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CONHECE-TE A TI MESMO: O TRANSTORNO MENTAL E A BUSCA DE
AUTONOMIA
ANTONIO RICHARD CARIAS1 - CRISTIANE MARETTI MARANGONI VALLI2
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS – BRASIL
RESUMO
O transtorno mental promove condições de intenso sofrimento psicológico e social
para as pessoas acometidas, sendo que, o preconceito e o estigma são aspectos
marcantes nas experiências desses sujeitos. Com a Reforma Psiquiátrica o Centro
de Atenção Psicossocial (Caps) tornou-se o equipamento de referência para os
cuidados dos usuários com sofrimentos psíquicos graves, tornando-se espaço para
trabalhos interdisciplinares e que valorizem a construção cotidiana da cidadania.
Nesse cenário, este trabalho de Extensão Universitária objetivou constituir um
espaço, por meio de oficinas psicoeducativas em um Caps da cidade de Campinas -
SP, que dialogasse sobre a Psicopatologia com suas características
sintomatológicas e as experiências inerentes. Para tanto, foram realizadas oficinas
os resultados indicaram a construção de saberes coletivos sobre a normalidade e
anormalidade; neuroses e psicoses e cuidados possíveis na rede de Saúde Mental.
Palavras chaves: Extensão Universitária; Sofrimento Mental; Saúde Mental;
Oficinas Psicoeducativas.
1. INTRODUÇÃO
Diante da estruturação e complexidade dos serviços públicos de saúde no
Brasil, o psicólogo se deparou com a necessidade de ampliação da clínica,
objetivando cuidar das pessoas inserindo-se na realidade cotidiana delas
(BARACHO; FIORONI, 2012). Portanto, ser psicólogo na contemporaneidade, exige
do profissional abertura para outras práticas profissionais, adaptadas às
necessidades de um país multifacetado em diversos aspectos (CUNHA; CAMPOS,
2011).
A Extensão Universitária, enquanto tripé de formação nas universidades
junto à Pesquisa e ao Ensino, é oportunidade profícua para o aprendizado desta
1 Aluno extensionista da Faculdade de Psicologia da Puc-Campinas 2 Professora da Faculdade de Psicologia da Puc-Campinas e coordenadora do projeto de extensão.
nova clínica, que objetiva em última instância a promoção e fortalecimento da
cidadania de cada usuário (SERRANO, 2016).
Portanto, este trabalho se sustentou tanto a partir do movimento da Reforma
Psiquiátrica, (a luz da psicopatologia) e foi fiel as premissas da Extensão
Universitária, visando introduzir a experiência de um projeto de extensão realizado
com pacientes psiquiátricos atendidos em um Caps.
1.1 - A Reforma Psiquiátrica Brasileira e reestruturação dos serviços em Saúde
Mental.
Pensar na Reforma Psiquiátrica Brasileira exige primeiramente resgatar na
história a existência do Modelo Manicomial de cuidado aos pacientes psiquiátricos.
Portanto, observa-se que no Brasil, assim como em diversos outros países do
mundo o atendimento para pessoas com transtornos mentais fundamentava-se a
partir da lógica da internação institucional (FÉ, 1998).
O hospital psiquiátrico ou manicômio era a instituição responsável por “tratar”
e até mesmo prometer “curar” os internados. Contudo, observou-se no percurso
Histórico do Modelo Manicomial a presença de diferentes modalidades de violência,
além da segregação e humilhação social e psicológica (TILIO, 2007).
Concomitantemente a esses processos, também destacaram-se as intensas
condições opressivas vividas cotidianamente pelos usuários, assim como as
precárias estruturas materiais, financeiras e de cuidados para com os internados.
Deste modo, o Modelo Manicomial proporcionou experiências sub-humanas, que em
seu conjunto, deturparam e desrespeitaram princípios éticos e humanísticos,
prejudicando significativamente a qualidade de vida dos pacientes (RIBEIRO, 2005).
No campo sociológico, Goffman (2001) apresentou reflexões importantes
quanto ao modo de funcionamento das instituições totais, especialmente os
manicômios, que resumidamente se caracterizam pela absorção de todas as
instâncias da vida social, cultural e afetiva de um indivíduo, retirando do mesmo a
oportunidade de decidir experienciar o mundo por si mesmo.
