com o filmar o inimigo? · 2015. 4. 10. · amiga de uma jovem militante da fn, marie-hélène. e...

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COMO FILMAR O INIMIGO?

Dez anos depois, eles mudaram; é preciso continuar a filmá-los...1

Final de 1995, dois anos an tes era p u blicad o “Mon en nem i préféré?” na revista Images Documentaires? Esse inimigo é a Frente N acional (FN ),3 seu s d irigentes, seu s qu ad ros, seu s militantes. Eu os havia film ad o p ela p rim eira vez n ove anos an tes, em Tous pourun!, sobre as eleições p resid enciais d e 1988, d ispu tad as p or Mitterrand e Chirac. E m eu gosto p elas batalhas p olíticas em jogo aberto m e levou , com Michel Sam son4 e Anne Bau d ry, a filmar em Paris ou Marselha, alguns ou tros rep resen tan tes em ação da FN. H oje, esse partido cresceu p or tod a parte e eu con tinu o me fazend o as m esm as obstinad as e, talvez, vãs pergu ntas: é p reciso, para com batê-la, film ar a FN? Como? A qu e p reço, sob qu e riscos? As perguntas são as m esm as. Mas não com p letam ente. Muitas coisas m ud aram na Eu rop a e na França nesses d ez anos, mas, para mim, o qu e m ud ou foi p rincip alm en te o lugar da FN na vida política francesa. “Ban alização”, d izem. Ocu p ação p rogressiva do país, eu diria. Não ap enas das m entes, mas d o esp aço e d o tem p o, da geografia e da história, das institu ições e das em p resas, da lingu agem e das lógicas.5 Tu d o se passa com o se a FN in fu nd isse cad a vez m enos m ed o. E com o se esse m ed o fizesse cad a vez m enos mal. “Foi só u m su sto”, é o qu e se diz h criança ferida para consolá-la. Inclu o-m e en tre aqu eles aos quais faz cada vez mais mal esse m ed o qu e se familiariza, se insinua, st* alinha r vagarosam ente ganha o in terior d os corp os

e das alm as. Pen so em Leonard o Sciascia, p en so em Dashiell Ham mett, qu and o sin to - em Orange, em Tou lon , em Marignane, em Vitrolles - o m ed o d e ganhar su rd am ente as con sciên cias e gu iar secretam ente as cond u tas, op erand o sem estard alhaço, sem d ebate, p elo terrorismo cotid iano das p ressões, d elações, am eaças, in tim id ações, d ifam ações, injú rias íntim as, ataqu es ad hominem, calúnias, ru m ores.. .6 Pequ enas ignom ín ias organizad as e aceitas. Exten u ação da d im ensão p olítica p or d esp rezo m anifesto. O hom em red uzid o ao in teresse mais estreito. A d elação estim ulada. A su bm issão alard ead a com o m od elo.

Se existe (eu acred ito n isso) um u so p olítico d o cinem a e, esp ecialm en te, d o cinem a d ocu m entário, se é verd ad e (eu acre­dito n isso) qu e com o cinem a, arte d o corp o, d o gru p o e d o m ovim ento, torna-se finalm ente p ossível tratar a cen a p olítica segu nd o u m a estética realista, trazend o-a d e volta da esfera d o esp etácu lo para a terra d os hom ens, com o as op ções d e escritu ra n ão d iriam algo sobre a atual conjuntu ra? E o d ispositivo fílm ico, n ão daria con ta d o sen tid o qu e essa cen a p olítica rem aterializad a e reencarnad a ganha ou volta a encontrar? “Filmar p oliticam ente” (o slogan não é recen te) já seria valer-se d o cinem a para com ­p reen d er o m om en to p olítico em qu e algu ém filma.

