológicos a
respeito das aves pelos pantaneiros da comunidade Cuiabá Mirim, considerado
como parte integrante de um sistema sócio-ecológico complexo, foi planejada e
desenvolvida a presente pesquisa, buscando um diálogo entre as Ciências
Biológicas e Sociais, pelo viés da Etnobiologia/Etnoecologia.
A Etnobiologia origina-se da antropologia cognitiva, em particular da
etnociência, que busca entender como o mundo é percebido, conhecido e
classificado por diversas culturas humanas. A Etnobiologia tem como objetivo
analisar a classificação das comunidades humanas sobre a natureza, em
particular sobre os organismos (BEGOSSI, 1993).
Complementarmente, a Etnoecologia pode ser vista como um campo de
pesquisa (científica) transdisciplinar, que estuda os pensamentos
(conhecimentos e crenças), sentimentos e comportamentos, que intermedeiam
as interações entre as populações humanas que os possuem e os demais
36
elementos dos ecossistemas que as incluem, bem como os impactos
ambientais daí decorrentes (MARQUES, 2001).
Em “aspectos históricos e conceituais da etnoornitologia”, Farias e Alves
(2007, pág. 92) conceituam a etnoornitologia como: “Conjunto de estudos em
que se busca compreender as relações cognitivas, comportamentais e
simbólicas entre a espécie humana e as aves.”
Alguns desafios podem aparecer ao longo da pesquisa, onde o
investigador defronta ao lidar com outras culturas, refletindo para não correr o
risco de impor suas próprias idéias e categorias culturais a seus informantes ou
consultores culturais, como descrença, desagrado, reprovação (POSEY, 1987).
O mesmo autor ainda aponta para a importância da qualidade e não da
quantidade de dados e alerta para grande desvantagem dos pesquisadores em
campo, quando estes já trazem suas hipóteses de pesquisas formuladas, em
que conceitos etnocêntricos podem estar inseridos, transformando a pesquisa
em uma mera projeção do pesquisador.
Pesquisas realizadas abordando a biodiversidade de aves na
perspectiva ecológica e Educação Ambiental em área de abrangência do
Pantanal de Mato Grosso, podem ser elencadas: O canto de Céu Aberto e de
Mata Fechada (CATUNDA, 1994); Sucesso reprodutivo de tuiuiú Jabiru
mycteria (Aves: Ciconiidae) no Pantanal de Poconé-MT (OLIVEIRA, 1997);
Estrutura de Comunidades de Aves como Base para Monitoramento da área de
influência da APM Manso, Chapada dos Guimarães, MT (SONODA, 2001);
Efeitos bióticos e abióticos de ambientes alagáveis nas assembléias de aves
aquáticas e piscívoras no Pantanal (OLIVEIRA, 2006); O conhecimento local
dos moradores das comunidades pantaneiras de São Pedro da Joselândia e
Barra do Piraim (MT, Brasil) sobre a avifauna pantaneira (OLIVEIRA JÚNIOR e
SATO, 2007); Avifauna (OLIVEIRA, 2009).
Estudos no Pantanal vêm levantando a vasta biodiversidade de animais
e plantas, onde já foram identificadas mais de seiscentas e cinqüenta e seis
37
(656) espécies de aves (MORRISON, 2008). A diversidade biológica é
elemento essencial para o equilíbrio ambiental, já que, sob a perspectiva
ecológica, quanto maior a simplificação dos ecossistemas, maior a sua
fragilidade.
2.2. MATERIAL E MÉTODOS
O PANTANAL
O Pantanal sul-americano é um sistema sócio-ecológico complexo
regido pela movimentação das águas, uma das principais rotas migratórias das
aves nômades, conectando territórios multinacionais, abrangendo a Bolívia, o
Paraguai, e sua maior área encontra-se no Brasil, nos Estados de Mato Grosso
e Mato Grosso do Sul.
A área de abrangência do Pantanal é de aproximadamente 150.355 km².
Desse território, as áreas inundáveis compreendem a maior parte do Pantanal
e são marcadas por uma variabilidade climática interanual, caracterizada por
duas estações distintas: uma seca (maio a setembro) e outra chuvosa (outubro
a abril). O relevo é de baixíssima declividade de 0,7 a 5 cm/km no sentido
norte-sul e entre 7 e 50 cm/km no sentido leste-oeste que, associado à
distribuição de chuvas periódicas na Bacia do Alto Paraguai, explica o
fenômeno das cheias anuais (IBGE, 2009) .
Esta sazonalidade é marcada pelo processo ecológico denominado
como pulso de inundação, desenhado por um ciclo mono-modal tendo uma
variação de amplitude de até cinco metros e de duração entre três a seis
meses (JUNK e DA SILVA, 1999). Quanto ao ritmo das águas e a presença
indígena na região, Lévi-Strauss (1996, pág.154) comenta:
Ao contrário do que parece, a água do Pantanal é ligeiramente
corrente; arrasta conchas e limo que se acumulam em certos
pontos onde a vegetação se enraíza. Assim, o Pantanal está
coalhado de tufos de vegetação chamado „capões‟, onde os
38
antigos índios estabeleciam seus acampamentos e onde
descobrimos vestígios de sua passagem.
A pesquisa foi desenvolvida na Região da Bacia do Rio Cuiabá, um dos
principais contribuintes da planície pantaneira. A área está localizada no
Município de Barão de Melgaço, na comunidade ribeirinha Cuiabá Mirim,
assentada na margem direita do Rio Cuiabá (coordenadas geográficas S 16°
20‟ 51” e W 55° 57‟ 35”), próximo às Baías de Sinhá Mariana e Chacororé
(Figuras 02 e 03).
A comunidade Cuiabá Mirim conta com aproximadamente 274
moradores pertencentes a 48 famílias. As residências estão distribuídas
acompanhando a margem do Rio Cuiabá (figura 04), quando os filhos vão
casando-se, constroem suas casas próximo da casa dos pais, pois a
comunidade dispõe de um “espaço pequeno” de terras.
39
Figura 02: Imagem da área de estudo no Pantanal; Fonte: Grupo de Pesquisa Conceitos
em Ecologia e Etnoecologia do Pantanal. Adaptação: satélite Landsat.
Cuiabá
Mirim
40
Figura 03: Vista da Baía Siá Mariana, próxima à Comunidade Cuiabá Mirim.
Foto: Ruth Albernaz, 2009.
Figura 04: Vista do leito antigo do Rio Cuiabá, o qual corre água somente no
período da cheia. Foto: Ruth Albernaz, 2009.
41
2.2. MÉTODOS
A escolha da abordagem híbrida de cunho qualitativo e quantitativo se
configurou como uma boa opção metodológica. A pesquisa compreendeu três fases
de execução: levantamento e leitura das fontes bibliográficas para a construção do
referencial teórico, pesquisa de campo, processamento de dados e redação.
Para a abordagem qualitativa utilizou-se de técnicas como entrevistas
estruturadas, semi-estruturadas e observação participante. Na abordagem
quantitativa, entrevistas estruturadas (lista livre).
A análise dos dados quantitativos foi realizada utilizando o “software
ANTROPAC 4.0” (BORGATTI, 1996), onde foi analisada a ocorrência de consenso
cultural nas informações.
A escolha dos entrevistados foi feita por meio da amostragem Bola de Neve
Snowball Sampling (CAULKINGS e HYATT, 1999; BERNARD, 2002), utilizada
para a elaboração de redes sociais, onde pode-se observar os níveis de
comunicação e interação entre as pessoas. O uso de redes sociais, em trabalhos
com comunidades tradicionais é indicado por Vogl, et al. (2004), os quais usaram
essa técnica nas suas pesquisas no México, Áustria e Bornéo.
PESQUISA DE CAMPO
A inserção ao campo contou com o apoio da pesquisadora Viana2, que já
havia feito sua pesquisa de Mestrado na comunidade e integra a equipe do Grupo
de Pesquisa liderado pela orientadora3 deste trabalho.
O primeiro contato realizado na comunidade foi com o Sr. Salvador, pessoa
influente na comunidade, pescador aposentado, que apóia os pesquisadores,
inclusive hospedando-os em sua casa. Ele foi o primeiro informante para este
trabalho.
2 Pesquisadora Msc. Iris Viana realizou a dissertação de mestrado: Rio Cuiabá: espaço de vida da
Comunidade Cuiabá Mirim, 2008, UNEMAT.
3 Profª Drª Carolina Joana da Silva lidera o Grupo de Pesquisa Conceitos Ecológicos e
Etnoecológicos aplicados a Conservação da Água e da Biodiversidade do Pantanal.
42
As entrevistas foram realizadas a partir dos nomes que foram indicados na
rede social. Em função das atividades profissionais, como empregos em pousadas
da região do Pantanal, pescadores profissionais que ficam longos períodos fora da
comunidade e não estavam disponíveis para as entrevistas, foi necessário elaborar
dois critérios de escolha dos informantes:
1) os nomes mais indicados na rede social;
2) pessoas da rede social que estavam disponíveis para serem entrevistadas.
As entrevistas semi-estruturadas seguem um diálogo livre (VIERTLER, 2002)
em que o pesquisador se apóia em uma lista com tópicos e questões que devem ser
abordados na entrevista (BERNARD, 2002). As entrevistas semi-estruturadas foram
usadas com o objetivo de obter informações detalhadas sobre o tema da pesquisa.
As entrevistas estruturadas têm tópicos fixos (VIERTLER, 2002) que
delimitam as informações desejadas e geralmente contribuem para a quantificação
dos dados (HUNTINGTON, 2000).
Nesta pesquisa utilizou-se a listagem livre, um modelo de entrevista
estruturada, em que o informante faz uma lista de itens de um domínio cultural de
interesse do pesquisador (VOGL et al., 2004), neste caso das aves conhecidas
pelos informantes da Comunidade Cuiabá Mirim.
Quanto ao registro de dados, as entrevistas foram gravadas com a permissão
prévia dos informantes por meio de gravadora e filmadora SONY e fotografado
algumas atividades da observação participante. É indicado o uso de gravador na
realização de entrevistas para que seja ampliado o poder de registro e captação de
elementos de comunicação de extrema importância, pausas de reflexão, dúvidas ou
entonação da voz, aprimorando a compreensão da narrativa (SCHRAIBER, 1995).
PRÉ-TESTE
Na primeira visita à comunidade, após a conhecer algumas famílias da
comunidade, foi realizado um pré-teste com dez (10) pessoas, para assegurar que
43
as perguntas da lista livre estavam elaboradas de forma compreensível, tanto em
linguagem êmica quanto ética4.
O pré-teste, ou estudo piloto, é usado para verificar a estrutura e a clareza do
roteiro, por meio de uma entrevista preliminar com pessoas que possuam
características semelhantes a da população alvo, ou mesmo com pessoas da
mesma comunidade a ser estudada (TRIVIÑOS, 1987).
ENTREVISTAS ESTRUTURADAS
Para categorizar a nomenclatura genérica das aves, levando-se em
consideração a linguagem local, evitando a inserção de uma definição pré-
estabelecida, foram elaboradas duas perguntas, de acordo com o contexto:
Quando havia alguma ave por perto, de forma que o informante pudesse
visualizá-la, perguntou-se: o que é aquilo?
Para as entrevistas realizadas a noite e/ou quando não havia nenhuma ave
no ambiente, perguntou-se qual a nomenclatura utilizada para: como o senhor(a)
conhece os bichos que voam, tem bico e penas?
A terceira pergunta teve o objetivo de elaborar a lista livre de etnoespécies
conhecidas pelos informantes, dessa forma foi perguntado: quais o(a) pássaros (ou
passarinhos) o(a) senhor(a) conhece? (LISTA LIVRE).
Ao final da entrevista foi pedido ao informante que ele(a) indicasse nomes de
pessoas que ele(a) julgasse saber sobre o assunto relativo às aves, com a
finalidade de construir a rede social e realizar as próximas entrevistas: quem são
as pessoas que o(a) senhor(a) indica para conversar sobre os passarinhos?
Durante a coleta de dados quantitativos (lista livre), os informantes
forneceram dados qualitativos que categorizavam as etnoespécies quanto ao:
vôo, aparência, hábito alimentar, hábitat, comportamento, os pássaros que
podem criar em casa, os que servem para comer.
Após a primeira etapa de entrevistas, partiu-se para a análise de dados no
software ANTROPAC 4.0 para verificar se havia consenso cultural.
4 Marques (2001) conceitua a linguagem êmico/ ético, como sendo a do informante/pesquisador.
44
QUEM COME QUEM (REDE ALIMENTAR)
Na segunda etapa das entrevistas, ocorreu o aprofundamento das
informações de cunho qualitativo a respeito do conhecimento tradicional da rede
alimentar de 38 etnoespécies de aves que estavam no consenso cultural.
Essa técnica foi desenvolvida por Wallace (1983) que estudou o
conhecimento tradicional de uma comunidade em Pagan Gaddang, a respeito da
rede alimentar, onde ele coloca que estudar o conhecimento tradicional é mais
rápido para saber o que está acontecendo no ecossistema, porque as pessoas que
vivem naquele ambiente conhecem mais a respeito das relações da fauna e flora
local do que o pesquisador visitante.
Nessa etapa, buscou-se uma abordagem com entrevistas que o diálogo
fluísse de forma que se pudesse conseguir mais detalhes do objeto da pesquisa
(Tabela 01):
Tabela 01: Modelo de entrevista.
PERGUNTA RESPOSTA
O que o Tuiuiú come? “Peixe tipo mussum e cambatoá”;
O peixe que o tuiuiú come, come o quê? “Uns come inseto e mussum come outro peixe”;
O inseto que o peixe come, come o quê? “Lodo e água”;
Quem come o tuiuiú? “Jacaré e gente”;
Quem come o jacaré que comeu o tuiuiú? “Só a onça”.
Quem come a onça que comeu o jacaré? “Ah difícil, só o urubu que come a onça morta”.
E quem come o urubu?... ...
45
OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE
Na técnica observação participante, o pesquisador se entrega ao
acompanhamento do cotidiano do informante, podendo detectar referenciais
culturais que sejam significativos para a interpretação daquele objeto estudado
(VIERTLER, 2002).
Na observação participante, é preciso atentar para o aspecto ético e para o
perfil íntimo das relações sociais, ao lado das tradições e costumes, o tom e a
importância que lhes são atribuídos, as idéias, os motivos e os sentimentos do grupo
na compreensão da totalidade de sua vida, verbalizados por eles próprios, mediante
suas categorias de pensamento (QUEIROZ, 2007).
Neste trabalho, a observação participante serviu para buscar informações
complementares a respeito do objeto de pesquisa, auxiliando principalmente nos
dados qualitativos e tecendo uma relação de confiança com a comunidade para
adentrar no universo da pesquisa.
A técnica conhecida como observação participante foi realizada em todas as
visitas à Comunidade, em atividades relacionadas aos afazeres do cotidiano:
acompanhamento das mulheres para a limpeza de peixes na beira do rio; lavagem
de roupas; pescaria com crianças; “bate papo” enquanto pescador consertava os
“petrechos” de pescaria; colheita de frutos junto com as mulheres; observação de
passarinho; colheita de folha de sarã para fazer chá e colheita de outras plantas
medicinais em quintal; colheita de couve em horta plantada no barranco do Rio
Cuiabá; visita à casa do principal ancião da comunidade, com 103 anos, para ouvir
as histórias da origem de Cuiabá Mirim, entre outras atividades (Fig.05).
PROCESSAMENTO DOS DADOS
Para processar as Listas Livres foi usado o software ANTHROPAC 4.0
(BORGATTI, 1996).
A Lista Livre foi analisada pelo Índice de Saliência de Smith, que analisa os
modelos cognitivos, através da freqüência e da ordem das respostas (BORGATTI,
1996a). Em um domínio cultural típico, existem na lista alguns itens principais, que
46
muitas pessoas mencionaram, e muitos itens que foram pouco mencionados ou
mencionados apenas uma vez (itens idiossincráticos). De forma ideal deveria ser
encontrada uma quebra entre os elementos centrais (citados por muitos informantes)
e os elementos idiossincráticos (BORGATTI, 1996b).
Em seguida foi realizada a Análise de Consenso (ROMNEY et al., 1986), na
qual a Lista Livre foi analisada pelo:
(1) grau de acordo entre informantes sobre o domínio do conhecimento;
(2) respostas típicas;
(3) a proximidade das respostas dos informantes às respostas típicas.
Nesta pesquisa a Análise de Consenso foi utilizada para verificar quais aves
que eles conhecem e quais etnoespécies estão inseridas no domínio cultural
(CAULKINS e HYATT, 1999; BORGATTI, 1996) ou culturalmente típicas
(CHRISTANELL, 2003).
As repostas culturalmente típicas são definidas pelos informantes e pelo
consenso cultural sobre o que está sendo pesquisado. As respostas mais freqüentes
representam melhor o consenso cultural do que respostas idiossincráticas
(BORGATTI, 1996a; BERNARD, 2002).
Borgatti (1996a) coloca que o conceito uma cultura (one culture) é o
pressuposto para o uso da Análise de Consenso. Para este autor não podem
coexistir duas culturas bem definidas dentro de uma comunidade, e as possíveis
variações no conhecimento dos informantes numa comunidade, existem por causa
de experiências pessoais.
Para estes autores isto demonstra a variação e a diversidade cultural.
Caulkins e Hyatt (1999) descrevem dois tipos de acordo (ou desacordo) nos
domínios culturais: coerente, onde ocorre um alto grau de consenso cultural, e
incoerente, onde ocorre baixo consenso cultural entre os informantes.
47
Figura 05: Observação participante na Comunidade. Fotos: Milaine, Iris Viana, Ruth Albernaz, 2009.
48
2.3. RESULTADOS
PERFIL DOS INFORMANTES
O universo da pesquisa realizou-se com 22 informantes integrantes da rede
social, cuja faixa etária variou entre 29 a 103 anos. Quanto ao gênero são 05
mulheres (22,7%) e 17 homens (77,3%). O estado civil está distribuído entre: dois
solteiros (♂♂), dois viúvos (♂♀) e dezoito casados (4♀, 14♂). Todos os informantes
(100%) nasceram no Município de Barão de Melgaço, nas seguintes localidades
(tabela 02):
Tabela 02: Origem dos informantes e tempo de residência em Cuiabá Mirim.
Local de Nascimento Nº pessoas Tempo de residência
em Cuiabá Mirim
(anos)
Barão de Melgaço (cidade) 01 30
Cuiabá Mirim 01 33
Estirão Cumprido 04 30/43/47/37
Atibaia 04 40 /48 /40/23
Usina Flexas 05 27/30/30/38/30
Porto General 02 53 /53
Fazenda Espírito Santo 02 41/38
Boca da Pedra 01 28
Guató 01 30
Porto Brandão 01 32
49
Quanto à profissão, a maioria dos entrevistados se auto-identificaram como
pescadores profissionais (82%), embora desenvolvessem outras atividades como:
criação de gado, plantio de roça (na piracema), piloteiro de barco para pousadas,
guia de turismo, trabalho temporário em pousada. Apenas dois informantes se
identificaram como lavrador (9%), sendo um lavrador-aposentado. Das cinco
mulheres entrevistadas, apenas uma colocou a atividade de dona-de-casa (4%)
como profissão, e um comerciante (5)% (figura 06).
A comunidade dispõe de uma porção pequena de terra que fica ao longo da
margem direita do Rio Cuiabá, limitando o espaço para o desenvolvimento de
atividades como a criação de gado e roças, de maneira que a atividade pesqueira se
transformou ao longo dos anos, na principal atividade de subsistência por ser a
alternativa de maior disponibilidade de recursos e baixo custo.
Figura 06: Distribuição das profissões dos informantes.
82%
9%
4%
5%
Profissão
Pescador
Lavrador
Dona de casa
Comerciante
50
REDE SOCIAL
A rede social resultou em um emaranhado de conexões humanas com 51
(cinqüenta e uma) pessoas, onde cada entrevistado indicou outras pessoas. A rede
social serviu para a escolha dos informantes que foram entrevistados e para a
observação de como o fluxo de relações sociais se configura no âmbito da
comunidade. Os homens foram predominantes com 40 (quarenta) indicações e
11(onze) mulheres.
O primeiro entrevistado foi Seu Salvador, a partir dele foram entrevistadas
mais 21 pessoas. O informante mais indicado por outros para ser entrevistado foi o
Sr. Salvador com cinco indicações, seguido de Belmiro (Biró) e Benedito (Pitó)
ambos com quatro indicações. A mulher mais indicada foi D. Escolástica, 76 anos
(três indicações) (Figura 7).
As relações na comunidade são abertas e bem distribuídas, a maioria das
pessoas da rede social foi indicada por apenas um informante, podendo observar
uma riqueza de possibilidades de indicações, sendo que muitas vezes os
componentes da rede social que encontram-se na periferia da rede, apresentam
características de conexão com as outras sociedades.
51
DODÔ BENTO TOTÓ GONÇALO SAMUEL NEGA DOMINGOS FLÁVIO SALVADOR CECÍLIO TOTÓ JOANA LÚCIO MARCINHO PEDRINHO LUZIA PITÓ BIRÓ JOÃO SONIA EDENIL BIZI
JÚLIO IVAN MARIA BENEDITA MARTINHO ANA ROSA ANTONIO GONÇALVES LUIZ C. JOSÉ TROMBONE LOURENÇO BIC JOANA RITA SEBASTIÃO MANOEL EDINHO CARLITO ANGÍ DILNEY ELOIO XINO PEDRINHO CARLINHO LOURENÇO TOTE BENEDITO EUZÉBIO MARIA APARECIDA URSOLINA ADELINA FRANCISCO MARIA PADILHA ESCOLÁSTICA
Figura 07: Rede social dos informantes de Cuiabá Mirim. Os nomes marcados foram entrevistados.
52
CONHECIMENTO ECOLÓGICO TRADICIONAL DE AVES
Todos os informantes (100%) consideraram que os animais que possuem
penas, bico, voam e põem ovos são denominados de forma indistinta de pássaros
ou passarinhos:
“pra nós tudo esses que avoa no céu, é pássaro ou passarinho
e quando tem vários junto é um bando de pássaro” (SCS, 63
anos, ♂).
Foram registradas na lista livre dos informantes cento e oitenta e oito
etnoespécies de aves (anexo I), incluindo um mamífero: morcego (Ordem
Chiroptera) que foi indicado três vezes “Morcego é bicho, mas é passarinho.”