Nesse sentido, de acordo com o mesmo autor, observa-se que o manicômio,
enquanto instituição total, aliena o paciente de seus direitos e o aprisiona a uma
organização que promete cuidá-lo; mas na prática o humilha, rejeita, segrega e o
culpa pelo seu adoecimento mental. Portanto, diante desta conjuntura, pensadores
no mundo e, inclusive no Brasil, articularam uma nova forma de cuidado ao paciente
com transtorno psiquiátrico.
É nesse contexto que a Reforma Psiquiátrica surge como um movimento
social na Luta Antimanicomial, sendo que, profissionais de diversas áreas
participaram de discussões, conferências e manifestações públicas, objetivando
construir no país uma rede de cuidados em Saúde Mental que valorizasse o
território, a cultura do sujeito, a história pessoal do mesmo, os afetos envolvidos e
principalmente a compreensão deste adoecer, enquanto fenômeno biopsicossocial
(EMERICH, CAMPOS, PASSOS, 2014).
Nesta empreitada, foi necessária a desconstrução de um modelo para a
construção de outro. O trabalho em rede teve que ser gradativamente construído, ou
seja, pensado e articulado conforme as demandas de cada região do país. A
Reforma Psiquiátrica clama pelo direito da pessoa com sofrimento psíquico em ser
vista e respeitada como cidadã brasileira, o que implica dos profissionais um
posicionamento ético - político em prol da defesa de uma gestão democrática e
pública nos serviços de Saúde Mental no Brasil (RIBEIRO, 2005).
1.2 - O Sofrimento Mental: Psicopatologia, Psicologia e Psicanálise
O sofrimento é tema fundamental da Psicopatologia, que se constituí na área
de estudos que observa o Pathos, ou seja, a paixão que remete a intensidade das
dores emocionais. Enquanto área do conhecimento, a Psicopatologia dialoga com
outras ciências como a Antropologia, História, Sociologia, Economia e,
especialmente a Psicologia e a Medicina Psiquiátrica (DALGALARRONDO, 2008).
Olhar para o sofrimento mental exige, por parte do observador, uma visão
ampliada do fenômeno, objetivando compreendê-lo em sua complexidade e, ao
mesmo tempo, é necessário também delimitar recortes nesse mesmo olhar para as
atuações profissionais e suas intervenções específicas (DALGALARRONDO, 2008).
Deste modo, o psicólogo é o profissional que estuda em sua formação a
constituição do indivíduo, ou seja, como que as pessoas, em suas histórias de vida,
se tornam singulares e/ou únicas (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2001).
A Psicologia é a ciência que observa o sofrimento mental a partir do ângulo
do indivíduo, o que implica reconhecer nesta perspectiva o valor dos sentimentos,
ideias e comportamentos, assim como as representações/concepções que o sujeito
possui do mundo e da vida (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2001).
A Psicanálise, neste contexto, é uma das teorias mais proeminentes da
Psicologia, na qual o indivíduo é compreendido por Freud a partir da premissa e/ou
metáfora do inconsciente. A estruturação do sujeito, na teoria psicanalítica, acontece
por meio de processos desenvolvimentais em que a infância cumpre papel
primordial na construção da personalidade (MONTEIRO; QUEIROZ, 2006).
O sofrimento psíquico para a Psicanálise é resultante deste processo de
constituição do indivíduo, em que fixações libidinais e falhas nos cuidados
ambientais iniciais favoreceram a emergência de neuroses e até mesmo de
psicoses. Contudo, a Psicologia, incluindo a teoria psicanalítica, não negam as
possíveis relações e/ou contribuições biológico - orgânicas na constituição de um
transtorno mental (MONTEIRO; QUEIROZ, 2006).
Porém, discutem que a história do sujeito e as formas pelas quais ele pôde
se subjetivar contribuíram significativamente para a instalação de quadros
psiquiátricos. Deste modo, os processos de subjetivação são observados pelos
psicólogos em suas práticas profissionais, visando trabalhar para a promoção do
bem estar afetivo - emocional dos pacientes (RIBEIRO, 2005; MONTEIRO;
QUEIROZ, 2006).