MARIE-HÉLÈNE E BÉNÉDICTE

Em 1988, p ortan to, Tons pour unfJ Esse film e sobre os m ilitantes d o RPR e d o PS8 - os ú n icos em cam p anha, naqu ela ocasião, p or seu cand id ato à p resid ên cia - encon tra aqu eles qu e eu n ão tinha p revisto filmar, os m ilitantes da FN. N ossa heroína RPR, Bén éd icte, resp onsável p ela seção d e Bois-Colom bes, é am iga d e u m a jovem m ilitante da FN, Marie-H élène. E nos fala d ela. Esse en con tro, p arece-m e, ganha sen tid o no m om en to em qu e Le Pen acaba d e obter a m aior votação na França (15%) e qu and o eu ou ço falar - já - d os d esertores d o RPR. Film am os n o jard im d o Lu xem bu rgo um d iálogo en tre as du as m oças qu e com entam , rindo, os m éritos resp ectivos d e seus ch efes querid os, Le Pen e Chirac (qu al é o mais “d u ro”?). Brincad eiras em torno do extrem ism o qu e film ei, não sem p ensar nas heroínas de Rohm cr, com o um p asseio fora d o tem po. <) qu e se iralava de inscrever

era da ord em d a d escoberta, para n ão d izer da surpresa. Com o uma m oça d os d ias de h oje p od eria ser partidária d e Le Pen? Ru estava estu p efato, e esp erava en tend er isso m elhor film and o-a. Eu dizia a mim m esm o, aind a d igo, qu e film ar é p ercorrer um tem p o de exp eriên cia em qu e a relação d o su jeito com seu corp< > e sua palavra se d esd obra e, ao m esm o tem p o, se in tensifiea. Uma d inâm ica d e en carn ação dos m otivos d o p en sam en to se torna p ossível, recon hecível. Se o Ou tro se encarna, para mim, isto acon tece, an tes d e tu d o, n os film es. Acrescentar, film and o-o, corp o - gesto, palavra, m ovim ento, sinu osid ad e - à id eologia d o ou tro é, ev id en tem en te, rep resen tar essa id eologia com mais força, ou seja, talvez p rovocar uma reação mais viva no esp ectad or, d ar-lhe mais m aterial a ap reend er e mais d esejo d e com bater. Portanto, a cu riosid ad e se sobrep oria à repu lsa. No en tanto, film and o à noite uma equ ip e da FN (eles pregavam cartazes para a festa de Joan a d ’Arc, qu e Jean -Marie Le Pen já havia incorp orad o e . - p ela p rimeira vez, ach o - antecip ava em uma sem ana, para n ão p or acaso coincid ir com o Prim eiro de Maio dos trabalhad ores), cham ou -m e a atenção algo qu e mostrava o avesso da sed u ção d esp reocu p ad a d e Marie-H élène. Um cios p regad ores de cartazes da FN, velho m ilitante, sem qu alqu er m otivo ap aren te além d o fato d e estar send o film ado, entoava um refrão sobre os negros cond u zid os a golp es de cassetete paca as colôn ias. No m esm o instante, firm em ente, o ch efe da equipe* ord enava-lhe silêncio. Aqu i não, você não, agora não! Expressar- rep rim ir, escon d er-exib ir , a cen a cin em atográfica indu zía e registrava a d em onstração em atos d esse m ovim ento pend u lar qu e caracteriza, ach o eu , a am bígua relação da FN com a “mídia" (“os p an fletários”), am ad a e, ao m esm o tem p o, vaiad a em seu s meetings. De um lad o, a obsessão d e se fazer notar e porta n(< > de se mostrar, d e se ap resen tar com o d iferente d e tod os os ou tros, a parte, ú nico, in tacto, até o excesso e o insu portável, e, de outro, aqu ela obsessão d e d enu nciar a consecu tiva exibição, pela mídia, d essa d iferença, d essa estranheza, com o uma injustiça e uma censu ra. Esse d u p lo m ovim ento, ao m esm o tem p o d en egação e d eslocam ento, qu e significa se p osicionar com o vítima de Iodas as agressões, no lugar de Iodas as vítimas (vítima, por exem p lo, do anti-sem itism o no lugar dos ju d eu s...),0 é inexoravelm ente registrad o c o m o í i i m t í ç »i u verd ad eiram en te ein em atograíica,

Camila Matos

fixação sincrônica dos voláteis acting out qu e d esm ascaram a violência escond id a d os sentim entos reais. Estamos d entro de uma lógica de d esvend am ento em ocional. Agente d e con hecim en to, o cinem a p od e ap enas rom p er as d efesas d o in im igo, sem ir até a exp osição d e suas forças ou fraqu ezas, d esm ontar suas engrenagens, fazer ap arecerem suas con trad ições. Filmar para m elhor con h ecer, mas não ainda filmar para m elhor com bater.