(AGQ, 63 anos, ♂). A lista livre é uma ferramenta utilizada para demonstrar o
domínio cultural sobre algo, sendo o número total das etnoespécies indicadas pelos
informantes
A análise do consenso cultural indicou trinta e oito etnoespécies a partir do
índice de Smith, apresentado na tabela 03. As etnoespécies que apresentaram os
índices de saliência mais elevados foram: Tuiuiú (0.788), cabeça seco (0.779),
garça (0.740).
53
Tabela 03: Fragmento do anexo I. Análise de lista livre das etnoespécies dentro do
consenso cultural, de acordo com informantes de Cuiabá Mirim (índice de Smith).
Etnoespécie de aves Pista taxonômica Frequên cia
% de resposta
Ranque Índice Smith's
TUIUIU Jabiru mycteria 20 95 10.500 0.788
CABEÇA SECO Mycteria Americana 19 90 7.263 0.779
GARÇA Casmerodius albus 20 95 12.300 0.740
MUTUM Crax fasciolata 19 90 15.316 0.637
ARANCUÃ Ortalis canicollis 18 86 16.222 0.600
PAPAGAIO Amazona sp 18 86 17.278 0.562
BAGUARI Ardea cocoi 18 86 17.444 0.561
PIRIQUITO Psitacidae 18 86 22.500 0.512
JURUTI Leptotila sp 20 95 23.750 0.506
COLHEREIRO Platalea ajaja 13 62 13.769 0.461
CABECINHA VERMELHA
Paroaria sp 16 76 19.750 0.451
BIUÁ Phalacrocorax sp 12 57 13.333 0.440
MASSA BARRO Furnarius rufus 14 67 19.643 0.410
BEM-TE-VI Pitangus sulphuratus 14 67 23.071 0.387
JAÓ Crypturellus Undulatus 16 76 28.500 0.361
ANHUMA Chauna torquata 12 57 21.833 0.357
BEIJA-FLOR Trochilidae 15 71 26.533 0.353
MARRECA Anatidae 16 76 30.750 0.341
ROLINHA Columbina sp 15 71 28.467 0.334
SARACURA Aramides cajanea 15 71 31.467 0.349
SOCÓ Tigrisoma lineatum 10 48 13.800 0.324
SABIÁ Turdus sp 13 62 27.692 0.322
POMBA Columba sp 11 52 21.545 0.310
JACUTINGA Pipile pipile 11 52 25.545 0.308
ANDORINHA Hirundinidae 12 57 24.917 0.294
PIXARONE Saltator coerulescens 11 52 24.909 0.291
CANARINHO Fringilidae 12 57 27.083 0.277
MARTIM-PESCADOR Coraciformes 13 62 32.231 0.273
PIRIQUITO BARROSO Myiopsitta monachus 11 52 26.636 0.273
GALO DA CAMPINA Fringilidae 11 52 30.273 0.276
BIUATINGA Anhinga anhinga 10 48 26.400 0.268 TUCANO Ramphastos toco 11 52 28.364 0.262
URUBU Coragyps atratus 10 48 27.300 0.262
QUÁ Nycticorax nycticorax 11 52 29.727 0.240
JAPÚ Psarocolius decumanus
11 52 29.364 0.225
TAIAMÃ Phaetusa simplex 11 52 31.455 0.221
CAFEZINHO Jacana jacana 11 52 34.636 0.215
MARACANÃ Ara nobilis 11 52 34.000 0.212
54
A Tabela 04 mostra o resultado da Análise de Consenso, indicando que o
primeiro fator (itens do consenso cultural) foi três vezes maior do que o segundo
fator (demais itens da lista) apontando para um consenso cultural a respeito das
etnoespécies de aves. A mesma também apresenta o valor de Pseudo-Reability
que explica a variabilidade ou grau de acordo entre os informantes. O valor padrão
para concordância entre os informantes necessita ficar na faixa entre 0.9 e 1.0.
Nesta pesquisa o valor obtido foi de 0.946 caracterizando a existência de uma
uniformidade entre as respostas. O consenso cultural concentrou-se em trinta e oito
etnoespécies de aves.
Tabela 04: Análise de consenso Cultural das etnoespécies de aves conhecidas
pelos informantes (Pseudo-Reability = 0.946)
FATOR VALOR RAZÃO
1 9.727 8.670
2 1.122 2.116
3 0.530
11.379
ETNOCATEGORIAS DE AVES
Os informantes agruparam as etnoespécies de aves em oito macro-
etnocategorias distribuídas em cinqüenta e nove etnogrupos, de acordo com as
conexões ecológicas e culturais que eles apresentaram, sendo que muitas delas
(etnoespécies) ocupam lugar em várias etnocategorias, correspondendo a trezentas
e oitenta e uma indicações (tabela 05).
Os grupos categóricos que mais de destacaram foram: “quanto ao hábitat”,
com cento e vinte e oito etnoespécies distribuídas em oito diferentes habitats
“lugares” (tabela 07), seguido das associadas ao “hábito alimentar das aves” com
cento e nove etnoespécies distribuídas em 20 categorias alimentares (tabela 12),
como demonstra a tabela geral (tabela 05):
55
Tabela 05: Tabela Geral: Etnocategorias e quantidade de etnoespécies.
MACRO-ETNOCATEGORIA ETNOCATEGORIA Nº DE
ETNOESPÉCIE
Quanto ao vôo 04 37
Quanto ao hábito alimentar 20 109
Quanto ao habitat 08 128
Aparência 03 22
Os que podem criar em casa 01 15
Os que servem para comer 01 15
Quanto ao comportamento 02 40
Total de indicações 59 381
CONEXÕES COM A PAISAGEM
A conexão com a paisagem pantaneira foi desenhada pelos informantes a
partir das etnocategorias: quanto ao vôo dos pássaros e quanto aos lugares onde
os pássaros vivem.
Na etnocategoria quanto ao vôo (tabela 06), os informantes agruparam em
relação a estratos aéreos e terrestres: voam alto, baixo, passarinhos que são mais
terrestres e passarinhos que voam alto, mas ficam mais tempo no chão. O grupo
com maior quantidade de etnoespécies foi dos que “voam mais baixo”, com 24 aves,
como apresentado na tabela 06.
56
Tabela 06: Etnocategoria quanto ao vôo
ETNOCATEGORIA AVES
Pássaros que voam
alto
andorinha, tuiuiú, cabeça seca, biuatinga, urubu;
Pássaros que voam
mais baixo
papagaio, arara, piriquito, cabecinha vermelha, baguari,
socó, garça branca, garça morena (maria faceira),
garça real, frango d‟água, cafezinho, curió, canarinho,
sabiá, joão pinto, japuíra, japu preto (joão congo), beija-
flor, bem-te-vi, tucano, açari, trinca ferro, pica-pau
grande da cabeça vermelha, pica-pau do campo da
cabeça amarela;
Passarinhos que
ficam no chão
Juruti, jaó, perdiz, saracura ;
Pássaros que voam
alto mas ficam mais
tempo no chão
Mutum, arancuã, rola cinzenta, rola branca.
Os informantes definiram alguns lugares5, relacionando-os às aves como
parte integrante daquela paisagem, “tem passarinho que é da beira do rio (ER, 75
anos, ♀)”, dando um sentido de pertencimento daquela determinada etnoespécie
ao lugar, que são unidades de paisagem conhecidas e identificadas pelos
ribeirinhos, porém, sem a denominação de paisagem.
Os informantes demonstraram ter uma compreensão ecossistêmica,
relacionando o lugar onde os pássaros vivem com a disponibilidade de alimento,
com a nidificação e com o hábito alimentar. Cognições estabelecidas por um dos
informantes em relação a etnoespécie Carão: “carão vive das lesmas do pantaná,
come caramujo e minhoca, por isso é brejeiro...(ER,75 anos, ♀)”, dessa maneira
5 Os lugares podem ser considerados como unidades de paisagem. Estudo realizado por Galdino (2006) na
mesma comunidade levantou através do conhecimento tradicional dezessete lugares ou unidades da paisagem
pantaneira.
57
pode-se evidenciar a conexão entre o habitat e o hábito alimentar, mostrando a
importância do nicho trófico enquanto relação de sobrevivência.
Os informantes descreveram os lugares da seguinte maneira:
“Beira d’água, baía e beira do rio é os lugá onde tem mais água, no
barranco, dentro das baía e os bicho fica o dia todo junto com a
água” (GS, 51 anos, ♂).
“Brejo é aqueles lugá aberto que fica molhado o tempo todo cheio
de isca e frieira” (BRL, 53 anos ♂).
“Firme é lá pra trás (em relação ao rio), que fica seco o tempo todo”
(BRL, 53 anos ♂).
“As praia só aparece quando o rio ta baixo, nas seca,fica umas areia
bem branquinha, nós planta batata lá, aí tem uns bicho que bota ovo
e fica lá” (LR, 52 anos, ♂).
“As mata fechada é onde tem os pau alto, nas beira do rio e em
outros lugar” (URN, 67 anos, ♀).
“Os que fica no sarã. Sarã é umas planta que fica no barranco do
rio, ajuda a não desbarrancá e nós bebe o chá dela, tipo mate” (GCS,
51 anos, ♂).
“O que vive no ar , é aqueles que a gente vê eles no céu voando,
fazendo redemoinho, diz que eles vêm de longe” (GCS, 51 anos, ♂).
A tabela 07 apresenta a etnocategoria quanto ao hábitat, onde o grupo dos
que vivem na mata fechada apresentou o maior número de aves.
58
Tabela 07: Etnocategoria “quanto ao Hábitat”.
ETNOCATEGORIA AVES
Os da beira d‟água, baía e
beira do rio
cabeça seco, tuiuiú, colhereiro, garça, biuá,
baguari, taiamã, martim, marreca, pato do
mato, biuatinga;
Os da mata fechada
mutum, arancuã, jacu, jacutinga, jaó,
saracura, nambu, rola, pomba, juruti do
pantanal, urubu, cracará (cabeça chato),
gavião, beija-flor, marriquitinha, sabiá;
Os do brejo
cafezinho, patinho d‟água, batuirinha,
saracura, carão, quero quero, cabecinha
vermelha ou josé fita, galo da campina,
chapéu veio e vira unha;
Os do firme
pavão, coruja, urutau, rolinha;
Os que ficam na praia
gaivota, batuíra;
Os que ficam no sarã
sicuíra, anu preto, anu branco, cabecinha
vermelho, bica de prata, sanhaço, sabiá;
O que vive no ar
Andorinha;
Os que vivem no cercado ou
campo
quero quero;
"As garças descem nos
brejos que nem brisas
Todas as manhãs".
(Manoel de Barros)
59
CONEXÕES DE SOBREVIVÊNCIA HUMANA
Dentre as etnoespécies, foram indicadas 15 aves que os entrevistados
categorizaram como “os que servem para comer” (tabela 08), ou seja, para
alimentação humana. Segundo relato de um dos informantes:
“naquela época que não existia supermercado, nós comia o que tinha
por aqui mesmo, agora é só ter dinheiro e correr em Barão [...]”
(ARS, 64 anos ♂).
Outro informante relatou,
“antigamente eu comia os passarinho, hoje já nem como mais, tá
fácil de comprar comida na venda [...]” (US, 67 anos, ♂).
Das aves, o mutum parece ser a que eles consideram mais saborosa,
“nós gostamos de tudo, mas mutum é gostosa, parece frango, é só
fazê bem fritinho. Mas tuiuiú também é bom [...]” (US, 67 anos ♀).
Ao observar três garotos na beira do rio Cuiabá, depenando e tirando as
vísceras de uma ave, um dos garotos disse:
“isso que nós tamo limpano é pombo do mato, vamo fazê pro
almoço, é gostoso [...] Nós comemo vários passarinho [...]” (garoto de
treze anos).
Eles relataram que pegam os pássaros para comer atirando com “funda”6 ou
fazendo arapuca7 de madeira para capturar os bichos, que ficam no firme.
“Lá pro firme que é bom de pegar aqueles passarinho maiorzão, tipo
mutum e juruti” (garoto, doze anos).
6 Funda ou estilingue é uma arma feita por crianças e adultos, com forquilha de galho de árvore. E o pelote (a
bala) é de pedra arredondada. O ato de atirar com a funda é denominado de pelotear.
7 Arapuca é uma armadilha feita geralmente pelos adultos para prender as aves. Arma-se a arapuca e coloca-se
alimento como isca para prender as aves.
60
Tabela 08: Etnocategoria “os que servem para gente comer”.
ETNOCATEGORIA AVES
Os que servem para gente comer
cabeça seco, garça, baguari, socó, quá, jaó,
papagaio, arara, tuiuiú, pato, arancuã, mutum,
jacutinga, juruti, pomba;
CONEXÕES DE COMPORTAMENTO
Os informantes agrupam algumas aves em função do comportamento
social e sexual, como:
“tem uns que só vive de bando, anda de grupo como
aqueles piriquitinho verde, já os massa barro vive de dois,
com a companheira [...]” (US, 67 anos ♀).
Foram citadas 12 etnoespécies que vivem em grupo e 28 que vivem em
casal (tabela 09).
Tabela 09: Etnocategoria quanto ao “comportamento”.
ETNOCATEGORIA ETNOESPÉCIES
Em grupo piriquitinho verde , piriquito barroso, pomba trucal ,
japuíra, anu preto grande canjiqueiro, anu preto
pequeno, papagaio, maracanã, ararinha verde,
nandaia, pássaro preto, xexéu;
Casal bem-te-vi, joão-de-barro, pardalzinho, canarinho
amarelo, pombo, juruti, pombo, rolinha (miudinha) de
vez em quando em grupo, curió marronzinho, curió
preto com costa branca, curió cor de canário, curió
branco, amarelo, preto c/coleira branca, bico de prata,
arancuã, jacutinga, jacu, mutum (fêmea carijó e macho
carijó de branco), joão pinto, jaó, papagaio, maracanã,
61
nandaia, pássaro preto, xexéu, arara vermelha, arara
azul e arara amarela.
CONEXÕES ESTÉTICAS
Os pantaneiros expressam o encantamento que eles têm pelo lugar onde
vivem, alguns cantam músicas de siriri que retrata as belezas do Pantanal e outros
expressam:
“eu gosto de viver aqui, aqui é um lugar bom, tem muitas beleza [...]”
(URS, 67 anos, ♀).
As conexões com as aves foram expressas de diversas maneiras, inclusive
categorizando-as pela aparência (tabela 10), onde algumas foram consideradas
“bonitas” principalmente em função da cor da plumagem e forma anatômica:
“o que eu acho bonito é coeeiro, bem cor de rosinha, piriquito
também [...]” (ARS, 48 anos, ♀).
A definição de feiúra não está ligada somente à forma física, mas a outros
fatores, como o hábito alimentar (figura 08),
“urubu e cracará, os dois são feio, come carniça e o outro come os
pintos dos outro” (BS, 59 anos ♂).
Figura 08: Urubu alimentando-se do jacaré morto, Rio Cuiabá. Foto: Ruth Albernaz, 2009
62
Tabela 10: Etnocategoria quanto à “aparência”.
ETNOCATEGORIA AVES
Pela boniteza tuiuiú, cabeça seco, massa barro, cabecinha
vermelho, beija-flor, papagaio, maracanã, piriquito,
mutum, pato, arancuã, nhana cocá e sabiá;
Os que tem a cor
parecida
rolinha, pomba e juruti;
Pela feiúra muié véia, coruja, gavião, morcego, urubu e cracará.
Ainda no contexto das relações estéticas, algumas aves compõem a
ambiência da casa. Foram apresentadas 15 aves como etnocategoria “os que
podem ser criados em casa”, pois consideram bonitos para enfeitar a casa, podendo
alguns serem “amansados” e outros além de bonitos, servem como alimento
(pomba, jaó, juruti, pato) (Tabela 11).
Tabela 11: Etnocategoria “os que podem ser criadas em casa”.
ETNOCATEGORIA AVES
Os que podem ser criados
em casa
Papagaio, piriquito, pato, marreca, cardeal,
galo da campina, pixororé, pardal, bica de
prata, bico curto, pomba, juruti, jaó, saracura,
pica-pau.
63
CONEXÕES DE SOBREVIVÊNCIA
A etnocategoria quanto ao hábito alimentar (tabela 12) apresentou-se de
forma mais ampliada e com maior riqueza de detalhes. Os informantes, ao relatarem
sobre os hábitos alimentares das aves, acrescentaram de forma interligada algumas
particularidades do comportamento e ecossistema para a obtenção do alimento, em
relação a:
Horário:
“os que se alimenta de rato, lagartixa e outros bichinho, saem para
comer a noite” (GS, 51 anos ♂).
Lugares8:
“Os que se alimenta de ervas e bichinho ficam na beira da
lagoa para encontrar o alimento [...]” (ERS, 75 anos ♀).
“A anhuma come folha, mas é brejeira [...]” (SRS, 63 anos ♀).
“Esses que comem peixinho, gostam de vivê no brejo [...]” (GS, 51
anos ♂).
“cabecinha vermelha gosta de ficar em redor de casa para comer
arroz na panela da gente, eles são manso [...]” (URS, 67 anos ♀),
(figura 08).
Estratégias para obtenção de alimento:
“Os que comem frieira, vão chuçando o chão” (GS, 51 anos, ♂).
“Martim-pescador fica caceteando o pexe no pau, pra matá e comê”
(SRS, 63 anos, ♂).
Algumas etnoespécies que são consideradas como cardápio das aves, foram
descritas pelos informantes da seguinte maneira:
8 Lugar como extensão do acontecer ecológico parafraseando Milton Santos (1997) que conceitua lugar como
a extensão do acontecer homogêneo ou do acontecer solidário e que se caracteriza por dois gêneros de
constituição: uma é a própria configuração territorial, outra é a norma, a organização, os regimes de
regularização.
64
“bichinho existe na água, a gente não vê ele, mas os inseto come
ele, deve de existir e esses bichinho come barro e o barro come a
água [...]” (GS, 51 anos ♂).
O “bichinho” é descrito como um ser invisível, semelhante a um inseto que eles
não enxergam, mas existe para alimentar outro no ecossistema.
“Frieira vive no barro, é parecida com uma minhoca, mas não é
minhoca, é menor que minhoca, mais fina e dá só na época que o
barro tá molhado [...]” (GS, 51 anos ♂).
“As isca viva é aqueles tuvira, cambatoá, caramujo, caranguejo [...]”
(SRS, 63 anos, ♂).
As “iscas vivas” são peixes pequenos, caramujos e caranguejos que os
pescadores utilizam para pescar e vender para os turistas.
Figura 09: Cabecinha vermelha e bem-te-vi alimentando-se na panela, varanda de uma
residência em Cuiabá Mirim. Foto: Ruth Albernaz, abril/2009.
65
Tabela 12: Etnocategoria “quanto ao hábito alimentar”.
ETNO CATEGORIA
CATEGORIA CIENTÍFICA
AVES
Os que comem
rato, lagartixa e
outros bichinhos
Carnívoro joão curutu, urutau, coruja de orelha,
coruja do peito branco, coruja buraqueira,
coruja caburezinho;
Os que comem
ervas e bichinhos
Herbívoro-
insetívoro
anhuma, quero quero, vira unha, batuíra
pernilongo, batuíra colerinha, marreca,
curicaca;
Os que comem
peixe
Piscívoro tuiuiú, cabeça seco, biuá, socó boi, socó
galinha(come cobra também), garça,
baguari, sicuíra, quá, biuatinga, colhereiro,
martim-pescador, cafezinho,
saracura,tabuiaiá, garça branca, garça real
cinza, garça real amarelada com bico
cinza, sicuíra, marreca, quá;
Os que comem
isca viva ( tuvira,
cambatoá,
caramujo,
caranguejo)
Piscívoro tuiuiú, cabeça seca, tabuiaiá, colhereiro,
baguari, biguá, saracura, socó;
Os que comem
frutas e
minhocas
Onívoros mutum, arancuã, jacutinga, jacu, pomba,
jaó, ema, siriema, rolinha, papagaio,
piriquito, baitaca, nandaia, piriquito
barroso, tucano, acari, graia, cabecinha
vermelha, pardalzinho, canarinho, bica de
prata, pixororé, arara amarela, arara azul,
arara vermelha, quero quero;
Os que comem
frutas e insetos
Frugívoro-
insetívoro
bem-te-vi, joão-de-barro, piriquitinho verde,
piriquito barroso, pardalzinho, canarinho
amarelo, pombo juruti, pombo rolinha
(miudinha), pomba trucal, curió
66
marronzinho, curió preto com costa
branca, curió cor de canário, curió branco,
amarelo, preto c/ coleira branca, bico de
prata, japuíra, anu preto grande
canjiqueiro, anu preto pequeno, arancuã,
jacutinga, jacu, mutum, joão pinto, jaó,
papagaio, maracanã, ararinha verde,
nandaia, pássaro preto, xexéu, arara
vermelha, arara azul e arara amarela;
Os que comem
frutas e
sementes
Frugívoro –
granívoro
arancuã, mutum, tucano, papagaio,
piriquito, cabecinha vermelha, pixororé (flor
e fruta), japu, galo da capina, bica de
prata, curió, bico curto, sariema, arara,
japuíra, rolinha, jacutinga, mutum, jacu,
jacu goela;
Os que comem
sementes
Granívoro jaó, juruti, rolinha, curió, bico curto,
arancuã;
Os que comem
frieira
Insetívoro curicaca, vira unha;
Os que comem
insetos e
minhocas
Insetívoro curicaca cinza, curicaca (preta, branca,
marrom), vira unha , frango d‟água ( dobra
o capim para fazer ninho) tem azul,
esbranquiçada e marrom, saracura;
Os que comem
inseto d‟água
Insetívoro patinho, cafezinho, frango d‟água,
marreca, pato grande;
Os que comem
inseto no seco
Insetívoro pioró, massa barro, sabiá, saracura,
andorinha;
Os que comem
caramujo
Malacófagos carão (vive das lesmas do pantanal, come
caramujo e minhoca), quero quero,
cabecinha vermelha ou josé fita, galo da
campina, chapéu veio e vira unha;
Os que comem Carnívoro gavião caramujeiro, muié véia, gavião
67
cobra, peixe e
filhos de outros
pássaros
preto, gavião marrom, gavião carijó, gavião
có (carijó e grita co), pinhé (come filhotes),
cracará;
Os que comem
outros
passarinhos e
cobras
Carnívoro caburezinho, kriquiri, gavião pinhé, tucano;
Os que comem
fruta e o filhote
dos outros
Carnívoro tucano, açari (parece tucano, mas é meio
marrom, peito amarelado e listrado);
Os que comem
galinha
Carnívoro coruja, urutau e joão curutu;
Os que comem
melzinho, pólen
da flor e da flor
Nectívoro-
herbívoro
beija-flor, marriquitinha, pixororé (flor);
Os que comem
aranha,
baratinha dágua
e arroz do campo
Insetívoro-
granívoro
pato, marreca;
Os que comem
folha
Herbívoro Anhuma.