Nesta conjuntura, diante da Reforma Psiquiátrica, da Saúde Pública e do
Sistema Único de Saúde (SUS), o psicólogo contribui com os serviços e suas
equipes favorecendo matricialmente o olhar para o indivíduo, em sua constituição
como pessoa humana, inserida numa cultura e tempo histórico específico
(BARACHO; FIORONI, 2012).
Dentre as práticas profissionais na Saúde, particularmente na Saúde Mental,
os psicólogos trabalham com atendimentos individuais (psicoterapias); atendimentos
grupais; matriciamentos; avaliações psicológicas; dinâmicas de grupo; oficinas
psicoterapêuticas ou psicoeducativas; campanhas informativas; aconselhamentos e
plantões psicológicos (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2001) .
Dentre essas práticas, destaca-se para o presente trabalho as oficinas
psicoeducativas, em função do caráter de construção de espaços para a expressão
de experiências e o compartilhamento de saberes, em que os frutos terapêuticos
são fecundos, em virtude de aprendizados vivenciais e afetivo - emocionais (BOCK;
FURTADO; TEIXEIRA, 2001).
2. OBJETIVO GERAL
Desenvolver oficinas psicoeducativas com os usuários dos serviços do
Centro de Atenção Psicossocial “Antônio da Costa Santos” (Caps Sul), em
Campinas - SP, visando construir conhecimentos e/ou saberes coletivos sobre as
temáticas da Psicopatologia no cotidiano, que permitam a construção gradativa de
processos de autonomia dos pacientes - participantes.
2.1 OBJETIVOS ESPECÍFICOS
• - Debater com os usuários temáticas, situações e conhecimentos técnicos
sobre a Psicopatologia no cotidiano;
• - Pensar conjuntamente com os usuários possíveis estratégias e habilidades
adaptativas para manejar conflitos psicológicos que produzem sofrimento
psíquico intenso;
• - Discutir a função social dos serviços de saúde mental e a articulação
destes para cuidar do sofrimento psíquico dos usuários;
• - Possibilitar espaço para a escuta e contingencia de demandas afetivo -
emocionais;
• - Integrar conhecimentos acadêmicos com os conhecimentos da
comunidade para a produção de novos saberes, úteis para as questões
discutidas em grupo;
3.METODOLOGIA
3.1 - Caracterização do Campo
As atividades de extensão aconteceram no Centro de Atenção Psicossocial
“Antônio da Costa Santos”, que é um equipamento de saúde mental modalidade III,
pois oferta leitos noite. O Caps se localiza na região Sul do município de Campinas -
SP, que abrange uma população de aproximadamente 283 mil habitantes, conforme
censo demográfico do IBGE de 2010.
O Caps conta com uma equipe gestora, com funcionários contratados para a
assistência em saúde mental e funcionários para a manutenção das atividades,
especialmente no setor de limpeza e cozinha.
Observa-se que enquanto serviço de saúde, o Caps atende a premissa da
interdisciplinaridade para o cuidado. No trabalho intersetorial existe a constante
necessidade de referências e contrarreferências com outras instâncias assistenciais,
como por exemplo, hospitais gerais, unidades básicas de saúde, organizações não
governamentais, universidades, dentre outras instituições. Assim, o serviço articula
constantemente trabalhos intersetoriais para melhor fundamentar as estratégias de
cuidado.
Todos os atendimentos acontecem via SUS e, seguem os princípios
preconizados pela legislação que regulamenta as atividades da saúde pública
brasileira. Tais princípios garantem a universalidade e gratuidade do acesso; a
regionalização e hierarquização dos atendimentos; assim como o respeito ao
território do paciente, com suas características históricas, sociais e culturais.
Nesse contexto, o Caps atende pacientes maiores de 18 anos com psicose
ou neurose grave dos territórios que compõem a região Sul de Campinas - SP. Em
média o equipamento atende 80 pessoas por dia e é também responsável pela
referência de 400 pacientes.