“NÃO ME TOQUE!"

Qu atro anos m ais tard e, 1992, 1993, são esses m esm os acting qu e, mais uma vez, p od em os filmar em La Campagne de Provence e em Marseille en mars. Na esqu ina d e uma rua de Marselha, a rua H enri-Barbu sse, sim bolicam en te rebatizad a (já) “rua Charles- Martel”, um grupo d e m ulheres militantes da FN, d iante da câmera, xinga uma m u lher qu e não é vista, m as qu e se d efend e fora d e cam p o (o cameraman, Jean -Lou is Porte, colocou -se ao lad o d essa m u lher invisível - e é com o se nós estivéssem os em seu lugar). “Volte para o seu p aís!”, gritam para ela bem na cara (a da câm era, p ortan to). O país é a Argélia, qu e n ão é mais “fran cesa”, com p reen d e-se, m as qu em é a m u lher qu e está send o insultada? Ela som os nós, nós estam os em seu lugar. O d ispositivo fílm ico (essa m u lher agred id a jam ais será vista) d esvend a tod a a raiva d aqu elas qu e gritam, ao m esm o tem p o, contra a estrangeira e contra a câm era. Violência não apenas exibid a com o projetad a em nós, esp ectad ores. Aqui, a mise-en-scène com and a o sentid o. Os corp os film ad os sabem qu e são film ad os e se exp õem com ód io ao d ispositivo qu e os afirma - d esvelam ento - tais com o são.10

Gard an n e. Le Pen p ercorre a p assos largos o m ercad o, sorrindo, am ável com seus admiradores. Perto d ele, um segurança qu e, para p rotegê-lo, esbarra nele. Le Pen sobressalta-se, um ricto d e violência invad e seu rosto. “Eu d isse a você para não en costar em mim! Eu n ão gosto qu e en costem em mim d esse jeito!” Film ad os, esse gesto e essas palavras fóbicos abrem -se su bitam ente para a outra cen a qu e am eaça, atrás d os sorrisos e da bond ad e. N eles, in screve-se algo da relação entre a idéia política e o corp o p olítico, relação qu e somente* o cinem a p od e revelar e d esd obrar. À partir d o m om ento em qu e se encarna e

nu

se rep resen ta, um p od er se torna sua p róp ria caricatu ra. Nem é p reciso forçar o traço, ele se força p or si p róp rio. A som bra se d esloca ao m esm o tem p o qu e a lu z.11 É o qu e eu sem p re p en sei sobre o p od er filmado. Uma luva p elo avesso. Pod em os ver as costu ras, a carcaça. Acon tece qu e a FN não está (aind a não, e não em tod os os lu gares) n o p od er: é seu p otencial crescim en to (resistível ascensão?) qu e d everia ser film ado h oje com o a carcaça de n ossa socied ad e.

SER E NÃO SER, TER SIDO E NÃO TER SIDO

Posto qu e d esenrola uma fita de tem p o m aqu ín ico sincrôn ica com o tem p o vivido d o su jeito film ad o, o cinem a p od e registrar a p assagem d e um estad o d e en u n ciação a ou tro, a rup tura de u m a cond u ta, o p on to de d esequ ilíbrio d e um corp o em torno d e uma d enegação. Mas com o, film and o-o, d esmontar, p or exem p lo, o rébu s qu e d osa com p recisão m ean d ros e d eslizam en tos sign ifican tes e faz com qu e Le Pen p asse, no m esm o d iscu rso, da Aids ao sind icalism o d ocen te, e da ped ofilia à Liga d os Direitos do H om em ?12