68
REDE ALIMENTAR DAS AVES
A rede alimentar das aves foi construída a partir do relato do conhecimento
ecológico dos informantes a respeito de trinta e oito etnoespécies mais indicadas e
que foram consideradas como consenso cultural a partir da análise do ANTROPAC
4.0.
Associada à trinta e oito etnoespécies foi realizada as perguntas da técnica
“quem come quem”, A partir das respostas foi elaborado a rede alimentar da figura
10, na perspectiva pedagógica de demonstrar o emaranhado de conexões
estabelecidas em um ecossistema pantaneiro.
A configuração da rede alimentar apresentada contemplou aves, peixes,
mamíferos, répteis, plantas nativas e exóticas e elementos minerais como: barro,
areia, pedregulho, chuva e água.
As setas foram colocadas no sentido predador-presa, na perspectiva de quem
come quem. A energia é transferida no sentido contrário, presa- predador, ou seja, o
predador se beneficia da energia da presa.
69
Figura 10: Rede alimentar: interação aves-plantas-bichos-terra-água [As setas estão
indicadas no sentido predador-presa].
TUVIRA CARANGUEJO
GENTE ONÇA JAGUATIRICA URUBU GAMBÁ CABEÇA SECO BAGUARI BARATA D‟AGUA MUTUM AREIA TUIUIÚ COLHEREIRO MARRECA GAVIÃO JACARÉ BEM-TE-VI ROLINHA COBRA CANINANA PIRIQUITO FRUTAS ARANCUÃ PEIXES PAPAGAIO MILHO TUCANO
MASSA BARRO INSETO DO CHÃO SABIÁ CABECINHA VERMELHA GENIPAPO BEIJA-FLOR SARACURA JAÓ MINHOCA FRUTA DE CANELEIRA POMBA ANHUMA ISCAS BARRO INSETO D‟ÁGUA QUERO QUERO GARÇA FOLHA DE BATATA LAMBARI ÁGUA SEMENTES
FLOR LODO INSETINHO CHUVA
CUPIM BICHINHO FORMIGA MADEIRA PEDREGULHO AREIA DA PRAIA FRIEIRA
70
As redes alimentares apresentadas pelos informantes mostraram a
transferência do alimento (energia) de um nível para outro nível trófico a partir dos
produtores, através de cadeias alimentares, cuja complexidade é variável.
Informações de diversos elementos interacionais apareceram, podendo ser
construídos alguns modelos, oriundos das conexões estabelecidas através dos
relatos que estão exemplificados nas figuras de 11 a 15 (que foram elaboradas de
múltiplas maneiras, demonstrando as várias possibilidades pedagógicas):
Figura 11: Cadeia alimentar citada pelos informantes, com fluxo de energia direcional,
interação entre animal-mineral.
Figura 12: Cadeia alimentar citada pelos informantes, com fluxo de energia direcional,
interação animal-vegetal-mineral.
ONÇA JACARÉ SICUÍRA PIQUIRA ÁGUA
jacaré tuiuiú e outros
isca vivainseto
dagua e cupim
madeira terra
Consumidor secundário
71
Figura 13: Cadeia alimentar envolvendo organismos aquáticos, áreas úmidas e
terrestres, relação trófica entre animal-vegetal.
Figura 14: Cadeia alimentar com espécies ocupando o mesmo nível hierárquico na
interação animal-vegetal-mineral.
Figura 15: Rede alimentar envolvendo mineral, vegetal, animal e ser humano.
ONÇA JACARÉMARTIM-
PESCADOR
SARDINHA
F RUTA DA
SARDINHEIRA
GENTE
ONÇA E JAGUATERICA
MUTUM
CANELEIRA
INGARANA
FIGUEIRA
BARRO
Produtor
Consumidor primário
Consumidor secundário
(ave)
Topo de cadeia
Consumidor primário
72
Os informantes demonstraram conhecer bem o comportamento das aves,
apresentando uma lista associada de algumas espécies, situando-as no mesmo
nicho relatando a respeito do comportamento de algumas etnoespécies e
especificando as estratégias para se alimentarem, como é o caso do Martim-
pescador: “Martim, fica caceteando o peixe até matá e comê” (GS, 51 anos, ♂).
Tabela 13: Lista associada de aves/peixes: “quem come quem”.
AVES PISCÍVORAS
PEIXES
Tuiuiú e cabeça seco rubafo, sardinha, cambatoá;
Garça e colhereiro sardinha, lambari;
Biuá e biuatinga
bagre, carra carra, rapa canoa;
Socó e baguari
filhote de piranha, sardinha, jijum;
Taiamã e Sicuíra
Taiamã come só as piquirinhas; sicuíra come
piquira, filhote de rubafo;
Martim-pescador e biuá lambari, sardinha, bagre.
73
2.4. DISCUSSÃO
Todos os informantes desta pesquisa têm sua origem no Município de Barão
de Melgaço, sinalizando uma estreita relação com o Pantanal, com rico
conhecimento sobre o assunto tematizado nesta pesquisa. A maioria dos
entrevistados se autoidentificaram como pescadores profissionais, expressando que
existe uma relação de dependência com os serviços ofertados pelo Rio Cuiabá.
A rede social demonstrou que as indicações contemplam um bom número de
pessoas, configurada de forma aberta, não havendo concentração de indicação em
um único informante.
Os resultados em relação ao conhecimento da riqueza de aves concentraram-
se em cento e oitenta e oito (188) etnoespécies9 que sinalizam a ligação dos
pantaneiros e pantaneiras com as aves e o ambiente, demonstrando conexões
ecológicas que fazem parte do bojo do conhecimento tradicional. A compreensão
dos informantes a respeito das aves se apresentou de forma sistêmica, com amplo
grau de consenso cultural em relação às aves, incluindo trinta e oito etnoespécies
dentro do consenso cultural.
As aves são sem dúvida um dos grupos mais conhecidos e as pessoas
costumam conferir-lhes nomes que geralmente se relacionam com características
marcantes como comportamento, forma, cor ou manifestações sonoras (FARIAS e
ALVES, 2006).
Para Marques (2001, pág.52) qualquer sociedade humana estabelece as
seguintes conexões básicas: “toda e qualquer sociedade humana estabelece seis
conexões fundamentais: cosmológica, geológica e hidrológica, botânica, zoológica,
humana e sobrenatural.”
9 As etnoespécies de pássaros são espécies de aves consideradas aqui por poderem receber mais
de um nome, de acordo com os apelidos dados pela comunidade, sendo etnoespécie morcego
entendida como pássaro pelos informantes.
74
As conexões estabelecidas pelos informantes foram: conexões com a
paisagem, conexões de sobrevivência humana, conexões estéticas, conexões de
sobrevivência das aves e a rede alimentar (conexões mineral-vegetal-animal).
Os informantes classificaram e agruparam as etnoespécies de aves em oito
macroetnocategorias distribuídas em cinqüenta e nove etnocategorias, de acordo
com as conexões ecológicas e culturais que eles apresentaram, sendo que muitas
das etnoespécies ocupam lugar em várias etnocategorias, correspondendo a
trezentas e oitenta e uma indicações de aves.
As macro-etnocategorias indicadas pelos informantes relacionam-se com o
tipo de vôo, o comportamento, a aparência, hábitat, hábito alimentar, os que servem
como alimentação humana e os que servem para serem criados em casa.
Pesquisa com abordagem semelhante foi realizada por Giannini (1991) com
grupos indígenas que nomeavam e classificavam as aves, através de princípios de
sistemas classificatórios com base na morfologia, cantos, hábitat e, principalmente,
por meio da compreensão dos mitos.
No mesmo sentido, pesquisa abordando as classificações com perspectiva
multidisciplinar foi realizada por Jensen (1985) estudando sistemas classificatórios
de aves, realizados com grupos indígenas na região norte do Brasil. Nesse estudo,
foi observado um sistema hierárquico de classificação das aves utilizando
descontinuidades naturais, semelhantes a aquelas reconhecidas na sistemática
Lineana, e um sistema de classificação social.
Nesta pesquisa, a etnocategoria quanto ao hábitat, “onde os pássaro vive”,
demonstra a conexão com os habitats, sendo listado oito (8) lugares de onde os
“pássaros pertencem”, numa abordagem ecossistêmica rica em detalhes de
comportamento e interações intra-específicas: comportamento, estratégias para
conseguir alimento (forrageamento e predação) e interespecíficas: rede alimentar e
disputa do nicho trófico (disputa de território, predação).
75
Os “lugares” indicados podem ser também compreendidos como as unidades
de paisagem10 do Pantanal. Os “lugares” onde houve os maiores números de
etnoespécies citadas foram: mata fechada com dezesseis etnoespécies e em
seguida um grupamento de lugares denominados “beira d‟água, baía e beira do rio”
que eles colocaram juntos em função das etnoespécies movimentarem entre esses
espaços, indicando onze etnoespécies. O brejo foi o terceiro lugar mais citado com
dez etnoespécies. “brejo fica nesse lugar mais baixo e fica sempre molhado, com
isca, caranguejo [...]” (SRS, 63 anos). Essas aves encontradas no brejo alimentam-
se de insetos aquáticos e de pequenos peixes.
“No Ritmo das águas do Pantanal” escrito pelas pesquisadoras Da Silva e
Silva (1995), com pesquisa realizada na região de Mimoso é uma densa descrição
do modo de vida dos pantaneiros e contempla os diversos ambientes, havendo
semelhança na descrição de brejo e iscas que vivem no brejo, citando as mesmas
etnoespécies encontradas em Cuiabá Mirim.
Pesquisa realizada por Galdino (2006) revela que na mesma comunidade
(Cuiabá Mirim) foram identificadas dezessete unidades de paisagem para obtenção
de recursos vegetais para a construção da casa pantaneira, sendo que brejo, baía,
firme, rio, lagoa, morro, mata e corixo, obtiveram um provável consenso cultural
entre os informantes.
No Pantanal, em relação à abundancia de espécies, Nunes e Tomas (2008)
colocam que as aves aquáticas predominam na comunidade de migrantes e
nômades na planície do Pantanal. Entre os migrantes intercontinentais as aves
aquáticas representam 56,4% das espécies que invernam no Pantanal.
Devido à complexidade dos sistemas naturais, é extremamente difícil
compreender com exatidão o papel que as espécies desempenham na
funcionalidade dos ecossistemas e até que ponto as diferentes espécies podem
sobrepor na sua contribuição em determinada função particular de um ecossistema
10
O conceito de paisagem é definido por Metzger (2001) como “um mosaico heterogêneo formado por
unidades interativas, sendo esta heterogeneidade existente para pelo menos um fator, segundo um
observador e numa determinada escala de observação”.
76
(HOBBS et al., 1995). É, no entanto possível identificar grupos de espécies que
desempenham papéis mais relevantes no funcionamento de um dado ecossistema
(HECTOR et al., 2001).
A rede alimentar elaborada pelos informantes contemplou a hierarquização
dos diversos níveis da teia alimentar, onde foi demonstrado o conhecimento
ecológico das aves, estabelecendo o vínculo existente entre um grupo de
organismos presentes no ecossistema, os quais são regulados pela relação
predador-presa. É através da rede alimentar, ou cadeia trófica, que é possível a
transferência de energia entre os seres vivos.
Existem basicamente dois tipos de cadeia alimentar, as que começam a partir
das plantas fotossintetizantes e as originadas através da matéria orgânica animal e
vegetal (PINTO COELHO, 2000). O maior número de etnoespécies indicadas estava
na etnocategoria “os que comem frutas e insetos” (trinta e três etnoespécies)
indicando que estão em dois níveis tróficos, se alimentando de produtores (frutas) e
alimentando de consumidores primários (inseto).
Pesquisa semelhante foi realizada por Magalhães (1990) no Município de Nossa
Senhora do Livramento que apresentou uma teia alimentar a partir do capão como
unidade ecossistêmica e a descrição dos informantes sobre as relações tróficas.
Foram citadas 15 etnoespécies de aves como fonte de dieta dos ribeirinhos,
podendo constatar a interdependência entre seres humanos/aves/ambiente na teia
alimentar e o amplo grau de adaptação da cultura pantaneira refletida na culinária
que, mesmo tendo o peixe como principal fonte de proteína, possui uma
diversificação nas fontes, diminuindo a pressão sobre o pescado.
Outras comunidades tradicionais utilizam aves na dieta alimentar como relatado
por Hanazaki (2001) no estudo a respeito de “ecologia de caiçara: uso de recursos e
dieta” verificando que na região do litoral sul de São Paulo as etnoespécies de
sabiás são amplamente consumidas pelas comunidades caiçaras.
77
Para conservação das práticas tradicionais, Primack e Rodrigues (2001, pág.
282) discutem sobre as políticas de conservação, e ressaltam a difícil missão de se
planejar políticas públicas que contemplem a diversidade cultural e acrescentam:
Cada espécie de planta, grupo de animais, tipo de solo e paisagem
quase sempre tem uma expressão lingüística correspondente, uma
categoria de conhecimento, um uso prático, um sentido religioso, um
papel em um ritual, uma vitalidade individual ou coletiva.
Salvaguardar a herança natural de um país sem resguardar as
culturais que lhe tem dado vida, é reduzir a natureza a algo sem
reconhecimento, estático, distante, quase morto.
78
2.5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conhecimento ecológico tradicional de aves vem sendo repassado ao longo
das gerações, auxiliando no processo de adaptação e resiliência às perturbações
sociais e ambientais que vem ocorrendo no Bioma Pantanal.
Nesse sentido, a biodiversidade e o ambiente do Pantanal parecem oferecer
condições para que a comunidade de Cuiabá Mirim adapte-se às mudanças
operadas em seu meio físico e social e disponha de recursos que atendam a suas
novas demandas, porém as pressões externas são fatores contínuos que ameaçam
a continuidade do padrão cultural.
É necessário reconhecer a existência entre as comunidades tradicionais, de
outras formas, igualmente racionais de perceber a biodiversidade, além das
oferecidas pela ciência moderna, considerando que este conhecimento assegura o
acesso rápido a informações elementares para pesquisas científicas e
monitoramento da biodiversidade, além de dar subsídios à população local na
defesa de “seu lugar”.
Estudos desta natureza trazem no seu bojo a esperança de dar visibilidade ao
conhecimento ecológico tradicional, em espaços de diálogo para a implementação
de políticas públicas que garantam a sustentabilidade dos pantaneiros e
pantaneiras.
79
2.6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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83
CAPÍTULO 2
ETNOINDICADORES CLIMÁTICOS
“gavião caramujeiro vai voando
e fazendo redemoinho circular
tá advinhando o tempo, vai chovê.”
(E. da Silva Luz, 75 anos, ♀)
Figura 16: Entardecer no inverno, Baía de Siá Mariana. Imagem: Ruth Albernaz, julho de 2009.
84
RESUMO
ALBERNAZ-SILVEIRA, R. Conhecimento Ecológico Tradicional de aves da
Comunidade Cuiabá Mirim, Pantanal de Mato Grosso. Cáceres: UNEMAT, 2010. 163 p.
(Dissertação – Mestrado em Ciências Ambientais).
Este trabalho apresenta o Conhecimento ecológico tradicional – CET de aves pelos
ribeirinhos da Comunidade Cuiabá Mirim, Pantanal de Mato Grosso, Brasil. O
Conhecimento Ecológico Tradicional de 22 pantaneiros foi desvelado num processo
dialógico, por meio de uma abordagem metodológica híbrida de cunho qualitativo e
quantitativo pelo viés da gestão e educação ambiental. Para a coleta de dados foi
utilizado técnicas como Listas Livres, Observação Participante, Entrevistas
Estruturadas e Semi-estruturadas. No cotidiano da comunidade foi observado os
etnocalendários ligados ao sistema sócioecológico, evidenciando atividades sociais
como: o tempo de escola e tempo de festas e as atividades de sobrevivência como
pesca e roça, moldados pelo tempo das águas, nas fases: enchente-cheia-vazante-
estiagem. Foram levantadas as aves etnoindicadoras climáticas e outros
componentes bióticos e abióticos e a percepção dos informantes em relação às
alterações climáticas. A comunidade estudada demonstrou amplo conhecimento a
respeito das aves, com riqueza de detalhes e percepção ecossistêmica, onde o
fazer e o saber fazer são moldados pela relação com a natureza, contornados pela
capacidade de adaptação e pelos processos de resiliência ao longo do tempo.
Estudo a respeito do conhecimento Ecológico Tradicional das comunidades do
Pantanal sobre as aves e suas relações com o clima são importantes ferramentas
para o acesso às informações, de modo rápido, seguro, eficiente e de baixo custo. O
enfoque de pesquisas que contempla o saber ecológico das comunidades
tradicionais vem sendo reconhecido e valorizado por se tratar de conhecimento de
longo prazo, que se perpetua através da transmissão oral entre gerações.
Palavras-chave: Pantanal, Conhecimento Ecológico Tradicional, aves.
Orientadora: Profª. Drª. Carolina Joana da Silva, UNEMAT;
85
ABSTRACT
ALBERNAZ-SILVEIRA, Ruth. Traditional Ecological Knowledge of birds in the Cuiabá
Mirim Community, Pantanal of Mato Grosso. Cáceres: UNEMAT, 2010. 163 p.
(Dissertation – Master in Environmental Science).
The traditional ecological knowledge is a knowledge system that reflects the
adaptation of human population at their environment. This work presents the
Traditional Ecological Knowledge – TEK of birds by the ribeirinhos11 of Cuiabá Mirim
Community, Pantanal of Mato Grosso, Brazil. The traditional ecological knowledge of
22 pantaneiros were revealed through a dialogic process, by a hybrid methodological
approach, with a qualitative and quantitative character, by the environmental
education and management bias. For the data collection it was used techniques like
free lists, Participant observation, structured and semi structured interviews. In the
community quotidian it was observed an ethno calendar linked to the socio-ecological
system, becoming evident activities as: school time and party time and the survive
activities like fish and agriculture molded by the water time, in the phases: inundation
- flood – receding – dry. Ethoindicator birds weather, biotic and abiotic components
and the informers perception concerning to the climate changes were raised up. The
community studied showed up a wide knowledge about birds, with a lot of details and
an ecosystemic perception, where knowing and doing are molded by the relationship
with the nature, outlined by the capacity of adaption and by the capacity of
readaptation of the environment after being through a stressing situation. Studies
about the traditional ecological knowledge of Pantanal communities about birds and
their relation with the weather are important tools to the access to informations,
rapidly, safely, and on a low cost. Researches with an approach that contemplates
the ecological known of the traditional communities are being recognized and
valorized because it concerns to a long term knowledge, that is perpetuated through
the oral transmission among generations.
Key - words: Pantanal, traditional ecological knowledge, birds.
11
Ribeirinhos is a term that refers to all those who live in Pantanal.
86
3.1. INTRODUÇÃO
A regulação climática do Planeta Terra envolve muitas discussões gerando
grandes polêmicas, em função das crenças, interesses e valores dos envolvidos. O
fenômeno das mudanças climáticas vem sendo considerado por muitos estudiosos
no assunto como a mais séria ameaça para toda a vida do planeta, com impactos
adversos sobre o ambiente, a saúde, a segurança alimentar, as atividades
econômicas, recursos naturais e infra-estruturas físicas. As mais recentes
descobertas científicas, apresentadas no Quarto Relatório de Avaliação do Painel
Intergovernamental de Mudanças Climáticas12 indicam, com 90% de certeza, que
apesar das variações naturais do clima global, o aumento da concentração de gases
do efeito estufa emitidos por fontes antropogênicas está alterando significativamente
o equilíbrio do sistema do clima e seus efeitos já são observados, tornando
necessárias, portanto, imediatas ações preventivas, de curto, médio e longo prazos,
dada a inércia do sistema climático.
As preocupações com as mudanças climáticas começaram ganhar evidência
a partir da década de 1980, quando pesquisas científicas sobre a possibilidade de
mudança do clima em nível mundial despertaram interesses crescentes no público e
na comunidade científica em geral. Em 1988, o Programa das Nações Unidas para o
Meio Ambiente (PNUMA) e a Organização Meteorológica Mundial (OMM)
estabeleceram o Intergovernamental Panel on Climate Change [Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – IPCC]. O IPCC tem a missão de
apoiar com trabalhos científicos as avaliações do clima e os cenários de mudanças
climáticas para o futuro.
As alterações do equilíbrio climático podem ser causadas por quatro fatores
principais. Três deles dizem respeito a mudanças no nível de concentração, na
12 Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima - Mudança do Clima 2007. Quarto Relatório de Avaliação do IPCC. No âmbito da
quarta avaliação feita pelo IPCC da situação atual do conhecimento da mudança do clima, apresentam-se o Sumário para os Formuladores de
Políticas do Grupo I - a Base das Ciências Físicas, o Sumário para os Formuladores de Políticas do Grupo II - Impactos, Adaptação e
Vulnerabilidade e o Sumário para os Formuladores de Políticas do Grupo III - Mitigação da Mudança do Clima.
87
atmosfera, de elementos muito importantes: os gases de efeito estufa; os aerossóis
e a radiação solar; o quarto fator diz respeito a transformações nas características
da superfície terrestre (ARTAXO, 2008).
Pesquisas indicam as conseqüências a médio e longo prazo em função das
alterações antrópicas que influenciam o clima global:
O efeito do desmatamento e das mudanças climáticas afeta o
ciclo hidrológico em todas as escalas de tempo: em escalas de
tempo de dias a meses, levam a mudanças na incidência de
inundações; em escalas de tempo sazonais a interanual,
mudanças nas características da seca é a principal
manifestação hidrológica; e em escalas de anos a décadas, as
teleconexões nos padrões de circulação global atmosférica,
ocasionadas pela interação oceano-atmosfera, afetam a
hidrologia de algumas regiões, especialmente nos trópicos, por
diferentes eventos, entre eles o El Niño (NIJSSEN et al., 2001,
pág. 14).
A rica biodiversidade do Pantanal aliada a exuberante beleza cênica são
fatores que influenciaram o reconhecido como Patrimônio Nacional pela Constituição
de 1988 e como Área Úmida de Importância Internacional pela Convenção Ramsar13
. Em 2000, foi designado como Reserva da Biosfera, pela UNESCO14, como
Patrimônio Natural da Humanidade, oferecendo uma oportunidade única para a
conservação da biodiversidade em conjunção com o desenvolvimento sustentável.
13 DECRETO Nº 1.905 DE 16 DE MAIO DE 1996 promulga a Convenção sobre Zonas Úmidas de Importância Internacional, especialmente como
Habitat de Aves Aquáticas, conhecida com Convenção de Ramsar, de 02 de fevereiro de 1971.