É importante ressaltar que o dispositivo funciona ininterruptamente, em todos
os horários e dias da semana, incluindo feriados. Para organizar a distribuição de
horários e tarefas, o Caps é estruturado em três miniequipes em que cada uma fica
responsável por sub-regiões e, consequentemente por um número delimitado de
casos. As miniequipes se organizam para atender as demandas de seus pacientes,
assim como discutir e planejar os Projetos Terapêuticos Singulares (PTS) para cada
usuário. Os PTS se constituem no planejamento do cuidado ao usuário,
considerando suas particularidades como condição econômica, história de vida,
aspectos psicológicos, avaliação médica, medicamentos que faz e/ou deve fazer
uso, além da dinâmica familiar e perspectiva de vida.
3.2 - Projeto de Extensão Universitária
Este projeto surgiu a partir das demandas apresentadas pela equipe
assistencial do Caps a docente, em reuniões de planejamento, o que confere
legitimidade já que parte das reais exigências e necessidade da comunidade
envolvida.
Foram ofertadas oficinas que se caracterizavam por rodas de conversa com
troca de experiências, expressão de sentimentos dos usuários e informações sobre
os transtornos mentais e as formas de tratamento. É importante pontuar que as
oficinas eram iniciadas com uma atividade disparadora da temática, como por
exemplo, dinâmicas; leitura de textos literários; leitura de situações problemas;
leitura de trechos de biografias; músicas, trechos de vídeos e atividades artesanais.
As oficinas aconteceram em encontros semanais com duração de duas
horas, sempre as quartas-feiras no horário das 11h30 até as 13h00. Os participantes
foram usuários dos serviços do equipamento, juntamente com um membro da
equipe assistencial acompanhando as atividades.
Os critérios que delimitaram a seleção dos pacientes para o grupo foram os
seguintes: 1) usuário em tratamento regular no Caps Sul; 2) usuário em estado
emocional/psíquico compensado, sendo que, nos momentos em que o mesmo
estivesse em crise era contraindicado o grupo; 3) pacientes com fluência verbal
mínima exigida para o compartilhamento de experiências e sentimentos.
O número de usuários participantes das atividades de extensão foi de no
máximo 10 pessoas, sendo que tal valor foi fixado visando garantir a qualidade das
discussões, trocas de vivências e expressão de emoções. Além dos usuários os
encontros contaram com a presença da equipe universitária e de um profissional do
serviço.
Neste percurso, o bolsista ficou responsável pela elaboração do material que
funcionou como disparador das temáticas. O aluno contribuiu ainda com as
informações advidas da literatura científica, assim como com uma escuta ativa
diante das experiências comunicadas pelos usuários no grupo. Objetivou-se com
esta sequência e divisão de tarefas que o discente aprendesse a conduzir um grupo
psicoeducativo que visasse a construção gradual de recursos de enfrentamento e
ajustamento do paciente perante a condição do transtorno e sofrimento mental.
3.3 - Atividades desenvolvidas na Extensão Universitária
Todas as atividades de extensão aconteceram no ano letivo de 2016 e foram
selecionadas temáticas que discutissem o transtorno mental, suas características,
experiências pessoais dos usuários, assim como formas de tratamento e cuidado
profissional.
Ocorreram durante o primeiro semestre de 2016 (de abril a junho) 13 oficinas
e mais 17 oficinas no segundo semestre de 2016 (de agosto a dezembro) com os
pacientes do Caps Sul, sendo que nestes encontros foram abordados os seguintes
temas:
a. Noções de Psicopatologia: Foi discutido o que é a doença mental e seus
impactos na vida cotidiana, assim como as definições do que é considerado normal
e patológico. Para tanto, a equipe universitária apresentou narrativas que
trouxessem histórias de vida e/ou situações hipotéticas de pessoas com
comportamentos e pensamentos bizarros para disparar a discussão sobre
normalidade e patologia. Posteriormente, foi confeccionado conjuntamente com os
pacientes do serviço cartazes informativos sobre as diferenças entre normal e
patológico, além da definição de transtorno mental. Essas produções foram fixadas
em um mural no Caps.
b. As Neuroses: Nas oficinas seguintes a docente e o discente trouxeram a
temática da Neurose, incluindo sua definição e características, visando disparar a
conversa. Foram propostas atividades nas quais os usuários liam vinhetas fictícias
de situações de vida de pessoas em sofrimento neurótico para posteriormente
conversar sobre o tema, visto que os pacientes, logo em seguida, apresentavam
experiências pessoais semelhantes aos casos das vinhetas. Destacou-se nas
conversas a presença da ansiedade; mal estar e náuseas perante situações novas;
tristeza e depressão no cotidiano, incluindo isolamento social e ausência de
motivação para atividades diárias.