Há um a su tileza p erversa d o fascism o à francesa, qu e tem a ver com o fato d e qu e ele constan tem en te n ega a si m esm o (Wieviorka diz “nacional-p op u lism o”) 13. Essa d en egação bloqu eia a in tervenção cinem atográfica, assim com o paralisa a lu ta política, muito im potente contra um inimigo qu e se esqu iva em sua própria exibição. Com o rep resentar, com efeito, o m ecan ism o tortu oso qu e faz com qu e a d enú ncia das ignom ínias habitu ais da FN, até m esm o d os seu s crim es - sem p re negad os, p ortan to, ao m esm o tem p o qu e realizad os seja transform ad a em argu m ento d e sed u ção sup lementar? Acho qu e só m esm o Lubitsch, o Lu bitsch de Ser ou não ser; claro, p od eria d esm ontar uma engrenagem d esse tip o — qu e acaba p or tend er ao nonsense. Lem brem o-nos, por exem p lo, das d eclarações qu e se segu iram ao assassinato d c Ibrahim Ali em Marselha, em fevereiro d e 1995. Acusada, a FN com eça p or negar o ato, mas uma n egação qu e fu nciona com o uma afirm ação cod ificad a (foi a vítima qu e atacou os seus assassinos). À publicidade dada à acu sação se acrescenta, portanto,

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aqu ela d ad a à sua rejeição. Du p lo ben efício. Tod o ato efetu ad o e negad o exibe-se, assim , duas vezes. Confissão cod ificad a e con tra-con fissão tonitru ante, A p alavra “n egacion ism o” já foi cu nhad a p or ou tras razões, m as observo qu e ela rem ete ao m esm o sistem a de d en egação. Revirar os enu nciad os, ap agar os vestíg ios, virtu alizar a m em ória. Dian te d isso, p ara n ão ren u n ciar ao com bate, seria p reciso m an ter a id éia d e u m a resistência in trínseca (on tológica) d o cinem a à p rogressão atual d os revisionism os. Ao m esm o tem p o qu e a d uplicidad e, o cinem a fabrica o vestígio qu e registra essa d up licid ad e. Contra as míd ias d e m assa qu e fazem circu lar u m p rincíp io d e reversibilid ad e geral e substitu em nossas dúvidas p or uma dúvida objetiva e generalizad a, um equ ívoco institu ído, favorecend o, na verd ad e, tod as as revisões, o cinem a se obstina em registrar o qu e ele p rod u z e p rovoca. O vestígio cinem atográfico, tem p o e d u ração em sincronia com a ação filmada, m antém aqu ilo qu e se ap aga e, a d esp eito da am bigü id ad e essen cial de tod o jogo de im agens, n ão pára d e inscrever e reinscrever a cad a p rojeção o real d os corp os film ados. Esse vestígio se op õe ao circu ito da in form ação- m ercad oria, em qu e tod a coisa rep resentad a tend e a m ud ar de sinal, verd ad eiro e falso, real e virtual, p resen te e possível. Essa crep itação d os sinais nas p rod u ções m id iáticas zom ba do cinem a com o herd eiro da cen a real da antiga rep resen tação, aqu ela qu e fabrica um terceiro en tre o ou tro e mim, aqu ela qu e m ed e o p eso d os corp os e pisa nos esp inhos d o real. Glorificação d o corp o filmado, fetich ização d o vestígio, religião da inscrição verd ad eira, sim, visto qu e o cinem a - corp o, vestígio, in scrição - se op õe às roteirizações e m od elizações em vigor, d esd e qu e se m antenha no p on to d e rup tura das linguagens.

MÉGRET EM LUZ VERDE

Em 1992, os corp os a serem film ad os eram os d os cand id atos da FN às eleições regionais de Provence-Alp es-Côte d ’Azur, Le Pen e Mégret. É a outra verten te da in scrição verd ad eira, o qu e se registra não é mais a fratura da cena, mas sua coerên cia.