14 UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
88
Referindo-se ao seu valor biológico e ao seu estado e prioridade de
conservação, pesquisas apontam que o Pantanal é uma região de “grande
significância global, vulnerável e com altíssima prioridade para a conservação em
escala regional”.
A Declaração do Milênio enfoca as pressões sócio-ambientais impostas aos
diversos biomas no mundo, em especial os impactos potenciais das mudanças
climáticas globais. Diversos autores tem relatado e discutido os impactos das
mudanças climáticas globais associados a esses biomas, como Alverson et al.
(2002); Cramer et al., (2004); Davis et al. (2003); Opdam e Wascher, (2004); Meira
(2009), entre outros.
O Pantanal Mato-Grossense concentra uma das maiores riquezas biológicas
de aves, das quais as aves aquáticas são as mais evidenciadas (DA SILVA et al,
2001; JUNK et al., 2003). As aves são reconhecidas em diversos estudos, como
boas indicadoras de mudanças ambientais naturais, podendo ter um papel
importante como indicadoras das atuais mudanças climáticas global.
Neste Bioma ocorrem inúmeras espécies de aves aquáticas, tanto
neotropicais – que se distribuem desde o Caribe até o sul do continente sul-
americano – como as neárticas, espécies que têm suas áreas reprodutivas na
América do Norte, desde o ártico até o México (MORRISON et al., 2008). Os
mesmos autores ainda constataram que, em escala global, nas diferentes rotas
migratórias conhecidas, as aves aquáticas e limícolas15, encontram-se ameaçadas
e com declínio populacional ente 33% a 68%.
Neste estudo, os etnoindicadores climáticos contemplam as aves e aspectos
bióticos e abióticos que são conhecidos pelos pantaneiros e pelas pantaneiras,
fazendo parte do arcabouço do Conhecimento Ecológico Tradicional-CET ou mesmo
podendo ser considerado por alguns autores como sabedoria popular local. Quando
se utiliza a expressão sabedoria popular, é a partir da idéia entrelaçada com a
15
Espécies que vivem em substratos lodosos, costeiros, sejam de água doce ou salgada.
89
perspectiva do senso comum. Geertz (1997) conceitua senso comum como um
sistema cultural, como um corpo de crenças e juízos, com conexões amplas.
Nesse sentido, busca-se inspiração em Leff (2001) que define o ambiente
como uma visão das relações complexas e sinérgicas gerada pela articulação dos
processos de ordem física, biológica, termodinâmica, econômica, política e cultural.
Este conceito ressignifica o sentido do habitat como suporte ecológico e do habitar
como forma de inscrição da cultura no espaço geográfico. O mesmo autor afirma:
O conhecimento local não é apenas o arsenal de técnicas e saberes
construídos pela prática. O conhecimento local não soma as
condições empíricas a estudos abstratos. Não é submissão de
particularidades locais a racionalidades universais dominadoras e
hegemônicas. O conhecimento local é construído por significados
elaborados através de processos simbólicos que configuram estilos
étnicos de apropriação do mundo e da natureza (LEFF, 2001,
pag.336).
Considerando-se as configurações do saber como construções locais,
inseparáveis de seus instrumentos e de seus invólucros, onde tudo aquilo que se vê
depende do lugar em que foi visto, e das outras coisas que foram vistas ao mesmo
tempo (GEERTZ, 2002).
O conhecimento das aves enquanto etnoindicadores climáticos na
Comunidade de Cuiabá Mirim, no Município de Barão de Melgaço, Mato Grosso é
identificado como um importante elemento cultural, presente no campo social e
ecológico. Neste estudo foram consideradas as relações dos pantaneiros com os
aspectos culturais, sociais, bem como características ecológicas próprias do
Pantanal. Dessa forma, a valorização do espaço e suas interações se tornam
indispensáveis.
A “descrição densa", proposta pelo método etnográfico, proporciona a
abordagem de diversos elementos pertencentes ou envolvidos nestas práticas.
Buscou-se interpretar os aspectos subjetivos, a partir da percepção dos ribeirinhos
em seus relatos no processo inter-relacional da pesquisa. A análise das ações no
cotidiano permite definir os códigos que estruturam o pensamento e conferem um
90
significado ao mundo observado. O saber popular ou senso comum fundamenta as
práticas cotidianas (GEERTZ, 1989).
A partir dos relatos das fontes orais16 em meio ao seu cotidiano, baseando na
observação do comportamento das aves em seu contexto ambiental, e suas
interpretações ancoradas nos elementos culturais, buscou-se compreender suas
significações, bem como, o conhecimento sobre as aves para decifrar a realidade
simbólica, atribuindo significados, segundo as normas sociais e culturais deste
grupo. As aves e outros etnoindicadores climáticos bióticos e abióticos surgem como
importantes elementos ecológicos integrados à realidade cultural deste grupo
humano que interage constantemente com as alterações ambientais e climáticas.
Este trabalho se desenha a partir do Conhecimento Ecológico Tradicional-
CET de aves pela comunidade Cuiabá Mirim relacionado a etnoindicadores
climáticos, levando-se em consideração a temporalidade, bem como, os relatos de
fontes orais em relação as alterações climáticas local. Para conhecer melhor o ritmo
sócio-ecológico da comunidade, buscou-se observar os etnocalendários
estabelecidos através das práticas coletivas dos ciclos onde eles interagem.
3.2. MATERIAIS E MÉTODOS
3.2.1. ÁREA DE ESTUDO
PANTANAL: ASPECTOS FÍSICOS E BIOLÓGICOS
O Pantanal situa-se no maior sistema alagável contínuo de água doce do
Planeta, região central da América do Sul, na Bacia do Alto Rio Paraguai – BAP
apresentando vasta biodiversidade, beleza cênica e rico processo histórico de
ocupação. Com superfície de aproximadamente 150.355 km² de área (IBGE, 2009).
Alguns autores defendem a idéia de vários pantanais subdividindo este
território de acordo com suas características geográficas. A Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuária - EMBRAPA considera que o Pantanal é dividido em onze
16
Neste capítulo adotou-se a nomenclatura fontes orais em substituição a informantes.
91
regiões, denominados em sua maioria, de acordo com rios ou povos da região.
Assim, do sul para a região norte, temos o Pantanal de Porto Murtinho, Nebileque,
Aquidauana, Miranda, Abobral, Nhecolândia, Paiaguás, Paraguai, Barão de
Melgaço, Cáceres e Poconé.
No Estado de Mato Grosso, dentro dos limites do Pantanal estão os
municípios de Cáceres, Poconé, Nossa Senhora do Livramento, Santo Antônio do
Leverger e Barão de Melgaço (ALLEM e VALLS, 1987).
De acordo com Da Silva (1990), Barão de Melgaço é o município que possui a
maior área dentro dos limites pantaneiros, uma vez que 99,2% de seu território
encontram-se dentro dos limites do Pantanal. A área territorial de Barão de Melgaço
compreende aproximadamente 11.662 KM². Desta superfície, cerca de 97,5% são
terras inundáveis na época de cheia do Pantanal.
O clima no Pantanal, Tropical Úmido (AW), com a temperatura média anual
de 35°C e a umidade relativa 82%, caracteriza-se por apresentar uma estação
chuvosa no verão, que acontece entre os meses de outubro a abril, contrastando
com a estação seca, no inverno, entre maio a novembro.
Geologicamente o Pantanal vem sendo formado há cerca de sessenta
milhões de anos, desde o soerguimento do escudo brasileiro. Com a orogênese da
cordilheira dos Andes, houve fragmentações do escudo em blocos desnivelados, um
desses blocos é o Pantanal. O Pantanal integra-se em uma falha de contacto entre o
escudo brasileiro e o sistema andino, constituindo-se ao longo do tempo numa fossa
de afundamento cuja base, do período Quaternário, estaria sob o nível do mar
(AB‟SABER, 1988).
Segundo Del‟Arco (1996) o relevo pantaneiro, cujas altitudes variam de 80 a
150 metros, está diretamente conectado às águas oriundas das terras altas, dos
planaltos ao seu redor. Estas montanhas, morros ou chapadas, com altitudes
variáveis entre 200 a 1.000 metros, emolduram com suas bordas o entorno da
superfície pantaneira: ao norte a Chapada dos Parecis, ao sul a Serra da
92
Bodoquena a leste o Planalto Central Brasileiro e a Oeste, para além do Chaco, a
formação Andina.
As águas que descem desses planaltos em leques aluviais, moldam neste
ambiente geológico, a Formação Pantanal, que se deu por deposições sedimentares
em diferentes formas e texturas. Trata-se, portanto, de uma vasta planície aluvial da
Bacia do Alto Paraguai - BAP, com alternância fluvial que determina as vazantes e
cheias (CARVALHO, 1984). As baixas terras pantaneiras são constituídas por 92,5%
de solos pouco férteis e bastante inundáveis, típicos de área úmida (solos
hidromórficos), o que compromete a agricultura local.
De acordo com Alho (1992), no Pantanal de Mato Grosso, janeiro é o mês
mais quente do ano, com temperatura média entre 28 a 29 º C. No mês de julho a
temperatura média cai significativamente oscilando em torno de 17 º C no sul e 22
ºC na região norte do Pantanal. Esta variação se dá pela presença de frentes frias
vindas da região sul do continente. Durante o mês de julho, por poucos dias há a
predominância desses ventos frios, ocasionando brusca queda de temperatura.
Nos períodos chuvosos, as águas vindas das regiões mais elevadas no
entorno do Pantanal, transbordam dos leitos dos rios, inundando grande parte das
terras pantaneiras.
Principal formador do Pantanal Mato-grossense, o Rio Paraguai tem como
um de seus maiores afluentes o Rio Cuiabá, que percorre aproximadamente 828 km
desde sua cabeceira à foz, drenando aproximadamente 100.000 km² de superfície, o
que corresponde à cerca de vinte por cento da Bacia do Alto Paraguai.
A dinâmica do Rio Cuiabá é caracterizada pela marcante alternância em
processos naturais de erosão e deposição de sedimentos. Este processo forma ao
longo de seu canal principal, diferentes biótopos, tais como praias (bancos de areia),
baixios, remansos, corredeiras, cachoeiras e poços. Os diversos níveis naturais de
flutuação contribuem para a construção e composição destas variadas paisagens,
graças à marcante sazonalidade Essa diversidade de biótopos é parte da paisagem
93
pantaneira, o que faz deste rio um componente vital para esta grande área úmida
denominada Pantanal (DA SILVA e SILVA, 1995).
Esta dinâmica rede fluvial se explica pelo conceito de pulso de inundação do
Pantanal. Junk e Da Silva (1999) consideram o período de inundação como aquele
cujas áreas alagáveis recebem as águas e outros elementos dissolvidos ou
suspensos, oriundos das chuvas, degelo e da elevação temporária do lençol freático.
Este material é conduzido por rios e lagos interconectado, nesta trama hídrica.
Segundo os autores, este pulso de inundação é previsível e de longa duração,
sujeito a variações anuais e plurianuais. Esta força que regula o fluxo longitudinal de
matéria orgânica faz com que este transporte esteja relacionado à quantidade e
qualidade da água, aos nutrientes dissolvidos e ao material em suspensão.
Este dinamismo de inundações periódicas contribui significativamente para a
biodiversidade do Pantanal. Os processos biológicos ocorridos na planície inundável
se adaptam e readaptam ao habitat que se alternam entre períodos ora secos, ora
inundados.
Denominado por Eitten (1990) e Sarmiento (1983) de Savana Hiper Sazonal,
estas áreas inundadas anualmente no Pantanal Mato-grossense, apresentam um
complexo vegetacional constituído por mosaico de diferentes ecossistemas, onde
coabitam elementos de quatro províncias fitogeográficas da América do Sul:
Amazônica, Cerrado, Chaco e Mata Atlântica.
A comunidade de Cuiabá Mirim está estabelecida em áreas alagáveis do Rio
Cuiabá, cuja dinâmica das águas está integrada ao sistema hídrico do Pantanal. As
inundações periódicas no Pantanal têm sua origem em fatores de ordem natural tais
como: a uniformidade topográfica, os fracos desníveis de drenagem e a
predominância de litologias sedimentares recentes. Estas reduzem o escoamento
das águas superficiais resultantes das chuvas periódicas anuais que caem na bacia
do Alto Paraguai, principalmente nos seus afluentes superiores (ALVARENGA et al.,
1984).
94
PANTANAL DE CUIABÁ MIRIM
O Pantanal de Mato Grosso é um sistema complexo de ambientes que
envolvem diversas culturas, ampla diversidade biológica, sendo as aves muito
destacadas pela abundância e beleza que compõem o cenário da paisagem
pantaneira, porém o foco deste diálogo está no contexto da comunidade ribeirinha
de Cuiabá Mirim.
A comunidade de Cuiabá Mirim constrói e transforma o seu viver, conforme
seu jeito de ver, sentir e pensar o mundo (figura 17). A comunidade está localizada
na margem do Rio Cuiabá, onde periodicamente é inundada, de maneira adaptativa
foram construídos muros de arrimo próximo à margem do Rio, que eles denominam
de açudes.
Pesquisas anteriores descrevem que a origem da comunidade Cuiabá Mirim
está diretamente ligada à história da Fazenda Flexas, que inicialmente era uma
das grandes produtoras e beneficiadoras de cana-de-açúcar da região, onde os
primeiros moradores foram trabalhadores desta fazenda no campo, nas
plantações de cana-de-açúcar, ou no beneficiamento de produtos. Atualmente nesta
fazenda é praticada a pecuária de corte (GALDINO, 2006; MORAIS, 2006; VIANA,
2008).
Nas conversas realizadas com as fontes orais, um dos anciões da
comunidade trouxe à memória um relato da época que trabalhavam na lavoura de
cana-de-açúcar e relembrou episódios onde a relação patrão-empregado era muito
próxima da escravidão, relatando que trabalhadores apanhavam no tronco, por
serem considerados indisciplinados.
Outro informante coloca que quando a Usina Flexas “faliu”, os trabalhadores
foram “despejados” no local onde hoje é a Comunidade de Cuiabá Mirim, e relata
que naquela época não tiveram nenhuma negociação dos direitos trabalhistas e as
famílias tiveram que buscar alternativas para se adaptarem à nova realidade.
95
Figura 17: Ninhos de Japuíra próximo a comunidade Cuiabá Mirim. Foto: Ruth Albernaz. Abril,
2009.
3.2.2. MÉTODOS
Este trabalho apresenta uma abordagem de cunho qualitativo na perspectiva
etnográfica, ancorado em “Interpretação das Culturas de Clifford Geertz (1998) e
Pescando Pescadores de José Geraldo Marques (2001), lançando mão de
ferramentas da antropologia e da etnobiologia.
Para Martins e Bicudo (1989), a pesquisa qualitativa pode ser vista como
pesquisa fenomenológica, para outros autores, o qualitativo é sinônimo de
etnográfico (TRIVIÑOS, 1987), já Bodgan e Biklen (1994) consideram como sendo
um termo do tipo guarda-chuva que pode incluir outros estudos, por outro lado há
um sentido bem popularizado de pesquisa qualitativa, identificando-a como aquela
que não envolve números, isto é, na qual poderia considerar como sinonímia de
não-quantitativo (ANDRÉ, 2008).
Para Sato e Souza (2001), a orientação etnográfica posiciona-se claramente
em favor da não dicotomização entre as etapas de coleta e análise de "dados,"
96
configurando-se o "estar no campo" como um constante diálogo entre a natureza do
objeto, os objetivos do trabalho e o que o campo "fala”.
Buscou-se na pesquisa, uma adequada construção do diálogo espontâneo
com os moradores de Cuiabá Mirim. Este relacionamento foi construído em processo
de mútuo respeito e progressiva confiança, aspectos que contribuíram na obtenção
das informações levantadas durante este trabalho na Comunidade, espaço
representado por uma realidade empírica a ser estudada a partir de concepções
teóricas que fundamentam o objeto da investigação. O principal período de coleta de
dados estendeu-se entre os meses de Novembro de 2008 a Outubro de 2009. Nesta
pesquisa para a coleta de dados, utilizou-se de métodos como entrevistas semi-
estruturadas (VIERTLER, 2002), relatos orais e observação participante.
O relato oral é utilizado como importante forma de obtenção de dados sobre o
conhecimento ecológico tradicional de etnoindicadores climáticos e aspectos do
cotidiano. O relato oral é uma forma de abordagem aos comportamentos, valores,
emoções relacionados à subjetividade do informante (QUEIROZ, 1987). O discurso
do sujeito, enquanto ator social, assume relevância através do relato oral que aborda
na essência a estrutura da "linguagem", permitindo-se a compreensão de fenômenos
sociais.
Os relatos orais, enquanto discursos narrativos dos sujeitos proporcionaram
nesta pesquisa a obtenção de informações sobre o modo de vida dos ribeirinhos em
meio ao ambiente natural, social, histórico e cultural de Cuiabá Mirim. Tais relatos
facilitaram a expressão de conteúdos vivenciados pelas fontes orais no processo
interacional com seu ambiente, em particular com os etnoindicadores considerados
nesta pesquisa.
Para a obtenção dos relatos orais utilizou-se entrevistas abertas com a
descrição de experiências com o ambiente pantaneiro, considerando-se tais relações
como um espaço material e simbólico, onde interagem as ribeirinhas e ribeirinhos
pantaneiros, sujeitos desta pesquisa.
97
As entrevistas semi-estruturadas ou semi-abertas caracterizam-se por
possuírem itens ou tópicos fixos e itens flexíveis desenvolvidos de acordo com o
encaminhamento da entrevista, cujas questões são contempladas na investigação
(VIETLER, 2002). Para tanto, desenvolveram-se roteiros de entrevistas aplicadas
com 22 pessoas da comunidade. Para orientar esse diálogo, foi elaborado um roteiro
básico com as seguintes perguntas:
-Quais os sinais o(a) senhor(a) conhece que indicam que irá mudar o tempo de
seca para o tempo de chuva?
-Quais os sinais o(a) senhor(a) conhece que vai mudar o tempo de chuva para o
tempo de seca?
-Quais os sinais o(a) senhor(a) conhece que o rio vai encher? E vazar?
-De quando o senhor era criança até agora, existe alguma diferença no clima?
Qual? Por quê?
A aplicação das entrevistas semi-estruturadas facilitou à pesquisadora, a
obtenção de dados sobre o universo de significados subjetivos de cada fonte oral. A
abordagem desse universo exige, segundo D‟olne (2001), um esforço incessante de
respeito aos referenciais e fenômenos alheios. A postura receptiva neste diálogo
com as fontes orais facilitou a obtenção de dados e a compreensão dos fenômenos
inquiridos.
Nesse sentido a contribuição de Malinowski (1984) ressalta a importância
para uma coleta de dados tanto detalhada quanto diversificada. Um etnógrafo que
se propõe a estudar somente religião, ou somente tecnologia ou somente
organização social abre apenas um campo artificial de pesquisa e seu trabalho
estará seriamente deficiente. Desta forma a observação participante utilizada neste
trabalho foi fundamental, oferecendo um complemento de dados não referenciados
nos relatos orais.
A observação participante é, segundo Bogdan e Taylor (1975), um processo
investigativo caracterizado por intenso relacionamento social interativo entre o
98
investigador e os sujeitos, no meio destes, durante o qual os dados são recolhidos
de forma sistemática. Neste processo foram observadas as formas relacionais do
sujeito da pesquisa com seu ambiente, seu comportamento social no cotidiano, sua
relação com a temporalidade, locais onde se dão as práticas cotidianas do convívio
sócio-familiar, manejos de utensílios, objetos e ferramentas utilizadas no cotidiano,
bem como terminologias e forma de linguagens relacionadas ao tema da pesquisa.
A observação participante foi utilizada nesta pesquisa como instrumento
utilizado para se conhecer o cotidiano dos moradores entrevistados da comunidade
de Cuiabá Mirim, perspectivando um diálogo êmico /ético, onde será descrito como
“significações culturais e ecológicas”.
Dessa forma, a observação participante permitiu que adquirisse informações
nem sempre verbalizadas, facilitando a compreensão de aspectos sobre a relação
dos ribeirinhos com o ambiente em meio à temporalidade cíclica das águas do
Pantanal na Comunidade de Cuiabá Mirim. Para Gans (1998) este método permite
ao pesquisador uma percepção aproximada das pessoas, isto é, a observação
participante permite um estudo direto sobre o cotidiano das pessoas, enquanto
outros métodos se limitam ao relato do que as pessoas dizem sobre seu cotidiano.
Malinowski (1984) indica que o observador cientificamente treinado perpasse
o registro superficial de detalhes e valorize através desta técnica os fenômenos
importantes que não podem ser registrados através de questionários ou
documentos, mas que possam ser observados em sua plenitude real. No que diz
respeito a esta pesquisa, a técnica de observação participante contribuiu para que
se obtivessem significativos dados sobre a relação do ser humano e o ambiente
pantaneiro, fonte de conhecimento ecológico onde se inserem os elementos bióticos
e abióticos enquanto etnoindicadores climáticos.
Durante o transcorrer da coleta de dados, foram observados os seguintes
conteúdos para mergulhar no objeto da pesquisa: relacionamento entre as mulheres
durante a limpeza de peixes na beira do rio; Atividade das mulheres durante a
lavagem de roupas; brincadeiras e pescaria com crianças; comportamento dos
pescadores nos preparativos da pescaria; atitudes das mulheres durante a colheita
99
de frutos; comportamento dos informantes durante “passeios para ver passarinho”;
visita à quintais onde as mulheres apresentaram as plantas cultivadas,
principalmente as de uso medicinal; visita a horta plantada no barranco do Rio
Cuiabá; visitas às casas dos moradores e do principal ancião da comunidade, na
época com 103 anos, quando se ouviam as histórias da origem de Cuiabá Mirim e
da Usina das Flexas.
3.3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
SIGNIFICAÇÕES CULTURAIS E ECOLÓGICAS DE CUIABÁ MIRIM
A significação anima a palavra, como o mundo anima meu corpo,
graças a uma surda presença que desperta minhas intenções, sem
desdobrar-se diante delas (Merleau-Ponty).
As significações da cultura dos ribeirinhos pantaneiros de Cuiabá Mirim
trazem em sua expressão, o modo de viver no espelhamento do ritmo do ciclo das
águas do Pantanal, desenhando e reinventando seu cotidiano a partir da dinâmica
da natureza. Neste ritmo pantaneiro, uma marcação temporal importante está ligada
às fases de enchente-cheia-vazante-estiagem, estabelecendo um etnocalendário17
interligado entre as atividades sociais, econômicas e ecológicas. “Aqui nós
acompanha as água [...]” (SRS, 63 anos, ♂).