Também foi proposto a apreciação em grupo da música “Maluco Beleza” de
Raul Seixas, enquanto disparador de conversa. Desta maneira, os usuários
elaboraram a existência de um “Maluco Beleza” e do “Maluco Feieza” na vida, sendo
este último presente quando os mesmos usuários se sentem desorganizados
mentalmente. Desta forma, as oficinas caminharam na reflexão sobre como
podemos nos organizar para sermos sempre “Malucos Belezas”, ou seja, quando se
conquista qualidade de vida através do tratamento.
c. As Psicoses: Nas oficinas seguintes a equipe universitária apresentou para o
grupo o tema da Psicose, incluindo sua definição e características. Foram
desenvolvidas atividades com vinhetas fictícias de casos, para disparar a roda de
conversa. Observou-se que os pacientes, a partir das leituras dos casos,
identificaram comportamentos e sentimentos semelhantes em suas experiências de
vida. Portanto, os usuários traziam vivências que envolveram os sentimentos de
persecutoriedade, medo, sensação de vazio existencial, pensamentos obsessivos
quanto a invasões e acontecimentos catastróficos, alucinações e delírios. Ocorreram
trocas de experiências entre os membros, acolhimento de afetivo, assim como
buscou-se elaborar estratégias em conjunto para manter a organização mental e o
bem - estar.
Nessas oficinas retornou a roda de conversa o personagem do “Maluco Beleza”, o
que implicou na confecção de desenho sobre ele em oposição ao desenho do
“Maluco Feieza”. Com essa atividade, a equipe universitária realizou juntamente ao
grupo uma finalização das discussões sobre os dois grande grupos/categorias de
sofrimentos psíquicos.
d. Sintomatologia: Foi realizada ainda oficina sobre sintomatologia, destacando a
diferença entre os sintomas neuróticos e os psicóticos. Os pacientes trouxeram
experiências de vida quanto a cada um dos dois conjuntos de sintomas, sendo que,
a equipe universitária fez a interlocução entre os conhecimentos da Academia com
os conhecimentos da comunidade, produzindo um novo saber, genuinamente
coletivo.
e. Crise Psiquiátrica: Foi realizada oficina sobre crise psiquiátrica, sendo que a
equipe universitária trouxe para disparar a discussão questões referentes à
internação e ao tratamento no Caps. Pacientes compartilharam em grupo
experiências de internações, de desorganização mental, situações em que alguns,
por exemplo, ficaram caminhando pelas ruas da cidade desorganizados
psiquicamente. Essas experiências foram acolhidas e, posteriormente elaboradas
em grupo, junto com informações sobre serviços que podem ser solicitados em
momentos de crise.
f. Leito Noite: Foi realizada oficina sobre leito noite, em que a atividade que disparou
a conversa foi a confecção em grupo de quadros sobre o Caps com barbantes, cola
e tintas. Para tanto, os usuários foram convidados a expressarem criativamente
afetos relacionados ao serviço, assim como as estruturas físicas e de recursos
humanos que o compõem. Posteriormente, conforme o andamento da atividade, o
discente e a docente trouxeram a questão do leito - noite e, as características do
Caps III em oferecer este serviço/suporte em todos os períodos (24 horas).