O corp o do inim igo no d ocu m entário não e transferido para um ou tro corp o, aqu ele de um ator; cie esta la “de verd ad e",

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“em carn e e o sso”, p resen ça real d ian te da câm era, am eaça ou arm ad ilha, mas, ao m esm o tem p o, p ed aço de hu m anid ad e bem hu m anam ente viva, até naqu ilo qu e ela teria d e od ioso ou d etestável. Esse corp o n ão am ad o é a p rova d e verd ad e d o d ocu m entário, qu e n ão sabe, não d eve e n em p od e d ele se livrar. Mesm o qu e o in im igo seja exatam ente o qu e é, as con versações estão em cu rso, há p actos em vista, é p reciso com ele se en tend er e estabelecer uma relação com o com qu alqu er ou tra p essoa film ad a, am iga ou neu tra. Com o cond u zir essa relação? Aí está o qu e incita o cineasta e m old a o film e.14 Os riscos são, evid entem ente, m enos de hostilidad e (a filmagem cessaria) do qu e d e con ivên cia ou com p lacência. Estamos bem longe da ficção, na qual eu escolh o os atores e o corp o, na qu al o d inheiro in terfere, na qual sei qu e o artista é m antid o p or contrato. No d ocu mentário, a p essoa film ad a p od e, a cad a m om en to, p ôr fim ao filme. As n egociações com o in im igo qu e se encarna a si m esm o e com o ator qu e en carn a o in im igo não são, en tão, da m esm a ord em . E o d esejo n ão é o m esm o. Eu p osso d esejar o corp o d e um ator e p ed ir-lhe qu e não d eseje o corp o d o seu p ersonagem . Le Pen n ão é Welles in terp retand o Macbeth , nem Charles Laughton em Tempestade sobre Washington. Diante d o h om em p olítico, n ão p osso d issociar o corp o film ad o da id éia ou d o p od er qu e ele en carna. Eu rejeito aqu ilo qu e m e repu lsa, mas d evo atar e não romper. Dep en d ên cia d o d ocu m entarista - mas ao m esm o tem p o p otência d a relação, mais m atricial d o qu e na ficção. Não se filma sem amor, sem d esejo, sem inconscien te, sem corp o; mas tam bém não se filma sem con sciência, sem moral, sem cálcu lo, sem gostos e d esgostos. Qu estão d e corp o. Foi, an tes d e tu d o, a partir da reticência d e Michel Sam son, a partir d e sua recu sa de qu alqu er p roxim id ad e com os corp os hostis, qu e se elaborou uma mise- en-scène para filmar a FN em La Campagne de Provence. Michel Sam son, qu e traz a cham a e a cinza d essa con fron tação, não é um “ator”, ele é o m eu alter ego, cú m p lice p olítico e, ao m esm o tem p o, cinem atográfico. Seu corp o in terp osto nos rep resen ta e nos exp õe, a am bos, d iante d o inimigo. Ora, am igos ou inimigos, os p ersonagens d e um filme com p artilham a cen a e m esm o o qu ad ro (os com bales, os d u elos). Aqu ilo qu e eu ch am o d e uma ’‘com unid ad e cinemat< >gr;íttea” os reúne. É o qu e eu d izia em 1995 (perm itam me citar este p rimeiro: “Filmar o in im igo”):

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D e u m lad o, m eu inim igo e eu , ou seja, “d ois”. De ou tro lad o, p arad oxo, esse “d ois”, um a vez film ado, é su p lem entad o p or um terceiro, qu e é a relação filmad a entre “u m ” e “u m ”. A partir d o instante em qu e são film ados ju ntos, a d istância qu e sep ara o am igo d o in im igo é pu ra ficção, p rojeção, e não mais inscrição. E essa d istância se reduz tam bém para mim, esp ectad or, p ois é, en tão, d o m eu olhar qu e eles se ap roxim am . Com o escap ar d essa inclinação fatal d o cinem a qu e im p õe - obsessão baziniana15 - qu e filmar ju n tos os ad versários seja, conseqü en tem en te, ap roxim á-los um d o ou tro (e am bos d e mim)?