O etnocalendário apresentado em diálogos com as fontes orais da
comunidade demonstraram que as atividades cotidianas contemplam vários
aspectos culturais e ecológicos, que aqui serão descritos os mais evidentes nos
relatos. Para Geertz (1989, pág. 15):
Cultura se configura como uma teia de significados que o ser
humano cria e permanece eternamente amarrado, entrelaçando os
fios significantes, tramados pelos componentes do grupo social no
seu tempo em seu espaço, ambiente de vida cotidiana.
O principal elemento a ser analisado no etnocalendário da comunidade
Cuiabá Mirim, diz respeito ao tempo, onde se pode considerar um dos fatores mais
17
Etnocalendário, utilizou-se essa nomenclatura para designar o calendário da comunidade
Cuiabá Mirm.
100
abstratos, mas desenhado por tipos cíclicos distintos como o tempo de Chronos18, o
tempo histórico, o tempo circular, o tempo da lua (em suas fases), o tempo climático,
o tempo de antes e de agora, tempo de escola, tempo de festas de santo, tempo de
pesca, tempo de roça, tempo das águas, entre outras temporalidades.
Em “La Nouvelle Alliance: métamorphose de La science”, as autoras tecem
uma reflexão:
Cada ser complexo é constituído por uma pluralidade de tempos,
ramificados uns nos outros segundo articulações sutis e múltiplas. A
história, seja a de um ser vivo ou de uma sociedade, não poderá
nunca ser reduzida à simplicidade monótona de um tempo único,
quer esse tempo cunhe uma invariância, quer trace os caminhos de
um progresso ou de uma degradação. (PRIGOGINE e
STENGERS, 1997, pág. 211).
Tratando do tempo, no discurso da identidade e a racionalidade ambiental,
Leff coloca:
O tempo que forja um futuro sustentável não é só aquela dimensão
do tempo inerente a eventos e processos externos e objetivos, mas
um tempo fenomenológico: o tempo que constrói a história, o tempo
que toma corpo em identidades que configuram sentidos existenciais,
que mobilizam processos sociais e emancipam vontades de
mudança; o tempo que desencadeia o mundo com novos
significados que organizam o material e o simbólico no encontro da
ecologia com a cultura. (LEFF, 2001, pág. 42).
ETNOCALENDÁRIO SOCIAL: Tempo de escola e tempo de festas
“no meu tempo não tinha escola, agora precisamos fazer um esforço
para que nossos filho aprenda a lê e escrevê, pois o mundo ta
mudando e o que nós sabe fazê é pescá e o pexe tá acabando, o
que eles vão fazê? [...]” (SRL, 48 anos, ♂).
Nesses cenários, entre o passado, o presente e o futuro, nas relações
paradigmáticas, o pantaneiro expressa sua preocupação com as mudanças
ambientais, refletidas na escassez do pescado, principal fonte de sobrevivência das
18
Chronos: na mitologia grega é considerada a personificação do tempo.
101
comunidades tradicionais ribeirinhas. Como uma alternativa para o futuro a
educação formal surge como uma possibilidade de resiliência frente às pressões
externas ao longo do tempo.
A Escola Municipal de Cuiabá Mirim atualmente (2009) conta com
aproximadamente setenta alunos e três professores, que lecionam para as turmas
do 1º ao 7º ano do ensino fundamental, se configura como um importante espaço de
aprendizado formal e não-formal. Lá os jovens interagem, (re)produzem as relações
sociais cotidianas no “tempo de aprendizado” como espaço de possibilidades de
diferentes práticas sociais, culturais, religiosas e econômicas.
Em diálogo com os professores, foram relatadas as dificuldades para dar
continuidade às atividades escolares, segundo eles o apoio da prefeitura municipal é
incipiente. Os professores contam apenas com giz, quadro negro e um aparelho de
som para instrumentalizar as aulas, pouco compensadoras diante do baixo salário.
Atualmente, todos os três professores tem suas casas fora da comunidade, sendo
este um dos fatores desestimulantes:
“nós professores que temos que consertá as coisas que quebra na
escola, o encanamento de água só tá funcionando porque fomos lá e
consertamos, a prefeitura não aparece [...] Se acharmos uma
colocação em Barão não vamos voltar pra cá, porque aqui gastamos
muito para vir de barco”. (A. S., 33 anos, ♂).
A escola encontra-se em um momento de aparente fragilidade, correndo risco
de ser fechado, o que levaria os alunos a procurar alternativas para o próximo ano
letivo (2010). O lábil ritmo no tempo da escola sobrevive pelo esforço de todos e de
cada um, pois maior esforço haveria se seguissem o calendário escolar na escola da
Comunidade do Estirão Comprido, onde seria necessário navegar “rio acima” por
volta de 30 minutos:
“se os professores desiste de dar aula, não sei como vai ser [...]” (M.
S., 30 anos, dois filhos na escola, ♀).
Observa-se que a aprendizagem se dá de diversas formas, em múltiplos
espaços e em temporalidades distintas: no momento das brincadeiras as crianças
reproduzem as práticas paternas, quando banham-se nas águas do Rio Cuiabá,
102
quando acompanham seus pais na pesca, quando vão caçar passarinho para
comer: “[...] três garotos na beira do rio, limpando uma ave, e cortando-a em pedaços,
disseram que se tratava de um pombo do mato e aquele pássaro seria o almoço deles,
disseram também que costumavam pegar as aves peloteando19 ou fazendo armadilhas.”
Figura 18: Menino com pássaro e menina limpando lambari.
As práticas religiosas se evidenciam como atividades importantes no
contexto social, marcada por dois grupos cristãos: a Igreja Católica e a Igreja
Evangélica Assembléia de Deus.
O grupo católico realiza algumas festas de santo, sendo a mais
movimentada, a festa de São Pedro - padroeiro dos pescadores, protetor da pesca e
controlador das chuvas - cabendo ao Santo uma função notoriamente ecológica. As
festividades dedicadas aos diversos santos são freqüentes e seguem o calendário
pré-estabelecido de acordo com as tradicionais datas dos santos católicos.
Para a festa de São Pedro, os fiéis começam preparar a festa com
antecedência à data, pois é necessário construir um local adequado para o festejo.
Os homens se reúnem para o “muxirum”20 da construção do salão, geralmente
localizado na casa de um dos festeiros. O salão é construído com madeiras colhidas
19
Pelotear ou estilingar significa atirar pedra com uma arma feita com forquilha de madeira,
presa com uma borracha de pneu de bicicleta ou outra borracha flexível,geralmente.
20 Muxirum é a realização de atividades coletivas que também pode ser denominada por mutirão.
103
na redondeza e o telhado feito com folhas que são denominadas por “palhas” das
palmeiras de acuri (Scheelea phalerata Bur.) ou de babaçu (Orbignya oleifera Bur.).
As mulheres se reúnem para fazer os doces caseiros de frutas que são
cultivadas nos quintais21, como laranja, mamão e alguns bolos. Os enfeites
decorativos da festa, também são atividades designadas para as mulheres, que
fazem bandeirolas semelhantes às usadas em festas de São João, enfeitando o altar
e montam um mastro com a imagem do Santo:
“Nós se reúne muitos dias antes para prepará todas as coisa da
festa, é muito divertido, fazemos o almoço pra todo mundo pra facilitá
o trabalho, fazemos um panelão de feijoada e a gente se reúne
várias vezes porque tem muito serviço.” (A. G. S., 62 anos, ♀).
As festas de São Pedro mobilizam boa parte da comunidade que se prepara
para receber nesta ocasião os moradores de outras localidades vizinhas. Nessa
oportunidade as rezas, cultos, devoções, cânticos sacros misturam-se aos bailes e
danças de siriri e cantos do cururu.
“Quando termina uma festa, os festeiro já começa arrecadá as
prenda pra festa do ano seguinte, nós ganha novilha, as comida tudo
[...] É a festa mais esperada do ano.” (C. M. S., 53 anos, ♂).
No contexto pantaneiro, pesquisa realizada por Albernaz-Silveira e Quadros
(2009, pág. 25) comentam que “a poética pantaneira está manifesta principalmente
pela poesia, música, religiosidade, mitos e materializada de múltiplas maneiras por
meio de artefatos, objetos, culinária e arquitetura.”
No tempo das festas de Santo, a musicalidade se faz presente, os ritmos
tradicionais se renovam nos cantos dos cururueiros, nos ensaios do siriri realizados
a noite, reunindo jovens e adultos de ambos os sexos, que queiram participar das
danças.
Dia de Santo é dia sagrado, geralmente não se desenvolvem outras
atividades de trabalho se não ligadas às festividades comemorativas ao Santo do
dia. Desde cedo os homens soltam fogos e fazem rodadas de cururu com suas
21
Definido por Amorozo (2008) como espaço de usos múltiplos que fica próximo à residência do grupo familiar.
104
letras poéticas próprias do pantanal, que incluem aves numa conexão ave-
religiosidade-dança:
Nandaia, Nandaia vamos todos nandaiar
Ó meu padre Santo Antônio venha me ensinar dançar.
Se não servir essa, ponha essa outra, para a senhora moça...
(E. L., 75 anos, ♀)
Figura 19: Festa no Pantanal. Imagem de Nilson Pimenta (acrílico sobre tela).
ETNOCALENDÁRIO SÓCIO-ECOLÓGICO: tempo de pescar, tempo de plantar e
tempo de colher
A Comunidade de Cuiabá Mirim traz a força de sua identidade cultural como
uma comunidade de pescadores e lavradores. A grande maioria das pessoas, tanto
homens como mulheres, se auto-identificam como pescadores profissionais e
lavradores: “aqui, nós tudo somos ribeirinho e somos pescador e lavrador (URS, 67
anos, ♀)”. Eles passam a maior parte do tempo em atividades que estão
105
diretamente ligadas com o ambiente natural, e são adaptados ao ciclo das águas. A
pescaria é uma atividade cotidiana, de todas as idades (Anexo II), onde pode ser
visto a todo o momento alguém indo ou voltando da pesca.
Os pescadores desenvolveram variadas estratégias de pesca que foram
estudadas por Morais (2006) onde identificou vinte e uma (21) estratégias dentro do
domínio cultural da comunidade Cuiabá Mirim. É raro o dia que eles não se
alimentam do peixe, pois a base do cardápio da comunidade é peixe, arroz e
mandioca.
No calendário próprio da comunidade, existe o tempo da pescaria mais
intensa e o tempo de “piracema” quando se faz respeitar a legislação ambiental do
Estado e suspender temporariamente as atividades pesqueiras (novembro a março).
Em alguns relatos, eles evidenciaram a questão do cumprimento das Leis
Estaduais de pesca,
“temos que cumprir as lei, se não, não sobra pexe prôs nossos neto
[...]” (SCS, 63 anos).
Esse cuidado em se respeitar o ciclo reprodutivo dos peixes ou tempo da
“piracema" reflete as práticas sustentáveis presentes na comunidade de Cuiabá
Mirim, bem como, o respeito pelo ciclo da natureza e sua preocupação com o futuro
em relação à sustentabilidade local. Outro relato aponta a preocupação com o ciclo
reprodutivo dos peixes e as alterações ambientais:
“Se tiver fora da piracema e a gente começa achar algum tipo de
pexe com ova, a gente dá um tempo daquele pexe, vai pescá outro
por alguns dias, pois ta tudo mudando [...]” (SRS, 63 anos ♂).
No contexto da pesca no Pantanal, Da Silva e Silva (2008) salientam que a
cultura pantaneira através dos tempos aparece como um princípio ativo para o
desenvolvimento das forças produtivas, em um paradigma alternativo de
sustentabilidade e indicam que a pesca representa a principal atividade produtiva
(social e econômica) das comunidades tradicionais pantaneiras.
106
Quando começa o período das chuvas e da piracema, os moradores buscam
atividades ligadas ao plantio de roça e manejo de outros espaços e atividades
diversas, dão mais atenção à pequena criação do gado, pois as famílias ocupam
o escasso espaço físico de terras firmes disponíveis para a comunidade. Estas
alternativas econômicas para a sobrevivência e manutenção de cada grupo familiar
é fruto da adaptação à realidade que se constrói conforme os recursos disponíveis, o
entendimento e as necessidades locais. Como afirma Brandão (1985), cultura diz
respeito a toda humanidade, mas ao mesmo tempo a cada uma das sociedades.
“no tempo das roça, nós planta banana, milho, mandioca, batata,
abóbora, maxixe, melancia, feijão e outras semente que a gente tivé
na época, mas nos últimos tempo o cateto qué comê tudo... Nós
acompanha o tempo da lua, cada plantação tem um jeito de plantá
[...]” (BRS, 50 anos, ♀).
As roças são plantadas para a subsistência da família e os excedentes são
geralmente vendidos ou trocados na própria comunidade ou em comunidades
vizinhas, como Conchas e Estirão Comprido, onde moram muitas pessoas que são
“parentes” das famílias de Cuiabá Mirim, “esses povo tudo da beira do Rio é parente
[...]” (URS, 69 anos, ♀).
Quanto ao tempo da roça, pesquisa realizada na mesma comunidade por
Viana (2008) descreve a atividade da roça como uma atividade de subsistência e de
um período longo de preparo por se tratar de “roça de toco”, que é um sistema que
se usa pouca tecnologia, apenas machado para abrir as áreas para plantio e é
necessária a rotação dessas áreas.
Ao acompanhar com uma das moradoras para conhecer a roça da família, foi
mostrado ao longo do caminho etnoespécies de aves que ocupam diversos
ambientes (Anexo III). Entre a casa (à margem do rio Cuiabá) e a roça pode-se
observar várias unidades de paisagem que foram categorizadas pela moradora
como: brejo, cercado, mata fechada e firme.
“tem muitos passarinho que gosta de ficá no caminho e na roça,
como piriquito, cabecinha vermelho tem muito, tucano, açari,
papagaio, bico curto, ararinha verde, rolinha, galo da campina, jacu
goela, ih! Tem um monte que é de ficá na roça [...]” (BS, 50 anos, ♀).
107
Galdino (2006) descreve as unidades de paisagem levantadas pela
comunidade e discute a relação dos moradores de Cuiabá Mirim com os recursos
vegetais para a construção da casa pantaneira. A autora coloca:
[...] a subsistência é uma relação chave entre o pantaneiro e o
ambiente, de maneira que, os pantaneiros de Cuiabá Mirim
desenvolvem várias atividades de subsistência como: agricultura,
extração, coleta, pesca, caça, pecuária de pequena escala e
manufaturas de casas, canoas e apetrechos de pesca. (GALDINO,
2006, pág. 45).
Em um estudo sobre o campesinato goiano descreve os diversos modos de
adaptação à temporalidade de plantar, colher e comer e aponta “[...] é de uma
dependência original e direta dos recursos da natureza o que faz com que o lavrador
avalie o seu ambiente segundo critérios muito definidos de utilidade para a
subsistência (BRANDÃO, 1981, pág. 49).”
ETNOCALENDÁRIO SÓCIO-ECOLÓGICO: Tempo de enchente-cheia-vazante-
estiagem
“O patinho d’água, ele faz o ninho numa certa altura, bota, choca, a
hora que sair o filho, a água tá encostando no fundo do ninho. Olha a
altura (do ninho) que quando tirá o filho a água tá encostando.”
(BRS,51 anos ♂).
Este é o etnocalendário que permeia todos os outros. Em meio ao ciclo das
águas, o morador do Pantanal integrado e dependente das forças da natureza,
reproduz entre as secas e cheias pantaneiras suas atividades do sobreviver. Na
interação com este ciclo que se perpetua ao longo do tempo, internaliza no próprio
existir o ritmo do ambiente. Este constante processo de adaptação, entre as fases
das águas, traz ao pantaneiro e pantaneira a versatilidade de sobreviver em seu
próprio lugar, desenvolvendo estratégias diversas, adaptadas ao cotidiano,
sincronizado com o tempo.
Seja no tempo de pescar, de plantar, de colher e de festar, essa variação de
ritmo pautada entre a seca e a chuva perpetua nos moradores do Pantanal saberes
108
diversos sobre o manejo do lugar. Aprende-se a observar e reconhecer na natureza
seus múltiplos elementos, seus ritmos, sinais e significados, símbolos e signos.
Aprende-se a reconhecer, na relação com o próprio tempo, as transformações
cíclicas que se reproduzem no comportamento entre as espécies, como o vôo das
aves no período migratório, seu ciclo reprodutivo, as vocalizações dos pássaros e
seu comportamento, buscando prever o que há de vir.
ETNOINDICADORES CLIMÁTICOS
“andorinha, quando tá arrumado pra chovê, fica assanhado, fazendo
verão” (CMS, 53 anos, ♂).
Na comunidade Cuiabá Mirim, algumas aves podem ser consideradas como
etnoindicadores, muitas vezes são colocadas como mensageiras para essa cultura
que se reinventa, inserida em um ambiente com rica diversidade biológica,
permeada pelos quatro elementos (ar-água-fogo-terra) que pulsam naquele espaço
regido pelo ritmo das águas.
Nessas interconexões ribeirinhas e ribeirinhos pantaneiros percebem as
mudanças naturais, como os sinais que indicam a estação seca, a chegada da
estação chuvosa, sendo um dos mais evidentes as vocalizações de aves que são
percebidas pela capacidade de “adivinharem ou anunciarem chuva, seca ou frio” os
quais são consideradas como ornitoáugures meteóricos. Marques (2002) conceitua
ornitoáugures meteóricos como "aves cujas vocalizações atribui-se o poder de
prenunciar eventos relacionados com o tempo e clima".
“Mancauã, se ele cantá na madeira seco, vai tê muita seca, se
canta na árvore verde, vai tê muita chuva, lá por agosto e
setembro [...] ele faz previsão.” (BRS, 51 anos ♂).
O Macauã (ou acauã) é reconhecido por outras culturas como
etnoindicadores climáticos, como aponta estudos.
Na região do Alto Juruá-Acre, Cunha e Almeida (2002) relatam que os
indígenas da etnia Ashaninka reconhecem os diferentes cantos do Macauã e atribui
109
a determinados cantos a anunciação de chuva, o mesmo ocorre com a saracura e
outros pássaros da região.
Pesquisa de Simoni (2004), em uma comunidade ribeirinha do Rio Cuiabá na
região de Nobres - MT foi citada a acauã como indicador climático com a mesma
descrição (acima citada) ligada ao pouso em árvore seca ou verde.
Araújo, Lucena e Mourão (2005) estudaram o prenúncio de chuvas pelas aves
na percepção de moradores de comunidades rurais no Município de Soledade - PB,
levantando trinta espécies que pressagiam mudanças de estação, entre elas, o
acauã.
As vocalizações das aves são importantes elementos que auxiliam a
adaptação humana nos ambientes do Pantanal, como coloca Catunda (1994) “o
canto dos pássaros nos ensinam a ouvir”. Em Cuiabá Mirim, as vocalizações são
ouvidas em diversos horários, com diversas funções e entonações:
“Saracura dá o sinal, se ela canta 4 h da manhã, 4 h da tarde vai
chovê.” (BRS, 51 anos ♂).
Marques (1999) realizou uma pesquisa para descrever o papel semiótico que
as vocalizações das aves desempenham entre comunidades rurais, apontando que
os camponeses brasileiros se envolvem tradicionalmente e emocionalmente com os
sons das aves.
Além das vocalizações, existem outros sinais-chave que são contemplados
com valor informacional que os pantaneiros observam nas aves para mudança
climática natural (figura 20):
“quando vai começar a secá, começa passar os biuá e as garça.
Quando passa de baixo pra cima significa que tem pexe aí para
cima, na beira das lagoa, porque ta secando. Quando passa para
baixo, ta indo pousá.” (SRS, 63 anos, ♂).
110
Figura 20: Categorias de sinais-chave das aves
Os diversos sinais que são interpretados pelos ribeirinhos de Cuiabá Mirim em
relação a aspectos etológicos das aves indicando mudanças temporais naturais
estão apresentados na tabela 14, demonstrando a conexão entre o ser humano, o
ambiente vivido e a ligação com as aves.
vocalizações
• canto
• piado
• choro
• latido
• horário das vocalizações
tipo de vôo
• circular
• direcional
• assanhado
nidificação• altura do ninho
• posição do ninho
presença
coloração
• Anuncia a
chegada do frio
• Fica com a cor bem
vermelhinha no frio
AVES
EM GERAL
111
Tabela 14 – Avifauna Etnoindicadora de mudanças temporais.
SINAL CHAVE RELATO DOS PANTANEIROS DE CUIABÁ MIRIM
Vocalização do patinho
d‟água
(Cairina moschata)
“quando patinho d’água ta latindo igual cachorro é que o rio
vai encher.”
Nidificação e
localização do ninho do
patinho d‟água (Cairina
moschata)
“ele faz ninho numa certa altura, bota os ovos, choca, a hora
que sair o filho, a água ta encostando no fundo do ninho. A
gente olha a altura que ele fez o ninho, a posição, porque
quando ele tirá o filho a água ta encostando.”
Canto da Saracura
(Aramides cajanea)
“quando Saracura Três pote canta, vai chovê...”
“Saracura dá o sinal, se ela canta 4 h da manhã, 4 h da tarde
vai chovê.”
“Saracura gosta de cantá quando vai começar a chover”;
Canto e localização do
Mancauã
(Herpetotheres
cachinnans)
“Mancauã, se ele cantá na madeira seco, vai tê muita seca,
se canta na árvore verde, vai tê muita chuva, lá por agosto e
setembro ele faz previsão.”
Vôo do Biuá
(Phalacrocorax
olivaceus) e garça
(Casmerodius albus)
“quando vai começar a secá, começa passar os biuás e as
garças. Quando passa de baixo pra cima significa que tem
peixe aí para cima, na beira das lagoas porque ta secando.
Quando passa para baixo, ta indo pousá”;
Canto do Quá
(Nycticorax nycticorax)
“Quá, quando o rio vai vazá, ele avisa de madrugada...”
“Quando o rio Cuiabá vai secar, em maio, o quá canta.”
“Quando vai vazá, o quá desanda a cantá, cedinho, aí minha
mãe falava que o rio já ia vazá...”
“quando vê um quá, o rio vai vazá.”
“Quando o rio Cuiabá vai secar, em maio, o quá canta.”
Vôo circular da
andorinha
(Progne chalybea)
“andorinha, quando tá arrumado pra chovê, fica assanhado,
fazendo verão.”
Vôo circular do gavião
caramujeiro
(Rosthramus sociabilis)
“gavião caramujeiro vai voando e fazendo redemoinho
circular ta adivinhando o tempo, vai chovê.”