Observou-se que os usuários apresentaram intenso afeto positivo pelo equipamento
e seus funcionários.
g. Tratamento e Prognóstico: Finalmente, a oficina temática abordou a questão do
tratamento e o prognóstico, enfatizando o conceito de qualidade de vida. Ocorreram
trocas de experiências quanto a formas de tratamento, medicamentos, grupos que
os usuários participam, tempo de tratamento no Caps, assim como expectativas
sobre o futuro.
h. Encontro para Avaliação das Oficinas: Foi realizado um encontro com os
usuários, durante o mesmo horário das oficinas, objetivando escutá-los sobre como
foi o processo da extensão, assim como sobre expectativas e sugestões de
mudanças. Cada usuário respondeu um questionário que visou coletar dados para o
aprimoramento das atividades.
i. Confraternização do Grupo: Foi realizada uma confraternização com o grupo.
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
O trabalho desenvolvido, conforme citado anteriormente, teve por objetivo
propiciar espaço de produção de conhecimentos coletivos sobre o transtorno mental
(sobretudo psicopatologia) junto aos usuários do Caps.
Deste modo, observa-se que o trabalho se fundamentou em uma perspectiva
de extensão enquanto produção conjunta de conhecimentos, no entrelaçamento do
saber da academia com o saber da comunidade (SERRANO, 2016). E, para tanto se
afasta de toda concepção de educação e trabalho autoritária, impositiva e
antidemocrática, que observa o sujeito atendido a partir de uma ótima da caridade e
não do direito (FREIRE, 2006).
Pode-se considerar que, a partir do exposto, é possível afirmar que o objetivo
geral e os objetivos específicos deste plano foram alcançados com êxito, além de
que as oficinas contribuíram profundamente no processo de formação de psicólogos
- bolsista discente.
A par destas considerações, o bolsista discente e a professora responsável
debateram a produção das oficinas, os discursos presentes durante as atividades,
assim como as experiências relatadas que surgiram nos encontros. De fato, a
efetivação das oficinas fortaleceu no grupo reflexões sobre o adoecimento mental e
as estratégias para enfrentá-lo cotidianamente, valorizando a qualidade de vida.
Foi observado que apresentar os temas da Psicopatologia geraram uma
reação de defesa no grupo inicialmente, sendo que, ocorreu o fato de alguns
usuários se retirarem da roda de conversa, principalmente nos temas da neurose,
psicose e crise. Diante disso, a equipe universitária preferiu abordar outros temas
nas oficinas, especialmente aqueles relacionados aos direitos dos usuários no Caps,
para que posteriormente retornasse a questão do transtorno mental.
Esse movimento teve por objetivo respeitar os mecanismos de defesa que o
grupo constituiu, visto que, o sofrimento psíquico grave, por si só́, promove no
indivíduo sentimentos de desamparo, vazio, ansiedade, medo e persecutoriedade;
portanto, não era conveniente que a equipe universitária agravasse este sofrimento
em nome da sequência linear das oficinas.
Observou-se que, com o tempo, os usuários se adaptaram as temáticas e,
contribuíram nas rodas de conversas, assim como nas dinâmicas, atividades e
leituras que ocorriam no começo dos encontros.
Os usuários ao descreverem as experiências de viverem com um transtorno
mental, concretizaram os conhecimentos teóricos trazidos pela equipe universitária.
O encontro entre a teoria e a vida possibilitou a articulação de novos saberes, que
habilitaram ambos os lados em aprender sobre o transtorno mental.
A partir destes elementos foi possível categorizar três tópicos que sintetizam
os resultados qualitativos obtidos com as oficinas, além de que tais categorias
organizam textualmente as temáticas para a discussão. Deste modo, as três
organizações descritas são: Extensão e Produção de Saberes em Normalidade e
Patologia; Extensão e Produção de Saberes sobre Neurose e Psicose; e, finalmente
Extensão e Produção de Saberes sobre o cuidado do usuário na Rede de Saúde
Mental.
4.1 - Extensão e Produção de Saberes em Normalidade e Patologia
Nos primeiros encontros a equipe universitária trouxe para a discussão o
tema do normal e patológico, sendo que, durante as conversas observou-se que os
usuários descreveram comportamentos, crenças e preconceitos com relação ao que
seja considerado “saudável” e “não saudável”.
De fato, a cultura e o tempo histórico determinam muitas variáveis na
conceituação do que seja aceito como normal e não-normal (DALGALARRONDO,
2008). Nesse sentido, é possível hipotetizar que os pacientes do Caps ao
discursarem sobre o referido tema apresentaram em sua fala elementos histórico-
culturais que manifestam, por sua vez, concepções de mundo e de sociedade.