Qu and o nos p rop u sem os a fazer La Campagne de Provence,16 havíam os acabad o d e fazer Marseille de père en fils (1989), em qu e tínham os film ad o, mas não m ontad o, d iversas cen as com os m ilitantes e qu ad ros da FN. Aqu ela exp eriência nos havia ch o ­cad o. Aqu elas p essoas eram agressivas, delirantes. Não gostavam qu e as film ássem os, e nós não gostávam os d e filmá-las. Três anos d ep ois, não tínham os mais escolha: era p reciso filmá-los, Le Pen e Mégret, sobretu d o p orqu e eles haviam tom ad o de assalto a Provence, atacand o em n osso terreno, em resum o. Ora, eles haviam m ud ad o. As câm eras (e não ap enas a n ossa) estavam no encon tro. Sem p re od iad as, sem p re insu ltadas, mas p rontam ente con vocad as na hora certa. Mal-estar. Não qu eríam os estabelecer um a relação d e fam iliarid ad e com a FN, com o havíam os feito em Marseille de père enfils com os filhotes socialistas d e Defferre, ou m esm o com Jean -Clau d e Gau d in (longas entrevistas “analí­ticas”). Conseqü ência: para evitar tratar “à p arte” a FN e cair na arm adilha da exceção (ver an teriorm ente), d ecid im os ad otar o m esm o princíp io, o da d istância atenta, já qu e tod os os partidos estavam com p etind o. Para a palavra p ú blica (a p olítica), cinem a­tografia p ú blica. Objetiva ú nica (e m éd ia: 20 mm em betacam ), circu nstâncias p ú blicas, “nenhu m a entrevista singu lar qu e não se fizesse no m eio de tod os, à m aneira d os apartes no teatro”. Form alizar a relação, sistem atizá-la. Qu e ela seja legível com o tal, qu e a in form ação política d o esp ectad or seja tam bém sobre a form a da relação.

Ta n t a s b o a s in t e n çõ e s a ca b a r a m s e n d o m u ito p esa d a s p u ra n ós. À m ed id a q u e a s s e m a n a s se p a s sa v a m , <ju e u p la n o d e ba t a lh a d a l'N se r ev elav a e se e xe cu t a v a m a h 1« H lem en le , -sen liam o n u s

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p rovocad os a fazer, cinem atograficam en te, fren te àqu ela ofen ­siva organizad a. As p erform an ces d e Mégret, p or exem p lo, nos incitavam a transp or n osso d isp ositivo d e d istância igualitária. E estávam os ten tad os, sem rom p er o d isp ositivo, a m od ificá-lo. Mesm o qu e fosse só para n ão p arecer, a n ossos p róp rios olhos, qu e éram os cú m p lices d aqu ilo qu e film ávam os. Os meetings, p or exem p lo, em qu e se p roferiam m onstru osid ad es. Então, nos p arecia, u m a certa v iolência d os enqu ad ram entos pod ia dar conta da v iolên cia das palavras.

Era o qu e eu escrevia em 1995. Mas eu p od eria ter d ito tam bém : uma estranheza das lu zes - verd es - para au reolar certos delírios. Aqu elas ten tações d e intervir, ap esar da regra qu e nos havíam os determ inad o, tornavam -se irresistíveis na m ontagem , com a ironia irritante da m ú sica de Louis Sclavis. Passagem de uma lógica a ou tra, salto das trilhas labirín ticas d o cinem a para os cam inhos balizad os da p rop agand a.

Isso era, sem dúvida, nos m ostrarm os ao m esm o tem p o militantes e ingênu os. H oje, três anos d ep ois e algu ns p on tos p ercen tu ais a m ais d e ad esão p op u lar à FN, esse tip o d e m aneirism o, qu e d u p lica a d istância qu e havíam os estabelecid o com aqu eles qu e filmávamos, p arece-m e u m esforço qu ase qu e d esesp erad o. Longe d em ais/p erto dem ais: velha qu estão da mise-en-scène. Brincad eira d e gangorra, jogo d o “p erd e qu em gan h a’?

Esta a pergu nta qu e eu fazia: com o incitar o esp ectad or em d i­reção a um sentim ento d e horror e d e revolta lógica d iante das m onstru osid ad es cotid ianas da FN, sem fazê-lo d eleitar-se nem com o horror, n em com sua d enú ncia espetacu lar?