Canto do sabiá (Turdus
rufiventris)
“sabiá ta cantando vai chovê...”
Presença e coloração
da ave São Joãozinho
(Pyrocephalus rubinus)
“São Joãozinho quando aparece com o peito bem vermelho,
e ele só aparece na época do frio.”
“São Joãozinho, quando aparece todo mundo fala: - vai fazer
frio porque são Joãozinho já apareceu.”
Canto do Tem tem
“Tem tem cantou é seca...”
Nos diálogos com as fontes orais a respeito das aves etno-indicadoras,
apareceram espécies da fauna e flora como etnoindicadores biológicos de
112
mudanças naturais, estação seca-chuvosa – ciclo hidrológico do Pantanal: período
de enchente-cheia e período de vazante-estiagem e estação climática de frio, que
os pantaneiros consideram como importantes. Pode-se evidenciar a visão
ecossistêmica dos mesmos, trazendo à tona espontaneamente, os seguintes
conhecimentos ecológicos tradicionais:
FAUNA
Vocalização e movimento corporal do Jacaré:
“jacaré, quando começa a urrar, vai mudar o tempo (SCS, 63 anos,
♂).” “quando ele urra e mergulha borbulhando, vai chovê” (LRS, 53
anos, ♂).
“quando ele urra e bate a boca, vai ventá e não vai chover” (LRS, 53
anos, ♂).
Vocalização da onça:
“Onça, quando tá arrumado pra chovê, ela bufa” (SCS, 63 anos, ♂).
“lá onde nós pesca, a onça começa a urrar quando vai chover. Dá
um urro longo, não é só um bufado [...]” (LRS, 53 anos, ♂).
“Onça quando urra com a boca para baixo é chuva, os mais velho
que dizia.” (BS, 28 anos, ♂).
Presença da sucuri:
“sucuri apareceu, pode falar que vai vazá [...]” (BSS, 59 anos, ♂).
Movimento do caititu:
“Caititu, quando vai enchê, ele aparece, vem caçá no seco, porque a
água vem vinda” (BSS, 59 anos, ♂).
Vocalização do bugio:
“quando Bugio ta urrando, vai virar frio” (LRS, 52 anos, ♂).
“[...] bugio avisa quando vai fazer frio” (GCS, 51 anos, ♂).
“Quando bugio ronca ru, ru, ru, vai chover” (SBL, 53 anos, ♂).
Coaxar de sapo e rã:
“sapo ta cantando é chuva” (DRS, 31 anos, ♂).
“Sapo e rã quando começam a cantá vai chove” (AGS, 54 anos, ♀).
113
Os ribeirinhos de Cuiabá Mirim observam o comportamento dos peixes e
aspectos morfológicos foram colocados, como apontam as informações abaixo:
Peixes em geral:
“quando vai enchê, a gente olha e vê que os peixe tudinho vão pro
campo, entram nas boca dos corixo e baía” (MAS, 37 anos, ♀).
Sardinha:
“quando a Sardinha, você pega ela, ta com barba, já vai enchê, ela
fica barbada nessa época” (BSS, 59 anos, ♂).
Dourado:
“quando o Dourado bóia, ih, vai vazá [...]” (BSS, 59 anos, ♂).
Lambari e piquira:
“os Lambaris e Piquiras saem das bocas que eles entraram e ficam
zoando (fazendo um barulho), vai vazá [...]” (MAS, 37 anos, ♀).
FLORA
Folhas da Abrobeira:
“Uma árvore chamada abrobeira, quando vai chovê a folha dela vira
tudo ao contrário, é um dos primeiro sinal que vai começar as
chuvas, temporal que vai ter e muda muito começa ventá norte,
venta de descida assim [...]” (BRS, 51 anos, ♂).
Fenologia: floração da Beladona ou trombeteira (Datura suaveolens):
“Beladona, aquela que nós planta no quintal, quando abre a flor e
fica bem branquinha, pode falar que vai começar a chover” (ARP, 64
anos, ♀).
Embaúba (Cecropia sp):
“tem uma árvore, a embauveira, se ela amanhecer virada, o lado da
folha da direita ta para a esquerda, é paulada, vai chovê. Meu bisavô
explicava isso pra nós [...]” (BRS, 51 anos, ♂).
Sardinheira:
114
“quando a sardinheira tá com flor, o rio vai encher” (BSS, 59 anos,
♂).
Fenologia: floração de anxuma ou guanxuma (Malvastrum sp):
“um mato chamado anxuma, que dá no terreiro, quando ela floresce
é porque a água já vai abaixá” (LRS, 53 anos, ♂).
Além dos sinais que os componentes bióticos indicam, os ribeirinhos tecem
conexões sutis ligadas às interações com o ambiente abiótico, com o simbólico,
sobrenatural e as práticas cotidianas de adaptação e resiliência, como se pode
observar na tabela 15.
O céu pode trazer informações importantes para os ribeirinhos em relação às
mudanças temporais, de forma que eles podem organizar-se para pescar e
desenvolver outras atividades que dependem da natureza.
“quando tamos com a canoa lá na baía e começa ventá norte, vai
chuvê, as água vai encrespando, vamo logo pra casa porque se não
a baía dá umas ondonas na chuva e fica perigoso, é sinal que temos
que vazá [...]” (SCS, 63 anos, ♂).
Tabela 15 – Etnoindicadores Climáticos.
ETNOINDICADOR RELATO DOS PANTANEIROS DE CUIABÁ MIRIM
Céu – coloração “quando fica um barrão vermelho no céu, é que vai cortá as
115
chuva.”
Céu - arco-íris “quando ta arrumando pra chovê, aí aparece o arco-íris”;
“quando tá anuviado e o arco-íris panha água, vai começa
as chuva.”
Trovão e
relâmpago
“junta nuvem grossa e troveja”;
“um troço que urra e brilha quando vai chovê”
“à noite o céu fica fuzilando, ta perto de chover”;
Nuvem -
Coloração e
forma da nuvem
“quando ta arrumado, vai chovê, tem nuvem preta”;
“nuvem desenha gente ou passarinho, aí vai arrumá pra
chovê.”
Lua nova /
quarto
crescente
“a lua quando faz nova e fica emborcada para baixo, vai
chover e quando ela ta com a boca reta emborcada para
cima vai cortá a chuva...”
“quando a lua nova está fazendo quarto-crescente e a lua ta
torta para baixo, ta perto de chover”;
Lua e horário
cronológico-
madrugada
“de noite levanta de madrugada, tem essas manchas no céu
e olha a lua, ela tá pense (meio virada para baixo) é sinal
que já vai começar a chuva...
Passagem da
lua
“na passagem de lua também sempre chove, é bom pra
chovê”;
Direção do
vento: sul para
norte
“Quando começa o vento sul é sinal que já vai vazá, porque
o vento sul é sinal de frio e o frio dá na época da seca.”
“quando começa a ventá de baixo pra cima vai esfriar (de
baixo pra cima em relação ao rio Cuiabá)”.
Direção do
vento: norte
para sul
“muitas vezes o tempo tá arrumado pra chovê e aí começa
ventá norte, aí vai chovê”;
Serração
“quando começa a serração, vai minguá a chuva”;
“serração tipo uma neblina é sinal de seca, os mais velho
que falava...”
“quando tem serração, vai cortá a chuva.”
Sereno “quando começa serená vai cortá a chuva”;
“quando amanhece tudo serenado no gramado vai minguá a
chuva”;
“quando ta serenando bastante, vai cortar a chuva.”
Rio Cuiabá:
turbidez e
volume
“Quando começa a sujar a água, vai começa a encher, a
chovê.”
“quando o rio vai vazando, a gente vê o rio vazando, vai
cortando a água, as chuva...”
“espiá no rio e a água ta fumaceando e vai tomar banho a
água que tava fria fica morna...”
Comunicação “... assisto na TV a previsão do tempo.”
116
de Massa –TV
Religiosidade:
dia de santa
“depois de duas chuvas podemos plantar, plantamos nos
dias de Santa Catarina e Nossa Senhora da Conceição, aí
não falta chuva.”
INDICADORES DE ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS
O conhecimento dos pantaneiros a respeito das alterações climáticas (tabela 16)
se dá por duas vias: o conhecimento vivido, com elementos da memória que foram
apreendidos com os mais velhos e as informações externas adquiridas nas práticas
sociais e através dos meios de comunicação de massa, como televisão e rádio.
Adquirido pelos meios de comunicação de massa: “A destruição das
mata ciliar, o desmatamento, os carros e a usina, a soja tem que
desmatá, daí a camada de ozônio vai acabando” (IRP, 40 anos ♂).
Adquirido pela vivência: “O que ajuda o calor é muito fogo, ajuda a
esquentá [...]” (BRS, 51 anos ♂).
Adquirido pelas práticas sociais-diálogos: “Depois que colocaram a
usina de Manso a água ficou controlado, e as mudança no clima é
grande, tá ficando um clima muito quente [...]” (IRP, 40 anos ♂).
Nas últimas décadas é evidente a alteração das paisagens Mato-Grossense,
em decorrência da expansão de atividades produtivas, diretamente ligadas ao
agro-negócio no Estado. Os modelos produtivos e a utilização de novas tecnologias
aplicadas na região dos planaltos ao redor do Pantanal vêm trazendo ameaças a
este importante bioma, inclusive a falta de controle do uso de agrotóxicos nas
lavouras de soja e algodão.
Pesquisas de Alho et al. (1988), Mourão et al. (2002) e Vieira et al. (2004)
evidenciam através de trabalhos de campo, que os agrotóxicos utilizados pela
agricultura nas áreas ao redor do Pantanal contaminam os rios da planície
pantaneira. Nas águas dos rios Taquari e São Lourenço, constata-se a presença
significativa de pesticidas usados na lavoura de soja. Os pesquisadores revelam
ainda que apesar de ter sido proibido o uso de mercúrio nos garimpos de Poconé -
117
MT, ainda é grande o índice de contaminação na cadeia alimentar por este metal,
altamente agressivo à saúde humana.
Tabela 16: Narrativa das fontes orais em relação às mudanças climáticas no
Pantanal.
Indicador Narrativa
Pulso de
inundação
“antes quando era janeiro o rio já tinha carregado, agora ta
vazio (fevereiro), porque não chove e que ta mudando ta, o
calor ta muito mais do que era antigamente, uns vinte anos
atrás”;
“Tem época que em janeiro já era cheio, agora em fevereiro que
veio chovê”;
Queimadas “O que ajuda o calor é muito fogo, ajuda a esquentá...”
Alteração no
tamanho do
Planeta Terra
“ta mais quente porque o céu desceu, ta mais baixo...”
“o povo acha que o sol baixô ou a Terra cresceu...”
Atraso no início
das chuvas e
interrupção do
período
“o problema do calor ta sendo mais quente que uns anos atrás,
desde a água do rio ta atrasando. Antigamente começa em
novembro e agora a chuva começou em dezembro, parou e
agora que começou de novo (fevereiro)”;
Desmatamento “o desmatamento ta ajudando muito a esquentá, os velhos
dizem que onde tem mais mato, tem mais chuva e é mais
fresco”.
“A destruição das mata ciliar, o desmatamento, os carros e a
usina, a soja tem que desmatar, daí a camada de ozônio vai
acabando.”
-“ta ficando calor por causa das queimada e por causa da
derrubação de pau, tão derrubando tudo...”
“a chuva ta encurtando por causa do desmatamento, onde tem
mais mato, chove mais...”
“tá diferente, nem frio dá mais quase... É muita poluição e
desmatamento, que ta fazendo isso.”
Usina de manso “Depois que colocaram a usina de Manso a água ficou
controlado, e as a mudança no clima é grande, ta ficando um
118
clima muito quente...”
Idade x
sensação
térmica
“o clima ta mais quente, ta melhor e o frio minguou.”
“O frio vem e só acha os veios e o calor só acha os novos.”
Tá acabando o oxigênio do tempo temos que ter consciência de
preservar, se não vamos ter que ter um robô congelado para
nós andar dentro.”
Diminuição do
frio
“ta muito diferente, acabou a friagem e ta mudando só pra
calor.”
“Fazemos como antigamente, mas não dá...”
Temporalidade “O calor, agora ta mais quente, quando eu era pequena era
mais frio...”;
“o frio ta acabando, de antigamente pra agora...”;
“ta esquentando tanto que ta dando as doenças do sol na pele,
que antes não tinha...”;
“ta diferente, cada ano que passa ta mudando,
modificando...”
“já teve várias mudanças, de 70 a 80 dava um frio mesmo,
de 90 para cá, não dá mais frio. O último que eu achei frio
mesmo foi dia 10 de junho de 1989”;
Simbólico-
religioso
“Fraqueza na plantação, antes plantava no dia santo (sete de
dezembro) e chovia na certa, agora continua plantando, mas
não chove”;
“Na bíblia, nas reza conta que as coisas vão ser diferente”;
“Uns falam que o céu desceu mais pra baixo, mas eu não
acredito”;
“O frio acabou mais porque Deus ta com dó de nós, nós
passava muito frio antigamente”;
“ta mais quente, o calor tem aumentado, ta chegando o fim do
mundo, Jesus disse que quando estivesse perto da vinda dele
muitos sinais iriam acontecer”.
Nesse cenário atual, o patrimônio natural do Pantanal vem sofrendo ameaças
importantes em sua biodiversidade, graças ao modelo de ocupação e manejo em
seu território e nas áreas circunvizinhas ao território pantaneiro (HARRIS, 2005).
119
Vários fatores ambientais interferem na dinâmica desta enorme planície
inundável do Mato Grosso, comprometendo um grande número de espécies animais,
entre aves e mamíferos, como o tuiuiú (Jabiru mycteria), cabeça seca (Mycteria
americana), veado-campeiro (Ozotoceros bezoarticus), o cervo-do-pantanal
(Blastorecus dichotomus), a capivara (Hidrocaeris hidrocaris), além de espécies de
anfíbios, répteis e a flora nativa deste bioma.
De acordo com Padovani (2004), mais de 40% das florestas e savanas do
Pantanal, foram alterados para a ocupação da pecuária, inclusive com a introdução
de gramíneas exóticas, cujo impacto ambiental para o Pantanal ainda é
desconhecido. As alterações desse desmatamento são percebidas pelos mais
velhos, que afirmam que a mata é sinônimo de abundância para a vida e controle de
temperatura.
Com a ocupação das áreas para a criação de gado e lavouras de soja, cana-
de-açúcar, algodão e outras práticas que envolvem o desmatamento, que ainda é
uma atividade presente nos planaltos adjacentes ao Pantanal, o problema ambiental
vem se agravando e comprometendo todos os Biomas Mato-Grossenses e
ameaçando as práticas de subsistência. Vários relatos apontam o aquecimento do
clima e relacionam com o desmatamento e queimadas:
“ta ficando calor por causa das queimada e por causa da derrubação
de pau, tão derrubando tudo... Os mais velho dizia que onde tem
mais árvore é mais fresco [...]” (GS, 51 anos, ♂).
O desmatamento vem trazendo alterações importantes como a diminuição
das águas na região, de acordo com a percepção relatada pelos ribeirinhos:
“O problema do calor ta sendo mais quente que uns anos atrás,
desde a água do rio ta atrasando. Antigamente começava em
novembro e agora a chuva começou em dezembro, parou e agora
que começou de novo (fevereiro)” (IRP, 40 anos, ♂).
“Antes quando era janeiro o rio já tinha carregado agora tá vazio
(fevereiro), porque não chove e que tá mudando tá, o calor tá muito
mais do que era antigamente, uns vinte anos atrás e as água ta
minguando” (SBL, 50 anos, ♂).
Na mesma direção, Harris (2005) cita os fatores ameaçadores à
biodiversidade pantaneira, a perda de habitat pelo desmatamento ou queimadas, a
120
caça que no passado ameaçava espécies importantes do Pantanal como o Jacaré, a
ariranha e a onça-pintada e parda e a falta de ordenamento da pesca.
Na região alta do Rio Cuiabá, Simoni (2004) discute a percepção de uma
comunidade em relação às alterações ambientais decorrentes dos projetos de
desenvolvimento como a Usina Hidroelétrica de Manso e aponta a preocupação da
comunidade com a alteração do ciclo hidrológico do mesmo rio onde está localizada
a comunidade de Cuiabá Mirim. A mesma autora relaciona as aves como
indicadoras climáticas e cita acauã como ave que anuncia as estações.
Devido à complexidade dos sistemas naturais do Pantanal, é extremamente
difícil compreender com exatidão o papel que as espécies desempenham na
funcionalidade dos ecossistemas e até que ponto as diferentes espécies podem
sobrepor na sua contribuição em determinada função particular de um ecossistema
(HOBBS et al., 1995). É, no entanto possível identificar grupos de espécies que
desempenham papéis mais relevantes no funcionamento de um dado ecossistema
(HECTOR et al., 2001).
Neste contexto, reporta-se a dois conceitos funcionais que emergiram na
década de 80 relacionados às funções ecológicas das espécies: o conceito de
espécie-chave e de ligadores móveis. As espécies-chave são aquelas que
desempenham uma função determinante na estrutura e funcionamento dos
ecossistemas e a sua perda terá um impacto significativo em outras populações, ou
seja, o efeito cascata. Também são consideradas espécies-chave aquelas que
indicam a degradação da qualidade do habitat natural (PAYNE, 1966).
De acordo com De Groot (1992), estas funções podem assim serem
entendidas: as funções de regulação estão relacionadas à capacidade dos
ecossistemas naturais ou semi natural em regular os processos ecológicos
essenciais e os sistemas suporte de vida, contribuindo para a manutenção da saúde
ambiental pelo fornecimento de ar, água, solos não poluídos; as funções de suporte
referem a capacidade dos ecossistemas naturais ou semi naturais em fornecem
espaço e substrato adequados para muitas atividades humanas, tais como:
habitação, cultivo, recreação; as funções de produção dizem respeito à capacidade
121
do ambiente em fornecer recursos, desde alimentos e matéria prima para o uso
industrial, até recursos energéticos e material genético; as funções de informação
compreendem a capacidade do ambiente em contribuir para a manutenção da saúde
mental, pelo fornecimento de oportunidades para reflexão, enriquecimento espiritual,
desenvolvimento cognitivo, estética.
Conciliar conservação e gestão de recursos no Pantanal é uma tarefa que
envolve respeitar os conhecimentos do ser humano pantaneiro e suas formas de
interpretar a natureza (GUARIM NETO et al., 2008).
3.4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conhecimento ecológico tradicional a respeito das aves, suas
categorizações e etnoindicadores climáticos apreendidos e expressos pela
comunidade Cuiabá Mirim demonstraram a riqueza de saberes e as conexões que
eles estabelecem com o ambiente pantaneiro moldado pelo pulso de inundação.
Os etnoindicadores climáticos são percebidos pelos ribeirinhos que ao longo
das gerações vem adaptando e desenvolvendo modos de viver e conviver com a
dinâmica do ciclo das águas, marcados pelas fases de enchente-cheia-vazante-seca
e a movimentação da biodiversidade.
A perda de hábitat em função do desmatamento e queimadas refletindo no
clima local é colocada por meio dos relatos dos ribeirinhos e ribeirinhas que tecem
reflexões sobre o desmatamento e as queimadas, demonstrando as observações do
ambiente e as ameaças vigentes, como diminuição no pescado.
O Conhecimento Ecológico Tradicional enfocando etnoindicadores climáticos
pelas comunidades locais vem sendo valorizados mais recentemente, devido este
ser transmitido entre gerações, sendo considerado por isso um conhecimento de
longo prazo, podendo contribuir significativamente com o monitoramento da
biodiversidade.
As comunidades tradicionais necessitam ainda de representatividade e
empoderamento junto aos meios acadêmicos, discursos e políticas públicas sobre
122
mudanças climáticas, principalmente pelo fato de que serão afetadas por essas
mudanças. O conhecimento ecológico tradicional do Pantanal pode contribuir para
uma gestão integrada, eqüitativa e ética de um sistema sócio-ecológico complexo,
que se sustenta através de percepções únicas com seu conhecimento da avifauna
do Bioma Pantanal.
3.5. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS
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129
CAPÍTULO 3
AVES NA SIMBOLOGIA PANTANEIRA
Caçador, nos barrancos, de rãs entardecidas, Sombra-Boa entardece.
Caminha sobre estratos de um mar extinto.
Caminha sobre as conchas dos caracóis da terra.
Certa vez encontrou uma voz sem boca.
Era uma voz pequena e azul.
Não tinha boca mesmo. "Sonora voz de uma concha", ele disse.
Sombra-Boa ainda ouve nestes lugares conversamentos de gaivotas.
E passam navios caranguejeiros por ele, carregados de lodo Sombra-Boa tem hora que entra em pura decomposição lírica:
"Aromas de tomilhos dementam cigarras."
Conversava em Guató, em Português, e em Pássaro. Me disse em Língua-pássaro:
"Anhumas premunem mulheres grávidas, três dias antes do inturgescer".
Sombra-Boa ainda fala de suas descobertas: “Borboletas de franjas amarelas são fascinadas por dejetos."
Foi sempre um ente abençoado a garças.
Nascera engrandecido de nadezas.
(Manoel de Barros22)
22
Manoel de Barros: fragmento de Mundo Pequeno do Livro das Ignorãças.
Figura 21: Arte do Chão I. Série Imagética Pantaneira. Ruth Albernaz, 2009.
130
RESUMO
ALBERNAZ-SILVEIRA, Ruth. Conhecimento Ecológico Tradicional de aves da
Comunidade Cuiabá Mirim, Pantanal de Mato Grosso. Cáceres: UNEMAT, 2010. 163 p.
(Dissertação – Mestrado em Ciências Ambientais).
Este trabalho apresenta o Conhecimento ecológico tradicional-CET de aves
relacionado à cosmologia da comunidade Cuiabá Mirim, Pantanal de Mato Grosso-
MT. A área de estudo localiza-se no Município de Barão de Melgaço, com
aproximadamente 97,5% de terras inundáveis no período das cheias. Para coleta de
dados utilizou-se de métodos como: entrevista semi-estruturada, observação
participante e diário de campo. Foram entrevistados 22 moradores da comunidade.
O grupo estudado mostrou amplo conhecimento ecológico tradicional a respeito das
aves enquanto etnoindicadoras simbólicas. Esses conhecimentos são transmitidos
oralmente ao longo das gerações. A cultura pantaneira é rica em saberes sobre as
aves, de forma que a mesma poderá contribuir significativamente para a
implementação de políticas públicas que contemplem a gestão participativa do
Pantanal e ações em Educação Ambiental voltadas para a conservação do Bioma.