Em tal contexto, os preconceitos e as informações parciais de um assunto
colaboram na mistificação do tema e, consequentemente fortalecem mecanismos de
defesa nos indivíduos, com o objetivo de que o ego suporte a ansiedade de uma
ameaça, geralmente interna, por ser fruto de uma construção imaginativa ou mesmo
de um imaginário (COSTA, 2014).
Portanto, torna-se fundamental falar sobre o que é normal e patológico
objetivando quebrar e/ou desmontar as construções imaginativas que sustentam
mecanismos defensivos para com a temática. Nesse sentido, é possível hipotetizar
que o efeito terapêutico seja proveniente de um controle informativo que estabelece
limites racionais para a ansiedade diante do assunto abordado.
Além do exposto, falar sobre normal e patológico permite construir critérios
fidedignos e rigorosos para delimitar o que realmente seja patologia ou normalidade.
Portanto, a partir das discussões, troca de experiências e sínteses elaborativas em
grupo, chegou-se à conclusão de que os melhores critérios são: 1) anormalidade
está relacionada com a produção constante de sofrimento para si e para os outros;
além de que é necessário destacar que anormal são os fenômenos que impactam
na vida cotidiana e que trazem prejuízos funcionais e até mesmo estruturais na
qualidade de vida e bem-estar físico, afetivo-emocional, social e econômico
(DALGALARRONDO, 2008).
Por sua vez, o critério dois implica que a normalidade está relacionada a
qualidade de vida, capacidade de auto-apoio e bem estar físico, bem estar afetivo-
emocional, social e econômico. Portanto, os dois critérios produzidos em grupo
sugerem que a função dos sentimentos e comportamentos para o sujeito e para as
pessoas próximas é o elemento mais importante para delimitar o que seja “normal”
ou “anormal” (DALGALARRONDO, 2008).
4.2 - Extensão e Produção de Saberes sobre Neurose e Psicose
No que se refere a neurose os usuários apresentaram interesse em
descrever situações que sentiram medos, ansiedades, fobias, pensamentos
obsessivos e comportamentos compulsivos. Destacou-se durante as conversas
questões cotidianas que geravam intenso sofrimento mental, como por exemplo, a
compulsão em verificar o gás de cozinha para comprovar para si mesmo, repetidas
vezes, que ele encontrava-se desligado.
Com relação às oficinas sobre psicose, os pacientes descreveram processos
psíquicos e os sentimentos associados a persecutoriedade, medo, paranóia,
alucinações e delírios, especialmente na presença de vozes de comando ou de
auto-depreciação. Relataram também a experiência da desorganização mental, da
dificuldade de fazer as atividades cotidianas e de localizar-se adequadamente no
tempo e no espaço.
A equipe universitária, diante dessas demandas procurou acolhê-las e, a
partir delas trabalhar em conjunto com o grupo maneiras e/ou estratégias de
minimizar as formas de sofrimento. Para tanto, tornou-se necessário delimitar as
definições nas rodas de conversa, para posteriormente trabalhar em conjunto na
elaboração das estratégias anteriormente citadas.
A partir desta construção coletiva, o grupo chegou à conclusão de que a
neurose é a presença de adoecimento nas relações que o sujeito possui com o
mundo social, material e cultural. Nesta forma de adoecer o contato com a realidade
é preservado, porém deturpado pelos conflitos que o indivíduo desenvolveu em sua
história de vida (COSTA, 2014). Portanto, na neurose a pessoa está inserida nas
demandas e limites da realidade, porém tais demandas e limites provocam intenso
sofrimento, que em muitos casos diminui consideravelmente a qualidade de vida
(MONTEIRO; QUEIROZ, 2006).
Na psicose, por sua vez, o sofrimento é associado a quebra da relação do
sujeito com a realidade, apresentando experiências irracionais e sem a crítica do
ego e superego. Nesse sentido, as vozes, visões, sentimentos intensos de
perseguição e ansiedade não apresentam críticas racionais e/ou autoconscientes do
sujeito como geralmente ocorre na neurose (MONTEIRO; QUEIROZ, 2006).