A QUESTÃO DAS ALIANÇAS

Em m aio d e 1997, eleições legislativas, film am os La question cies alliances. Mais uma vez, Marselha.17 Se essa qu estão se tornou p reocu p an te, foi para a d ireita p arlam entar, RPR e UDF. É sobro cia qu e se exerce a p ressão d a extrem a-d ireita. Há as p osições do p rincíp io e as realid ad es d o cam p o eleitoral. O qu e qu er qu e possa p ensar na esfera privada, a d ireita governava d eclarand o sua hostilid ad e publica a FN, qu e, por sua vez, a com batia cm nom e d os “valores" qu e a d iiciia leria lra ítlo .1M Mas, liojc, uma

Ml

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parte d essa d ireita - p olíticos, quad ros, militantes: tantas p essoas, qu eiram os ou n ão, da elite p olítica fran cesa - fala abertam ente em fazer alianças mais ou m enos “circu nscritas” com a FN. Bru no Mégret,19 qu e n ós film am os, esp era qu e as alianças cond u zam a cu rto p razo à “d ecom p osição” d essa m esm a d ireita qu e diz d esejá-las, para ch egar à recom p osição de uma “d ireita n acion al” em torno da FN e sob seu con trole. Tal m e p arece ser o risco p olítico para os p róxim os tem p os: qu e uma d ireita esfacelad a, atabalhoad a, venha abrir a porta e en tregar o p od er à FN; qu e n o âm ago d e n ossas fam osas elites, insu ltad as p elas lad ainhas d a FN, algu m a fração m asoqu ista ad ote a política d o qu an to p ior m elhor.

A qu estão das alianças (qu al amigo? qu al inimigo?) é uma qu estão d iretam ente política, qu e vai além dos tem as id eológicos, afetivos, m orais (Cari Schm itt). Cada uma das cin co m aiores form ações p olíticas da França p od e se ver na situação d e p recisar se aliar a u m p rim eiro in im igo (p or mais d etestável e d etestad o qu e seja) para com bater um segu nd o in im igo consid erad o m ais am eaçad or. A esqu erd a com a direita contra a extrem a-d ireita. A d ireita com a extrem a-d ireita contra a esqu erd a. Não se trata m ais ap enas d e ap rovar ou con d enar “as id éias” d e Le Pen, m as d e p erd er ou ganhar um escru tínio, sobreviver ou d esap arecer com ou ap esar d os votos qu e se ganharão d os cand id atos da FN. Portanto, na d ireita encontram -se os partid ários - e os adversários- d e um acord o “realista” qu e cond uziria, localm en te d e in ício, d ep ois nacionalm ente, a uma d ivisão d os p od eres en tre os d ois partid os de d ireita (RPR e UDF) e a FN. E já vem os as m anobras d e sed u ção, isolam ento ou coop tação d e uns p elos ou tros nas cid ad es de Tou lon , Vitrolles, Marignane.20

Isso qu er d izer qu e o partispris d o cineasta - filmar a FN, não importa o qu anto lhe custe, para com batê-la conhecend o-a m elhor- se vê confrontad o com outra lógica, política, a qual p ressu poria o in teresse de uma aliança com aqu eles m esm os atores qu e se d eve com bater, o “d iabo” d e ontem se m etam orfoseand o d iante de n ossos olhos em p otência p olítica d igna d este nom e. In sen si­velm ente, vem os, verem os cad a vez mais, a repulsa se transformar em vaga atração fatalista. “Dep ois d e t u d o , e “por qu e não?”. F. isto qu e seria importante1 mostrar h o je , qu<* a FN e s l ã tom and o o