Palavras-chave: Pantanal, Conhecimento Ecológico Tradicional, Aves.
Orientadora: Profª. Drª. Carolina Joana da Silva, UNEMAT;
131
ABSTRACT
ALBERNAZ-SILVEIRA, R. Traditional Ecological Knowledge of birds in the Cuiabá Mirim
Community, Pantanal of Mato Grosso. Cáceres: UNEMAT, 2010. 163 p. (Dissertation –
Master in Environmental Science).
This research presents Traditional Ecological knowledge about birds related in
cosmology in the community of Cuiabá Mirim, Pantanal of Mato Grosso - MT - CET
The studied area is located in the city of Barão de Melgaço, with almost 97,5% of
flooded area during the flood period. The data collection used methods like: semi-
structured interviews, participant observation and camp dairy. Twenty two people from
the community were interviewed. The study group showed extensive traditional
ecological knowledge about the birds while ethnoindicators symbolic. This knowledge is
orally transmitted over the generations. Pantanal‟s culture is rich in knowledge about
birds, so that it can contribute significantly to the implementation of public policies that
include the participatory management of Pantanal and environmental education focused
on the biome conservation.
Key - words: Pantanal, Traditional Ecological Knowdledge, Birds.
Advisor: Carolina Joana da Silva, UNEMAT;
132
4.0. INTRODUÇÃO
O poeta pantaneiro Manoel de Barros traz a ligação do imaginário da cultura
pantaneira entrelaçada com as aves em diversos momentos de sua obra literária. As
aves são símbolos arquetípicos presentes ao imaginário de muitas culturas, na trilha
do tempo da história da humanidade. Um pequeno passeio por algumas culturas nos
trará esse cenário.
O imaginário é um conjunto de produções mentais ou materializadas em
obras de caráter visual ou em criações de linguagem; apresenta-se como um
sistema organizador de imagens, comportando um conteúdo semântico, uma
estrutura e uma visão de mundo. Seu dinamismo revela-se do poder poético de
articulação de arquétipos, imagens simbólicas e mitos (LISBOA DE MELLO, 2007).
Em diversos sítios arqueológicos do mundo, pode-se observar a presença de
imagens de aves em pinturas rupestres, fragmentos de peças de arte e outros
vestígios de atividades humanas, demonstrando essa ligação entre as aves e a
cosmogonia dos povos. A mitologia apresenta um grande número de registros que
contemplam a participação das aves em seu corpus.
Na América do Sul, um ícone que se destaca é a imagem do colibri (beija-
flor), representada em geoglifos no deserto de Nasca, no Peru, medindo 96 x 66
metros. O povo Nasca concede ao colibri caráter divino por atribuírem-lhe o papel de
mensageiros entre os homens e os condores, que eram considerados deuses
(DUKSZTO e ARGUEDAS, 2006).
A importância dessas aves, enquanto símbolos sagrados para as culturas pré-
colombianas também se apresenta na forma arquitetônica da cidade de Machu-
Pichu, que traz as imagens do condor e o puma, afirmando a forte ligação da cultura
Inca com a imagética da natureza, com conteúdo cosmológico ligado aos animais.
De acordo com Salazar e Salazar (1996, pág. 53) o nome antigo de Machu
Picchu foi dado em função de uma ave:
133
Este pode ser o sentido oculto no nome do antigo e o nome dado à
cidade sagrada, a APU ou de Pássaro Espiritual, ainda invocado pela
população local, o conselho e cura e nomeado para os maiores picos
no bairro do Vale Sagrado, o Urubamba. O Apu que trouxe paz ao
povo e ao mesmo tempo em que sobrevoam o Vale Sagrado para o
oeste, deixando um rastro de luz, a Via Láctea, onde tudo começou e
onde ele traz a Verdade, o Absoluto, atravessando o espaço e o
tempo, para a idéia de Deus.
No contexto do sagrado, em registros de relatos orais dos pajés Guarani, o
mito de criação traz as “Palavras Formosas” (Anexo IV) que descreve a cosmogonia
Guarani, onde o Grande Criador trouxe o colibri e a coruja como imagens de
expressão de divindade (JECUPÉ, 2001).
As aves também estão presentes nas práticas do xamanismo, pajés de
diversas etnias utilizam a simbologia de algumas espécies de aves, como a águia, o
gavião real, a coruja e outros que são consideradas por algumas culturas como
animais de poder23 para rituais de visão e trabalhos de cura.
Na mitologia presente na cultura grega e etíope, a Fênix apresenta-se como
um ícone bastante difundido por diversas culturas por ser um exemplo de renovação
e de esperança de transformação nas adversidades. Eliade (1994) coloca que “o
retorno à origem oferece a esperança de um renascimento.”
De acordo com Chevalier e Gheerbrant (1994) a pomba é, entre os cristãos,
um dos símbolos da pureza, da paz, e a representação inequívoca do Espírito
Santo. Os autores lembram que, no início do Gênesis, o espírito de Deus se movia,
como uma ave, sobre a superfície das águas primordiais.
No pensamento de Edgar Morin, filósofo-sociólogo francês, “Cada civilização
possui um pensamento racional, empírico, técnico, simbólico, mitológico e mágico.
Também havendo sabedorias e superstições” (MORIN, 2004, p. 27).
No contexto da formação cultural do Brasil, Ribeiro (1995, pág. 20) coloca
que a sociedade e culturas brasileiras são “conformadas como variantes da versão
23
Na visão do Xamanismo, os animais de poder ancoram a energia de cura e proteção, sendo que cada pessoa
possui um ou mais animais de poder (grifo nosso).
134
lusitana da tradição civilizatória européia ocidental, diferenciadas por coloridos
herdados dos índios americanos e dos negros africanos.” O mesmo autor
acrescenta que a confluência dessas matrizes „raciais‟ dá lugar a um povo novo,
num novo modelo de estruturação societária.
A cultura Brasileira Rústica, assim denominada por Id. (2007), é o resultado
do desenvolvimento, das protocélulas culturais, no território nacional ao longo de
quatro séculos, estando elas representadas pela área cultural crioula, sob a égide do
engenho açucareiro no nordeste brasileiro. A área cultural caipira, constituída na
zona dos mamelucos paulistas. Área cultural cabocla, relacionada principalmente à
região amazônica nos seringais. A área cultural sulino-gaúcha, fortemente
relacionada ao pastoreio no sul do país, e a Áreas culturais sertanejas, advindas
pela atividade pastoril de gado nos vazios, desde o nordeste até a região centro-
oeste.
No cenário da cultura pantaneira atual, os assentamentos humanos, como a
das comunidades tradicionais, têm influência européia e africana, e principalmente
da matriz indígena:
Esta região guarda uma grande importância histórica desconhecida e
apesar deste aparente vazio de homens e de história, o Pantanal
de Mato Grosso foi território povoado por inúmeros grupos
indígenas (Paiguá, Guaikuru, Bororo e Guató) que lutaram
intensamente contra colonizadores espanhóis e portugueses
desde o século XVI. Alguns grupos sobreviveram à guerra contra
eles travada, e estão atualmente ilhados em pequenas reservas: são
eles os Bororo, os Kadiwéu (remanescentes dos Guaikuru) e os
Guató (DA SILVA e SILVA, 1995, pág. 10).
Essas influências culturais refletem no imaginário dessas comunidades em
dois planos: material e simbólico, traduzidos nas estratégias de vida, no manejo da
agricultura e pesca e nas crenças, no folclore e no pensamento mítico.
A cultura dos que vivem e convivem em Cuiabá Mirim é dinâmica e se
reinventa a cada aparição de elementos sobrenaturais vividos, narrados para aos
mais jovens e nas diferentes circunstâncias . Esses saberes repassados entre as
gerações conectam-se com os ensinamentos de Paulo Freire:
135
Aprender e ensinar faz parte da existência humana, histórica e social,
como dela fazem parte a criação, a invenção, a linguagem, o amor, o
ódio, o espanto, o medo, o desejo, a atração pelo risco, a fé, a
dúvida, a curiosidade, a arte, a magia, a ciência, a tecnologia. E
ensinar e aprender cortando „permeando‟ todas as atividades
humanas (FREIRE, 2001, pág.12).
Sob essa ótica, este capítulo tem como objetivo tecer um diálogo entre a
relação cosmológica da comunidade Cuiabá Mirim e as aves, componentes do
sistema sócio-ecológico complexo, envolvendo aspectos míticos e simbólicos. E tem
a intenção de contribuir com a reafirmação da cultura e identidade dos pantaneiros
de Cuiabá Mirim.
4.1. MATERIAIS E MÉTODOS
A COMUNIDADE CUIABÁ MIRIM
“Cuiabá Mirim é um lugá bom de vivê, é bonito, calmo, eu quero vivê
sempre aqui. Eu sou ribeirinha, sou pescadora, nasci no pantaná e
aqui que vou ficá [...]” (URNS, 67 anos, ♀).
A comunidade Cuiabá Mirim localiza-se no Município de Barão de Melgaço,
Pantanal de Mato Grosso. A paisagem de Cuiabá Mirim é um sistema complexo de
ambientes que envolvem diversas unidades de paisagem: o Rio Cuiabá, mata ciliar,
brejos, os sistemas das baías de Chacororé e Siá Mariana, firme, baixios e outras
unidades que eles reconhecem como lugares e que foram estudados por Galdino
(2006) e Galdino e Da Silva (2009).
A comunidade de Cuiabá Mirim constrói e transforma o seu viver, conforme
seu jeito de ver, sentir e pensar o mundo. Esta construção é fortemente marcada
pelo ritmo das águas do Pantanal onde está inserida a comunidade na margem
direita do Rio Cuiabá.
Estudos realizados pelo Grupo de Pesquisa Conceitos Ecológicos e
Etnoecológicos aplicados a Conservação da Água e da Biodiversidade do Pantanal
descrevem que a origem da Comunidade Cuiabá Mirim está diretamente ligada à
136
história da Fazenda Flexas, que inicialmente era uma das grandes produtoras e
beneficiadoras de cana-de-açúcar da região (início do século XX). Os moradores
mais velhos de Cuiabá Mirim foram trabalhadores desta fazenda, no campo, nas
plantações de cana-de-açúcar e no beneficiamento de produtos (GALDINO, 2006,
GALDINO e DA SILVA, 2009; MORAIS, 2006; VIANA, 2008).
Aspectos do imaginário de Cuiabá Mirim foram relatados:
Os pantaneiros citaram várias histórias de encantamentos que
permeiam o imaginário, relacionadas diretamente com o rio como
sobre o Bicho D‟água; sereias e cavalos encantados, que aparecem
nas baías Sinhá Mariana e Chacororé; fachos de luz e sobre a mãe
do ouro. A partir da crença nessas histórias, costumam evitar a
pesca e também sair à noite para não encontrarem esses seres
encantados (VIANA, 2008, pág. 71).
4.2. MÉTODOS
Percursos Sobrevoados
Este trabalho está em consonância com outras pesquisas que foram
realizadas pela pesquisadora Carolina Joana Da Silva desde 1995 na região do
Pantanal. Este capítulo contempla um diálogo entre Gestão e Educação Ambiental,
lançando mão de um hibridismo metodológico, utilizando-se de técnicas qualitativas.
O primeiro passo foi o levantamento bibliográfico e visita à comunidade para
observar quais os procedimentos para a coleta de dados se apresentaria como uma
“boa” opção metodológica. Os procedimentos para a coleta de dados foram:
entrevista semi-estruturada e observação participante.
O registro dos dados foi amparado por meio de fotografias e anotações em
diário de campo. O uso de diário de campo onde o pesquisador anota as
“impressões subjetivas sobre fenômenos desconhecidos e intuições pode vir a
constituir um instrumental precioso para futuros insights...” (VIETLER, 2002, pág.
18).
137
Após a escolha da metodologia e novo retorno à comunidade pesquisada foi
realizado um pré-teste para adequação das entrevistas, para que se pudesse
estabelecer um diálogo êmico/ético.
Para selecionar as fontes orais a serem entrevistadas buscou-se reconhecer
as pessoas com mais conhecimento de aves do Pantanal, identificadas por meio da
técnica bola de neve snow ball sampling (BERNARD, 2002), a qual possibilitou o
desenho da rede social relacionada a este saber.
O resultado da rede totaliza cinqüenta e uma pessoas - elos em forma de um
complexo sistema de ligações entre pessoas que se relacionam e que uma indica
outras em que, aquela pessoa que está sendo indicada é reconhecida como um
entendedor ou entendedora do assunto relacionado às aves (apresentado no
Capítulo I).
A partir da rede social apresentada no capítulo I, foram entrevistadas 22
fontes orais (anexo V), onde utilizou-se para o diálogo entrevista semi-estruturada,
com a seguinte pergunta norteadora (ou suleadora-oesteadora-lesteadora):
“as aves dão recado (ou aviso ou sinal)? Qual o (a) senhor (a) conhece?”
Buscar informações simbólicas trouxe a necessidade de ancorar em Geertz
(1989) quando propõe um conceito de cultura que denota um padrão de significados
transmitido historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções
herdadas expressas em formas simbólicas, por meio das quais os homens
comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em
relação à vida, imputando à cultura um caráter público e compartilhado.
O cotidiano da comunidade foi vivenciado por meio da técnica da Observação
Participante, acompanhando as mulheres em seus afazeres domésticos e na roça; e
os homens nas tarefas associadas à pesca. A observação participante é um
processo mutuamente educativo, nos lembra Macedo (2006, pág. 97) “o saber do
senso comum e o saber científico se articulam na busca da pertinência científica e
da relevância social do conhecimento produzido.”
138
4.3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os resultados desta pesquisa emergem os conhecimentos que são passados
ao longo do tempo pela oralidade, estabelecendo as conexões da cultura pantaneira,
na sua dinâmica Certauniana24 da reinvenção do cotidiano com os ciclos ecológicos,
reproduzindo aqui o que Darci Ribeiro afirma sobre a cultura brasileira:
A identidade étnica dos brasileiros se explica tanto pela precocidade
da constituição dessa matriz básica da nossa cultura tradicional,
como por seu vigor e flexibilidade. Essa última característica lhe
permitirá de, como herdeira de uma sabedoria milenar, ainda dos
índios, conformar-se, com ajustamentos locais, a todas as variações
ecológicas regionais e sobreviver a todos os sucessivos ciclos
produtivos, preservando sua unidade essencial (RIBEIRO, 1995, pág
272).
Na construção do saber ambiental o conhecimento local é fonte de sabedoria
pautada no fazer cotidiano. Esse conhecimento é construído por significados
elaborados através de processos simbólicos que configuram estilos étnicos de
apropriação do mundo e da natureza. E é nesse sentido que se apresenta os
aspectos do imaginário da Comunidade Cuiabá Mirim que se ligam e fazem parte do
corpus do Conhecimento Ecológico Tradicional-CET.
Observou-se por meio dos relatos dos entrevistados que a estrutura do
pensamento dos pantaneiros da comunidade Cuiabá Mirim é permeada pela crença
no “Criador” - Deus - que rege todas as coisas que existem, incluindo a natureza - e
pela visão ecossistêmica, onde eles compreendem bem as conexões ecológicas e
24 CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ. Ed. Vozes, 2 v. 1994.
139
nesse contexto, os seres encantados ou míticos25 são os elos entre natureza
ecossistêmica e o Criador, criando a natureza sobrenatural, onde “as aves são
mensageiras de Deus26” (Figura 22).
A comunidade Cuiabá Mirim está dividida entre um grupo “católico” e outro
evangélico da denominação “Assembléia de Deus”, configurando formas diferentes
de praticar a religiosidade. As fontes orais de ambos os grupos relataram a respeito
dos sinais das aves, demonstrando que ambos os grupos ainda mantém o
conhecimento das histórias míticas que ancoram o imaginário local.
Figura 22: Interconexões do universo cosmológico dos ribeirinhos de Cuiabá Mirim.
No sentido das interconexões onde há necessidade de um locus para ancorar
os elementos perceptivos, o pensamento filosófico de Deleuze & Guattari percepto,
afecto e conceito27, serve aqui como uma bricolagem28:
25
Mito é o relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, mediante a intervenção de entes
sobrenaturais. Mito é o relato de uma história verdadeira, ocorrida nos tempos dos princípios, íllo tempõre,
quando com a interferência de entes sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o
cosmo, ou tão-somente um fragmento, um monte, uma pedra , uma ilha, uma espécie animal ou vegetal, um
comportamento humano. Mito é, pois a narrativa de uma criação: conta-nos de que modo algo que não era
começou a ser. BRANDÃO, Junito de Souza, Mitologia Grega, vol I 19ª ed. –Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.p 35-41.
26 Relato de URNS, 69 anos, ♀, uma das moradoras mais antigas de Cuiabá Mirim. Ela conta muitas histórias da
sua infância no Pantanal.
DEUS-CRIADOR
NATUREZA SOBRENATURAL
NATUREZA ECOSSISTÊMICA
SER HUMANO
140
Cada território, cada habitat junta seus planos ou suas extensões,
não apenas espaço-temporais, mas qualitativos: por exemplo, uma
postura e um canto, um canto e uma cor, perceptos e afectos. Cada
território engloba ou recorta territórios de outras espécies ou
intercepta trajetos de animais sem território, formando junções
interespecíficas. É nesse sentido que num primeiro aspecto,
desenvolve uma concepção de natureza melódica, polifônica,
contrapontual. Não apenas o canto de um pássaro tem suas relações
de contraponto, mas pode fazer contraponto com o canto de outras
espécies, e pode ele mesmo, imitar outros cantos, como se se
tratasse de ocupar um máximo de freqüências (DELEUZE e
GUATTARI, 1997 pág.239).
E parece ser nesse espectro de freqüências e contrapontos expressos pelos
sinais das aves que os pantaneiros conseguem interpretar a vibração e
comportamento desses seres da natureza em seu cotidiano. Esses sinais chave
podem ser evidenciados pelas vocalizações, o tipo de vôo, a presença e os lugares
onde aparecem os pássaros (Figura 23).
27
Os perceptos não mais são percepções são independentes do estado daqueles que os experimentam; os afectos não são mais sentimentos e afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles. As sensações, perceptos e afectos, são seres que valem por si mesmos e excede qualquer vivido (DELEUZE e GUATTARI, 1995). 28
A bricolagem é um termo utilizado por algumas áreas do conhecimento, podendo ser a união de vários elementos para a formação de um. Aqui a intenção é trazer o pensamento filosófico de Deleuze e Guattari, no sentido de conectividade entre o pensamento ecológico e filosófico num texto único.
141
Figura 23: Sinais-chave das aves etno-indicadoras simbólicas.
Os sinais chaves traduzidos nas narrativas das 22 fontes orais entrevistadas
evidenciam um conhecimento detalhado e específico do comportamento das aves
(tabela 17).
vocalizações•canto
•desconjuro
•estala o rabo (cauda)
vôo•direcional
•circular
presença•anuncia a chegada de visita
•notícias
lugar • Acima da casa;
• Dentro da casa.
AVES
142
Tabela 17: Etnoindicadores simbólicos.
SINAL
CHAVE
AVE ETNO
INDICADOR
A
SIMBOLOGIA
NARRATIVA
Vocalização Alma de gato (Piaya cayana)
Anuncia chegada de visita
-“alma de gato quando canta, vai chegar gente [...]”
Vocalização Bilro (Melanerpes Candidus)
Anuncia chegada de visita
-“Quando canta é sinal que vai chegar gente...” -“Bilro quando canta vai chegar visita...”
Vocalização Bem-te-vi (Pitangus sulphuratus)
Anuncia chegada de visita
-“Quando canta vai chegar gente”
Vôo e presença
Beija-flor
Boas notícias e anuncia chegada de visita
-“quando entra em casa é coisa boa que vai acontecer” -“Beija-flor, quando ele entra dentro de casa, vai chegar gente...” -“Beija-flor quando voa na porta, vai chegar gente.” -“Beija-flor quando entra na casa é visita...”
-Vôo direcional;
-vocalização; - lugar
Tesoureiro (Tyrannus savanna)
Prenuncia morte na família
-“quando passa por cima da casa a noite e estala o rabo igual tesoura, está cortando o pano para fazer o negócio do caixão...” -“tesoureiro, faz tem quê, tem quê... ta cortando e rá, rá, rá, rasgando o pano e aí avisa que vai morrê gente...” -“tesoureiro quando passa e corta mortália, ele rasga rá, gente que vai falecê...”
Vocalização Coruja Mal agouro -“quando passa e fica cantando
a noite, é azarento.” -Vôo direcional
-vocalização; -Lugar
Anhuma (Chauna torquata)
Prenuncia acontecimentos ruins e morte.
-“quando passa por cima da casa de dia, ta avisando que vai acontecê alguma coisa ruim na família. Ele fica voando com uma perna estirada e a outra pendurada e cantando...” -“anhuma quando passa por cima de casa, vai morrê parente, ta avisando...”
143
Vocalização Galo (Galus galus)
Desconjuro -“o galo quando fica desconjurando cruz, cruz, é doença na família, eu apedrejo ele.”
Presença Curiango do chão (Nyctidromus albicollis)
Relação de azar -“Curiango do chão, se você pegar o ovo dele, fica preguiça igual ele.”
Vocalização Pica-pau de cabeça vermelho (Dryocopus lineatus)
Agouro -“Quando ta cantando tic, tic, tic, ta agourando a gente.”
Vocalização Massa Barro (Furnarius rufus)
Anuncia as horas
-“Canta as horas, 7 horas, doze horas...” -“Massa barro dá aviso da hora... Eu tenho uma tia que antigamente só fazia as coisa com o horário de passarinho. Meu tio dizia: -Maria, o almoço já ta pronto? - Espera Raimundo, o Massa Barro ainda não cantou.”
-Vôo circular -vocalização
Rolinha (Columbina sp)
Anúncio de morte
-“rolinha quando canta, ele fica rodeando casa e cantando ai Jesus, ai Jesus, porque morreu alguém...”
Nesse cenário de ampla diversidade biológica e cultural, as aves são muito
destacadas pela riqueza de espécies, abundância e beleza traduzidas pelas cores-
texturas-vôos-cantos-ninhos que compõem o ambiente, servindo como elo das
conexões da natureza e com a construção de sua cosmologia.
Na cosmologia dos pantaneiros de Cuiabá Mirim, o imaginário é permeado
por sinais de elementos da paisagem pantaneira que se expressam na vida
cotidiana. Nesse sentido, Maffesoli (2001, p.74) nos lembra que “o imaginário é uma
força social de ordem espiritual, uma construção mental, que se mantém ambígua,
perceptível, mas não quantificável.”