Na Extensão Universitária, pode-se hipotetizar que, a possibilidade de
abordar a neurose e a psicose é uma forma de promover condições para a
sustentação da autonomia gradativa da pessoa em sofrimento, ou seja, para que a
mesma encontre subsídios que a auxiliem no enfrentamento do transtorno mental,
tanto no que se refere a informação quanto a psicoterapia.
Observou-se que durante as oficinas, apesar de resistências iniciais, falar
sobre a neurose e psicose abriu campo de esclarecimento de dúvidas/incertezas,
delimitando um espaço para a descrição de experiências e angústias relacionadas à
temática, que em grupo puderam ser ressignificadas.
A neurose e a psicose puderam ser presentificada em grupo psicoeducativo,
o que implicou em sua desmistificação e nova significação. Tal aspecto pode ser
exemplificado pelas elaborações e compreensões que alguns usuários
estabeleceram após as conversas, como por exemplo, as falas dos pacientes que
afirmaram que “entendiam melhor os motivos de verificarem tanto o gás de cozinha”
(sic).
Observa-se, deste modo, que a troca de experiências cumpriu para os
usuários uma função de acolhimento e, consequentemente a quebra da sensação
de solidão perante a condição humana de viver com um transtorno mental. Tanto a
neurose, quanto a psicose provocam, no sujeito, sentimentos de solidão, o que pode
ser em função do estigma, imaginários e preconceitos sociais associados à doença
mental.
4.3 - Extensão e Produção de Saberes sobre o cuidado do usuário na Rede de
Saúde Mental.
A terceira categoria que sistematiza os resultados e a discussão das oficinas,
refere-se às rodas de conversa e problematizações do grupo com relação a rede de
cuidados oferecida na cidade de Campinas - SP, via SUS, especialmente quando o
paciente se sente desorganizado, ou seja, em crise.
As temáticas da crise, leito noite, sintomatologia, por exemplo, abordaram
justamente a discriminação e/ou percepção dos usuários sobre aspectos psíquicos
que alertam para ele mesmo que não se encontra momentaneamente bem, e diante
desse contexto, talvez seja necessária a procura de cuidados na rede de saúde do
município.
Durante as oficinas, os usuários trouxeram no grupo experiências da busca
dos serviços municipais para uma internação no leito noite, assim como na busca de
medicação e orientação, acompanhamento médico (psiquiátrico) ou psicológico,
dentre outras modalidades de atendimentos necessárias diante da desorganização
mental.
Observou-se que a troca de experiências e as informações acadêmicas
trazidas pela docente e discentes nesses momentos fortaleceram nos pacientes
recursos adaptativos e enfrentativos diante das adversidades do transtorno mental
em suas vidas, especialmente na condição de procurar serviços de saúde em
momentos de crise psiquiátrica.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Projeto de Extensão Universitária “Conhece-te a ti mesmo: o transtorno mental e a
busca de autonomia” teve por objetivo propiciar espaço para discutir com os
usuários do Caps temáticas sobre Psicopatologia e Saúde Mental.
Após a realização das oficinas no ano letivo de 2016 o grupo conseguiu
alcançar com êxito o objetivo geral e os objetivos específicos propostos no plano de
trabalho.
Observou-se, a partir da experiência das oficinas, a estruturação de três
grandes eixos que sustentam os resultados qualitativos do projeto, sendo que, no
primeiro eixo ocorreram discussões e problematizações com os usuários sobre os
conceitos de “normal” e “patológico”; no segundo eixo aconteceu a construção de
saberes coletivos sobre neuroses e psicoses e, finalmente, no terceiro eixo
destacou-se a produção de conhecimentos sobre o funcionamento dos serviços de
Saúde Mental, especialmente aqueles destinado a acolher e cuidar dos pacientes
quando estes encontram-se desorganizados mentalmente.
Deste modo, este trabalho se configurou enquanto experiência de formação
profissional, por meio da Extensão Universitária, contribuindo para o
aperfeiçoamento técnico e humanístico do primeiro autor sob orientação do segundo
autor.
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