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p od er p oliticam ente, com u m a mistura de terror e sed u ção qu e fisga os seu s inimigos. Não se trata m ais d e “d escobrir” ou de “ex­p lorar7’ cinem atograficam ente as terras qu e continu am tão p ou co con hecid as da Frente Popu lar, seu s ad ep tos, u sos e costu m es. Acreditamos, juntam ente com Michel Samson e com Anne Baudry, qu e a u rgência era d escrever e mostrar, fazer ouvir, o qu e fazia, o qu e d izia a FN, em prim eiro lugar, p orqu e a tarefa fu nd am ental d o cinem a está ligada ao d esejo de con h ecer e d e com p reend er, trabalho elem en tar de form ação d o cid ad ão, tarefa qu e a míd ia, aliás, cu m p re tão p recariam ente (.La Campagne de Provence é, sem dúvida, o ú n ico registro film ad o das cinqü en ta “m ed id as” da FN anu nciad as p or M égret...). Não estam os mais n aqu ele p on to. Será qu e passam os d aqu ele p on to sem volta em qu e nem a mais assu stad ora d escrição é su ficien te para nos infund ir medo? A FN tornou -se a tal p on to atraente para suas p róp rias vítimas? Com qu e en can tos ela p od e sed u zir esses hom ens p olíticos de d ireita qu e aind a se d izem rep u blicanos e qu e ela acabará p or destruir? H oje, a qu estão é p olítica. É p ossível acred itar na FN qu and o ela se p roclam a “con tra” os partid os políticos, ternam ente cham ad os d e “ban d o dos qu atro”? Qu eiram os ou não, a FN é um partid o p olítico, qu e governa p oliticam en te tais cid ad es, qu e d isp õe d e u m p rogram a, d e qu ad ros, d e estru tu ras p olíticas, qu e tem am bições políticas. Mascarad o sob u m a retórica antipartido, ele nad a é além d e um partid o, qu e é p reciso d esm ascarar com o tal, para com batê-lo p oliticam ente.

Para o cineasta, “p oliticam en te” qu er d izer p u blicam en te, abertam ente, exp licitam ente. Film ar abertam ente as p essoas da FN - com o se filmam os ou tros h om en s p olíticos, nem mais e nem m enos. Tornad o p eça da engrenagem das alianças p ú blicas, o in im igo muda de lugar: trata-se de film ar essa m u d ança para con tinu ar a com batê-lo. Do p on to de vista da m ais rad ical das nâo-alianças, filmar a am eaça d a aliança. Em abril de 1992, em Martigues, film ávam os Bru no Mégret, qu e sorria ao constatar o qu anto a FN já havia “consegu id o a vitória id eológica”, d ifund indo sua pauta, suas palavras de ord em, suas idéias n o d iscu rso p ú blico das outras form ações políticas, esqu erd a inclusive, para conclu ir qu e “a vitória id eológica sempre* p reced e a vitória p olítica”. Em maio de 1907, em Vilrolles, chegou o m om ento d e Mégret tentar alcançar essa vi(oria p olítica .'1 I\ nos nao o film am os cia mesma

m aneira d e cin co anos atrás. Não tínham os mais necessid ad e das lu zes verd es e das m ú sicas estrid entes. Derrota da p ropagand a, tanto m elhor!

Descrever para d enu nciar não é mais su ficiente. Forçar o traço para denunciar, tam bém não. Denu nciar para preservar nossa boa con sciên cia e nos colocarm os ao lad o d os bons? Denu nciar n ão é m ais su ficien te. Falem os d e lu ta. Luta p olítica, isto é, corp o-a- corp o cinem atográfico - exp or, exp licar, colocar as palavras e os corp os em p ersp ectiva, e não mais chap ad os. Film ar com p rofu n ­d id ad e (d e cam p o, de cen a). Cam p o e fora-d e~cam p o. Visível e invisível. Em relevo, colocar em relevo. Film ar a transform ação política da FN, isto é, trabalhar p acien tem en te a m assa política d o m om ento, ou seja, dar corp o e p resença ao in im igo para qu e ele ap areça em sua p otência, tal com o ele se ap resen ta hoje na cen a p olítica - u m a am eaça a ser levad a a sério. Aqui, o horror n ão é caricatu ral. Ele está n o p en sam en to lóg ico, na racion alização, n o cálcu lo, na n egociação. O horror está na con cretização da mais m ed itad a aliança.

Debilm ente ainda, o d iscu rso p ú blico ou sa articular o qu e interd itava a si m esm o alguns m eses antes. O am bien te é de ap roxim ação, d e sorrisos, d e sorrisos p erigosos. A morte rond a, sorrid ente, afável, ela já p ou sou sua m ão sobre esse om bro, ela p od e voltar. Com ela, voltam os fantasm as d o p assad o, fascism o, gau llism o. Essas som bras passam n o m eio de corp os qu e são cad a vez mais reais, cad a vez mais esp essos. Pois agora isso se reencarna. As idéias d o in im igo ganham em corp oreid ad e. É isso qu e dói.

Camila Matos
Camila Matos

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