Para Souza Santos (2005) as situações da vida cotidiana serão entendidas
como espaço de relações dialetizadoras e expressam uma imagem que não se
restringe a sua leitura social, política, cultural e econômica, mas também, aos
aspectos ambientais e simbólicos.
144
Nessa mesma direção, Viana (2008, pág. 55) ao discutir a respeito das
comunidades do Pantanal faz uma discussão entre a territorialidade e o simbólico:
[...] o território para as comunidades tradicionais, sejam esses
permanentes ou não, é o espaço onde obtém os recursos naturais
necessários a sua sobrevivência. O território não é apenas um local
onde retiram esses recursos, mas sim um espaço cheio de
significados, onde ocorrem as relações e representações sócio-
culturais.
Essas conexões revelam as aves como fonte de inspiração, elementos
marcantes que contribuem para (re)afirmação da identidade cultural pantaneira,
traduzida na poesia, música, religiosidade e mitos. Para Bachelard (1998, pág.03) “a
imagem poética, em sua novidade, abre o porvir da linguagem”, que no Pantanal é
expressa na musicalidade e aos elementos a ela associada:
“Andorinha voou, sentou no telhado,
Dança meninas pros seus namorado [...]” (música de siriri cantada
por EL, 75 anos, ♀).
Em relato, uma fonte oral colocou que, quando ela era jovem, sabia diversas
músicas e versinhos de passarinhos, cantados no cururu e siriri, e então cantou:
“Nandaia, nandaia, vamos todos nandaiá. Ó meu padre santo
Antônio, venha me ensinar a dançá. Se não servir essa, ponha essa
outra, pra senhora moça... Da uma volta no meio, põe mão no joelho
[...]” (URS, 69 anos, ♀).
O siriri e cururu são ritmos musicais bastante difundidos pelas comunidades
tradicionais não-indígenas de Mato Grosso, tendo inúmeras letras com a imagética
da natureza local como base das inspirações.
Em Cuiabá Mirim há um grupo de cururueiros e de siriri. Eles se reúnem para
treinar as danças e músicas e se apresentam nas festas, principalmente na de
Santo, como a Festa de São Pedro, padroeiro dos pescadores.
Os instrumentos musicais que eles utilizam para cantar são: a viola de cocho,
ganzá (figura 24) e mocho. A viola de cocho é confeccionada tendo como matéria-
prima principalmente a madeira de uma árvore denominada popularmente por sarã
145
de leite. O ganzá, um tipo de reco-reco, “é um instrumento de percussão feito
geralmente de taquara com 40 a 70 cm de comprimento, tendo um nó do próprio
bambu em cada extremidade” (CUIABÁ, 2006).
Figura 24: Imagem de Sebastião Mendes em acrílico s/ tela, compondo o painel do auditório da UNEMAT, mostrando cururueiros com o reco-reco à esquerda e com a viola de cocho à direita, num ambiente de festa pantaneira.
A poética inspirada nas aves ora está presente nas letras das músicas, ora é
a própria música, como a da etnoespécie da ave Quá:
“Quá foi comprar remédio para a mãe que estava doente. Daí no
caminho ele encontrou uma festa e começou a festá, dançá. Quando
ele assustou tinha amanhecido o dia, correu para comprar [...]
Quando chegou à casa da mãe, encontrou um monte de gente
chorando. Quando foi ver, a mãe tinha morrido e tava no velório dela.
Quá começou a cantar morreu, morreu, morreu e tá cantando até
hoje, morreu, morreu, morreu [...]” (AGS, 51 anos, ♂).
Essa narrativa descreve o comportamento semelhante aos humanos e com
indicação da vocalização como um “desconjuro eterno” como forma de autopunição
pela atitude de “não dar a devida atenção à mãe”, cabendo aí uma forma de
ensinamento onde a “moral da história” está ligada ao respeito que os filhos devem
146
ter com os pais, na concepção social. Essa narrativa é bastante popular na
comunidade e exerce um papel educativo.
Numa cultura de tradição oral, além do cotidiano, os narradores, os
contadores de causos, desempenham uma tarefa educativa extremamente
importante. O papel da memória, em comparação com as culturas letradas, é
significativo (CAMPOS, 2004).
Para Freire (1996), o saber local é um conhecimento que se aprende e se
ensina. Neste contexto, as aves, enquanto etno-indicadoras simbólicas fazem parte
do bojo da cultura pantaneira, o qual nos remete a Deleuze e Guattari (2003, pág.
25), “a natureza não pode ser separada da cultura e precisamos aprender a pensar
"transversalmente" as interações entre ecossistemas, mecanosfera e universos de
referência sociais e individuais.”
O desafio requer traduzir os conhecimentos da comunidade em práticas
coletivas de Educação Ambiental numa perspectiva de continuidade, de modo a
garantir a conexão entre a identidade cultural e ecológica, na construção de
sociedades sustentáveis.
147
4.4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O CET da Comunidade Cuiabá Mirim ao revelar o papel das aves como
etnoindicadoras traz à tona nas narrativas uma riqueza de detalhes pautados no
conhecimento ecológico e cultural, expressos nas vocalizações, nos vôos, na
presença, nas cores, formas e texturas. Esses conhecimentos evidenciam ainda
conexões entre o macro e o micro, entre o global e o local, evidenciando os traços
da cultural universal e sua reprodução na cultura brasileira e a sua diferenciação na
cultura pantaneira. A ligação entre a natureza e cultura presente na comunidade,
traduzida nesta pesquisa no conhecimento das aves, pode contribuir como alicerce
para construção de programas de EA participativos.
4.5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2006.
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UNESP/CNPq, 2002.
150
CONSIDERAÇÕES FINAIS GERAIS
Este estudo trouxe a oportunidade de (re)conhecer o modo de vida da
comunidade tradicional Cuiabá Mirim e suas relações com as aves e outros
elementos que a natureza oferece no espaço do cotidiano e nas temporalidades e
ciclos moldados pelo ritmo das águas do Pantanal.
A riqueza biológica das aves, seus hábitos e comportamentos conhecidos
pela comunidade foram gentilmente apresentados nas narrativas e trouxeram
grande descoberta pessoal e profissional. Os momentos dialógicos demonstraram o
vasto conhecimento que a comunidade possui a respeito do tema pesquisado,
trazendo a possibilidade de múltiplos olhares para as Ciências Ambientais, onde o
assunto pede continuidade, com a perspectiva de novas pesquisas e ações voltadas
para o monitoramento da biodiversidade, gestão e educação ambiental no Pantanal.
A forma como a comunidade percebe e maneja os espaços e os recursos,
entrelaçado pela cultura e as relações sociais, históricas e simbólicas refletem no
conhecimento complexo das aves e suas conexões com o Bioma Pantanal, que são
transmitidos por meio da oralidade dos mais velhos para os mais jovens e pela
repetição de padrões de comportamento.
Os sistemas classificatórios da avifauna pela comunidade pesquisada vão
além do caráter utilitário, alçando vôos por espaços ecológicos até alcançar as
relações do imaginário local, onde as aves assumem a função de etnoindicadores
climáticos e simbólicos.
Os seres humanos fazem parte do ecossistema global e ao longo da história
vem alterando as características básicas desse sistema, tais como biodiversidade e
clima. Essa capacidade de alterar os ecossistemas dá a todos uma responsabilidade
como gestores destes recursos para gerações futuras, refletindo na urgência em se
construir novos modelos de sociedades sustentáveis. A incorporação de serviços
ambientais no sistema econômico parece ser uma prioridade para redirecionar as
ações humanas que impactam estes serviços, tais como a manutenção de
biodiversidade, a ciclagem de água e o balanço de carbono.
151
As evidências científicas de vários estudos em diversos biomas e das
observações por meio do conhecimento ecológico tradicional apontam para o fato de
que as mudanças climáticas representam um sério risco para os recursos hídricos
no Brasil. Não só as mudanças do clima futuras representam risco, mas a
variabilidade climática também; é só lembrar que pesquisas recentes mostram que o
impacto do aquecimento global será mais alto, na região Centro Oeste e que as
secas da Amazônia, do Nordeste, enchentes do Sul e do Sudeste do Brasil nos
últimos dez anos têm afetado a economia nas escalas regional e nacional. O
impacto das variações e mudanças do clima pode ser somado por outros fatores
não-ambientais, como os aspectos políticos e sociais, e todos juntos podem gerar
um custo elevado para a sociedade
Estudos de longo prazo realizados em várias comunidades tradicionais
poderão preencher grandes lacunas de conhecimento a respeito da riqueza de
espécies de aves ocorrentes no Pantanal e sua função como etno-indicadoras de
mudanças climáticas e simbólicas. Tais informações poderão ser fundamentais na
elaboração de estratégias de manejo nas diferentes situações da paisagem
pantaneira, bem como a aplicação do código florestal e outras legislações aplicáveis
à conservação da biodiversidade deste Bioma.
É fundamental o planejamento para estabelecer pesquisas e monitoramento
na região do Pantanal Mato-Grossense para avaliar os riscos relativos às mudanças
do clima, os quais poderão contribuir de forma significativa para o delineamento de
programas de gestão ambiental em diversas escalas que possam contemplar as
dimensões da sustentabilidade e subsidiar políticas de Educação Ambiental focadas
na mitigação desses riscos.
A pressão exercida pela crise ambiental vem refletindo na formulação de
táticas e estratégias alternativas para garantir a sustentabilidade, baseadas na
diversidade cultural, onde estão se legitimando os direitos das comunidades sobre
seus territórios e espaços étnicos, sobre seus costumes e instituições sociais e pela
autogestão de seus recursos produtivos.
152
Nesse contexto, os conhecimentos ecológicos tradicionais dos pantaneiros de
Cuiabá Mirim a respeito de aves e as mudanças climáticas poderão oferecer
pegadas importantes para a gestão ambiental. Este trabalho poderá ser utilizado
para fomentar a implementação de políticas públicas no Pantanal Mato-Grossense,
que incluam grupos sociais de menor visibilidade; e para uma reflexão sobre
sociedade-natureza com vistas a integração das dimensões econômica, ecológica,
territorial, e cultural da sustentabilidade.
153
ANEXOS ANEXO I – Lista de etnoespécies de aves indicadas pelos pantaneiros
ETNOESPÉCIE FREQUÊNCIA
% DE
RESPOSTA RANQUE
ÍNDICE
Smith's
Juruti 20 95 23.750 0.506
Garça 20 95 12.300 0.740
Tuiuiú 20 95 10.500 0.788
Mutum 19 90 15.316 0.637
Cabeca Seco (cab. Seca) 19 90 7.263 0.779
Arancuã 18 86 16.222 0.600
Baguari 18 86 17.444 0.561
Piriquito 18 86 22.500 0.512
Papagaio 18 86 17.278 0.562
Jaó 16 76 28.500 0.361
Cabecinha Vermelha 16 76 19.750 0.451
Marreca 16 76 30.750 0.341
Rolinha 15 71 28.467 0.334
Saracura 15 71 31.467 0.349
Beija-Flor 15 71 26.533 0.353
Massa Barro 14 67 19.643 0.410
Bem-Te-Vi 14 67 23.071 0.387
Sabiá 13 62 27.692 0.322
Colhereiro 13 62 13.769 0.461
Quero Quero 13 62 40.231 0.199
Martim-Pescador 13 62 32.231 0.273
Andorinha 12 57 24.917 0.294
Biuá 12 57 13.333 0.440
Anhuma 12 57 21.833 0.357
Cracará (Cabeça Chato) 12 57 36.417 0.225
Canarinho 12 57 27.083 0.277
Pixaroné (Pixoroné) 11 52 24.909 0.291
Pomba 11 52 21.545 0.310
Piriquito Barroso 11 52 26.636 0.273
Cafezinho 11 52 34.636 0.215
154
Jacutinga 11 52 25.545 0.308
Maracanã 11 52 34.000 0.212
Sicuíra 11 52 38.909 0.186
Tucano 11 52 28.364 0.262
Galo Da Campina 11 52 30.273 0.276
Taiamã 11 52 31.455 0.221
Japú 11 52 29.364 0.225
Passarinho Preto 11 52 33.818 0.231
Quá 11 52 29.727 0.240
Urubu 10 48 27.300 0.262
Socó 10 48 13.800 0.324
Gaivota 10 48 33.100 0.167
Coruja 10 48 31.700 0.195
Bica De Prata 10 48 20.500 0.267
Biuatinga 10 48 26.400 0.268
Sarí (Araçari, Laçari) 9 43 35.000 0.181
Pato 9 43 20.778 0.240
Curicaca 9 43 38.444 0.130
Bico Curto 9 43 30.556 0.214
Tabuiaiá 8 38 27.125 0.206
Gavião Caramujeiro 8 38 44.000 0.101
Nandaia 8 38 28.125 0.152
Sanhaço 8 38 29.375 0.168
Carão 8 38 47.000 0.120
Frango Dágua 8 38 26.625 0.205
João Pinto 8 38 20.625 0.235
Arara Amarela 7 33 40.143 0.097
Arara Azul 7 33 39.857 0.100
Caburezinho 7 33 44.857 0.091
Urutau 6 29 40.167 0.040
Garça Real 6 29 31.500 0.146
Curió 6 29 36.667 0.137
Arara 6 29 14.500 0.218
Vira Unha 6 29 48.667 0.056
Ema 6 29 28.667 0.164
155
Socó Boi 6 29 32.000 0.162
Seriema 6 29 18.500 0.169
Graia 6 29 51.167 0.068
Pomba Trocá 6 29 32.333 0.150
Pavãozinho 6 29 31.667 0.135
Xexéu 5 24 38.200 0.084
João Curutu 5 24 39.800 0.085
Tem-Tem 5 24 34.200 0.132
Pica-Pau 5 24 37.000 0.106
Gavião 5 24 23.200 0.133
Coriango 5 24 46.200 0.064
Massa Barro Do Campo 5 24 24.000 0.157
Jacú 5 24 17.000 0.162
Socó Galinha 5 24 37.200 0.116
Muié Véia 5 24 45.800 0.062
Japuíra 4 19 22.750 0.113
Chico do Capão 4 19 40.250 0.062
Bilro (Birro) 4 19 54.000 0.061
Macamã 4 19 57.000 0.022
Anu Preto 4 19 27.750 0.103
Gavião Pinhé 4 19 48.250 0.041
Peito De Moça 4 19 36.750 0.106
Pato do Mato 4 19 27.500 0.102
Arara Vermelha 4 19 36.750 0.057
Chama Chama 3 14 30.000 0.071
Perdiz 3 14 38.333 0.039
Bico De Prata 3 14 14.667 0.087
Alma De Gato 3 14 54.667 0.009
Marriquitinha 3 14 32.667 0.063
Patinho Dágua 3 14 42.000 0.043
Cardeal 3 14 27.000 0.066
Gavião Preto 3 14 58.667 0.029
Morcego 3 14 26.000 0.051
Nhana Cocá 3 14 21.667 0.092
Martim-Pescador Pequeno 3 14 63.667 0.028
156
Sao Joãozinho 3 14 29.667 0.082
Marrequinha 3 14 27.000 0.091
Garça Morena (Maria Faceira) 3 14 29.333 0.063
Pardal 3 14 31.333 0.082
Anú Branco 3 14 32.000 0.066
Pixui 2 10 20.000 0.073
Baitaca 2 10 41.000 0.023
Jacucaca 2 10 19.500 0.056
Pixuita 2 10 35.500 0.037
Urubu Branco 2 10 31.500 0.060
Gavião Real 2 10 45.000 0.039
Tico Tico 2 10 39.500 0.047
Bem-Te-Vi Monta Cavalo 2 10 38.500 0.037
Batuíra 2 10 41.000 0.010
Nambú 2 10 15.000 0.068
Garça Cinzenta 2 10 36.000 0.040
Pardalzinho 2 10 19.000 0.056
Chora Chuva 2 10 47.000 0.029
Gavião Carijó 2 10 50.500 0.023
Pinhé 2 10 60.000 0.027
Papagaio Trombeteiro 2 10 57.500 0.025
Rola Cinzenta 1 5 36.000 0.014
Martim Do Barranco 1 5 12.000 0.027
Curió Branco (Coleira Branca) 1 5 13.000 0.038
Coruja Do Peito Branco 1 5 41.000 0.010
Ararinha Verde 1 5 25.000 0.029
Coruja Buraqueira 1 5 42.000 0.009
Curicaca Cinza 1 5 43.000 0.015
Anuzinho 1 5 60.000 0.001
Pioró 1 5 14.000 0.035
Quem Quem 1 5 36.000 0.004
Pica Pau Da Cabeça Amarela 1 5 29.000 0.021
Curió Cor De Canário 1 5 12.000 0.039
Pomba Da Embauveira 1 5 41.000 0.016
Biguá 1 5 5.000 0.044
157
Gavião Có 1 5 57.000 0.004
Anú 1 5 36.000 0.014
Garça Boiadeira 1 5 36.000 0.020
Krikiri (criquiri) 1 5 41.000 0.008
Pica-Pau De Cabeça Vermelha 1 5 44.000 0.005
Curió Marronzinho 1 5 10.000 0.041
Canarinho Amarelo 1 5 6.000 0.044
Canário da Terra 1 5 18.000 0.032
Curió Preto com costa branca 1 5 11.000 0.040
Garça Carrapateira 1 5 35.000 0.017
José Fita 1 5 18.000 0.023
Marreca Sinharinha 1 5 25.000 0.013
Pato Brabo 1 5 26.000 0.012
Pomba Rola 1 5 12.000 0.031
Coruja De Orelha 1 5 40.000 0.010
Jacú Goela 1 5 16.000 0.030
Anú Canjiqueiro 1 5 59.000 0.002
Pato De Casa 1 5 9.000 0.036
Piriquito Peito Branco 1 5 19.000 0.037
Batuíra Pernilongo 1 5 47.000 0.004
Batuíra Colerinha 1 5 48.000 0.003
Gavião Marrom 1 5 55.000 0.005
Oleiro 1 5 31.000 0.030
Garça Pequena 1 5 36.000 0.028
Garça Grande 1 5 37.000 0.027
Bemtevizinho 1 5 45.000 0.013
Tesoureiro 1 5 29.000 0.006
Japú Preto 1 5 22.000 0.028
Nambu chintã 1 5 18.000 0.027
Ararinha 1 5 40.000 0.001
Corujinha 1 5 82.000 0.001
Andorinha pequenininha 1 5 28.000 0.022
João Congo 1 5 39.000 0.022
Pavão 1 5 42.000 0.021
Garça Fita 1 5 7.000 0.044
158
Rola Branca 1 5 37.000 0.013
Xuí 1 5 23.000 0.035
Chico Cartão 1 5 69.000 0.008
Pombinha 1 5 46.000 0.021
Trinca ferro 1 5 75.000 0.004
Pomba Apaga Fogo 1 5 79.000 0.002
Coriango Rebuçado 1 5 46.000 0.003
Rola 1 5 19.000 0.027
Batuirinha 1 5 29.000 0.015
Pica Pau 1 5 18.000 0.035
Bico De Agulha 1 5 13.000 0.040
Graia Cinza 1 5 16.000 0.038
Graia Branca 1 5 17.000 0.037
Bebe Ovo 1 5 41.000 0.022
Piriquito Nandaia 1 5 54.000 0.014
Urubu Cabeca De Sola 1 5 61.000 0.009
Chapéu Véio 1 5 70.000 0.003
As etnoespécies constam somente os nomes populares em função de ter sido trabalhado
apenas o conhecimento tradicional, onde uma espécie poderá obter mais de uma
denominação em etnoespécie, respeitando o nome de acordo com a pronúncia citada e não
houve avistamento das espécies para identificá-las cientificamente.
159
ANEXO II
FRAGMENTOS DO DIÁRIO DE CAMPO
“Hoje fui pescar sauá (um peixe pequenino), com Darlan, um garoto de quatro anos, que
insistiu para fazer uma pescaria comigo. Fomos pescar no barranco do rio Cuiabá, no porto
de um das vizinhas da casa dele (ele disse que gostava de pescar ali, porque a dona do
porto cevava os peixinhos com resto de comida, quando lavava as vasilhas). A isca que ele
utilizava era uma massa de trigo com água, como se fosse massinha de pão, feito pela sua
vó, dona Ursolina. O anzol parecia meio capenga (ele levou dois anzóis, pois eu não tinha
“petrechos” de pescaria). Após pegarmos sete peixinhos e deixarmos guardados em um
tamborete, daqueles que são reutilizados de algum recipiente de acondicionar produto
químico. Quando a pescaria estava quase findando, lá pelas quatro da tarde, ele deu uma
olhada geral nos pescados e começou a soltar vários peixinhos. Daí indaguei: - O que
houve que você está jogando quase todos os peixinhos de volta na água? Tá acabando com
nossa pescaria... Ele respondeu: - Tão todos fora da medida. Não pode comer peixe fora da
medida. Enfim, restaram três peixinhos na medida... Naquele momento comecei a
compreender as regras éticas das práticas, onde até as crianças já estavam com aquele
conhecimento internalizado e com o discurso da sustentabilidade.
Darlan limpando o peixinho da pescaria. Imagem: Acervo: Ruth Albernaz.
160
ANEXO III
Ninho no caminho para a roça de uma família. Foto: Ruth Albernaz, 2009.
Ninho de Massa Barro do Campo, em frente uma das residências da comunidade.
Foto: Ruth Albernaz, 2009
161
Ninho de japus, em frente a uma residência. Foto: Ruth Albernaz, 2009.
Ninho de Massa Barro, na margem do Rio Cuiabá. Foto: Ruth Albernaz, 2009.
162
ANEXO IV
Fragmento de “Palavras Formosas” do Mito de Criação Guarani, extraído do livro “Tupã
Tenondé: A criação do Universo, da Terra e do Homem segundo a tradição oral Guarani” de
Kaká Werá Jecupé, 2001.
Nosso Pai Primeiro
Criou-se por si mesmo
Na Vazia Noite iniciada.
Da divina coroa irradiada
Flores plumas adornadas
Em leque
Em meio às flores plumas floresce
A coroa-pássaro
Do pássaro futuro,
Luz veloz
Que paira
Em flor e beijo,
Que voa não voando.
Nosso Pai Primeiro criava
Futuro colibri, no curso de sua evolução, seu divino corpo.
Existia no entanto em meio aos primeiros Ventos Futuros
Como coruja dentro da noite primeira
Olha-se revoando
Seu futuro firmamento, sua futura terra,
Brisas surgidas
Enquanto colibrizava vidas
Dos ventos produzidos do Imanifestado que fora:
Um colibri.
163
ANEXO V
FONTES ORAIS DESTE TRABALHO „RIBEIRINHAS E RIBEIRINHOS PANTANEIROS DE CUIABÁ
MIRIM‟
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